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IvUJLZ/lVJAJJL i

Este livro conta uma Mstórià absolutamente inédita


e tão fantástica que, se não existissem os documentos
eomprobatórios, passariaporficção. Trata-se da primeira
biografia de uma ex-escrava africana que viveu em Minas
Gerais e no Kio de Janeiro na prijcaeira metade do século
xvra. •; . : v... ~-j-
Rosa Egipcíaca, ao ser presa pela Inquisição de Lis-
boa, narrou detalhadamente sua vida, desde os 8 anos,
quando foi pilhada na Costa de Uidá (Nigéria) e vendida
como escravano Rio de Janeiro, njo ano do Senhor de 1725.
Deflorada por seu patrão, viveu como prostituta nas Mi-
nas por mais de uma década, ate que se manifestou seu
Espirito, convertendo-a em "Esposa da Santíssima Trin-
dade". Açoitada no Pelourinho de Mariana sob a acusação
de feitiçaria, foge para o Rio de Janeiro, onde funda o
Recolhimento de Nossa Senhora do Parto, congregando
duas dezenas de "madalenas arrependidas", metade delas
negras e mulatas,
E proclamada "Flor do Rio de Janeiro" pelo alto clero,
suas relíquias são disputadas por numerosos devotos.
Suas visões, êxtases e profecias não ficam nada a dever à
das grandes santas barrocas.
Foi a primeira escritora negra na história afro-brasi-
leira. Acusada de falsa santidade e diabolismo, passou
longos anos nos Cárceres Secretos da Santa Inquisição.
O fim de sua vida fantástica continua um mistério:
santa ou embusteira, Rosa Egipcíaca foi a primeira "Es-
crava Anastácia" de nossa historia.

Uma Santa Africana no Brasil


% • •• èé è
Luiz Mott

Rosa Egipcíaca
Uma Santa Africana no Brasil
Copyright © 1993, Luiz Mott Stunário

Capa: projeto gráfico de Geysa Adnet e Felipe Taborda


Introdução 7 l
Foto da capa: Santa Efigênia, imagem do século XVIII da Igreja
do Rosário dos Pretos de Salvador. 1. Os Primeiros Anos no Cativeiro 13
As fotos publicadas neste livro e a da capa são de propriedade 2. Mulher da Vida em Minas Gerais 33
do Autor. • ' ,* s- f 3. Encontro com o Padre Xota-Diabos 49 •
Biblioteca Cenít&l 4. Visões e Atribulações de uma Enderaoniada 85
5. Acoites no Pelourinho de Mariana 101
1993E te§>. N° 2í&,£>.?ír,* 6. Prova de Fogo 127
Naíai, .'2:.iL.J.&.(~.. 7. Mudança de Nome: Rosa Maria Egipcíaca da Vera Cruz 161
8. Viagem para o Litoral 179
9. No Rio de Janeiro em 1751 195
Impresso no Brasil 10. Sob a Orientação Espiritual dos Franciscanos 215
Printed in Brazil 11. Fundação do Recolhimento do Parto 255
12. As Primeiras Recolhidas 233
13. Visão dos Sagrados Corações 313
ISBN — 85 - 286 - 0171 - 4 14. Reflexos do Terremoto de Lisboa na América Portuguesa 335
15. Formação de Noviças 357
16. Expulsão do Recolhimento 379
17. A profecia do Dilúvio 405
18. A Vida no Sacro Colégio 425
Todos os direitos desta edição reservados à: 19. As Quatro Evangelistas e e Diabo 451
EDITORABERTRAND BRASIL SÁ 20. Rosa Mística 491
Avenida Rio Branco, 99 - 20a andar - Centro 21. Rituais de Adoração 531
20 040 - 004 - Rio de Janeiro - RJ 22. A Grande Viagem e Casamento com D. Sebastião 545
Tel.: (021) 263 2082 Telex: (21) 33798 Fax: (021) 263 6112 23. Prisão e Sumário no Auditório Eclesiástico
Avenida Paulista, 2073 - Conjunto Nacional do Rio de Janeiro 575
Horsa I - Conjuntos 1301 e 1302 - Cerqueira César 24. No Tribunal do Santo Ofício de Lisboa 625
01 311-SãoPaulo-SP 25. Julgamento do Padre Xota-Diabos 655
TeL: (011) 285 4941 Telex: (11) 37209 Fax: (011) 285 5409 / 852 8904 26. Um Processo Inconcluso 689
Não é permitida a reprodução total ou parcial desta obra, por
quaisquer meios, sem a prévia autorização por escrito da Editor a. Epílogo 723
Atendemos pelo "Reembolso Postal. Bibliografia 733
Introdução

Durante três séculos e meio, mais de cinco milhões de africa-


nos foram arrancados de suas aldeias nativas e vendidos como gado
humano no Brasil. Destes, a quase-totalidade morreu sem deixar
nenhum registro de suas vidas: com seu. suor e sangue construíram
esta .nação, heróis e vítimas anónimas de nosso triste passado
escravista. Pequena porção dos africanos e seus descendentes,
contudo, mereceu da administração colonial algum tipo de registro
documental: atestados de desembarque nos portos, registros de
batizado, casamento e óbito; escrituras de compra, venda e hipoteca
de escravos; cartas de alforria, processos criminais, registro de
filiação em irmandades de cor, anúncios de negros fugidos nos .•*-"
jornais, etc. São dados ocasionais, instantâneos de vida, impossi- /y-'"
bilitando ao estudioso a reconstituição completa de uma totalidade <-
biográfica. Mesmo daqueles jwujMS_negros_e_negr.as._que..m,ais se ;
destacaram no período do cativeiro, como Zumbi dos Palmares, /
Chica da Silva, Chico Eei, José do Patrocínio — e da idolatrada f
Escrava Anastácia — muito pouco de certo se sabe sobre suas /
vidas, posto faltarem registros autênticos.
Tal lacuna documental evidencia-se ainda mais se a con-
frontarmos com o que ocorreu na América do Norte, onde já em
1845 o ex-escravo Frederic Douglas escrevia ele próprio sua
autobiografia e em 1861repetia amesmafaçanha aforraHarriet
Jacobs. Tais dados obrigam-nos a concluir o quão afastados
foram mantidos os negros na América Portuguesa dos segredos
da escrita, pois além de não dispormos de nenhuma autòhlogra-
fia, nem de biografias de escravos ou. forros vivendo no Brasil,
salvo erro, o mais antigo manuscrito autografado por um ex-es-

Vv<X A; -Cr\
Vj
cravo em nosso país data de 1752 — e traz'a assinatura de nossa provavelmente a mulher africana do século XVIII sobre a qual
biografada: ROSA MARIA EGIPCÍACA DA VERA CRUZ. se dispõe de maior número de informações biográficas. Ar.econs-
tituição minuciosa da vida desta_ex-escr_aya, e sobretudo de suas
visões, revelações celestiais e jmisticismo, tornou-se possível
graças à descoberta, na Torre do Tombo de Lisbõa,~de dois
Rosa Egipcíaca foi uma africana igual a milhões de outras processos inédrfõs"quê"íivemos á~enormlTãlegria de trazer àluz
mulheres que tiveram a desventura de ser capturadas e vendi- do dia apólTdõis séculos dê esquecimento. Rosã~e~seú'úT6'imo
das como gado humano no Novo Mundo: menina de 6 anos sofreu propriêfarío7õ Padre Francisco Gonçalves Lopes,, foram presos
o horror dantescb da travessia oceânica dentro do porão de um pela Santa Inquisição de Lisboa no ano de .1762, acusados de,
navio negreiro; foi batizada por ordem de seu primeiro proprie- heresia e falso misticismo. Estes dois processas de mais de 350 )
tário no Rio de Janeiro, no ano do Senhor de 1725, o mesmo que folhas, que incluem, duas longas confissões feitas pela ré'——a (
a deflorou, mal completara 14 anos; quando adulta, foi açoitada primeirano Auditório Eclesiástico do Rio de Janeiro, e a segunda
no pelourinho da vila de Mariana, nas Minas Gerais, e, como nos cárceres do Santo Ofício de Lisboa, reconstroem, ano a ano, •
suas irmãs de cor, deixourse.fascinar pelos tecidos coloridos e sua biografia e rev-elaçoes celestiais. Através deles e de uma
jóias doiradas do mundo dos brancos. Teria morrido anónima se preciosa coleção d1^ 55 cartas assinadas por Rosa Egipcíaca e por '
não tivesse caído nas garras da Santa Inquisição: destacou-se seu Capelão Exorcista, pudemos reconstituir a biografia desta
excepcionalmente de suas irmãs e irmãos de cor por uma série criatura fantástica, dotada de uma inteligência privilegiada e
de fenómenos sobrenaturais e peripécias biográficas. Foi repu- de um carisma tal, que chegou a merecer do Provincial dos
tada como portadora de poderes paranormais, amealhando nu- Franciscanos do Largo da Carioca o maravilhoso título de "A
meroso séquito de devotos não só entre o populacho, mas também Flor do Rio de Janeiro". Uma Rosa Negra, africana, ex-cativa e
nas entes, .a ponto de ser adorada de joelhos por sen ex-senhor ex-prostituta é nomeada pelo alto clero do Brasil como "a maior
e proclamada_ppr diversos sacerdotes europeus como a "nova santa do céu"! Santidade e veneração que o impiedoso tempo
Redentora do género humano". Foi não. apenas a primeira apagou completámente da memória nacional, tanto que até hoje
africana no Brasil, de que temos notícia, a conhecer os segredos nenhum autor sequer citou o nome e a existência desta deusa
da leitura, como também .provavelmente a primeira, escritora de ébano, personagem fantástica, verdadeira pérola negra da
negra de toda a história, pois chegou a reunir centenas de qual temos o orgulho e privilégio de resgatar a história, a um
páginas manuscritas de um edificante livro: Sagrada Teologia tempo gloriosa e sofrida. .
do Amor de Deus, Luz Brilhante das Almas Peregrinas, lastima- Antropólogo de formação, há duas décadas pesquisando os
velmente queimado às vésperas de sua detenção, mas do qual papéis velhos nos arquivos nacionais e estrangeiros, confesso
restaram algumas folhas, originais. Rosa .Egipcíaca é também que nunca encontrei criatura tão fascinante, com uma vida tão
excepcional por ter sido a única mulher de cor, ex-escrava e incrível e rocambolesca como a de Rosa Egipcíaca. Vida barroca
ex-prostituta, em todo o mundo cristão, a.fundar um "convento cheia de contrastes e contradições, posto ter conhecido tanto o
de recolhidas", o Recolhimento de Nossa Senhora do Parto, cuja desconforto das senzalas quanto os salões atapetados de dois
capela, reconstruída, existe, ainda hoje no centro comercial do palácios espiscopais; ter vivido como prostituta nas montanhas
R i o d e Janeiro. . . . . ' . . - • de Minas Gerais e, depois de convertida, transmutar-se em
Por tais motivos —• e muitos outros revelados nos trinta e fundl^ora V _fC^^ e
oito anos que viveu no Brasil — Rosa Egipcíaca da Vera Cruz é madalenas arrependidas; ter sido insultada* por uns como em-

l
busteira e possessa do demónio, enquanto muitos outros idola- e que em sua falta poderá ser substituída com resultados próxi-
travam-na, e às suas relíquias/ como sendo a própria esposa da mos pelo Requiem de Mozart. Se for possível visitar alguma de
Santíssima Trindade. Santa que rezava em latim, que sabia nossas igrejas setecentistas, detenha-se nos detalhes das escul-
cantar comoventes hinos litúrgicos, mas que não dispensava, turas, talhas doiradas e pinturas antigas, aparelhando-se assim
como boa africana da Costa dá Mina, seu inseparável cachimbo; para muito melhor vislumbrar as muitas revelações e êxtases
que em seus arroubos místicos pode perfeitamente ser equipa- de nossa mística africana.
rada às principais videntes canonizadas por Roma, mas que não
resistia, às vezes, à tentação de louvar seu Divino Esposo, Nosso
Senhor Jesus Cristo, dançando frenética ao ritmo do batuque.
Santa para muitos, embusteira par a outros, alienada mental
Entre a descoberta dos manuscritos de Rosa Egipcíaca
ou epiléptica como a maioria dos santos, místicos e visionários,
em 1983, e o retorno à Torre do Tombo, em 1987 — sempre com
Rosa Bgipcíaca foi uma mulher fascinante, contraditoriamente
o indispensável apoio do CNPq, gastamos mais de seis anos
megalomaníaca e humilde, ambiciosa e singela. Criatura "esprita- pesquisando e redigindo este trabalho. Como não encontramos
da" mas de carne e osso, e, mesmo que reconheçamos SUEIS imper-
publicações que tratassem em profundidade de diversos assun-
feições, alienação e até embustes, não há como não admirá-la.
tos relacionados à vida desta beata negra, fomos obrigados a
Através de sua vida prodigiosa, desfilam alguns aspectos
pesquisá-los, o que explica o elevado número de páginas deste
fundamentais de nossa sociedade antiga, às vezes confirmando o
livro e alguns "desvios" temáticos que certamente deliciarão os
ensinamento de nossos melhores estudiosos, outras obrigando-nos
estudiosos mais exigentes, mas talvez enfadem a quantos estão
a rever ou ampliar nossa compreensão das relações sociais dentro
interessados sobretudo nas aventuras e desventuras de Rosa
do escravismo colonial, os pressupostos de nossa religiosidade
Egipcíaca. Além da reconstituição de sua biografia, fizemos
popular, o papel repressor do Santo Ofício às diferentes manifes-
longas digressões sobre outros aspectos complementares à sua
tações do sincretismo.
vida, tais como sobre a etnia Courá ou Courana, à qualpertencia
Por se tratar de uma santa barroca; vivendo-num período
esta africana; sobre a atuação do Santo Ofício nos lugares onde
igualmente extravagante, não tivemos como escapar às influên-
viveu; sobre a instituição dos recolhimentos no Brasil colonial;
cias coevas, daí prevenirmos desde já o leitor para que se
sobre o culto aos Sagrados Corações, que tiveram em Rosa sua
prepare para ler um livro barroco — atribuindo a este termo
principal vidente e propagandista na América Portuguesa, etc.
seu sentido primitivo: "pérola irregular com altibaixos", segun- A fim de poupar os leitores mais apressados de tais desvios
do a definição de nosso melhor dicionarista daquela época, o subsidiários, houvemos por bem resgatar a prática barroca
carioca António Moraes Silva, também, ele próprio, vítima da editorial de subdividir o livro em abundantes capítulos, permi-
Inquisição, e que nos acompanhará ao longo destas páginas, tindo assim uma leitura seletiva da biografia de nossa Beata,
"traduzindo" termos e expressões barrocas encontrados na
documentação.
Neste sentido, tomamos a" liberdade de sugerir enfatica-
mente ao leitor que antes e durante a leitura desta obra, para
melhor imbuir-se do barroquisrnode nossabiografada e da época De todos os livros que publicamos, este foi não apenas o
em que viveu, procure ouvir os dois volumes do disco Mestres do que nos tomou mais tempo de pesquisa e redação, como o que
Barroco Mineiro, obra maravilhosa mas lastimavelmente rara mereceu o maior número de contribuições intelectuais, indica-
ções bibliográficas, pistas e ideias. Nossa mais cordial gratidão

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a todos os nossos colaboradores, especialmente a Adalgisa Ar an-
tes Campos, Ana Isabel da Cunha, Cândido da Costa e Silva,
Caio Boschi, Daniela Calainho, David Price, Fernando Rocha Os Primeiros Anos no Cativeiro
Perez, Henrique Osvaldo Fraga de Azevedo, Iraci dei Nero
Costa, João José Reis, Júlio Braga, Lana Lage, Laura de Mello
e Souza, Leila Algranti, Luciano Raposo Figueiredo, Luiz Carlos
Villalta, Maria Lúcia Mott, Mário Maestri Filho, Mary dei
Priore, Paulo Bonorino, Robert Howes,_ Roberto Albergaria, Dentre os milhares de africanos trazidos anualmente da
Renato Venâncio, Ronaldo Vainfas, Vittorino Regni, Vivaldo Costa da Mina para o-Brasil, nos inícios do século XVIII, calcu-
Costa Lima, Yeda Castro, Welber de Sousa Braga. Durante as la-se que no ano de 1725 devem ter sido desembarcados no Rio
pesquisas e transcrição dos documentos, Aroldo Assunção foi de Janeiro por volta de 5.700 cativos. E no meio dessa massa
meu braço direito; Carlita Chaves, minha fiel doméstica há mais humana— que por ano retirava da África, em direção à América
de uma década, esclareceu-me várias dúvidas com sua genuína Portuguesa, mais de 120 mil seres humanos reduzidos à condição
memória de neta de africanos; José Carlos Santos Silva colabo- de gado — exatamente no ano de 1725, chega ao porto do Rio
rou, com suas repetidas cobranças, para que este estudo não uma negrinha de 6 anos, que na pia batismal receberá o nome
demorasse ainda mais; Marcelo Ferreira de Cerqueira, meu de Rosa,
companheiro querido, com seu carinho e presença amiga, criou Nada sabemos sobre sua infância, família, aprisionamento
as condições emocionais para a realização desta obra. A todos, e travessia do Atlântico no navio negreiro. A única referência
minha eterna gratidão. Ofereço este livro a meus pais, Leone sobre seu passado africano é dada por ela mesma, aos 43 anos
Mott e Odette de Barros Mott e a minhas filhas Míua Tanabe de idade, quando foi presa no aljube por ordem do bispo do Rio
MotteTamíMott. de Janeiro, Dom António do Desterro. No "Auto de Perguntas
Feitas à Ré Rosa Maria Egipcíaca da Vera Cruz, Preta Forra",
Bahia de Todos os Santos, 2 de abril de 1991, ao ser indagada "pela sua.vida_e_ .mojio_dela_e_corno_a_passou,
na Festa de Santa Maria Egipcíaca. disse que ela é natural da Costa da Mina, de_.n^cjÚ3_c_qurana e
que veio para esta cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro em
idade de 6 anos..,". Noutra ocasião, quando interrogada pelos
Inquisidores de Lisboa, acrescentará mais um detalhe identifi-
cador de sua nacionalidade: disse ter nascido na "Costa de Judá,
nação courana".
Pouquíssimas informações encontramos nos livros a res-
peito da nação courana. Dentre as centenas de etnias africanas
trazida^ para o Novo Mundo nos três séculos de tráfico negreiro,
os nativos desta nação aparecem referidos nos documentos com
diferentes grafias: courá, cura, curamo, couramo, curano, cou-
xaina, courã, Içaram, e pelos compostos courá-mina, courano da
Costa da Mina, courã-baxé. Todos estes nomes provêm, com
certez a, de três importantes acidentes geográficos situados entre

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a Fortaleza de Ouidah (Judá ou Ajuda) e o Reino de Benin: o rio
Curamo, a lagoa e a ilha do mesmo nome. "É sem dúvida durante o trajeto da África para a Amé-
Se nos debruçarmos sobre os poucos mapas antigos da rica que a situação dos negros se revela mais horrível.
África relativos a esta região, podemos descobrir, bem próximo Reflita-se sobre a impressão cruel do negro diante da
à costa, ao sul do porto de Judá e ao norte do rio Benin, esses separação violenta de tudo que lhe é caro, sobre os efeitos
três pontos geográficos, assim como a pequena vila de Curamo, do mais profundo abatimento, ou a mais terrível exaltação
que na descrição do Eeino de Benin, de 1748, é dita como de espírito, unidos às privações do corpo e aos sofrimentos
situando-se a l O- léguas do rio Formoso, povo ação que tinha todo da viagem. Esses infelizes são amontoados num comparti-
seu espaço circundado por paliçada dupla, distante 13 léguas da mento cuj a altura raramente ultrapassa um metro e meio.
vila de Jábum. Revela a' mesma fonte que os couranos distin- Este cárcere ocupa todo o comprimento e a altura' do porão
guiam-se pela excelente qualidade e beleza dos tecidos que aí do navio. Aí são eles reunidos em número de 200 a 300. Os
faziam, sendo vendidos por altos preços na Costa do Ouro. escravos aí são amontoados de encontro às paredes do navio
Segando ensina Pierre Verger, grande estudioso e profundo e em torno do mastro. Aonde quer que haja lugar para uma
conhecedor desta região, os courá, inimigos do Rei do Daomé criatura humana e qualquer que seja a posição que se lhe
habitavam a lagoa de Curamo, nos arredores da atual cidade de faça tomar, aproveita-se. O mais das vezes as paredes com-
Lagos. Provavelmente foi numa das batalhas ou escaramuças portam, a meia altura, uma espécie de prateleira de madeira
entre essas etnias inimigas que nossa menina courá foi presa, sobre a qual j az uma segunda camada de corpos humanos.
vendida com outros cativos e despachada no porto de Judá em Todos, principalmente nos primeiros tempos da travessia,
direção ao Brasil. têm algemas nos pés e nas mãos e são presos uns aos outros
Nada sabemos sobre a parentela de Rosa: na sua confissão por uma comprida corrente. O calor ardente, a fúria das
em Lisboa declarou "não saber quem são seus pais". Diz o pintor tempestades e a alimentação a que não estão acostumados
Rugendas que "infelizmente, quando se vendem escravos, rara- — de feijão com carne salgada—, afalta d'água são as causas
mente se tomam em consideração os laços de parentesco. Arran- de grande mortalidade."
cados a seus pais, a seus filhos, seus irmãos, esses infortunados
explodem às vezes em gritos dolorosos". Em nenhum momento Cinquenta dias e cinquenta noites dentro deste inferno, da
de sua biografia Rosa faz qualquer menção à sua família africa- Costa da Mina ao Rio de Janeiro! "As crianças apinhavam-se na
na. Somente quando adulta é que construirá sujaj!família-espi=. primeirameiaponte, como arenquesnumbarril. Setinhamsono,
ritual", pois, além de se tornar comadre e madrinha, terá deze- caíam uns sobre os outros: representavam de 8 a 13% dos
nas de "filhas" em seu Recolhimento de Nossa Senhora do Parto, carregamentos no século XVIII." Apesar de calcular-se de 15 a
além de muitas outras dezenas de "filhos espirituais" e devotos 20% a taxa de mortalidade dos negros durante a travessia, havia
no interior de Minas Gerais e na cidade do Rio de Janeiro. Terá ocasiões em que a mortandade era devastadora: em 1736, o
também diversos "pais espirituais", seus confessores, com os negreiro e familiar do Santo Ofício daBahia, João da Costa Lima,
quais manterá cordial e devota relação, filial. saiu da Costa da Mina, do porto de Jáquém, com um navio
A travessia do Atlântico dentro' do porão do navio negreiro carregado com mais de 800 escravos! Vindo com pouco manti-
deve ter sido uma experiência terrível para essa menina recém-es- mento e água reduzida, em poucos dias de navegação, morreram
cravizada: mais de 400 negros, cujos corpos foram sumariamente jogados
no mar. Tiveram de desembarcar na ilha dos Zambores para.
evitar a perda total da "mercadoria negra".

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Foram, certamente tais encantos primaveris e a impunida- insaciável Minas Gerais. Talvez fossem capitaneados por ines-
de dos abusos sexuais, que devem ter despertado a concupiscên- crupulosos ciganos, etnia muito afeita, na época escravista, ao
cia do Sr. Sousa de Azevedo, pois, conforme contou ela própria, tráfico inter-regional de gado humano e cavalar. Deve ter sido
"em companhia deste senhor esteve até a idade de 14 anos, o esta a segunda grande caminhada forçada na vida desta garota:
qual a deflorou e tratou com ela torpemente". a primeira, há uns nove anos passados, de sua aldeia tribal até
Malgrado os anátemas do clero contra a mancebia é a o porto de Judá; agora esta, atravessando as densas e úmidas
simples fornicação dos senhores com suas escravas, o que florestas serranas, ferindo seus pés descalços nos atalhos pedre-
aconteceu à nossa negrinha adolescente devia ser a regra para gosos das Minas. Geralmente quando transportados em grupos,
a maioria das cativas, neste período tão cruelmente marcado os escravos iam em fila indiana, tendo à frente e na retaguarda
pelo machismo e autoritarismo dos donos do poder. Como lembra os condutores montados a cavalo; iam amarrados coro. cordas ou
acertadamente Gilberto Freyre, "não há escravidão sem depra- correntes, chapéu de palha na cabeça, vestidos sumariamente,
vação sexual. É da essência mesma do regime". Se Rosinha os mais fortes carregando fardos e farnéis nas costas.
engravidou, abortou ou pariu, nada nos informa. O trajeto deve ter levado pelo menos dez ou doze dias de
Após oito anos de residência no Bio, em 1733 seu senhor viagem, seguindo o mesmo itinerário referido por Antonil no seu
"a vendeu para as Minas, a Dona Ana Garcês de Morais, que "Roteiro do Caminho Novo para as Minas" (1711). Partindo da
morava no Inficcionado". Rosa tinha então 14 anos. Novamente cidade do Rio de Janeiro por terra, com gente carregada e
a separação de' seus conhecidos, a ruptura da rotina de sua vida "marchando à paulista", isto é, "andando bem desde a madru-
de adolescente, a angústia e temor face ao desconhecido. Por gada até às 3 horas datarde, quando se arranchav ampara terem
mais fome que tenha passado desde que atingira a idade da tempo de descansar e buscar alguma caça, peixe, mel, palmito
razão, por mais pancadas, beliscões, palmatoadas ou mesmo ou outro qualquer mantimento", atravessavam a Baixada Flu-
chicotadas quetenharecebidonacasade seu senhor, certamente minense, transpunham a serra do Mar, cortando a seguir os rios
a menina-moça africana criara laços afetivos e de amizade com Paraíba e Paraibuna, sem falar nos incontáveis regatos e brejos
outros escravos, talvez com gente de sua mesma nação, de modo atravessados a vau. Nas encostas da Mantiqueira -—onde já
que provavelmente derramou muitas lágrimas ao se despedir dizia Antonil que um ditado popular garantia que "quempassou
do pequeno grupo de seus entes queridos. Jamais teria imagi- a serra Amantiqueira aí deixou dependurada ou sepultada a
nado que, passados vinte anos, haveria de voltar a esta mesma consciência..."— abasteciam-se no pouso de João Gomes (hoje
cidade já então como liberta, cercada de muitos louvores inclu- denominado Santos Dumont), cruzando então a íngreme e fria
sive do próprio superior dos franciscanos, que orgulhosamente serra, atingindo a famigerada Borda do Campo, onde abunda- •
dirá ser "Rosa a flor do Rio de Janeiro". vam roças de milho, abóbora e feijão e, para os mais abastados,
Por que seu senhor a vendeu, como se processou atransação frangos e leitões. Daí continuavam pelo arraial da Igreja Nova
comercial, como ocorreu a viagem da negrinha courá do litoral (Barbacena), passandopelaRessaca, entroncando-se aí apicada:
pára o interior das Gegai§^são_guest5es que_apenas podemos para a esquerda atingia-se o rio das Mortes, e a vila de São João
conjecturar, posto que(^_documentagáo é omissa^)O certo é que delRei; para a direita, passando Carandaí, Congonhas eltatiâia.
os mais de 500 km que separam o RioTFJãíõelroda comarca da chegava-se ao coração das Gerais, a bela e mui fiel Vila Rica.
vila do Carmo devem ter sido percorridos a pé pela infeliz No ano em que Rosa chega a esta Capitania—1733 —, as
escrava, provavelmente fazendo parte de um magote de cativos, Minas estavam no seu apogeu. "Vila Rica era, por situação da
dos muitos que nestes anos eram levados para a florescente e naturez a, cabeça de toda a América e, pela opulência das riquezas,

20 21
a pérola preciosa do Brasil." Rosa talvez tenha passado por Vila
Bica, quem sabe mesmo permanecido algum tempo presa junto "Para se suprirem os negros que continuamente morrem
com. outros cativos à espera de comprador, A paisagem natural, nas Minas, é preciso que entrem cada ano 6 mil negros ao
arquitetônica, e a composição social de Minas Gerais eram bem menos. Hoje as Minas teriam 150 mil pessoas — os negros
diversas da que a negrinha couraria se acostumara a ver quando seriam 100 mil. A maior parte das gentes são roceiros e
morava à beira-mar. mineiros. Os letrados que há nas Minas estão em Vila Rica
Eis como o jesuíta Antonil descrevia as Gerais logo no início 15, no Ribeirão do Carmo 9, no Sabará 8, no Rio das Mortes
da exploração aurífera: 4. Os médicos são emVilaRicaS, no Ribeirão um, no Sabará
2. Os cirurgiões serão 80, e as boticas talvez não sejam 30.
,,22
' "A sede insaciável do ouro estimulou a tantos â deixarem Ornais são oficiais mecânicos, mercadores e taverneiros.'
suas terras e meterem-se por caminhos tão ásperos como
são os das minas, que dificultes amente se poderá dar conta Aí chegando, Rosa vai morar na freguesia de Nossa Senho-
do número de pessoas que atualmente lá estão. Contudo, radolnficcionado. Este lugar, hoje commenos de 500 habitantes,
os que assistiram nelas nestes últimos anos por largo era um arraial situado a 4 léguas ao norte da vila de Mariana,
tempo, e as correram todas, dizem que mais de 30 mil almas limítrofe ao sul com as minas de Catas Altas, ganhando esse
se ocupam, umas em catar, e outras em mandar catar nos curioso nome devido à maneira como o local foi "inficcionado"
ribeiros do ouro, e outras em negociar, vendendo e com- por invasores sequiosos do abundante ouro que iniciakaen±e_aí
prando o que se há mister não só para a vida, mas para o se encontrou. Esta é uma das versões da origem deste topônimoT)
regalo, mais que nos portos do mar. tendo como seu defensor Diogo Vasconcelos em sua Historia
Cada ano vem nas frotas quantidade de portugueses e Antiga dos Minas Gerais. Para ele, ..
de estrangeiros, para passarem às minas. Das cidades,
vilas, recôncavos e sertões do Brasil, vão brancos, pardos "inficcionar o ribeiro se dizia quando flibusteiros o assal-
e pretos, e muitos índios,"de que os paulistas se servem. A tavam em tumulto, como ocorreu com a descoberta de
mistura é de toda a condição de pessoas: homens e mulhe- Salvador de FariaAlbernoz, onde a espantosa cópia de ouro
res, moços e velhos, pobres e ricos, nobres e plebeus, que se encontrava nas areias e cascalhes desse rio deslum-
seculares e clérigos e religiosos de diversos institutos, brou a baianos e novatos, levando-os a escalarem o desco-
berto e todo o leito do ribeirão, sem respeito às datas nem
muitos dos quais não têm no Brasil convento nem casa."
aos donatários, recebendo o lugar o nome de Inficciona-
do."23
As Gerais absorviam cada vez mais mão-de-obra escrava:
de 1715 a 1727, saem do Rio de Janeiro 26.006 cativos em direção O descobridor malfadado destas .minas, Albernoz, além de
às Minas,'uma média de 2.300 todos os anos. No ano em que minerador, era exímio na arte da medicina, sendo por isto
Rosa chega nesta região existiam ha capitania pouco mais de 96 acusado de práticas de feitiçaria, razão pela qual foi enviado
mil cativos, sendo que somente em Mariana residiam mais de preso para o Santo Ofício da Inquisição, morrendo contudo de
26 mil. Os brancos representavam nesta época aproximadamen-
peste no Rio de Janeiro antes de ser encarcerado. Foi o primeiro,
te um quarto da população mineira. Manoel Soares de Sequei-
de uma série de mais de dez nomes, entre eles, o de Rosa, a ser
ra, funcionário da Coroa, assim descrevia as Gerais no segundo
denunciado no Tribunal de Lisboa, todos moradores no arraial
quartel do século XVIII:
do Inficcionado.

22 23
•)



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s
e

m
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o
A rua principal do Inficcionado.

Igreja de Nossa Senhora de Nazaré, matriz do Infic-


cionado, local onde Rosa recebeu o" segundo exorcismo.

24 25
Outra versão da origem, deste topónimo é dada pelo Cónego e companhia. Um ano depois deste episódio, em 1722, nasce
Raimundo Trindade, o principal historiador do catolicismo nas nosso literato, vivendo no arraial e na fazenda de seus pais os
Minas Gerais. Diz que "os paulistas lhe deram o nome Inficcid- primeiros anos de sua infância, sendo ainda b em menino quando
nado por lhe acharem muito trabalho e pouco ouro". Outra levaram-no para o Rio de Janeiro para estudar com os jesuítas,
asserção é divulgada pelo mais famoso nativo deste arraial, viajando para Lisboa aos 9 anos, onde primeiro estudou com os
nosso primeiro poeta épico, Frei José de Santa Rita Durão, que oratorianos, para aos 16 anos entrar na Ordem dos Cónegos
assim se referiu a seu torrão natal no Canto IV de O Caramuru: Regrantes de Santo Agostinho. Em 1756 recebe o grau de doutor
em Cânones pela Universidade de Coimbra, realizando viagens
Nem tu faltaste ali, Grão Pecicava, ilustradas pelaEspanha e Itália, onde conviveu com intelectuais
Guarido o carijó das áureas terras, do porte de Becharia e seu conterrâneo, BásíHo da Gama. -Foi
Tu que as folhetas de ouro te ornava grande colaborador de Pombal na justificação teológica da ex-
Nas margens do teu rio desenterras: pulsão dos jesuítas de Portugal e seus domínios, ficando contudo
Torrão que do seu ouro se nomeava mais famoso e conhecido pela posteridade como autor de O
Por criar do mais fino ao pé das serras Caramuru, primeiro poeta épico ater como inspiração umalenda
Mas que feito em fim baixo e mal prezado, brasílica e tratar nossos índios como heróis nacionais. Quando
O nome teve de ouro.inficcionado. Rosa chegou àFazendaCataEscura, residência dos progenitores
/' •' •' de Santa Rita Durão, nosso poeta há dois anos já se encontrava
Quer dizer, "inficcionado" seria o ouro que no início mani- no Reino. Dizem que nunca mais voltou a seu torrão natal.
festou elevado quilate, mas com o tempo demonstrou ser inferior: Segundo nos informa, o próprio cônego-poeta em sua bio-
"baixo e mal prezado". grafia, seu pai, Paulo Rodrigues Durão, era sargento-mor de
Tal lugarejo pertencia à comarca de Vila Rica, sendo milícias:urbanas, tendo nascido em Portugal, de família ordiná-
ria. Sua mãe, Ana Garcês de Morais, natural da Capitania de
l
sufragâneo da vila de Mariana — que é elevada à categoria
de'cidade^somente em~1745. Descoberto portanto por Salvador São Paulo, casou-se mais tarde;-em segundas núpcias com o
de Faria Albernoz, nos primeiros anos do século XVIII, logo secretário do governador de Goiás, Torne Inácio Mascarenhas.
se dirige para o arraial dó Inficcionado o português Paulo Ao chegar nas Minas, o Sr. Durão primeiro instalou-se em
Rodrigues Durão, futuro pai do famoso Frei Santa Rita Durão. Congonhas de Sabará, mudando-se depois para o Morro Verme-
Rosa foi comprada por D_orxa_AnaJ3#r_câs_jie_Mprais "que lho, mas, atraído pelo eldorado descoberto por Albernoz, mudou-
estava neste tempo amancebada com Paulo RodrigugsJDurão, e se definitivamente para o Inficcionado. Foi ele próprio quem
nesta mancebia continuou por anos, até que se casou com o construiu a matriz do arraial, dedicada a Nossa Senhora de
mesmo, tendo-a sempre no seu serviço". Observe-se a enorme Nazaré, um dos títulos mais venerados da Virgem Maria em
coincidência: Rosa foi escrava dá mãe de Santa Rita Durão, e Portugal: seu primeiro registro paroquial data de 1707, tendo
ela é quem nos informa que, quando nasceu nosso grande poeta sido inaugurada aos 28 de maio de 1729, dia de Santo Agostinho,
épico, sua mãe vivia "concubinada por portas adentro" com o Sr. conforme registro e relatório do vigário, Padre Lourenço António
Durão. Informação, aliás, que outras fontes manuscritas ratifi- Pereira. Tinha como filiais a partir desta data as igrejas de
cam, pois, em 1721, na devassa episcopal realizada neste lugar, Santana de Piracicaba, Santo António, do Gama e Bento Rodri-
compareceu à Mesa da Visita o Capitão Paulo Rodrigues Durão, gues.
denunciado de estar concubinado com "uma mulher desimpedi- Rosa deve ter ficado decepcionada com a insignificância do
da", sendo ordenado pelo visitadór que a expulsasse de sua casa

26 27
arraial onde morava sua nova proprietária, acostumada que
estava cora a movimentação humana e o desenvolvimento urba-
no do Rio de Janeiro. Boquiaberta deve ter ficado com a riqueza
arquitetônica de Vila Rica, com seus sobrados e várias igrejas
recém-construídas, tudo ainda brilhando e cheirando a novo.
Antes de chegar ao Inficcionado, passou obrigatoriamente por
Mariana, menorzinha do que Ouro Preto, mas também osten-
tando ricas construções assobradadas e imponentes igrejas,
comera de Nossa Senhora da Assunção (1711), Santana (1720),
Santo António, o primeiro templo a ser construído no então
arraial do Ribeirão do Carmo. De Mariana ao Inficcionado são
4 léguas de serraria e vales recortados por cursos d'água, e chão
vermelho-ferrugem forrado por pedras e cascalhes. Deslumbran-
tes quaresmeiras hoje colorem esta estrada de roxo;
O Infíccionado, ha verdade, não passava de um humilde
arraial de mineiros, encravado num vale cercado por altas
montanhas, um arruado que nunca abrigou sequer uma centena
de residências. No alto deummorrote à entrada do arraial, para
quem vinha de Catas Altas, estava a Fazenda Cata Preta, cuja
casa em ruínas tive ocasião de visitar em maio de 1987. Aí viveu
Rosa, dos 14 aos 32 anos, entre 1733 e 1751. Essa casa, a sede
da fazenda onde nasceu Santa Rita Durão, situa-se a 5 minutos
a pé do. centro do arraial. Provavelmente era a maior e. mais
suntuosa residência da freguesia: dois andares, uma dezena de
portas e grandes janelas, construída de pau-a-píque umaparte,
. Ruínas da casa da família deíFr.ei Santa Rita Durão, no Inficcionado, outra, com paredes de pedra. Da ampla varanda vê-se, a alguns
Minas Gerais, nó sítio Cata Escura, 'onde Rosa Egipcíaca viveu entre passos de.distância, uma construção menor, com alicerces tam-
1733-1745. ' ' ' - :- • • • ' . . ' bém em grandes pedras, talvez a cozinha ou o dormitório das
negras de dentro de casa. Ao pé da colina, um córrego de água
cristalina. Roças de mantimentos, cocheira de animais e depen-
dências de escravos deviam outrora circundar a .casa-grande
que, altaneira, avistava praticamente todo o arraial.
Da entrada deste povoado até seufinal, uma fileira de casas
voltadas para a "rua"—única artéria que corta o arraial de norte
a sul. No meio do arruado, numa elevação natural reforçada por
engenhoso muro de pedras, Paulo Rodrigues Durão, quatro anos
antes da chegada de Rosa, concluíra a construção da Matriz de

28
í li 29
Nossa Senhora de Nazaré, templo simples, com duas torres e Notas
frontão triangular, cujo adobe pintado de branco, com frisos,
portas e janelas de cor azul, constituía a principal peça arquite-
tônica desta freguesia de garimpeiros. Para quem vinha da í. Anais da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, tomo XXXIX, p.
465: Número de Nações de Escravos que Entraram pelo Porto do
cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, o Inficcionado deve
Rio de Janeiro entre 1731-1735. In Goulart, Maurício. A Escra-
ter lembrado à adolescente Rosa, mais sua aldeia africana do vidão Africana no Brasil. S. Paulo: Alfa-Omega, 1975.
que as cidades dos brancos. 2. Agradeço particularmente aos professores Iraci dei Nero da Costa
O Capitão Durão — como era chamado — devia ser homem e Mário Maestri Filho as referências relativas à etnia courana.
abastado, pois além da Fazenda Cata Preta, onde nasceu seu 3. Verger, Pierre. Flux et Reflux de Ia Traite dês Nègres entre lê Golfe
falho poeta, possuía numerosa escravaria, constando que no ano d'e Benin et-Bahia de Todos os Santos, du XVIIème Siècle au~XIX
de 1720, na revolta de Vila Rica, chefiada por Felipe dos Santos, Siècle. Paris: Mouton, 1968. Carta da Guiné. Paris: Bonne, 1730.
levou do Inficcionado muitas dezenas de cativos seus para No livro de W. Bosman, A New andAccurateDescription oftke Coast
defender o Conde de Assumar. que a 16 de julho, frente a 2 mil ofGuinea (1721), encontramos a descrição de duas aldeias "corra",
homens, dominou a rebelião. Pai e filho sempre foram fiéis próximas ao Cabo MLzurado, "aldeias muito pobres, porém com
vassalos de Sua Majestade, primeiro de Dom João V, depois de habitantes hospitaleiros". Temos dúvida se se trata da mesma etnia
localizada às margens do rio Curamo. Sobre outros povos tribais
Dom José I. ,
cujos nomes têm semelhança com este grupo étnico, consulte-se G.
Apesar de sua importância social e riqueza, nem por isto a P. Murdock. África: Its People and their Culture History. N. York:
família onde Rosa foi morar destacava-se pelas virtudes: o mau McGraw-HiHBook,1959. ;
exemplo de uma moral relaxada vinha de sua própria dona, que, 4. Histoire Générale dês Voyages. Paris, 1748. -
apesar de desimpedida, "mantinha ilícita conversação continuada 5. Verger, P. Op. cit. Carte de Guinée, de Sanson d'Abeville (1656).
por tempo considerável" com o Capitão Durão. As Constituições 6. Rugendas, J. M. Viagem Pitoresca através do Brasil. S. Paulo:
Primeiras do Arcebispado da Bahia (1707), seguidas em toda a Martins-USP, 1972, p, 138.
Colónia, multavam os culpados em concubinato, da seguinte forma: l.Idem, ibidem, p. 136.
sendo ambos amásios solteiros, deviam pagar 800$000 réis; sendo 8, Mattoso, Kátia de Queiroz. Ser Escravo no Brasil. S. Paulo: Bra-
ambos ou algum deles casado, pagava cada um o valor de siliense, 1982, pp. 47-53.
9. Arquivo Nacional da Torre do Tombo. Lisboa: Autos Forenses dos
1:000$000. Na reincidência, a multa era duplicada ou triplicada.2
Familiares do Santo Ofício, Maço 3, n. 19. (Doravante abreviado
Por esta época, o mínimo que se pagava por um escravo nas Minas
para"ANTT") . '
era 20:000$000 — daí avaliarmos o quanto significavam tais 10. Coaracy, Vivaldo. Memórias da Cidade do Rio de Janeiro. Rio de
multas eclesiásticas. Viver amancebado, ou manter ''tratos ilícitos", Janeiro: José Olympio, 1965, p. 501.
era comum nesta "frente pioneira", e o capitão do Inficcionado e 11. Rugendas, M. Op. cit., p, 138.
Dona Ana repetiam, simplesmente, o padrão dominante da 12. Arquivo da Cúria do Rio de Janeiro, Livro de Batizados de Brancos e
região. . - • • - . . . • Escravos da Freguesia de Nossa Senhora da Candelária, ns. 3, 5 e 6.
13. Vide, Dom Sebastião Monteiro da. Constituições Primeiras do Arcebis-
pado da Bahia (1707). S, Paulo: Tipografia 2 de Dezembro, 1853, §979
e ss.
14.-Forde, Daryll. The Yoruba-Speaking Peoples of South-Western Ni-
'r l géria. London, International African Institute, 1950.
15. Mott, MariaLúcia. A Criança Escrava na Literatura deViajantes.

30 31
Cadernos dePesquisa daFundação Carlos Chagas, n. 31, dezembro •2
1979, p. 64, opwd Schlichthorst, Cari. O Rio de Janeiro como é
(1825-1826). . . , , .
16. Em 1700, assim bravejava o jesuíta Benci contra os imorais escra- Mulher da Vida em Minas Gerais
vistas brasileiros: "Não é escândalo e o mais abominável aos olhos
de Deus amigar-se o senhor, com a sua escrava? E não é ainda muito
maior e mais abominável obrigá-la-à força a consentir neste pecado
'de seu senhor, è castigá-la quando repugna, e quer apartar-se desta
ofensa de Deus? Nenhum católico o há.de negar! Além da pena
Nas Minas Gerais, terra de aventuras e nomadismo, reple-
. eterna, ainda nesta vida merecem a morte temporal imposta pelo ta de jovens portugueses, paulistas, baianos, mamelucos e mur
Direito Comum/ e Lei-Particular do. Reino.-" Economia Cristã dos latos livres, todos sequiosos de rápido enriquecimento coro. a
Senhores no Governo dos Escravos. S..Páulo: Editora Grijalbo, 1977, descoberta de boas pepitas de ouro ou, posteriormente, de dia-
p. 121. Cf.. Arquivo Histórico Ultramarino (Lisboa), a petição de mantes de bons quilates, ajialt.a-de- mulheres, esobretudo de
algumas- escravas pernambucanas contra seus senhores que as brancas, era dramática, provocando soluções de liberação sexual
forçavam à'mancebia, Códice 267 (1752), fl. 38-40. , . . ... e ^ãndé~frouxidão na moral tradicional. As mulheres eram bens
17.. Freja-e,.Gilberto. Casa Grande e Sensata. Recife: Companhia Edi- preciosíssimos, dada sua raridade: o próprio Capitão Durão
tora de Pernambuco, 1970, p. 341, possuía em suas minas e faisqueiras 77 escravos machos e
18. Antonil, João António. Cultura e Opulência do Brasil por suas tão-somente uma escrava fêmea!
Drogas e Minas (1711). S.- Paulo: Companhia Editora Nacional, "O grande resvaladouro da frágil virtude daquelas gentes
1972, pp. 287 e ss.
19. Machado, Simão F&rxeíra,:-Triunfo Eucarístico, Exemplar da Cris-
aventureiras é a geral mancebia em que vivem quase todos os
tandade Lusitana. Lisboa: Oficina da Música, 1734. .-•••• homens e mulheres disponíveis, inclusive sacerdotes", narra o
20. Antonil, J.A, Op. cit., p. 263, • -. • ... .-. .. historiador Carrato, um dos especialistas da vidareligiosa desta
21. Goulart, M. Op. cit., p. 129; Boxer, C. A Idade de Ouro do Brasil. região que hoje é símbolo da tradição familista, mas que, era
São Paulo: Companhia. Editora Nacional-, 1969; Mello. e Souza, seus primór.dios, lembrava mais Sodoma e Gomorra do que a
Laura. Desclassificados do Ouro. São Paulo: Graal, 1982. - Terra Santa: num total de 423 pessoas denunciadas em 8
22. Biblioteca Nacional de Lisboa, Manuscritos do.Brasil, n.. 9.860, 4, freguesias mineiras na Devassa de 1734, 95,2% das acusações
"Implicações da Capitação". . • • • . • • : • - . .. incidiam sobre dgsvios na moral sexual familiar, incluindo, além
23. Vasconcelos, D,-História Antiga das Minas Gerais. Belo Horizonte: da<mancebia))inúmeros. casos de incesto, bigamia, meretrício,
Itatiaia-MEC, 1974,2 v. . . alcgyiticêfrtratos e amizadisllicitas, etc.<3 próprio sacramento
24. Trindade, Raimundo. Instituições de Igrejas no Bispado de Maria-
do matrimónio era ousadamente questionado nesta terra de
na. Rio de Janeiro: MEC, 1945; Viegas, Arthur. O Poeta Santa Rita
Durão, Bruxelas: L'Edition d'Art, 1914. • ... •- , ' • • • • ; • . ' .-"
muitos templos mas de pouca virtude: até das pessoas de quem
25. -Trindade/Raimuiido. A Arquidiocese de Mariana. Belo -Horizonte: se deveria esperar maior piedade e exemplo edificante, escapam
•Imprensa Oficial, 1953, p. 57. ' -. ...... ^ ..-..- - ,._ impropérios blasfêmicos, como o de um familiar do Santo Ofício,
26. Viegas, A. O Poeta Santa Rita Durão. Bruxelas: L'Edition d'Art, Sr. Manuel Pereira, que desabafou certa feita: "Maldito seja o
: 1914,pp. 5-6.,r . : -.-.... • ••..'• • ' .... . - . . casamento, maldito quem o fez e eu que o fiz! O Santo Ofício que
27. Trindade, R. Op. cit., 1945, p. 121, . me queime já e os Demónios me tirem a alma do corpo, que quero
28. Vasconcelos, D. Op.cit,,p. 198.- • • '. . - ; ; .••••'-".•:: ir viver com eles, pois não me atrevo a-estar neste mundo!"
29. Constituições Primeiras do Arcebispado daBahia, §979'e ss-. Tudo por causa de suas infelicidades matrimoniais! .
Tendo já no Rio de Janeiro "tratado torpemente" com seu

32 33
senhor—isto é, mantido relações sexuais com o mesmo, vivendo O Arromba e outras modas da terra, causando em tudo
Rosa em casa de uma mulher amancebada, barregã do Capitão notório escândalo".
Durão, no meio de umajnultidâo de escravos machos_e_hpmens
livres seguio.sQS_dej3exo, empouco jempo a adolescente courana Oh têmpora! Oh mores!
Na própria freguesia de Nossa Senhora de Nazaré do
"cai najvida". Segundo suas próprias palavras, "se desonestava
vivendo como meretriz, tratando com qualquer homem secular Inficcionado vivera por volta de 1727 o JE?a.dr_eJ3altazar Pereira
que a procurava, em cuj a vida assim andou até o tempo que teve de Mendes, 35 anos, contumaz^sodomita^que se acusara, dentre
o Espírito Maligno". os^muitosparceiros, de ter pratieado-diversas vezes o nefando
Quer dizer, desde que chegou nas Minas, em 1733, até às .pecado com seu escravo Paulo Courano (a mesma nação da nossa
primeiras manifestações diabólicas e sua conversão, em 1748 -— biografada), "sendo agente e paciente, mais paciente", o mesmo
VX,portanto, por quinze anos seguidos —, Rosa Courana viverá consumando com o escravo Francisco, da nação ladano e com
jy como prostituta. Enquanto isto, o filho de Dona Ana e do Capitão outros mais mancebos, entre estudantes, criados, etc., "muitas
Durão, lá em Lisboa, já com votos professados, cantava o ofício yezes, não se lembra quantas..."
divino em louvor a Virgem Maria — lembrando-se vagamente .,-_-;,.... Irreligiosidade e devassidão andavam de mãos dadas: na
dos carijós e caramurus de seu Inficcionado natal, certamente vila de Sabará assistia um tal António de Araújo Aguiar, que
ignorando que parte de seu sustento provinha do comércio dissera publicamente que "Deus e o Diabo tinham o mesmo
venéreo de1 uma escrava de sua progenitora. poder, e que o Diabo era até melhor, porque dava e não tomava,
Consultando as inúmeras devassas religiosas desta época, ao .contrário de Deus". E acrescentou maldoso: "Se Deus tivesse
experimentado os deleites sensuais, náo os teria feito pecados..."
somos forçados a concluir que se de um lado as Minas Gerais
Apesar de branco, tal blasfemo tinha como apelido um nome
destacaram-se no cenário colonial pela grande pompa e esplen-
dor das cerimónias religiosas, proliferação e riqueza dos templos africano, "O Mandinga", sendo infamado de ser mandingueiro,
pois sua casa era muito frequentada por adivinhadores, curan-
e santaria barroca, na mesma intensidade, a imoralidade e
_deirps e agoureiros. Além disso tudo, dava alcouce em sua
prostituição vicejaram sôfregas e indomáveis, em todos os luga-
moradia para meretrizes, desonrando viúvas, deflorando donze-
res onde o ouro corria d.e aluvião e-os diamantes a granel. _Às_^
las e inquietando mulheres casadas. Um verdadeiro diabo!
ãg_cajrnnhajgamjiejnã.o.s-dadas,
Como noutras partes do Reino e da Colónia, também nas
Minas a ferfcigaria_e as práticas cabalísticas eram muito utiliza-
da Cachoeira, poucos anos antes da chegada de Rosa à região,
das com vistas a obter vantagens sexuais, confirmar enlaces
onde nas festas comemorativas do Espírito Santo,
- matrimoniais ou a conquistar amores rebeldes. EmMariana —
"andando um carro enramalhado pelo arraial, nele anda- - situada aproximadamente a meio dia de caminhada a pé de onde
vam o Padre Frei Loúrenço Ribeiro, de São Domingos, o vivia Rosa—• aparda forra Feliciana de Oliveira tinha o costume
Padre Frei Pedro António, religioso do Carmo, tocando de em todas as sextas-feiras atar sua escrava Maria, crioula,
viola publicamente de dia com outros seculares, onde an- com uma fita verde, deixando-a na varanda de sua casa, onde
davam também o Cónego "Angola e o Padre Manoel de lhe metia pela boca dois ossos de defunto enquanto fazia uma
Bastos, e traziam entre si, lio mesmo carro, uma Vicência, cruz no chão, mandando à escrava que andasse sempre para
crioula forra de Ouro Preto^ vestida de homem, cantando frente dizendo as seguintes palavras: "Joaquim, Joaquim, largue

34 35
mulher efilhos por mim!", e que a dita escrava, certa vez olhando "Os padres obrigavam as pessoas a se casar para não fazerem
para trás^ caíra no chão assombrada, como morta. má vida, mas ela tinha se casado com um marido muito mau e
Outra denúncia, chegada à Inquisição de Lisboa, foi feita bem faziam os negros da Costa da Mina, que não criam em Deus
pela parda Albina Maria, escrava de Dona Josefa Maria verdadeiramente!" ... ,
Soares, acusada de possuir uma caveira enterrada à porta da Também revoltada com a ineficácia da proteção celestial
rua, da qual tirara às vezes alguns pedacinhos, fazendo-os pó para seus desígnios libidinosos, a mulata Ana Jorge, moradora
e misturando-os na comida que mandava para seus amantes, nos Massus, judiava dos santos, metendo debaixo do colchão de
a fim de mante-los afeiçoados a ela. Da mesma forma, no dia sua cama uma imagem de Santo António e um Crucifixo, pois
de São João, tinha o costume de molhar umas orações fortes "já- quê não lhe fizeram o que pedira, que levassem socos e
dentro do vinho, passando-as pelo fogo e enterrando-as numa açoites". E na freguesia da Roça Grande, ò negro Pedro foi
cova, "para seus amásios lhe quererem bem". ° acusado de ter curado Paula Maria da Conceição, usando aguar-
Mais alguns exemplos recolhidos nos Arquivos da Torre do dente e certas ervas, "habilitando- a para que no mau trato de
Tombo hão de familiarizar o leitor com o clima de misticismo, meretriz em que vivia ganhasse muito de seus amásios". Mais
superstição e sensualidade reinantes nas Minas Gerais na época irreverente e imoral foi o mineiro João de Sousa Tavares,
em que nossa biografada aí viveu. morador nas faisqueiras de Paracatu, local de grande concen-
CaetanaMariade Oliveira, crioulaforradeMariana, "vivia tração de negros da etnia courá, que, além de duvidar da
vexada por, seu marido andar mal encaminhado com outras presença de Jesus Cristo na hóstia consagrada, dizia a quantos
mulheres e não fazer caso dela". Enciumada e mal-amada, quisessem ouvir que a maçã do paraíso "gradas partes pudendas
consultou várias vizinhas que lhe ensinaram os seguintes sor- de Eva, e que Deus proibira Adão de comê-la. ..." e, mais blasfemo
tilégios para garantir a fidelidade de seu indiferente consorte: ainda, quando broxava-lhe o membro viril desonesto, recitava
que cortasse uma parte de sua camisa onde caíra seu esperma galhofeiro o Evangelho: Etj inclinoto capite, emisit spiritum [sic] ,
e enfiasse-lhe uma conta de rosário com um alfinete, enterran- as mesmas palavras usadas por São João para descrever a morte
do-a no chão onde o marido tivesse urinado, e que raspasse a de Cristo na cruz: "E, inclinando a cabeça, entregou o espírito".
unha dos dedos grandes das mãos e pés, misturando este pó com Estes poucos exemplos de irreligiosidade e feitiçarias ou
a água que lavasse o sovaco e desse essa poção ao marido para práticas supersticiosas correntes nas Gerais cora intuito sexual
beber, passando também um ovo de galinha por entre as pernas dão-nos uma ideia aproximada da licenciosidade reinante nesta
e lhe desse de' comer. Remédio trabalhoso, mas, segundo a sociedade onde as gentes de cor representavam por volta de 75%
opinião de suas vizinhas, era tiro-e-queda! Ensinaram-lhe mais: dos xnoradores, populações provenientes de sociedades tribais
Dona Antonia da SilvaLeão mandou que ainfeliz esposamedisse com práticas sexuais bastante diversas da tradição familista
com um barbante a porta por onde saía seu marido, nele dando à imposição da moral catóh'caj3_gue,
13 nós e cingisse a imagem de Santo António com o mesmo naqualidade de gado humano a serviço do bel-prazer dos'br anpos
cordão, prendendo-o e tirando-lhe o Menino Jesus do braço, e o é demais donos do poder, constituíam fáciljpj)|ejffjiaj;oncupis-
metesse numa' caixa fechada, rezando 13 Padre-nossos e 13 cêncíã~clos máíã[7ortes. Faltando mulheres brancas, era com
Ave-marias pela alma de sua tia, por 13 dias seguidos. Desilu- as fêmeas de outras raças que os reinóis e seus descendentes
dida pelo insucesso de tais práticas, a esposa magoada acabou satisfaziam a libido:
perdendo a paciência, deixando escapar cabeluda blasfémia:
"Tolos são os que crêem nos santos!" E completou desaforada: "E por falar em pretas minas, estas merecem referência

36 37
especial: a negra mina é a amásia- mais procurada pelos
brancos. Se os negros da;,m.esma raça têm a tradição de cujo nome muda-se para Mariana quando de sua elevação a
serem mais resolutos, fortes e temerários, as mulheres são cidade, denuncia-se perante o Santo Oficio de Lisboa o Padre
altas, de porte gentil e ardentes no amor, inteligentes, Bernardo José de Matos, que, entre 1743 e 1745, por diversas
habilidosas, e, como depunha o Governador do Rio de vezes, mandava algumas mulheres meretrizes baterem no peito
Janeiro em 1730, não há mineiro que possa viver sem pedindo perdão a Deus, enquanto maliciosamente tocava-lhes
nenhuma negra mina, pois só com, elas têm fortuna.. ,"17 no busto. Disse mais o malandro sacerdote que, procurando certa
vez uma prostituta, esta recusou prestar-lhe serviços sexuais,
... Rosa Courana era da Costada Mina e, como suas patrícias, mas que alguns dias depois, vindo confessar-se consigo um
deve ter sido muito cobiçada no frescor de sua adolescência, quando sacerdote, dissera ter mantido relações íntimas com a mesma
instalou-se no arraial do Inficcionado. Já vimos Eosa confessar que mulher, causando irritação no confessor preterido, que vai à
porta da dita marafona e lhe diz: "Não dorme com clérigos,
"se desonestava vivendo como meretriz, tratando com qual- hem?!"18
quer homem secular que a procurava, em cuja vida assim ' De uma lista de 345 sacerdotes do Brasil denunciados no
andou até o tempo que teve o Espírito Maligno, o qual, antes século XVIII junto ao Santo Ofício pelo crime de "solicitação a
de se declarar, molestava muito a ela, porém ainda nesse atos torpes", utilizando o confessionário para seduzir por pala-
tempo cometia culpas de desonestidade, ainda que menos vras ou atos suas penitentes, 62 residiam na Capitania das
vezes do que antes, até que o Padre Francisco Gonçalves Minas, comprovando que também o clero mineiro seguia a
Lopes fez com os seus exorcismes se declarasse o tal Espírito, mesma licenciosidade dominante na sociedade global.
o que sucedeu haverá 14 anos pouco mais ou menos, e deste Muito tempo depois, em 1763, quando nossa Rosa já pas-
tempo para cá não cometeu mais culpa alguma dessa quali- sava dos 40 anos, perante os Inquisidores de Lisboa explicará
dade". : que foi por inspiração divina que largou sua vida de meretriz.
Eis seu depoimento: "Sentindo um peso no ombro direito, viu
Importante ressaltar de início a observação de Rosa-mere- um mancebo formoso, branco, com cabelo próprio louro e anela-
triz: que se desonestava somente com "homem secular", excluin- do, boca pequena, olhos grandes, vestido de azul celeste, com luz
do por conseguinte da lista de seus amantes, os clérigos e e resplendor, que lhe disse que, se quisesse seguir a Deus, não
religiosos, seguramente por temer transformar-se em mula- se enfeitasse mais, que o seguisse despida."
sem-cabeça — a metamorfose popularmente atribuída às almas A própria visionária explica o significado dessa ordenação
das amantes de sacerdotes — ou, simplesmente, para evitar a divina: como sua senhora Dona Ana não lhe dava as roupas e
condenação prevista no artigo 1.000 das Constituições Primeiras enfeites que queria, ela os conseguia como presentes "em prémio
do Arcebispado da Bahia, quê rezava assim: "À mulher que for de sua sensualidade". ^^-^.^ ''
convencida dê andar em. mau estado com clérigo, a pena haverá f Roupas,;énfeitesi jóia^)eram a grande ambição não apenas
de ser maior do que àquela que assim andar com pessoa leiga." da legendária Chica daTSuva — a exuberante amásia do contra-
Podia sofrer multa, prisão e até açoites. tador de diamantes, João Fernandes de Oliveira—mas de todas
Nem todas as prostitutas comportavam-se com tanto reca- as negras de norte a sul^da Colónia, deslumbradas com o brilho,
to perante os ministros da Igreja que, por sua vez, também nem esplendõr~e cõlôriao com que as mulheres brancas mais abasta-
sempre respeitavam a santidade.do estado celibatário a que djis se cobriam. Já em T709, paraimpedir os excessos da vaidade
estavam canonicamente obrigados. Na própria vila do Carmo, dessas 'Vénus de ébano", os oficiais da Câmara da Bahia faziam

38
39
uma petição a El-Rei denunciando ás solturas com que as nativa importante para milhares de negras e mulatas desejosas
escravas costumavam viver e trajar, "andando de noite incitando de escaparem ao .cativeiro. ,
com seus trajes lascivos aos homens". Solícito e moralista, o Em seu livro Desclassificados do Ouro, Laura de Mello e
piegas Dom João V determinou que , Souza, ao tratar dos "infratores e infrações", dedica algumas
páginas à análise da prostituição. Diz essa historiadora que
"como tem mostrado a experiência que dos trajes que usam
as escravas se seguem muitas ofensas contra Nosso Se- ; "nas Minas as prostitutas pulularam por todo o período que
nhor, vos ordeno que não consintais que as escravas usem, durou a atividade aurífera.Muitasparalásedirigiramnos
de nenhuma maneira, as sedas, nem de telas, nem de ouro, • primeiros tempos, como tantos outros, atraídas pelo ouro;
para que assim lhes tire a ocasião de poderem incitar para - houve também as que foram obrigadas a adotar este género
os pecados com os adornos custosos de que se vestem";.. de vida devido às difíceis condições de subsistência que a
:região oferecia".
Também os moralistas se preocupavam com tão delicada
questão: o jesuíta Benci, autor da Economia cristã dos senhores Mesmo depois de estabilizada a proporção entre os sexos,
no governo dos escravos (1700), já denunciara "ela continuou vicejando, tanto que em 1733 — exatamente no
ano,da chegada de Rosa nas Gerais — promulgou-se umbando
"o grande escândalo permitido pelos senhores, consentindo no Tijuco que condenava
que suas escravas saiam de casa a quaisquer horas de
desoras, ou sejam da noite ou do dia, sabendo que daí "os pecados públicos que com tanta soltura corriam desen-
provêm tantas ofensas a Deus! Oh! se pudessem falar as freadamente, pelo grande número de mulheres desonestas
ruas e becos das cidades e povoações do Brasil! Quantos que lá habitavam, com vida tão dissoluta e escandalosa,
pecados públicos, que encobre a noite, e não descobre o dia! que, não se contentando de andarem com cadeiras e ser-
E completa- o inaciano dando um recado às Donas: Ó- ^^^pentinas acompanhadas de escravos, se atrevem irreveren-
senhoras, que aprovais as galas das vossas servas, ganha- , ,tes a entrar na Casa de Deus com vestidos ricos e pomposos,
das com o pecado, e reprovais se as não querem ganhar por e totalmente alheios e impróprios de sua condição". 4
não ofender a Deus"?!,
4, Em VilaRica, a escrava do sacristão Diogo Pereira causava
Também Antonil observou que nas Minas "as mulatas e "escândalo por andar "bem tratada com saias de camelão e
fí ^chinelas", tal qual uma senhora, sendo por isto suspeita de ser
negras de mau viver viviam carregadas de cordões, brincos,
e> argolas de ouro, muito mais que as senhoras". " -mal procedida". Manuel Silva, morador no Campestre, fregue-
Tantos homens solteiros, pouquíssimas mulheres disponí- sia de Itaubira, era "público e escandaloso consentidor de que
veis, muito ouro e diamante correndo clandestinamente: o am- suas escravas fossem mal procedidas: uma delas chegava a
biente era de todo favorável ao comércio sexual. A quantidade ganhar umajgitaya^ e meia, de ouro toda semana vendendo seu
de_gfriganas e crioulas queem pouco tempo se alforriavam,
algumas chegando_aJpbss_úir..áYultadQ cábe.dal^p.assando ate à
• categoria de proprietárias de escravos, sugere-nos quão desen- cas a de .vários homens, l amassando dias e noites seguidos e, se
~volvido foi o negócio prostítucionàl na zona aurífera, uma alter- não lhe entregassem o salário diário, "as maiida que vâõ~ganhar
pelo melhor modo que puderem".25

40 41
Rosa não acusa sua patroa de tê-la induzido à prostituição,
nem de explorar-lhe os ganhos. Sendo esposa de um sargento de a de Magdala, a Egipcíaca e a Africana — apresentavam, além
milícias, mãe de seminarista em Lisboa, certamente teria escrú- do passado luxurioso, a coincidência de abandonarem a "vida
pulos e temor de envolver-se com este vil comércio libidinoso e alegre" exatamente nos anos em que lhes fugia a juventude.
vir a ser novamente denunciada nalguma devassa eclesiástica. Todas três eram balzaquianas, certamente começando a ter
Seu estado de "barregã" do português Durão já lhe dava motivos problemas com a diminuição da clientela devido à perda do
de inquietação, tanto que depois veio a casar-se sacramental- frescor e belezajuvenis, quando se entregaram ao Divino Esposo.
mente com o mesmo, conforme informação prestada pela escrava ("Virtude ou astúciaTTalvez ambas as coisas.
courana e referendada pelos historiadores. Estes T5~ãnos de meretrício —• dos 14 aos -29 — foram
Apesar de sentir-se "sumamente vexada pelos estímulos fundamentais na constituição da personalidade e desenvoltura
da sensualidade", aos 31 anos Rosa segue o conselho celestial social desta negra, que, na qualidade de mercadoria sexual, deve
recebido em visão: imitando São Francisco de Assis e Santa ter privado do relacionamento com centenas de homens de
Margarida de Cortona (século XIII), distribui entre os pobres diferentes raças e classes sociais — escravos, negros forros,
todo o ouro e vestidos que tinha adquirido com sua "vida lasciva". mestiços, brancos aventureiros, quiçá portugueses favorecidos
A partir desta data, por volta de Í75Õ, Rõs5~dêclara que seu pela sorte na mineração. Relacionamento sempre maxca,dojDela
corpo ficou "como morto à sensualidade, pois lhe parece que, violência machista, deboche, malanjLragem>_ç.Qnapflr,tan.dQjcerta-
ainda que dormisse com algum homem, não sentiria estímulos, mente elevado_consumo dejiguardente e altas doses de almíscar
sendo antigamente sumamente vexada deles". E acrescenta que, — ~ò: perfume mais usado pelas negras nos "tempos do Onça".
"deste tempo para cá, não cometeu mais culpa alguma desta Quiçá algumas paixões azaradas,__alguns abortos ou mesmo
qualidade". abandono de crias recém-nascidas -—comportajnento corriquei-
Tal qual Santa Maria Madalena, pecadora arrependida, ro nos tempos antigos, a~£ãl ponto praticado que, ainda no século
Rosa há de fundar quatro anos depois um recolhimento, também XIX, as câmaras municipais da Província da Bahia se viam
por inspiração- divina,: no qual- haveriam de- morar "mulheres obrigadas a estabelecer multas pecuniárias contra as mães que
pecadoras que nos confessionários diziam que tinham ofendido """abandonassem seus filhinhos pelas encruzilhadas desérticas.
a Deus por não terem casas para morar". Só que Santa Maria - ; - Muita dança, batuque, fandango: até o fim da vida, mesmo
Madalena foi ainda recais radical: segundo afiança o Padre vestida de freira, Rosa não resistirá à tentação de dançar. Nas
Minas, na época do Barroco, a dança fazia parte integrante do
Manuel Bernardes, na sua Nova Floresta (1706), após sua
conversão, a santa nunca mais olhou para homem algum. — culto divino, seja nas igrejas doiradas, nas procissões ou "triun-
Essa experiência de meretriz "tratando1 com qualquer ho- ^ fos", seja nas casas de culto de origem africana. Segundo J. F.
mem secular que a procurava" marcou profundamente" a vida Carrato, o batuque era a coqueluche da época, e Tomás António
futura e a mística desta africana, que, mais uma vez por indi- - Gonzaga imortalizou, em suas Cartas Chilenas, os gingados e
bamboleios dos parceiros neste baile descarado:
"V . cação celestial/vai incorporar a seu nome de batismo, o de Santa
(V , í Maria Egipcíaca, qatra^Brostituta-santa que, como Madalena,
Tr^Fola'o~ãmõt^'õs~Eõ5íêns pelo amor de CristoT Mais adiante
Fingindo a moça que levanta a saia
voltaremos à vida de Santa Egipcíaca e.suas correlações com à
E voando nas pontas dos dedinhos,
biografia da negra courana. Por ora, gostaríamos de. chamar a
Prega no macachaz, de quem mais gosta,
atenção do leitor para uma coincidência: essas três mulheres —
A lasciva embigada, abrindo os braços;

42
43
Então o macachaz, mexendo a bunda, poderia ter servido como prestação inicial na compra de sua
Pondo uma mão na testa, outra na ilharga, alforria. Encontramos um caso de duas escravas que gastaram
Ora dando alguns estalos com os dedos, dezessete anos entre a entrega da primeira parcela do valor de
Seguindo das violas o compasso, sua alforria e a obtenção definitiva de suas cartas de liberdade,28
Lhe diz — "eu pago, eu pago" — e, de repente, e. nesta mesma década em que Rosa se converte, na vizinha
Sobre a torpe michela atira o salto. freguesia-de São Caetano, duas africanas, entre centenas e
Ó dança venturosa! Tu entravas centenas, deixam em seus testamentos prova de polpudas rique-
Nas humildes choupanas, onde as negras, zas amealhadas ao longo de suas vidas: Maria do Ó, da mesma
Aonde ás vis mulatas, apertando etnia de nossa biografada, nação courana, além de ter comprado
Por baixo do bandulho a larga cinta, sua alforria pelo valor de 256 oitavas de ouro, legou para seu
Te honravam, c'os marotos e brejeiros, herdeiro, o marido, várias propriedades tanto na vila como na
Batendo sobre o chão o pé descalço. roça, cavalos, .gado vacum e 12 escravos; Maria da Costa, da
Agora já consegues ter entrada nação ardra (Porto Novo), possuía mais de 600 gramas de jóias
Nas casas mais honestas e palácios!27 lavradas em ouro, 2 conjuntos confeccionados em veludo e
sofisticado serviço de cama e mesa, incluindo talheres de prata,
A dança profana, com forte apelo erótico, alegrava as noites vasilhas de estanho e lençóis de Unho, determinando que, ao
da negrada, após horas seguidas bateando dentro d'água sob o morrer, tudo fosse vendido para pagar espórtulas de 2.100
olhar atento, mas nem, sempre infalível, de feitores e capatazes. missas destinadas ao descanso eterno de sua alma. Também
O ouro roubado com maestria, o diamante imperceptivelmente esta comprara sua própria liberdade, pagando 190 oitavas de
escondido nafcarapinhaj ou atrás de uma tinha, em vez de ouro pela alforria.
engordar abolsa-do-patrao^iapararji^as-taKerjxaSijaasmãos das Tudo leva a crer que o pecúlio de Rosa — roupas, jóias e
negras do tabuleiro, nos regaços^ajjxegEaa,de_!!yi.da_dissoluta" dinheiro -— representava soma inferior a seu valor de escrava
— ouro e pedras preciosas que aos 29 anos Rosa abandona, jovem e saudável: em 1754 um morador das Gerais, Manuel da
trocando todos os homens do mundo pelo "mancebo formoso, Silva, com residência no Campestre, arrecadava semanalmente
branco, louro, de boca pequena e olhos grandes, vestido de azul" uma oitava e meia de ouro com a exploração do meretrício de
— um verdadeiro Davi ;de .Miguel Angelo! — que lhe apareceu apenas uma escrava. Em três anos de comércio venéreo, esta
n a visão. • ...... '., . . . negra já teria rendido quantia superior ao preço da citada forra
Apesar de esta experiência dê mulher pública ter segura- dos vestidos de veludo. Portanto, como Rosa devia ter de entregar
mente contribuído de maneira indelével na socialização e urba- a sua.patroa a quase-totalidade de sua féria semanal, se guar-
nidade daquela negrinha recém-desvirginada pelo seu primeiro dasse para si um terço do que a prostituta do Campestre
senhor da freguesia da Candelária, tudo faz crer que o ouro, ganhava, seriam precisos oito anos para amealhar ouro suficien-
roupas e enfeites amealhados em sua vida lasciva não foram te para cobrir seu valor. Como certamente seu património era
suficientes para. adquirir .cabedal,que.bastasse para a compra -muito inferior às 190 oitavas de ouro que Maria da Costa pagou
de sua liberdade. A distribuição entre os pobres de seu pecúlio, por sua liberdade, talvez desencantada com a falta de perspec-
quando de sua conversão, no caso de ter realmente acontecido, tivas de através da prostituição conseguir sair do cativeiro, Rosa
foi sem dúvida gesto louvável na ótica da economia celestial, muda de estratégia: decide acumular dividendos no Reino dos
porém altamente insensato dentro da lógica do escravismo, pois Céus. Predestinada a se tornar do dia para a noite a nova

44 45
10. ANTT, Caderno do Promotor na 129, Mariana (7-4-1774).
Redentora do género humano, Rosa Egipcíaca da Vera Cruz já 11. ANTT, Caderno do Promotor n2 129, Mariana (3-7-1765).
nesta época não mais se preocupava cora as coisas terrenas, nem 12..ANTT, Caderno do Promotor na 129, Mariana (24-5-1770).
sequer com sua liberdade: vendeu seus bens e distribuiu-os aos 13. ANTT, Caderno do Promotor ns 129, Sabará (28-6-1775).
pobres porque tinha de imitar sua patrona do Egito. Afinal, o 14. Mott, Luiz. Acotundá: Raízes Setecentistas do Sineretismo Re-
Cristo não dissera que as riquezas deste mundo de nada valiam? ligioso Afro-Brasileiro, In Escravidão, Homossexualidade e De-
"Ajuntai riquezas no céu, onde a traça não rói e os ladrões não monologia. S. Paulo: ícone, 1988, pp. 87-118.
roubam, pois onde está teu tesouro aí está teu coração!" (Mateus, 15. ANTT, Caderno do Promotor n9 130 (1775).
6:20-21) 16. Mott, Luiz. O Ssxo Cativo: Alternativas Eróticas ,dos Africanos e
seus Descendentes no Brasil-Escravista. In O Sexo Proibido: Vir-
gens, Gays e Escravos nas Garras' da Inquisição. Campinas: Papi-
rus, 1988, pp. 17-74.
17. Carrato, J. F. Op. cit., pp. 11-12.
Notas 18. ANTT, Caderno dos Solicitantes n2 26, fl. 74 (1743-1745).
19.BibliotecaNacionaldeLisboa, Seção de Reservados, Códice n28.389,
"Registro dos Padres Processados por Solicitação e outros Crimes"
1. Arquivo Público Mineiro, Delegacia Fiscal, v. 39, apud Russel- (Século XVIII).
Wood, A. The Black Man ih Slavery. and Freedom in Colonial 20. ANTT, Manuscritos do Brasil, Livro"43 (23-9-1709).
Brasil. Pxford: MacMillan Press, 1982. 21. Benci, J. Op. cit., pp. 118-119.
2. Carrato, José Ferreira. Igreja, Iluminismo e Escolas Mineiras 22. Antonil, J. A. Op, cit., p. 304.
Coloniais, S. Paulo: Companhia Editora Nacional, 1969, p. 9. 23. Costa, I. N. A Presença do Elemento Forro no Conjunto de Proprie-
3. Numa devassa realizada na comarca de Ilhéus, no sul da Bahia, tários de Escravos. Ciência e Cultura, julho 1980, n. 7.
em 1813, os desvios sexuais atingem 60,5% das acusações, real- 24. Souza, L. M. Op. cit., pp. 180-185.
çando tal cifra o quanto nas Minas Gerais era mais desbragada a 25. Idem, ibidem.
liberação sexual. Cf. Mott, Luiz. Os Pecados da Família na Bahia 26. Carrato, J. F. Op. cit., p. 99; Souza, L. M. Op, cit., p. 153.
de Todos os Santos, Salvador: Centro de Estudos Baianos, 1982. 27. Gonzaga, Tomás António. Cartas Chilenas. In: Lapa, Rodrigues
4. ANTT, Caderno do Promotor n2 129, Sabará (2-10-1768). ; Manoel, As Cartas Chilenas: Um Problema Histórico e Filológico
5. Costa, Iraci dei Nero/ Devassas em. Minas Gerais: do crime à (Edição Crítica). Rio de Janeiro, MEC, Instituto Nacional do Livro,
punição, Boletim do CEPEHIB, julho 1980, n. 3, pp. 3-7; A Vida 1958.
Quotidiana em Julgamento: Devassas em Minas Gerais. InMinas 28. Mott, Luiz. Cautelas de Alforria de Duas Escravas na Província do
Colonial: Economia e Sociedade. S. Paulo: Pioneira, 1982, pp. Pará, 1829-1846. Revista de Histórid,~USP, n. 95,1973, pp. 263-268.
55-77; Devassas em Minas Gerais: Observações sobre Casos de 29. Mott, Luiz, De Escravas a Sinhás. Mulherio, janeiro 1988, pp. 12-13.
Concubinato. InBarreto, A.. HistóriaEconômica: Ensaios. S;Pàulo: 30. Souza, L. M. Op. cit., p. 181.
6. Luria, F.V. & Costa, I.N. A Vida Quotidiana em Julgamento:
Devassas em Minas Gerais. Op. cit., p. 7.
-7 ; "Mott,—Luizr-Modelos"de- Santrda'de"p"âra "um ClercTDevãsso : A
Propósito das.Pinturas do Cabido de Mariana, 1760. Revista do
Departamento de História (UFMG), n. 9, 1989, pp. 96-120.
8. ANTT, Caderno do Promotor *h2 128, S. Miguel do Sabará (7-4-
1765).-.. . • • . • .•. • • „ • • • -r- . . •/ - ..:. • • ; • • -
9. ANTT; Caderno do Promotor nU29, Mariana (5-11-1775).

47
46
Encontro com o Padre Xofa-Diabos

Em numerosos episódios denunciados à Inquisição de Lis-


boa envolvendo os habitantes de Minas Gerais, o motivo que
levou grande número de moradores a procurarem feiticeiros,
seus calundus e mandingas foi o de padecerem de diferentes
tipos de enfermidades e incómodos. Ontem e hoje, as doenças
nareçem-ser_o_principal móvel dos quantos recorrem aos cultos
(afro-brasileiros. j
~~ N"as~Gerais, nos inícios do século XVIII, o panorama sani-
tário era assaz preocupante, pois, além da carência crónica de
alimentos e da adoção de dietas desequilibradas, o trabalho
contínuo dos mineradores dentro da água provocava um sem
número de doenças, que epidemicamente se alastravam pelos
arraiaia e f àisqueiras, facilitando o contágio pelas más condições
de alojamento e promiscuidade dominantes nessas frentes pio-
neiras de aventureiros ávidos de ouro. O primeiro médico a
exercer sua profissão em Vila Eica registrou-se na Câmara
Municipal somente em 1734: até então, eram os cirurgiões
práticos, muitos deles curandeiros de cor, que tratavam dos
enfermos, vários utiliz ando-se de mezinhas cab alísticas e rituais
heterodoxos, que por suspeição de esconderem pacto com o
J.. Demónio acabavam sendo denunciados ao Terrível Tribunal.

Segundo R. Boxer, entre as doenças mais comuns que
atacavam tanto brancos como pretos na região mineradóra,
estavam a disenteria bacilar—na época chamada "mal do bicho"
—, os vermes in"fêsfinã"i¥ê as moléstias venéreas. Os escravos
faiscadores eram mais • atacados pela pneumonia, pleurisia,
febres intermitentes, malárias e disenterias, sem falar-nos
reumatismos, artritismos, frieiras e demais achaques causados
pelo trabalho contínuo, debaixo de sol e chuva, dentro d'água.

49
Esta "Rol dos Escravos Inválidos de Sabará", de 1735, dá uma
Assim sendo, por volta de 1748, quando Rosa beirava os 30
ideia viva dos problemas de saúde desta região:
anos, -foi acometida de uma estranha doença que mudou com-
plefamente o rumo de sua triste vida de mulher alegre. Sua
. Miguel, uma perna a menos e decrépito
primeira manifestação foi corriqueira: uma sonolência incontro-
. Simão, mina, cego
lável. Quando ia àmissa, "lhe dava um sono tanto que o sacerdote
. João, mina, com. os pés inchados e pernas monstruosas
entrava no Cânon, até concluí-la. Porém atribuía tal a ser
. Lázaro, aleijado dos dois braços
moléstia natural". Diagnóstico bastante sensato — diga-se en
. João Carneiro, angola, um braço menor e enfermo
passant—, posto que a monotonia dos ofícios litúrgicos matinais,
. Domingos, angola, rosto comido (de lepra) e quebrado
rezados .em latim, devia funcionar como poderoso sonífero so-
. Cipriano, crioulo, pés monstruosos
bretudo para quem perdia noites de sono, o que devia acontecer
. Manoel, tísico
com frequência entre as mulheres do fandango das Minas Ge-
. Silvestre, cego.
rais. Com o tempo, porém, aparecem novos sintomas: "principiou
. Paulo, sem braço
a sentir em si uma dor que a bolia, e com ela caía no chão como
« Francisco, xará, dedos comidos e perna quebrada
morta, de que se lhe originou no.ventre um tumor". (Tumor,
. Pedro, hidrático e decrépito
segundo o dicionarista Morais, naquela época significava "in-
. Francisca, mina, pés inchados., não sai de casa
chação circunscrita em qualquer parte do corpo, aumento do
. Francisca, pernas inchadas, 50 anos." 5
volume de alguma parte do corpo".)
Como diagnosticar tal quadro mórbido? Tudo faz crer que
Tomando como amostra osrfégistros dêT5FíEõ~dlTVila Rica,) esta dor que agitava seu corpo e a jogava no chão provavelmente
entre 1799 e 1801, Iraci delNero C5s"tã"cõnstatou"que ásdoenças devia ser o que antigamente chamavam de gota coral, ou então
do aparelho digestivo eram responsáveis por 52,7% das mortes sintoma de mania, as duas principais "doenças dos nervos"
entre livres e cativos, seguidas das doenças infecciosas—21,6%, minuciosamente descritas pelo médico Dr. Simão Pinheiro Mo-
e das respiratórias — 6,6%. - -
rão em sua obra Os Abusos Médicos, escrita em Recife nos finais
Rosa Courana, vivendo de se desonestar com quem a do século XVII. No capítulo TV deste livro, "Da Epilepsia, a que
quisesse, devia estar, como as demais mulheres públicas, muito o Vulgo Chama Gota Coral", ensina o Dr. Morão que tal moléstia
exposta a todas essas enfermidades transmitidas por seus clien- "é um espasmo de todas as partes do corpo, não perpétuo mas
tes. Sobretudo às doenças sexualmente contagiosas, que na por intervalos, com ofensa de todos os sentidos-e do entendimen-
época eram chamadas de mal gáíico (sífilis), corrimento (blenor- to". Diz ocorrerem tais acidentes sobretudo nas ocasiões de lua
ragia), verrugas pudendas (condiloma), mula (gânglio venéreo), cheia, nas mudanças de tempo e nas horas das paixões. "Os
etc. A rica flora medicinal amplamente conhecida pelos carijós sinais que mostram o acidente que há de vir são: peso na cabeça,
desta região, assim como as mezinhas introduzidas pelos afri- zunido nos ouvidos, candeias diante dos olhos, sonos turbulen-
canos, davam conta de boa parte das muitas moléstias locais; tos, indigestões no estômago, amarelidão na cara, peso em todo
outras eram os doutores que as gur ay am.com remédios de
o corpo, vertigens." A manifestação do acidente leva o enfermo
boticas. Data desta época — 1707 — o famoso compêndio Notí-
"a cair em terra, padecerem as partes do corpo tremores ou
cias do que é o Achaque do Bicho, de autoria do Dr. Miguel Dias
movimentos convulsivos, rangerem os dentes, roncos no peito e
Pimenta, verdadeiro vade-mécurn de todo esculápio da América
nas tripas e sair nos cantos da boca uma porção de espuma, que
.Portuguesa.
é o sinal evidente de ser gota coral".

50 51
Quanto à mania, ensina o mesmo esculápio tratar-se de e da fraqueza extrema que nem a deixava respirar, a ponto
um acidente repentino, popularmente chamado de mal lunático
de nem água poder engolir, incapaz de mover os braços,
ou mal de lua, por suceder sobretudo na época do plenilúnio: "É
pés, mãos e cabeça, enfermidade que durou quase três anos.
a mania um delírio sem febre, com audácia e temeridade, e de
Aí começou a andar de gatinhas e só depois de meses foi
tal maneira que é necessário muitas vezes amarrar os doentes
novamente capaz de andar ereta. Hoje chamaríamos de
e prendê-los." Distingue-se do frenesi porque neste ocorre sem-
histeria tal enfermidade, apesar de, passados quatrocentos
pre a febre, e da melancolia porque as melancolias são afetadas
anos, tornar-se muito difícil diagnosticar com clareza uma
por temor e tristeza. Vários sinais da mania são os mesmos da
enfermidade, porque a concepção sobre os fenómenos mór-
gota coral: dor de cabeça, contínuas vigílias, imaginações i-epe-
bidos mudou tremendamente.
tidas, sonos turbulentos, temores e tremores, brilho nos olhos,
zunido nos ouvidos, luxúria, falar muito sem razão ou soturni- Que o leitor, no final do livro, julgue se acertamos o
dade. "Os sinais que mostram o acidente da mania são: delírios, diagnóstico que fizemos dos "acidentes" da Espiritada africana,
arremeterem a quem lhes assiste, serem iracundos e furiosos, pois serão numerosas as vezes que nossa beata vai manifestar
dizerem ridicularias e risos desordenados, inquietações, ficarem sintomatologia muito semelhante à que o velho Dr. Morão
tristes e horrendos no aspecto, amigos da soledade, muito cala- diagnosticou como sendo acidente repentino ou mania.
dos e lacrimosos."
Se doenças mais simples e de cura fácil eram outrora
Cona base na descrição de dezenas de outros acidentes atribuídas seja a castigo divino, seja a feitiços ou mau-olhado,
relatados pelas testemunhas que viram Rosa "cair como morta os ataques epilépticos e outras manifestações nervosas foram
no chão", tendemos a incluí-la mais no rol dos maníacos do que interpretadas desde Hipócrates e do Código de Hamurábi, até
dos epilépticos stricto sensu, pois nenhum dos que a viram, recentemente, como manifestação sobrenatural, quer das forças
estrebuchar, quando possuída pelo Espírito, afirmou que espu- do bem, quer dos espíritos malignos: eram doenças sagradas.
masse pela boca, sintoma que o Dr. Morão considera "evidente Pois tal foi a interpretação que Rosa deu à sua inchação
de ser gota coral". Por diversas vezes Rosa Negra refere-se a ter estomacal e perda de sentidos:
sentido peso no corpo antes de ser arrebatada às moradas
celestiais, ver "estrelinhas" que lhe ofuscavam a vista e suar frio "Andando desta sorte, atribuía ser moléstia natural; até
durante o delírio extásico.
que, indo à capela da Fazenda de Bento Rodrigues, na
Outros santos padeceram igualmente de estranhas enfer- freguesia dos Camargos, onde estava o Padre Francisco
midades, na época interpretadas ou como provações de Deus ou Gonçalves Lopes fazendo exorcismes e alguns vexados, ali
ciladas do Demónio, e que hoje em dia mereceram diagnóstico se declarou então o Espírito dela, e, desde esse dia, entrou
científico acurado. Santa Teresa dAvila foi uma delas, tendo declaradamente a vexá-la, dizendo que era Lúcifer."
certa feita uma crise tão aguda que por quatro dias seguidos
ficou inerte, como morta, a tal ponto que já lhe haviam aberto a Noutra versão de sua confissão, a possessa acrescenta
cova para ser enterrada. ._ alguns detalhes importantes deste momento crucial de sua vida:
provavelmente alguns dias depois desta primeira manifestação,
"Eis que Teresa despertou subitamente de seu estado indo o padre exorcista à freguesia do Inficcionado, de novo
de inconsciência, a língua dilacerada de tão mordida, a encontrou-se face a face a negra courana com o sacerdote que
garganta apertada em consequência de rxadahaver tomado tirava demónios, na bela Igreja de Nossa Senhora de Nazaré.
"Estando ela de joelhos ao tempo dos ditos .exorcismes, lhe

52 53
estalaram os ossos em seu corpo e caiu iio chão sem acordo de
si, e a gente que estava presente, levantando-a, a levaram para
casa em braços."
O citado Padre Francisco Gongalve.sJLop.eB-desenip'§5hará.
a partir deste encontro fortuito, papel fundamental na vida de
Rosa: será seu anjo da guarda. Este velho presbítero, então com
54 anos, lhe fará os primeiros exorcismes, será seu introdutor
no caminho da santidade, seu primeiro devoto e confessor. Será
também seu proprietário e lhe dará a carta de alforria. Mais
tarde, no Rio de Janeiro, há de ser o capelão do recolhimento da
Madre Rosa e o grande divulgador de seus poderes e predesti-
nação celestial.
A partir deste momento padre e possessa estarão irreme-;
diavelmente associados, sociedade na alegria e glória, e também
nas perseguições e infortúnios, união que será desfeita somente
nos cárceres inquisitoriais, 15 anos depois deste encontro no
povoado de Bento Rodrigues. Gomo São Pedro traindo Cristo,
também o velho sacerdote desprezará sua amizade a quem tanto
venerou, declarando aos Inquisidores que a "Santa Rosa Maria
Egipcíaca da Vera Cruz" não passava de uma embusteira.
Atente o leitor para a coincidência: o instituidor da primei-
ra capela mineira, no Ribeirão do Carmo (1696), ostentava
exatamente o mesmo nome do exorcista de~ Rosa -^ "Padre
Francisco Gonçalves Lopes, tendo sido em 1703 igualmente ele
quem fundou o primeiro templo no arraial de São Caetano,
freguesia onde quatro décadas depois seu homónimo — nascido
Capela de Bento Rodrigues, local onde Rosa teve sua primeira visão
em 1694 — será coadjutor do vigário. Em Mariana, portanto, a
ruaPadre Francisco Gonçalves Lopes, uma das que desembocam beatífica em 1748.
na praça da Catedral, homenageia não o nosso biografado, mas
o primeiro celebrante a pisar na região mineradora.
Mais adiante dedicaremos atenção especial aos três con-
fessores e diretores espirituais da ex-prostituta, ocasião em que
aprofundaremos a biografia deste seu primeiro pai espiritual.
Por hora, a fim de recriar o clima do encontro do exorcista com
a escrava endemoniada, e melhor entendermos a génese desta
relação humana e espiritual, convém antecipar alguns dados a

55
54
respeito deste personagem, réu do Processo n. 2.901 da Inquisi-
ção de Lisboa. transporta os feiticeiros de um lado para o outro equivale a
Padre Francisco Gonçalves Lopes era natural do Minho, ridicularizar a história evangélica". Não podemos imaginar a
nascido em 1694. Deve ter sido no ano de 1721 que o jovem existência de uma religião sem a presença aterradora do Espírito
sacerdote, atraído certamente pela fama do ouro, migra para as do Mal, o oposto de Deus, que personifica a bondade, compaixão
Minas, sendo nomeado coadjutor do vigário da freguesia de São e misericórdia. E desde que os homens passaram a_acreditar no
Caetano, pequeno arraial situado a 3 léguas de Mariana, no poder do_EspMtcT3^MJ[]^iv^^ espe-
caminho que leva a Ponte Nova, hoje com. menos de 600 mora- cialistas em controlar, acalmar e expulsar o Anjo das Trevas.
dores na sede municipal. "Sendo seus moradores pouco abasta- Na tradição júdãicorcristá Satanás~receBiu diversos nomes:
dos, tem contudo famosa matriz, bem paramentada com capelas Belzebu, Asmodeu, Lilith, Agrat, Baal, Azazel, Lúcifer, etc. E
e obras de talha dourada." quand(5~ttJírd:estss~ãnjc)s infernais fõmã conta do corpo de rana
Após nove anos de ministério, em 1730, transfere-se para pessoa, faz-se necessária a ação dos exorcismes a fim de libertar
São João dei Rei, a próspera sede da comarca do Rio das Mortes, esta infeliz criatura das garras do capeta. O próprio Jesus
talvez motivado pela maior riqueza de seus fregueses, que eram Cristo tirou uma legião de demónios do corpo de um energúmeno
obrigados a pagar anualmente aos sacerdotes polpudas "cpnhe- na cidade de Geraza (Marcos, 5:1-20), embora seus discípulos
cenças" por ocasião da confissão quaresma! e demais serviços não. tenham obtido o mesmo êxito no caso de um possesso
eclesiásticos. Por esta época já existiam em São João dei Rei "dominado por um espírito imundo que, onde quer que o apa-
dez igrejas: á Matriz de Nossa Senhora do Pilar (1711) e as filiais nhava, lançava-o por terra e ele espumava, rangia os dentes e
do Carmo, São Francisco (com a irmandade dos negros), Mercês, ficava endurecido" (Marcos, 9:18), um quadro típico de epilepsia,
Rosário, Santo António, Bom Jesus do Monte, São Caetano, segundo o parecer do citado Dr. Morão.
Senhor do Bonfim e São Gonçalo. Não há informação no processo A crença no diabo sempre foi tão forte na cristandade que
da Torre do Tombo em qual destas paróquias o clérigo minhoto até recentemente o ritual do batismo incluía o exorcismo do
—' então com 36 anos — era coadjutor. O certo é que, pelo visto, . fêcem^nã^cídQ, acreditando-se que, antes de sua primeira puri-
-"-além do trabalho rotineiro na sua igreja., celebrando missas, ficação com a água batismal e os santos óleos, a criancinha era
administrando os sacramentos e auxiliando nos demais atos de po^suídj,j^lgJ[rimiigo_de_Deus. "Botas para fora de tua alma o
piedade^ o Padre Francisco costumava percorrer outras fregue- '• demónio?", indagava o sacerdote quando batizava os africanos
sias e capelanias praticando importante ministério muito em catecúmenos — e uma das justificações teológicas da escraviza-
voga nos séculos passados: o exorcismo. Foi exatamente numa ção dos africanos era o pícTdesejo da igreja Católica^emjresgatar
dessas suas andanças pela comarca de Vila Rica, quando exor- anêgrãHãTdo cativeirpldo. JLJIãb.o.,. elevando tais pjagâosj_sublime
cizava no Inficcionado e nas capelas sufragâneas de Nossa condição de filhos de Deus e escravos dos senhores cristãos no
Senhora da Conceição dos Camargos e de São Bento, que mani- Novo' Mundo. Até hoje, todo aspirante ao sacerdócio recebe a
festou-se o Espírito de Rosa. Tão marcante era sua dedicação ao Ordem do Exorcismo, a terceira das quatro ordens menores;
ministério de expulsar demónios do corpo dos endiabrados, que sendo portanto outorgado a todo clérigo o poder de expulsar os
ganhara nas Gerais um apelido identificador: "o Xota-Diabos". demónios. Porém, apesar de autorizados teólogos e o próprio
"Deus deixaria de existir se não fosse o Demónio", dizia K. Papa confirmarem, que o Diabo existe mesmo, cada vez mais
Seligmann, um dos mais conceituados demonólogos modernos, a moderna teologia despersonifica o Anjo das Trevas e a incan-
e Jean Bodin, em 1558, afirmava que "duvidar que o Diabo descência das chamas do fogo do inferno, argumentando que "a
possessão demonológicá, apesar da promulgação da doutrina e

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57
['J;

f:Ȓ.
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preendidos em tais crimes de feitiçarias, sortilégios, adivi-
sinais correspondentes, nunca foi doutrina imposta à Igreja
nhação, astrologia e malefícios sejam degredados para o
Universal". Quanto à expulsão dos demónios, diz o chanceler
Reino de Angola pelo tempo de cinco a dez anos."
da Cúria Metropolitana de São Paulo, Monsenhor Albanez: "É
tão raro o exorcismo que eu não me lembro de nenhum caso nos Antigamente parece que Deus permitia com muito maior
últimos trinta anos. O que aparece são casos de auto-sugestão frequência que seu inimigo usasse e abusasse das criaturas
ou episódios que aparapsicologia explica".17 Na própria tradução humanas, daí a grande importância dos exorcismes na aquieta-
da Bíblia pelo Centro Bíblico Católico (Editora Ave Maria, 48
çáo dos vexados, energúmenos, possessos, endemordados, espi-
ed., 1985), o episódio acima transcrito, do jovem possuído pelo
ritados, etc. E nas Minas Gerais, onde os africanos e seus
"Espírito Imundo", agora tem no cabeçalho o título "O Jovem descendentes eram a maioria da população, gente ainda muito
Epiléptico", comprovando o quão desacreditado se acha Lúcifer mais ligada ao diabolismo e à crença de que as enfermidades
até por aqueles que o inventaram. Em seu livro Antes que os eram causadas pelos maus espíritos ou feitiços, os "xota-dia-
Demónios Voltem, o jesuíta Oscar Quevedo sustenta sem rodeios bos" negros e brancos, calunduzeiros ou clérigos eram persona-
que "todos os casos bíblicos e pós-bíblicos de possessão demonía- gens de primeiríssima importância ao lado dos sangradores,
1. 1. ca nada têm de sobrenaturais e podem ser tranquilamente cirurgiões, parteiras, rezadeiras de espinhela caída ou de que-
explicados pela parapsicologia." Por ter emitido tal opinião, branto.
è Roma obrigou o sacerdote racionalista a interromper suas pes-
quisas e publicações sobre tema tão controverso. É o Santo Ofício
"Estas Minas estão bastante enfestadas do Demónio..."
dizia magistralmente um tal Domingos Marinho, morador em
imperando ainda em pleno século XX. Vila Rica, que, padecendo de algumas enfermidades, após insu-
é Nos tempos inquisitoriais, entretanto, se até a leitura da
Bíblia na língua vernácula era condenada por suspeita de pro-
cesso com os remédios de botica, recorreu a uma curandeira, a
africana forra Maria Cardosa, que com unguentos, poções e
testantismo, duvidar., negar a existência ou fazer pacto com o benzeduras tratou de seus achaques.
Espírito Impuro era considerado grave heresia, se não merece- Tanto quanto o Demónio, nas Gerais abundavam os ende-
dora da fogueira, pelo menos de embaraçoso processo, anos de moniados: alguns com doenças misteriosas e desconhecidas, logo
encarceramento nas masmorras do Santo Ofício, talvez até diagnosticadas como diabólicas; outros com o próprio Capeta
tortura, sequestro dos beris, açoites nas vias públicas e degredo, tomando conta do corpo, agindo, falando e blasfemando como se
para a África, ou para as galés. Ainda em 1774, no ultimo fossem o Renegado. Foi para cuidar de um desses energúmenos
Regimento do Santo Ofício, Título XI, caps. I e H, de autoria do que o vigário da Matriz do Inficcionado, Padre Luiz Jaime de
Cardeal da Cunha, ensinava-se o seguinte: Magalhães, convidara nosso Padre Francisco para vir à sua
è "Depois que o Divino Triunfador das Potências Aéreas
igreja. O próprio exorcista em sua confissão no Santo Ofício, 13
anos depois, declara que, lá chegando, enquanto realizava os
Infernais, visitando o mundo corrompido e idólatra e re-
rituais do exorcismo num "maleficiado", Rosa Courana "caiu no
mindo nele com. seu Preciosíssimo Sangue o género huma-
chão fazendo diferentes visagens e muitos trejeitos com, o corpo,
no da culpa, deixou o Demónio quebrantado, preso e inibido
levantando-se e dizendo que era Lúcifer que a vexava e lhe
para ofender os homens... porquanto pode haver alguns
i causava grandes inchações que tinha na cara e ventre". Uma

t casos nos quais os referidos espíritos diabólicos, que nada


podem por si mesmos, possam atormentar as criaturas
. humanas, se Deus lho permitir... portanto, os réus com-
testemunha presente aos exorcismos disse que Rosa "fazia ges-
tos e movimentos que parecia o Demónio!"

*• 58
59

i.
Acostumado a tais diabruras, o padre Xota-Diabos começa
a exorcizar a escrava de Dona Ana. Vestido de sobrepeliz branca do-a com as relíquias dos santos, continuava o exorcista com
e estolaroxa, tendo numa das mãos o Rituais Romanum enoutra imprecações ainda mais fulminantes:
a cruz ou o hissope com água benta, em tom enérgico, às vezes
aos gritos, o exorcista recitava solene o Ritus exorcizandi obses- "Abjuro-te, serpente antiga, pelo julgamento dos vivos e
sos a daemonio. O povo aterrorizado sempre acorria a tais dos mortos, em nome de teu criador e do Criador do Mundo,
liturgias, e de joelhos, agarrando-se nos rosários e escapulários, daquele que tem o poder de te enviar para a Geena!
formava uma corrente pia e assustada contra o Espírito das Ordeno-te que saias imediatamente, com o teu furor, desta
pobre criatura de Deus, Rosa, que se refugia no seio da
Trevas. O texto do Rituale Romanum se encarregava de criar
Igreja. Esconjuro-te de novo, que saias-desta serva de Deus
um clima de pavor naquela turba composta de gente simples,
timorata e supersticiosa: que foi criada à imagem divina. Obedece rião a mim, mas
a Cristo! Que o corpo desta criatura te cause medo: sai,
"Quem quer que sejas —- gritava o sacerdote —, ordeno- violador da Lei, sai sedutor cheio de artimanhas e enganos.
te, Espírito Imundo, como aos teus companheiros, que Vàde retro, Satanás!"
obedeças a este servidor de Deus, em nome dos mistérios
Quem assistiu aos fUmes Madre Joana dos Anjos e O
da Encarnação, Paixão, Ressurreição e Ascensão de Nosso
Exorcista, ou presenciou cenas de possessão nos terreiros de
Senhor Jesus Cristo, & em nome do Espírito Santo, que
umbanda, nas seções espíritas, ou mesmo através da televisão,
digas o teu nome e indiques por um sinal qualquer o dia e
nos cultos das igrejas pentecostais, pode visualizar o dramatis-
a hora em que entraste neste corpo. Ordeno-te que me
mo e descarga de tensão que tais cerimónias macabras provocam
obedeças, a mim, Ministro indigno de Deus, e proíbo-te que
entre os presentes. As vezes o demónio é tão forte, que o feitiço
ofendas esta cria.tura, assim como aos presentes."
vira contra o feiticeiro-exor cista, e o próprio sacerdote não resiste
à sedução do Tinhoso. Ou então uma legião de demónios toma
Entre litanias e responsos, sacexdote^acólito-e-fíéis-f-azeBa——
uma corrente espiritual contra o Tentador, Enquanto isto, a cont'â~da~a"sseníbiéia~e-aí-a^grej-a-transform.a-se num pandemô-
criatura espiritada encena suas macaquices: se joga por terra, nio. No célebre episódio das possessas de Lodun (1634), onde
contorce o corpo todo, espuma, range os dentes —• ou fica inerte várias freir as ursulinas encarnaram vários capetas—Asmodeu,
no chão, fora de si. Aí ataca de novo o Xota-Diabos: Leviatã, Isacaron e seus sequazes —•, o exorcista-mor das reli-
giosas, PadreUrbain Grandier, acaba sendo acusado deterpacto
"Exorcizo-te, immundissimus spiriíusi Abjuro-te de to- com Satã, e ó queimado em praça pública perante uma multidão
dos os adversários fantasmas e legiões em nome de Nosso de mais de 6 mil curiosos. Quando atacadas pelo Rabudo, as
Senhor Jesus Cristo. Ouve e treme de pavor, Satã, inimigo freirinhas-demonopatas "davam gritos angustiosos, ataques
da fé, inimigo do género humano, mensageiro da morte, convulsivos, urravam como danadas e lobos enraivecidos ou
raiz de todos os males, ladrão da vida, opressor da justiça, bestas ferozes, A língua das energúmenas pendia fora da boca,
sedutor dos homens^ traidor de todas as nações, origem da ficavam em êxtase e catalepsia, dobravam o corpo para frente e
avareza, inventor da inveja, causa das discórdias e dores!" p ara trás convulsivamente".
Uma sessão completa de exorcismo, seguindoparí passu o
Enquanto fazia sinais da cruz na cabeça, ventre, peito e no Rituale Romanum, deve demorar por volta de duas horas.
coração da energúmena, aspergindo-a com água benta e benzen- Dezenas de minutos são gastos na leitura do Símbolo de Santo
Atanásio, uma espécie de Credo mais detalhado, onde domina

60
61
-—•_-:-„>-.—. .. ...

f a ideia de que fora da Igreja Católica não há possibilidade de


salvação — portanto, que não venha a energúmena tentar a
Jrt
ie
a
~^
^ alta' — conforme ela própria informa em uma de suas cartas que
,é fundação de outra igreja, pois todo cisma é obra do Diabo. o.
àhalis ar emos oportunamente — , negra retinta como os nativos
Segue-se a leitura.de vários Salmos de Davi, os de números 67, '{•'•• dá Nigéria, no chão, desgrenhada, molhada de água benta, o
7> • : :sangue a escorrer-lhe da fronte, a cara inchada, talvez os olhos
34, 30, 21, 3, 10, todos enfatizando, a força e o poder do Deus dos
JS
Exércitos. : . '"' esbugalhados e vermelhos como os dos negros nos vodus, "com
gestos e movimentos que parecia o demónio" — e mais ainda,
dizendo em voz saída das profundezas, grossa e tétrica como
f "Sai, Espírito Imundo!, continuaopresbitero.Osverm.es
te esperam! Sai, ímpio, sai celerado. O deserto é tua falam os espíritos imundos, que ela era o próprio Lúcifer! Cruz
é morada, a serpente tua habitação. E enquanto a endemo- Credo! Ave Maria! Vade retro, Satanás! Xocotô bérolól
Mais tarde confessará o exorcista que, levado "por zelo e
niada, flexuosa, praguejando, batendo com o crânio, expec-
f tora Satanás, os Pater Noster, os Gloria Patri e Salmos caridade cristã", a partir daí começou os trabalhos espirituais
é envolvem-na. Quando ela cai prostrada, salva, o triunfador com a negra vexada,

t grita: !Eis-te refeita, santa! Deixa de pecar para que te não


--— — - "fiando-se nas boas informações que deu o Padre António
f aconteçam outros desastres. Vai para casa e anuncia aos
Lopes, nesse tempo confessor e diretor espiritual, de Rosa
è teus as grandes coisas que Deus fez por ti e toda a sua
misericórdia."
/ •
após sua conversão, a respeito de sua vida e bons costumes,
e, por razão disto, se capacitounaais da verdade da vexação,
fê Como já vimos, nem sempre Rosa voltava a si após taisg
"acidentes" sobrenaturais. Ao menos numa das primeiras crises
fazendo-lhe mais três ou quatro exorcismes, dizendo ter
experimentado melhoras nas queixas que padecia".
3 ?

t demoníacas, teve de ser carregada para a casa de sua senhora,j


desacordada. Também pudera: acabava de passar por experiên- O depoimento favorável deste primeiro confessor de Rosa
f cia das mais doloridas _ , _ ^ _ - r - = - . obriga-nos a transferir sua. conversão de meretriz em mulher de

f prias palavras, além de sentir os ossos estalarem, "viu e sentiul «íi;?r~, -bons costumes para algum tempo antes dos exorcismes. Talvez
alguns anos mesmo antes de 1748, pois só assim teria conseguido

i
que do ar lhe deitaram um caldeirão de água fervendo, com o)
que caiu logo desacordada, e, quando se restituiu, se achouL •' . tão boas referências deste seu primeiro diretor espiritual. A
t lançando sangue da cabeça, que estava rachada e metida aos
pés de São Benedito".
menos que o Xota-Diabos estivesse blefando perante os Inquisi-
dores, inventando tal opinião como álibi dirimente de sua res-
ponsabilidade em aceitar- a santidade desta cativa da família
Talvez a abundante água benta que o exorcista lhe asper-
;—•--- Durão. Jánesta época dois outros personagens também vexados
gia, já semi-inconscientepelo ataque de nervos, associada àidéia
f de que este líquido abençoado espanta ou mesmo faz arder o
Chifrudo, tenha provocado na negra nigeriana a sensação tão
~™"~' Pelo Tentador aparecem coligados a Rosa: Leandra, crioula
natural de Pernambuco "que por caridade assistia Rosa", e um
tal de António Tavares "português branco que se dizia nascido
terrível de ser torturada com água fervente. Seus gritos, contor-
nas Ilhas", os quais acompanharão a espiritada até mesmo ao
ções, sobressaltos — convulsões frequentes nos médiuns quando
Rio de Janeiro. É provável terem sido este amigos — que com o
possuídos — refletiam a dor insuportável da água fervente, que
tempo tornar-se-ão seus devotos — as pessoas que prestaram
segundo disse "viu e sentiu", e, mais ainda, da rachadura em
assistência a Rosa, levando-a para casa, na ocasião em que
sua cabeça decorrente da violência com que deve ter se jogado
quebrou a cabeça. Dona Maria Teresa de Jesus, importante
ao chão. Este quadro devia ser horripilante: Rosa, uma mulher
personagem nesta história, pois foi, após a família Durão, pro-

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prietária de Rosa, informou terem sido esses três energúmenos de pneumct — isto é, ar, a mesma raiz da palavra moderna
que juntos solicitaram ao Padre Francisco que os exorcizasse na pneumático ou câmara-de-ar. Ainda no século passado a Igreja
Capela de São Sebastião — na comarca do Rio das Mortes. acatou a associação do vento à manifestação da divindade, tanto
Voltaremos à informante e a esta capela mais adiante. que Santa Bernadette (1844-1879), ao descrever a primeira
Após estes primeiros acidentes, declara a futura santa que, aparição de Nossa Senhora de Lourdes, diz que a Virgem fez-se
duas-vezes anunciar por "um pé-de-vento". 3 Entre nossos es-
"dali por diante, quando saía de casa para a igreja, logo na cravos trazidos da Costa da Mina, de onde provinha Rosa
rua sentia um, vento tão forte que lhe impedia os passos, e Egipcíaca, alguns importantes orixás, sobretudo a poderosa
com grande violência a fazia retroceder para trás e se bater senhora lansã, são identificados com o vento -— ou melhor, o
com o corpo em uma cruz, sendo em dias que não havia vento é a manifestação de tais espíritos. Encontramos mesmo
vento nem as mais pessoas o sentiam — e só por virtude outras africanas residentes nas Minas Gerais quejáhaviam sido
dos preceitos que punha o exorcista é que podia resistir ao denunciadas à autoridade eclesiástica exatamente por cultua-
dito vento e entrar na igreja." rem tal elemento etéreo: "Maria Canga inventava uma dança
de batuque, no meio da qual entrava a sair-lhe da cabeça uma
A partir de então os exorcismes farão parte do dia-a-dia coisa a que se chama vento, e entrava a adivinhar o que queria".
desta preta, e, dado o caráter público destes rituais e dos locais Oimportantedestanovam.anifestacãodoEspíritoemRosa
onde o Diabo a atacava, Rosa passará a ser vista e considerada é o fato de que cada vez mais ela vai exigir a atuação do exorcista,
como uma endemoniada: de mulher pública torna-se espiritada, criando uma relação diádica de dependência espiritual entre a
sendo outra agora a assistência que a circunda. vexada e o sacerdote que lhe põe preceitos, interação que per-
Ainda hoje existe no Inficcionado uma grande cruz, quase durará até a prisão de ambos pelo bispo do Rio de Janeiro. Por
defronte da Igreja de Nossa Senhora do Rosário — igreja cons- mais frequentes e numerosos que tenham sido os exorcismes,
truída posteriormente à presença de Rosa no arraial, mas que nunca Lúcifer abandonou o corpo desta excêntrica criatura. Ou
com certeza emjseu. lugar. primitivo_davia-existk^-uim-a-eapela— melhor — talvez o invefsof nunca a criatura deixou que seu
frequentada predominantemente pela população de cor —, si- espmto-famuiar fosse embora, pois, sem ele e suas diabruras,
tuada na saída sul da povoação. Como esta cruz de madeira, perderia Rosa o chamariz que lhe garantia tantos devotos em
muitos outros cruzeiros, alguns de pedra, sempre foram alvo de toda parte onde Lúcifer a vexava.
grande devoção nas Minas Gerais, associados muitas vezes ao As pessoas nas ruelas do Inficcionado deviam se admirar
culto das almas do purgatório. Teria sido nesta cruz que Rosa e se benzer quando o Espírito baixava na ex-meretriz de Dona
sentia os tais acidentes e ventanias? Ana, paralisando seus passos, impedindo-a de entrar na Matriz
O vento, muito antes de filósofos pré-socráticos elegerem- de Nossa Senhora de Nazaré, ouprojetando-afortemente contra
no como um dos elementos constitutivos da vida, foi apontado a Santa Cruz. Paralisada na porta do templo ou quiçá estrebu-
por outros povos como a própria manifestação da divindade, ou chando no chão, só com os preceitos do Xota-Diabos era vencida
um de seus atributos. Na tradição bíblica, o vento, o ar, o hálito a resistência do inimigo de Deus "e podia entrar na igreja".
são identificadores da força de Javé, daí o Altíssimo ter dito ao Mesmo lá dentro, o Coisa Ruim tornava a apoquentá-la: "nas
profeta Ezequiel: "...Vou fazer reentrar em vós o sopro da vida... missas que se diziam, tanto que se tocavam as campainhas do
Vem, espírito, dos quatro cantos do céu, sopra sobre esses mortos Sanctus, caía sem sentidos, até que, repetindo suas confissões
para que revivam" (Ezequiel, 37:5-10). O próprio Espírito Santo, e comunhões, se achou melhor da sobredita vexação".
a terceira pessoa da Trindade Santíssima, em grego é chamado

64 65
Graças aos efeitos salutares do sacramento da Penitência beneficiar as almas com variada gama de dons sobrenaturais:
e da Santa Eucaristia, o Pai das Trevas começou a civilizar-se. visões sensíveis ou corporais, visões imaginárias e visões inte-
A africana trocava as manifestações primitivas de possessão no lectuais. Os "toques divinos" por seu, turno incluem: vozes sobre-
estilo tribal, pelas demonopatias previstas pelo Rituais Roma- -naturais auriculares, imaginárias e intelectuais. Os "toques
num. Exu se transformava em Lúcifer . Por trás desta metamor- .visíveis" podem ser: estigmas ou chagas, levitação, eflúvios
fose de cunho europeizante, está o velho Padre Francisco, que luminosos ou odoríferos e abstinências prolongadas.
encontra em Rosa, Leandra e António Tavares um novo filão Deixemos um contemporâneo denossabeata, ofranciscano
para atrair outros energúmenos e curiosos pelas diversas cape- Frei Manoel da Cruz, autor do manuscrito <£Flor esta Espiritual",
las e igrejas da comarca de Sabará e pelo Rio das Mortes afora, conceituar cadaum destes fenómenos místicos, muitos dos quais
por onde missionava. E como ensinou o próprio Cristo, "o ope- serão citados nas próximas páginas deste livro.
rário é digno de seu salário" (Mateus, 10:10), certamente abolsa X:T-*B
do exorcista se enchia cada vez mais com as polpudas esmolas ~v - '• " . Raio: conhecimento divino que alumia a alma e passa
dos fiéis mineiros mais timoratos. depressa;
A santidade da negra courana crescia e se sofisticava dia- . Luz: qualidade intencional que sendo interior é espécie
a-dia, tanto que, passados três meses dos primeiros exorcismos, impressa;
. Voo de espírito: presteza veloz que leva a alma a Deus;
"estando ela na sua cama dormindo, ouviu um tropel (isto . Êxtase: quando a alma se vai, pouco apouco, alienando e
é, um tumulto de grande porção de gente a andar e se saindo de seus sentidos;
agitar). E acordando se achou de joelhos fora da cama. E . Rapto: quando de repente se arrebata a alma em Deus,
logo lhe disse uma voz: 'Louvado seja para sempre tão alheia de seus sentidos;
grande Senhor.' E, sem ela fazer movimento algum, se . Arroubamento: quando o ímpeto do espírito é tanto que
levantou o seu corpo de onde estava e caiu também de faz levantar o corpo da terra;
~~- . .Keveiação: conhecimento sobrenatural, que Deus comunica
a mesma e ela coisa de dois passos. E logo sentiu que de si a algumas almas, de coisas particulares, que sem luz
saía uma voz que não era a sua e respondeu: 'Para sempre sobrenatural se não podem alcançar;
sej a louvado tão grande Senhor.' Depois do que, a sobredita . Visão corpórea: quando se vê com os olhos corporais
voz, que ela perfeitamente ouviu, ainda que não soubesse alguma coisa que, sem particular luz e virtude divi-
de quem era, nem quem. a proferia, lhe recomendou que na, se não pode ver;
rezasse três Padre-nossos e três Ave-marias às Pessoas da « Visão imaginária: quando com imaginação se vêem
Santíssima Trindade e outros à Paixão de Nosso Senhor algumas coisas que com. forças naturais não fora
Jesus Cristo e cinco em.: reverência à Sagrada Família e possível alcançar;
sete às necessidades temporais e espirituais da Igreja, as . Visão intelectual: conhecimento secreto e alto que o
quais rezas ela ainda faz e fez sempre". entendimento alcança de alguns mistérios de Deus
que ele descobre à alma com mais luz que a sobre-
Rosa, como centenas de outras santas e bem- aventuradas natural ordinária e que lhe comunica a vj.são ábs-
i católicas, será agraciada com várias manifestações sobrenatu-
rais. Segundo \rm dos mais^respeitados especialistas neste as-
trativa. De todas as visões é a mais segura;

sunto tão delicado, o dominicano Garrigou-Lagrange, Deus pode

í 66 67
. Visão intuitiva: é ver Deus como ele é;
« Pasmo: também chamado suspensão, é ura divertimento grande expansão no Brasil Colonial, foi uma das muitas devoções
exterior dos sentidos por causa de veemente atenção quê?" forçada pela pesquisa histórica, a Igreja Católica hoje
interna; reconhece tratar-se de umalenda puerile sembase factual. Para
. Fundo da alma: o mais secreto de seu ser e operação; uma'ex-prostituta, a devoção às Onze Mil Virgens devia servir
. Santidade: graça habitual que se sujeita na substância como espécie de antídoto retroativo à vida dissoluta anterior à
da alma."27 conversão.
^ * Como aconteceu a muitos outros santos canonizados por
Roma, das vozes Kosa passou às visões. Quando pre.sapor ordem
Nossa negra convertida começou com vozes misteriosas —
do bispo do Rio de Janeiro, Dom António do Desterro —— ele
a manifestação mais chinfrim — mas há de chegar aos êxtases,
próprio, muito devoto da corte celestial, tanto que possuía ri-
às visões e mesmo a receber os sagrados estigmas, privilégio dos
•quíssima coleção de relíquias "autênticas" de todos os apóstolos,
mais notáveis dentro da hierarquia dos santos, tendo sido o
diá"Cruz de Cristo e do manto de Nossa Senhora [sic] — e,
seráfico São Francisco quem inaugurou a lista dos merecedores
de tão prodigiosa manifestação sobrenatural.
í: "sendo perguntada se tivera algumas visões sobrenaturais,
Observe-se que de início a escrava da família Durão não disse que, estando em casa de Pedro de Azevedo, na fre-
identifica de quem procedia tão estranha voz, embora suspei- guesia do Inficcionado, aonde também se achava a mulher
tasse que provinha do Céu, talvez de uma alma, ou de um anjo, deste, e falando todos sobre o Espírito dela ré, viu clara-
posto que pedia-lhe orações. Neste início de misticismo, seu mente a figura de iim coração de cor vermelha cheio de luz
imaginário, ainda limitado de cultura religiosa, começa a po- e cercado com uma coroa de penetrantes espinhos".
Í voar-se de miríades celestiais, tanto que
Pelo depoimento prestado na Relação Eclesiástica do Rio
"tornando a dita voz na noite posterior, precedendo todas de Janeiro, esta teria sido sua primeira visão. Alguns meses
as ditas palavras-e-oraçóes-que-forajn-referidaiST-lhreTreíiF depois, em .Lisboa, descreverá a visão do mancebo, loiro vestido
mendou que fosse devota dos Nove Coros dos Anjos, das
de azul—citada anteriormente — como tendo sido seu primeiro
Onze Mil Virgens e que rezasse sete Padre-nossos e outras
contacto visual com, o sobrenatural. Talvez esta última versão
tantas Ave-marias oferecidas às sete dores de Nossa Se-
seja mais correta, posto que a partir dela, ou melhor, por ordem
nhora por seus inimigos —• o que ela dali em diante rezou
sempre". deste mancebo, é que Rosa abandonou sua vida dissoluta, dis-
tribuindo tudo o que tinha entre os .pobres. Gesto que deve ter
sido alvo de muitos comentários em seu pequeno arraial, mar-
A corte celeste — tal qual JRosa deve ter visto pintada nos
cando na opinião pública a mudança radical da negra, de peca-
tetos de muitas igrejas mineiras, além da Santíssima Trindade,
dora em mulher virtuosa.
da Maria Virgem, dos 12 apóstolos, infinidade de mártires,
O interessante nessas visões iniciais, além da simbologia
doutores, virgens, santas viúvas, etc., etc. — comportava inu-
às vezes pueril e calcada fortemente nas estampas ou registos
meráveis anjos, arcanjos, serafins, querubins, tronos, potesta-
de santos que circulavam entre os cristãos de antanho, quer
des —• uma incontável constelação de bem-aventurados quase
como santinhos e verónicas, quer como quadros ou retábulos de
tão numerosos quanto as estrelas do céu. O culto às Onze Mil
parede, outro elemento digno de nota é que tais visões aconte-
Virgens companheiras de Santa Ursula, martirizadas por de- ceram muitas delas, ao lado de pessoas conhecidas, em locais
fenderem a castidade, estimulado sobretudo pelos jesuítas e com
corriqueiros. Por exemplo:

68 69
"Estando ela no quintal das casas em que morava, às 3
horas da tarde, viu ura globo de nuvens com uma meia-lua "na noite em que tomou a cadeia de Nossa Senhora [?]
no meio, do mesmo modo que se pinta nos pés de Nossa estando na sua casa às escuras, entrou nela uma luz e, sem
Senhora da Conceição, estando nesse tempo o céu sereno ela ver quem falava, ouviu uma voz que lhe disse: 'Aprende
e limpo." a rezar o Ofício de Nossa Senhora da Conceição e o de São
"...Disse mais, que, em diferentes ocasiões, estando as- José, e dize ao teu confessor que amanhãmande jejuar toda
sentada na escada das casas em que assistia, conversando - a gente a pão e água, que, sendo março, é a verdadeira
com quatro pessoas mais que ali se achavam, viu um ; sexta-feira em que o mundo foi remido' — e logo se calou a
mancebo muito formoso..." i- voz e se apagou a luz".
Só ela tinha o privilégio de distinguir todas as visões: os -."--;• Deus preparava, passo a passo, sua eleita negra, ensinan-
demais circundantes provavelmente ficavam admirados, alguns do-lhe o beabá da vida mística: primeiro a tal voz misteriosa lhe
descrentes, outros respeitosos, quando a negra era "raptada" mandara rezar aquela dezena de Padre-nossos e Ave-marias por
pelas belezas celestiais. várias intenções; agora exigia mais atenção, decorando o Ofício
Logo no início de sua conversão, o Padre Xota-Diabos não deNossa Senhora. Estaprece resume-se em sete hinos emlouvor
apoiou tais extravagâncias místicas, sobretudo a ideia de imitar a Maria Virgem, composto pelos meados do século XV e muito
Santa Margarida de Cortona, que, após vida de meretriz, distri- rezado por nossos antepassados.
buiu todos seus bens aos necessitados, seguindo Cristo na po-
breza: "Nas casas de família rezava-se o Ofício aos sábados, ao
entardecer, todos reunidos no quarto dos santos ou no
"disse-lhe o padre que deitasse fora semelhantes visões, oratório. Todas as atividades domésticas eramparalisadas
rezando o Credo. Porém, ela, confundida deste aconteci- e por coisa alguma se interrompia a oração, desde que era
mentoj^distribultl p~elã£f pessõãs"mãis~ltiécessítad.as o ouro saFído que Nossa Sênhòraficava de joelhos" e mãos postas,
que tinha e os vestidos de seu uso, adquirido tudo pela sem poder se levantar, enquanto não viessem completar o
culpa e ganhado com uma vida lasciva... B se confessou seu Ofício. Nas ocasiões de trovoada, enquanto um cobria
geralmente,ficando1,pela misericórdia de Deus tão arre- os espelhos e guardava as facas, os outros se encaminha-
pendida de seus pecados, que até à hora presente não vampara o nicho para entoar o Ofício, até que se amainasse
tornou.mais a cair em culpas graves, principalmente na da a tempestade. Nos engenhos, nas roças, nas casas de chão
sensualidade". batido, nas casas de telha-vã, cada qual onde estivesse,
quer batendo feijão, escolhendo fumo, acendendo o lume
A ex-mulher do fandango não deu ouvidos a seu diretor ou recolhendo a enxada, alteava a voz para alcançar a do
espiritual, e persistiu nas visões. Fazendo a "confissão geral" de companheiro mais próximo, formando um estranho coro de
toda sua vida passada, seguia o exemplo do apóstolo Paulo, ele louvores àMãe de Jesus. Em certas localidades, aindahoje,
também outrora inimigo de Cristo, enterrando com a absolvição há quem. se julgue possível presa do demónio, se por acaso
no confessionário o "homem velho" e renascendo para a nova não puder participar da reza do Ofício."
vida (Romanos, 6:6).
Disse mais a cativa visionária que, no mês de março de Tal é o depoimento da folclorista Hildegardes Viana, que
1748, - válido para a Bahia contemporânea — imaginemos quão mais

70 71
importante devia ser tal devoção há dois séculos passados, no. voz misteriosa revela a Rosa que "a verdadeira sexta-feira em
auge de sua expansão pelo mundo ibérico. que o mundo foi remido..." foi no dia 25 de março. Criado eu
dentro da religião católica, seminarista por oito anos seguidos,
Agora, lábios meus, dizei e anunciai confesso que a primeira vez que ouvi referência ao dia 25 de
Os grandes louvores da Virgem Mãe de Deus. março como a verdadeira data da morte de Cristo foi quando
Sede em meu favor, Virgem Soberana mudei-me para a Bahia, em 1979. Agora, ao escrever estas
Livrai-me do inimigo, com vosso valor. páginas, consulto rainha empregada, Carlita Chaves, 58 anos,
neta de africanos, moradora no Bogum. Explica-me com. convic-
fe Santa Maria, Rainha dos Céus, Mãe de Nosso Senhor Jesus' ção que, de fato, Nosso Senhor Jesus Cristo morreu no dia 25 de
Cristo, Senhora do Mundo, que nenhum pecador desamparais: março, "a data verdadeira da morte de Jesus, revelada pelos
t-' alcançai-me de vosso amado Filho o perdão de todos os meus - profetas, data marcada por Deus mesmo. A sexta-feira da Se-
pecados. mana Santa é marcada pelos padres, por isso todo ano varia seu
gli Sois lírio formoso, que cheiro respira
" dia e mês". Pode ser até que haja razão nesta crendice popular,
* revelada a Rosa e contada de geração em geração até chegar à
Entre os espinhos, da serpente a ira, minha velha informante: pode ser que os primeiros cristãos
Vós a quebrantastes com vosso poder "celebrassem a paixão de Cristo exatamente no dia em que seus
Os cegos errados, os alumiais. discípulos disseram haver ocorrido e, só mais tarde, cora a
Humildes oferecemos, a vós, Virgem pia, fixação do calendário litúrgico associado às diferentes festas
Estas orações, porque em nossa guia religiosas, que a Páscoa e a Paixão tenham passado a ser
Vades vós diante, e na agonia comemoradas em datas móveis. Como sucedeu nas Gerais em,
Vós nos animeis, ó doce Maria, amém.
1748, por ordem de Rosa Egipcíaca, ainda hoje muitos devotos
s na Bahia — e talvez por este Brasil afora— cumprem o jejum
..a,
« Desde- os-prim
«r "enYlembrança da morte do Salvador no dia 25 de março.
nhavano caminho místico, já delineam-se algumas devoções que
íír Na mesma visão onde se lhe ordenara que aprendesse o
com o tempo serão a locomotiva de sua espiritualidade crioula:
Ofício de Nossa Senhora, recebe a vidente a primeira ordem
o culto à Sagrada Família, ao Coração de Jesus, a Nossa Senhora
K dirigida a seu confessor: que mandasse jejuar o povo da casa
sob diversas denominações. Algumas vezes, era no momento em
ffi onde-vivia. "Comunicando ela o recado ao seu confessor, este
que recitava tais orações que se lhe abriam as portas do sobre-
S
u
natural: "Certa ocasião, estando no mesmo quintal das casas
onde morava no Inficcionado, rez ando o Ofício de Nossa.Senhora
disse ao dono da casa em que se achava, que mandasse jejuar à
^suafamília, semlhe dizer omotivo: só que erabomjejuar naquela
ir -sexta-feira."
pelas 5 horas da tarde, viu uma meia-lua e sobre ela uma imagem,
A partir daí, muitas vezes, Rosa transmitirá a seus confes-
de Nossa Senhora da Conceição com as mãos levantadas como
sores diversos recados divinos, invertendo os papéis da hierar-
se costuma debuxar..." Geralmente figura-se esta Madona pi-
-.t». sando a meia-lua e uma serpente. Quem sabe se a predileção
~quia espiritual, sendo ela, e não os sacerdotes, a intermediária
entre Deus e as criaturas. Já nesta época, março de 1748,
dos africanos por esta representação mariana não se explica por merecia tanta confiança do Padre Francisco, que, sem maiores
sua associação na mente dos negros com a serpente Oxumaré explicações, obrigou a um jejum extra toda a família onde se
do panteão gêge-nagô?
Observe o leitor um curioso detalhe da visão anterior: a

72 73
hospedava, jejum que o Coronel João Gonçalves Fraga cumpriu, Vara do recém-criado bispado de Mariana. A denúncia talvez
assim como todo seu grupo doméstico, escravos inclusive. tenha sido de que era embusteira ou tivesse algum pacto com o
Desde os primeiros passos de sua vida mística, avisionária diabo.
confia a seu diretor o conteúdo de seus colóquios espirituaisj É durante seu afastamento do Inficcionado, quando em
seguindo o conselho de um dos mais reputados mestres da companhia doPadre Francisco na propriedade do CoronelFraga,
teologia ascética: "Após a revelação, a alma verdadeiramente que se iniciam as visões há pouco referidas. Após a partida de
iluminada por Deus consultará sempre seu diretor ou outra seu protetor para São João dei Rei, os céus continuam a abrir
pessoa douta e discreta." suas portas para a pobre energúmena, cujo nome e má fama se
Apesar dos fortes laços que tinham-se criado entre o sacer- tornaram conhecidos do vigário da Vara e demais sacerdotes das
dote e a vexada, outros energúmenos clamavam pela acão redondezas, tanto que apobre convertida não encontra sacerdote
tranquilizadora doXota-Diabos, voltando então Padre Francisco algum, que aceite confessá-la. Os canais de comunicação entre o
para sua paróquia, no Rio das Mortes. Nesta época acontecerá clero, pelo visto, eram bastante eficientes.
o primeiro de urna série de atritos de Rosa com o clero, começando Fins de 1748: as visões de Rosa refletem a angústia de seu
aí também o primeiro questionamento oficial de suapseudo-san- coração, carente da paixão dos homens — seus antigos clientes
tidade. no meretrício — e agora privada do alívio das absolvições dos
Quando estivera no Inficcionado, o padre Xota-Diabos confessores e do respeito que lhe prestara seu querido protetor
hospedou-se na casa do vigário, o já citado Padre Luiz Jaime de e exorcista. Ao longo de toda sua vida, a santa courana aumen-
Magalhães. Ainda hoje lá encontra-se a casinha paroquial no tará verdadeira adoração pelos sacerdotes, seguindo-lhes os
oitão da Igreja de Nossa Senhora de Nazaré, toda murada e passos, copiando-lhes as doutrinas, repreendendo os relapsos e
austera, como convinha aos ministros do altar. Talvez por imorais, rezando muito para que fossem virtuosos. Devoção,
ciúmes, ou mesmo por boa fé e zelo espiritual, Rosa revela ao diga-se depassagem, muito estimulada pela hierarquia católica,
sacerdote recém-chegado "alguns defeitos do vigário" que des- que, por breve do Papa Leão X (1513-1521), conferia 8.100 dias
gostaram, o visitante," Iévan3õ:crã~lnudar-se para a-casa do dê "indulgência a todo fiel que beijasse as franjas do hábito dos
também já citado Coronel João Gonçalves Fraga, a tuna légua franciscanos, o escapulário dos dominicanos e carmelitas ou o
do arraial. Irritado com. a escrava tagarela, o vigário ficou "com S2
cordão dos cónegos de Santo Agostinho.
muita má vontade dela, recusando-lhe a confissão". Recusa, A veneração quase idolátrica aos ministros do altar era
aliás, já prevista nas Constituições, que no §88 interditava a património de toda cristandade: no México, a "beata" Catarina
administração dos sacramentos às feiticeiras, meretrizes e pe- de San Juan, nos finais do século XVIII, prostrava-se de joelhos
cadores públicos. Como a conversão desta Madalena negra era para beijar as pegadas de todo sacerdote que passasse nas
coisa recente, e seus ataques diabólicos podiam prognosticar 33
imediações de sua choupana, Eis uma de suas visões deste
interferências satânicas, o vigário tinha respaldo canónico para período melancólico:
vingar-se da preta faladeira.
Desconsolada, sem poder ter acesso à confissão, cinco dias . "Estando ela nesta ocasião enferma e aflita, porque o tal
após este incidente, Rosa vai à procura de seu exorcista, dizen- Espírito Maligno que padecia lhe tirava a vontade de
do-se perseguida pelo Padre Jaime, que a insultava até "com comer, indo visitar uma gente sua conhecida que morava
nomes' afrontosos" — talvez, chamando-a de má mulher, puta distante, observou que, ao passar de um monte, se lhe
ou feiticeira — chegando a ponto de denunciá-la ao vigário da embaraçavam os passos e caía no chão, e quando em casa

74 75
rezava, tudo oferecia voltada para aquele monte; porém, o aJimentava-se com os dons de Deus — atitude na época inter-
seu confessor, o dito Padre Francisco Gonçalves Lopes, se pretada como sinal de santidade e da graça divina, hoje diag-
tinha retirado para o Rio das Mortes, e ela, ré, ficou descon- nosticada como anorexia nervosa, distúrbio psicológico clara-
solada porque não achava confessor que a quisesse ouvir. E mente identificador de desequilíbrio mental.
estando uma noite na sua cama, acordada, ouviu um tropel As saudades de seu padrinho-confessor revelam-se nesta
pela casa, e logo à sua cabeceira se principiou um cântico de próxima visão, a qual inclui um elemento novo: em seu crescente
diferentes vozes muito alegres e sonoras, que dizia: TSendita misticismo, anegra é milagrosamente transportada deumlugar
e louvada seja a Santíssima Trindade que, sendo pessoas três, pára outro, uma espécie de rapto ou bilocação espiritual que só
é só tima na verdade; e também seja louvado o altíssimo ocorre em santos da grandeza de Afonso Liguori (1696-1787),
mistério que na mais breve partícula se nos comunica íntegro; Francisco Xavier (1506-1552), António de Pádua (1195-1231) e
e também sej a louvada a puríssima Maria que nela encarnou do mulato Martinho deLima (1579-1639), todos canonizados por
o Verbo, sendo mãe e sendo filha — como filha vos pedimos, Roma. O estilo embolado desta e de muitas outras visões de Rosa
como mãe vos rogamos que vamos todos à glória cantar o Te exige do leitor contemporâneo às vezes duas leituras para sua
£'•
'r Deum Laudamus.' Isto se repetiu por três vezes cantando, perfeita compreensão. Culpa da visionária, do notário ou do
sem que ela, ré, visse de onde saíam aquelas vozes. E nas Barroco?
primeiras três noites seguintes veio uma delas pelo mesmo
modo ensinar-lhe a referida letra, e, no fim, deste tempo, ela "Em um dia pela manhã foi levada ela ré da sua, casa
a tinha decorado." para a igreja, em espírito, porque o corpo ficou em casa —
só com os sentidos de ouvir, porque os outros quatro
•'*
l' Rosa crescia rápido no conhecimento doutrinário: seu vo- acompanharam o espírito, e chegando aporta da igreja lhe
iÈ cabulário religioso e a desenvoltura com que tratava os mistérios perguntou uma voz se queria ouvir missa, que se ajoelhas-
.. teológicos são surpreendentes, sobretudo se levarmos em conta se. E, tocando-se a campainha a Sanctus, viu ela, ré,
o pouco- tempo desde que havia abandonado a vida de mulher descerem do teto da igreja muitos meninos nus, com suas
mundana. Se as negras minas eram reputadas como inteligen- bandas e velas na mão, cujas luzes eram de muitas e
tes, afáveis, rápidas na assimilação dos modos civilizados, as da diferentes cores, e postos sobre o altar em duas alas,
nação corá distinguem-se ainda mais pela capacidade de lide- apareceu logo um senhor crucificado em carnes, com coroa
rança e astúcia com que se apropriam de certos elementos-cha- de espinhos e só irmã chaga no lado, e levantando o sacer-
ves do mundo dos brancos, notadamente do universo religioso. dote a hóstia, lhe disse a ela, ré, a voz que costumava
Atentemos para a sofisticação teológica desta recém-convertida, falar-lhe, que entre ela e o cálice rezasse um Padre-nosso
há menos de 30 anos tirada do meio da floresta africana, ainda e uma Ave-maria e, no fim desta, à palavra Santa Maria,
I
I analfabeta, que discorre com propriedade sobre o mistério da
Santíssima Trindade, que, em vez de hóstia, usa o termo erudito
partícula, que sabe rezar o TeDeum e o Oficio deNossa Senhora!
acabou o sacerdote a missa e se foram apagando as luzes,
o que ela perfeitamente viu, pois os meninos que as tinham
iam desaparecendo e da mesma sorte a dita imagem.
"Oh! quão inefáveis são os desígnios de Deus!" . Depois do que o corpo dela que estava em casa se restituiu
Atente o leitor para um importante detalhe deste último aos quatro sentidos que lhe faltavam."
transe de nossa biografada: como ocorria com muitas outras
santas barrocas, também Rosaperdia o apetite quando sua alma Suas visões se tornam cada vez mais majestosas e resplan-
decentes: acreditamos que apropria configuração geográfica das

76 77
Minas, com suas intermináveis montanhas, vales profundos e mente batizado n.a mesma capela de São Sebastião, no Rio das
horizontes sem fim, favorecia as ilusões visionárias. Quando Mortes, onde Rosa e seus dois sequazes energúmenos faziam
estivemos na região deMariana, seguindo os mesmos itinerários pregações); São Caetano da Moeda, no distrito de Ouro Preto, e
percorridos pela mística africana, ficamos maravilhados com, a Sãa;Caetano de Mariana (hoje Monsenhor Horta), a freguesia
variação feérica das cores do céu ao pôr-do-sol. Mesmo sem onde o Padre Xota-Diabos foi primeiro coadjutor. É provável ter
prenunciar chuva, incontáveis coriscos e lampejos clareavam a sidoipor influência deste sacerdote que Rosa inclui São Caetano
noite, escura como breu, até que, gloriosa, através das nuvens, etíi seu devocionário, conhecendo até detalhes de sua santa vida,
surgiu uma meia-lua tão brilhante que mais parecia uma visão corno o de ter sido miraculosamente alimentado pelos anjos.
— a mesma figura sob a qual Rosa costumava ver representada Coincidentemente, no sincretismo religioso afro-brasileiro, so-
a imagem da Virgem da Conceição. As magníficas pinturas e bretudo nos candomblés de Angola, este santo está associado
talhas doiradas, que ano a ano iam se construindo na beata aos orixás do vento, Iroco, Katende e Loco: quem sabe se a
Minas Gerais, foram outro elemento que seguramente muito devoção de Rosa por este santo não sincretizava-se com os
influenciou o imaginário místico da ex-mulher do fandango. Só "acidentes" que tinha com o vento arr eb atador há pouco referido?
no teto da matriz do Pilar de São João dei Rei estão pintados 40 ~~ ;;--Jánestesprimórdios de vida mística, nossa vidente começa
á anjinhos, uns de corpo inteiro, outros apenas com um delicado a realçar as proféticas analogias de sua vida com a de outros
parzinho de asas brancas. Conao os vitrais das igrejas góticas da santos: primeiro com o italiano São Caetano, depois com Santa
Idade Média, as pinturas barrocas tinham a função pedagógica Egipcíaca, em breve com o próprio Cristo. Visões, vozes, revela-
de instruir os fiéis nos mistérios da fé, levando-se em conta a ções, raptos passaram então a fazer, parte integrante de seu'
predominância de analfabetos naqueles tempos pretéritos. dia-a-dia:
"Estando ela, ré, enferma e aflita, foi levada em espírito "Oito dias depois [da revelação anterior], andando ela
a uma terra que nunca viu, onde estava um formosíssimo com uma crioula [Leandra] varrendo a Igreja de São João

l
J_ T T

templo de tantariqueza e grandezu, como nunca víulQgum, .- jBatista, viu no centro da cruz um pombo branco, muito
nem pode explicar. B nele viu um sacerdote dizendo missa, .. fermoso, com os pés vermelhos, unhas e bico tão luzidios
o qual era de nunca vista formosura, e com ornamento tão -:< que pareciam de ferro, e o dito pombo lhe disse as palavras
precioso que o não sabe ela, ré, dizer. E tirando-se do altar seguintes: .'Haveis de aprender a ler e escrever, que quero
'• esse sacerdote, e chegando-se a ela, lhe disse nomeando-a

fe
fazer um ninho no teu peito.' E,, chamando ela pela crioula
pelo seu próprio nome, que ela havia de ser como Caetano, para que visse o dito pássaro, este desapareceu."
vivendo da Divina Providência e comer o pão espiritual
quotidiano que ele lhe desse. E, ditas essas palavras, tornou Não resta a menor dúvida de que o pombo branco com
a deitar-se na mesma cama em que estava." detalhes decorativos tão luzidios era o próprio Espírito Santo, a
terceira pessoa da Trindade Santíssima, que há 2 mil anos
São Caetano — festejado a 7 de agosto •—foi o fundador da passados fora visto pelos discípulos na cerimónia do batismo de
Ordem- dos Teatinos, tendo sido canonizado em 1671 por Cle- Jesus Cristo: "...o céu se abriu e o Espírito Santo desceu sobre
mente X. Foi santo de enormepopularidade no Brasil Colonial: Ele em forma corpórea, como uma pomba, e veio do céu uma voz:
só nas Minas, no século XVIII, havia três vilas com seu nome: Tu és meu Filho bem amado, em ti ponho minha afeição" (Lucas,
São Caetano do Xopotó, na zona da Mata (cujo primeiro capelão 3:21-22).
foi o irmão de Tiradentes, Padre Domingos Xavier, coincidente- Nas Gerais, o culto ao Divino Espírito Santo sempre gozou

78 79

': ' •
de gr ande popularidade, estando a "pombiniia" representada em piando a dormir, acordou com o rumor de umas vozes que não
incontáveis altares-mores, sacrários e retábulos de suas igrejas. viu de quem eram". Aí se lhe revelou dos céus um longo cântico
Belíssima colecão desta terceira pessoa divina pode ser aprecia- onde vários membros da corte celeste desfilam à moda da
da no Museu de Arte Sacra de Mariana, sempre a "pombiniia" ladainha de todos os santos:
ostentando, como viu Rosa, o bico e os pés brilhantes geralmente
pintados de encarnado. As "Folias do Divino" perduram até hoje 'Vitória, vitória, Senhora Santana, que nas vossas santas
nas áreas mais tradicionais deste Estado, e o grande número de mãos está o nosso amparo; vitória, vitória, senhor São Joa-
municípios e povoados com nome tirado da raiz "divino" não tem quim, espero na morte o vosso socorro; vitória, vitória, Maria
paralelo nem, mesmo no Estado do Espírito Santo: Divinéia, Santíssima, pedi ao vosso amado Filho e ao vosso Eterno Pai
Divinópolis, Divinolândia, e mais as cidades de Divino das que vamos todos à glória cantar a'vitória; vitória, vitória,
Laranjeiras, Divino de Virgolândia e Divino Espírito Santo de Divino Espírito Santo, aluminai as nossas almas com a luz
Alterosa, acrescidos das seguintes vilas e cidades: Espírito Santo de vossa graça; vitória, vitória, Menino Jesus, vestido de
branco, defendei a vitória; vitória vitória, São João Batista,
.1 da Água Limpa, da Forquinha, da Mutuca, do Empoçado, do
Guaraná, dolndaiá, doltapecirica, doMar de Espanha, doMorro que no Rio Jordão deu vitória às almas; vitória, vitória, Nossa
Preto, do Piau, do Pomba, do Pontal, do Prata, do Quartel Geral, Senhora das Brotas, brotai as nossas almas e cobri com o
do Sapé dos Coqueiros, dos Cunquibus, dos Peixotos, dos Sertões vosso manto. Cujas palavras entoadas assim por essamusica
da Trombúca, etc. Um verdadeiro pombal divino! se lhe repetiram em três noites sucessivas imediatamente,
Do mesmo modo que na vida de Cristo, a aparição da ficando impressas tais palavras por cada vez no entendimento
terceira pessoa da Santíssima Trindade a Rosa é acompanhada dela, ré, com uma grande clareza e conhecimento."
de uma missão de vital importância: em ambos os casos, marca
o início da catequese e começo de uma nova vida de divulgação Conservamos a letra deste cântico; sua melodia foi para o
I.
• 3f
da Boa Nova. A negra courá tem_a^Mçõe.sj_aão_bas_ta_pregar, túmulo com Rosa: talvez imitasse as mesmas polifonias do
barroco mineiro, tais quais devia ter ouvido nas missas solenes
t& como Cristo fazia. Ela se dá conta que se aprender a ler terá a
chave dos mistérios divinos, poderá mergulhar na própria fonte nas muitas igrejas que frequentava. Além da simplicidade de
da revelação católica e por conta própria aprender orações, seu conteúdo, salta à vista a heterogeneidade da métrica deste
ladainhas e dogmas que até então só tinha acesso ex audito, hino, onde os muitos versos de pé-quebrado revelam ou que no
através do ouvido, quer nos sermões dominicais, quer nos con- céu faltavam bons poetas, ou que nossa ilusa tinha péssimo
selhos particulares que lhe davam os sacerdotes. Rosa cumprirá ouvido musical.
a determinação da "Divina Pombinha": aprenderá a ler e a Já nesta época a ex-mundana rezava de cor, além das
íí
S* escrever. Salvo erro, é a primeira escrava africana no Brasil a orações obrigatórias de todo católico—Padre-nosso, Ave-maria,
t*
S ser alfabetizada de que temos nojícia, pois_odocumento mais Salve-rainha, Credo e Glória Patri —, provavelmente algumas
r
g; antigõ7 até~entáo conKêcídõ, maguscrito_poir_uma_escrava> de em latim, como era costume de então, os Ofícios de Nossa
.li autoria da cativa Esperança. Garcia^ moradora no sertão do Senhora e São José, vários hinos sacros e estas duas novas
íl Piauí, é datado de 1770, enquanto que de Rosa possuímos orações reveladas quando dormia: Bendita e louvada seja a
algumas'carfãs aútografad.Sãjp_artir^de 1752.. Santíssima Trindade e Vitória, vitória. Eezando todas essas
preces de uma só vez, gastava mais de uma hora de oração.
m
Esta aparição e revelação do Divino deve ter ocorrido de
manhã, pois "na noite do mesmo dia, estando deitada e princi- Provindos de uma sociedade ágrafa na qual se enfatizava secu- •
larmente a memória, afim de se preservar a tradição oral, talvez o
80 81
I
:•
muitos africanos escravizados no Novo Mundo desdepequeninos
tivessem sido introduzidos nos exercícios de memorização, daí
terem conservado até nossos dias inúmeros relatos mitológicos
meditando no quinta]., dormindo em sua cama — detalhes que
revelam dispor de muito tempo ocioso para dedicar-se a exercí-
cios espirituais.
oriundos da velha África. *.^<*. Com
^/uxi± certeza
ceu-ueza Rosa
£ÍQS& devia igualmente
SabffT" rio f>nv <->= -mn-^J ' "• ~*
saber de cor os mandamentos da Lei de Deus e os da Igreja,
conhecimento comum a todo católico comungante.
Suas visões continuam, algumas repetindo temáticas já Notas
conhecidas:

"Disse mais que daí a dias, estando, numa tarde assen- Prooópio, Cândido. Kardecismo e Umbanda, S. Paulo: Pioneira,
tada no quintal das casas em que vivia, arezar pelas Horas 1961.
de Nossa Senhora, levantando a cabeça viu sobre a lua, RusselWood, Op. cif., p. 120.
que era quarto crescente, a imagem de Nossa Senhora da Boxer, C. A Idade de Ouro do Brasil. S. Paulo: Companhia Editora
Conceição vestida de azul, e, movendo-se de uma parte Nacional, 1969, p. 204.
para outra sobre a mesma lua, desapareceu. E ela ficou EusselWood. Op. cit., p. 118.
suspensa, sem saber o que significava aquela aparição." ANTT, Manuscritos do Brasil, Livro 2, fl. 219 (14-112-1735).
Costa, I. N. Vila Rica: População (1719-1826). S. Paulo: IPE-USP,
Até esta época, fíns de 1748, muitas vezes nossa visionária 1979.
dirá não entender o significado do que via, ou ignorar a proce- Santos Filho, Lycurgo. História Geral da Medicina Brasileira. S.
dência das tais vozes: "sem saber de onde lhe vinha este bene- Paulo: Huicitec-USP, 1977, p. 195.
Morão, Simão Pinheiro. Queixas Repetidas em Ecos dos Arrecifes
fício". Atacada pelo Diabo, mas também arrebatada aos céus por
de Pernambuco contra os Abusos Médicos que nas suas Capitanias
Deus, Rosa ficava em dúvida se tais maravilhas eram de fato se Observam tanto em Dano das Vidas de seus Habitantes. (168?)
obséquio divino, ou artim.anhardo^CoisãrKuõin. Lisboa: Junta de Investigação do Ultramar, 1965.
Além destes relatos sobrenaturais, nada nos informa a 9. Nigg, Walter. Teresa de Ávila. São Paulo: Loyola, 1985, p. 38.
documentação a respeito do dia-a-dia desta escrava após a 10. ANTT, Inquisição de Lisboa, Processo n2 2.901 (1763).
manifestação de seu Espírito. Refere-se, várias vezes, a estar 11. Vasconcelos, Diogo. Op. cit,, p. 180.
Rosa na casa do Coronel Fraga ou visitando outras pessoas 12. Carrato, J. F. Op. cit., pp. 57 e ss.
distantes das montanhas do Inficcionado. Como conseguiria 13. Mott, Luiz. Etnodemonologia: Aspectos da Vida Sexual do Diabo
licença de sua dona, Ana Garcês, para ausentar-se de sua casa? no Mundo Ibero-Americano. In: Escravidão, Homossexualidade e
Demonologia, op. cit., 1988, pp. 119-151.
Que tipo de trabalho se exigia da vexada desde que abandonara
14. Dattler, Frederico. O Mistério de Satanás. Diabo elnferno naBíblia
a vida leviana? Tudo nos leva a crer que a courana era uma e Literatura Universal. S. Paulo: Paulinas, 1977.
"escrava de ganho", que se alugava ora aqui, ora acolá, para 15. Kalverkamp, F. D. & Kopplenburg, F. B. Ação Pastoral perante o
serviços domésticos, obrigada a entregar certa quantia de seus Espiritism.o, Petrópolis: Vozes, 1961, pp. 178-185.
salários para sua proprietária, seja diária, seja semanalmente. 16. Lorenzatto, José. Parapsicologia e Religião. Alguns Aspectos da
Talvez já nesta época alguns de seus devotos lhe ajudassem com Mística à Luz da Ciência. São Paulo: Loyola, 1979, p. 122.
esmolas e doações que eram entregues por Rosa à mãe de Santa 17. Tabu e Sigilo Cercam Cultos das Igrejas que Praticam o Exorcismo.
Rita Durão. Não deixa de ser surpreendente, todavia, as muitas Folha de São'Paulo, 19 out. 1986.
vezes que a espiritada diz estar em orações, sentada na escada,

82
83
.a;

18. Evans Pritchard, E. E. Witchcraft, Oracles and Magic among the.


Azande. Oxford, 1937.
19. ANTT, Caderno do Promotor n2 126, fl. 413 (23-7-1763).
20. Mandrou, Robert. Magistrados e Feiticeiros na França do Século Visões e Atribulações de uma Endemoniada
XVII. São Paulo:' Perspectiva, 1979..
21. Oliveira, Xavier. Espiritismo e Loucura. Rio de Janeiro: Editora A.
Coelho Branco, 1931.
22. Rio, João. As Religiões no Rio. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1976.
23. Farmer, DavidHugh. The OxfordDictionary ofSaints, New York: No início de 1749, Rosa muda-se da comarca de Sabará
Oxford University Press, 1987. para a do Rio das Mortes, acompanhada da fiel amiga Leandra,
R:
fj 24. Bastida, Roger. As Religiões Africanas noBrasil. S. Paulo: Pioneira, crioula natural de Pernambuco "que a assistia por caridade".
1971.
Assistir, no século XVIII, segando ensina nosso companheiro
25. Figueiredo, Luciano, O Avesso da Memória: Estudo do Papel, constante, o dicionarista Morais, significava "estar presente
fí Participação e Condição Social da Mulher no Século XVIII Min eiró. fazendo corte a alguém, servindo, prestando socorro, ajudando
k São Paulo, s.d., p. 134 (Relatório Final).
e patrocinando". Embora nunca fique totalmente claro, na do-
26. Lagrange, Garrigou. Lês Trois Ages de Ia Vie Interieure. Paris:
Editions du Cerf, 1938. cumentação, os meandros mais íntimos da interação mantida
27. Biblioteca Nacional de Lisboa, Seção de Reservados, na 5.454, por nossa biografada com sua "assistente" pernambucana, tudo
Floresta Espiritual, manuscrito de Frei Manuel da Cruz, OFM nos leva a crer que5 embora ambas fossem "espiritadas", os
(Século XVIII). demónios e carisma da africana er ammais poderosos, servindo-a
28. Clerancé, L. SantaMargaridade Cartona. Salvador: TipografíaSão Leandra como uma espécie de ekédi, a saber, "moça ou mulher
Francisco, 1928. auxiliar das filhas de santo em transe, amparando-as para que
29. Viana, Hildegardes. O Ofício de Nossa Senhora. A Tarde, 1988. não caiam, enxugando-lhes o suor, levando-as à camarinha para
30. Cartilha da Doutrina Cristã, Lisboa (Século XIX). vestir a roupa de Orixá, etc". Pelos xangôs do Nordeste é
31. Arrese, M. B. Suma de Ia Vida-Espiritual7TiSo.a., 1974. chamada de iabá ou Uai.
32. Floresta Espiritual, op. cit.
33. Graxeda, Joseph. Compendio de Ia "Vida e Virtudes de Ia Venerable "Passado todo o referido — conta Rosa em sua confissão
Catharina de San Juan. México, 1692.
perante os Inquisidores, 14 anos mais tarde —, sendo no
34. Bell, Rundolph: Holy Anorexia. Chicago: The University of Chicago
Press, 1985. segundo ano de sua conversão, vendo que no lugar em que
35. Barbosa, Waldemar de Almeida. Dicionário Histórico-Geográfico se achava, no Inficcionado, não tinha confessor e que o povo
de Minas Gerais. Belo Horizonte, 1971. a perseguia chamando-a feiticeira, e querendo se forrar
36. Mott, Luiz. Uma Escrava do Piauí Escreve uma Carta... In: Piauí devido à sua doença, se foi para o Rio das Mortes aonde
Colonial. Teresina: Secretaria de Cultura, 1985, pp. 103-108. assistia o Padre Francisco Gonçalves Lopes, para que este
a favorecesse e lhe tirasse esmolas com que comprasse um
moleque para dar à sua senhora Dona Ana, que era a
condição com que ela a forrava."

Se Rosa a esta altura já contava com admiradores e até


devotos, pelo visto, outras pessoas, além do vigário de seu
arraial, também desconfiavam de que seus "acidentes" e ataques

84
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ou eram fingimento, ou obra do demónio, daí chamarem-na de
Aryelos: embora ainda existam descendentes com sobrenome
feiticeira. Inúmeras são as pretas acusadas de feitiçaria que têm
igual residindo na região, nada souberam-me dizer sobre os
seus nomes arrolados nos Livros de Devassas do bispado de
fundadores desta parentela. Pedro Róis Arvelos residia com sua
Mariana, algumas culpabilizadas duplamente de praticarem mulher e filhos no distrito de Santa Rita, termo da vila de São
prostituição e também rituais macabros. A suspeita de associa- José do Rio das Mortes (hoje Tiradentes): possuía fazenda de
ção do Imundo com as mundanas percorre toda a história da engenho, capoeiras, matas virgens, gado e alguma escravaria.
cristandade, o mesmo ocorrendo nas perseguições aos sodomi- Devia ser um médio proprietário, dos muitos portugueses que
tas, acusados de terem pacto com os diabos íncubos ou súcubos.
no, primeiro quartel do setecentos fixou residência nas monta-
A má fama de feiticeira ou demonólatra acompanhará nossa nhas auríferas. Conta ele próprio que, indo certa, vez à capela
vidente até o fim de seus dias, embora seu nome nunca tivesse
l sido inscrito nos referidos Livros de Devassa de Minas.
Em São João dei Rei a negra courana reencontra seu padre
de São Sebastião do Rio Abaixo, filial da Matriz do Pilar, viu o
Padre Francisco fazendo exorcismes nos três energúmenos vin-
dos da comarca de Vila Rica. Foranestamesma capela, dois anos
protetor, .uma grande alegria para ambos. Sobretudo para a espi-
antes, que tivera lugar o batizado de Joaquim José da Silva
ritada, que, após meses sem conseguir o refrigério da penitência,
. Xavier (aos 12 de novembro de 1746), o futuro alferes Tiradentes.
teve a consolação de ouvir novamente as purificadoras palavras
"' Ficava a capela de São Sebastião a duas léguas e meia do centro
penitenciais: Ego te absolvo a peccaiis tuis, in namine Patr-is, et
da vila de São João dei Rei: em seu interior eram veneradas as
Filii et Spirttus Sancti,.. abrindo-lhe o caminho para receber "o
imagens de Nossa Senhora da Ajuda, Nossa Senhora do Carmo,
f* altíssimo mistério que na mais breve partícula se nos comunica
íategro" o próprio senhor do universo, Jesus Eucaristia. São José de Botas, São Francisco de Assis e a do orago, o mártir
Talvez para evitar murmurações das más-línguas ou com São Sebastião.
Foi nesta capela que o casal Arvelos, indo certo domingo à
medo das Constituições que vetavam aos sacerdotes acolher
missa, presenciou pela primeira vez Rosa, Leandra e António
mulheres jovens em suas casas, decide o Padre Francisco enviar
Tavares serem exorcizados. Diz o Sr. Arvelos que,
sua filha espiritual para a casa- de seu~sobrEhò e~cõmpadre7
Pedro Róis Arvelos, a três léguas da vila de São João dei Rei. "pondo-lhe o sacerdote preceitos, ouviu Rosa dizer que era
Este senhor, com quem ò Padre Francisco "tinha boa amizade", Lúcifer e que naquele corpo estavam sete espíritos malig-
será em pouco tempo o principal devoto da santa cor de ébano, nos, dizendo-lhes os nomes, os quais ele não lembra mais,
tão fanatizado há de ficar por sua santidade e predestinação, dizendo que era Lúcifer mandado para avisar ao povo das
que tomar-lhe-á algumas vezes a bênção de joelhos, beijando-lhe Minas que estava para vir um grande castigo que havia de
inclusive os negros pés, e não tibubeará em entregar, alguns abranger a distância de 80 e 10 léguas—e que as 10 léguas
anos mais tarde, quatro de suas filhas como intei-nas no reco- eram pelo quebramento dos 10 mandamentos da Lei de
lhimento que 'Madre Rosa" vai fundar na mesma cidade que a Deus. E logo a seguir começou Rosa a pregar doutrinas que
viu chegar menininha no porão de um tumbeiro algumas déca- a ele, testemunha, pareciam boas, e que o padre dizia a ele
das passadas. Esta permanência de Rosa na propriedade do que tudo era verdade o que diziam."
Arvelos criará laços fortíssimos' entre a negra e esta família
portuguesa, laços que somente o Terrível Tribunal conseguirá Um morador da região, José Alvares Pereira da Fonseca,
destruir.
conhecido do Padre Francisco desde 1743, contou que sobretudo
Poucas informações conseguimos amealhar sobre a família Rosa e Leandra— a quem chama de Leandra do Sacramento —-
eram exorcizadas nesta capela "quase todos os dias", e que,

86
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depois de acorrentado o Eabudo, as duas entoavam lindos hinos saltimbancos profissionais: "mandava que os endemoniados
à Virgem Maria, entre eles Ave Maris Stella e Glória das Vir-
mostrassem como haviam de ficar as pessoas que fossem casti-
gens. Sob o efeito dos exorcismes, Lúcifer se travestia em espírito
gadas, e os três se lançavam no chão, parecendo mortos, ficando
devoto, e as duas espiritadas 'pregavam dizendo que eram
de bruços". Às vezes os energúmenos davam livre vazão à sua
mandadas por Deus, e como as pessoas não criam nos pregado-
agressividade: "certa feita agarraram uma negra que estava na
res, que cressem nelas!" Nada de mais acordado com as Santas
mesa do Santíssimo eíaziam como se a queriam consumir — e
Escrituras, pois não fora o próprio Cristo quem dissera ter
a uma escrava do Sr. Arvelos, Leandra a acometeu fazendo
escolhido "os pequenos e humildes para confundir os grandes e
arremessos com os braços". Se não ia por bem, ia por mal!
doutos"?! Não deixa de ser surpreendente, todavia, que numa
Tais estripulias se repetiam não só na Capela de São
sociedade tão marcada pelo machismo e pela misoginia, duas
Sebastião, mas também na de Santa Rita, no perímetro da
mulheres, uma cativa africana e uma crioula, tomassem o lugar
fazenda dos Arvelos. Conta um morador da região, João Fernan-
privativo do sacerdote, tornando-se elas próprias pregadoras da
palavra de Deus. des da Costa, 62 anos, negociante, que nestas ocasiões "Rosa
l Para uma africana como Eosa, e mesmo para a pernambu-
fazia gestos e movimentos que parecia o Demónio", e certa vez,
ao findar uma missa, a negra se levantou de seu lugar, insul-
cana Leandra, com certeza já familiarizada com os xangôs
tando umas mulheres que conversavam, "causando tal pertur-
nordestinos, o título "Estrela do Mar", atribuído a Maria Virgem, bação, que algumas fugiram confusamente, perdendo brincos e
devia ser particularmente querido, dada a presença deste sím-
trastes de ouro". Rosa, desde que começou areceber os Espíritos,
bolo nos rituais de diversas religiões afro-brasileiras, tal qual se tornou-se useira em anunciar publicamente que certas pessoas
tornou do conhecimento público notadamente através da canção
não estavam preparadas para a comunhão, provocando emba-
imortalizada por Clara Nunes: "Estrela do Mar... é Maré
raçosas situações durante a distribuição da Santa Eucaristia.
Cheia..." Consultando o já citado Dicionári o de Cultos Afro-Bra- Outras vezes, nas capelas da comarca do Rio das Mortes, "dou-
sileiros encontramos curiosa associação entre a "Estrela Guia" trinava dizendo que sabia o estado das almas que saíam deste
-— falange de seres espirituais que vibram na linha de Yemanjá
mundo, as que se salvavam ou se condenavam". Vidente, a negra
— e Maria Madalena, "a chefe desta entidade". O sincretismo courana torna-se conhecedora também dos mistérios do Além,
adaptava-se como uma luva, sobretudo por tratar-se Rosa de privilégio que Nosso Senhor conferiu a poucos santos de sua
uma "madalena arrependida".
corte celeste.
Imaginemos o espanto e terror dos devotos, roceiros e Nem todos, porém, davam fé à santidade da espiritada:
mineradores em sua maior parte, livres e escravos, que enchiam
"Rosa demorou por espaço de um ano no sítio dos Arvelos,
a capela de São Sebastião, presenciando revelações tão assus-
sofrendo muitas perseguições do povo que a criminou de que era
tadoras de uma negra que dizia estar possuída por uma legião
feiticeira e fingia os acidentes que lhe davam, com o que caía no
de sete capetas, ameaçando com castigos terríveis toda a prós-
'chão". Conforme dissemos, após presenciarem os fantásticos
l • pera região aurífera!
exorcismes e serem recomendados pelo compadre Padre Fran-
HL-i. As sessões de exorcismo se seguiam semana após semana:
cisco, os Arvelos acolheram a negra espiritada em sua proprie-
"quase todos os dias, e em particular, o padre afiançava que a
dade, criando-se a partir desta convivência laços fortíssimos de
negra era mesmo serva de Deus e que tudo o que dizia era
•amizade e veneração entre esta família portuguesa, suas filhas
verdade". Nestes acidentes no Rio das Mortes, o Xota-Diabos
e filhos mineiros, a escravaria e a vizinhança, com a protegida
utiliza-se das estripulias destes três endiabrados como se fossem
do Xota-Diabos. Rosa devia ser pessoamuito sociável, simpática,

88 89

j;
de fácil convivência, quiçá serviçal, pois em todas as casas de dor deliciosa, um abrasamento..." As palavras são de Santa
famílias onde morou, tanto nas Minas como depois no Rio de Teresa, a doutora dos místicos do Ocidente, condecorada por
Janeiro, sempre encontrou boa acolhida de seus proprietários. Paulo VI em 1970 com o invejável título de "Doutora da Igreja
Alguns sucessos extraordinários :— além dos ataques e Universal".
doutrinas que maravilhosamente pregava — contribuíram de Rosa Courana ao ser arrebatada deve ter sentido esse
maneira decisiva para tornar Pedro Arvelos e sua família devo- mesmo abrasamento que deixou fora de si não apenas as Onze
tos de primeira linha desta Rosa Negra. Afirma o chefe do clã Mil Virgens martirizadas com Santa Úrsula de Colónia, como
que certa vez, observando-a orar em frente a um crucifixo, "vira também uma infinidade de outros visionários que trocaram o
que se abriram os braços e fora como arrebatada a unir suas amor dos homens pelo toque divino do Cordeiro de Deus. Talvez
mãos com as do crucificado, em cujapostura esteve algum tempo nossa santinha já nesta época conhecesse a. vida prodigiosa de
fazendo colóquios com Nosso Senhor, até que perdeu a fala Santa Lutgarde, a patrona da Bélgica (1182-1246), que num
ficando em um êxtase".
êxtase igual ao seu, ao beijar as chagas dos pés do Crucificado,
Muitos santos e santas, seguindo o exemplo de Cristo, que "Ele destacou seu braço da cruz, puxou sua serva pressionando-a
na Ascensão subiu aos céus, foram agraciados com. o dom da contra seu peito e colocou os lábios da santa na chaga sanguino-
levitação, "o alevantamento do corpo no espaço". Santa Verónica lenta de seu coração". Quiçá a hóspede da família Arvelos
Giuliani, capuchinha italiana contemporânea de nossa biogra- esperasse que algo igualmente fantástico lhe acontecesse: o
fada, chegou a ser miraculosamente elevada até a copa das Cristo permaneceu gélido como sempre, porém esse seu arreba-
árvores, enquanto São José Cupertino, franciscano canonizado tamento, apesar de não ostentar nada de excepcional, redundou
em 1767, foi o campeão desta categoria, tendo mais de 70 na consohdação da fé de seu anfitrião—pessoa por demais dada
levitações, chegando a levar consigo outras pessoas para o ar. a crendices e mistificações: a negra, era mesmo espiritada!
Santa Teresa d'Ávila também mereceu idêntico privilégio sobre- Outro sucesso ocorrido durante sua estada em São João
natural, permanecendo meiahora erguida a meio metro do solo. dei Rei muito reforçou a fé dos devotos na serva de Deus:
Acredite quem quiser! .
adoecendo em casa de um certo Simeão Ferreira de Carvalho,
O êxtase de Rosa presenciado pelo Sr, Arvelos não chegou deram falta, no oratório, da imagem do Menino Jesus. Após
a ser propriamente uma levitação: enquadra-se melhor na cate- buscarem-na por toda parte, foi miraculosamente encontrada
goria dos arrebatamentos, que, segundo o dicionarista Morais no peito de Rosa, que se achava deitada num leito. Viva Jesus!
equivale a "transportar-se em êxtase pela contemplação divina Milagres como este abundam na biografia dos santos, o
de maneira a perder o uso dos sentidos". mesmo tendo ocorrido com São Geraldo Magela (1726-1755),
A imagem do Crucificado, provavelmente em tamanho entre muitos outros. Alguns anos mais tarde, no recolhimento
natural, deveria estar dependurada na parede de alguma igreja que há de fundar, novamente a ex-prostituta será beneficiada
ou capela: Rosa, de joelhos, em oração profunda, de repente se pelo Menino Jesus, tornando-se então não só Mãe, mas também
atraca à cruz, unindo-se corpo a corpo com o Divino Esposo, Esposa do Divino Infante. Adorando-o sob variados títulos,
permanecendo neste íntimo colóquio até perder a fala. "Queren- certamente Rosa dava vazão a seus sentimentos maternais
do~arreb atar-me a alma, o Divino Esposo mandou-me cerrar as frustrados, posto não constai- na documentação qualquer alusão
portas da morada: perdi o fôlego, não pude absolutamente falar, a que tivesse alguma vez ela própria gerado um filho.
perdi os sentidos, esfriando-me as mãos e o corpo. O toque divino Após alguns meses de estada entre os Arvelos, começam a
produziu-me dor aguda, ao mesmo tempo saborosa e suave: uma surgir alguns problemas: seus frequentes "acidentes", quedas e

90 91
ataques provocavam a desconfiança nos estranhos, de que a do nas igrejas às pessoas que nelas estavam com menos
negra era, de duas uma: embusteira ou feiticeira. Daí ter sofrido decência e aos pecadores que eram públicos, para se emen-
as referidas "muitas perseguições". darem das suas culpas. E sempre continuou a repreender
São João dei Rei não tinha ainda quatro décadas de exis- e acometer algumas pessoas que estão nas igrejas com
tência quando Rosa aí chegou: possuía então por volta de 500 menor reverência, principalmente estando o Santíssimo
fogos, três igrejas, quatro capelas, três oratórios, uma cadeia, a exposto, porém quando isto sucede, a perturba o tal Demó-
casa da Câmara (que ostentava o pomposo nome de Paço do nio e a priva dos sentidos."
Conselho), e duas ruas principais: a Direita e a da Praioha. De
acordo com um morador contemporâneo a Rosa/o Sargento-mor Mais uma vez a ex-mulher da vida imita uma polémica
José Alvares de Oliveira, autor da "História do Distrito do Rio passagem da vida de Cristo: segue-lhe o exemplo quando expul-
das Mortes", datado de 1750, os sanjoanenses "são pessoas de sou violentamente os vendilhões da sinagoga, "não permitindo
tratamento grave, sem afetação, em tudo graves com civilida- que ninguém transportasse objeto algum pelo templo" (Marcos,
de". Saint-Hilaire, nos primórdios do século seguinte, dará 11:16). Um e outro —• o Nazareno e a Courana — pagaram caro
quadro ainda mais carrancudo desta população: "são pessoas por este zelo exagerado pela casa de Deus: afinal, quem outor-
muito reparadoras, grosseiras, sem educação, hostis aos foras- garapoderes a estamalucapara cuidar da disciplina e denunciar
teiros". Imagem tão diversa da cordialidade e mansidão dos os pecados alheios? Que moral tinha uma ex-mulher do fandan-
dois principais filhos de São João dei Rei do nosso século: go, para apontar os pecadores públicos?
Tancredo Neves e o cardeal Dom Lucas Moreira Neves. Nos Foi na Matriz de Nossa Senhora do Pilar que Rosa exacer-
séculos passados, talvez ainda estivessem muito presentes na bou a xenofobia dos sanjoanenses contra sua negra pessoa.
lembrança dos sanjoanenses os cruentos episódios da "guerra Também, escolhera local e momento impropriíssimos para "dar
dos Emboabas", daí a sisudez e gravidade com que se conduziam o santo". Em vez de encenar suas maluquices em capelas ou
tais moradores do Rio das Mortes. A presença na vila de uma oratórios mais humildes, escolheu logo "a maior e nobilíssima
africana, ex-mulher de ponta de rua, escrava, dada a frequentes matriz" da sede da comarca. Eis como o referido sargento-mor
ataques e maluquices, forasteira, devia causar inocultável mal- contemporâneo deste episódio descreveu este templo:
estar nos graves moradores da cabeça da comarca. Como Rosa
após sua conversão manifestou sempre grande atração pelos "O seu pavimento é guarnecido de perfeitas grades bem
templos e cerimónias litúrgicas, devia ir com frequência à sede torneadas, que formam o cruzeiro, e de duas coxias dentro
da vila, percorrendo as muitas capelas e igrejas como faziam as das quais ficam os altares todos. Tem dois púlpitos bem
beatas de antanho. Foi exatamenté numa dessas suas visitas à proporcionados, lugar a que têm subido famosíssimos en-
principal igreja local que aconteceu o clamoroso acidente causa- genhos e neste tempo sobe a ele nosso digníssimo vigário,
dor de sua prisão e início de sua via cruas. o Reverendo Dr. Matias António Salgado, licenciado em
Desde que o Malvado manifestou-se em seu corpo, a visio- Teologia, ilustre em Artes, b acharei formado em Cânones,
nária africana recebeu a excêntrica missão de ser a "zeladora vigário colado nesta matriz, oráculo dos púlpitos de Lisboa,
dos "templos". Eis o que podemos ler em sua confissão a este corifeu dos pregadores daquela Corte... Tem a matriz um
respeito: grande coro apanelado e com sua talha assentada sobre
três arcos abatidos que sustentam duae colunas e duas
"Lúcifer entrou declaradamente a vexá-la, repreend en- meias colunatas jónicas; cinge a igreja uma cimalha real
de ordem compósita e as suas paredes abraçam duas linhas

92 93
de ferrobem pintadas com pendurados de florões dourados.
A tudo isto cobrem a volta do teto da capela-mor e igreja
especiosas pinturas."

O Pilar era, sem sombra de dúvida, o maior, mais belo,


luxuoso e importante edifício de toda a comarca. Nos dias de
festa maior, o templo era pequeno para abrigar toda a nobreza,
*r clero e povo da vila e arredores. Nestas ocasiões, o ponto alto
T
das novenas, tríduos e missas solenes era o momento da homilia,
quando todas as atenções dos presentes voltavam-se para o
púlpito, onde o orador sacro arrebatava a atenção dos fiéis com
sermões ora eruditíssimos, entremeados de constantes citações
em latim, ou trocadilhos dos mais inusitados — como o célebre
."Sermão das Frutas do Brasil" (1702), de Frei António do Rosá-
rio, onde o sacro panegirista estabelece uma série de analogias
entre o abacaxi e Nossa Senhora! Ou então, apelando para o
emocionalismo, muitas vezes portava o pregador uma caveira
na mão enquanto anunciava o fim do mundo ou as terríveis
chamas do Inferno. O capuchinho Frei Tomás de Séstola tinha
o costume de pregar trazendo uma cor da no pescoço, uma grande
cruz nas costas, coroa de agudos espinhos na cabeça e na mão
uma caveira com coroa real, terminando os sermões se autofLa-
gelando. Apesar dos grandes dotes oratórios do Vigário do Pilar

i — o citado Padre Salgado —, vez por outra subiam aos púlpitos


deste templo pregadores visitantes, entre estes, franciscanos e

í
capuchinhos, que, apesar da proibição régia de estabelecerem
conventos naregiáo aurífera, nemporisso deixaram de percorrer
amiúde as Gerais, quer pregando -as Santas Missões, quer
fundando numerosas irmandades e ordens terceiras por diver-
sas vilas e povoados. E arrecadando boas patacas de ouro,
obviamente!
Já em 1733 o capuchinho Frei Jerônimo de Monte Reale
outorga o hábito da ordem franciscana concepcionista às religio-
Igrejá de Nossa Senhora do Pilar, em São João dei Rei, sas do Recolhimento de Macaúbas, o mais antigo instituto
onde no ano dê 1749 Eosa Egipcíaca, possuída pelo "Afecto" religioso feminino das Minas (1716); em 1743 instala-se em São
(demónio), interrompeu a pregação de um missionário capuchi- João dei Rei o Hospício da Terra Santa, destinado a arrecadar
nho, sendo levada para a cadeia por causa desta irreverência. esmolas para a manutenção do Santo Sepulcro e demais lugares

94 95


m
santificados onde viveu Nosso Senhor Jesus Cristo; emfevereiro em São João dei Rei, que a visionária, "quando via uma pessoa
de 1748, o Irmão Frei Vicente de São Bernardo, esmoler dos de vidairregularirpegarno Santo Cristo do altar, logo publicava
descalços, recebe da Câmara de São João dei Rei 30 oitavas de seus pecados ocultos, fazendo visagens que representavam a má
ouro; em abril, do mesmo ano é a vez de o missionário apostólico vida da pessoa". E completa: "por suas ficções e embustes fazia
l" Frei António do Extrema conceder favores e regalias aos irmãos capacitar a muita gente que seguia seus erros e a representava
li residentes na comarca do Rio das Mortes; em 1749, no mesmo por santa",
ano em que Rosa viveu em São João dei Rei, tem lugar a bênção Eis como-.o Padre Xota-Diabos descreveu este dramático
da primeira Capela de São Francisco de Assis, tomando posse a episódio: .
primeira Mesa Administrativa da Ordem Terceira Franciscana,
tendo como comissário o próprio vigário do Pilar, o Padre Matias "Primeiro advertia as pessoas que mostravam pouca
António Salgado; neste mesmo ano, os santos lugares de Jeru- veneração na igreja, e, se não obedeciam, avançava casti-
salém recebem da Câmara 12 oitavas de ouro. gando-as, até chegar ao ponto de rasgar-lhes a roupa, como
Talvez por ocasião destes dois eventos, ocorridos em 1749 aconteceu na Matriz de São João dei Rei, que pregando um
em São João dei Rei, tenha estado na vila o capuchinho Frei Luis barbadinho italiano, Frei Luis de Perúgia, morador no Rio
de Perúgia, que, como seus confrades de hábito, era muito de Janeiro, dizendo que os inimigos se perdoassem uns aos
requisitado pelos vigários & coadjutores das freguesias mineiras outros, senão seriam levados pelos demónios para o infer-
para pregar as Santas Missões, estratégia catequética muito no, aí Rosa. se levantou do lugar e disse em voz alta que ali
difundida por esta ordem religiosa, uma espécie de bombardeio estavam os demónios para levar para o inferno os que não
intensivo de religiosidade, onde os pecadores públicos eram queriam se perdoar. E caiu no chão como morta."
compulsivamente obrigados ao sacramento da Penitência, os
relapsos sacudidos de sua indiferença religiosa, os devotos for- Tal maluquice foi a gota d'água que as autoridades religio-
talecidos em suas práticas beatas. Muitos desses barbadinhos sas esperavam para cortar as asas desta ousada visionária.
italianos tinham-, antes de desembarcarem no Brasil, missiona- Pudera: emplenaMatriz do Pilar, com o templo cheio dafina-flor
do por longos anos no Reino do Congo e Angola, onde a Ordem da sociedade do Rio das Mortes, uma escrava africana tem a
possuía numerosas missões, daí a familiaridade destes frades ousadia de fazer apartes diabólicos ao pregador visitante, rou-
com a catequese da negr ada, tanto na África, quanto nas Minas, bando para si a atenção dos fiéis que, por direito, toda pertencia
onde a população de cor representava mais de três quartos dos aobarbadinho missionário. Oh céus! Assim também era demais.
seus moradores. Foi exatamente numa das pregações da "santa Caída no chão, a espiritada .deve ter obrigado o eloquente
missão" na Matriz do Pilar, que Rosa teve um de seus ataques. pregador a interromper sua homilia: os mais supersticiosos,
Aigreja devia estar apinhada de gente—do ouvidor à escravaria crendo ser o próprio Diabo quem falava, devem ter corrido de
— esta última, como era o costume tradicional, ocupando os perto dapossessa, causando burburinho no lugar sagrado. Aque-
últimos lugares do templo, permanecendo de joelhos ou de pé le não era o momento nem o local apropriado para realizar
atrás dos bancos, nos quais de um lado sentavam-se os brancos, exorcismes — e talvez o próprio Padre Salgado tivesse infor-
do outro, as brancas. mado ao pregador forâneo que a negra era dada a falsos aciden-
Quando Lúcifer apoderava-se da negra courana, obrigan- tes. Por isso, Rosa é sumariamente arrastada par a fora da igreja
do-a à missão de "zeladora dos templos", sua conduta tornava-se e trancafiada na Cadeia Pública. Aí "o Reverendo Dr. Vigário da
agressiva e anti-social: relatou o padre Filipe de Souza, morador Vara da comarca do Rio das Mortes mandou-a vir à sua presença
e lhe fez os exorcismes junto com outro sacerdote, e, depois disto,

96. 97
I
p
deu parte ao Exms Bispo de Mariana, que a mandou ir à sua
presença".
Visitando São João dei Rei em maio de 1987, após sair do
adro da Igreja do Pilar, procurei informar-me onde funcionava
a cadeia desta vila no ano de 1749, pois a atual "antiga cadeia"
Hilaire, que visitou a cadeia, descreve-a como prédio muito
baixo, de rés-do-chão. 'Vêem-se, segundo o hábito quase geral
em Minas Gerais, os presos nas grades das celas, conversando
com os transeuntes ou implorando caridade." A demora dê uma
semana entre a prisão e o despacho de Rosa deve ser explicada
adjunta à Ponte da Cadeia data. do tempo da Independência. certamente pela espera, por parte do vigário da vara de São João
Segundo informações gentilmente prestadas pelo emérito histo- dei Rei, de ordem do seu colega da comarca de Vila Rica, ou
riador sanjoanense, Professor Sebastião de Oliveira Cintra, mesmo do bispo de Mariana, autoridades eclesiásticas de onde
autor da obra Efemérides de São João dei Rei, é de 1737 a provinha a negra espiritada. Como desde há um ano o vigário
assinatura do contrato para a construção do prédio da cadeia, da Vara de Mariana j á tinha recebido queixas desta ex-mulher
constando de três enxovias fortes. Foi construída a menos de à-toa, ordenou que fosse transportada para a sede do bispado.
200 passos da matriz, na mesma calçada. Em 1741 "a câmara
resolve dar, anualmente, a quantia de seis oitavas de ouro, da
renda da cadeia, para a construção do património da Capela de
Nossa Senhora da Piedade e do Bom Despacho, que alguns Notas
devotos construíram em frente da cadeia, a fim de que os presos
pudessem assistir à missa aos domingos e dias santificados".
Até hoje conserva-se a dita capela; sua maravilhosa ima- 1. Cacciatore, Olga G. Dicionário de Cultos Afro-Brasileiros. Rio de
gem da Piedade foi transferida para o Museu de Arte Sacra, . Janeiro: Forense Universitária, 1977.
situado exatamente no mesmo local onde outrora existia a 2. Souza, L.M. Op. cit., 1982, p. 186.
cadeia. Foi com emoção qxie entrei neste edifício: uma casa térrea 3. Mott, Luiz. Etnodemonologia.,, Op. cit.
4. Cintra, Sebastião de Oliveira. Efemérides de São João dei Rei. Belo
com duas grandes portas nas extremidades e cinco janelões no
'. Horizonte: Imprensa Oficial, 1982, 2 v.
lugar onde antigamente deviam existir as referidas três enxo- SrBarreíros, E. Canabrava. As Vilas dei Rey e a Cidadania de Tira-
vias. Consultando o Dicionário Morais, somos informados de ~*dentes. Rio de Janeiro: José Olympio, 1976.
que "enxovia é a parte do cárcere que fica rente com a rua, ou 6. Cacciatore, O. G. Op. cif., p. 116.
abaixo de seu nível, escura, úmida e pouco saudável". Talvez 7. Lorenzatto, José. Parapsicologia e Religião. S. Paulo: Loyola, 1979.
uma ou duas das enxovias ficassem, de fato, rentes com a rua, 8. Jonquet, P. Sainte Lutgarde. Bruxelas: Jette Editeur, 1907, p. 62.
posto que das grades os presos podiam assistir à missa do outro 9.; .Oliveira, José Alvares. História do Distrito do Eio das Mortes em 1750.
lado da mesma, no Paço de Nossa Senhora da Piedade. Talvez — Revista do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, v. 54, pp.
uma das enxovias ficasse abaixo do nível da rua, faltando-lhe - -'372-391,1948.
luz solar e sobejando insalubridade. Não nos diz a documentação 10.. Saint-Hilaire, Auguste. Viagem pelo Distrito dos Diamantes e Litoral do
em qual dos cárceres Bosa foi trancafiada: o que sabemos com Brasil. São Paulo: Itatiaia-USP, 1974.
li! Primiero, Fidelis. Os Capuchinhos em Terra de Santa Cruz. São
certeza é que esteve presa por oito dias seguidos. Talvez tenha
Paulo: Livraria Martins, 1942, p. 123; Cintra, S.O. Op. cit.
tido tempo dê assistir,"da grade, a algum, ofício litúrgico, implo- 12. Cintra, Sebastião de Oliveira. Efemérides de São João dei Rei. Belo
rando, como os demais infelizes do aljube, que a Virgem da Horizonte: Imprensa Oficial, 1982, p. 160.
Piedade ou Nossa Senhora do Bom Despacho se apiedasse de
sua desgraça e despachasse rapidamente seu processo. Saint-

98 99
r"*

Açoifes no Pelourinho de Mariana

íf
De São João a Mariana são aproximadamente 24 léguas
-—• no mínimo quatro dias de caminhada a pé entre, morros e
desfiladeiros do Espinhaço. O caminho já era conhecido danegra
courana, pois passara pela mesma estrada quando viera há 16
anos do Rio de Janeiro, e no ano anterior à sua prisão percorrera
o mesmo "Caminho Velho" quando de Mariana partira em busca
de seu padrinho Xota-Diabos. Saindo de São João, caminhando
em média uma légua por hora, seis léguas por dia, após passar
por Lagoa Dourada, Carijós, Itaverava, Ouro Branco, Vila Rica,
Passagem, deve ter chegado em Mariana exausta com a cami-
V/) nhada a pé, suja de terra vermelha dos atalhos, os pés feridos
o nos pedregulhos. Deve ter ido algemada, com coleira de ferro no
Q pescoço, tal como era o costume de se transportarem prisioneiros
V de um aljube para outro, sempre vigiados por uma escolta de
O milicianos armados. Nesta época as Minas viviam em constantes
o
rJ ebulições de escravos, seja fugindo e organizando escondidos
quilombos, seja atacando transeuntes pelas estradas e picadas.
S
^
"Não se viam por todas as estradas da região senão cruzes que
a cada passo assinalavam as mortes e roubos nelas cometidos
por quadrilhas de negros e mulatos, destruindo e roubando
algumas fazendas consideráveis, com morte dos proprietários,
roubo e infâmia de suas famílias, mulheres e filhos." O temor i
V
do ataque de quilombolas ou assaltantes devia competir, na
mente da infeliz prisioneira, com a angústia do desconhecido,
pois certamente não tinha consciência do que poderia lhe acon-
tecer. Presa por ordem da maior autoridade eclesiástica da
comarca do Rio das Mortes — o vigário da Vara —, Rosa talvez
soubesse que nos arredores por onde morou em São João dei Rei,
assim como por algumas das vilas por onde passara, viviam
perigosos funcionários de outra temível instituição religiosa: os
familiares da Santa Inquisição.
ds Federal do Rio G. do Norte
101
i .J™
Deixemos Eosa mofando algum tempo no aljube de Maria-
na, enquanto fazemos um longo parêntesis para sumariamente Familiares do Santo Ofício Residentes emMbias Gerais
analisar a atuação da Inquisição nas Minas Gerais. Faltando
estudos sistemáticos sobre esta questão, somos forçados a apre- 1718 — 2
sentar apenas um panorama impressionista baseado em nossos 1727 ~ 1729 3
levantamentos na Torre do Tombo.
Não havendo Tribunal, do Santo Ofício no Brasil, duas 1730 — 1739 21
categorias de funcionários encarregavam-se de zelar pela fé e 1740 — 1749 35
bons costumes na América Portuguesa em. nome da Inquisição 1750.— 3.
de Lisboa: os comissários, sacerdotes geralmente doutorados em
Coimbra ou com outras titulações canónicas, que incumbiam-se Total 64
de denunciar e realizar inquirições e sumários contra os suspei-
tos; e os familiares, geralmente leigos, que, mediante compro- O aumento do número de comissários e familiares está em
vação da 'limpeza de sangue" e bons costumes, eram as pontas relação direta com o crescimento demográfico e económico da
de lança a serviço dos comissários, realizando as prisões ou mais i- ... região, pois quanto maior a densidade humana, mais oportuni-
diligências contra os faltosos. dades geralmente ocorrem de desvios na moral e ortodoxia
Descoberto o ouro em 1694, em 1709 a Metrópole cria a católicas, acrescido domaiorinteresseporparte dos inquisidores
Capitania de São Paulo e Minas Gerais, sendo de 1711 a criação L no sequestro dos bens de réus cheios de ouro, posto que o Santo
das três primeiras vilas mineiras: Ribeirão do Carmo, Vila Rica Ofício devia autofinanciar-se através da apropriação dos perten-
e Sabará'. Em 1713 é a vez da ereção do pelourinho em São João ces de'seus prisioneiros. Portanto, quando Rosa chegou nas
to dei Rei, e cinco anos depois, em 1718, já existiam quando menos Gerais, aí já existiam por volta de uma dezena de Familiares.
Entre sua conversão e "fuga" para o Rio de Janeiro (1748-1751),
dois familiares do Santo Ofício na região: João da Silva Guima-
rães e Oliveira, natural de Guimarães, "que vive de minerar com -talvez chegassem perto de uma centena. Muitos desses, em vez
seus escravos nas minas do Ouro Preto", e Manuel Dias de de irem jurar o Regimento de Familiar em Lisboa, preferiam
Araújo, natural de Monte'Alegre, capitão e vereador da Câmara receber a comenda das mãos de um comissário no Brasil, pro-
de São João dei Rei do Rio das Mortes. vavelmente no Rio de Janeiro, sendo 10 os oficiais habilitados
Com base nos processos de Habilitação do Santo Ofício em Minas entre 1718 e 1731 que assim procederam, 23 entre
arquivados na Torre do Tombo, localizamos os seguintes fami- 1734 e 1746, e 41, de 1747 a 1753,3 Acreditamos que poucos
liares vivendo nas Minas Gerais entre 1718-1753, cifra, aliás, foram os familiares desta região que se deslocarampara o Reino
que deve estar aquém, de seu número real: : • com este fim, pois, além dos gastos com a viagem, partir das
montanhas auríferas equivalia a deixar de descobrir o precioso
metal que abundante aflorava dos córregos e faisqueiras nestes
_meados do século XVIII: nas Minas, mais que noutras partes, o
tempo realmente valia ouro!
Ouro Preto, a maior concentração urbana das Gerais,
reunia também o maior número de familiares: 21, seguido por
São João dei Rei com 5, Sabará com 4 e Mariana com 3. Muito

102 103
JL
f
provavelmente estes números estão aquém da realidade, pois
não inchiem os oficiais cujos nomes começavam com letras desviantes da fé ou moral: de mais de quatro mil denúncias
posteriores a "M" — nomes que ainda não foram sistematizados registradas nas três inquisições do Reino contra sodomitas,
pelos arquivistas da Torre do Tombo. apenas 10% redundaram em prisão, sendo 30 os infelizes que
Se tomarmos como exemplo a vila de S ao João dei Rei, sede acabaram na fogueira pelo abominável pecado nefando de sodo-
da comarca do Rio das Mortes, veremos que, na mesma década mia; Se os inquisidores prendessem todos os delatados do Reino
em que Rosa viveu nesta região, provavelmente aí residiam e Ultramar, as prisões portuguesas não seriam suficientes para
quatro familiares: António Teixeira da Costa, José da Rocha abrigar tamanha população heterodoxa.
Antão, José Veloso Carmo e Manoel da Costa Gouveia. Este Fechamos o parêntesis relativo ao panorama inquisitorial
último exercia na época o cargo de capitão-mor da vila, tendo nas Minas pelos meados do século XVIII, e retornamos ao aljube
recebido sua carta e comenda de Familiar em 1743. onde a infeliz Rosa mofava à espera de que as autoridades
Quanto à presença de comissários, notários e qualificado- eclesiásticas do bispado de Mariana decidissem o que fazer com
l
res do Santo Ofício em Minas Gerais, localizamos um primeiro • esta negra ousada e pertinaz em fazer-se endemoniada.
comissário em 1733: Padre José Matias Gouveia, vigário de J. Lemos em seu processo que três dias depois de a prisioneira
Raposos do Sabará, seguido em 1739 pelo notário Padre João ter sido levada de São João para Mariana, preocupado, mas
Ferreira da Cruz, residente em Vila Rica. Desde 1748 exerce a cauteloso, o Padre Francisco, seu protetor, também parte para
comissaria,ein Mariana o Padre Geraldo José Abranches, futuro a sede do bispado, "ficando aquartelado no morro da Passagem,
titular a Visita do Santo Ofício do Grão-Pará, arcediago do a uma légua da cidade", a meio-caminho entre Vila Rica e
primeiro bispado mineiro; apartir de 1749 recebe a comenda de Mariana. "Aquartelado" deve ser entendido como sinónimo de
comissário o Padre Loureiiço José Queiroz Coimbra, vigário do "alojado", pois nem. Rosa nem o padre Xota-Diabos tinham
Sabará, todos portugueses natos, e cujos processos de habilita- sequazes suficientes, nem seriam temerários, de tentar libertar
ção encontram-se na Torre do Tombo. a negra do aljube onde estava trancafiada.
Portanto, embora os atos de feitiçaria, as blasfémias heré- - -"•-•' ^ Procuramos também em. Mariana onde seria a cadeia ern
ticas ou irreverentes, a suspeição de pacto com o demónio *" que Rosa esteve presa, posto que as enxovias existentes ao
constituíssem matéria pertencente ao conhecimento do Santo rés-do-chão da magnífica Casa da Câmara são posteriores a
Ofício, a não-interferência deste tribunal até agora na vida de 1784, concepção do Governador Luis da Cunha Menezes. Con-
Rosa deve ser explicada talvez por tratar-se de matéria consi- :_ sultando aqui e acolá as pessoas mais bem informadas sobre o
derada leve pelo casuísmo inquisitorial, que transferia para a passado desta "Altera Roma", como foi apelidada a decana das
alçada do bispo ou do vigário da Vara punir faltas menores cidades mineiras, consegui localizar o primitivo aljube de Ma-
envolvendo pessoas mais humildes, cujas condutas não chegas- riana onde esteve aprisionada nossa visionária: estava situado
sem a consubstanciar heresia oufeitiçariaformal. Temos notícia na travessa de São Francisco, na parte térrea do casarão onde
de muitas denúncias contramineiros inculpados em gravíssimas primeiramente viveu o bispo Dom Frei Manuel da Cruz, adjunto
blasfémias, desacatos graves contra as imagens sagradas, prá- aos fundos da Igreja de São Francisco. Aí funcionou pelo menos
tica de feitiçarias horripilantes, e nem por isto tais denúncias " o' aljube utilizado pela igreja, antes da construção do imponente
redundaram em ordem de prisão e processo contra os delinquen- "aljube dos padres", no rés-do-chão do cabido marianense, hoje
tes: a Inquisição estava muito mais preocupada com os hereges, abrigando o Museu de Arte Sacra.6 Tudo nos leva a crer que em
sobretudo com os judeus e cristãos-novos, do que com. os demais 1749, ano da prisão de nossa biografada, a casa térrea onde
funcionou a primeira câmara de Mariana, no morro de São

104'
105
•m*
§

P Gonçalo, não oferecia segurança para abrigar prisioneiros, daí


conjecturarmos que, debaixo do casarão que serviu para abrigar
• o recém-empossado bispo, funcionou por várias décadas o único
• aljube desta cidade. Como as demais prisões do Brasil-Colônia,
a insalubridade devia alquebrar a saúde, mesmo dos mais
resistentes, provocando, pela falta de luz e higiene, diversas
dermatoses nos infelizes prisioneiros, agravando os achaques
dos que já vinham debilitados com doenças crónicas, como era
o caso de Eosa, portadora de dolorido tumor no ventre e sujeita
a. frequentes ataques de tipo epileptóide.
Neste cárcere nossa preta tem a graça de merecer o consolo
celestial. Eis suas palavras:

"Estando fechada em. uma casinha do aljube, acordando


de manhã viu umreligioso franciscano que se representava
com 30 anos de idade, e que parecia muito pulcro, com. um
rolo aceso na mão e lhe disse que a queria exorcizar. E
estando ela, ré, sentindo no seu coração alegria de ver
aquela figura, lhe tornou a dizer que se chegasse para ele.
E indo com efeito essa mesma figura se aproximando para
P ela, chamou pela gente da casa onde estava, e desapareceu
*
IV:
aquela visão, estando as portas fechadas."

A lembrança-imagem do frade capuchinho pregando em . _JL Antiga cadeia de São João dei Rei (hoje Museu de Arte Sacra), onde
São João dei Rei devia conservar-se forte em seu inconsciente. Rosa Egipcíaca esteve presa em castigo por seu desacato ao Pregador na
Ao narrar este mesmo episódio aos inquisidores lisboetas, _Igreja,_de Nossa Senhora do Pilar , no ano de 1749.
dá uma versão levemente modificada, o que nos permite pensar
até numa segunda aparição na mesma cadeia: contou ter ouvido
'Soma voz que dizia: 'Dispõe-te para padecer pelo meu amor,
lembrando-te daquele amante coração com que me dispus a
padecer pelos filhos de Adão. E, calada a dita voz, ficou ela, ré,
entendendo pelas palavras o que lhe falava o Senhor".
Na manhã,do mesmo, dia Rosa. vai sofrer a maior, dor de
toda sua vida: "por sentença que teve sobre suas culpas, foi
levada em uma corrente ao pescoço para o lugar em que estava
umposte, aonde a ataram, e dois pretos lhe derammuitos açoites
para que dissesse que não era vexada".
Quer dizer: suas culpas — as que no ano anterior tinham

106 107
ra:
sido denunciadas pelo vigário do Infíccionado ao vigário da Vara
de Mariana e estas últimas relatadas pela autoridade eclesiás-
tica de São João dei Rei — foram julgadas e receberam sentença
de açoites em. praça pública, tal qual previam as Constituições
contra as pessoas inferiores incapacitadas do pagamento de
multas pecuniárias.
Por mais consolo antecipado que tenha recebido nas visões
do santo franciscano e do próprio Cristo, por maior abnegação
que existisse em seu angustiado coração de convertida para tudo
aguentar por amor do Crucificado, os açoites aplicados em seu
corpo devem ter sido tantos e tão insuportavelmente doloridos,
que "ficou, tão maltratada que ainda hoje — 15 anos depois! —
!í- se achalesadapartedireitado corpo". (Leso: ofendido por doença
II ou golpe, o mesmo que paralítico.)
A inaudita violência nos castigos contra a escravaria em
Minas Gerais tinha o respaldo da lei: os proprietários podiam
cortar a orelha dos fujões, marcar-lhes o rosto com ferro quente,
e até cortar-lhes o tendão do calcanhar chegou a ser praticado.
Em 1722, nesta mesma localidade onde Rosa foi açoitada, o juiz
de fora local dava conta a Dom João V que, para castigar uns
negros bandoleiros que haviam furtado um rico viajante, man-
dou açoitar os culpados no pelourinho por nove dias seguidos,
para servir de intimidação às gentes de cor. A dor dos acoites *
repetidos em cima de feridas sangradas na véspera é difícil de
ser imaginada por quem nunca foi flagelado até escorrer o *
sangue. \
Provavelmente foi neste mesmo pelourinho referido pelo
juiz de fora de Mariana que Rosa foi açoitada: também aí, outra s
dúvida, pois o atual pelourinho desta cidade, situado no meio da
praça defronte da Câmara e contíguo às igrejas de São Francisco •
0
e Nossa Senhora do Carmo, só deve ter sido implantado quando
dainauguração dareferida edilidade, no último quartel do século
XVIII, ou talvez, em data posterior
Fotografias dos fins da centúria passada mostram que na
praça da Sé existia um pelourinho, e apesar de considerarmos
lugar inadequado par a sangrar faltosos, bem defronte das portas
da catedral, talvez tenham escolhido exatamente o local mais
Igreja do Carmo, em Mariana, Minas Gerais.

108 109
central da cidade
cor.
Bestam ainda hoje de pé três grandes pelourinhos em
Minais Gerais: o de Vila Rica, o maior em circunferência, não
passa; de uma coluna estriada onde eram amarrados os réus; o
de SãoíJoão dei Rei segue mutatis mutandis o mesmo modelo do
de Mariana: uma base retangular de metro e meio de altura, em
cima-da qual está fincada uma coluna de pedra com os símbolos
da justiça ou da edilidade. O mais completo e.trabalhado é o de
Mariatía, certamente o exemplar mais bem conservado em todo
õTSràsil, posto que o Pelourinho de Salvador atualmente designa
apenas uma área no centro histórico, sem qualquer vestígio
_de_sta:coluna de torturas, e em Alcântara, onde ainda conserva-se
de pèroj último pelourinho do Maranhão, seu estado é precarís-

i•
» "~simo, corroída a pedra pela ação da maresia.
Se o atual pelourinho de Mariana é o mesmo em que Rosa
sofreu os açoites, ou cópia fiel do original, seu suplício deve ter
* se passado, conforme relato seu, após ter sido levada com uma
corrente 110 pescoço e atada num poste. .A^ corrente no pescoço,
do- aljube até o pelourinhq._tmha_rnuito mais função dehunTrIhar
'o deh^qúente-do_queJnapedir-sua-fag.a^sifvindo de lição para
. _o&curioses-qu'e-emrgrande~núrner^_a^orriam. para estas execu-
'^ coes.. O pelourinho de Mariana é o único que ainda conserva uma
—corrente com duas argolas onde deviam ser amarradas as mãos
dos .supliciados.

f*m*
_^ Com as mãos e o pescoço acorrentados a esta argola, tendo
-~as- costas e pernas nuas, talvez apenas um pedaço de pano
^escondesse as nádegas e partes pudendas da visionária.

Pelourinho de Mariana, onde Eosa foi açoitada em 1740. j "Amarrado o paciente ao poste do sofrimento, lida a
•sentença, dava-se o sinal ao homem do açoite. E logo, para
abafar os gritos do castigado, entravam os tambores a
»*M*n^~
--- rufar. E rufavam durante todo o tempo do castigo. Já a
multidão cercava o pequeno patíbulo. O ruído do tambor
servia de anúncio para o espetáculo gratuito. Vinha che-
- gando gente de toda a parte. . ."
"O bacalhau (chicote de relho para açoitar escravos)

110
111
comia o lombo do negro, a carne estufando, rasgando em Ninguém presenciou nada de anormal nesta tortura, a não
lanhos, abrindo sulcos profundos, mais parecendo biquei- ser a própria ré, que, alguns anos mais tarde, contava no Rio de
ras de sangue. O negro gemendo, bufando, estrebuchando, Janeiro que "fora açoitada por dois verdugos nas Minas Gerais,
chorando, apelando desesperadamente aos santos de sua mas assistiram-na dois anjos, igual sucedera com Nosso Senhor
predilecão por um milagre. Talvez chorando por dentro, o na sua paixão, querendo o mesmo Senhor que ela experimen-
pranto brotando no coração e escorrendo abundante na tasse as mesmas penas que ele".
alma. O braço do carrasco sobe e desce no lepo-lepo ritmado Rosa aguentou firme a. tortura: preferiu sofrer dezenas e
da surra. Os carrascos oficiais, aqueles que surravam os dezenas de lambadas a arrenegar seu Espírito, e declarar-se
escravos publicamente, eles mesmos se encarregavam de embusteira. "Estando quase morta,' lhe acudiu um homem que
l fabricar os chicotes a seu jeito, cómodos, equilibrados e a tinha conduzido do Rio da Mortes." Tudo nos leva a crer que
resistentes. O instrumento via de regra se constituía de esse segundo Simão Cirineu (o magnânimo devoto que ajudou
l
um cabo de madeira medindo um pé de comprimento, do Cristo a carregar sua cruz) foi o português Pedro Róis Arvelos,
3j qual saíam tiras de couro cru, às vezes retorcidas, às vezes em casa de quem nossa visionária hospedara-se durante os
enodadas, tiras que podiam somar até sete ou oito. Quanto primeiros meses de 1749. Não é de todo impossível que este
I; mais ressequido o couro, mais as tiras maltratavam as devoto e abnegado senhor tenhamesmo acompanhado, por conta
carnes do supliciado, e, sendo este o objetivo maior do própria, a milícia que trouxe Rosa de São João dei Rei para
castigo, tão logo começam as tiras a amolecer, embatidas Mariana, pois a, negra diz ter sido ele que a conduziu do Rio das
no sangue da vítima, o carrasco substitui o chicote usado Mortes.
l por outro que para tanto há um estoque deles à mão." O deplorável estado físico de Rosa após os açoites devia
l causar dó e piedade a qualquer ser humano, sobretudo àqueles
Não encontrei em nenhum documento ou livro referência seus devotos que a reputavam santa e viam neste castigo grave
a outra mulher chicoteada em praça pública: consultando os injustiça contra pessoa inocente e virtuosa. Suas costas e náde-
historiadores Kátia Mattoso, João Reis, Ronaldo Vainfas, entre tjssse..: gas deviam estar em carne viva, com profundos cortes provoca-
outros, tampouco lembravam-se de qualquer alusão a que es- dos pela chibata. Quanto sangue não terá perdido? Divulgamos
cravas fossem assim castigadas num pelourinho. alhures a notícia de uma escrava na Bahia que chegou a perder
Laura de Mello e Souza, contudo, encontrou num Livro de "meio pote de sangue" em decorrência dos mesmos açoites. O
f
111
Devassas da Cúria de Mariana (1767-1777) uma feiticeira negra
forra, Luzia Lopes, que "chegou a ser chicoteada por suas
certo é que Rosa, "estando quase morta", foi socorrida por seu
devoto protetor, o Sr. Arvelos, que levou-a da praça pública,
práticas escusas em Conceição do Mato Dentro", a mesma talvez da praça da Sé, onde devia estar prostrada numa poça de
localidade em que o Presidente Sarney, em 1988, foi venerar o sangue — sangue que comumente era disputado por cães esfo-
Santuário do Bom Jesus nas comemorações de seu bicentenário meados —, até o local onde sorrateiramente se aquartelara o
de fundação. Padre Francisco, na Passagem do arraial de Padre Faria, a uma
O suplício de Rosa deve ter atraído.muitos curiosos não só légua de Mariana. Pelo seu péssimo estado físico, Rosa deve ter
pelo insólito de seu sexo, como por conhecerem seus acidentes e sido transportada ou em carro de boi, ou numa rede, deitada de
maluquices místicas, alguns quiçá esperando presenciar fenó- bruços, tendo gasto quatro meses para convalescer-se deste cruel
menos sobrenaturais, seja por força divina, seja pelos poderes suplício. SeuJladcLdir_eit.o,._contud^J^cAXá,p,araj5ern.T3r,e leso, isto
. infernais. é, paralisado.

112 113
Mais tarde, num escrito dado a Dona Teresa Arvelos, Rosa
disse que "os cristãos da Comarca das Minas lhe tinham descar-
regado tantos golpes de bofetadas sobre seu rosto que não eram
menos rigorosas que as que deram em Jesus Cristo na presença
de Anás..." Pobre criatura, que pelo visto antes de ser açoitada
em praça pública, do mesmo modo como acontecera com. Cristo,
sofreu rigorosa sessão de pancadarias e bofetadas..
Dizem algumas testemunhas que o bispo Dom Manuel da
Cruz mandara-a açoitar "por julgar fingimento sua vexação": tal
decisão, conforme já antecipamos, respaldava-se nas Constitui-
ções do Arcebispado da Bahia, válidas para toda a Colónia, que
prescrevia penas corporais às pessoas plebeias suspeitas de
feitiçaria, enquanto os clérigos ou nobres envolvidos com diabo-
lismos deviam ser taxados com multas ou degredo (§896-898).
Quem era este bispo?
Fazia pouco tempo que Dom Frei Manuel da Cruz tinha
chegado em Mariana. Como tantos outros reinóis vivendo nas
Minas, também ele era natural do bispado do Porto, nascido em
1690, quatro anos mais velho, portanto, que o Padre Xota-Dia-
bos. Seus parentes, da Casa do Carvalhal, eram membros da
nobreza lusitana e,.tão logo é ordenado sacerdote, escolhem-no
mestre dos noviços do famoso convento de Alcobaça e abade do
Colégio de Coimbra. Em 1738 é nomeado sexto bispo de São Luís
do Maranhão, permanecendo na "cidade dos azulejos" até 1747,
quando parte por via terrestre para as Minas Gerais, para
instalar e tomar posse da novel prelazia de Mariana. No Mara- Retrato de D. Frei Manuel da Cruz, Bispo de
nhão deixou fama de bom prelado, realizando visitas pastorais, Mariana, o qual ordenou que Rosa Egipcíaca fosse
disciplinando o clero, ordenando 81 sacerdotes. A viagem demo- açoitada no Pelourinho, acusada de embusteira. (Ori-
rou 13 meses, durante os quais o intrépido prelado foi sangrado ginal no Museu de Arte Sacra de Mariana, Minas
seis vezes e teve dois gravíssimos acidentes fluviais, chegando Gerais.)
sua comitiva desfalcada de alguns participantes que faleceram,
entre o Piauí e Minas Gerais.
Outubro _de 1748j._toda-a. cidade,, comarca e, -por que não
dizer, toda a Capitania das Minas acotovelavam-se em Mariana
para homenagear seu primeiro pastor. Milhares de pessoas de
todas as cores e classes reúnem-se nas imediações da Catedral
de Nossa Senhora da Assunção para assistir ao "Áureo Trono

115
114
Episcopal", a representação litúrgica-teatral mais'grandiosa indelével o fausto de tal evento, sempre associando Mariana com
jamais ocorrida nesta cidade — só superada pelo "Triunfo Eu- Roma, ambas possuidoras de sete colinas em sua circunferência:
carístico" realizado em Vila Rica 1"5 anos antes—, coincidente-
mente, no mesmo ano da chegada de Rosa na região. O "Áureo Misteriosa cidade que adornada
Trono Episcopal" foi uma superprocissão em que o gosto barroco Aqueloutra imitais do céu descendo
aliado à riqueza aurífera deram asas aos mais exóticos arranjos Se aquela foi de Deus trono aclamada
a fim de transladar e homenagear o recém-chegado antístite, Vós de Maria o sois, se está dizendo
entronizando-o em sua catedral-basflica. Entre outros figuran- De luzes já não mais necessitada
tes deste cortejo, havia umaprofusão de pajens mulatos vestidos Que um novo sol em vós estamos vendo-...
com. muita seda, fitas multicoloridas, bordados de ouro e pedra-
ria que formavam extravagante séquito abrindo alas para dar DomFreiManuel, obviamente, é o novo sol das Minas: seus
passagem ao purpúreo bispo bernardino que vinha garbosamen- contemporâneos descrevem-no como homem "de muita modera-
te montado num cavalo branco coberto de damasco da mesma ção, prudência e acerto", sendo motivo de satisfação geral para
cor. Atrás do pastor, outro bando de mais 11 mulatinhos em todos. O Governador Gomes Freire de Andrade, homem de
!t idade juvenil, nus da cintura para cima, com espalhafatosas reconhecida piedade, caracterizou o cistersiense como sendo
tangas de plumas e cocares coloridos, onde não faltavam guizos, "cheio de bondade que lhe chega a ser prejudicial", chegando a
fitas e bugigangas, tudo acompanhado do som de tamboril, acusá-lo de ser "em demasia crédulo". Seu selo e armas episco-
flautas e pífanos "que, na grosseria natural dos gestos, excita- pais relativizam sua docilidade: escolheu como símbolo de seu
vam motivo de grande jocosidade". As ruas estavam cobertas episcopado uma serpente com a cauda na boca, certamente
com areia, espadana e flores. Entre as várias alegorias desta representando o ensinamento de Cristo quando disse a seus
solene procissão, havia um carro enfeitado, puxado a cavalos, discípulos que fossem "prudentes como as serpentes mas tam-
onde via-se um enorme coração do qual saíam vários fios de bém simples como as pombas" (Mateus, 10:16). A forma como
canotilho de prata com os dizeres: VirtusExíbit. Ànoite, grandes "mandou prender ignominiosamente com cordas e tormento de
luminárias demonstravam a opulência dos marianenses que não negros e mulatos" ao Padre João Álvares da Costa, em 1752,
economizaram gastos para, homenagear principescamente seu então vigário da Igreja de Mato Dentro, reforça nossa impressão
primeiro prelado. de que o melífluo Dom Manuel às vezes agia mais com humor
Além de vários cónegos e religiosos do Rio de Janeiro, todo viperino do que pombalino.
o clero e nobreza das Minas marcaram presença nas cerimónias. Também em Minas, como fizera no Maranhão, procurou
"Não havia pessoa de todos os estados e condição, ainda servil, moralizar o clero, aqui ainda mais devasso, ganancioso e irreli-
que não desejasse ver o bispo no seu trono e por isso, em todas gioso do que nas capitanias setentrionais: proibiu que os padres
as paróquias da recém-criada diocese, se fizeram novenas, algu- andassem à noite pelas ruas, punindo os que celebrassem missa
mas com tríduos de missas cantadas." Se só no morro de Santa- de chinelas ou sem a batina. Entre 1749 & 1764- — ano de sua
na, nos arredores de Mariana, calculava-se existirem por volta morte — ordenou 227 presbíteros, deixando boa parte de seus
de 5 mil cativos, imaginemos a quantidade de gente que desceu bens arrolados num testamento para serem usados em 2.900
à sede episcopal para admirar festa tão inusitada! Os homens missas por sua eterna paz, dando outro tanto de ouro para os
de letras colocaram toda sua erudição para saudar e deixar pobres e demais obras pias. Entre suas pastorais, introduziu e
estimulou com muitas indulgências a prática da oração mental,
novo exercício pio que será grande moda nesta centúria e que

116 117
desempenhará enorme influência na espiritualidade de Madre
Rosa Egipcíaca; introduziu nas Minas a devoção aos Sagrados saber o que tinha aquele monte. Logo porém que saiu de casa,
Corações de Jesus, Maria e José, exercendo da mesma forma viu diante de si. uma cruz que prosseguia o mesmo caminho, sem
influência indelével na mística de nossa biografada; estimulou ver quem a levava, a qual cruz era de pedra muito cristalina,
a devoção ao venerável Padre José de Anchieta, até hoje com alta, com uma toalha sobre os braços, e que desapareceu tanto
seu processo de canonização arrastando-se pela burocracia ro- que chegou perto do dito monte". Tal cruz serviu-lhe como uma
mana. Teve algumas disputas f amos as, com seu cabido, liderado espécie de estrela guia, como o cometa que orientou os Reis
pelo Arcediago Geraldo José Abranches (que alguns anos mais Magos na procura do presépio de Belém. Rosa imita Moisés,
tarde há de se reconciliar com o bispo), com alguns vigários quando irresistivelmente dirigiu-se ao Sinai. Contudo, ela não
afeitos às simonias, ou ainda com autoridades judiciárias que foi sozinha nesta peregrinação: fez-se acompanhar de outra
insistiam em entrar na seara eclesiástica. Foi grande amigo dos preta "que também tinha espírito maligno, chamada Joana, e
jesuítas, particularmente do Padre Gabriel Malagrida, o maior de Pedro Rodrigues Durão".
taumaturgo do Brasil setecentista, ambos grandes devotos do Pelo visto, a família Rodrigues Durão era composta de pelo
Coração de Jesus. Em seu recém-inaugurado Seminário de menos três irmãos, pois, além de Paulo Rodrigues Durão, o pai
Mariana, foram jesuítas os primeiros professores de Teologia. do literato agostiniano, encontramos no Arquivo da Cúria de
Foi, portanto, a menos de um ano de sua posse que Dom Mariana referência a José Rodrigues Durão, morador no Infic-
Frei Manuel da Cruz manda flagelar nossa negra espiritada. Já cionado, e agora Rosa nomeia Pedro Rodrigues Durão, seu
tinha dez anos de Brasil e, no Maranhão, aprendera que uma acompanhante na busca da "montanha sagrada". Talvez, se não
centena de açoites no lombo dos suspeitos de crimes religiosos, toda a família onde primeiro a visionária morou, pelo menos
ou desmascarava embustes, ou fazia calar os mais tagarelas. alguns membros, como este Pedro, fossem devotos da negra
Enganou-se, contudo, no caso de Rosa: tão logo recupera-se do courana, tanto que arriscaram-se • a acompanhá-la nos seus
tormento, mal cicatrizam-se as feridas, reinicia sua vidamística. delírios místicos poucos meses após ter sido publicamente cas-
Um detalhe merece contudo ser lembrado: como não ficava bem tigada por ordem da Igreja.
à Igreja de Cristo encarregar-se da aplicação de penas corporais Desaparecendo do céu a misteriosa'cruz, a vidente enten-
em delinquentes religiosos,\da mesma forma como os Inquisido- deu que era aquele o lugar predestinado que a magnetizava,
res entregavam seus condenados à justiça secular para serem tanto que ali "acharam uma pedra grande, com uma cruz nela
executados, também o bispo confiou nossa ré ao juiz de fora de lavrada, debaixo de cujos braços nascia uma fonte: "era uma
Mariana, dando-lhe a sentença dos açoites, mas encarregando cruz perfeita que não parecia obra da natureza", revelou a
este último dos detalhes do castigo. Portanto, foi a justiça civil, vidente.
Voltaram para casa admirados com a tal cruz esculpida na
por ordem da eclesiástica, que se responsabilizou de flagelar a
negra courana. Santa hipocrisia! pedra, pois embora a fonte já fosse conhecida do povo "a cruz
ninguém mais nunca tinha visto naquele lugar". Milagre, por-
Após restabelecer-se do suplício dos açoites, Rosa diz ter
tanto.
ficado intrigada em constatar um impulso incontrolável que a
Nesta época Rosa albergava-se em casa de uma fiel devota,
obrigava, sempre que rezava, a ter seu corpo voltado para um
Dona Escolástica, mulher de um tal Francisco da Motta. Na
alto morro distante quatro léguas da cidade de Mariana. Tão
noite seguinte a esta peregrinação, levantando-se
logo sentiu-se suficientemente forte, empreendeu um dia de
caminhada à procura daquele local, "por conservar o desejo de
"viuna cabeceira de sua camaumpainel de Nossa Senhora

118
119
num quadro redondo, que ali se não tinha posto, e dentro mesma noite Rosa ouvira uma alma gemer dizendo "que era de
dele estava a imagem de Nossa Senhora da Conceição com certa geração, não declinando o nome", e, no dia seguinte, a
as mãos levantadas, porém não parecia pintura nem ima- vidente arrecadoii esmola e mandou celebrar uma missa pela
gem, por que se lhe representou viva com carne e cabelos dita alma penada. O medo do purgatório e as aparições de almas
naturais, e, vendo ela isto, chamou a parda Ana, escrava eram verdadeira obsessão nos tempos era que a Igreja vivia de
da mesma Dona Escolástica para vir ver também. E, vindo vender bulas e indulgências capazes de sufragar os infelizes
esta, não viu coisa alguma. E desapareceu aquela visão. E chamuscados pelas labaredas "daquele lugar médio, entre o
logo ouviu uma voz que lhe disse: 'No morro do Fraga se paraíso e o inferno, que se chama purgatório, isto é, -um lugar
ha de fazer um suntuoso templo dedicado a Santana e a onde se é purificado dos pecados veniais e das penas devidas a
agua que corria (daquela fonte) há de ser medicina para estes pecados, lugar onde queima um fogo verdadeiro, corpóreo
todas as enfermidades."' —. e não unicamente metafórico —, que queima as almas sem
as consumir".
Em Lisboa, frente aos inquisidores, Rosa modificou leve- Ao menos em parte, contudo, a profecia revelada a Rosa
mente a mensagem recebida: a voz mandou-a "dizer ao Padre estava dando certo, pois "com efeito, com a tal água lavaram
Confessor que diga a João Gonçalves Fraga que, no lugar do alguns enfermos e tinha essa água tal virtude que dela se
monte em que se achou a cruz, quero uma ermida de Nossa afugentavam as pessoas vexadas e não podiam chegar-se ao
Senhora da Piedade e casa para irem curar os enfermos". Fica regatozinho da mesma água". Passaram, a partir daí, a chamar
a duvida: ou embaralhou as visões, ou foram dois desígnios tal água de "lágrimas de Nossa Senhora da Piedade". Salus
diversos, um templo para Santana, outro para a Piedade. Alguns infírmorum, ora pró nobis!
anos mais tarde, em 1767, nas vizinhanças de Caete, o carmelita Uma contingência de somenos importância impediu que
terceiro, António da SilvaBarcarena, construirá a 1.800 metros também Minas tivesse sua fonte milagrosa, como sucederá em
de altura a Ermida de Nossa Senhora da Piedade, ainda hoje Lourdes no século XIX após as visões de Santa Bernadette
famosa por suas romarias. A coincidência de duas pessoas, a Soubirous (1844-1879), tornando-se Tim dos principais centros
poucas léguas de distância, com espago de 15 anos entre um e de peregrinação da cristandade: "participando Rosa tal revela-
outro aspn-arem pelo mesmo projeto piedoso revela o quão ção a seu"confessor, o Padre Francisco, como o dito padre estava
popular era a devoção a Pietá nas montanhas de Minas nos diferente com o sobredito João Gonçalves Fraga, não lhe disse
primórdios de sua colonização: ainda hoje aí existem 13 vilas e o referido nem se fez o que a Senhora tinha mandado". Hoje o
cidades cujos nomes invocam a Piedade, a maior parte delas morro do Fraga só existe pela metade, pois uma voraz companhia
criada no setecentos. O culto a tal virgem, sempre representada de mineração já desbarrancou todo o seu topo. Visitando-o, na
com seu precioso fffiio morto no colo, ou de pé no oitão da cruz, estrada que leva do Inficcionado ao arraial de Bento Rodrigues,
traz invariavelmente estampado no peito rubro coração trespas- encontrei perto de um deli cioso riacho, no meio de outro morrote,
sado por sete punhais, representando as sete dores que Maria uma capelinha colonial, branca, com duas janelas e.uma porta
Santíssima sentiu durante sua vida terrena. Antes mesmo da azul. Perguntando a um caminhante que capela era aquela, "de
vulgarização nestas bandas do culto aos Sagrados Corações de Nossa Senhora da Piedade", me respondeu. "Louvado seja
Jesus eMaria, afigura do coração de Nossa Senhora trespassado Deus!", pensei contente, imaginando que talvez algum devoto
fazia parte do imaginário popular de toda a cristandade de Rosa tenha realizado seu vaticínio. Banhei-me no riacho com
Outro informante, morador em Mariana, dirá que nesta emoção igual à de um crente chegando a Lourdes. No arraial,

120 121
ninguém soube me contar a história desta capelinha. Nem Santana e a Sagrada Família serão sempre uma obsessão
sequer pude visitá-la, pois, temendo os frequentes roubos de no imaginário desta negrinha que perdeu todos os laços de
imagens antigas, os moradores mantêm-na fechada constante- parentesco aos 6 anos de idade, quando foi jogada no porão do
mente. Outra coincidência, esta não muito virtuosa: entre as navio negreiro que da Costa do Judá trouxe-a para a Baía da
denúncias registradas no "Caderno Novo do Promotor" da In- Guanabara. Papai do Céu, Mamãe do Céu, Vovó e Vovô do Céu
quisição de Lisboa, encontrei, outra vez, referência exatamente tornaram-se a família da africana: os santos, os anjos, o Divino
a este local da visão de Rosa, só que três décadas depois: "Diz Espírito Santo, seu clã e linhagem. Santana, suapredileção. Já
Manoel Furtado Rosa que na estrada do Inficcionado a Bento em São João dei Rei, nossa visionária, aproveitando-se da exis-
Rodrigues, numa picada, encontraram a Felipe de Moura com tência de um regato d'água que corria ao lado das casas do Padre
atos indecentes por trás com a sua própria mulher." E completa Xota-Diábos, em stm chácara do Rio Abaixo, portanto no mesmo
o abelhudo indiscreto ter apresentado tal denúncia "para desen- bairro rural onde viviam os Arvelos, chamou a esta água "Fonte
cargo de sua consciência". Que a Virgem da Piedade se apiede de Santana", profetizando que "seriaremédiouniversal com suas
de casal tão despudorado! águas para todas as doenças". Não há informação de curas
Além da devoção a Nossa Senhora da Piedade, outra operadas por sua intercessão.
constante na mística da visionária africana é o culto à avó de Por esta época, após a convalescença dos açoites, além. das
Cristo, Santana, a virtuosa esposa de São Joaquim e mestra de revelações relativas ao Morro do Fraga, Rosa continuará a ser
Maria Virgem. Por esta época a Senhora Santana gozava de atormentada pelo mesmo espírito, embora com menos estarda-
tanta veneração nas Gerais, que em seu nome se erigiram dez lhaço: evitará desassossegar os fiéis nas igrejas, pois fora este
igrejas e capelas somente entre 1736 e 1760.20 Em Mariana, zelo excessivo e intempestivo o causador de sua prisão e tormen-
desde 1712 existia a Capela de Santana do Morro, cuja festa se tos. "Gato escaldado tem medo de água fria", diz o brocardo
comemora até hoje aos 26 de julho. Desde 1725 levantou-se a popular. As cicatrizes dos açoites estavam sempre a lembrar-lhe
Igreja de Santana de Baixo, provavelmente visitada muitas os tormentos do pelourinho.
vezes por Rosa, posto que a negra será devotíssima da avó de
Cristo, divulgando inclusive um rosário inventado por ela pró- "Continuando nos acidentes e aflições que a oprimiam,
pria, em sua homenagem/ Talvez a decoração barroca desta como estes só se suspendiam com os preceitos da Igreja,
capela lhe tenha inspirado o visual rococó de uma de suas pediu ao dito seu confessor que lhos pusesse, o que ele
revelações já referida. Eis como o autor de Mariana e seus repugnou por se lhe ter acabado a licença, dizendo que,
Templos descreve este retábulo: ainda que tivesse de morrer, não lhos haveria de pôr,
porque todo o povo dizia que ela era uma fingida e não
"O altar-mor da Capela de Santana é cercado de ornatos verdadeira enferma."
caprichosos, anjos, serafins papudos e anêmicos, em dois .
nichos protegidos por dóceis. São Francisco de Paula, com Malgrado todo sacerdote ter recebido a Ordem do Exorcis-
_ hábito dourado, e São Francisco de Assis, com uma caveira mo, carecia já nesta época licença do Ordinário para o exercício
na mão esquerda, ladeiam a Virgem, que tem aos pés as deste ministério, concedido por tempo fixo e limitado, renovado
imagens de Santo António e São Joaquim. No centro, mediante exame do sacerdote por autoridade eclesiástica; daí a
.. imponente imagem de Santana com o livro aberto sobre os recusa do Padre Xota-Diabos em exorcizá-la com sua licença
, joelhos, na atitude de primeira das mestras." expirada. Na relação dos 435 sacerdotes existentes no bispado
de Mariana quando da posse de seu primeiro antístete em 1748,

122 123
constava o nome do Padre Francisco Gonçalves Lopes, seguido 9. Luiz Edmundo. O Rio de Janeiro no Tempo dos Vice-Reis. Rio de
da observação "com. uso de ordens". Foi este, até o presente, o Janeiro: Athena, s/d., p. 461.
único documento que conseguimos localizar em Minas Gerais, 10. Goulart, Maurício. Da Palmatória ao Patíbulo. Rio de Janeiro:
relativamente a este sacerdote: nem nos livros paroqmais de Conquista, 1971, p. 86.
São Caetano, onde foi coadjutor) nem nos livros de devassas do 11. Souza, L. M. Op. cit., 1982, p. 185.
12. Mott, Luiz. Terror na Casa da Torre. In: Reis, João José. Escravidão
Arquivo de Maxiana, encontramos qualquer referência, a seu e a Invenção da Liberdade. São Paulo: Brasiliense, 1988, p. 17-32.
nome. Perguntamos nós: teria mesmo expirado sua licença de 13. Trindade, Raimundo. A. Arquidiocese de Mariana. Op. cit., 1953,
exorcista, ou, descrente e timorato, apresentara essa falsa des- 14. Áureo Trono Episcopal Colocado nas Minas do Ouro. Apud Ávila,
culpa para eximir-se de problemas com'Dom Frei Manuel da Afíbnso, Resíduos Seiscentistas em Minas. Belo Horizonte: Centro
Cruz? Ou então, tal informação não passaria de uma mentirinha de Estudos Mineiros, 1967.
conjunta do padre e da espiritada, imaginada como álibi para 15. Idem, ibidem, fl. XXVHI.
vender aos inquisidores uma imagem de obediência irrestrita 16. Arquivo Histórico Ultramarino, Minas Gerais, Caixa 111; ANTT,
do sacerdote às leis canónicas? Só Deus tem a resposta. Mesa de Consciência e Ordens, Maço 5 (1752).
17. Arquivo da Cúria de Mariana, Livro de Registro de Óbitos do
Inficcionado (Ú-26), (10-9-1742).
18. Couto, Padre Manoel José Gonçalves. Missão Abreviada para
Despertar os Descuidados, Converter os Pecadores e Sustentar o
Notas Fruto das Missões. 12 ed., Porto: Sebastião José Pereira, Editor,
1884.
19. ANNTT, Inquisição de Lisboa, Caderno do Nefando 21, nfi 1.4036
1. Mott, Luiz. A Escravatura no Brasil: A Propósito de uma Repre- (1781).
sentação aEl-Rei sobre aEscravaturanoBrasil. Revista do Instituto 20. Barbosa, W. A. Op. cit.
de Estudos Brasileiros, n. 14, pp. 127-136, 1973. 21. Vasconcelos, Salomão. Mariana e seus Templos, 1703-1797. Belo
2. Agradeço àhistoriadoraDanielaCalainho a indicação destes nomes Horizonte: Gráfica Q. Breyner, 1938.
de familiares do Santo Ofício deMinas Gerais, parte de suapesquisa
sobre este mesmo tema.
3. Mott, Luiz. A. Inquisição em Sergipe. Aracaju: Fundação Estadual
de Cultura, 1989, p. 60.
4. ANTT, Habilitações do Santo Ofício, Maços n2 30/577; 73/1350/
1/11; 7/114. Lapa, J. R. A. Livro da Visitação do Santo Ofício da
Inquisição ao Estado do Grão-Pará (1763-1769). Petrópolis: Vozes,
1978, pp. 39-61.
5. Mott, Luiz. Justitia et Misericórdia: A Inquisição Portuguesa e a
Repressão ao Nefando Pecado de Sodomia. Anais do 17S Congresso
Internacional de Ciências Históricas, Comissão de Demografia His-
tórica. Paris, 1990, pp.-243-258.
6. Vários autores. Mariana,' Arte para o Céu. Belo Horizonte: Ce-
mig/IBM, 1985. .
7. Mott, Luiz. "AEscravatura..." Op. cit.
8. 'Goulart, M. Op. cit., p. 190.

124 125
II
'li

6
Prova de Fogo

Abatida e desamparada pelos ministros do Altar que recu-


savam confessá-la, exatamente como acontecera 'no ano prece-
dente, quando seu padrinho voltara para o :Rio das Mortes, a
beata africana arquitetaplano ambicioso: quer ser recebida pelo
próprio bispo, pois acredita que o piedoso pastor, grande devoto,
como ela, dos Sacratíssimos Corações, vendo-a e ouvindo-a, se
convenceria de que sua má fama de embusteira não passava de
malévolo erro de interpretação. Errar é humano — e o erro no
julgamento de Cristo era o melhor exemplo a ser lembrado.
Na primeira confissão feita no Auditório Eclesiástico do
Rio de Janeiro, Rosa diz que, após estes sucessos, o bispo mandou
chamá-la em sua presença, ocasião em que a negra suplicou-lhe
"que se compadecesse do desamparo em que se achava, sem
sustento para o corpo nem para a alma, porque não havia quem
a socorresse e administrasse o sacramento da Penitência". Em
Lisboa, porém, dá outra versão e declara que elaprópriarecorreu
ao Padre Dr. Manuel Pinto "para lhe pôr os exorcismes de que
necessitava, a quem o bispo tinha incumbido a averiguação da
verdade",
O certo é que Rosa consegue sua primeira grande vitória:
o bispo concorda em fazê-la examinar por uma comissão de
peritos em satanismo. Não deixa de ser fantástico tal sucesso: a
persistência da escrava, recém-supliciada, ousando retornar à
mesma autoridade que, meses antes, a condenara, prova sua
segurança a respeito de serem seus ataques e acidentes reais e
causados pelas forças do mal. Ou então, a ex-mulher da rua
julgava-se totalmente capaz de impressionar os exorcistas-mo-
res do bispado, realizando umamise-en-scène dos diabos. Talvez,
a aparência humilde daquela negra, dias seguidos solicitando
audiência à porta do Palácio Episcopal, tenha tocado o coração
daquele confrade de São Bernardo, o "Doutor Melífluo", a quem

127
"ri?

i
a negra pedia socorro espiritual, pois padre algum queria rece- teu nome..." A energúmena já devia saber de cor boa parte dos
bê-la no confessionário. Os diversos retratos a óleo de Dom exorcismos, pois sempre estava se submetendo a eles quando
Manoel da Cruz, conservados em Marianaj mostram-no cora a em companhia do Padre Xota-Diabos. Diz ela que 'lhe repetiu a
mão direita em posição de abençoar, ou com um livro de preces dor e o acidente, com que caiu sem sentidos — e por isto não
entreaberto, sugerindo que de fato seus contemporâneos tinham sabe, nem ao depois lhe disseram o que sucedeu".
razão quando pintaram-no magnânimo, "cheio de bondade e em Como acontece até hoje nos terreiros de candomblé e
demasia crédulo". umbanda, quando o Orixá toma conta dos filhos de santo,
É oPadreXota-Diabos quemnos dá todos os detalhes deste ocorrem-lhe posteriormente uma espécie de amnésia que os
quiproquó satânico, cujo enredo não deixa nada a desejar às torna incapazes de se lembrar de seus atos, danças e palavras,
peripécias cinematográficas do best-seller O Exorcista. durante o tempo em que estiveram incorporados. Os epilépticos
Relata este informante que entre os presbíteros nomeados são igualmente incapaz es de reconstruir o que se passou enquan-
pelo bispo para esta diligência estavam o próprio vigário-geral to durou-lhes a crise, o mesmo ocorrendo com os energúmenos
e da vara de Ouro Preto, o Padre Amaro Gomes de Oliveira e o e demonopatas.
Padre Manuel Pinto Freyre, mestre de Moral e exorcista agre- Já descrevemos alhures outros ataques de Rosa: caía no
gado, o único de quem Rosa lembrava o nome. Talvez tenha sido chão com tremores pelo corpo, inchava-lhe o rosto, falava com
este quem dirigiu o cerimonial. Ao todo estavam presentes voz cavernosa imitando um espírito que praguejava das profun-
quatro sacerdotes, "os mais doutos e virtuosos". dezas do inferno. Um mineiro que presenciou tais diabolismos,
O local escolhido para os exorcismos foi a Igreja de São José Alvares Pereira da Fonseca, disse que certa feita não ousou
José. Os sacerdotes elegeram certamente este pequeno templo entrar na igreja, permanecendo na porta "com grande temor,
próximo à Igreja de Nossa Senhora das Mercês, em Vila Rica, por nunca ter visto semelhante coisa".
por se tratar de uma energúmena negra, de condição social Estes ataques convulsivos fizeram muitos doentes passar
desprezível, não merecendo que se lhe abrissem as portas de por endemoniados, e assim os descreve o psiquiatra Dr. Antoine
templo mais suntuoso. Nestelocal se reunia a Irmandade de São Porot: "As crises ou ataques mostram a brusquidão e as descar-
José dos Homens Pardos. gas rítmicas da epilepsia que consistem numa agitação .desor-
Paramentado com sobrepeliz e estola roxa, lá na frente do denada, tumultuosa, de contorções, repulsões e atitudes extra-
altar estava o exorcista aprovado pelo bispo, sendo auxiliado por vagantes. A crise se entremeia muitas vezes com agitação verbal,
mais três presbíteros "para testemunhas, e mais alguma gente gritos, risos, choros, lamentações e ataques."
que concorreu". Cerimónias deste tipo sempre causaram viva As muitas "visagens e trejeitos" praticados pela energúme-
curiosidade no populacho, invariavelmente faminto de pão e na causaram viva impressão nos sacerdotes, que provavelmente
circo. só tinham notícia da courana de ouvir falar, Declara o Padre
Solene, o exorcista inicia a leitura do Rituale Romanum: Francisco que, após os exames de praxe, "viram que era verda-
"Ne reminiscaris, Domine, delicia nostra, velparentum nostro- deira vexada". Rosa em sua confissão ratifica esta informação
rum, negue vindictam sumas depeccatis nostris..." ao contar que, depois dos acidentes, "ela se restituiu e os exor-
Rosa devia estar de joelhos, cabeça baixa, ouvindo as rezas cistas a animavam muito, dizendo-lhe que tivesse ânimo e os
e litanias do sacerdote que benzia seu corpo, aspergindo-a com encomendasse a Deus".
água santa, e tocando-lhe a cabeça com as franjas de sua estola: O'milagre começava a se realizar: de embusteira, Rosa se
"Quem quer que sejas; ordeno-te, Espírito Imundo, que digas o transforma em medianeira, sendo alvo de devoção até dos ilus-

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três sacerdotes que recomendam incluir seus nomes em suas Laudamus e certamente vários responsos da Missa. Não seria
orações. tão difícil a uma beata do século XVHI entender algumas frases
Temos dúvida se tal informação prestada pelo Padre Xota- em latim dos exorcismes. Na prova de língua, portanto, dava
Diabos e pela própria espiritada correspondeu mesmo à reali- para passar: não falava, mas entendia.
dade, ou se se tratava de tentativa de dourar a pílula para Manifestar força extraordinária era outro sintoma da pos-
engabelar os inquisidores. Tal suspeita se deve ao fato de terem, sessão. Neste particular a endemoniada convenceu até os mais
os exorcistas repetido os mesmos exames passados alguns dias. incrédulos. Sugeriu aos sacerdotes que "para ficar sem dúvida
De acordo comoRitualeRomanum e a tradição cristã, três alguma na verdade de seu Espírito" iria submeter-se à prova do
são as manifestações dos fenómenos diabólicos: as tentações, a fogo. Perante "inumerável povo que se ajuntou para ver o
obsessão e a possessão. A primeira, todos nós conhecemos por sucesso, Rosa lançou sua língua dois ou três dedos fora da boca
experiência própria: é quando a criatura sente desejos contrários yuatçtr • e; debaixo dela aplicaram uma vela acesa pelo tempo que se
ao ensinamento de Cristo, que podem ir desde os maus pensa- -*«!_-
rezasse uma Ladainha de Nossa Senhora, uma Salve-rainha e
mentos, até à deleitação consentida em planej ar atos pecamino- cinco Credos —• e durante todo esse tempo sua língua não
sos. O próprio Cristo foi tentado pelo Diabo (Mateus, 4:1). experimentou dano algum". Louvado seja Deus, aleluia, aleluia!
A obsessão é mais perigosa que a tentação: "o diabo fica Na hora de executar a prova do fogo, Eosa Courana só
como que assentado ao lado da vítima", embora sem tomar conta aceitou que fosse seu Padre Francisco quem segurasse a vela,
de seu corpo e atos. A possessão é o pior estágio: a criatura se recusando o empenho do vigário da vara em executar tal suplício
transforma em agente do Maligno, que impede o livre uso de comprobatório. Alegou que "Deus determinou que fosse o Padre
suas faculdades, falando e agindo pelos órgãos do paciente como Francisco o ministro daquela diligência".
se fosse um motor. No "estado de crise" o corpo do energúmeno Tive o cuidado de cronometrar o tempo que se gasta na
manifesta contracões, raiva, palavras blasfematórias e calúnia. recitação de uma Ladainha, Salve-rainha e cinco Credos: por
Quatro são os sinais de que alguém está realmente possuí- volta de cinco minutos. Portanto, nossa prodigiosa espiritada
do por Belzebu ou por algum ou todos os espíritos infernais: suportou a chama de uma vela queimando a parte inferior de
sua língua por 300 segundos! Um recorde a ser incluído no
• "falar língua estranha ou compreendê-la; Guinessl Fiz a experiência com um pedaço de bife cru, e o
• manifestar força que ultrapasse a capacidade natural; resultado foi chocante: após um segundo, uma fumaça negra
• descobrir coisas distantes ou ocultas; começou a se desprender da carne chamuscada; no segundo
• revelar comportamento agressivo, furor e blasfemar minuto, um cheiro de churrasco evoluiu no terceiro para nau-
contra objetos sacros, às vezes manifestando levitação.' seabunda catinga de carne queimada que invadiu toda a cozinha
e copa; ao quarto, pingos de sangue caíam da carne, por pouco
Rosa manifestou alguns desses espantosos sintomas, so- não apagando a chama da vela; no final dos cinco minutos, a
bretudo os dois primeiros. Uma testemunha dos exorcismes, o parte central do bife transformara-se numa sxiperfície de carvão,
já mencionado Sr. Fonseca, diz textualmente: "Ela não falava ressequido e esturricado. Lembrei-me então do versículo 16 do
latim, mas entendia". Convivendo com sacerdotes, frequentando Salmo XXI, geralmente associado à sede que Cristo padeceu em.
assiduamente as cerimónias sacras, a preta do Inficcionado seus estertores na Cruz: "Minha garganta está seca qual barro
certamente tinha ouvido, por muitas horas, a língua litúrgica, cozido; minha língua grudou no céu da boca; estou reduzido ao
sabendo inclusive rezar de cor a Ave Maris Stella, o Te Deum pó da morte."

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i-r-'ir.
l-S
l -m

Desde o século XVH, o teólogo Del Rio, muito lido e citado de entender latim, "manifestava força superior à capacidade
pelos inquisidores, observava que natural". Porém, como também sucedera com Cristo, que, mes-
mo fazendo prodigiosos mil agres e ressuscitando, nem por isto
"muitas feiticeiras aguentam os tormentos com grande deixou de ser perseguido, Rosa igualmente foi alvo de incom-
obstinação, munidas do remédio da taciturnidade, um preensão por parte de seus contemporâneos.
remédio composto do coração e de outros membros de uma Passado algum tempo, os emissários do bispo repetem os
criança batizada, assassinada cruel e violentamente, e mesmos rituais. A preta espiritada manifesta então certa inse-
depois reduzida a pó, o qual era espalhado sobre o corpo gurança, tanto que advertiu seu confessor, dizendo: "Ministro:
ou escondido secretamente, e dele recebiam a força e a não;vás assistir ao segundo exame e experiências que em. mim
virtude do silêncio.5 . . . se pretendem fazer, porquanto é este caviloso e contra a vontade
dé"Deus e só a fim de ficar mal a criatura e o Ministro. Poderiam
Talvez conhecedor desta cabalística poção, e acreditando prendê-lo se lá fosse." Esta frase, de redação trôpegapara o leitor
em seu poder é que alguns anos mais tarde, ao ser presa, Madre contemporâneo, que um escriba menos exigente no estilo foi,
Rosa será acusada por um tal Padre Vicente Ferreira Noronha, sem.' querer, excelente etnolinguista — reproduzindo às vezes
morador do Rio de Janeiro, de estar envolvida com feitiços ipsis verbis o que saiu da boca da energúmena —, pode ser
usando o corpo de uma criança seca — acusação que voltaremos explicada, de um lado pela construção sintáticabarroca, diversa
a examinar; oportunamente. da nossa, de outro, pelo discurso embolado da iletrada africana.
Diz o Xota-Diabos que, após a prova da vela, "ficaram todos Vale ainda transcrever os sinónimos que o Dicionário Morais
capacitados de que não era fingimento, e ele teve um argumento traz para o termo caviloso, pois a maioria de meus leitores,
certo de que era verdadeiramente vexada, acreditando nela". certamente, como eu, nunca ou pouquíssimas vezes empregou
Aprova do fogo tanto podia ser interpretada como sintoma tal verbete. Caviloso vem de cavilação,' isto é, razão falsa,
do poder de Satã, como também sinal de santidade: na mesma sofística, enganosa; astúcia para se induzir a erro ou a perigo;
época em que Rosa se submetia a este teste pirotécnico, no sul promessa dolosa. Cavilar pode ser igual a zombar sofisticamente
da Bahia, nosso já conhecido Padre Gabriel Malagrida, amigo e caviloso também significa ser capcioso. Enfim, algo realmente
particular deste mesmo bispo que a mandara examinar por a se temer sobretudo perante o exorcista agregado do bispado
peritos em diabolismo, numa ocasião "quando pregava sobre o deMariana, doutor em Cânones pela Universidade de Coimbra,
inferno e suas chamas, às vezes punha a mão sobre um círio membro do Cabido Diocesano, etc., etc.
aceso e, após tempo considerável, a retirava ilesa. Certa vez, em Rosa antevia uma tempestade se aproximando e opta por
Cairu, um incrédulo também pôs um dedo na chama, mas, com uma estratégia sensata: afasta seu protetor do alcance de seus
grande confusão sua, tirou-o rapidamente, tão queimado que até inimigos, garantindo assim sua retaguarda, pois, solto, poderia
esteve a pique de perder o braço". batalhar por sua libertação, caso viesse a ser novamente apri-
Como não há outras testemunhas que tenham confirmado sionada. Diz o Padre Francisco: "temendo ser preso, acreditou
o milagre do fogo, novamente aqui podemos conjecturar que a nela, como já acreditasse serem inspiradas por Deus todas as
prova da vela foi uma invencionice do Padre Francisco para palavras de Rosa". Refugiou-se então na casa do Alferes Fran-
justificar sua credulidade perante os inquisidores, pois, se de cisco da Motta, o marido de Dona Escolástica, a uma légua de
fato tal episódio realmente aconteceu, o mais correto seria que Mariana. Acompanhou-o Pedro Róis Arvelos, seu protetor, que
tanto os exorcistas quanto o público presente na Igreja de São
José tivessem dado crédito à injustiçada energúmena que, além

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a salvara do pelourinho apóa a sessãcrde açoites, e que "acredi- já citado Sr. Fonseca que não esteve presente a esta sessão, mas
tava nela".
dois dias depois ouviu os sacerdotes dizerem "ser tudo fingimen-
A documentação é contraditória quanto ao local onde rea-
to", nem por isso teve sua fé abalada, sobretudo ouvindo o clérigo
lizou-se o segundo exame da negra possessa. Segundo um mo-
Xota-Diabos afirmar que Rosa e sua colega Leandra eram mes-
rador das Minas naquela ocasião, o Padre Filipe de Sousa,
mo "possessas e muito boas servas de Deus".
lisboeta, então com 57 anos, esta sessão aconteceu na própria
Talvez confiados os sacerdotes em que, depois do segundo
Catedral de Mariana. Por ordem de Dom Manuel da Cruz,
exame e da fraca reação do Anjo das Trevas, a energúmena
levaram os sacerdotes mais doutos e virtuosos a energúmena
recolher-se-ia à sua vergonha, posto que fora oficialmente de-
para a Sé, "estando os cónegos no Coro com deprecações a Deus
clarada embusteira e apupada pela multidão como feiticeira,
para mostrar a verdade e desenganar ao povo que andava iluso
não castigaram novamente a escrava de Dona Ana Garcês,
com as ficções de Rosa. E se assentou que tudo era embuste e
mandando-a ir em paz para sua casa. Isto deve ter ocorrido pelos
fingimento". meados de 1750, ano que ficou marcado na memória de todos
Outros informantes relatam que o segundo exorcismo ofi- pelo falecimento de Dom João V, o Rei Beato, tendo sido decla-
cial foi realizado no mesmo local que o primeiro, na Igreja de rado luto geral nas Minas pelo bispo de Mariana.
São José. Somos inclinados a acatar esta segunda versão: con- "' De Mariana ao Inficcionado é uma longa caminhada de
sideramos honra demais para uma africana escrava merecer a quase um dia, por entre morros e capoeiras, subidas e descidas
presença de todo cabido diocesano na Catedral-Basílica, pois tais que não têm fim. Aqui e acolá belíssimas quaresmeiras na beira
cerimónias solenes implicavam despesas, pagando-se espórtu- dos riachos onde os faiscadores até hoje ainda arriscam a sorte
las extras para os cónegos, e gastando-se vela e incenso para a com a bateia na mão.
expulsão do Maligno. "Fazendo-lhe os exorcismes, não aconteceu "Recolhida para casa, cansada do caminho, se assentou a
mais do que uma leve perturbação no juízo que ela sentiu, pelo chorar." Pobre criatura! Sentindo dentro de si a força incontro-
que o inumerável povo se confirmou no conceito em que estava lável de Lúcifer e o coração cheio de amor pelo Divino Esposo,
do seu fingimento, não o fazendo assim o dito exorcista pelas ninguém acreditava nela, a não ser alguns poucos devotos.
experiências que tinha dito." Talvez atribuísse todas essas tribulações ao castigo divino por
A moderação de seus acidentes foi decisão errada, pois seus pecados da juventude. Se até ao justo Jó e a seu próprio
literalmente o feitiço virou contra a feiticeira: "o povo que estava
Filho Unigénito, Jesus Cristo, Javé permitiu que fossem tão
na capela começou a chamá-la de feiticeira". Se fosse na Idade castigados, quem diria as penas de que era merecedora pelos
Média, certamente tê-la-iam agarrado e feito justiça no ato, muitos anos que pecou contra, a castidade?! Sentada na beira da
queimando-a como bruxa. estrada, chorando, teve uma vis ao: "Dando-lhe sono, se viu logo
A grande Santa Teresa passou por vexame semelhante. em um campo muito grande, em espírito, e ali apareceu um
Em seu livro Castelo Interior, a mística contou que seus "aciden-
homem tão alto que dava com a cabeça nas nuvens, cabeça muito
tes" eram alvo de questionamento por parte dos fiéis. "Dizem
grande e alva, cara horrenda muito comprida, olhos e boca
uns aos outros: Ela quer passar por santa. Usa desses exageros disformes, muito vermelho, braços, pernas e pés de extraordi-
para enganar o mundo. São artifícios do Demónio. Ela traz nária grandeza, vestido de trapos muito sujos."
enganados os confessores!" Até São João, autor do Apocalipse, teria se apavorado com
Rosa saiu incólume destas provas, porém diminuído seu este gigantesco espantalho tão medonho e horripilante!
crédito por muitos que tinham-na por espiritada. Entretanto, o

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Ir"
í

"Com o temor desta figura, se deitou a fugir, e, ainda "estando com uma madorna que não era sono, porque
que ela corria quanto lhe era possível, sempre a figura a ç ; estava acordada, foi levada em espírito a uma igreja nova,
seguiu e, sem acelerar o passo, quando andava, lhe chegava não sabe em que sítio, onde viu um altar e um sacerdote
com o pé à saia, até que, chegando a uma árvore, dela se "'-revestido e assentado em. cima do mesmo, que lhe disse:
levantou um sacerdote com o qual ela se animou a pergun- 'Rosa, minha filha, tu hás de comer o pão cotidiano espiri-
tar à dita figura o que queria dela. E estanão lhe respondeu. tual e a pedido, da mão de Deus/ E dito o referido, fechou
E o sacerdote lhe disse que se animasse, que aquela figura o Evangelho e desapareceu da igreja o sacerdote, e ela se
era o mundo que a perseguia porque ela o tinha deixado. - restituiu aos seus sentidos."
E perguntando-lhe o sacerdote o que queria, respondeu-lhe
que buscava o seu Padre Francisco Gonçalves Lopes, e — Esta visão e revelação remete-nos à história de São Cae-
então se restituiu o corpo, que tinha ficado em casa, aos tano,'já anteriormente mencionada. Sucede porém que Rosa
seus sentidos, e não viu mais nada." situou-a, na primeira confissão que fez no Rio de Janeiro, muito
tempo antes de ser exorcizada na capela de São José. Decidimos
O apóstolo Paulo chama a vida mundana de o 'Velho reproduzi-la nesta segunda versão, pois nela patenteia-se, mais
homem", e, nesta visão de Rosa, o mundo e sua aversão aos uma vez, o quão importante era no imaginário desta africana a
servos de Deus assumem o espectro de um medonho gigante de figura dos sacerdotes, que sempre aparecem para salvá-la dos
cabelos brancos, sequioso de destruir os filhos da Luz, uma infortúnios, esclarecendo-lhe os mistérios, aconselhando-a nas
representação antropomórfica do terrível Leviatã que tanto tribulações. Esta visão reveste-se também de particular interes-
assustou o paciente Jó cinco séculos antes de Cristo (Jó, 41:10- se pelo fato de a mística descrever com precisão o seu estado de
25). Perante tais situações horripilantes, não resta ao crente semiconsciência anterior a tal revelação sobrenatural. Prova-
senão recorrer ao Altíssimo, conforme ensina o Salmo 90, oração velmente tais detalhes foram declarados a partir de perguntas
geralmente recitada pelos mais piedosos antes de realizar qual- específicas dos inquisidores, sempre ávidos em distinguir os
quer viagem: "...Deus te livrará do laço do caçador e da peste raptos celestiais dos embustes do Pai da Mentira. Novamente é
perniciosa. Não temerás os terrores noturnos, nem a flecha que ',1 o dicionaristaMorais quem nos ensina que madorna ou modorra
voa à luz do dia, nem o mal que grassa ao meio-dia. Caiam mil, "é um estado de sonolência em que caem certos doentes, menos
homens àtuaesquerda e dez mil à direita, e tunão serás atingido. pesado e perigoso que o letargo". Segundo Rosa, a visão não fora
Porque aos seus anjos ele mandou que te guardem em todos os sonho "porque estava acordada"—semi-acordada, par a ser mais
teus caminhos..." preciso.
Já por duas vezes o Altíssimo mandara um sacerdote Deus Nosso Senhor não escolhe hora nem situação para
consolar sua negra serva quando aperreada pela angústia e manifestar-se a seus eleitos: Maria Virgem rezava quando lhe
tirania de seus perseguidores. Era toda sua vida Rosa demons- apareceu o Anjo Gabriel; São José dormia quando em sonhos se
trará enorme respeito e veneração pelos ministros do Altar. lhe foi revelado que sua esposa Maria ficara grávida por obra do
Aliás, este era o termo que preferiapara referir-se ao seu querido Espírito Santo; São Paulo estava sobre um cavalo quando uma
Xota-Diabos: Ministro. luz resplandecente o cegou e uma voz celestial lhe questionou:
Passados três dias desde que a preta beata vira o gigante "Saulo, Saulo, por que me persegues?" (Atos dos Apóstolos, 9:4). •
.cabeçudo, Várias das visões de Rosa até aqui veladas ocorrer anã seja
à tardinha quando rezava no quintal ou nas escadas da casa,

136 137
-

seja na cama, na escuridão de seu quarto, ou ainda, nas.igrejas,


quando o Espírito lhe provocava algum acidente ou desmaio.
d Virgem. Maria e muitas outras relíquias que garantia serem
da
madein
77 Jerusalém, mas que ele próprio secretamente fabricava.
Todos esses flashes sobrenaturais tinham em, comum, o fato de A vários negros e negras, além de vender tais preciosidades
serem vistos ou percebidos tão-somente pela privilegiada afri-
A
divinas,
d prescreveu açoites e disciplinas para penitência de seus
cana, que ao voltar ao mundo dos mortais revelava as maravilhas pecados: só no preto Faustino aplicou 200 açoites de bacalhau,
do céu que só ela tinha o privilégio de conhecer. P
enquanto
e recitava oMiserere. São Sado-Masoch, ora pró nobis!
Nas Minas, a medicina de Galeno com suas teorias basea-
"Disse mais: que na noite seguinte ao sucedido, estando
das
d na oposição entre o frio e o calor e nos quatro humores devia
ela rezando o Credo, de joelhos, voltada para um Cristo
ter
t< poucos adeptos entre os milhares de negros e brancos que
crucificado, sem luz na casa, ouviu urna voz que saía de •1
faziam
fi mais fé nos exorcismes ou nas mandingas para evitar ou
mesma imagem e dizia: TBu sou o médico! Venho curar os 1
"J curarmos
9] achaques. Os pecados e a irreligiosidade seriam as
enfermos, mas hei de curar aos que guardarem o Regimen-
causas!
c de tantas doenças, daí a procura de remédios espirituais
to.' E ficando ela atemorizada com a dita voz, que era e"detseus ministros, posto que o próprio Cristo se apresentava
e
respeitosa, disse no seu interior: 'que cousa seria o Regi- ~ *•*!
coino médico.
c<
mento?' E logo a mesma voz repetiu que o Regimento era — Outras visões aconteceram por esta época, entre 1748 e
guardar os Dez Mandamentos. E a casa que estava alu- 1750, sem que era suas confissões a negra lunática especificasse
1
miada ao! proferir a dita voz tornou a ficar às escuras como ~ ~ onde e quando ocorreram.
~Ò]
estava.."
"Certa feita, estando ela ouvindo missa na Igreja de São
Várias vezes a negra courana retomará essa imagem, João Batista do Rio das Mortes, numa Quinta-feira Santa,
associando Jesus Cristo à cura dos enfermos. Noutra revelação aolevantar o sacerdote ahóstia, a viu toda negra. E, ficando
Nossa Senhora se apresentará como enfermeira: em seu imagi- assustada com isto, perguntou a uma sua companheira se
nário o céu era portanto, vrm grande hospital, onde a principal
"i- .tinha visto o mesmo. Respondendo-lhe que não, ficou ela
medicina era o próprio corpo de Cristo transubstanciado na
ais cuidadosa, pensando se seria descuido do sacerdote
hóstia consagrada. De acordo com os Evangelhos, em sua vida _ em consagrar alguma hóstia daquela cor. E, estando com
terrena Jesus curou muitos enfermos: cegos, aleijados, até uma
este pensamento, teve uma voz que lhe falava no entendi-
hemorroíssa, que bastou tocar na túnica do Nazareno para o " .r - _ mento, e lhe disse: 'O sacerdote consagrou a hóstia perfeita,
fluxo de sangue estancar-se. Nas Minas Gerais do século XVIII,
porém os pecados dos homens me têm eclipsado.' E mandou
as doenças e sua cura estavam intrinsecamente ligadas ao céu
'a mesma voz a ela, falando-lhe da mesma sorte no enten-
e ao inferno na mentalidade supersticiosa e mística da popula-
-~~dimento, com clareza e certeza, que em todos os dias, pela
ção, que, crédula e acrítica, acatava tudo que tivesse a áurea do
manhã, rezasse ela a oração seguinte: Verdadeiro Comis-
sobrenatural. Muitos foram os falsos profetas que exploraram !
sário, Eterno Deus Todo-Poderoso, concedei-me a vossa
esse rico filão da boa fé popular, como um tal de clérigo João _graça para que hoje, neste dia, possa ganhar todas as
Róis de Morais, de 21 anos, filho de um alfaiate de Miranda e indulgências que se concederem em Roma, em Jerusalém
morador em Ouro Preto. Preso em 1734, confessou ter percorrido e em Santiago de Galiza, seja em nome de Deus Padre,
as minas de Serro Frio e a comarca de Vila Rica vendendo Deus Filho e Deus Espírito Santo."
relíquias do Santo Lenho, verónicas de São Bento, uns papelotes
com um pozinho branco que dizia ser o verdadeiro leite em pó No século XVIII, uma das maiores obsessões dos católicos

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era garantir que suas almas fossem depois da morte, o mais Outra africana, Maria da Costa, nação ardra, moradora na
rapidamente possível, para o céu, permanecendo o menor tempo mesma freguesia, deixou encomendadas 100 missas a meia
no purgatório. O que é o purgatório? "B um lugar de sofrimento oitava de ouro pelo descanso de sua alma e mais 50 mil réis de
onde as almas dos justos expiam seus pecados antes de entrar esmola para um ofício dos mortos a ser realizado no Convento
no paraíso", diz o Catecismo, Neste lugar medonho, as almas de S anto António do Rio de Janeiro—coincidentemente o mesmo
penam primeiro a privação da felicidade de ver Deus e, segundo, local onde Rosa receberá orientação espiritual quando de sua
sofrem as labaredas de um fogo verdadeiro, semelhante ao das chegada àquela capitania.
profundezas do inferno, que as queima sem consumir. Para Tais exemplos servem par a ilustrar o quão importante era
evitar a permanência neste lugar horrendo, a Igreja instituiu as para os nossos antepassados obter sufrágios e indulgências que
indulgências, uma espécie de salvo-conduto que os fiéis podiam lhes garantissem, o eterno descanso na morada celeste; daí a
adquirir, através de certas práticas religiosas, ou doando esmo- grandeza e magnitude da oração que Rosa disse ter aprendido
las para a Igreja, sendo possível até mesmo aplicá-las em nesta última visão, através da qual se lhe assegurava receber
intenção de pessoas já falecidas. As missas de defunto em diariamente "todas as indulgências que se concederem emRoma,
intenção das almas foram dos principais meios que os fiéis em Jerusalém e em Santiago de Galiza", os santuários mais
utilizavam para garantir a redução do tempo da alma no pur- valorizados pelos fiéis, pelas incontáveis indulgências a eles
gatório, recurso piedoso, grandemente estimulado pela hierar- conferidos pelos Sumos Pontífices. Deus fazia grandes dons à
quia eclesiástica que obtinhapolpudas esmolas com a celebração sua serva, que sem sair da cama obtinha os mesmos privilégios
de tais atos litúrgicos. Do mesmo modo como hoje se garante o espirituais dos quais os romeiros só se beneficiavam após longa
futuro depositando-se na caderneta de poupança, nos séculos caminhada e muitos gastos para atingir aquelas cidades santas.
passados, todo cristão deixava expresso em seu testamento que Pouco a pouco, talvez pressionada pelos sacerdotes que
boa parte de seus bens devia ser aplicada na celebração de ouviram suas confissões no Rio de Janeiro e em Lisboa, a mística
avultado número de missas pelo repouso eterno de sua alma. africana dá os mínimos detalhes sobre as condições em que se
Vimos que Dom Frei Manuel da Cruz ordenou que em sua processaram seus contactos com o mundo extraterrestre. Tais
intenção fossemrezadas.2.900 missas após sua.morte; Dom João detalhes eram de crucial importância para os inquisidores dis-
V, o Fidelíssimo, pagou à preço de ouro a celebração de 700 mil tinguirem se tais raptos eram divinos, como os de Santa Teresa
missas com o mesmo fim; Nas Minas, muitas foram as ex-escra- dÁvila, tão bem descritos no Castelo Interior, ou eflúvios demo-
vas, enriquecidas com o comércio ou com a mineração, que níacos. Alhures a negra narrara estar numa madorna quando
deixaram em seus testamentos grandes somas para o sufrágio foi levada em espírito para o Além, sendo depois restituída aos
de suas almas. Eis apenas dois exemplos, já citados, do Arquivo sentidos. Noutra ocasião disse que "foi levada de sua casa para
da Cúria de Mariana, ambos contemporâneos a Rosa: a negra a igreja em espírito, ficando em casa só os sentidos de ouvir,
forra Maria do Ó, natural da Costa da Mina de nação courá, porque os outros quatro (visão, tato, palato e olfato) acompanha-
exigiu em seu testamento que ao morrer fosse amortalhada no ram o espírito". Agora conta que ouvira uma misteriosa voz "em
hábito de São-Francisco e que houvesse missa de corpo presente seu entendimento, com clareza e certeza". Todas essas sensações
oficiada por quatro sacerdotes, deixando uma oitava de ouro místicas são perfeitamente conhecidas e teorizadas pelos teólo-
para 50 missas que se lhe oferecessem na matriz da freguesia gos que estudaram os caminhos da vida interior — e mais
de São Caetano, onde era moradora, e mais 120 réis para cada adiante, quando Rosa manifestar outros sintomas ainda mais
uma das.840 missas a serem celebradas nas igrejas do Reino. sublimes, recorreremos aos mesmos teólogos para analisar tais

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mimos celestiais. Por hora merecem ser feitos dois reparos a festa de Corpus Christi, até hoje comemorada em toda catolici-
esta última visão: como muitas das futuras revelações, sobretu- dade comportentosaprocissão. No século seguinte, outro famoso
do no Rio de Janeiro, os céus abrirão suas portas à beata nos milagre da hóstia: Santa Juliana Falconieri, canonizada somen-
dias de grandes festas litúrgicas. Quinta-feira Santa, também te em 1737, grande devota da Eucaristia, estando em seu leito
chamada Quinta-feira Maior,' era um dos dias mais festivos da de morte, incapacitada de comungar, posto que vomitava sangue
catolicidade: sua missa era muito solene e, ao cantar-se o Glória, sem parar,
os sinos dentro e fora da igreja tocavam freneticamente, ficando
mudos até à meia-noite do Sábado Santo. "Deus então, para comprazer-se de sua serva, fez um,
milagre que ficou célebre nos anais da Eucaristia: rogou a
'Toucas passagens há, no ano eclesiástico, tão impres- - santa ao sacerdote que aproximasse de seu peito a Sagrada
sionantes e comovedoras para o coração do crente, quanto, .-•Forma, e todos os presentes puderam ver como a hóstia
esta missa, em que se mesclam alegria imensa e profunda :;. ficou primeiro grudada no peito de Juliana e logo desapa-
tristeza. Consagram-se aí duas hóstias grandes, das quais receu, como se se tivesse aberto uma porta para aquele
se conserva uma que depois da missa é levada procissio- t coração tão cheio de Cristo."
nalmente ao altar da exposição, ornado de flores e luzes." ._£_
No século XVII, durante o reinado de Filipe II, as beatas
Não poderia haver dia mais propício para uma visão euca- espanholas Madalena da Cruz e Maria da Visitação recebiam a
rística do que a Quinta-feira Maior, a única ocasião em que os comunhão miraculosamente, voando a sagrada partícula do
fiéis podem ver sobre o altar não apenas uma, mas duas grandes altar até à mesa da comunhão, repetindo a mesma façanha
partículas consagradas, o dia mesmo que se comemora a insti- ocorrida séculos antes com Santa Catarina de Siena. Várias
tuição deste inefável manjar angelical.. beatas e santos disseram, ter recebido o viático das mãos do
Rosa já tivera outra visão com a mesma partícula: próprio Cristo, ou dos Anjos, entre eles, Elizabeth von Reute
(1420), Domenica deli Paradiso (1553), Prudenciana Zagnoni
"por duas vezes ouvindo missa a diversos sacerdotes, ao •i -
(1608), Maria Francisca das Cinco Chagas (1857), etc, etc. Na
levantar a sagrada hóstia, a viu cheia de sangue e cercada -4- Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro podemos ainda
de luzes mui brilhantes. Outra ocasião viu a imagem de hoje admirar, no altar do Bom Sucesso, um belíssimo quadro ex
Cristo Senhor Nosso na sagrada hóstia,, derramando san- voto alusivo ao milagre aí ocorrido em 1639: "Estando o Senhor
gue das suas sacratíssimas chagas e um anjo comuns vasos exposto, foi vista por três veneráveis sacerdotes a imagem de
recebendo o mesmo sangue e tudo se lhe representou na Nossa Senhora na hóstia consagrada." Mais recentemente, a
circunferência da hóstia, representando-se esta de muito beata Maria de Araújo, a controvertida santinha protegida do
maior extensão.". Padre Cícero do Juazeiro, ao comungar, a hóstia consagrada se
enchia de escuro sangue, fato que o taumaturgo cearense pro-
Milagres associados às hóstias abundam na hagiografia clamou como sobrenatural. Entretanto, pesquisas levadas a cabo
católica: em 1263, o Padre Pedro de Praga, na cidade de Bolsena, por um sacerdote da mesma região comprovaram tratar-se não
duvidando do milagre da transubstanciação enquanto celebrava de milagre, mas de simplória farsa.13
o Santo Sacrifício da Missa, ao partir a hóstia, esta se transfor- Não há notícia de outra região do Brasil, como as Minas,
mou em carne viva, pingando abundante sangue no altar, epi- onde a Sagrada Eucaristiativesse tantos devotos. Para trasladar
sódio milagroso que inspirou o Papa Urbano IV a promulgar a Jesus Sacramentado da Igreja do Rosário para a Matriz do Pilar

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de Vila Eica, os mineiros realizaram em 1733 o célebre "Triunfo a todas as misérias espirituais. A alma que dignamente
Eucarístico", procissão tão solene "que não há lembrança que .comunga fica santificada com. toda a santidade de Jesus
visse o Brasil, nem. consta que se fizesse na América ato maior Cristo, fica unida e incorporada com Deus, ela fica com
de grandeza". Sobretudo a partir de meados do setecentos, Jesus e Jesus fica habitando nela."
quase todas as vilas e freguesias mineiras abrigavam irmanda-
des e confrarias do Santíssimo Sacramento: a de São João dei Se são tantas as graças advindas da comunhão piedosa,
Rei data de 1711, dois anos antes da elevação do arraial a Vila, aproximar-se do Pão dos Anjos em estado de pecado mortal
tendo existido nas Minas, no século XVIII, 43 irmandades redunda nas maiores desgraças. Já São Paulo previa: "quem
dedicadas a esta devoção. Vulgariza-se então grandemente a comer indignamente o corpo e sangue de Jesus Cristo, come e
devoção às "Bênçãos do Santíssimo Sacramento", onde riquíssi- bebe sua eterna condenação" (l Coríntios, 11:29). E o autor da
mas custódias e ostensórios, algumas tão pesadas que impossi- Missão Abreviada, livro dos mais divulgados entre os devotos
bilitavam o sacerdote de sustentá-las para a bênção aos fiéis, de antanho, completava: "Quem comunga indignamente comete
constituíam as jóias mais preciosas zelosamente conservadas maior crime do que os judeus que mataram Cristo."
nas Gerais. As famosas "capas de asperges", igualmente borda- Creio que o leitor há de entender melhor agora a fúria com
das com profusão de fios de ouro e pedraria preciosa, alfaia que Rosa atacava os pecadores públicos na mesa da comunhão,
indispensável emtais cerimónias, são o que de mais rico se teceu pois recebera como missão ser a "zeladora dos templos, sobretudo
em toda cristandade, tudo isto produzido com um só fim: dar quando o Santíssimo Sacramento estava exposto": proclamando
glória ao Santíssimo Sacramento. Deslumbrados com tanto os pecados dos hipócritas que aproximavam-se de tão augusto
ouro, profusão de velas acesas, incenso do mais puro, genuflexos mistério com a alma impura, Rosa simplesmente estava obede-
na maior contrição, os fiéis até hoje entoam devotos o hino cendo ao ensinamento oficial dalgrejae zelando para que o Autor
Tantum ergo Sacramentum, Veneremur Cernui, cujos dois pri- da vida não fosse insultado por almas inescrupulosas.'
meiros versos querem dizer: Este grande Sacramento, humilde- De acordo com as Constituições, a Santíssima e Augustís-
mente adoremos! sima Eucaristia representa o mais excelente e perfeito sacra-
Reflexo desta devoção é a quantidade de freguesias e vilas mento, devendo portanto os fiéis, para recebê-lo, cumprir rigo-
desta Capitania que adotaram-na como topónimo: Santíssimo rosamente as seguintes'condições: ser batizado, ter confessado
Sacramento da Barra do Jequitibá, Santíssimo Sacramento do e estar em estado de graça sem pecado mortal, estar em jejum
Taquaraçu, Sacramento do Ribeirão do Borá, etc. natural desde a meia-noite. Todo cristão, com mais de 14 anos
A veneração a Jesus Eucarístico reflete-se também no os meninos, e 12 anos as meninas, estava obrigado a comungar
extremo respeito com que nossos antepassados se aproximavam ao menos uma vez por ano, na Páscoa, sendo igualmente acon-
da mesa sagrada, só podendo comungar nos dias autorizados selhado receber Jesus-Hóstia nas seguintes situações: quando
pelo confessor, posto que não se recomendava então, como nos moribundo ou em perigo de morte, às vésperas de largas nave-
dias atuais, a comunhão diária. gações e antes das batalhas; as mulheres prenhes próximas do
parto e os condenados à morte à véspera da,execução. Aos
"Os fiéis que chegam a comungar dignamente saem da pecadores públicos proibia-se administrar a comunhão: exco-
sagrada comunhão como leões que respiram chamas de mungados, feiticeiros, mágicos, blasfemos, usurários, meretri-
fogo, fazendo-se terríveis a todo o inferno. Pela sagrada zes, inimigos públicos. Por determinação do Concílio de Trento
comunhão se reprimem todas as paixões e dá-sè remédio (1545-1553), só os sacerdotes podiam comungar sob as duas

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espécies — pão e vinho —, os fiéis recebendo apenas a hóstia, então recolhia-se cada qual para seu lugar, os homens de um
que devia ser feita com pura farinha de trigo e água. Os títulos lado, as mulheres cobertas com véu, do outro, e de joelhos, em
XXVII e XXVIII do Livro Primeiro das Constituições discorrem profundo recolhimento, rezavam-se os atos de agradecimento e
minuciosamente sobre os aspectos materiais do Sacramento do a'!tpiedosa inspiração" de Santo Inácio:
Altar: em que igrejas há de haver o sacrário, como deve ser,
quem deve guardar a chave do tabernáculo, assim como sobre a - "Alma de Cristo, santificai-me; corpo de Cristo, salvai-
fonna de administrar a Eucaristia. Naqueles tempos antigos, me; sangue de Cristo, inebriai-me; paixão de Cristo, con-
além de conservar consigo o recibo anual da "desobriga" do dever * fortai-me; ó bom Jesus, ouvi-me; dentro de vossas chagas,
pascal, todo cristão no ato mesmo da comunhão devia manter-se • escondei-me; não permitais que eu de vós me afaste; do
de joelhos, junto às grades do cruzeiro, enquanto o ministro 7" * inimigo maligno, defendei-me; na hora de minha morte,
confiava a cada. um, por sua vez, uma toalha branca, de bom. ^_ ~.-.chamai-me e mandai-me ir para vós, para que vos louve
tecido, para ser mantida diante do peito, a fim de evitar o ÍÇ~ -y.com os vossos santos por todos os séculos dos séculos,
sacrilégio de alguma partícula cair no chão. Hoje, a toalha foi -{' -'.amém!"'
substituída pela patena, pequeno pratinho que o acólito segura
debaixo do queixo dos comungantes. Ainda em 1762 foi motivo ._J v. Muitos foram os mineiros e devotos deste mundo de meu
de denúncia ao Santo Ofício o sacrilégio cometido pelo Padre Deus, tão atraídos e encantados pelo Mistério Eucarístico, que,
Luiz Cardoso Teixeira Magalhães, da Bahia, que dissera "Isto não contentes em adorar Jesus nos riquíssimos ostensórios, não-
não importa", quando um criouHnho lhe entregou uma hóstia _ satisfeitos em comungar o preciosíssimo corpo de Deus, queriam
que havia caído, na hora da comunhão. Só os diáconos e presbí- trazê-lo sempre fisicamente próximo do coração. Daí os constan-
teros podiam, sem sacrilégio, tocar no Santíssimo Sacramento. tes e sacrílegos roubos de hóstias consagradas e demais objetos
Ao oferecer ahóstia consagrada, o sacerdote dizia emlatim: onde Jesus-Pão, e seu preciosíssimo Sangue, estiveram presen-
"Ecce Agnua Dei, ecce qui tollitpeccata mundi." E logo imedia- tes, como os sanguíneos (espécie de guardanapo de tecido finís-
tamente, em vernáculo: .Sgf,; _ simo, que o sacerdote usava para limpar o cálice após consumir
o sangue de Cristo), as pedras d'ara (pedaço de mármore embu-
"Irmãos, este é o corpo de Nosso Senhor Jesus Cristo, s tido no centro do altar, em cima da qual o sacerdote celebrava
tão verdadeira e realmente como está no céu: adorai-o, " os augustos mistérios), e até a, chave do sacrário e o óleo da
pedi-lhe devotamente vos perdoe vossos pecados pela mor- ~2J2 lâmpada do Santíssimo, utilizados supersticiosamente como
te e paixão que por nós padeceu e dizei comigo três vezes ' *- panaceia. Tais objetos, sobretudo as hóstias consagradas, peda-
batendo no peito: Senhor, eu não sou digno de que vós ™: ' cos do sanguíneo ou dapedrad'ara eram guardados empequenos
entreis em minha morada tão pecadora, mas dita a vossa "±~_. relicários de metal, ou nas cobiçadas bolsas de mandinga e
santa palavra minha alma será salva." -^ patuás, geralmente misturados com outros elementos cabalísti-
~ cos, de inspiração ibérica ou africana, e dependurados no pescoço
Só então o fiel recebia o preciosíssimo corpo de Deus, ___ _ junto a medalhas, escapulários e agnus-dei, reputados como a
devendo engolir a hóstia sem mastigá-la, evitando-se mesmo maior garantia e proteção contra tiro, facadas, flechas e demais
tocar-lhe os dentes. Aí tinha lugar uma devota prática há muito investidas dos inimigos.
abolida pelo ritual: o acóHto oferecia aos comungantes um vaso •j^s-1
Dezenas e dezenas de colonos do Brasil foram denunciados
de prata com água para cumprir o lavatório, devendo cada qual junto à Inquisição de Lisboa, alguns chegando a ser transporta-
tomar um trago a fim de engolir qualquer resíduo da hóstia. Só dos para os cárceres do Santo Ofício, inculpados deste abomina-

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vel sacrilégio: roubo de hóstias e demais objetos eucarísticos. últimos meses de prisão, recusava-se a vestir roupa, sendo
Um destes infelizes foi um contemporâneo e conterrâneo de trancafiado numa solitária por não permitir companheiros em
Rosa, como ela também, morador por certo tempo em São João sua cela. Quando gritava ou cantava alto à noite, era surrado
dei Rei, o nigeriano natural de Judá, José Francisco Pereira, de 'pelos guardas do Santo Ofício com grossas correias. Examinado
25 anos, escravo do Capitão-mor João Francisco Pedrosa, cons- seu processo pela Mesa Inquisitoriál, escreveram: "Após a pa-
trutor da ponte "que vai para a outra banda para as casas do ralisia, o r eu ficou com emb ar aço na perna e br aço e total loucura
reverendo vigário de São João dei Rei" e possuidor de 38 cativos «frenética, nascida da desesperação em que o pôs seu génio áspero
nas Gerais. Diz o negro que, morando no Rio das Mortes, meteu *& ardente, vendo-se preso e doente." Morreu quatro anos depois
uma. oração do Justo JuÍ2 Divinal debaixo da pedra d'ara de um de preso, no Hospital Real de Todos os Santos, em Lisboa, a 10
altar, confeccionando com ela um patuá "para o livrar de ladrões de junho de 1762 — no mesmo ano em que Rosa e seu padre-
e inimigos". Se ficou protegido contra tiros e facadas, não -protetor chegam à Inquisição — terminando seu processo com
podemos saber; o certo, porém, é que foi ineficaz para defendê-lo o seguinte registro hospitalar: "Homem doido de que se ignora
das garras do Santo Ofício que, em Lisboa, o sentenciou com seu estado, pais, pátria e ocupação". Toda essa dor, tristeza e
açoites, hábito penitenciai perpétuo e cinco anos d© galés. ^tragédia familiar foram causadas simplesmente pela má orien-
Também das Minas foram enviados para a Inquisição de tação da piedade eucarística: Jesus-Hóstia deve ser adorado,
Lisboa dois irmãos envolvidos com um rocambolesco roubo de "comungado e agradecido humildemente. Tocar na hóstia, carre-
hóstias: Salvador Carvalho Serra e António Carvalho Serra •gá-la em patuá, redunda na condenação paiúina levada às
eram dois rapazes pardos, netos de uma escrava angolana que, ultimas consequências pelos Senhores Inquisidores. Tratar in-
certa feita, "conversando em Congonhas com várias pessoas "dignamente a comunhão equivale a buscar sua própria conde-
sobre relíquias, uma delas disse possuir uma que era melhor nação.
que o Santo Lenho": tratava-se de um conjunto de três hóstias Esta longa digressão sobre a Eucaristia teve como escopo
que um pintor roubará de dentro do sacrário e com as quais os familiarizar o leitor com o china de respeito, mistério, devoção,
irmãos beatos fizeram seus patuás. Não havia cristão, antiga- " "superstição e fanatismo com que os contemporâneos de nossa
mente, que não carregasse no pescoço qualquer bentinho, me- beata se relacionavam.com o Pão dos Anjos. Na Espanha qui-
dalha, rosário ou patuá'. Denunciados de terem hóstias consa- nhentista registra-se o episódio extremo da ilusa Madalena da
gradas em seus amuletos, foram detidos por ordem do pároco de Cruz que, ao ser presa pelo Santo Ofício de Toledo, constou em
Vila do Príncipe e, após exame do vigário geral da comarca, seu processo que, certafeita, "ao passar o Santíssimo Sacramen-
ficaram 15 meses presos até serem embarcados para Lisboa. Na to pela rua, abriu um buraco na parede com um ferro para que
Inquisição, o primeiro sacrílego confessou que, "ainda que sabia pudesse adorá-lo".22 E o próprio Dom Manuel da Cruz, o mesmo
ser grave pecado pegar nas partículas consagradas, ignorava bispo que mandara açoitar nossa espiritada, tinha em sua cama,
que trazê-las consigo fosse tão grave delito". Teve como sentença esculpidos na cabeceira, o cálice sagrado coroado com a Santa
abjurar seus erros no Auto de Fé, sendo degredado para Castro Eucaristia, envoltos em raios de luz, com dois anjos, compondo
Mearim, no Algarve, por dois anos. Seu irmão António, o mais opiedoso décor, emposição de adoração a este augusto mistério.
velho, teve destino melancólico: no cárcere sofreu um estupor, Esta cama encontra-se no Museu de Arte Sacra da Bahia, e foi
ficando paralítico, daí ter sido diagnosticado pelo.médico da com viva emoção que o autor destas páginas e a Dra. Laura de
Inquisição como "formalmente doido". Magérrimo, erapele sobre Mello e Souza, ambos admiradores do bispo de Mariana, desco-
osso, pois recusava-se a comer com medo de ser envenenado; nos brimos juntos o referido leito eucarístico.

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p
iiifc
Í
Repetidas vezes a hóstia aparece no processo de nossa cabeças e dez chifres apareceu a São João em sua velhice.
biografada. Em. três visões distintas viu a Santa Partícula, seja Portanto, a lépida borboleta confrontada com a paquidérmica
derramando sangue e cercada de luzes brilhantes, seja eclipsada besta do Apocalipse faz-nos lembrar do pequenino Davi derru-
e enegrecida pelos pecados da humanidade; na intolerância bando o gigantesco Golias. Do mesmo modo como o altíssimo
mística com que descompunha os comungantes que julgava mistério da transubstanciação se esconde dentro da pequenina
impropriamente preparados para receber o augusto mistério; hóstia, assim também Deus pode usar uma borboletinha dan-
na revelação recebida nos primeiros tempos de sua conversão, çante ou uma negra espiritada para revelar sua Onipotência,
quando lhe é ensinado que este "altíssimo mistério se nos Não está escrito no Evangelho que os Céus escolheram os
comunica íntegro na mais breve partícula". Será, contudo, no pequenos e pobres para confundir os ricos e poderosos?!
Rio de Janeiro que a beata desenvolverá mais ainda seu misti- Provavelmente foi após estes episódios, j á convalescida dos
cismo eucarístico, recebendo todo estímulo dos franciscanospara açoites no pelourinho, de Mariana, que Rosa conseguirá sua
frequentar com maior assiduidade a mesa da comunhão. alforria. Há anos aspirava ser resgatada do cativeiro, seguindo
Se, por um lado, estas últimas visões das hóstias negras a^mesma trilha de milhares de negros e negras das Minas que
ou ensanguentadas revelam certa influência da escatologia alcançaram a emancipação. Como muito bem pondera um espe-
apocalíptica no imaginário da madalena courana, visões, aliás, cialista na história-deraográfiea regional, "a atividade minera-
i
perfeitamente de acordo com as que tiveram outros santos tória possibilitava aos escravos maior mobilidade social vis-à-vis
reconhecidos por Roma, por outro lado, notamos que alguns de às demais economias do Brasfl-Colônia. A forma como se reali-
seus delírios preternaturais são tão pueris quanto as historietas zava a exploração do ouro e diamantes possibilitava mais liber-
conservadas nos Evangelhos Apócrifos, que por sua inverossi- dade e iniciativa aos cativos". Segundo cálculos de Russel-
milhança foram considerados inautênticos pela Igreja Católica. "Wood, entre os anos 1735 e 1749, o número de forros em Minas
Eis um exemplo que surpreende não só pela tolice, como sobre- Gerais representava por volta de 1,4% das pessoas de origem
tudo pela conivência do Padre Xota-Diabos na legitimação da africana, subindo para 41,4% em 1786. Como no resto da
estultícia. Certa feita, 'quando hospedados em casa de Dona colónia, também aí as escravas, apesar de serem em número
• muito inferior aos cativos do sexo masculino, ultrapassavam os
i^k Escolástica, rezando o terço comunitariamente, de repente "apa-
receu uma borboleta fazendo várias visagens". Incontinenti, o homens na obtenção da alforria, numa proporção de duas escra-
Padre viu nas piruetas deste inseto o dedo de Deus e proclamou vas para um negro. Enquanto muitos cativos conseguiam, a
que era o Espírito Santo que aparecia graças à intercessão de liberdade como gratidão de seus senhores por terem, descoberto
Rosa. Aleluia, aleluia! Santa Borboleta, orapro nobis! quantidade avultada de ouro ou diamantes de bons quilates, as
b Conta a história sagrada que esta terceira pessoa da escravas via de regra obtinham sua liberdade, seja através da
f* Trindade Santíssima, também chamada de Paráclito, apareceu
aos apóstolos como múltiplas línguas de fogo (Atos, 2:3), a Cristo
prestação de serviços sexuais a seus proprietários, ou a clientes
eventuais, seja dedicando-se ao comércio de todo género de
em forma de pomba e, outras vezes, como vento impetuoso. mercadorias de primeira necessidade. Tentando controlar o
Travestido de frenética borboleta, é a primeira vez que tenho descaminho do ouro e pedras preciosas que das mãos dos negros
notícia, embora tal metamorfose não seja completamente con- faiscadores iam diretamente para as bolsas das negras do tabu-
traditória à tradição bíblica, onde o Diabo apareceu a nossos leiro, a Coroa promulgou uma série de bandos reprimindo o
primeiros pais em forma de serpente, uma baleia engoliu o comércio e andanças destas vendedeiras pela área de minera-
profeta Jonas por vários dias e um dragão vermelho de sete ção, da mesma forma como tolheu, através das Visitas Pasto-

150 151
rais, o exercício do comércio venéreo, 'outra fonte significativa há pouco citadas, e a cujos testamentos nos referimos, podemos
de acumulação de capital para muitas negras sequiosas de avaliar o valor de uma escrava adulta oscilando entre 190 e 256
comprar sua liberdade. oitavas de ouro—a variação devendo ser interpretada em função
Algumas tantas escravas recorriam a feitiços a fim, de da idade, aptidões ou habilidades profissionais, por razões im-
acelerar o processo de sua alforria, ou amansar a violência de ponderáveis, como a generosidade do senhor em subestimar o
senhores mais cruéis. Este episódio, ocorrido em Mariana, na preço de sua cativa, etc. Antonil, em sua lista de preços dos
freguesia dos Prados, revela muito a respeito do clima de sorti- escravos e cavalgaduras em Minas Gerais nos inícios deste
légios e feitiçarias dominante nas Gerais naqueles tempos: a mesmo século, indicava por uma negra ladina e cozinheira, 350
mulata Florência e seu irmão Simão; sabendo que seu senhor, oitavas; por um moleque, 120 oitavas, enquanto um boi custava
o alferes Domingos Róis Dantas, pretendia casar-se, enterraram 100, uma galinha ou uma boceta de marmelada 3 ou 4 oitavas.
dentro e fora de sua porta, secretamente, uma panela de feitiços Com a consolidação da economia mineira e maior regularização
"cheia de monstruosidades diabólicas". Passados cinco anos da das comunicações com o litoral, estes preços tenderam a baixar.
mandinga, nada de o alferes conseguir acertar casamento. Des- Uma missa valia de 2 oitavas a 120 réis, custando, em 1744, 20
coberto o feitiço, Florência é chamada à presença de seu senhor, oitavas de ouro a. confecção de uma corrente de ferro com 4
que lhe diz: colares e 4 algemas usados "para irem os presos criminosos que
se achavam na cadeia de São João dei Rei para o Rio de
'"Vem cá, porca feiticeira, para que tu enterraste esta *
porcada aqui em minha porta?' Disse ela: Vossa Mercê há
Janeiro".
Foi em sua primeira visão, em março de 1748, que Rosa •
de casar e eu ficar cativa toda minha vida? Ainda que eu
vá para o inferno, com os mesmos remédios hei de tirar a
recebeu a seguinte ordem divina:
*
vida!' Disse o alferes: Tira-me já isto daqui que eu já vou "se queria seguir a Deus, não se enfeitasse mais, que o
para a Casa [da Câmara] paratepassar a carta de alforria/ seguisse despida... e ela, confundida deste acontecimento,
Tirou a denunciada a panela e os feitiços e foi com ele para distribuiupelas pessoas mais necessitadas o ouro que tinha
ê
lhe passar a carta de alforria e, antes de se pôr o sol, estava e os vestidos de seu uso adquirido tudo pela culpa e ganhado
Florência com sua carta na inão. Tinha 15 para 16 anos. com uma vida lasciva, porque sua senhora não lhe dava
todos os enfeites que ela queria, e por isso os aceitava dos
*
Exercendo durante quinze anos "vida desonesta e mere- sujeitos com que se comunicava, em prémio da sua sensua-
triz", Rosa acumulou certo pecúlio, representado por roupas e lidade."
jóias, conforme declarou em sua confissão. Porque não utilizou
este capital para comprar sua alforria, não nos informa. O mais Já o Padre Antonil chamava a atenção do quanto nas Minas
provável é que fosse mulher gastadeira, que consumisse em as negras se afeiçoavam às jóias, roupas engalanadas e "mil
guloseimas, bugigangas e superfluidades o ouro obtido na alcova bugiarias de França". O cineasta Caca Diegues soube, com
ou pelos morros circundantes do Infíccionado. Quem sabe seus maestria, revelar este aspecto exuberante e espalhafatoso da
encantos fossem limitados, reduzidos os clientes e parcos os negra esposa do Contratador de Diamantes, a legendária Chica
rendimentos? Não deve ter sido a única mulher do fandango das da Silva, que para negar e desforrar-se de sua condição original
Minas que não enricou com o comércio lascivo. de cativa, excedia em luxo e ostentação às próprias brancas, com
Como já dissemos alhures, se tomarmos como parâmetro seus vestidos cheios de fitas e rendas, suas perucas multicolori-
o valor das duas negras minas, Maria do Ó e Maria da Costa, das, jóias em profusão, cadeirinhas e seges almofadadas com

152 153
tecidos de Holanda. O barroco das igrejas tinha sua contrapar- Jóias de Oxiro Valor em Oitavas de Ouro
tida nos figurinos, j óias e toucados dos habitantes endinheirados 61
2 cordões
da suntuosa Minas Gerais, capitania onde, nos meados de seu
primeiro século, todos pareciam repetir as proezas doiradas do l cruz 22
frígio Rei Midas. l anel de filigrana 9
Voltando aos testamentos das duas negras minas há pouco
6 pares de botões filigrana 15
citadas, ambas contemporâneas, quem sabe até conhecidas de
nossabeata, posto terem vivido todas em São Caetano, podemos l Espírito Santo 13
visualizar quão barroco eram os hábitos de consumo, e ostenta- braceletes, corais engravados 32
tórios os pertences destas deusas de ébano. A liberta Maria do
i Ó preferiu investir seu capital em bens imóveis e semoventes: 4 pares de brincos
possuía uma rocinha com rancho, bananal, datas de mineirar, l menino Jesus 5
outro rancho no arraial, uma morada de casas na sede da Total 157
freguesia de São Caetano, 2 cavalos selados, 2 novilhas, 4 tachos
de cobre, 12 escravos, sendo 7 machos. Devia ser um misto de í _
mineiradora e comerciante, pois era dona de "uma venda com Nos dias de festareligiosa, ou, quem sabe, ao receber algum
seus pesos de libra e mais preparos". Tantos tachos de cobre visitante mais ilustre em sua casa, ao qual servia o repasto em
sugerem dedicar-se também ao fabrico de marmeladas, indus- pratos de estanho, colheres de prata e toalhas de linho rendadas,
tria caseira muito comum aquém da Mantiqueira. Maria da Costa usaria ou sua "saia de veludo preto" ou o
Maria da Costa, a outra liberta mina bem-sucedida mate- "conjunto de veludo azul claro", nos pés calçados — privilégio
rialmente, de nação ardra, além de nove escravos e uma casa de dos livres — "um par de fivelas de sapato de prata", pertences
que guardava numa "caixa e baú de moscóvia". Tudo constante
telhas em São Caetano, possuía vários apetrechos domésticos
em seu testamento. Além de "trastes de casa", possuía também
permitindo-nos supor que mantinha uma sofisticada casa de
"toda roupa branca e quatro lençóis de linho" — usados prova-
pasto, ou algo do género, talvez uma das muitas casas de alcouce
velmente em situações especiatíssimas. Maria da Costa morreu
que, além de bebida e comida, ofereciam parceiras a quantos
solteira, deixando seuex-senhor, Belchior da Costa Soares, como
homens quisessem dançar o fandango. Deixou em seu testamen-
seu testamenteiro. Mandou celebrar 2 mil missas na cidade do
to um tacho de cobre de 14 libras, 6 pratos de estanho, 7 colheres
Porto, confiando, certamente, que no Reino tal liturgia ser-lhe-ia
de prata, um garfo, 6 toalhas de renda e 3 de linho. Esta africana
*
€ vivia com muita gala, e seu negro corpo era insuficiente para
mais eficaz. Devia sentir-se muito culpada para investir tanto
no descanso de sua alma: que descanse em paz! Requiescat in
carregar todas as suas jóias de ouro, compradas só Deus sabe
com que meios. Eis sua colecão de enfeites corporais: pace.
Tudo nos leva a crer que Rosa acumulou bem menor
quantidade de roupas e jóias do que sua contemporânea Maria
da Costa, cujo montante de seu ouro, 157 oitavas, não seria
suficiente sequer para comprar sua alforria, avaliada em 190
t oitavas. Apesar de todos seus bens terem provavelmente valor
inferior à sua raanumissão, Rosa teria podido utilizá-los como
é
154 155
parte do pagamento, ou guardado o ouro até completar o mon- físico em que ficou após os açoites, "quase morta" e com incurável
tante. Preferiu contudo seguir o conselho divino, mesmo deso- semiparalisia em seu lado direito. Temendo sua morte, talvez
bedecendo a seu padre confessor que, ouvindo seu relato, 'lhe Dona Ana tenha considerado mais seguro vender Rosa por um
disse que deitasse fora semelhantes visões". terço de seu valor, do que vir a perder todo seu capital. Foi
Passados alguns meses, talvez um ano, após seu gesto portanto um bom negócio para vendedores e compradores; me-
magnânimo, Rosa começa a investir de novo em sua libertação, lhor ainda para a cativa africana, que, após 25 anos de escravi-
só que agora utilizando estratégia mais virtuosa e tendo objeti- . dão, recupera sua liberdade. Liberdade relativa, diga-se a bem
vos também cristãos. Como emMariana e seus arredores "o povo da verdade, pois o que ocorreu foi uma troca de proprietários:
a perseguia chamando-a feiticeira", foi à procura de seuprotetor Dona Ana Durão recebeu o moleque e entregou Rosa ao Padre
no Rio das Mortes, "para que este a favorecesse e lhe tirasse Francisco e Sr. Arvelos, que a partir de então serão os proprie-
esmolas para se forrar". tários da negra courana. Tanto que nos dois processos, no do
"Por caridade" ou "por amor de Deus" são expressões que Padre e no da espiritada, Rosa é referida como "escrava que foi
frequentemente aparecem como justificativas da concessão da de Pedro Róis Arvelos e dele a comprou o Padre Francisco
liberdade nas cartas de alforria e há muitos exemplos de escravos "•' Gonçalves Lopes". Só alguns anos mais tarde, quando a courana
que conseguiram comover seus contemporâneos filantropos que transformou-se em Madre no Recolhimento de Nossa Senhora
individualmente ou em grupo dão alforria a seus protegidos. • do Parto, é que recebeu em mãos sua carta de alforria.
Apesar de continuar escrava, após ter sido comprada pelo
"E vendo o dito Padre Francisco e outras pessoas o seu devoto Arvelos, Rosa gozará de toda regalia como se fosse
vexame que o Espírito Maligno fazia a ela, entraram por livre. Era liberta de fato. Tanto que no Rio das Mortes "nesse
caridade a falar à dita sua Dona Ana para a libertar, o que tempo passava ela com o comer que o Padre lhe dava".
ela não quis, só dando-lhe pela liberdade da depoente um É nesta época, provavelmente retornando à fazenda dos
escravo, com o que entrou o Padre Francisco e Pedro Arvelos, que Rosa arquiteta seu plano de voltar ao Rio de Janeiro:
Rodrigues Arvelos a pedir suas esmolas e concorreram
também com as suas para comprarem um escravo que "pedindo ao Padre que não a desamparasse, porque sem a
deram à dita Dona Aha e liberou-a ela, depoente." sua companhia passaria as maiores necessidades e arris-
caria a salvação de sua alma, e que f azia um grande serviço
Noutra ocasião diz-nos Rosa que foi trocada por um mole- a Deus se a levasse para o Rio de Janeiro, onde acharia
que — o que permite-nos inferir que não tinha muito valor aos alívio para seus trabalhos, porque naquela cidade havia
olhos de sua proprietária, posto que Antonil dizia que uma negra pessoas doutas e religiosas que melhor poderiam conhecer
ladina valia três vezes mais do que ura moleque. Ou então, quem a verdade de seu espírito, pois nas Minas não poderia viver
sabe, Dona Ana subavaliara a negra espiritada também "por porque j á a tinham por velhaca e fingida." (Velhaca: pessoa
caridade", facilitando assim a emancipação dabeata. Diz o Padre enganadora, esperta, traiçoeira, patife, lasciva e devassa.)
Francisco que nesta empreitada contou com o auxílio de um tal
António deBarros, cidadão cuja identidade não é revelada neste Rosa viverano Rio de Janeiro dos 6 aos 14 anos, entre 1725
processo inquisitória!. Também não se declara com precisão em e 1733. Agora, com'32 anos, que lembranças teria conservado
que ano Rosa foi alforriada. Tudo nos leva a crer que fora da "cidade maravilhosa"? Passados 18 anos nas Gerais em sua
"liberada" após ter sido flagelada no pelourinho, e talvez seu época de maior pujança aurífera, o que teria levado esta africana
baixo preço tenha explicação exatamente pelo deplorável estado a desejar abandonar as Minas? Tudo nos leva a crer que a beata

is.
156, 157
espiritada e seu confessor buscaram o litoral a fim de escaparem 7. ANTT, IL, Processo n2 423 (1734).
do cerco policialesco das autoridades religiosas, atentas e preo- 8. Guillois, Abade Ambrósio, Explicação Histórica, Dogmática, Moral,
cupadas que estavam com os desatinos e estripulias que o Litúrgica e Canónica do Catecismo. Porto: Livraria Internacional,
Xota-Diabos e seus energúmenos andavam praticando pelas 1878, 444.'
9. Arquivo da Cúria de Mariana, Livro de Óbitos de São Caetano e
comarcas do Rio das Mortes e de Vila Rica. Esta ilação é
Inficcionado, U-32 (1750-1791),
confirmada pelo testemunho do Padre Filipe de Sousa, então 10. Keckeisen, D. Beda. Missal Quotidiano. Salvador: Editora do
morador na freguesia de São João dei Rei, que perante o Juízo Mosteiro de São Bento, 1954, p. 244.
Eclesiástico fluminense declarou: "capacitando-se o Padre Fran- 11. Leal, Juan. Ano Cristiano. Madri: Editora Excelsior, 1946, p. 572;
cisco que queriam tirar devassa contra o procedimento de Rosa, Lorenzato, José. Op. cit., 1979, pp. 193-199.
fugiram, das Minas para o Rio de Janeiro". Devassas que pode- 12. Fazenda, José Vieira. Antiqualhas e Memórias do Rio de Janeiro:
riam ser acionadas tanto pelo bispo, quanto por ordem dos Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo 93, v.
inquisidores, mas que na verdade nunca chegaram a consumar- 147, 1923, p. 225.
se, posto inexistir no Arquivo de Mariana qualquer documento 13. Feitosa, António. Falta um Defensor para o Padre Cícero. SãoPaulo:
relativo à nossa espiritada. Loyola, 1983.
14. Machado, Simão Ferreira. Triunfo Eucarístico. Exemplar da Cris-
Em São João dei Rei, encruzilhada do Caminho Novo onde
tandade Lusitana (l 734). In: Ávila, Affonso, Op. cit.
obrigatoriamente vinham passar milhares de andarilhos e via- IS.Boschi, Caio César. Os Leigos e o Poder. Irmandades Leigas e
geiros provenientes do litoral, as notícias da capitania vizinha Política Colonizadora em Minas Gerais. São Paulo: Ática, 1986.
deviam chegar diariamente, de modo que o Xota-Diabos e sua 16. Couto, P. M. J. G. Op. cit., 1884, p. 116.
dirigida mantinham-se bem atualizados sobre a situação sócio- 17. ANTT, Caderno dos Solicitantes n2 1.221 (10-7-1762).
econômica do bispado limítrofe. O Sr. Arvelos, ele próprio, tinha 18. Cintra, S. O. Op. cit., 1982, p. 179.
algumas pendências judiciárias no foro do Rio de Janeiro, e tanto 19. ANTT, Inquisição de Lisboa, Processo ns 11.767.
ele quanto seu compadre sacerdote contavam com amigos lá 20. ANTT, Inquisição de Lisboa, Processo n2 4.684 (1757-1761).
residentes que poderiam albergá-los nos primeiros dias, como ^21.,ANTT, Inquisição de Lisboa, Processo n2 1.078 (1762).
de fato sucedeu. 22. Imirizaldu, Jesus. Monjas y Beatas Embaucadoras. Madri: Editora
Nacional, 1977, p. 33.
23. Costa, Iraci dei Nero: A Presença do Elemento Forro no Conjunto
dos Proprietários de Escravos. Ciência e Cultura, 1982, n. 7, pp.
•- l 836-841.
Notas 24. Bussel Wood, A. Op. cit., 1982, p. 111.
25,, Mattoso, KatiaM. Q. Op. cit., 1982, p. 185; Costa, Iraci N. Op, cit.,
— -1978, p. 7.
1. Trindade, Raimundo. Op. cit., 1953, -26. Mott, Luiz, Subsídios à História do Pequeno Comércio no Brasil,
2. Lorenzatto, José. Op. cit. 1979, p. 119. Revista de História, v. 53, 1976, pp. 81-106.
3. Garigou-Lagrange. Op. cit., 1938, pp. 806-811. 27. ANTT, Caderno do Promotor na 130, 12 maio 1773.
4. Lorenzatto, José. Op. cit., 1979, p. 14. '28~ Antonil, J. A. Op. cit., 1972, p. 269.
5. Mury, Paul. Histoire de Gabriel Malagrida. Paris: Charles Douniol 29. Cintra, S. O. Op. cit., 1982, p. 271.
Editeur, 1865. 30. Mattoso, K. M. Q. Op. cit., 1982, p. 197; Expilly, Charles. Mulheres
6. DeÁvila, Teresa, Castelo Interior ou Moradas, Cotia: Editora Paulus, e Costumes do Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional,
1981, p. 135. " 1977.

158 159

r
- 7

Mudança de Nome:
Rosa Maria Egipcíaca, da Vera Cruz

Nos inícios de 1751 nossa biografada vai dar novo rumo à


sua negra vida:

<-" "dispondo-se para fazer a jornada para o Rio de Janeiro


;-; com o Padre Francisco Gonçalves Lopes, seu senhor, em
•• uma noite que estava dormindo, acordou-a uma voz que
- dizia: 'Segue-me!' E logo tornou a ouvir: 'ROSA MARIA
•• EGIPCÍACA DA VEEAJ3RUZ é o teu nome, segúe-me!' Coro.
o que ficou ela muito rendida, porque a dita voz saía do
Cristo Crucificado."
Esta alteração de nome merece toda nossa atenção, não só
pelo que representa simbolicamente, mas também, em seu sig-
nificado como estr atagema com vistas à^o_nstrugâoj.eiiunia nov.a
identidade. Chegando em terra desconhecida com nome diferen-
O
te^ j5eiiajniuafáçâljis_cjmde^ ou eclesiástica. o
Adotando nome tão pomposo e esdrúxulo, a africana certamente
confiava no poder mágico deste seu novo onomástico — quem
e
sabe um resquício da tradição de seus ancestrais nigerianos
cujos nomes rituais são sentenças ou augúrios revelados no dia
ã- do orukó, o dia do nome. Apresentando-se como Rosa Maria
í
Egipcíaca da Vera Cruz — quem estava até então acostumada
l Í a ser chamada simplesmente Rosa, ou Rosa Courana, ou ainda,
Rosa, escrava de Dona Ana, certamente contava causar viva
impressão nos interlocutores que jamais teriam se deparado com
uma negra tão importante, daí esperar que com a grandiloqúên-
cia de seupatronímico todos osespaços eportas abrir-se-lhe-iam,
sobr.e_tu.do-entra_"as^pess_Q_as doutas e religiosas que melhor
poderiam conhecer a verdade de seu Espírito".

161
Mudando seu nome, Rosa insere-se de cheio na tradição Foi contudo nas ordens religiosas femininas que mais se
judaico-cristã, na qual diversos personagens bíblicos e santos cultuou a adoção de longos sobrenomes de inspiração devota.
católicos praticaram, o mesmo ritual iniciático, muitas vezes Eis quatro exemplos retirados de algumas freiras escritoras de
seguindo determinação celestial., significando sempre a meta- livros piedosos, todas contemporâneas de Rosa, em mosteiros de
nóia — a mudança de vida, tal qual bem a descreve o Apóstolo Portugal: Soror Arcângela Maria da Assunção, Soror Josefa
J dos Gentios. Abrão se transforma em Abraão, Jacó em Israel, Maria da Madre de Deus, Soror Josef a Teres a do Monte Carmelo,
P Simáo em Pedro, Saulo em Paulo. Os Papas ainda hoje adotam Soror Maria Micaela do Santíssimo Sacramento. Nossa negra
o mesmo ritual: nos anos em que viveu Rosa, verbi gratia, o courana é areligiosa que ostentou o maior nome de que até agora
Cardeal Próspero Lambertini foi coroado com o nome de Bento tenho notícia: cinco apelativos — Rosa Maria Egipcíaca da Vera
XT7 (1740-1758), sendo substituído por Cai-lo Rezzonico, que na Cruz. Só mesmo às famílias reais permitia-se' tamanha prolixi-
Sede Pontifícia chamou-se ClementeXIII (1758-1769). Também dade onomástica, considerando que boa parte dos mortais de
nas ordens religiosas havia igual costume: na tomada de hábito, língua portuguesa, pertencentes às camadas mais humildes da
os noviços recebiam novo nome. Eu próprio, em 1963, quando sociedade, não possuía sequer um nome de família, só o primeiro
recebi a batina branca da Ordem de São Domingos, tive meu e único nome. Com as cabeças coroadas, contudo, a regra era
nome batismal Luiz mudado para "Frei Paulino". exagerar: Dona Maria I, contemporânea de Rosa, e como a
Nomen est omnenjá. dizia Cícero. CMaojpie_é-Q_de&t-iso ou africana, devotíssima dos Sagrados Corações, recebeu na pia
f augúrio^ da pessoa que o porta, e todas essas alterações de batismal oito nomes: Maria Francisca Isabel Josefa Antonia
&
"5 oiioiaásticj3_acrnia-descr-itas-queEern-.sirabolizar-.a mudança de Gertrudes Rita Joana; o povo porém preferiu chamá-la, simples-
£
destino com que os convertidos, noviços, papas e santos quiseram mente, e com razão, Maria, a Louca. Seu neto, nosso Dom Pedro
marcar suas "vidas, "enterrando o velho homem", como escreveu I, foi o campeão dos supernomeados: teve 16 nomes, enquanto
o fariseu convertido em apóstolo das gentes, Saulo-Paulo. Mu- Pedro II foi batizado apenas com 14.
dança e augúrio.._ap mesmo tempo vaticínio de nova conversão Algumas santas igualmente mudaram de nome por deter-
no caminho estreito da salvação. -minação divina: a xará de nossa espiritada, Santa Rosa de Lima
Alguns religiosos e religiosas mantinham o prenonife, mas (1586-1617), a primeira santa a ser canonizada nas Américas,
se lhes incorporava n m sobrenome retirado da história sagrada, na pia foi chamada Isabel de Flores y dei Oliva, mas, por ordem
da teologia ou da liturgia católica. Exemplifico com alguns expressa de Nosso Senhor e confirmação de Nossa Senhora,
franciscanos da Província do Rio de Janeiro, do mesmo convento passou a apresentar-se como Rosa de SantaMaria. Outrafreira
onde Rosa receberá orientação espiritual, e que se destacaram santa, Ana Maria Redi, carmelita descalça de Florença, contem-
pelas virtudes ou pelos dotes literários:.Frei Agostinho da Con- porânea de Rosa, numa visão ocorrida em 1765 recebeu seunome
ceição, Frei Caetano de Belém, Frei Cristóvão de Jesus Maria, "iniciático, Soror Teres a Margarida do Coração de Jesus, servin-
Frei Inácio de SantaRosa, FreiManuel do Desterro, Frei Miguel do-lhe este como programa de vida claustral, posto ser grande
de São Francisco, Frei Patrício de Santa Maria, etc. Os bispos devota e propagandista dos Sagrados Corações.
que Rosa teve a ventura —_ e desventura — de encontrar A adoção por parte de Rosa de nome tão pomposo e inusi-
pessoalmente também herdaram a mesma tradição conventual tado coloca-nos alguns problemas de história religiosa que nos
dos sobrenomes sacros ou hagiográficos: Dom Frei Manuel da transportam às areias davPalestina há mil e quinhentos anos
Cruz e Dom Frei António do Desterro; o primeiro, religioso da passados, época em que viveu sua nova padroeira, SantaMaria,
Ordem Cisterciense, o segundo, beneditino. Egipcíaca.

í 162 163
.•II *

Atribui-se a São Sofrônio (560-638), bispo de Damasco, a trouxe endureceram e me bastaram até o dia de hoje. Os
autoria da primeira biografia desta santa, que na versão da . • meus vestidos caíram em frangalhos e, durante os dezes-
Legenda Áurea, de Frei Jacob Verogine, dominicano (1260), . sete primeiros anos de minha vida solitária, tive de sofrer
reproduz sua vida através de palavras da própria biografada. - as tentações da carne, mas com a divina graça foram todas
Eis como Maria Egipcíaca narrou sua história: v. vencidas. Até aqui narrei a minha história."

"Nasci no Egito, e nos meus 12 anos, dirigi-me para Foi, portanto, após quarenta e sete anos de solitária peni-
Alexandria onde durante 17 anos me entreguei à pública tência da santa, no deserto palestino, que a Divina Providência
depravação, e a toda a gente -me prestava. E como alguns mandou Zózimo, eremita do Mosteiro de São João Batista, para
homens dessaterra se preparavam para fazerem a viagem as margens do Jordão. Ao santo monge, Maria Egipcíaca pareceu
de Jerusalém para irem adorar a Vera Cruz, eu pedi aos •uma visão diabólica: estava nua dos pés à cabeça, escondendo
marinheiros que os transportavam para me deixarem ir parte de seu enegrecido corpo queimado pelo sol, com sua branca
com eles. Quando me exigiram o frete da passagem, logo cabeleira de anciã de 76 anos de idade. Assustadíssimo, pensan-
lhes disse: 'Irmãos, nada tenho que vos dar, mas aqui está do sempre tratar-se de um dos diabos que tentara Cristo nestes
o meu corpo para pagamento da minha passagem.' Nestas mesmos desertos, Zózimo enfrentou a criatura, que, ao vê-lo,
condições me levaram e dispuseram-se do meu corpo para fugiu apavorada, e só após prolongadaperseguição e insistência,
se pagarem. Chegamos todos a Jerusalém e tendo-me dispôs-se a abrir seu coração e contar-lhe a história que acaba-
apresentado comessagente às portas daigrejapara adorar mos de transcrever. No final do relato, Zózimo não conteve as
a Vera Cruz, eu senti-me repelida por uma força invisível. lágrimas, emocionado e maravilhado com tão exemplar arrepen-
Tornei-me muitas vezes, debalde, até às portas da igreja, dimento. Acertaram outro colóquio para o próximo ano, para a
e sempre me sentia retida, ao passo que os demais entra- véspera da Quinta-feira Santa, dia da Instituição da Sagrada
vam desembaraçados. Então recolhi-me em mim mesma, Eucaristia, comprometendo-se o monge a ministrar-lhe a santa
e pensei que meus numerosos e imundos pecados eram a comunhão. Retira-se a anacoreta para o deserto, atravessando
causa de minha repulsão. Comecei a suspirar intimamen- duas vezes as águas do rio Jordão sem molhar os pés, por cima
te, a soltar lágrimas amargas e a castigai- o meu corpo com da torrente, repetindo o mesmo milagre de Jesus no Lago
as próprias mãos. Ao: reparar no ádito eu vi uma imagem Tiberíades, situado a poucos, dias de caminhada deste local.
da Bem-aventurada Maria Virgem e comecei então a ro- Passado o ano, Padre Zózimo volta ao mesmo lugar, encontrando
gar-lhe humildemente que meus pecados perdoasse e me a penitente que, com muita piedade e alabanças, recebe o Pão
permitisse entrarpara adorai- asanta cruz, e eulhe prometi dos Anjos. Marcam um terceiro encontro na próxima Semana
abandonar o mundo e para o futuro fazer voto de castidade. Santa. Retornando ao local aprazado, Zózimo vê um clarão —
Possuída de confiançana Virgem. Bendita, entrei desta vez era o corpo de Egipcíaca já sem vida. Querendo enterrá-la entre
sem obstáculo na igreja. Depois de ter adorado bem devo- lágrimas de tristeza, eis que vê surgir um leão ferocíssimo ao
tamente a Santa Cruz, um homem me deu três dinheiros, qual disse: "Esta santa me encarregou de a sepultar e eu não
com que comprei três pães. Ouvi então uma voz que me posso cavar a terra porque sou velho e não tenho aprestos. Cava
dizia: 'Se transpuseres o rio Jordão, tu serás salva.' Atra- pois a terra com as unhas, para que possamos sepultar o santo
vessei então o Jordão e vimpara este deserto, onde durante corpo." E o. leão começou desde logo a cavar e fez uma cova
quarenta e sete anos não vi viva alma; os três pães que suficiente, depois foi-se .embora, manso .como um cordeiro, e

164 165
Zózimo voltou para seu mosteiro glorificando a Deus. (Os leões hagiografia legendária com poucas chances de comprovação
gostavam particularmente dos eremitas antigamente: São Je- histórica. Santa Taís nem sequer chegou a ter seu nome incluído
rônimo [342-420] sempre é retratado com um leão ao lado, que no Martirológio Romano, e várias delas foram "cassadas" na
ficou seu bichinho de estimação em gratidão por ter-lhe arran- reformado calendário litúrgico empreendidopor Paulo VI. Prova
cado um espinho numa das patas. Desde qu.e o profeta Daniel da nebulosidade da vida de Santa Maria Egipcíãca é que não se
saiu incólume da cova dos leões, onde "um anjo de Deus fechou têm certeza nem em que século teria vivido: o dominicano
a boca destes animais e não lhe fizeram mal algum." [Daniel, Verogine diz que a santa penitente chegou ao deserto no ano de
6:23], o rei dos animais ficou submisso aos protegidos do Rei dos 280, sob o governo do Imperador Cláxidio; os eglandistas, aqueles
Reis.) incansáveis estudiosos jesuítas que a partir do século XVII se
Além das Marias de Magdala e do Egito, outras meretrizes propuseram como tarefarever e depurar a vida de todos os santos
arrependidas mereceram a devoção popular e a glória dos altares católicos, afirmaram ter sido em 421 o ano de sua morte — data
nos primeiros séculos do Cristianismo. A partir do século IV, o que o jesuíta Vizmanos contesta; para o escritor Cirilo de Esci-
símbolo de todas as "etairas"foa. Santa Taís> bela cortesã da Síria: tópolis, Egipcíãca foi levada aos céus por dois anjos no reinado
convertida pelo anacoreta Pafúncio dentro de seu próprio bordel, de Justino, em 520, sendo esta a versão aceita pelo Martirológio
ficou tão perturbada com a luz de Cristo que, em praça publica, Romano, que afestejano dia2 de abril, enquanto algreja oriental
queimou toda sua vil riqueza, passando o resto de sua vida em transfere sua comemoração para 9 do mesmo mês.
penitência, presa num cubículo. Outras beatas purgaram com Que caminhos teria seguido a lenda de Santa Maria Egip-
áspero ascetismo os desvarios de sua lasciva mocidade: Santa cíãca desde a Palestina até chegar às Minas Gerais, levando a
VPelágia da Síria,^bailarina das mais famosas do Oriente (devia negra Rosa a adotar-lhe o nome como patrona e sua vida como
ser exmá-a-narinterpretação da dança do ventre), arrependida, paradigma?
recebe o batismo em Jerusalém, distribui todas as suas jóias aos Desde o século VIjá se venera o túmulo desta santa "etaira",
pobres, traveste-se de homem, mud a o nome p ar a P el ágio epassa situado a, aproximadamente, 20 dias de caminhada do Rio
o resto de sua vida numa gruta no Monte das Oliveiras, até que Jordão deserto adentro, e São Sofrônio, monge no Egito e Pales-
ao morrer descobrem que o piedoso ermitão era mulher. Uma tina, depois Patriarca de Jerusalém, foi quem no século VII
versão sacra do mito de Diadorim, perpetuada por outras dan- primeiro escreveu-lhe a biografia, Vita Mariae Aegyptiae, circu-
çarinas convertidas em Santas: Marina, Margarida, Eufrosina lando pela cristandade em. versão latina e grega. Tanto quanto
e Eugenia, todas referidas no Dicionário dos Santos, de Donald Madalena, a penitente copta gozou de muita popularidade na
Attwater. Idade Média, penetrando profundamente no folclore cristão. Em
Santa Teoctista de Paros teve vida tão semelhante à de 1260 já corria pela Europa Ocidental a citada Legenda Áurea,
Maria Egipcíãca, que, segundo o jesuíta Francisco Vizmanos, sendo no século XIII o apogeu de sua devoção e divulgação. Na
autor da monografia Los Virgenes Cristianas de Ia Iglesia França, além do livro de Frei Jacob Voragine, O.P., foi composto
Primitiva, especialista nas pecadoras penitentes, "o anedotário um poema sacro a ela consagrado, assinado por Hildebert de
de sua vida se reduzia a um plágio literal, mudando-se táo-so- Lavardin; na Inglaterra, o bispo de Lincoln, Robert Grosseteste
mente certas circunstâncias de colorido local". Aliás, este pa- dedica-lhe outro poema, enquanto na Espanha aparece La Vida
dre-historiador é bastante realista ao salientar que todas as de Santa Maria Egipcíãca, o mais longo destes poemas religio-
vidas destas santas pecadoras foram "profusamente adornadas sos, com 1.451 versos, conservado no Arquivo do Escoriai, uma
pela fantasia novelesca", tratando-se na maioria dos casos de peça crucial no estudo da formação da língua castelhana. Em

166 167
Portugal já existia, a partir do século XTV, importante manus- Zózimo: jamais se viu uma mulher tão feiosa quanto a velha
crito — "Vida de Maria Egípcia" —, guardado na antiga biblio- penitente! Alguns pintores renascentistas tomaram-na igual-
teca do Mosteiro de Alcobaça, da Ordem Cisterciense, a mais mente como inspiração artística: Lorenzo de Credi, Tintoreto e
poderosa abadia de Portugal e onde funcionou a primeira escola Ribera, todos dando primeira plana à exuberante cabeleira da
pública do Reino.7 No século seguinte, Francisco Sá e Miranda ex-mulher pública.
(1495-1558), autor de importantes comédias e modernizador de ,.„:':• Suas supostas relíquias foram veneradas em templos de
nossa língua mater, compõe o poema AEgipcíaca S anta-Maria, Edma, Nápoles, Cremona e na Igreja de São Salvador de An-
conservado inédito até o século XIX quando Teófílo Braga o tuérpia. Não encontrei seu nome em nenhuma vila, capela ou,
trouxe à luz. No século XVII um companheiro de Santo Inácio freguesia de Portugal ou do Brasil, embora fosse a protetora da
de Loiola, o Padre Pedro de Ribadaneixa (1526-1611), escreve Irmandade da Guarda Real de Lisboa. Também na Espanha,
História das Vidas de Santa Maria Egipcíaca, Santa Taís e segundo o autor do livro Santoral Diabólico, não se conhece
Santa Teodora, cuja primeira edição em Portugal, traduzida nenhum povoado ou localidade que a tenha como patrona. Em
pelo oratoriano Diogo Vaz Carrilho, é de 1673, recebendo diver- Cachoeira, a segunda mais importante cidade histórica da Ba-
sas edições ao longo do século XVIII. Foi este folhetim, cujas 'hia,'junto ao altar-mor da Igreja da Ordem Terceira do Carmo,
primeiras 12 páginas são dedicadas à penitente do Jordão, que - - localizei um belíssimo quadro onde se lê: "Santa Maria Egipcía-
mais divulgou sua devoção na Lusitânia, trazendo estampada, _ ca."/com a figura de simpática jovem branca, pele cor-de-rosa,
na capa uma bela xilogravura na qual abundante cabeleira longa cabeleira castanho-claro, mostrando exuberantes seios
cobre, como urna túnica, o corpo desnudo da santa. _ - que mais evocam uma bela amazona de Rubens do que a
Além desta versão renascentista, a Biblioteca Lusitana, o -. - horripilante penitente pele-e-osso vista pelo eremita Zózimo e
principal guia da antiga literatura portuguesa, arrolamais duas realisticamente pintada pelo Mestre de Tebaida. Seios à mostra
vidas de Santa Egipcíaca escritas em nossa língua, de autoria nunca escandalizaram mesmo os mais piegas moralistas luso-
de Frei Eloi Ferreira e Frei Hilário de Lourinhã, ambos cister- _ brasileiros, sendo motivo de escárnio, por parte dos viajantes
cienses moradores no RealMosteiro de Alcobaça, provavelmente -^-^-estrangeiros, o pudor com que nossas donzelas e matronas
revisões setecentistas do manuscrito do século XTV. escondiam os tornozelos, mas deixavam bem à mostra, com
Quanto às representações iconográficas e estatutárias des- decotes ousadíssimos, parte de seus rechonchudos bustos. Afi-
ta penitente, por mais .que tenhamos pesquisado, dispomos de nal, se até a Virgem Maria, invocada sob o título de Nossa
pouquíssimas imagens e estampas a ela consagradas. Nariquís- . "Senhora do Leite, deixava à mostra seus sacratíssimos peitos,
sima "Coleção de Registros de Santos" da Biblioteca Nacional quando aleitava o Divino Infante, por que esconder o que Deus
de Lisboa só encontrei duas reproduções; na coleção da nossa -"não teve vergonha de em público mamar?
Biblioteca Nacional, organizada por Augusto Lima Jr., nenhum --= .. - Tive vaga notícia de que haveria uma imagem desta santa
santinho da anacoreta. Até hoje só vi uma imagem da santa: 1Z no Museu dos Aflitos, na cidade de Santo Amaro da Purificação.
uma escultura em madeira, de 60cm, do século XVIII, conser- Consultando dois especialistas em história do catolicismo bra-
vada no Museu da Ordem Terceira do Carmo de Salvador. „. sileiro, os professores Pedro Moacir Maia e Cândido da Costa e
Datam, contudo, do século XIII os belos vitrais de Bourges Silva, da Universidade Federal da Bahia, nenhum recordava-se
e Auxerre, onde a penitente é estampada em pose de oração; _ de ter visto sequer uma representação desta santa nó Brasil;
para o século XTV dispomos pelo menos da pintura do Mestre de apenas o último referiu-se a uma pintura cusquena vendida na
Tebaida, que retrata-a recebendo a comunhão das mãos de Bahia, por ele identificada como da santa copta. Nas Minas

168 169
Gerais, pesquisando inúmeras igrejas è museus, nada encontrei das vidas de outras penitentes orientais: como Madalena, tam-
desta penitente. bém a ex-escrava de Dona Ana foi possuída por sete demónios,
Não resta dúvida de que, apesar de o nome de Maria e como Taís, abrasada pelo amor de Deus, tomou a generosa
i Egipcíaca constar no calendário litúrgico, nunca teve grande resolução de desfazer-se "de tudo quanto tinha granjeado em
devoção no mundo luso-brasileiro, sendo Maria Madalena a seu torpe ofício", bens que foram avaliados em 300 libras de ouro,
preferida e quase exclusiva patrona das pecadoras arrependidas encerrando-se Santa Taís então nummosteiro de freiras. Tudo
presente no imaginário de nossos antepassados. Até a simples nos leva a crer que tais analogias, ou a maior parte delas ao
pronunciação do nome Egipcíaca constitui dificuldade para pes- menos, foram moldadas expostfacto, numa tenta.tiva inteligente
soas menos letradas, tanto que a própria Rosa assinava "Egy- de sacralizar pelo decalque a vida da espiritada na biografia das
ciaca", sem podermos afirmar se pronunciava seu nome com o santas penitentes. A inclusão em seu passado de trechos das
acento no "i" ou no primeiro "a", pois, embora o correto fosse a vidas de outras bem-aventuradas, como Taís e Madalena, revela
primeira forma, não é de todo improvável que preferisse a que o sincretismo hagiográfico, já nessa época, fazia parte da
segunda, "Egiciáca", tal qual ainda hoje ocorre na Bahia, por estratégia da ex-escrava para convencer as pessoas mais próxi-
exemplo, com o nome'Ciríaco, que popularmente é pronunciado mas da excelência e predestinação de sua santidade. No Rio de
^ "Ciriáco". Janeiro, conforme veremos a seguir, tal mecanismo será fre-
Confrontando a biografia da santa com a de Rosa, encon- quentemente acionado, aliás, como fartamente fizeram vários
' tramos entre ambas tantas recorrências e similitudes que pode- dos santos que hoje estão nos altares.
/ mós afirmar sem medo de erro que a negra courana conhecia Alguns versos do poema A Egipcíaca Santa Maria, de Sá
' ., perfeitamente a história de sua padroeira, e tal qual já aconte- e Miranda (século XVI), parecem ter sido encomendados para
cera com Santa Teoctista de Paros, no século X, cujo anedotário descrever aspectos da vida de nossa negra: a perda de sua
se reduzia a um plágio literal davidadapenitente copta, também virgindade, a devassidão de seus costumes, suas vaidades e
Rosa moldou^aripossu sua autobiografia à de sua patrona. Eiá piedosa, conversão ajoelhada aos pés do Padre Zózimo.
as principais semelhanças entre a vida de Rosa Maria Egipcíaca
da Vera Cruz com a de Santa Maria Egipcíaca: ambas nasceram Farei que da Egipcíaca bela
na África; entre 12 e 14 anos perderam a virgindade; viveram Leiam honradas e erradas
longos anos como mulheres públicas; sentiram as duas a mesma Que tomando exemplo nela
força sobrenatural que as impedia de entrar na casa de Deus; t, Sejam, para o céu guindadas
no momento da conversão fazem voto de castidade abandonando l Guiadas por esta estrela
a vida sensual; ambas manifestam grande devoção à Sagrada \a e aos ministros do altar. Outros detalhes reforçam \s similitudes entre a vida destas ma
De doze anos pouco mais
Idade inda tenra e verde
Engolfada em vícios tais
voltadas,,a.santa,.para_o. Oriente, a courana, para o Morro do Perdeu o que se se perde
Fraga; as duas foram agraciadas com visões de Maria Virgem J Nunca se cobrará mais
entremeadas de tentações do demónio; ambas abandonaram
suas roupas e enfeites para, despojadas, seguirem o Divino Não há canto que não a veja
Esposo. Dois detalhes da biografia de Rosa foram apropriados Não há homem que a não fale

170 171
Tudo quanto vê deseja • Já não era tão presado
Se lhe mandam que se cale Por se presar de sensual
Fala importuna e sobeja
B ate-lhe a enfermidade
Passatempos e deleites Às portas do coração
Busca para recrear-se Toca-lhe a necessidade
Jóias mil para enfeitar-se Ela a todos diz que não
Que quer com estes enfeites Senão à sensualidade
Fazer dos homens amar-se
No coração Deus lhe toca
Músicas, danças, saraus Lá do céu com sua mão
Tratar de noite de amores Que em toque desta feição
Favores e desfavores Faz que manifeste a boca
Se ela tinha vícios maus Que está aberto o coração
Isto lh'os fazia piores
Aberto desta mulher
' Era tão livre e devassa Aquele coração puro
Naquele vício infernal Acerta os olhos erguer
Que um só aceno a trespassa E vê o retrato puro
E com graça e liberal De quem Jesus quis nascer
A muitos^ se dá de gr aça
Como não se determina
Assim passa a triste vida Do que há de fazer não sabe
Quem teve tão triste sorte Quer a vontade divina
Porque a alma mais perdida Que uma voz serena e grave
E a que vive esquecida O que há de fazer lhe ensina
Do juízo, inferno e morte
E já que ofendeis aos céus
Mas se nos primeiros anos Com tão duro coração
Mundanos a perseguiam Peco-vos, padre e irmão
Depois que os anos corriam Que com a bênção de Deus
Ela seguia aos mundanos Me deite a vossa bênção...
Por que eles a não seguiam
Três são nossas hipóteses explicativas de como Rosa, es-
Como o viver estragado crava analfabeta, chegou ao conhecimento da biografia e conse-
Estraga o corpo mortal quente adoção de Santa Egipcíaca como sua estrela guia e irmã
Este fermoso animal gémea na vida espiritual:

172 173
i
. Através de informações pias prestadas pelo Padre Fran- madre regente; Santo. Antão, Santa Pelágia, etc. Não deixa de
cisco Gonçalves Lopes, seu primeiro confessor, o qual, perante ser sintomático, como disse há pouco, que as duas únicas repre-
os inquisidores, declarou ser homem de poucas luzes e reduzidos sentações por mim encontradas de Santa Egipcíaca estivessem
estudos teológicos, mal e mal conhecendo "seuBreviário e o Livro exàtamente em templos da Ordem do Carmo, a meu ver, a
dos Santos e seus Milagres". Certamente estava referindo-se ao principal divulgadora de sua devoção, ao menos no mundo
t Mós Sanctorum, a principal coletânea da. vida de santos, obra ibero-americano. Daí ser plausível que Rosa tenha conhecido,

£»*
que, segundo o bibliófilo Inocêncio Silva, teve oito edições em
língua portuguesa entre 1513 e 1741, e que reproduz a vida de
através dos frades carmelitanos, ávida de sua santa inspiradora.
" Chegados aoBrasilem 1580, nosfinais do séculoXVIIjáexistiam
Santa Maria Egipcíaca no dia 2 de abril. Aluno dos carmelitas aqui 246 religiosos desta ordem mariana, distribuindo-se em 12
em Braga, Padre Francisco talvez tenha tomado conhecimento casas professas. Nas Minas, embora fosse proibida a ereção de
da biografia desta santa através destes religiosos, grandes conventos, os religiosos sempre percorreram toda a região,
devotos da eremita do Jordão; dando assistência às numerosas irmandades e ordens terceiras,
, Através de Dom Frei Manuel da Cruz, primeiro Bispo de recolhendo esmolas ou pregando missões. A Virgem do Carmo
Mariana, que antes de vir para a América, fora mestre dos foiparticularmente venerada além da Mantiqueira, tanto que a
noviços na abadia cisterciense de Alcobaça, o mesmo mosteiro primeira capela ereta na região aurífera foi a ela consagrada
em cuja biblioteca conservava-se desde o século XIV a biografia (1698), assim como sua primeira freguesia, vila e cidade: Nossa
da santa'penitente e onde, no século XVIII, dois monges aí Senhora da Conceição do Ribeirão do Carmo, somente em 1745
residentes — Frei Hilário de Lourinhã e Frei Eloi Ferreira — mudando o topónimo para Leal Cidade de Mariana. Em 1732
autografaram novas biografias damesma eremita. Pode ser que, fundava-se em São João dei Rei a Igreja de Nossa Senhora do
além da introdução nas Minas do culto dos Sagrados Corações Carmo, sendo rara avilamineira setecentista onde não houvesse
de Jesus, Maria e José, o piedoso prelado bernardino tenha ao menos uma capela dedicada a tão querido título mariano. Sua
divulgado, através de sermões e novenários, a devoção à ex-pros- popularidade deve-se sobretudo à devoção aos poderosos "esca-
tituta de Alexandria, 'oferecendo-a como modelo de santidade pulários do Carmo", dois pedacinhos de lã marrom dependura-
para converter as muitas mulheres do fandango que nas pontas dos em cordão, trazidos um no peito e outro nas costas, que
das ruas e arraiais faziam de Mariana e Vila Rica diabólicos protegiam os portadores das tentações do Diabo e garantiam a
antros de perdição; • •. . . seus devotos a assistência de um sacerdote in extremis mortis.
. Através dos frades carmelitas, igualmente, Rosa pode ter Como dissemos, não havia colono antigamente que não carre-
recebido informações sobre a sua santa patronímica. A Ordem gasse qualquer proteção dependurada no pescoço, podendo ser
de Nossa Senhora do Monte Carmelo pretende ser a continua- uma medalhinha, escapulário do Carmo ou das Mercês, bolsa
dor a da tradição eremítica do Oriente, remontando sua fundação de mandinga, patuá, bula da cruzada, agnus dei, o rosário — ou
mítica aos tempos do Profeta Elias (875 a.C.). Sendo a Palestina todos juntos. O pintor setecentista José Joaquim da Rocha
o lugar de sua origem (o monte Carmelo situa-se próximo à atual retratou com perfeição o quão forte era a devoção a estes amu-
cidade de Haifa), coube aos carmelitanos a divulgação, 110 Oci- letos na época do barroco, mostrando num painel de Nossa
dente, apartir do século XII, do culto de diversos santos eremitas Senhora da Palma um anjo com uma espécie de cornucópia
orientais, como o próprio Santo Elias, patrono da província mística, de onde escapam bentinhos, rosários, escapulários e
carmelitana do Rio de Janeiro; Santo Eloi, cuja imagem será cruzinhas de variegadas cores e formatos. Prova da devoção

fe
cultuada na igreja do Recolhimento do Parto, onde Rosa será a dos mineiros pela Virgem do Carmo é que no Dicionário Histó-

174 175
.JL-
rico-Geográfico de Minas Gerais localizamos 14 vilas e cidades Jordão; Rosa irá para o Rio de Janeiro. Ambas seguindo a
com este nome, entre elas Nossa Senhora do Carmo daBagagem, inspiração divina à procura da perfeição espiritual, tendo como
da Escaramuça, das Luminárias, do Arraial Novo, do Càjuru, modelo e estrela guia a Vera Cruz.
do Campestre, do Campo Grande, do Frutal, dos Morrinhos, dos
Pains — quase todas datando do período que o ouro corria a
granel na Capitania. Para dar assistência às suas irmandades,
frequentemente os carmelitas percorriam a região, nem sempre Notas
contudo dando bons exemplos de virtude, como aconteceu com
Frei João de São José e Santa Teresa, que apesar de nome tão
piedoso e de pertencer à ala mais austera desta ordem — era 1. Cacciatore, Olga G. Op. cit., 1977.
carmelita descalço — nem por isso deixou de ser remetido preso 2. RuILa, Álvaro. Santa Rosa de Lima, Bari: Editione Pauline, 1977,
para o Rio de Janeiro, em, 1715, acusado de "apóstata e mal p. 20.
3. Saiote Therèse, Stanislaw. UnAngedu Carmél. Lyon:EditionVitte,
procedido". Na década de 1730, mais dois escândalos envolvem
, 1934, p. 81.
os carmelitas: em 1733, FreiLuis Coelho, do Carmo de SãoPaulo, 4. Vizmanos, Francisco. .Los Virgenes Cristíanas de Ia Iglesia Primi-
é acusado em Minas Gerais de ser "muito namorador e lascivo, tiva, Madri: Editora de los Autores Cristianos, 1949, p. 485.
cobiçando Domingas de tal, espreitando-a pela gelosia, gastando 5. Farmer, D. H. Op. cit., 1987, p. 293.
com mulheres as esmolas que lhe dão com santinhos..." Em T
6. Echos de VOrienk, t. IV, 1900-1901: 35-42; t. V: 15-17. o
1738, outro episódio pouco edificante, já citado alhures, envolve j 7. Manuscrito 266 publicado na Romania, tomo XI.
Frei Pedro António, religioso do Carmo, que tocava viola publi- 8. Sá e Miranda, Francisco. AEgipcíaca Santa Maria. Porto: Livraria
0
!l camente, acompanhado por um frade dominicano, um cónego e Chardron de Leio, 1913, 230 p. O
mais uma crioula forra vestida de homem, todos cantando 9. Consultei a edição de 1789, impressa na Oficina de Filipe da Silva
debochadamente uma canção que, pelo título Arromba, sugere e Azevedo, Lisboa.
que a pregação deste carmelita centrava-se mais na vida airosa 10. Atienza, Juan G. Santoral Diabólico. Ediciones M. Roca, 1988.
11. Ribadeira, Pedro. Histórias das Vidas de.SantaMaria Egipcíaca,
da santa prostituta do que em suas ásperas penitências. Em Santa Taís e Santa Teodora, Penitentes. Lisboa: Oficina de Felipe
1748 percorre as Minas o irmão Frei Vicente de São Bernardo, da Silva e Azevedo, 1789; Karras, Ruth Mazo. Holy Harlots: Pros-
esmoler descalço, recebendo da Câmara de São João dei Rei 30 titute Saints in Medieval Legend, Journal ofthe Hisiory ofSexua-
oitavas de ouro para seu convento mater. Conjecturamos que lity, v. l, n. l, julho 1990, pp. 3-32.
tenha sido da boca deste religioso que Rosa ouviu a história de 12. Hoornaert, Eduardo. Históriadalgr eja no BrasiZ.Petrópolis: Vozes,
Santa Maria Egipcíaca, pois foi no ano seguinte à sua passagem 1977, p. 217.
pelo Rio das Mortes que a negra adotou-a como padroeira. 13. Ott, Carlos. A Escola Baiana de Pintura. Salvador: MWM, 1982, p.
Não tenho certeza de quais destas três possibilidades 15.
influenciaram Ras^jaa_essoJha-de-seu-onoríiástico; o certo é que 14. Vasconcelos, D. Op. cit., 1974, p. 136.
a^partir. da,_ 175l,Jse._apEesentará_sfinrpre como Rosa Maria 15. Mott, Luiz. Modelos de Santidade para um Clero Devasso. Op. cit.
Egipeíaca-d-a-^era Cruz. 16. Costa, Iraci dei Nero. Op. cit., 1982, p. 7.
17. Cintra, S. O. Op. cit.
Imitando a santa do Egito após sua conversão, também
nossa negra vai empreender importante viagem, inicio de nova
fase em sua atribulada existência: a primeira atravessou o rio

176 177
l
3*
iil^K
8

Viagem para o Litoral

i» A viagem de Minas para oJRio_deJaneiro é das passagens

l
mais bem documentadas no(processo de Rosa, pois, além do
JJ_L€1_1.O UO.UO. UXJWl.UXJ.Ç<.l.J,L>el.t_J.Cl.O J.J.WÍ L»J. U^CJOOU U.C JLIWOCX, JJV^JLO, CXJ.CJJLJ. I-I-U

depoimento do Padre Xota-Diab~o"s~e-darprópria espiritada, duas


outras testemunhas acompanharam os viajantes Mantiqueira
abaixo.
Narra o sacerdote que sua filha espiritual implorara para
que se transferissem para o Rio de Janeiro, pois ficando nas
Minas "arriscaria a salvação de sua alma". De início resistiu à
ideia "pelos muitos gastos e trabalho da jornada", tanto que
*
Í aceitara o oferecimento de Francisco de Sousa, agregado à
família do Alferes Francisco Motta, para ir em seu lugar acom-
panhando a negra. Mudou, porém, de ideia, e, "por caridade,
alugou dois cavalos, um para a preta e outro para os trastes", e,
montado em seu cavalo próprio, começaram a viagem. Rosa tem
importante visão logo no início da caminhada:
•T:
"Estando mais o Padre esperando por Pedro Róis Arve-
los, que também os queria acompanhar e havia de trazer
P o dinheiro para os gastos da jornada, em um dia pela
manhã, que era o de São José, estando ela, ré, ainda na
fe cama, mas acordada, rezando a Nossa Senhora, ouviu com
i seus ouvidos uma voz clara e distinta que lhe dizia rezasse
uma Estação; e no fim dela se achou em um lugar junto de
umas casas que nunca viu, nem sabe em que parte fosse,
e aí se achou junto com o dito Padre na presença de um
homem venerando de barbas compridas mas muito espe-
cioso, o qual tinha uma varabranca na mão e com elabateu
na porta de suas casas, que apareceram no mesmo lugar.
E logo se abriram e saiu outro homem todo vestido de
branco, de formoso aspecto, ao qual disse o outro se tinha
cómodo naquela casa para ele, para o dito padre e para ela,

179
1

ré. E perguntando-lhe este que apareceu vestido de branco una homem de rosto venerando, barba branca comprida,
e mostrava ser o senhor das casas, quem ele era, respondeu com casaca de saragoça (pano grosseiro de lã escura), com
que era Deus Verdadeiro, que se retirava das Minas pelas uma vara muito delgada e cândida nas mãos. E batendo
culpas e ofensas que contra ele faziam os homens. E dito com esta mesma vara na porta de uma casa, que era a única
isto, desapareceu tudo e se achou ela, ré, na cama das casas que havia no dito lugar, acudiu um moço e, perguntando-
em que estava, no caminho das Minas para ir à cidade do lhe o que queria, respondeu o dito velho que queria agasa-
Rio de Janeiro." lho. E com a vara assinalou o lugar em que haviam de fazer m
Foi, portanto,'exatamente a 19 de março de 1751 que de
três camas, umapara ele e duas para ela, ré, e para o Padre
Francisco. E, perguntando-lhe mais o dito moço quem era,
m
São João dei Rei partiu esta pequena comitiva em três monta- lhe disse o velho que era Nosso Senhor que vinha fugido m
rias, provavelmente incorporando-se a uma caravana mais nu- das Minas, pelas muitas ofensas que lá lhe fizeram e que
merosa, das muitas que desciam para o litoral, posto que na vinha fugindo para o Rio de Janeiro para ver se achava
época eratemerário e por demais arriscado viajar isoladamente, quem lhe desse agasalho. E passado o referido, se achou
tantos eram os assaltantes e quilombolas que infestavam o outra vez assentada sobre a cama, e na casa em que tinha
Caminho Novo, ou o Velho. Devem ter escolhido esta data dormido, com alembrançaperfeita do que se tinhapassado,
exatamerite para colocar tão importante jornada sob a protecão e dali a tempos a referiu ao dito Padre Francisco que se
do pai putativo de Jesus Cristo, ele próprio acostumado a calou e não fez caso de tal narrativa."
proteger a Sagrada Família quando fugiam de Belém para o \
Egito devido à perseguição de Herodes (Mateus, 2:13). Segundo E clara a analogia entre Deus —- o velho barbudo vestido
o autor do Afio Cristiano, "a festa de São José é uma das mais de saragoça — e a própria vidente, ambos fugindo e dando as
doces para toda a alma devota e cristã", e até hoje há o costume costas à impiedade dos mineiros, ambos pedindo abrigo nas
de se semear, exatamerite neste dia, os grãos de milho cujas estalagens e pousadas do Caminho Novo. A imagem de Cristo,
espigas serão colhidas no dia de São João — 24 de junho —, travestido de caminhante maltrapilho, percorre há milénios o
sendo voz do povo que, havendo chuva no dia do plantio, estará imaginário cristão, tanto que, antigamente, um dos mais bene-
garantida a abundância da produção. São José mereceu parti- méritos atos de caridade cristã era acolher os peregrinos, sendo
cular carinho e devoção por parte de nossa africana •— seguindo a desobediência deste preceito — e não a sensualidade -— a
também neste particular o exemplo de Santa Teresa dÁvila, principal causa da suposta destruição de Sodoma e Gomorra, tal
modelo de pureza e abnegação ao Menino Deus. qual hoje interpretam os mais ilustres exegetas.
Na confissão feita aos inquisidores, a ré floreia um pouco Caminhando as montarias no máximo quatro léguas por
mais essa visão há pouco referida: " dia, em estradanão muito acidentada, otrajeto do Rio dasMortes
para o Litoral devia representar por volta de uma semana de
"Principiando a jornada, em dia de São José, pela ma- viagem, a cavalo: de São João dei Rei passava-se por Registro,
drugada, acordou-a uma voz que lhe dizia: 'Reza uma Borda do Campo, Rocinha, Sítio do Bispo, Sítio do Alcaide-mor
Estação — isto é, seis Padre-nossos, seis Ave-marias e seis e do Juiz de Fora, atravessando-se após o Sítio do Araújo as
Gloria Patri, em intenção das almas do purgatório.' E
obedecendo a ordem, rio último Padre-nosso, às palavras
corredeiras do Rio Paraibuna, passando a seguir pelos sítios e
pousadas de Dona Maria, Cavuru Açu e Mirim, Pau Grande,

'santificado seja o vosso nome', se achou em um campo Taquaruçu, Couto, tomando-se então a canoa rio abaixo até o •
aonde viu que também se achava o dito Padre Francisco e
m
180 181
Sítio do Pilar, e na maré alta, em, lancha, descia-se pelo rio ouvia continuamente o eco das vozes dos tropeiros e o
Aguaçu, entrando então na cidade de São Sebastião do Rio de ruído dos guizos da madrinha da tropa.
Janeiro. Serraria brava e abismos horripilantes ao cruzar a No dia em que cheguei em Paraibuna, o calor era tanto
interminável Mantiqueira, cerração espessa e úmida a entrar que apesar de irmos a passo, montados, o suor corria-me a
pelos ossos ao descer a serra, sol escaldante nas baixadas cheias grande. Passei uma noite muito má à margem, do Paraíba,
de brejo: eis o panorama sucessivo desta jornada. Deviam nossos no meio de cães e de porcos que rondavam minhas malas,
viajantes ir em marcha lenta para não desatar os "trastes": dando-me grande preocupação por minha bagagem. No dia
certamente dois baús ou canastras de couro atados em cada lado seguinte, de manhã, houve dificuldade em encontrar os
da montaria. Rosa e o Padre deviam carregar a tiracolo, cada animais...'
qual, seu embornal com a matalotagem e água para o refrigério.
Rosa Egipcíaca já caminhara por esta mesma estrada, no Do alto de seu cavalo alugado, confortavelmente instalada,
sentido litoral-interior, há 18 anos, e o Padre Francisco há 21, Rosa, agora com 32 anos, contemplava de privilegiada perspec-
quando chegou do Reino. A negra deve ter notado muita dife- tiva a mesma estrada que aos 14 anos percorreu a pé, peça
rença no trajeto, pois nestas duas décadas, o Caminho Novo anónima, num lote de .eacravos. Quem poderia imaginar que
tornara-se nossa principal estrada real, agora muito mais po- mina, já deflorada por seu pa-
voada e oferecendo melhores recursos para os andarilhos. Não trão, sem lenço nem. documento, desceria, mulher feita, a mesma
obstante, ainda na primeira metade do século seguinte, Saint- serra, agora forra, rezando e entendendo latim, nomeada pelos
Hilaire não há de poupar críticas acerbas à precariedade e falta J135 céus "zeladora jios_temp_ljo_s^,_ .i^itulada, .E°í_.°?dem também
de conforto das pousadas desta região. ,ít;-v£.i.v=.-.i-, - divina, de a nova Maria Egipcíaca da Vera Cruz?! Cumpria-se
a profecia do Salmo 125:
"O caminho de São João dei Rei ao Rio de Janeiro é
muito frequentado; entretanto são poucas as habitações Quando o Senhor reconduzia os cativos, estávamos
que se vêem nos campos margeantes, onde apenas no- sonhando...
tam-se traços de culturas. Imensas solidões fatigam os ...na ida caminhavam chorando, carregando as sementes,
olhos por sua monotonia. E inconcebível a falta de recur- na volta, cantando com alegria, carregando as espigas.
sos nesta estrada. Inutilmente procurei adquirir um
pouco de milho e não pude conseguir farinha, embora Tal qual acontecera com o povo eleito no seu êxodo para a
tivesse parado em um lugar onde as caravanas costuma- terra prometida, Deus permitiu ao Diabo que também tentasse
vam pousar. Logo após deixar Barbacena começá-se a sua serva. No deserto do Sinai o Demónio levou os judeus à
perceber a aproximação das florestas, com vales mais idolatria do bezerro de ouro; na Mantiqueira, Satanás atacou
profundos e tufos de matas mais numerosos. As longas em duas frentes: primeiro tentou matar sua espiritada precipi-
chuvas haviam arruinado inteiramente a estrada. Ani- tando-a nos abismos. Como não o conseguiu, pois Rosa tinha a
mais de carga haviam, morrido atolados na lama. Meu seu lado o protetor Xota-Diabos, o Cão apelou para aparte mais
tropeiro dirigiu preces à Virgem e a Santo António para fraca dos mortais: a carne, e por muito pouco não conseguiu seu
obter a graça de atravessar sem dificuldades as florestas. ' intento de levar Rosa ao pecado mortal contra a castidade.
As matas virgens têm. uma majestade que me causa Novamente, o poder do exorcista foi mais forte.
sempre profunda impressão: no silêncio dessas matas Um dos viaj antes que acompanhou a caravana de Rosa pelo

182 183
. Í.J '.3
Caminho Novo foi quem relatou o primeiro episódio. Caetano do século XIX, presenciou "uma filha de santo do terreiro do
Fernandes Pena tinha então 31 anos, era português natural de Gantois subir numa árvore muito alta, e, trançando as pernas
Nossa Senhora das Neves de Tomega, sabia ler e escrever. em torno de forte galho, começou a balançar-se como se fosse
Morava nas proximidades da Capela de São Sebastião, próximo um símio, lançando-se da árvore ilesa". Para os Orixás, tam-
à fazenda dos Arvelos. Conhecia o Padre Francisco Gonçalves bém, nada é impossível!
Lopes apenas de vista e de ouvir falar. Foi este informante quem Diz contudo o Padre Xota-Diabos que era o anjo das trevas
revelou, anos mais tarde, ao comissário do Santo Ofício do Rio que assim atacava sua dirigida: "na estrada o demónio a tomava
de Janeiro, que o exorcista da negra endemoniada "era chamado e a deitava do cavalo abaixo, ficando algum tempo sem acorde,
por antonomásia o Xota-Diabos". Disse mais: dando a ele muito trabalho para pôr-lhe preceitos".
O viageiro Caetano ficara tão impressionado com tais
"que em toda a viagem, a negra fazia suas visagens como diabruras, que 14 anos depois, em 1764, ainda se lembrava das
quem queria cair/proferindo palavras que ele não enten- palavras que o reverendo exorcista dizia do alto de sua montaria.
dia, e, ainda onde o caminho tinha risco, ela se punha firme Todas as vezes que o Padre via isto, logo imediatamente dizia
sobre o pé esquerdo e, deixando a rédea do cavalo, se punha para o Diabo: "Maldito! Se descompuseres a criatura, hei-te de
de forma que ia caindo toda de fora da sela; se fosse outra rezar à Senhora Santana tantos Credos, tantos Padre-nossos,
qualquer pessoa, naturalmente caia, sem dúvida." tantas Ave-marias, tantos Gloria Patri, terços e ladainhas à
í Senhora Santana, para te consumir' — aumentando cada vez o
Fazer malabarismos equestres à beira de precipícios era número das tais rezas. E completou: 'O padre rezava muitas
uma temeridade, mesmo para cavaleiros experimentados; ima- Salve-Rainhas e Santana Socorre-nos! E assim ia 1/4 de légua,
gine-se para uma cativa, que em toda sua vida devia ter pou- repetindo o mesmo várias vezes nos dias da viagem..'
quíssimas vezes montado num ginete! Caetano ficou deveras Na monotonia do toque-toque dos cavalos no passo lento
impressionado com as estripulias da africana, sobretudo ouvin- descendo a serra, debaixo do sol a pino, lá ia a caravana sono-
do o Padre dizer para outro viajante, Domingos Francisco Car- lenta, só despertada pelos frequentes acidentes e exorcismes do
neiro, quando embarcaram no Porto da Estrela, que "a negra Xota-Diabos, que, embora fugindo do figurino do Eitúale Roma-
Rosa tinha Nosso Senhor Sacramentado no seu peito e que era num, surtiam efeito na espiritada, que após tantas e tantas
comparada à Trindade Santíssima". Qualquer um concluiria dezenas de orações e litanias, sossegava finalmente o rabo na
convicto de que aquela exibição de equilíbrio equestre só podia montaria. Com o breviário em punho, o sacerdote devia rezar o
ser coisa sobrenatural, portanto, não tinha nada a ver com as Salmo 90, oportuníssimo para viagens tão atribuladas:
peripécias dos artistas dos circos de cavalinhos. Se Jesus Sacra-
mentado saltara do altar para a boca de vários santos e santas, "Quem mora sob a proteção do Altíssimo... não teme... o
se aprópriaMariaEgipcíacalevitaraduas vezespara atravessar mal que grassa ao meio-dia: caiam mil homens à tua
o rio Jordão, se São José Cupertino fora visto em. "prolongados esquerda e 10 mil à tua direita, e tu não serás atingido...
voos" por inúmeros devotos, por que duvidar da sobrenaturali- Porque a seus anjos o Altíssimo ordenou que te guardem
dade das macaquices da negra em cima do ginete? em todos os teus caminhos. Eles te sustentarão em suas
Se dermos crédito ao pioneiro dos estudos afro-brasileiros, mãos para que não tropeces em alguina pedra; sobre a
Nina Rodrigues, as acrobacias fantásticas são consideradas serpente e a víbora andarás, calcarás aos pés o leão e o
pelos povos animistas-fetichistas como sinais diacríticos da
incorporação dos espíritos dos ancestrais. Ele próprio, nos finais

184 185
Tf,
i.

dragão... Quando me invocares eu té" atenderei, na tribu- existir entre o padre e a negra mina além de mera relação
lação estarei contigo. exorcista/energúmena.
'• Apesar da obrigação dos padres seculares de manterem o
Apaziguado Satanás, à custa dos exorcismes e daproteção celibato canónico — diferente d.os religiosos que livremente
de Santana, avó de Cristo, eis que numa das noites desta viagem, optam pelo voto de castidade —, dispomos de enorme acervo
o Maligno arquiteta libidinosa cilada, revelando o quão astuta documental comprobatório do quão libidinosos eram muitos e
e capciosa tornava-se a inteligência da africana quando atacada muitos ministros do altar no Brasil Colonial. As Constituições
pelo Pai da Mentira. E o próprio Padre Francisco quem narra do Arcebispado da Bahia em muitos artigos tratam das interdi-
este sensual episódio, tendo ele na ocasião 57 anos e sua ex-es- ções e penalidades contra os clérigos imorais, prescrevendo, por
crava, 32. • . exemplo, que não tivessem em seu serviço doméstico mulher
com menos de 50 anos "nem outra alguma mulher de que haja
"Numa estalagem, dormindo em casas separadas, dei- ruim suspeita", mesmo que fosse serviçal de suas parentas
tado em sua cama, anegrapretendeupôr-se sobre ele, como próximas, proibindo-se também que ensinassem, às mulheres a
com efeito se pôs, pretendendo que a desonestasse, o que ler, cantar ou tanger instrumentos, ou que frequentassem os
ele percebeu pelas ações desonestas que fazia, mas, em-
brulhando-se com uma roupa, recusou-se, e ela, fingindo
estar vexada do Espírito, disse-lhe: *Ministro, por que não
m mosteiros de freiras (§484, 486). Severos castigos, como prisão,
degredo, multas e destituição das ordens sacras, pesavam contra
os clérigos culpados de crimes de bestialidade, molice, sodomia,
r
tens cópula com esta preta, pois já que muitos se metem '4 adultério, incesto, estupro e rapto (§961-978). O título XXIV do
f
no inferno por dizerem falsamente que andas com ela Livro V trata precipuamente "Dos Clérigos Amancebados", di-
amancebado, faze esses ditos verdadeiros, para que se não zendo: "indigna coisaénos clérigos o torpe estado de concubinato,
condenem.'" pois sendo pessoas dedicadas a Deus, é ainda maior neles a
obrigação de serem puros e castos e de vida e costumes mais
Por pouco o sacerdote não se deixava engabelar por enredo reformados". Sempre de acordo com as Constituições, primeiro
tão silogístico e pelas carícias tão sedutoras da liberta, como se um multava-se o presbítero infrator, que chegava até a perder todos
pecado mortal contra a castidade pudesse eximir os caluniadores os seus benefícios e rendimentos para sempre. A excomunhão
de suas culpas de murmuração. Calejado que estava o velho era outro recurso para os refratários e impenitentes; um mês no
exorcista com as artimanhas do Enganador—que às vezes chegou aljube para os que não tinham benefícios e, no caso de reinci-
a travestir-se de Jesus Crucificado para burlar alguns santos, dência, degredo para fora do bispado ou até para a África. "E
conforme sucedeu com um discípulo do Poverello de Assis —, sendo amanceb ado com filha espiritual, ser á castigado com mais
Padre Francisco "fez o sinal da cruz e mandou o Espírito embora graves penas."
e que se metesse no inferno". Já o mencionado Antonil chamava a atenção para a imo-
O Espírito de Rosa fornece-nos importante informação ralidade do clero regular e secular quando cruzava a Mantiquei-
neste episódio lúbrico: que havia murmuração nas Minas de que ra, e a historiadora Laura de Mello e Souza dedica um subca-
o padre e sua filha espiritual eram amancebados, Se dermos pítulo dos Desclassificados do Ouro aos padres infratores, onde
crédito aos ditados populares quando dizem: "onde há fumaça enumera todo tipo de incontinência ética e sexual entre os
há fogo" e que "o povo aumenta mas não inventa", ou ainda, "vox ministros do altar. Arrola uma meia dúzia de sacerdotes concu-
populi, vox Dei", somos levados à ilação de que não seria excesso binados, entre eles o Padre Felipe Teixeira Pinto, culpado em
de malícia de nossaparte conjecturar que algo mais íntimo devia

186 187
1730 por andar amancebado com Ana, escrava negra. No mes- cuja denúncia, enviada à Inquisição, foi escrita de seu próprio
mo ano em que Rosa andava por São João dei Rei, saiu denun- punho, no ano do Senhor de 1748:
ciado na Devassa de 1749 o Padre João C. de Mello, "concubinado
com a parda filha do Papudo". "Hido eu me confecar dia deano bom. com o pader João
À Inquisição não interessava a mancebia em geral, nem Carneiro, medice me queria mta eu lhe dice que sim. elleme
sequer envolvendo os tonsurados. Era porém de seu conheci- dice setinha na camarinha jinella. eu lhe dice que não. elle
mento e alçada o chamado "crime de solicitação ad turpia", me perguntou onde dormia, eu dice emcasa de minha irmã.
quando o sacerdote convidava, no confessionário, suas ou seus Em huma cestafera, a terceria da coresma me fui mecon-
penitentes para atos pecaminosos. No volumoso Repertório dos feçar com- o elle: medice que tinha hido em minha casa,
Solicitantes, só para o século XVIII encontramos 425 denúncias porque lhe não falei? eu dice que estavadoente. elle medice
contra padres namoradores nos confessionários do Brasil, dos que não cabia cê não mevisitava. eu olhei p* ele e rime.
quais 62 praticaram tais patifarias nas paróquias de Minas Perguntou cemefiava de algua mulata, eu lhe dice que não.
Gerais. Citarei a seguir alguns exemplos desta conduta imoral, Assinou: ANastácia Ma deiSus, vila de S. José." 3
contemporâneos a Rosa, a fim de que o leitor disponha de
suficientes elementos elucidativos para ajudar-nos a desvendar Sendo poucas as mulheres brancas nas Minas, era mais
mais adiante o que apenas esboçamos neste momento: afinal, o arriscado para os sacerdotes seduzi-las, posto serem muito
Padre Francisco e Rosa Egipcíaca foram ou não amantes? vigiadas por seus familiares, e suas eventuais denúncias aos
Em 1746, na vila de São José dei Rei (hoje Tiradentes), o comissários do Santo Ofício serem mais acreditadas, devido à
Vigário João Ferreira Ribeiro era acusado de ter "tratos ilícitos" sua condição de "raça limpa". Por isso, muitos sacerdotes, talvez
com a parda Violante Maria, e certa feita, recebendo em sua menos por preferência erótica e mais por tentação da facilidade
casa um bilhete da amante, desconfiou que era dirigido a um do acesso às mulheres "desclassificadas", dirigem para as con-
seu hóspede e não a si, ficando muito inquieto até que, mandando fessandas de cor, e sobretudo às escravas, suas investidas por-
à amante um recado através de um mulato de sua confiança no-ssacramentais.
para que ela viesse à igreja, desfez no confessionário sua dúvida Outro exemplo: o Padre João Nunes da Gama, capelão da
atroz, indo ambos para a alcovarender preitos à dp^sa do amor. freguesia de Nossa Senhora do Pilar, ao deparar-se, no secreto
No Morro de Santana, no perímetro urbano de Mariana, do confessionário dasmulheres, comMaria, negramina, escrava
ao confessar-se Vitória, donzela parda de 20 anos, ao Padre do sargento-mor, declarou-lhe "que queria ser seu filho e tomar
Paulo Mascarenhas Coutinho, que tivera um sonho com outro uns amores com ela, ao que a negra respondeu que nãc^a capaz
sacerdote, este lhe disse: "Tem-no antes comigo e não com ele!" de ser sua mãe, retrucando o padre: 'eu sempre tenho gosto de
E noutra ocasião lhe falou: "Pagas com ingratidão o amor que que você seja minha mãe. Você é bem capaz e sempre há de ser
lhe tenho?!" Tal declaração amatória se deu no dia da festa de minha mãe"'. A partir deste edipiano diálogo, viveram se deso-
Corpus Christi! Também em Mariana, outra sacrílega decla- nestando por espaço de dois anos, confessando-se a negra sempre
ração de amor proferida atrás das grades do confessionário: "O com seu próprio amante, tornando-se publicamente conhecida
Padre António Ribeiro disse à10Josefa Morais, mulher casada, como manceba do clérigo, até que o sargento-mor destruiu tão
que andava perdido por ela..." " sacro idílio, isolando sua escrava numa camarinha. Enciumado,
Mais outro episódio de paixão clerical, descrito pela don- o capelão mandava um seu moleque inspeciònar "se ela falava
.zèla, com suas próprias palavras de moça semi-alfabetizada, com algum homem", mostrando este caso o quanto um sacerdote
podia deixar-se envolver por uma paixão tão exótica e desigual,

188 189
comprovando que não só Minerva, mas também Eros ê cego, despertavam uns nos outros, fascinação luxuriosa da qual nem
corroborando mais uma vez a opinião abalizada do viajante os presbíteros donzelões estavam imunes. Paixão recíproca,
francês Charles Expilly, ele próprio grande entusiasta das ne- repetimos, pois também do lado das gentes de cor havia muita
gras minas, que declarou sem. rodeios: curiosidade, desejo e interesse em usufruir das intimidades
eróticas com os membros da "raça dominante".
"Essapredileção que parecerá certamente extravagante Rosa vivera sôfrega e libertina dos 14 aos 29 anos, entre-
às pessoas que nunca viveram nas colónias não se explica gando-se a qualquer homem secular que procurasse seus servi-
unicamente pela superioridade física das mulheres de cor. ços sexuais. Convertendo-se, diz ter abandonado ávida luxurio-
Isso resulta de uma outra causa, ainda mais essencialmen- sa, "não tornando mais a cair em culpas gra.ves de sensualidade,
te física, e que se refere a emanações particulares que tendo seu corpo como morto, porque lhe parece que, ainda que
exalam os poros dessas belas criaturas. Antes de tudo, o dormisse com algum homem, não sentiria estímulos, nem nunca
esplendor das suas linhas atrai-nos, e a gente se sente mais os teve, sendo até o tempo de sua conversão sumamente
ferida pelas flamas ardentes que lançam as suas pupilas. vexada deles".
O orgulho inutilmente tenta opor-se. Apesar dos vivos Tenho sérias dúvidas quanto à veracidade deste trecho da
protestos do sangue-azul, fica-se definitivamente seduzido, confissão de nossa ex-meretriz, pois, além do episódio ocorrido
quando elas marcham com um movimento intermitente na estalagem entre as Gerais e a cidade do Eio, um pouco mais
das ancas, cheias de misteriosas confidências, que nos adiante mostraremos outras situações em que fica patente que,
conduzem à perturbação dos sentidos. A atração nos domi- apesar de Rosa possuir forte espírito e força de vontade, sua
na; é necessário ceder. E então que a influência desse odor carne continuava fraca. Mais ainda: todos esses exemplos de
suigeneris age profundamente no adorador da forma. Um sacerdotes contemporâneos do Padre Francisco, que solicitaram
contacto passageiro produz, de ordinário, o aborrecimento. e se amancebaram, com negras minas, muitas delas escravas
Se o delírio se prolonga, a sorte do branco estará para como aEgipcíaca, vivendopelas pontas da rua como ela, permi-
lJ • sempre fixada: não lhe será mais permitido renunciar à tem-nos suspeitar que o padrej e sua negra viveram de fato
frequência das mulheres bronzeadas; ainda mais, desde- _ - f P ' ' A " /murjnúrj.o_de q u e eram aman-
nhará de queimar incenso aos pés das pálidas nativas... tes tinha sua razão de ser, A insistência com que a ex-prostituta
Há um axioma português que encerra a explicação natural relata sua angelical sexofobia após a conversão diverge, neste
do fenómeno de que se trata. Eis o texto da sentença: particular, com a experiência de sua patrona do Egito, que
'Aquele que sentiu duas vezes o cheiro acre, mas embria- confessou ter padecido nos dezessete primeiros anos de penitên-
gador da catinga da negra achará desde então muito de- cia "tantas batalhas e tentações porque o demónio lhe trazia à
senxabido o cheiro que exala apele da mulher branca/ Sem memória os deleites e gostos sensuais, os regalos, manjares e
querer rebaixar as mulheres de cor ao nível das sacerdoti- especialmente o vinho, as palavras amorosas e canções lascivas
sas do antigo continente, não será lícito notar que essas que costumava cantar para provocar os homens para que a
è produzem fisicamente efeitos análogos sobre o seumeio?" desejassem". Sem desmerecer a força de vontade das pecadoras
èi):
Abundantes foram os sacerdotes nas Minas e demais capi-
arrependidas, não estaria sendo por demais fantasioso supor
que tiveram algumas "recaídas". Afinal, errar é humano, e a
tanias do Novo Mundo que não resistiram ao feitiço das sacer- carne é sempre fraca...
dotisas de ébano... . Também de seu lado, o depoimento do Padre Xota-Diabos
Tal era o clima de fascínio recíproco que brancos e negras

í 190 191
p
J li
l M
$]!
is,; :'. solicitantes, parte do material de sua tese de doutoramento; Mott,
aos inquisidores, enfatizando sua repulsa à diabólica investida
erótica de sua ex-escrava, pode ser interpretado da mesma forma Luiz. Modelos de Santidade para um. Clero Devasso. Op. cif., 1989.
9. Biblioteca Nacional de Lisboa, Seção de Reservados, "Registro dos
como a sexofobia da africana: um inteligente artifício para Padres Processados por Solicitação e Outros Crimes", Códice n9
mostrar aos delegados do Santo Ofício que a. prolongada união 8.389 (século XVIII).
entre ambos, malgrado a murmuração popular, era virtuosa e 10. ANTT, Caderno dos Solicitantes na 26, fl. 139 (1746).
livre de qualquer suspeita de mundanismo. Preocupação, diga- 11. ANTT, Caderno dos Solicitantes n2 26, fl. 345 (1745).
se en possant, infundada, pois ao casuísmo inquisitória! era 12. ANTT, Caderno dos Solicitantes n2 26, fl. 358 (1748).
irrelevante se fossem ou não fornicários contumazes. Deixemos 13. Mott, Luiz. Modelos de Santidade para um Clero Devasso. Op. cit.,
a alcova e voltemos à estrada. . 1989, p. 109.
A aproximação do local de destino — Rio de Janeiro — 14. Expilly, Charles. Op. cit., 1977, p. 102.
causava sempre grande emoção nos viajantes após tantos dias 15. Ribadeira, Pedro. Op. cit., 1789, p. 17.
de cansativa viagem. 16. Saint-Hilaire, A. Op. cit., 1974, p. 125.

m
tt* t*

|! >•
"Chegado à parte mais alta da serra da Boa Vista,
reconheci — diz Saint-Hilaire — que seu nome era justo.
Por entre troncos das árvores, avistei um trecho da baía
II do Rio de Janeiro e algumas ilhas nela existentes, e apesar
de não distinguir a cidade junto ao Pão de Açúcar, reco-
nhecia sem dificuldade o ponto onde se achava situada.
Não pude, confesso, contemplá-la sem profunda emoção!"18
i Í

Notas

1. Kosnik, Anthony. A Sexualidade Humana. Novos Rumos do Pen-


samento Católico Americano. Petrópolis: Vozes, 1982,
2. Guimarães, Geraldo. O Caminho Novo. Revista do Instituto Histó-
rico e Geográfico dê São João dei Rei, n. 4, 1986, pp, 27-43.
3. Saint-Hilaire, A. Op. cit., 1974, pp. 115-125.
4. Rodrigues, Nina. O Animismo Fetichista dos Negr-os Baianos, Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, s.d., p. 109.
l _5...Granada, Frei Luiz. Senn,on contra los Escândalos de Ias Caídas
Publicas. In: Imirizaldu, Jesus. Op. cit., 1977, p. 261.
6. Souza, Laura M. Op. cit. 1982, p. 176.
7. Arquivo da Cúria de Mariana, Livro de Despesas (Z-l), (1749).
8. Agradeço a Lana Lage diversas informações referentes aos padres

192 193
••Et
?!

No Rio de Janeiro em 1751

Entre visões celestiais, como a do ancião vestido de sara-


goça, tentações sensuais e importunações diabólicas enquanto
cavalgavam, arribam, o padre e sua negra, sãos e salvos, na
-muito heróica e leal cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro.
Igual a Nosso Senhor, vinham fugindo dos pecados das Minas
Gerais, para ver se achavam., à beira-mar, quem lhes desse
agasalho. Como todo forasteiro, tiveram como primeiro cuidado
M
procurar onde se hospedar. Contavam para tanto com alguns
.endereços de conhecidos e a proteção da Senhora Santana, que,
como toda avó, estava sempre atenta às necessidades de seus
.dependentes.
: Para quem. viveu quase duas décadas num arraial mineiro
com menos de mil almas, como era o Inficcionado, o Rio de
m
m Janeiro devia representar para o recém-chegadouma espécie de
visão preternatural, pois, de fato, era uma cidade maravilhosa.
'r* - TO primeiro comentário feito pelo Abade de Ia Caille quando
.visitou esta localidade, exatamente no mesmo ano em que Rosa
chegava à Baixada Fluminense (1751), foi: "O Rio de Janeiro é
m. uma cidade bastante considerável!" Para um, autor de várias
Cobras de geografia e astronomia, vindo de Paris, a observação

P•• aião deixa de ser significativa. Lendo a narrativa deste ilustrado


jviajante, temos a impressão de que ficara vivamente impressio-
jiado com a beleza arquitetônica desta cidade5 tanto que o
-adjetivo que mais repete ao descrever seus diferentes espaços
.urbanos éjoli.
Depois de S alvador, a capital da Colónia, que na época possuía
y
jyli
quase 7 mil fogos com 40.263 habitantes, era o Rio de Janeiro
nossa segunda e principal aglomeração populacional, tão grandio-
sa, que o citado geógrafo francês avaliou sua população em 50 mil
IP! almas, impressionado pelo burburinho humano que via nas ruas
e praças centrais da cidade. Parece ter superavaliado o número

I 195
real de seus moradores, pois, de acordo com recentes pesquisas iluminadas à noite enquanto o povo reunido rezava o rosário e
de demografia histórica, em. 1750 esta cidade devia contar com cantava louvores à Mãe de Deus. Face ao porto, chama de bela
pouco mais de 24 mil habitantes — neste cômputo incluídos os a praça ou "Largo do Carmo" — a sala de visitas da cidade —
escravos, distribuídos em 3.723 fogos —, subindo para 30 mil o também rotulando de belos a fonte e o aqueduto em arcos
número de seus moradores em 1760. romanos que abastecia de água a cidade. Relata o entusiasmado
Todos conhecemos a topografia acidentada e o dêcor para- visitante que eram abundantes as plantações situadas no vasto
disíaco da "cidade maravilhosa", que no século XVIII era ainda 'recôncavo fluminense, predominando nos pomares as laranjei-
muitíssimo mais exuberantemente tropical, chegando o mar até ras, os Limoeiros, bananeiras, pés de caju, goiabeiras, manguei-
•h: bem mais perto do centro histórico do que hoje. Três imponentes ras e lindos coqueirais. Chamou a atenção do abade a maneira
morros cercavam o centro urbano do Rio de Janeiro, sem falar •de trajar da população branca: cobriam-se com amplos mantos
no Pão de Açúcar, no Cara de Cão, no Outeiro da Glória e de ^é-gr andes chapéus de tecido que dificultavam aos transeuntes
Santa Teresa, situados na época fora do coração da urbe. O reconhecerem-se uns aos outros. Traje pouco adequado ao calor
principal e primeiro logradouro escolhido para fundar a povoa- tropical, convenhamos. Os oficiais da justiça e os doutores era
"\ i': ção foi o morro do Castelo, onde os jesuítas construíram em 1565 "teologia, direito ou medicina usavam como distintivo, os primei-
a Igreja de São Sebastião, patrono e defensor da cidade; em 1589 -•"— ros, uma vara branca, enquanto os letrados traziam ordinaria-
os monges beneditinos ocupam o morro do patriarca São Bento, mente óculos sobre o nariz. Os escravos em sua maioria vestiam
dando as encostas do Mosteiro para a Prainha; mais para o - apenas calção ou mesmo uma tanga sumária; raros os que se
interior daurbe, próximo àlagoadoBoqueirão, emcimadoLargo cobriam com camisa ou casaco. Quando livres, os negros e
da Carioca está o morro de Santo António, onde os franciscanos - mestiços vestiam-se como os brancos, tendo calçados nos pés. As
construíram em 1608 seu convento, ainda hoje sobranceiro mulheres usavam saia e camisa aberta no alto, abotoadas ou
dominando o acme do outeiro. Entre São Bento e o Castelo atacadas pela frente. Rarissimamente ousavam aparecer nas
situavam-se o principal porto da cidade, o Convento e Terreiro ruas; Diz o Abade que iam à missa às 3 ou 4 horas da manhã
do Carmo, a câmara e cadeia, a casa dos governadores, o paço, —-^âbs ;domingos e feriados. Poucas conseguiam licença de seus
opelourinho e aforca—estaúltimafincadanareferidaPrainha, "jnaridõs ou progenitores para irem rezar o rosário à noite
próximo à Igreja de São Francisco. nalguma das igrejas ou capelas. Quando saíam, um grande
A opinião dos estrangeiros que visitaram esta cidade nos manto de lã que lhes cobria a cabeça as fazia parecer carmelitas
meados do século XVTII vai dos mais rasgados elogios até ~. _ou ágostinianas. Nas ruas, os maridos estavam sempre à frente,
irascíveis impropérios. O citado Abade de Ia Caille dá-nos uma e as mulheres eram acompanhadas por escravas e domésticas.
visão de conjunto assaz favorável: diz que suas ruas eram -*- - - jq-og pOUCOS (jias que 0 abade-geógrafo passou no Rio,
bastante belas, a maior parte das casas bem construídas com =rí-presenciou uma cena deplorável que revela o quão misógina e
pedra e tijolos, ostentando portas e janelas cobertas com vene- __-repressora era a sociedade carioca nos meados do Século das
zianas, a maioria com dois andares, algumas até com três Luzes: uma das passageiras do navio em que viajava o abade
pavimentos, todas cobertas de telhas. As igrejas achou-as tam- ..resolveu conhecer a terra. Mal desembarcou, foi tão perseguida
bém bastante formosas, vastas, ainda que pouco elevadas; em- ê vaiada pelo populacho, sobretudo pelos negros e negras, que
bora quase todo o interior delas fosse esculpido com frisos de _teve"de, correndo, voltar para a embarcação. Escandalizou-se
ouro, eramporém muito escuras. Viunichos e oratórios em quase também o sacerdote com a vida debochada dos monges e ecle-
todas as encruzilhadas das ruas centrais, cujas lanternas eram siásticos do Brasil, reprovando-os pelos maus exemplos de des-

196 197
s
l1
regramento e superstição que praticavam. Reclamou contra os à cidade e foram finalmente expulsos graças à intervenção
gritos e lamentações dos penitentes que, às altas horas da noite, miraculosa da imagem de Santo António do Convento dos Fran-
percorriam em procissão as ruas da cidade, em exercícios pios ciscanos que, em reconhecimento pelo seu poderoso patrocínio,
de flagelação, carregando pesadas correntes que do pescoço se é elevado neste ano àpatente de Capitão de Infantaria. No século
arrastavam pelo chão; 'Várias vezes meu sono foi interrompido XVI São Sebastião protegera e liderara o exército cristão contra
por estas cadeias e gritos que soltavam, pedindo misericórdia". os tupinambá — agora, nos inícios do século XVIII, Santo
Completa sua narrativa dizendo que os assassinatos eram bas- António de Pádua capitaneia a vitória, daí o carinho com que os
tante comuns no Rio de Janeiro, ficando muitos delinquentes cariocas sempre trataram estes dois poderosos oragos.
impunes, pela distância onde eram julgados — na Bahia —, RefLetindo a opulência de porto exportador de ouro, a
coincidindo, contudo, sua estada neste porto com a chegada dos sociedade fluminense se torna a cada década mais complexa;
novos ministros que vinhamparafundar outra Casada Relação, comportando pequena elite mercantil e agrária predominante-
prenúncio da reforma dos costumes desta Capitania que, em mente branca, numeroso clero regular e secular, alguns milha-
"
» menos de duas décadas, há de se tornar a nova Capital do Brasil
Português.
res de oficiais mecânicos, em grande parte já miscigenados com
índios e africanos, umnxtmero menor de brancos e libertos pobres
li Outros autores pintaram quadro diametralmente diverso e numerosíssima escravaria proveniente sobretudo do Congo e
deste francês, como o comerciante inglês John Luccock, que nos Angola. Com o incremento da riqueza, grande número de judeus
* princípios do século XIX descreverá o Rio como "a mais imunda
associação humana vivendo soh a curva dos céus". Aliás, esta é
e cristãos-novos dirigem-separa este litoral, dezenas deles sendo
recambiados para os cárceres do Santo Ofício acusados de prá-
a impressão que nos transmite o autor do livro O Rio de Janeiro ticas judaizantes. No século XVIII o maior número de judeus
no Tempo dos Vice-Reis, Luiz Edmundo, que retrata esta cidade extradidatos do Brasil era proveniente não mais do Nordeste,

l
como "pohre, heata e suja", com. suas ruas lamacentas, valas de mas do Rio de Janeiro: entre 1703-1748, cerca de 192 moradores
esgoto ao lar livre cortando suas principais artérias, bandos de desta Capitania foram sentenciados por praticarem a Lei de
escravos sarnentos e seminus- recém-desembarcados dos tum- Moisés e ultrajarem o Catolicismo, entre eles o carioca e famoso
beiros a percorrer e emporcalhar as ruas e praças da cidade. escritor António José da Silva, o Judeu, queimado no Auto de
Tornado o Rio de Janeiro, nos inícios do século XVIII, porto Fé de 1739, realizado na Igreja de São Domingos em Lisboa.
obrigatório por onde entravam mercadorias e escravos para a Como para o resto da Colónia, a primeira metade do século
efervescente região aurífera, escoadouro dos metais e pedras XVIII representa para o Rio de Janeiro perído de intensa expan-
preciosas provenientes das Minas, conhecerá, nesta época, gran- são e institucionalização do Catolicismo, materializadas sobre-
de desenvolvimento económico, acabando por eclipsar a velha tudo na instalação de numerosas confrarias e construção de
Salvador e tornar-se, em 1763, a capital.e principal cidade do muitas igrejas, capelas e casas religiosas, tanto masculinas

i
d -J
Brasil. Já em 1676, a velha São Salvador recebia o primeiro
golpe à sua hegemonia nacional, quando Inocêncio XI eleva a
cidade de São Sebastião à sede do bispado das capitanias do Sul,
tomando posse efetivamente, em 1681, seu primeiro bispo, Dom
quanto femininas. Não esqueçamos que, de 1707 a 1750, ocupou
o trono português o fidelíssimo e magnânimo Dom João V, o mais
beato, supersticioso e galanteador dos soberanos lusitanos, que
em pagamento de uma promessa para que sua real esposa
José de Barros Alarcão. Em 1710-11, os cariocas padecem serís- parisse, construiu o esplendoroso e gigantesco Convento de

! sima calamidade, com ainvasão dos franceses capitaneados pelo


General Dugay-Trouin, que só decidiram interromper o saque
Mafra, criando o Patriarcado de Lisboa, cuja pompa cerimonial
equiparava-se à da Cúria Pontifícia, gastando fortunas incalcu-

198 199
f

**« -*
34 S
i
••'! •* laveis na celebração de 700 mil missas que foram pagas à custa
íi -;í do ouro proveniente das Minas Gerais. Nas colónias, esta pri-
Francisco na Prainha e São Pedro e Nossa Senho-
ra da Saúde;
meira metade do século é marcada pela mesma beatice, supers-
. 1742 — início das obras da nova catedral; reconstrução do
tição e fausto barroco, gozando o clero, cada vez mais, poder e
Hospício dos Barbadinhos do Desterro;
influência nos destinos da nação em geral e dos cidadãos em
. 1743 — inauguração da Ermida do Menino Deus;
particular.
No caso do Rio de Janeiro, é patente o grande crescimento . 1746 — construção da casa dos romeiros adjunta à Ermi-
da de Copacabana;
institucional do catolicismo neste período, que pode ser avaliado
por alguns fatos e construções arquitetônicas, tomando como . 1748 — doação das terras para a construção da Igreja de

i
Nossa Senhora da Lampadosa; conclusão das
ponto inicial o ano de 1700 e final o de 1917, quando os jesuítas
obras do Convento da Ajuda e dalgréja da Ordem
são expulsos da América Portuguesa:
Terceira Franciscana;
. 1749-— lançamento da primeira pedra da nova catedral;
. 1700 •— fundação da Irmandade de Nossa Senhora da
, 1750 — início das obras do Convento do Desterro e da
Conceição dos Homens Pardos*
Igreja de Nossa Senhora da Lapa dos Mercadores;
. 1705 — autorização real para a fundação do convento de
inauguração da clausura do Convento da Ajuda e
religiosas franciscanas; reconstrução dalgrejada
reconstrução de parte do Convento de Santo An-
Misericórdia;
tónio dos Franciscanos;
. 1709 — doação de terras para a construção de um cemi-
, 1751 — criação das freguesias de São José e Santa Rita;
tério para cativos ao sopé do morro de Santo
, 1752 — construção da Igreja de Santa Luzia e da Capela
António;
de Santana dos Barbadinhos;
«1714 — início da construção da Igreja de Nossa Se-
1753 — doação das terras para a construção da Igreja de
nhora da Glória, no outeiro;
São Jorge;
. 1720 — instalação dos capuchinhos italianos na Er-
1754 — início da construção do Recolhimento de Nossa
mida do Desterro;
Senhora do Parto;
. 1729 — compra da Capela do Rosário pela Irmandade da
1755 — início da construção da Igreja da Ordem Terceira
Conceição dos Pardos;
do Carmo;
. 1730 — início da construção do Hospício da Terra
1756 — fundação da Irmandade de São Francisco de Paula;
Santa dos Franciscanos;
1757 — início da construção da Igreja da Conceição do
. 1732 — restauração da Ermida de Nossa Senhora de
Cónego;
Copacabana;
1758 — fundação da Irmandade de Nossa Senhora Mãe
. 1735 — início da construção da Igreja de Nossa Senhora
dos Homens; construção dalgréja de São Gonçalo
da Conceição e da Boa Morte; inauguração da
Garcia; ereção da Capela de São Joaquim do
Igreja de Santana; transferência da catedralpara
Valongo;
a Igreja do Rosário dos Pretos;
1759 — eleição de Santana como padroeira principal do
. 1739 — fundação do Seminário São José;
Rio de Janeiro.
<. 1740 — fundação da Irmandade de Santa Efigênia e inau-
guração de sua igreja; fundação das igrejas de São

200
201
è Ao chegai-, portanto, no Rio de Janeiro, em 1751, a beata Cabeça, da Glória, duas da Imaculada Conceição, da Lampado-
f Rosa Egipcíaca da Vera Cruz encontrou nesta cidade uma sa, do Rosário, da Mãe dos Homens. (O viajante Daniel ELdder,
è riquíssima infra-estrutura religiosa, muito mais complexa e
diversificada do que a existente nas suas Minas Gerais. Para
em 1837, avaliará em mais de 50 o total das igrejas e capelas
existentes no centro e subúrbios do Rio de Janeiro.)
è quem buscava aperfeiçoar-se na via mística, aí encontrou um
prato cheio, tantos eram os conventos, mosteiros e ermidas onde
Nas ruas e esquinas, mais de 70 oratórios dedicados aos
mais populares oragos da corte celeste, muitos deles mandados
se rezava diariamente o Ofício Divino e outros exercícios espi- construir por estímulo do Padre Angelo Sequeira, "que com
rituais inexistentes além da Mantiqueira, onde por ordem régia grande espírito e zelo singular promoveu que em todos os cantos
proibia-se a instalação das ordens religiosas.. da cidade se edificassem oratórios a Nossa Senhora, belos e

« Era então prelado da. diocese o beneditino Dom António do


Desterro, cujo pontificado exerceu por vinte e oito anos seguidos,
dourados, onde se colocam as suas imagens,' diante dos quais
todas as noites se recitam as Ave-marias".
t» de 1745 a 1773. Mais adiante voltaremos a tratar deste bispo,
posto ter interferido pelo menos duas vezes na atividade religio-
Um total de 26 confr ardas reunia milhares de devotos, além
de duas Ordens Terceiras -— de São Francisco e de Nossa
sa de nossa africana: primeiro expulsando-a do recolhimento,
• depois ordenando sua prisão no aljube e envio para os cárceres
Senhora do Carmo —, sendo que só nesta última estavam
inscritos 3.397 confrades e confreiras. Viviam no centro desta
p mquisitoriais de Lisboa.
É através de um relatório, assinado por este mesmo prela-
cidade nada menos do que 380 religiosos conventuais, distribuí-
dos em 6 comunidades: no Mosteiro de São Bento, 69 monges;
fc do, datado de 29 de julho de 1752, conservado no Arquivo Secreto no Colégio dos Jesuítas, 80 professos; no Convento de Nossa
do Vaticano, que ficamos informados com precisão a respeito Senhora do Carmo, 83 carmelitas calçados; no Convento de
da infra-estrutura religiosa e eclesiástica da cidade de São Santo António, 80 frades menores; no Hospício do Desterro, 14
Sebastião do Rio de Janeiro. Segundo avaliação de Dom António capuchinhos e mais 4 franciscanos observantes que esmolavam
do Desterro, possuía esta cidade portuária um total de 24.374 pelo bispado, arrecadando para os Santos Lugares de Jerusalém,
"homens de comunhão", distribuídos em 3.703 famílias. Dispu- O clero secular — chamado na época de "presbíteros de São
nha então de quatro paróquias: a de São José, com 1.870 fogos Pedro" — devia ultrapassar a centena, pois só na Catedral
e 7.440 paroquianos, quê englobava 5 capelas finais e 6 confra- assistiam 30 sacerdotes, 12 na Santa Casa de Misericórdia e 14
rias; a paróquia da Catedral, com 1.350 famílias, 6.449 paro- na Candelária. Em síntese: para quem buscava aperfeiçoar-se
quianos, 4 capelas suff agâneas e 9 confrarias; a paróquia de no caminho da perfeição evangélica, havia mil e uma instituições
Santa Rita, com 4.930 fregueses, 5 capelas e 2 confrarias, e, religiosas de portas abertas para os contritos de coração.
finalmente, a maior de todas as freguesias urbanas, a de Nossa Chegando à cidaderde São Sebastião, diz o Padre Xota-
Senhora da Candelária, com 10.238 paroquianos, 1.295 famílias, Diabos que primeiro hospedam-se em casa de seu conhecido,
4 capelas e 4 confrarias. Portanto, à época em que RosaEgipcíaca António de Oliveira. Não devem ter encontrado dificuldade em
chega ao Rio de Janeiro, existiam aí 23 templos, entre igrejas, alojar-se, pois acolher um sacerdote em casa era uma grande
matrizes e capelas, a saber: São Sebastião do Castelo, Bom honra. São João Maria Vianei, o patrono do clero, costumava
Jesus, São Clemente, São Domingos, São Francisco da Prainha, dizer que, "depois de Deus, o Sacerdote é tudo!"
São Diogo, Santa Cruz dos Militares, São Pedro, São José, Santa Além disso, contava o Xota Diabos com um precioso trunfo:
Rita, sendo mais da metade dos templos dedicados a diferentes procurando construir nova rede de relações sociais, logo conduz
títulos de Nossa Senhora: da Candelária, de Copacabana, da sua dirigida Rosa Maria à casa de um velho amigo, o lisboeta

202 203
João Pedroso, informando que a preta "era serva de Deus, que Eclesiástico fluminense, 11 anos depois desta visão, a retirante
nela se ocultava um grande mistério, que nela falavam os anjos das Minas assim descreveu seu primeiro delírio místico aconte-
e santos e que tinha Lúcifer para a perturbar..." Quem não cido ao nível do mar: estava assistindo à missa, celebrada por
acolheria prenda tão preciosa em sua residência?! seuprotetor, o Padre Francisco Gonçalves Lopes, na dita igreja *
Beata como era, logo que Rosa chegou ao Rio, procurou seu da Lapa, quando
*
pasto espiritual. Em seu processo assim declarou: "Tanto que
cheguei ao Rio de Janeiro, fui à Nossa Senhora da Lapa, ao seu "ao levantar-se a SagradaHóstiaviunelaummenino muito
Seminário, e na Igreja dele me pus a ouvir missa". especioso, vestido de azul celeste, e na cabeça tinha uma
Coincidentemente, instalou-se junto a uma das igrejas tiara pontifícia mui rica, e na mão esquerda uma cruz
mais veneradas desta cidade, cujo prestígio advinha dos mila- pontifícia, e na direita um cetro, com cuja vista ficou ela,
grosos poderes da imagem de Nossa Senhora da Lapa, que aí se ré, fora dos seus sentidos, como amortecida, e caiu em terra,
venerava e que mereceu grande divulgação do já citado clérigo estando de joelhos, e assim esteve. Quando tornou a si, já
*
Angelo Sequeira — o mesmo que patrocinara a. construção de tinha acabado a missa, porém nesse tempo estava sem
oratórios, pelas ruas e vielas cariocas—, através de vários livros sentidos e como morta." *
entre os quais destaca-se a Pedra ímã da Novena da Milagro-
síssima Senhora da Lapa que se Venera nos seus Seminários do Rosa desenvolverá no Rio intensa e particular devoção ao
Rio de Janeiro,, editada em Lisboa em. 1755. Menino Jesus, seguindo neste particular o mesmo trilho de
Ainda hoje está de pé, no boémio bairro da Lapa, esta tantas outras santas e santos, sobretudo o lisboeta tornado
mesma igreja, e, através da aquarela de Thomas Ender (1817), taumaturgo de Pádua, Santo António, o campeão do culto ao
podemos constatar que sua fachada permanece inalterada desde Divino Infante. A iconoggiafia^edi(^da-ao5-piim£ÍrQS_aiios^da
í sua construção, faltando-lhe sempre uma das torres. Provavel- infânciajie Cristo é bastante rica, representando-o no presépio,
mente, esta primeira residência onde hospedaram-se o padre e no colo de sua virginal mãe — às vezes sugando seu impoluto
í 3T- a vexada ficava nas imediações deste templo, no caminho da seio ("Nossa Senhora do Leite") —, no altar da circuncisão, ou *
Ermida do Desterro, próximo à Lagoa do Boqueirão, lagoa que aos 12 anos, no templo entre os doutores, etc. Criancinha, Jesus *
9
mais tarde será drenada, dando lugar ao atual bairro da Lapa Menino é representado via de regra nu, às vezes enrolado em
em sua p arte baixa. Já naquela época lá estavam os gigantescos faixas, com túnicas brancas, ou ricamente bordadas em ouro e 9
Arcos da Carioca, inaugurados, no ano de 1750, pelo Governador pedras preciosas, como o célebre Menino Jesus de Praga, cujo
Gomes Freire de Andrade, que levavam água fresca do Morro guarda-roupa faz inveiaJLJB&is rica das criangasreaisrEm *
do Desterro para o-chafariz do Largo da Carioca, ao pé dos Portugal, o culto ao Divino Infante sempre gozou de grande voga,
franciscanos. A coincidência parece ter sido providencial: Rosa existindo em Lisboa dois grandes altares a ele dedicados: na
Egípcíaca terá sua primeira visão nesta cidade exatamente no Igreja do Loreto, na cidade alta, sob p título de Menino Jesus
distrito do Desterro — título da devoção a Nossa Senhora que, dos Atribulados, e na Igreja do Menino Deus, próxima ao Beco
desterrada de. Belém, com medo de Herodes, foge.para_o Egito}. do Funil, mandada construir pelo magnânimo Dom João V, em
a mesma terra onde nasceu a santa padroeira da ex-prostituta. 1711, em ação de graças pelo nascimento do príncipe herdeiro.
Nossa beata por certo considerava-se também uma desterrada, No Brasil, foram sobretudo os jesuítas os grandes propagandis-
posto ter fugido das Gerais para escapar às perseguições e tas desta pueril devoção, espalhando por muitas vilas e cidades
impiedade ali dominantes. Em sua confissão perante o Juízo do Novo Mundo confrarias do Menino Jesus.
Temos visto Jesus Menino representado com a coroa, man-

204 205
to e cetro reais, uma espécie de miniatura de como é venerado os demais fiéis não vissem, como ela, o Menino Jesus com. uma
na pose de Cristo Rei, às vezes segurando o globo terrestre na cruzinhá às costas entrar miraculosamente dentro da Hóstiaf
mão, outro símbolo de sua realeza. Com os símbolos papais —
arrebatando-lhe incontroláveis gritos: "Que lindo! Que lindo!"
a tiara, cruz e cetro pontifícios —, salvo erro, é uma invenção
caindo em seguida, sem sentidos, com o braço direito e o dedo
mística da negra courana. Percorrendo as igrejas do Velho Rio,
estendidos em riste, tão rijos e tesos, que só seu confessor
provavelmente Rosa deve ter ido, logo nos primeiros dias de sua
conseguia dobrá-los, assim ficando até o momento em que rece-
chegada, ao mosteiro dos beneditinos, onde, até hoje, podemos
bia Jesus Sacramentado da mão do sacerdote. Os êxtases da
observar, no meio de riquíssimas talhas em ouro, nada menos
Egipcíaca Courana neste início de vida na nova cidade serão
que oito santos beneditinos, entre papas e cardeais, todos iden- menos espalhafatosos: prudente, fugindo das justiças eclesiás-
tificados com cruz, tiara e capas pontifícias. Deve ter sido apartir ticas mineiras, não era de bom alvitre chamar muita atenção
destas imagens esculpidas na nave da igreja abacial de São sobre sua negra pessoa. Com o tempo, contudo, a tentação da
Bento que a vidente associou o Menino Jesus à parafernália grandiloqúência mística desbancará sua prudência.
papal. Se consultarmos abelíssima gravura que Leandro Joaquim
Mais uma vez, é no clímax do Santo Sacrifício da Missa, pintou nos finais do setecentos — onde se vê a Igreja da Lapa,
quando o sacerdote mostra Jesus Hóstia aos fiéis, que a vidente o aqueduto e a lagoa do Boqueirão — constatamos que este
"recebe o santo", vendo o Filho de Deus em sua glória pontifícia, subúrbio carioca, além. de ser ainda bastante rural em sua
caindo ipsó facto "como morta" no chão. Estando de joelhos a estrutura arquitetônica e composição demográfica, devia pos-
queda oferecia menos riscos ortopédicos, e já ia longe o tempo suir baixa densidade populacional, sendo vastas as áreas ocu-
em que esta energúmena, inexperiente, se jogava no chão des- padas por vegetação e numeroso o gado vacum e equino aí
cuidadosamente, como ocorrera numa de suas primeiras sessões estacionado. Inúmeras negras com trouxas de roupa na cabeça
de exorcismo, quebrando a cabeça debaixo da estátua de São sugerem que as águas debaixo dos Arcos da Carioca eram usadas
Benedito, na distante freguesia do Inficcionado. A emoção acu- pelas lavadeiras, vendo-se que ainda nesta época alguns tran-
mulada durante- a missa explode no instante da elevação do seuntes atravessavam esta lagoa a vau, ou no cangote de negros
Corpo de Cristo, e Rosa diz não se lembrar de mais nada, ficando brutamontes que, como São Cristóvão, faziam desta prestação
literalmente "sem sentidos", a mesma sensação experimentada de serviço seu ganha-pão. Portanto, não devia ser muito sofisti-
pelos místicos e epilépticos quando retornam ao mundo sensível. cada a população que frequentava a Igreja da Lapa onde Rosa
Que a doutora em êxtases beatíficos, Santa Teresa dÁvila, teve seu primeiro ataque místico. Em terra estranha era melhor
também ela devota do Menino Jesus, explique-nos melhor tal começar devagar, na periferia, conseguindo adeptos e devotos
fenómeno: "A alma virtuosa que Deus suspendeu totalmente o pouco a pouco, e, só depois de contar com o reconhecimento e
intelecto e os sentidos, deixando-a abobada a fim de lhe imprimir confiança pública, partir para o centro da cidade, local onde
a verdadeira sabedoria, durante o tempo que dura este estado, deviam estar as pessoas mais doutas e virtuosas que a negra
não vê, não ouve, nada entende". Ó doce sensação jamais esperava encontrar quando deixou as montanhas do Rio das
l experimentada pela maioria dos mortais! Houve ainda outras
místicas, ou pseudomísticas, como a espanhola Juana Ia Em-
bustera, presa pela Inquisição de Toledo em 1634-, que, no
Mortes.
Foi, portanto, na Igreja de Nossa Senhora da Lapa que
nossa liberta fez seus primeiros contactos nesta cidade, deixada
momento em que o sacerdote elevava a Sagrada Partícula, há duas décadas, quando aos 14 anos fora véndidaparà as Minas.
apontava para a mesma com grande alvoroço, admirada de que Neste templo,
l
206 207
"se encontrou com uma beata chamada Páscoa, e esta lhe
disse que para lhe governar o espírito a levaria ao seu
confessor. E indo ela falar com o mesmo, chamado Frei
Agostinho de São José, religioso franciscano do Convento
de Santo António, natural do Reino e morador no seu
convento, em que era provincial na sua religião, este com
muito gosto tomou conta dela para a dirigir." .

Há evidências comprobatórias de que os conventuais de


Santo António gozavam, há séculos, da reputação de serem bons
confessores de beatas e espiritadas, tanto que, já em 1660, a
embusteira Joana da Cruz, ao ser degredada pela Inquisição
1.
ff' •: lisboetapara o Eâo de Janeiro, declarou em carta escrita ao Santo
Ofício que havia tomado confessor neste convento franciscano.
Páscoa devia ser uma das muitas beatas "dadas à vida
ascética, espiritual, com grandes mostras de devoção, geralmen-
te vivendo em celibato e hábito de freira" (Dicionário Morais),
que frequentavam as igrejas do Rio. Rosa não alimentou ami-
zade particular com esta beata, pois em sua confissão declarou
que dela "não sabia mais confrontação", ou seja, nem de onde
era, nem onde morava. Páscoa deve ter presenciado um ataque
da negra recém-chegada das Minas, e, conhecedora dos méritos
de seu confessor franciscano, talvez sendo também ela própria
uma energúmena, receitou à espiritada que o tomasse como Numa destas casas, em frente à Igreja de Santa Rita, Rosa
governador de seu espírito rebelde. Egipcíaca viveu quando chegou ao Rio de Janeiro em 1751.
Em seu processo, o Padre Xota-Diabos dá outra versão para
esteepisódio: diz que foi seu primeiro anfitrião, António Oliveira,
quem procurou um confessor para Rosa, apresentando-a a Frei
Agostinho de São José. Talvez gozasse este frade de reconhecida
capacidade para apaziguar endemoniadas e orientá-las para o
bom caminho, sendo por isto seu nome duplamente lembrado,
pela beata Páscoa e pelo Sr. Oliveira. A primeira, solidária e
penalizada com 'a negra tão perseguida pelos acidentes diabóli-
cos; o segundo, .certamente desinquieto com as estripulias mís-
ticas de sua hóspede, que, quando atacada, devia provocar
grandes rebuliços em sua residência. Começa, portanto, a cum-
prir-se parte da profecia de sua última visão nas Minas Gerais:

208 209
o próprio superior geral da Província de Nossa Senhora da em seus nichos e que pessoalmente tive oportunidade de admi-
Conceição da Ordem, do Venerável Doutor Seráfico São Francis- rar. Dentre todas destaca-se a belíssima imagem de Santa Rita,
co do Rio de Janeiro aceitava, "com muito gosto", a ex-prostituta com rico esplendor de prata, palma e crucifixo em. cada uma das
como sua filha espiritual. Deus seja louvado! mãos. Possuía então mais de 40.000$000 réis em jóias, incluindo
Deve ter sido por esta época, após algumas semanas na três coroas de ouro representando seus três estados: solteira,
Lapa do Desterro, que a negra muda de residência, passando a casada e viúva. Outros santos dividiam espaço com a padroeira:
viver em casa de Dona Maria de Pinho, moradora defronte da Santo Agostinho, Santo André Avelino, o Divino Espírito Santo,
Igreja de Santa Rita, muito mais próximo do centro comercial e além das demais imagens geralmente existentes em todas as
administrativo do Rio de Janeiro, a meio-caminho entre a Igreja igrejas coloniais: Santo António, Santana, São Miguel Arcanjo,
da Candelária e o convento de seu confessor franciscano. São José. No pátio interno da igreja, adjunto à sacristia, existia
._ v A Igreja de Santa Rita — construída no primeiro quartel um poço cuja água era tida como muito milagrosa, procuradís-
"do século XVIII — tem em sua portada um medalhão cora a sima por seus devotos, para curar todo tipo de incómodos. No
figura da santa prótetora trazendo a data de 1728. É um templo mesmo ano de 1751 em que Rosa muda-se para a casa defronte
pequeno, de uma só torre, sito numa esquina da rua dos Ourives, à Igreja de Santa Rita, esta é elevada à condição de matriz da
defronte a uma pracinha onde, até quando J. Luccock visitou o freguesia, cujo território adentrava-se em, direção ao Campo de
Rio de Janeiro (1816), conservava-se" um "cruzeiro de mármore, Santana, nos limites da região suburbana.
depois substituído por um chafariz, hoje também desaparecido. Através de duas gravuras de Edward Hildebrand (1844)
O templo fora construído por iniciativa da família Nascentes podemos nos aproximar bem perto de corno deviam ser os
i* Pinto, abastados comerciantes, funcionando-anexo o primeiro
cemitério de pretos novos — os quê .morriam logo ao desembar-
arredores da Igreja de Santa Rita nos "tempos do Onça", a
mesma época em que nossa Rosa Negra percorria suas imedia-
.carem—, até que o Morgado do Lavradio mandou-o remover ções. Defronte da pracinha do templo havia um chafariz onde
p para o Valongo. Não muito distante da igreja estava a chácara
:~™dos beneditinos e o aljube-dos padres :—J prisão especial para os
dezenas de negros e negras se acotovelavam para pegar água.
Nos fundos da igreja, outro tanto de gente de cor, uns vendendo
eclesiásticos faltosos. Erá.na soleira de mármore desta igreja,. em barracas e tabuleiros, outros refestelados gostosamente no
• dedicada à santa das causas impossíveis, que os condenados à chão, dormindo à sombra do casario. Daporta da casa onde Rosa
forca vinham se ajoelhar par.a ouvir a última missa antes da morou, na época, dava para distinguir claramente as torres de
execução —• sendo Tiradentes o condenado mais famoso a cum- três igrejas — e certamente, ouvir-lhes o repique dos sinos —,
prir tal ritual, nos finais do século XVIII. A festa de Santa Rita uns toques significando que a Missa ia começar, outros que ali
de Cássia ainda é comemorada todos os anos, aos 22 de maio, se sufragava a alma dalgum defunto ou, então, que o Viático
havendo época, sobretudo a partir de 1759, em que toda a estava prestes apercorrer as ruas paraungir com os santos óleos
nobreza carioca aí se reunia para festejar o Divino Espírito um moribundo.
Santo, sendo então vigário colado o Padre João Correia de Nada sabemos sobre esta Dona Maria de Pinho (também
Araújo, o mesmo da época em. que Rosamudou-separa "defronte" chamada, nalgumas partes do processo, de Maria de Pina). Devia
do dito templo. Apesar de sua aparência de "capela de roça", ser viúva ou solteirona, quem sabe, beata como Páscoa, talvez
segundo expressão do ilustrado cronista carioca Dr. José Vieira também dirigida de Frei Agostinho. Como a maioria dos fogos
Fazenda, em seu interior existiam quase duas dezenas de ima- desta freguesia humilde, a casa de Dona Maria de Pinho devia
gens ricamente ornadas — várias delas ainda hoje conservadas ser humilde, porta e janela somente, quando muito porta e duas

210 211
janelas de frente, com extenso quintal nos fundos. Ainda hoje lá 1568-1930. Comunicação apresentada à Associação de Estudos
estão, defronte da Igreja SantaRita, umameia dúzia de casinhas Populacionais, s.d.
reformadas no século XIX, agora assobradadas, mas que certa- 4. Coaraqy, Vivaldo. Memórias da Cidade do Rio de Janeiro. Rio de
mente reproduzem a mesma ocupação do solo do século anterior. Janeiro: José Olympio, 1965.
Numa destas moradias viveu Rosa, nos primeiros anos, até a 5. Luiz Edmundo. Op, cit., s.d., p. 12.
fundação do seu recolhimento. 6. Wiznitzer, Arnold. Os Judeus no Brasil Colonial. São Paulo: Pio-
Amoradia de DonaMaria de Pinho era casa virtuosa, tanto neira, 1966, pp. 127 e ss.
que, nas palavras do sacerdote,<fRosa ficou aí recolhida". Reco- 7. Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Lata 769, Doe. 5 (1752).
8. Borba de Moraes, Rubens. Bibliografia Brasileira doPeríodo Colonial.
lher-se, segundo o dicionarista Morais, significa "encerrar-se no São Paulo: Instituto de Estudos Brasileiros, 1969, pp. 342 e ss.
mais interior da casa, sem conversações, saída, passeios e outras 9. De Ávila, Teresa. Castelo Interior, Op. cit., p. 101.
diversões". Talvez outras recolhidas compartilhassem do mesmo 10. Imirizaldu, J. Op. cit., 1977, p. 96.
espaço sob a direção desta senhora, prática, aliás, bastante 11. ANTT, Inquisição de Lisboa, Processo n2 557 (22-8-1659).
corrente no Brasil Antigo. Nada dizem os documentos sobre sua 12. Fazenda, J.V. Antiqualhas do Rio de Janeiro, Op. cit., 1923, p. 120.
vida nesta moradia. Devia compartilhar os serviços domésticos,
embora sua condição de espiritada e predestinada à vida mística
certamente a liberasse dos afazeres materiais para dedicar-se
mais à contemplação e exercícios espirituais. Foi aí que a
ex-prostituta de Minas Gerais disse ter acontecido uma de suas
primeiras visões na freguesia de Santa Rita: "Uma noite a
acordaram estando ela dormindo, sem saber quem. E, acordan-
do, viu uma luz brilhante e um menino pequenino como recém-
nascido e disse a ela que louvasse o Santíssimo Sacramento. E
35 ; desapareceu tal visão." O imaginário místico da africana se
Hl
rejuvenesce no litoral: em vez de velhos carrancudos e ameaça-
dores, ou anciãos barbados, é o Deus Menino quem lhe comunica
agora as mensagens do Além.

Notas

1. Azevedo, Thales. Povoamento da Cidade do Salvador: Salvador:


-Editora Itapuã, 1969, p, 189. -
2, La Caille, Abbé Louis Nicolas de. Journal Historique du Voyage
Faitau CapdeBonne-Esperance. Paris: GuillynLibraire, 1763, pp.
- 122 e ss.
. 3. Lobo, Eulália. População e Estrutura Fundiária no Rio de Janeiro,

212 213
10

Sob a Orientação Espiritual


dos Franciscanos

Para Rosa ir da casa onde estava recolhida, no Largo de


Santa Rita, até ao Convento dos Franciscanos, onde vivia seu
novo confessor, bastava seguir alguns passos pela rua dos Ou-
rives, quebrar à rua do Curtume e, após mais ou menos 15
minutos de caminhada pela. rua .da. Vala (atual .Uruguaiana),
logo chegava ao Largo da Carioca. Como toda beata autêntica,
Rosa deviajr__contrita, cabisbaixa, rosário na_mão^-coberta da
cabeça aos pés com. aquelas capas referidas pelo Abade de Ia
Gaíile, que mal permitiam aos transeuntes distinguirj. cor e a
feição das camírIEããEeir'Hõ~chafariz da Carioca, inaugurado em
1723, que com suas 16 bicas abasteciaboa parte das residências
- do centro da cidade, Rosa devia passar ao largo, evitando a
balbúrdia dos muitos negros aguadeiros e lavadeiras acocoradas
no tanque anexo que aí faziam ponto, procurando não ouvir os
mesmos cantares provocativos, insultos e gracejos tão familia-
res, que faziam, a ex-prostituta lembrar-se dos muitos anos que
foi, nas Minas, mulher de ponta de rua. A cada maupensamento,
um sinal da cruz; a cada.tentação, uma Ave.-maria "que, rezada
com atenção e modéstia,, é p inimigo número um do Diabo,
pondo-o logo em fuga: é o martelo que o esmaga!"
Sã e salva dos embustes do Maligno, abeata courana subia
então o morro de Santo António por uma ladeira ao lado, onde
hoje encontra-se a escadaria que leva à igreja dos franciscanos.
Lindo pomar e horta cobriam a banda esquerda deste caminho.
A bela vista do adro desta igreja, descortinando a praia e dela
recebendo a refrescante brisa, contrastava com o burburinho,
calor e mau cheiro da vala que escoava da antiga lagoa existente
no sopé do convento franciscano, em direção à Prainha, não
muito longe do local onde estava armada a terrível forca. Deste

215
v: si

privilegiado mirante, tão belamente retratado por Nicolas-An-


toine Taunay, vislumbravam-se os telhados do casario até che-
gar à Igreja do Carmo e ao porto, sempre coalhado de embarca-
ções de variegado calado; à direita, o Morro do Castelo e, em seu
cocuruto, a Igreja de São Sebastião, em nível mais alto que o
mirante dos franciscanos.
Aí neste belvedere Rosa devia se refazer da caminhada,
secando com a brisa seu corpo suado, limpando a,poeira ou a
lama de seus pés calçados de liberta, antes de entrar no Santo
dos Santos. Os seguintes Salmos de Davi (121 e 83) parecem ter
sido encomendados especialmente para descrever seu estado de
espírito nestas ocasiões:
"Que alegria quando me vieram dizer: vamos subir à casa
do Senhor!... Como são amáveis as vossas moradas, Senhor
dos Exércitos! Minha alma desfalecida se consome suspiran-
dopelos átrios do Senhor. Meu coração e minha carne exultam
pelo Deus vivo... Um dia em vossos átrios vale mais que
milhares fora deles. Prefiro deter-me no limiar da casa de
meus Deus, a morar na casa dos pecadores!"
x Os pecadores estavam bem próximos, a mesma negrada
.*£._
sequiosa de prazeres sensuais, que entulhava o sopé do morro
de Santo António. A ex-meretriz agora só se ocupava em buscar
o divino Esposo. Seu corpo "estava morto porque lhe parece que,
Convento de Santo António, dos Frades Franciscanos, cujo se- ainda que dormisse com algum homem, não sentiria estímulos,
gundo andar foi edificado por Frei Agostinho de S. José, o qual foi o nem nunca mais os teve, sendo antigamente muito vexada
Diretor Espiritual deEosaBgipcíaca quando chegouno Rio de Janeiro. deles".
Este^convento ainda conserva a capela-original dos "Sagrados Cora- 4*~
.31.
Refeita da caminhada, a negra beata tocava então a sineta
ções", mandada construir segundo os moldes revelados à Santa Afri- do convento, solicitando ao irmão porteiro que anunciasse ao
cana numa visão beatífica. provincial que ela, Rosa Maria Egipcíaca da Vera Cruz, queria
ser atendida por Frei Agostinho.
Na deslumbrante e toda doirada igreja conventual, ficava
aguardando seu confessor, fazendo suas orações nos muitos
altares que ladeiam este maravilhoso templo barroco, o mais
antigo que ainda hoje se conserva na Cidade Maravilhosa._I:Jo
altar-mor, lá estava amilagrosaimagem de Santo Antônioíoragoj
da igreja e convento: '

216 217
Todos os grandes místicos católicos falam da dificuldade
"Escritos antigos e pessoas dignas de fé e a tradição de se escolher um bom diretor espiritual. São João da Cruz
constante confirmam que, ao esculpir-se a imagem de (1542-1591), o austero e piedoso orientador de Santa Teresa
Santo António, a cabeça ficara sempre de tamanho disfor- d5Avila, costumava dizer: "Escolheium entre mil", enquanto São
me em relação ao corpo, até que na portaria do convento Francisco de Salles (1567-1622), o místico confessor de Santa
apareceu miraculosamente a cabeça do santo que perfei- Joana de Chantal, era ainda mais exigente: "Eu digo, escolhei
tamente se uniu ao corpo, como obra fabricada por mãos um entre 10 mil, posto que o diretor deve ser cheio de caridade,
sobrenaturais." ciência e prudência, pois, faltando uma das partes, corre a alma
muito perigo, pois muitos diretores espirituais fazem muito mal
Através das grades de ferro do lado direito da nave, Rosa às almas.
podia espiar a maviosa Igreja da Ordem Terceira da Penitência, Mais adiante veremos quão numerosos foram os confesso-
concluída apenas três anos antes de sua volta a esta cidade. No res na Capitania do Rio de Janeiro que, abusando sacrilegamen-
teto, deslumbrantes painéis com a vida e milagres de vários te da tribuna sacramental, em vez de dirigirem suas penitentes
santos franciscanos, inclusive uma série com as visões de Santa para o caminho do arrependimento e salvação, usavam o recôn-
Clara, sempre tendo a custódia nas mãos. dito dos confessionários para solicitá-las a atos torpes, sendo por
Foi, portanto, após seis meses de permanência no Rio de tão execrando delito denunciados ao Santo Ofício.
Janeiro, quenossabeata começou areceber orientação sistemá- Preocupado com tal parábola revelada pelo crucifixo de
tica do provincial franciscano. Rosa, Frei Agostinho "lhe disse que, se soubesse que aquela voz
Como todo bom diretor de almas, falava dele, lhe daria outro confessor e que se humilhasse ao
Senhor rezando sempre o Credo".
"ensinou-lhe Frei Agostinho de São José vários exercícios Este último conselho era o melhor antídoto sugerido pelos
espirituais, que ela praticou, e passados dois meses, estan- exorcistas contra as ciladas do Demónio, que tinha o costume,
do ela, ré,, em oração,, ouviu uma voz que saía deum. Senhor muitas vezes, de se travestir de anjo, ou falar como se fosse o
Crucificado que trazia consigo e lhe disse: 'Dize ao teu próprio Cristo, mas que, no momento em que a alma vidente
confessor que nos confessionários se assentam duas castas rezava "Creio em Deus Pai Todo-poderoso...", o Pai da Mentira
de confessores: um revestido com. autoridade de Jesus revelava sua insídia, retirando-se incontinenti para o reino das
Cristo, e outro, de Satanás. Uns dirigem as almas para o trevas, geralmente deixando atrás de si repulsiva catinga de
céu, outros mandam-nas para o abismo.' Ficando ela, ré, enxofre queimado. Atéhojepode ser admiradonataesadeLutero
confusa e medrosa, deu parte do dito sucesso ao Padre." outro sinal diabólico: uma mancha negra, interpretada pelos
protestantes como decorrência da tinta derramada por Satanás
Bastaram oito semanas de orientação espiritualparanossa revoltado com os escritos denunciatórios do reformador do cris-
vidente sentir-se suficientemente à vontade e segurapara trans- tianismo,
mitir ao provincial dos franciscanos uma revelação do próprio A humildade do provincial dispondo-se a transferir a orien-
Senhor Crucificado: que nem todo confessor era necessariamen- tação desta sua nova filha a outro confessor mais virtuoso, caso
te representante de Cristo; portanto, subjacente à mensagem, a vidente "soubesse que aquela voz falava dele", incluindo-se,
estava o augúrio de que seu orientador se acautelasse para não portanto, no rol dos operários de Satanás, revela o quão fascinado
levá-la para as profundezas do inferno; antes, que se pautasse e confiante ficou o velho, franciscano com a santidade de Rosa:
pelo exemplo do Divino Mestre.

218 219
m
ou realmente a africana impressionava" pelas suas virtudes, na mão direita, uma enorme vela ou candeia com cinco palmos *
visões e revelações sobrenaturais, ou Frei Agostinho não passa- de altura, da qual lhe vem o nome: Virgem das Candeias ou da
va de um fradeco simplório, propenso a dar crédito fácil aos Candelária, devoção espanhola cuja festa ainda se celebra todo
delírios místicos e "acidentes" de suas orientandas. A evolução dia 2 de fevereiro — na Bahia —, associada, no sincretismo, a
dos fatos há de mostrar que ambas as hipóteses concorreram lemanjá, a deusa das águas.
para propalar a santidade da ex-escrava da mãe de Frei Santa Foi neste mesmo templo que a negrinha Rosa, conforme já
Rita Durão. O carisma de Rosa era forte; a ignorância e fanatis- vimos, por volta, de 1725, recém-chegada da Costa de Judá, foi
mo do clero — do seu primeiro exorcista, depois do provincial e lavada do pecado original, entrando, pelas águas do batismo, no
de outros sacerdotes — mais fortes ainda. grémio da Santa Madre Igreja Romana. Embora não tenhamos
Deve ter sido nestes primeiros meses de aprendizado espi- localizado nos Livros de Batismo da Candelária o registro de
ritual junto ao superior dos franciscanos que Rosa mística teve Rosa, chamou-nos a atenção o fato de que de 1725 até 1762,
sua terceira visão na cidade de São Sebastião: tanto suaperfor- portanto por mais de trinta anos, foi vigário deste templo var-
mance extática, como o conteúdo da mensagem revelada, repe- zeano o Padre Inácio Manuel da Costa Mascarenhas, o mesmo
tem experiências anteriormente sucedidas quando aindaresidia que deve ter batizado nossa negrinha e que continuava respon-
em Mariana. Eis sua narrativa: dendo pela matriz quando de sua visão em 1751. Deve ter sido
este o primeiro sacerdote de quem Rosa se aproximou, inaugu-
"Indo u±a dia à Igreja da Candelária e estando ouvindo rando uma lista de quase duas dezenas de padres, incluindo
missa no altar de Nossa Senhora do Rosário, quando o bispos e cónegos, com quem a africana manter á diálogo, excluin-
sacerdote principiou a dizer Sanctus, Sanctus., Sanctus, do-se deste número, outro tanto de aterradores sacerdotes, os
ela, ré, percebeu claramente uma voz que dizia: 'Eu sou O
inquisidores, que em Lisboa, por anos seguidos, hão de devassar
médico e minha Santíssima Mãe é enfermeira.3 E conti- toda a vida passada da nativa courana.
nuando a missa, ao levantar-se a Sagrada Hóstia, tornou Outro detalhe digno de nota é que se tomarmos como •
a mesma voz repetindo o mesmo, com o que ficou ela, ré, O
referência estas duas datas, a do batizado e a da primeira
atónita, pedindo a Nossa Senhora, se era enfermeira, que revelação ocorrida na Candelária, notaremos que durante tal
tratasse da alma dela e dos demais pecadores/' período aí foram batizadas com maior frequência pessoas de cor
e escravos, do que brancos: em 1725 foram registrados no livro
A Igreja de Nossa Senhora da Candelária, local desta visão de batismo 169 brancos para um total de 275 escravos e demais
eucarístico-hospitalar, ocupa um lugar todo especial tanto na categorias de gente de cor, enquanto que, em 1751, foram 168
história do Rio de Janeiro como na vida de nossa vidente. Foi a registros de brancos para 249 de escravos. Devemos entender e
segunda freguesia a ser criada nesta cidade, provavelmente interpretar a predominância de batizandos de cor na Igreja de
pelos anos de 1634. Em 1723, quando da edição da obra Santuá- Nossa Senhora da Candelária, por ser a única freguesia alter-
rio Mariano, informa seu autor, Frei Agostinho de Santa Maria, nativa do Rio de Janeiro além da Sé, especializando-se a Cate-
que se tratava do mais venerado santuário da cidade, situado dral no atendimento de clientela mais diferenciada, enquanto a
no coração dela, tendo servido como Sé episcopal. Possuía então Candelária se ocupava do populacho, inclusive da numerosa
muitos e ricos retábulos doirados, onde diversas confrarias escravaria que ano a ano crescia às vésperas da elevação dest.a
homenageavam seus oragos. No altar-mor, bela imagem da cidade em Capital da América Portuguesa.
santa padroeira, em roca (armação de madeira revestida com Esta visão no altar de Nossa Senhora do Rosário, na Igreja
rica túnica 'branca), com o Menino Jesus no braço esquerdo e,

220 221
$T
9
do, dada a proximidade de onde residia. O populosobairro Saúde,
• da Candelária, repete a mesma temática de outra, revelação
acontecida há dois anos: apresentando-se como médico, Deus em São Paulo, refere-se igualmente à mesma devoção. A ação
• mandava aos mineiros que guardassem os Dez Mandamentos. da Virgem como enfermeira percorre toda a história cristã, seja
curando os enfermos com suas fontes milagrosas, como em

ííi-J
No Rio, Jesus não dá maiores explicações, nem indica a. medicina
adequada; como nos Evangelhos, Cristo dissera: "os sãos não Lourdes, seja dando bom sucesso às mulheres paridas que a
invocam sob os títulos de Nossa Senhora do Parto, do Ó ou da
precisam de médico, mas sim os enfermos" (Mateus, 9:12; Mar-
cos, 2:17; Lucas, 5:31); portanto, o diagnóstico estava implícito Boa Hora. Coincidentemente, o recolhimento que Rosa fundar á
y na mensagem. Os cariocas também precisavam curar-se de suas
doenças espirituais. De lambugem, o Bom Pastor introduz im-
será dedicado à Virgem do Parto, uma das mais queridas devo-
ções das mulheres casadas naqueles tempos pré-màlthusianos,
il
li portante ingrediente para a saúde espiritual dos cristãos: "mi- onde a gravidez era a triste e inevitável herança deixada por
T,-;™
nha santíssima mãe é a enfermeira". A reação de Rosa não Evá a suas filhas neste vale de lágrimas.
poderia ser mais acertada: pede à enfermeira, e não ao médico, Nove meses após sua partida do Rio das Mortes, o Padre
í

que trate de sua alma e dos demais pecadores. Antecede-se, Xota-Diábos escreve à família Arvelos dando notícia de como
portanto, à moderna corrente da teologia mariológica, que so- -~-~ií-f^~^~-r 'í—~ iam as coisas ao nível do mar. Ao todo encontramos na Torre do
mente no século atual atribuirá oficialmente à Mãe de Deus o Tombo um total de 55 cartas, sendo 26 de Rosa, 22 assinadas
papel fundamental no caminho salvífico como "Medianeira de pelo Padre Francisco e 7 atribuídas às duas filhas da família
todas as graças". O lema tão grato aos marianistas, ad Jesum Arvelos. Tivemos a alegria de encontrar tais documentos so-
per Mariam tem em nossa negra visionária uma versão mais mente na segunda vez que pesquisamos os arquivos da Inquisi-
científica: "ao médico através da enfermeira", considerando que ção lisboeta, enriquecendo sobremaneira a árdua tarefa de
umpedido deMaria equivale aumaordemparaseu divino Filho. reconstituir a biografia dos dois protagonistas deste livro. Mui-
Mais astuta, a negra vai interferir na vontade divina através de tas destas cartas são de dificílima leitura, oferecendo também
canais ainda mais seguros: acionará todos os laços familiares sérios problemas na identificação dos autores. Os biógrafos de
que deram origem ao'Verbo Encarnado. Como veremos mais Santa Teresa d'Avila tiveram, muito maior sorte, pois a refor-
adiante, sua grande devoção a Santana e São Joaquim, pais de madora do Carmelo deixou mais de 400 epístolas, "as quais são
Maria Santíssima e avós do Menino Jesus, foi sua estratégia por assim dizer a melodia que acompanha sua biografia".
para, através de toda a parentela divina, conseguir do Divino Talvez o Padre Francisco tenha mandado anteriormente
Esposo tudo de que necessitava. Rosa será grande devota e a outras cartas que se extraviaram, pois consideramos haver
maior propagandista no Novo Mundo da devoção à família espaço de tempo demasiado longo de silêncio, para quem man-
extensa de Deus, tema que voltaremos a tratar quando das visões tinha laços tão sólidos de amizade e compadrio. Da coleção de
dos cinco corações. 48 cartas trocadas entre o Padre Francisco e Rosa com a família
"Nossa Senhora Enfermeira" não consta no hagiológio Arvelos, esta é a que traz data mais recuada: 15 de dezembro de
mariano, mas outras denominações referem-se a esta mesma 1751. Nela vemos que nossa beata ia de vento em popa no
-função sanitária de Maria: em sua ladainha, a Mãe de Jesus é caminho da santidade e reconhecimento social:
invocada como "saúde dos enfermos" e cultuada sob o título de
Nossa Senhora dos Remédios e Virgem da Saúde. No próprio "Senhor Compadre Pedro Rodrigues Arvelos:
território da freguesia de Santa Rita havia a Capela de Nossa Que o senhor Menino Jesus, Nossa Senhoz*a de Brotas
Senhora da Saúde, templo que certamente Rosa deve ter visita- e a Sagrada Família aumentem a fé, esperança e caridade

222 223
era todos. Me recomende Vossa Mercê muito a Leandra e meiro, foi sustentada pelo Padre Francisco; agora, pelos frades
que não se esqueça de mira, que eu me não esqueço dela. do opulento Convento de Santo António. O zelo com que a
Ao escrever esta carta Rosinha não estava presente: ela mimam, impedindo até que aceitasse os convites de seus novos
anda sempre suspirando por Vossas Mercês e por sua devotos, demonstra que os frades menores encamparam, rapida-
companheira Leandra e pelo pobre António Tavares. As- mente a dirigida do "Provincial Velho", como costumeiramente
seguro que vocês têm em Rosa uma boa oradora,.pois cada • era chamado Frei Agostinho de São José. Ficaram deveras
vez mais cresce no amor de Deus e lhes asseguro, pelo impressionados com suas palavras inspiradas, mortificações
mesmo Deus, que afortunados são aqueles que a têm. extremadas e estrita obediência às ordens de seu diretor espiri-
favorecido, e Vossas Mercês são os escolhidos dosbens dela, tual -— homem de reconhecido poder em lidar com pessoas
e nesta América suponho que não há pessoa mais rica do espiritadas.
que ela. Rosa comunga todas as terças, sextas e domingos
e também dias de festas e santos, ainda que sejam juntos,
Por que teria o provincial dos frades menores aceito "com
muito gosto" ser o guia d'alma desta africana ex-prostituta? Por
m
porque assim lhe determina o seu confessor, o provincial que teriam os franciscanos assumido o sustento material de Rosa
de Santo António. Todos os religiosos lhe tratam nas e zelosamente impediam que oixtros devotos tentassem desviá-la |
palmas [da mão] e lhe fazem muitos carinhos e muitos do Convento de Santo António, dizendo aos que a queriam em \a companh
mimos e me dizem ser aflor desta cidade e lhe dão de comer
e sabem muito bem quem ela é. Tenho fé que na boca dela E a própria beata quem conta, em carta datada dos primei-
muitas vezes fala o Espírito Santo, de que faz admiradas ros meses dê 1752, enviada à Família Arvelos: "Estou muito bem
muitas pessoas nesta cidade, que a querem em sua com- aceita na Igreja de Santo António, do Provincial Velho, homem
panhia. Mas eu não a deixo ir para onde a querem, nem os virtuoso e justo, frequentando o Sacramento três vezes na
padres consentem e dizem: 'largue a mão dela!' Ela se semana. Mais tempo houvera eu cá estar nestas partes! Frei
mortifica muito com cilícios e disciplinas e tanto fogo tem Agostinho me quer muito e mais todos os religiosos desta sagrada
no amor de Jesus, que, se anão impedisse, j á teria acabado Companhia." • . - . - . .
a vida, mas ela não sai do preceito que põem os seus padres Considerando- a importância fundamental que vai desem-
espirituais. ' penhar a Ordem Franeiscana na vida de Rosa, quer na figura
O Compadre muito .obrigado, de Frei Agostinho, o diretor espiritual que introduzi-la-á nos
Padre Francisco Gonçalves Lopes. patamares;superiores da vida mística, estimulando-a na funda-
-i-
ção do Recolhimento do Parto, quer fornecendo-lhe espaço para
P.S. Esta não mostre a ninguém, só ao Padre João Ferreira." seus transes e revelações, muitas delas ocorridas na igreja do
mesmo convento, cremos ser de interesse do leitor penetrar
O Padre Xota-Diabos foi o primeiro e principal propagan- claustro adentro do convento dos franciscanos do Rio de Janeiro,
dista da santidade da negra courana, e nesta sua primeira carta, conhecendo um pouco de sua história, misticismo e escândalos,
como fará em muitas outras, não poupa elogios à sua beata — ingredientes aliás que refletem de maneira cristalina o clima de
elevada agora pelos franciscanos à privilegiadíssima condição fanatismo religioso do nosso período barroco. Rosa é uma típica
de "Flor do Rio de Janeiro", tratada pelos mesmos frades nas mística franciscàna, igual a muitas outras embusteiras da mes-
palmas da mão e deles recebendo seu próprio sustento material. ma ordem, processadas pela Inquisição tanto em Portugal quan-
Desde que alforriada, Rosa viveu às expensas sacerdotais: pri- to na Espanha.

224 225
"Aprouve à Providência Divina distinguir a Ordem. Fran- extremamente popular e simplório de sua espiritualidade, esti-
ciscana, escolhendo filhos seus para primeiros porta-bandeiras mulando certas devoções, consideradas depois pelo Papado como
do Evangelho no Brasil: um grupo de oito missionários vinha
suspeitas ou mesmo supersticiosas, divulgando o culto a certos
com Pedro Álvares Cabral, quando este descobriu a terra que
santos e suas relíquias cuja historicidade hoje é questionada
denominou de Vera Cruz. O estabelecimento definitivo da
pela própria Sagrada Congregação dos Ritos. Não devemos nos
Ordem dos Frades Menores no Brasil se dá em. 1585, com a
esquecer de que foi com o poverello de Assis que se inaugurou
fundação do convento de Olinda, dois anos depois sendo iniciadas
na. Igrej a um dos capítulos mais polémicos — e sangrentos — de
as obras do convento franciscano em Salvador, na, Bahia. Em
sua história mística: em 1224, em seu retiro no Monte Alverne,
1591 abrem casa no Espírito Santo, e já em 1592 as autoridades
nomeio deumêxtasebeatífico, às vésperas da festa da Exaltação
do Rio de Janeiro faziam doação de um terreno para construção
da Santa Cruz, chegou São Francisco à máxima união com
de uma casa conventual cujas obras têm início somente em 1607,
Cristo, recebendo em seu corpo a impressão das cinco chagas e
estando entre os quatro fundadores Frei Vicente do Salvador, o
tornando-se assim uma verdadeira relíquiaviva. Mais chocante
autor da primeira História do Brasil. Nos primórdios residiram
ainda do que os sagrados estigmas, é a dúbia figura que feriu o
os frades na Capela de Santa Luzia, próxima à orla, optando
coração, mãos e pés do fundador da Ordem dos Frades Menores:
depois por construir seu convento em local, mais seguro e recua-
do, no morro que já era dedicado ao segundo mais famoso santo "rezando as orações da manhã, de repente viu São Fran-
da ordem de São Francisco: o milagroso Santo António. Foi o cisco um ser que era ao mesmo tempo um homem e um
próprio Mem de Sá quem assinou a escritura de doação aos serafim. Tinha os braços estendidos e os pés juntos, e seu
frades menores, que incluía o outeiro, seu sopé, pedreiras e águas corpo estava fixo numa cruz. Duas asas se alçavam sobre
que nele se achavam. Comprometeu-se a Câmara do Rio de a cabeça; outras duas se estendiam como para voar e outras
Janeiro a abrir uma rua reta, de 30 palmos de largura, que duas cobriam o corpo. A cara era de uma beleza superior à
pusesse este convento em contacto com o mar, sendo tal rua da terra, embora tivesse marcas de sofrimento."
depois denominada de São José —• a mesma rua onde século e
meio após será construído o recolhimento do qual Rosa há de ser Maravilhosa reprodução desta cena, o "Cristo alado de São
a "Abelha Mestra". Francisco" com deslumbrante esplendor, pode ser vista no altar-
Inaugurado em 1615, já em 1619 instalava-se no Convento mor da Igreja da Ordem Terceira de São Francisco, repetindo-se
de Santo António a Ordem Terceira Franciscana, também cha- no forro do mesmo templo impressionante pintura da estigma-
mM"a~OM'êTn~TeTceira--d:sr-Penitência, cuja belíssima igreja, tização do patriarca seráfico.
adjunta à moradia dos frades, só foi concluída no primeiro ano Seguindo as mesmas pegadas de São Francisco, muitos
do século XVIII. Com o correr dos anos, tal convento tornou-se santos, sobretudo santas, dirão igualmente ter recebido as cha-
a principal casa da circunscrição sul da Ordem Franciscana, aí gas de Cristo, inclusive nossa negra courana — salvo erro, a
residindo desde 1677 o. primeiro custódio e o prelado maior da única africana de que se tem conhecimento de ter merecido
província da Imaculada Conceição. Três séculos antes de Roma tamanha deferência celestial. Segundo levantamento do Dr.
decretar ser dogma de fé que.Maria Virgem fora concebida sem Imbert-Gourbeyère, da Faculdade de Medicina de Clerrnond,
pecado original, os fcanciscanos cariocas já colocavam sob a dos 312 casos de estigmatizados que descobriu na hagiografia
.proteção da Imaculada Conceição sua província meridional. Os católica, 102 pertenciam à Ordem Franciscana—31,7%—, cifra
, filhos de São Francisco sempre se destacaram pelo caráter que por si só revela aforça do exemplo místico do Doutor Seráfico,

226
227
fundando a escola dos chagásicos e servindo de modelo para seus entre os pobres do planalto piratiningano. Certa feita um pau-
correligionários. lista foi pedir suas orações para recuperar um seu escravo há
No Brasil, sobretudo na época em que os milagres ainda pouco fugido; mal virou as costas, encontrou o fugitivo. Como
aconteciam corriqueiramente, centenas de franciscanos distin- agradecimento por tão caridosa graça, mandou o negro fiar
guiram-se pela santidade e muitos eram venerados pelos seus incontáveis arrobas de algodão para os frades. Inúmeros são os
contemporâneos como poderosos milagreiros. O leitor interes- santos franciscanos nesta época que tomara claramente opartido
sado em delírios místicos ocorridos em nosso país de antanho dos senhores, executando o desumano papel de "capitães-do-
encontrará exemplos, os mais incríveis e fantásticos, sobretudo mato". Seu maior milagre, contudo, foi recuperar a vista de
em dois autores: Frei António de SantaMaria Jaboatão, Crónica uma menina cega, curando também muitos enfermos de graves
dos Frades Menores da Província do Brasil (1761), obra comu- doenças, entre eles um recifense atacado da terrível "bicha", a
mente chamada de Orbe Seráfico, e nos diversos livros de Frei mortíferapeste que dizimou incontáveis moradores do Nordeste,
Apolinário da Conceição, morador do Convento do Bio de Janeiro nos anos de 1685 a 16863 o qual, comendo apenas um pedacinho
e cronista de sua ordem, entre eles: Epítome do que em Breve de pão dado pelo beato franciscano, imediatamente recuperou a
Suma Contém esta Província de Nossa Senhora da Conceição saúde. Outro religioso da mesma ordem apontado como santo
da Cidade do Rio de Janeiro (17'30), Pequenos na Terra, Grandes foi Frei Gregório da Conceição (+1704): primeiro tinha sido
no Céu (1732) e ClaustroFranciscano Ereto noDomínio da Coroa soldado, lutando nas guerras contra os holandeses. Convertido,
Portuguesa (1740). tomou o hábito de irmão leigo no mesmo convento do Kio de
Embora até agora nenhum religioso franciscano do Brasil Janeiro, passando contudo o resto da vida em duras penitências
tenha sido canonizado oficialmente, "avultado é o número dos no convento de Santos, nunca deixando de castigar seu corpo
que, abaixo do Cruzeiro do Sul, se guindaram a um grau elevado com cruéis cilícios e flagelações. Possuía o dom da profecia,
de virtude e no seu tempo-foram aclamados santos". Entre eles, prognosticando o futuro de muitos devotos que o consultavam.
citarei apenas três nomes constantes na 6bi:a.Brasileiros Heróis Certa vez recebeu um boi muito bravio como esmola para seu
da .Fe:10 Frei Francisco de Santo António (+1695), chamado "o convento: "chamou-o em nome de Santo António, e o boi veio
Pretinho", irmão leigo, natural de Pernambuco, notável pela mansamente e sem relutância seguir para o convento". Chegou
humildade e pelas muitas horas que de joelhos ficava em oração. aressuscitarumacriancinhano Convento de São Paulo e, graças
Certa vez, contam seus biógrafos, o frade sacristão viu a seu patrocínio, os pescadores de Santos fizeram grandiosa
pescaria num dia em que o mar não estava para peixe, e, em
"que a imagem do Menino Jesus se desprendera miraculo- gratidão, deram-lhe dois cestos cheios para seus confrades.
samente dos braços da Santíssima Virgem e fora colocar-se Na casa franciscana do Rio de Janeiro, hortus minorum
nas mãos do servo de Deus. Depois, acariciado com santa fertilis, o jardim dos frades menores ornados com a santidade
ternura por Frei Francisco, lá voltava para os braços da também foi bastante fértil, produzindo aí mimosas flores de
Divina Mãe o seu Bendito Filho". virtude. Entre os servos de Deus que neste convento morreram
com odor de santidade, o cronista da ordem, FreiBasílio Rower
Trata-se de uma versão crioula do milagre de São Benedito, destaca notadamente quatro frades: Frei António de Jesus
como ele, também negro e irmão leigo num convento da Calábria. (+1680), encontrado, após longa vida ascética, morto, de joelhos,
Outro destacado pelas virtudes foi Frei José^ "o Santinho" com as mãos levantadas para os céus em adoração; Frei Estêvão
(+1686), porteiro do convento do Largo São Francisco de São de Jesus (+1687), enfermeiro do convento, que curava tanto com
Paulo: tinha hábito de distribuir comida de seu próprio prato

228 229
as poções de botica como com fantásticos milagres: quando
morreu, suas relíquias foram tão disputadas que tiveram os
frades de colocar-lhe um segundo hábito, sendo assim mesmo
enterrado com a batina pelos joelhos; Frei Cristóvão da Concei-
ção (+1704), que distinguiu-se pela penitência: comia apenas
uma vez por dia, jogando água sobre seu alimento par a tirar-lhe
• o sabor, e flagelava-se todas as noites, deixando no chão uma
poça de sangue. Quando morreu, também suas relíquias foram

í
disputadíssimas a bofetões pelos muitos devotos. Foi contudo
FreiFabiano de Cristo o mais santo e popular dos servos de Deus
do convento do Rio de Janeiro, merecendo suabiografia a atenção
de vários autores, cujo processo de beatificação inclui uma
relação de 1.925 milagres "confirmados". A veneração de Frei
Fabiano "perdura até hoje [1937] e cresce cada vez mais. E raro
o dia em que não chegue ao convento uma comunicação de graças
obtidas, como é rara a hora do dia em que não se encontrem
devotos diante da urna que encerra seus ossos". Para manter
acesa a chama de sua memória e na esperança de vê-lo reconhe-
cido como santo também por Roma, os franciscanos distribuem
ainda hoje santinhos com uma gravura antiga deste frade, onde
f» se lê uma oração pedindo graças por seu intermédio, e, no final
do texto, um importante lembrete: "Aos devotos de Frei Fabiano
pede-se o obséquio de comunicar as graças por ele alcançadas
ao Revma Padre Superior do Convento de Santo António do Rio
de Janeiro." Possuo dois destes santinhos: um de 1938, com o

l
Imprimatur do arcebispo de São Paulo; o outro, impresso na
década de 80, traz uma pintura moderna, rejuvenescida e em-
belezada do servo de Deus. Tive oportunidade de visitar sua
• Frei Fabiano de Cristo, religioso tumba no claustro do dito convento: parece ter diminuído sua
franciscano, santamente falecido no Rio popularidade, pois nenhum devoto encontrei nos momentos em

f
de Janeiro, no Convento de Santo Antó- que admirava seu ossuário.
nio, aos 17 de outubro de 1747. Morto em 1747, já no ano seguinte o cronista da Ordem, o
citado Frei Apolinário da Conceição, mandava imprimir em
Lisboa sua vida, obras e milagres: Eco Sonoro da Clamorosa Voz
que deu a Cidade do Rio de Janeiro no dia 18 de outubro de 1747,
na Saudosa Despedida do Irmão Frei Fabiano de Cristo. Certa-
mente seus confrades de hábito esperavam que se repetisse a

230 231
r.
mesma façanlia de São Francisco, reconhecido como santo pelo
ò corpo conservava-se flexível, os olhos sem névoa, os dedos
Papa Gregório IX, em tempo recorde: apenas dois anos após sua
estalando como qualquer vivo quando se lhes destroncavam.
morte. O pobrezinho Frei Fabiano teve ventura menor, pois até
Feito um pequeno talho em seu braço, à noite, para se testar
hoje Eoma nem sequer reconhece-o como venerável:
também se a corrente sanguínea dava mostras de vida, na
Nascido em 1676, na Comarca de Guimarães, encontramos
manhã seguinte o braço ainda sangrava, diferentemente do que
Fabiano na vila de Parati, aos 28 anos, como muitos outros
ocorre com o comum dos mortais. Ao amanhecer do outro dia,
reinóis, dedicando-se ao comércio de fazendas se.cas. Aí sucede
"principiou clamorosa voz do devoto povo do Rio de Janeiro a
crucial viravolta ern sua vida: vendo seu sócio comercial ser
proclamar: vamos ver o santo que morreu em Santo António!
assassinado, "sentiu grande comoção em sua alma: começou a Todos queremos ver e beijar seus pés! Tal foi p concurso do povo,
desprezar a opulência deste mundo e, despido, pobre e obediente, que a cidade parecia estar na maior e mais plausível festa". A
propôs servir a Cristo no estado religioso". Em 1704 recebeu o aglomeração dos devotos e curiosos foi tamanha, que por pouco
hábito de irmão leigo no Convento de São Bernardo, em Angra não arrombaram as portas do convento, obrigando os frades a
dos Reis, passando em seguida para a cidade do Rio de Janeiro. transferir seu caixão e velório para a igreja conventual — o
Sua piedade era exemplar: estragava sempre o sabor das comi- mesmo templo onde Rosa há de ter diversas visões e onde se
das, acrescentando-lhes água, cinza ou sal ern demasia; nunca
confessará com o provincial desta ordem.
comia peixe nem bebia vinho; carne, nem pensar; trazia ásperos
Nos séculos passados, quando milagres, aparições e santos
cilícios a. vida toda; dormia poucas horas por noite, sempre
faziam parte integrante do dia-a-dia da comunidade, até mesmo
flagelando-se copiosamente antes de repousar; ajudava muitas
o populacho sabia reconhecer alguns sinais de santidade no
missas diariamente. Era grande devoto das almas do purgatório
cadáver dos falecidos: manter o coi-po flexível e incorrupto além
e praticante da oração mental, tendo fundado, ainda quando
do tempo usual, sangrar quando cortado, exalar perfumes,
estava em Parati, uma confraria dedicada às almas sofredoras.
estalar as juntas dos dedos. Todos esses sinais fantásticos foram
Profetizou a morte de vários religiosos distantes e, para cada
presenciados no franzino corpo do santo enfermeiro.
óbito de um confrade, rezava 800 Padre-nossos e outro tanto de
Na tarde seguinte de seu passamento, o próprio bispo, Dom
Ave-marias. Na qualidade de enfermeiro de seu convento, du-
António do Desterro, subiu o morro de Santo António para de
rante quarenta e um anos de vida religiosa, fez incontáveis
visu presenciar o "exame de flexibilidade" no corpo do servo de
curas, muitas delas reconhecidas como miraculosas. Entre os
Deus. Lá j á estava desconsolado o Governador e toda sua guarda,
beneficiados de seus poderes curativos celestiais encontrava-se
além de destacadas autoridades civis e militares. Não era para
nadamenos que o governador do Rio de Janeiro, o piedoso Gomes
menos: nunca esta cidade tivera um santo tão agraciado pelo
Freire de Andrade, que por quatorze anos privou do conheci-
poder divino! Uma equipe de médicos e cirurgiões procedeu à
mento e intimidade deste santo varão.
vistoria: no local infeccionado das chagas do cilício (ventre), e no
Se em vida Fabiano foi agraciado com formidáveis poderes fétido tumor que Frei Fabiano tinha numa das pernas, em vez
divinais, no dia de suamorte e após a mesma, os céus brindaram de mau cheiro e pus "exalava sangue líquido e cheiroso como
os cariocas com abundantíssimos milagres ainda mais edifican- bálsamo odorífero que os exímios doutores constataram como
tes e fantásticos. Logo ao passar .desta vida para a melhor, sobrenaturais, assim também como o rubicundo e aprazível
começaram os prodígios: quanto mais passavam as horas, mais rosto, reconhecendo por verdadeiro o que a voz do povo publicava
ficavam róseos seus lábios e faces, "sendo antes macilentos". como maravilha de Deus em seu servo". Convencido da sobre-
;Fazia já trinta e tantas horas que exalara seu último suspiro, e naturalidade de tais sinais, o bispo beneditino, ele próprio

232 233
-uSC-

grande colecionador de relíquias e cujo riquíssimo acervo, o ao ataúde do santinho, disse compungido: "Façam hoje do Go-
maior das Américas, pode ainda hoje ser admirado no Mosteiro vernador o que quiserem! Não atendendo neste dia mais que
• de São Bento, "mandou tirar um pedaço do hábito de Frei
Fabiano, tocou na chaga ensanguentada" e recolheu-se para seu
honrar com obséquios ao servo de Deus a quem se reconhecia
obrigado". Governador ultrapopulista, não há como negar!
palácio. Antes, porém, deixou por escrito o seguinte registro: Depois de sepultado ocorreram novos e marcantes prodí-
gios: de sua campa exalou tão delicioso e inebriante perfume que
"Atesto que, esfregando as antigas e asquerosas chagas o claustro do convento ficou tomado de bom. cheiro dias seguidos,
de Frei Fabiano com um retalho do hábito do mesmo servo repetindo aí o mesmo milagre ocorrido com. vários outros santos
de Deus e molhando-o no mesmo sangue, reparamos depois biografados pelos bolandistas, de cujos corpos evaporou odor de
que o tal pedaço do hábito lançava de si um cheiro mui flores: o português São João de Deus (+1550), cujo perfume foi'
suave que recreava o olfato, mostrando cor natural e os sentido até vinte anos depois de sua morte; São Vicente de Paula
olhos cristalinos como se ele estivesse vivo." (+1660), setenta e sete anos após, e São João Câncio (+1473),
cento e trinta anos. Acredite quem quiser!
O piegas governador, descrito por seus biógrafos como Tamanha era a crença na santidade deste frade que, na
exemplar no zelo religioso, castidade, justiça e amor dos povos, noite seguinte ao enterro, um dos muitos escravos deste convento
também nãç perdeu oportunidade de aumentar o número de franciscano, ao rezar o terço, lembrou-se de oferecer um Pai-nos-
seus fetiches sacros: "beijou os pés do santo homem e levou so em intenção da alma de Frei Fabiano. "A isto reclamaram os
algumas relíquias". Eis seu depoimento: mais negros, impugnando o oferecimento, dizendo: Pedi outra
tenção, porque o Santo está no céu e não lhe são necessárias
"Certifico e atesto que o frade morreu de hidropisia, e orações." Glória Jesus! Louvado seja Deus que escreve direito
as chagas que tinha estavam rosadas e naturais, vertendo por linh as tort as eusaaboca dos pobres e humildes par a revelar
sangue líquido. Tinha as mãos, braços e mais partes do seus inefáveis mistérios! Voxpopuli, voxDei...
corpo flexíveis, as cores do rosto como se estivera vivo, o Entre seus milagres post mortem, registrados meticulosa-
que tudo me pareceu e às maispessoas presentes ser efeitos mente no "Instrumento Judicial e Autêntico dos Privilégios e
l sobrenaturais e prodigiosos." Maravilhas que Deus tem obrado por Intercessão de seu Servo
de Deus", cito alguns, escolhidos aleatoriamente—sempre tendo
f
Retirando-se o bispo, o povo dançou e rolou em seus arrou- como objetivo familiarizar o leitor com o clima de misticismo e
II" bos devocionais. Os franciscanos tiveram de recobrir com três devoção acrítica, reinantes no Brasil, na época em que Rosa foi
novos hábitos sucessivos o corpo do santinho enfermeiro, tama- acolhida pelos franciscanos como "a Flor do Rio de Janeiro".
nha a avidez de todos em cortar-lhe retalhos como relíquia. Registram, estas crónicas que o capelão da Igreja de Nossa
Vários de seus cordões e capelos foram piedosamente surrupia- Senhora dos Pretos, o Padre Pedro Nolasco, declarou sob jura-
f, dos, não sobrando sequer um fio de cabelo de sua cabeça, havendo
mesmo um devoto mais guloso, que arrancou disputadíssima,
mento que havia oito dias, fugira-lhe um seu escravo crioulo,
Narciso, assim pedindo ao servo de Deus: "Se o meu escravo que
f relíquia do corpo do servo de Deus: tirou-lhe um dedo do pé! anda fugido, lá onde está, serve a Deus, não permitais que ine
Na hora do cortejo fúnebre — da Igreja de Santo António apareça. Se porém O ofende, sede servido de que brevemente me
para o cemitério no interior do claustro — o Governador Gomes venha para casa." Chegando à sua residência, encontrou-o es-
• Freire de Andrade, ao ver-se empurrado pelo tropel do povo, que, pontaneamente retornado, sendo que nas outras fugas vinha
choroso, rezava o De profundis, disputando um lugar próximo

234 235
manietado. Frei Fabiano, como vários outros santos francisca- na época a conduta pouco ortodoxa e o fanatismo de seus
nos do Brasil, apesar de também ter exercido a repulsiva função confrades dos séculos passados. Diz o escritor:
de "capitão-do-mato", era muito venerado pela negrada, confor-
me patenteia-se através de vários depoimentos de devotos de "Era sintoma característico do tempo colonial o profano
cor registrados no "Instrumento Judicial". Apreta Catarina, por andar de mistura com o sacro. Haja vista as célebres festas
exemplo, escrava de Dona Caetana Maria da Conceição, estava do Divino Espírito Santo rios impérios da Lapa, de Mata-
com retenção de urina por dias seguidos, sem. remédio que a Porcos e Santana, e os mascarados e outras mundanidades
aliviasse. Tinha até sido sacramentada, esperando a morte, nas procissões que o bispo Dom António de Guadalupe
quando ministraram-lhe um pouco de água da moringa perten- (1725-1740) proibiu severamente."17
cente ao servo de Deus. "Em 1/4 de hora conseguiu melhoras,
urinando copiosamente." Manuel de Sousa Lobo, residente na Mundanidades que não eram apanágio do Rio de Janeiro,
rua da Ópera, estava tísico e à beira da morte. O licenciado pois no vizinho bispado de São Paulo o profano às vezes chegou
Boaventura de Deus Lopes trouxe ao doente <cum lenço rubricado a sobrepujar o sagrado nas festas religiosas, como bem mostrou
com o salgue da chaga da perna de Frei Fabiano", cingindo o a historiadora Mary dei Priore, no magnífico trabalho "Deus dá
ventre do enfermo com. tal relíquia; em pouco tempo ficou licença ao Diabo: a contravenção nas festas religiosas e igrejas
completamente são e salvo, dando polpuda esmola para o con- paulistas no século XVIII". Monsenhor Pizarro, o mais arguto
vento em agradecimento. historiador da Igreja Carioca, refere-se igualmente em suas
Numerosos são os registros de curas de sezões, flatos, Memórias Históricas do Rio de Janeiro (1820) à devassa irreli-
retenções de urina, pedras vesicais, prisão de ventre, todas giosidade observada nos templos cariocas, havendo no Arquivo
obtidas graças à intercessão do santo enfermeiro, colocando-se da Cúria deste bispado um escabroso livro todo ele dedicado aos
um retalho de seu hábito num copo d'água, segurando-se em seu "delitos do clero", onde estão registradas ações as mais chocan-
caj ado ou mesmo aplicando tais relíquias no corpo dos enfermos, tes, até agressões físicas com objetos sagrados, perpetrados
inclusive em suas partes íntimas. dentro do próprio espaço sagrado, envolvendo sacerdotes. Tive
Por anos seguidos os frades deste convento brindaram os . este manuscrito em minhas mãos: hoje, infelizmente, encontra-
devotos que subiam o morro de Santo António com um frasqui- se fora do acesso dos pesquisadores, censura abominável de
nho da água da moringa pertencente ao santo enfermeiro, cujos quantos querem esconder o sol com a peneira...
efeitos curativos só equiparavam-se às "Lágrimas da Piedade",
a fonte curativa que Rosa encontrou no morro do Fraga, no "Tempo de muita ignorância, como de muito pouca reli-
caminho do Inficcionado paraMariana. gião; tempo em que o homem se confessa todos os dias, reza
Além de todos esses santos religiosos, dos quais Frei Fa- o terço quase de hora em hora, e vive a pecar de 5 em 5
biano de Cristo foi o mais celebrado, destacou-se também o minutos...
Convento dos Frades Menores do Rio de Janeiro como local O movimento de entrada e saída nos templos é sempre
privilegiado-onde se celebravam as -mais devotas e barrocas extraordinário. Não vai ninguém à rua sem penetrar, no
cerimónias do devocionário popular. O próprio cronista da or- mínimo, a nave de uma igrej a, para tomar águabenta, para
dem, o impoluto Frei Basílio Rower, é quem. chama a atenção fazer sua prece, para afet ar uma religião que, no fundo,
para o grande sincretismo dominante na religião católica de mal professa. As damas de sociedade, quando começam
antanho, diluindo nalicenciosidade e superstição generalizadas pelo fim do século a deixar a clausura da casa colonial, indo
às igrejas no bioco das serpentinas e cadeirinhas, não

236 237
saltam dos seus veículos aporta, mas rio interior das naves "Estigmatização de São Francisco", onde se mostrava este santo
ou sacristias, levando consigo os seus micos de estimação, ajoelhado diante de cruz tão gigantesca, que ultrapassava a
os seus tapetes, as suas esteiras ou almofadas com que altura do segundo pavimento das casas por onde passava. "Doze
forram as anfractuosidades dos lajedos, nelas se acomo- homens robustos tornavam-se precisos para, com esforço, car-
dando. Por ocasião das cerimónias da Semana Santa ou de regar esta almanjarra, honra disputada entre os irmãos tercei-
outras cerimónias mais prolongadas, os escravos trazem, ros que no dia seguinte exibiam aos conhecidos, com orgulho, os
em samburás de palha, viandas, pão, farinha, doce e outras ombros machucados e chagados." Profusão de crianças traves-
gulodices. tidas de anjos com asas de penas de pato e magotes de meninos,
Corne-se regaladamente, limpando com estudada ele-
vestidos com hábito de capucho ou representando os apóstolos,
gância os dedos nos lenços molhados em água de Córdoba, misturavam-se com autoflageladores encapuzados, oferecendo
entre conversinhas e risotas amáveis, de pé, de cócoras, macabro "èspetáculo aos fiéis: No frenesi de que se achavam
deitado. Alguns cochilam, outros meditam, muitos pensam tomados,
em negócios, em amores, era. vinganças. Há ainda quem
cabeceie e cochile, e mesmo quem durma e sonhe. "cada um procurava exceder o vizinho no rigor com que
Quando o sol lá fora esbraseia, a nave, que devia ter a lacerava as próprias carnes ou as alheias, em demoníaca
frescura de um pátio e a doçura de uma sombra amiga, sob competição. Sangrentos, aos gritos, aos saltos, ululando, a
o fulgor de1 centenas de tochas que crepitam, arde, sufoca, estimular-se mutuamente em torvelinho macabro à luz
queima. A atmosfera pesa, impregnada da estranha fra- fumarenta dos archotes, os penitentes ofereciam um èspe-
grância de corolas e incenso, olor suave ao qual, entretanto, táculo dantesco aos olhos dilatados da multidão que em
insolitamente se mistura o mau cheiro que vem das frin- torno do préstito alucinante, meio contaminada por aquele
chas do solo, das paredes e dos lugares onde repousam, delírio, bradava e clamava, incitando-os ainda mais, apon-
sepultados, os defuntos, muitos deles mal entrados na tando a dedo os mais ensanguentados e os que mais se
morte, ainda no prefácio do drama pungente da decompo- destacavam pelo furor. Èspetáculo de histeria coletiva."
• - ,,20 .
siçao... •,
Tal era o clima de exacerbação religiosa dominante quando
Se nos templos o clima era de feira, nas procissões a turba Rosa chega ao Rio de Janeiro: o Rei piegas dava o exemplo
galhofava como se estivesse numa quermesse, quiçá mesmo patrocinando canonizações de santos esquecidos pelos devotos,
numa tourada. Ou então, em vez de risos, namoricos e apalpa- como ocorreu com a italiana Santa Margarida de Cortona; o
delas, predominava nestes cortejos sacros o mais barroco e bispo e o governador disputavam avidamente relíquias do santo
sanguinolento melodrama. De todas as muitas procissões que frade milagreiro; penitentes flageladores percorriam as ruas do
anualmente se realizavam na cidade de São Sebastião, a mais centro não apenas nas procissões das Cinzas e do Senhor dos
concorrida e aparatosa era a Procissão das Cinzas, na quarta- Passos, como também nas altas horas da madrugada, pertur-
feira subsequente ao.carnaval. Instituída em 1647 pelos tercei- bando com seus piedosos lamúrios e correntes o sono do citado
ros da Ordem de São Francisco, de cujo templo partia, este Abade de Ia Caille. Irmandades, confrarias e capelas são eretas
cortejo percorria as principais ruas do centro, fazendo prolonga- umas atrás das outras, homenageando toda a corte celeste: o
das estações nas maiores igrejas da cidade. Era composta de 20 Menino Jesus, sua virgem genitora, seu pai putativo, sua pode-
andores ricamente ornados, destacando-se contudo o andor da rosa avó, seu virtuoso avô e até sua bisavó materna, Santa

238 239
Emerenciana, cuja milagrosa e rica imagem, ainda lá está num menos que 1.590 grandes velas acesas nos altares — "velas
nicho destacado na igreja dos Carmelitas cariocas. grandes", ratifica o arguto observador — imaginemos as despe-
Rosa surge neste sacro décor como se fosse a andorinha da sas faraónicas destinadas ao culto, no século anterior, quando
rArca, de Noé: aos olhos do provincial dos franciscanos e de seus partia do próprio Monarca, Dom João V, a iniciativa de tornar
correligionários, a, negra iluminada representava o que estava o culto religioso tão pomposo e grandiloqúente como o praticado
faltando nesta cidade tão carente, até hoje, do sobrenatural. A na capital do Papado. Portanto, ter um santo ou santa em casa,
América Espanhola já tinha-encontrado sua pérola preciosa: a seja vivo, seja no além, era a garantia de multidões de devotos
°(dominicana Rosa tfé~Lima fora reconhecida santa por Roma a pedir graças e milagres, enchendo com boas moedas de ouro e
l desde 1671. A Divina Providência, tão justa e magnânima com. prata os cofres, que, abundantes, estavam espalhados pelo
/ as ordens religiosas, escolhia agora os franciscanos da América templo, desde sua entrada, passando por todos os altares late-
( Portuguesapara revelar ao mundo a sua "Flor do Rio de Janeiro" rais, até ao genuflexório, ao pé do altar-mor. Dai o vivo interesse
\^— Rosa Maria Egipcíaca da Vera Cruz. despertado por Rosa Egipcíaca nos frades menores, naquela
Comõ7 deade princípios de 1752, o Padre Francisco Gonçal- quadra, endividados com as reformas do Convento de Santo
ves Lopes voltara às Minas, posto que viera ao Rio de Janeiro António, certamente contando commenores espórtulas dosíiéis,
tão-somente com a intenção de acompanhar Rosa na sua fuga alguns já esquecidos das virtudes sobrenaturais do santinho
das justiças eclesiásticas, a partir de 1752 a visionária courana enfermeiro, morto na década anterior. Valia a pena investirna
ficará sob tutela integral do "Provincial Velho", que se torna o negra beata, não só para que viesse a servir comgmodelo de
responsável não só por sua vida espiritual, como também por santid^d^p_ara_as_gentes__de_cqr dp_J5rasil — a maioria da
seu sustento material. população daArnéiicj^Pgifeguesa— -cornoJaraMm..^&fiobietudo.
Ter uma santa em casa era honra das mais cobiçadas e para tornar-se o centro de atracão de futuras romarias que
vantajosas para quantos dependiam materialmente da fé e
caridade do povo cristão. Há vários episódios na história da
Igreja, também no Brasil. onde_os_cgrpos de devotos que morre-
Acreditamos ser este o momento adequado para tecer
algumas considerações a respeito da santidade negra, pois Rosa
^
rarncomfkma de santidade foram ayidagiente disputados por Courana deve ter provocado na imaginação dos frades menores
diferentes Igrejas ou agremias.Q.es religiosas. No próprio Rio de do Rio de janeiro a viva esperança de que pudesse tornar-se a
Janeiro, em 1748, ao falecer Irmã Francisca de Jesus Maria, versão moderna, brasileira, de Santa Efigênia, único modelo de
irmã carnal da fundadora do Convento de Santa Teresa, santidade feminina da cor de ébano que, com a escr avaria daqui,.
só tinha de semelhança a cor da pele, pois em vida pertencera à
"osterceirosfranciscanos, cientes das maravilhas queDeus nobrezanúbia, terminando seus dias num mosteiro carmelitano
obrava no corpo da Irmã Francisca, vieram buscar o cadá- — realidade muito distante do comum dos africanos e crioulos
ver para sepultá-lo na igreja da ordem, alegando ser ela do Brasil escravista. Se desse certo, Rosa Egipcíaca tinha tudo
terceira franciscana. Soror Jacinta, sua irmã, sendo con- para torn^r^s.e_tno.delo..universalLdps cativos dê~todo o mundo
tr-ária, não quis. privar-se de tal tesouro, sepultando-o católico colonial, pois, como a maior parte dos escravos, viven-
mesmo com o hábito de carmelita na Capela do Menino ciara os terrores dè^fntumb^lrõT^ofrêrá^vióIênciydos açoites
Jesus."24 . . e ábus.o,.aexual^jn.asj_ arrependida, se convertera em mulher
virtuosa, ^praticante de um sem-número de sacrifícios e exercí-
Se j á no século XIX o viaj ante inglês R. Walsh contou, na cios espirituaisTT^xatàmente do que a padralhada carecia para
Igrej a de Santo António dos franciscanos do Rio de Janeiro, nada

240 241.
S

oferecer como modelo aos milhares e milhares de descendentes fogo em seu convento — milagrosamente-salv-o-por_sua interces-
de(Cam\ daí a "raça" camita, que, após tantos séculos de são —, tornando-se, a partir daí(patrona dos bombeiros/)
evangelização, insistia em praticar as gentilidades de seus ante- As imagens de ambos os santos eram alvo de grande
passados africanos. veneração no convento dos (carmelitas de Lisboa, sendo estes
Seguindo sua vocação universalista, ajgreja. Católica des- frades certamente os introdutores de sua devoção na América
de sêus_primórdios elevou à glória do_s altares alguns poucos PortuguesaTCuriosa é atlêíãlHãaa orientação dada pelo citado
representantes da raça negra, começando na Idade Média a autor carmelitano de como se devia pintar ou esculpir a figura
veneEarjJBfdngTgis magõj]5ppresepjLo^SâoBaltazar, geralmen- de Santo Elesbão — onde alguns traços de seu fenótipo africano
te caracterizado com traços negróides, representando o conti- são mantidos, enquanto outros "embranquecidos."
a.ent_e_afriganp, muito embora não"Tiaj.a_jaalquerjm.encão nas
Sagradas Escrituras quantc^ao nome ou à cor dos três seguidores "Santo Elesbão deve ser pintado ou esculpido da seguin- _
da estrela de Belém. " ' ~~ te forma: preto na cor do rosto e das mãos, que são as partes
Ç TTõmurTdoiuso-brasileiro, quatro foram os negros a receber do corpo que se lhe divisam nuas; cabelo revolto, à seme- O
\r veneração entre os bem-aventurados: Santo Elesbão, lhança daquele com que se ornam as cabeças dos homens
Santa Efígênia, São Benedito e Santo António de Categeró. É de sua cor; as feições parecidas às dos europeus, nariz
t sobre estes personagens que nos ocuparemos a seguir.
afilado, forma gentil,
. „—_ „___.
idade de varão,
*-£~- ~ —'—- ~-~— "'• ~—~
1
cercilho de religioso,
~-•*•~* -•• — • - — —. -É,, .,_._.__,.,.,i i,,. ....

Sintomaticamente, o principal livro em nossa língua dedi- coroa de sacerdote, hábito de carmelita, estará com a mão
cado aos dois primeiros destes santos foi assinado pelo carioca direita cravando uma Iança/n^p3ito_d.e_um_^ei_branco
(Dunaan), estando este submetido de meicHcorpo ao pé
FreiJoséPereiradeSantana(1696-1759),carmelitaobservante,
doutor em teologia, qualificador do Santo Ofício, provincial e esquerdo do santo que o pisa, terá diadema aberto sobre
cronista geral de sua província de Portugal.. Seu livro traz cabelo anelado, rosto trigueiro, melancólico e feio, atado
,,26
bombástico título: Dous Atlantes da Etiópia: Santo Elesbão, com cadeia de ouro no pescoço e mãos.'
Imperador 47a da Abissínia; Advogado dos Perigos do Mar, e
SantaEfigênia, Princesa daN.úbia, Advogada dos Incêndios dos De todos os santos de cor, São Benedito foi sempre o mais
Edifícios, Ambos nn.rm.elifas (Lisboa, 1735). • u querido no Brasil de antanho, sempre representado com seu
hábito marrom de irmão leigo franciscano, tendo nas mãos o
Segundo este autor, Elesbão foi o 47S neto do Rei Salomão
e da Rainha de Sabã, reinando no século VI e destacando-se Menino Jesus protegido por alva toalha de linho/E na^obraMor
pelos seguintes títulos: "acérrimo vingador do sangue dos már- Pêrêgrmapor Preta: Vidã^do Beato Benedito deFiladelfo (Lisboa,
tires, inocente homicida do ímpio Rei Dunaan, príncipe cristia- 1744), de autoria de nosso já conhecido Frei Apolinário da
Conceição, o mesmo biógrafo do santinho enfermeiro do Rio de
níssimo, vitorioso no mar e triunfante na terra, flagelo dos
judeus, açoite dos hereges, varão fiel, vencedor dos inimigos de Janeiro, Frei Fabiano de Cristo, que fomos pinçar alguns dados
sobre a vida do primeiro santo negro_oficialmente canonizado
Cristo, zelador da Igreja Católica". Currículo de fazer inveja até
porJRoma— antes dele os outros pretos foram santificados pela
aSadamHussein.,.- - -;- - -- — - . •:
tradiçáojpopular, sem. merecergrn processos regulares. Benedito
Santa Efigênia, por seu turno, viveu nos tempos imediata-
viveu na SicíHã","lio século XVI, filho de escravos etíopes. Muito
mente após a ascensão de Cristo, sendo batizada pelo evange-
piedoso, entrou para o convento franciscano comcrifmão leigo,
lista São Mateus quando missionava no Reino da -Núbia. Ao
posto provir de raça infecta ipso facto excluída do presbiterato.
entrar para o Carmelo, umreiímpio, inimigo de sua nação, ateou
Entre ae.us_prodígios- .consta ter^êcèb~iaõ^õ" auxíIicTclos anjos

242 243
quando.trabalhava na cozinha do convento, ter multiplicado os testável de santidade peculiar apenas aos santos mais gradua-
peixes para alimentar seus confrades, fazer nascer cinco laran- dos da corte celeste. Não coadunando tanta santidade com o
jas no jardim dó claustro, ressuscitar dois meninos, etc., etc. status de cativo, logo seus devotos outorgaram-lhe a alforria,
Morto em 1587, já em 1612 possuíam os franciscanos do Largo passando boa parte de sua vida mortificando-se numa caverna
da Carioca uma sua imagem, que, segundo documento firmado distante do povoado. Depois de morto, os prodígios atribuídos à
pelo bispo, nesta ocasião, teria realizado portentoso milagre, sua intercessão redobraram, sendo beatificado já em 1589.
salvando um crioulinho de dois anos, mortalmente engasgado A divulgação do culto a est_eg_.qnatr_o_princip.ais santos
com aespinha de umpeixe. Seu culto logo se espalhou pelo Brasil negros no Brasil escray^te_fo_liniciatixa.dos_carjne.litas e fran-
afora, possuindo imagens e altares também em Vila Bica, Recife, ciscanos, correspondendo à preocupação crescente da igreja no
Salvador e Espírito Santo. Sua beatificação oficial se deu em pastoreio' espiríínisrdas genTés~crè~còF — o maior contingente
1743, sendo então sua imagem colocada solenemente na Igreja dem^g7afiS0TÍa~ATÊa"éricã"PõfEuguisa. Embora já no século XVII
do Rosário dos Pretos do Rio de Janeiro, o mesmo templo que a o Padre António Vieira denunciasse em diversos sermões a via
partir de 1735 funciona como sede do bispado fluminense. Foi crucis que era ser escravo no Brasil, é sobretudo no Setecentos
aos pés da imagem de-São Benedito que a escrava Rosa lascou que o clero demonstrará maior cuidado com os descendentes do
a cabeça, na igreja do Inficcionado, quando de sua segunda legendário Prestes João. Esta atenção manifesta-se não só entre
sessão de exorcismos. Era muito comum, ouvir-se, pelas ruas e osinacianosAntonileBenci, que responsabilizavam os senhores
estradas, esmoleres cantarem este refrão: "São Benedito, meu pela vida espiritual de sua escravaria, mas constituiu igualmen-
lindo amor, dai-me sorte, de vossa cor..."2 Embora Frei Apoli- te preocupação assídua de Frei Agostinho de Santa Maria, que
nário da Conceição garanta que o culto ao santo pretinho tinha no seu célebre Santuário Mariano (1722), ao arrolar todas as
--V como escopo provocar nos brancos humildade e nos pretos imagens de Nossa Senhora existentes nos bispados da Bahia e
c" emulação, nem sempre tal ocorria, pois no ano de 1762, na do Rio de Janeiro, inúmeras vezes refere-se à devoção que os
freguesia de Cairu, no sul da Bahia, o lavrador Alexandre "pretinhos" manifestavam a diferentes títulos marianos: "Como
Fonseca, homem branco, foi delatado ao Santo Ofício por insulto os pretinhos sempre andam carregados com a cruz de seu
à fé católica: durante as celebrações da festa de São Benedito, trabalho, abrançando-a com paciência, agradarão muito à Se-
irritado com os louvores prestados a um santo de cor e feições nhora da Salvação e a seu Filho Santíssimo." E portanto neste')
idênticas ás de seus escravos, deu um tiro de bacamarte na contexto de valorização, p_or_p_arte_d.a_jg]cejaj de modelos dei
bandeira do santinho, dizendo — "o que faz este pretinho à vista santidade mais acessíveis e próxLmos_das_gentea_de cor, que!
de Deus e de todo o mundo?!", realizando tal insulto, segundo surge como por ihspíraçaci d"a_Divina Providência, no Rio de
quem o denunciou, "com desprezo, opróbrio e irreverência".28 Janeiro, este mimo enviado p^o^j;éus, RQg£LMSÉíaJEgipcíaca
O último santo negro venerado no Brasil, à época de nossa ,da3£era_Cruz- Certamente o provincial dos franciscanos espera-/
beata africana, também vestia o mesmo hábito de São Francisco varepetir com abeata recém-chegada das Minas Gerais o mesmo
e hoje tornou-se muito mais popular do que antigamente: Santo ; elogio atribuído a seu irmão de cor, Benedito de Filadelfo:
6 António de Noto ou de Categeró. Nascido em 1490 no vale de i
«O Noto, na Sicília, morreu na mesma localidade em. 1550. Benefi- i "Flores brancas nascem nas quatro partes do mundo,
ciado por Deus com poderes sobrenaturais, o simples beijar de porém de cor propriamente negra, nem por milagre em todo
suas mãos curava a quantos padeciam de variegadas enfermi- o universo se achará uma só. No Jardim da Igreja a Divina
dades, ostentando maravilhoso brilho e resplendor, sinal incon- Graça — que na fecundidade não conhece limites —, ador-
p + '?**](.
'" i-i 244 7ms
nando-o com tuna flor ião singular e' peregrina em todo desconhecida por nossos historiadores, que, segundo suas pró-
rigor negra, formoseia com. ela o terrealparaíso da seráfica prias revelações, costumava receber inúmeros ósculos e ample-
religião. .."31
xos do próprio Deus Pai.32 Outro sacerdote, Frei José do Espírito
Santo, também preso pelo mesmo Tribunal, dedicou toda sua
'Rosa. Egipcíaca, Flor do Rio de Janeiro, ora pró nobisl
vida à fabricação de santas, até que aos 70 anos de idade, apesar
Deslocando agora a análise para a perspectiva individual,
da invejável p atente de qualificador do Santo Ofício, foi proces-
constatamos que, para o orientador espiritual debeata oubeato,
sado pelo mesmo delito e confessou que há 32 anos dirigia as
ter filhos reputados como santos representava a certeza de duas
almas de muitas mulheres seculares e religiosas, apelidando a
coroas: tornar-se f arnoso assustas da santidade de seus dirigidos cada uma com nomes mitológicos, como Filotea, Benjamim,
' e garantir um bom lugar nacorte celeste graças ãTintercessão Aurora, Capela, Fénix, reputando-as por virtuosas e ilustradas,
de seus bena-aventurados_disd!puios. Todas as gr,ançles_s antas escrevendo suas vidas e confissões diárias, suas visões e dons
catóHcastiyeramatrás de si um devotado—p-adre- orientador,
celestiais. Visões, diga-se enpassant, que causaram riso e re-
vários deles ãcompanhando-as na glória dos altares. Dentre
provação por parte dos inquisidores, como a representação que
muitos outros, lembramos de Sáo Vicente de Paula, São Fran-
teve uma de suas beatas, vendo o Menino Jesus "tremendo de
cisco de Sales e São João da Cruz, que foram respectivamente
frio pela indiferença dos cristãos", ou como a de Filotea, sua filha
os confessores de Santa Luiza de Marillac, Santa Francisca de
espiritual por vinte e oito anos seguidos, possuidora de virtudes
Chantal e SantaTeresadAvua. Várias foramigualmentenossas em graus heróicos e que constantemente era transportada, em
beatas luso-brasileiras cujos diretores d'alma muito se empe- êxtases místicos, para o seio do Pai Eterno e, igual às demais
nharam na publicidade de suas vidas e virtudes: Dom Sebastião dirigidas, era frequentemente visitada pelo Menino Jesus, sem-
Monteiro da Vide, o autor das monumentais Constituições Pri- pre ávido em mamar nos seus peitos... Neste curioso processo
meiras do Arcebispado daBahia (1707), publicou era Roma anos de Frei José do Espírito Santo podemos folhear vários "livros"
depois a História da Vida e Morte de Madre Victória da Encar- manuscritos pelo frade, morador no Convento da Graça: o Livro
nação, Religiosa Professa do Convento de Santa Clara do Des- de Benjamim acompanha dia a dia, de 1717 a 1720, a evolução
terro da Cidade da Bahia (1720). Em 1747, no mesmo ano em espiritual de uma donzela saloia dos arredores de Lisboa, com-
que Rosa tinha sua primeira visão beatífica, editava-se em parando-a em virtude à Santa Angela, uma das fundadoras da
Lisboa Ocidental a obra Olivença Ilustrada pela- Vida e Morte
Ordem das Ursulinas. Dois outros "livros" manuscritos por este
da Grande Serva de Deus, Maria da Cruz, Filha da Terceira
frade trazem títulos mais pomposos: Retiro da Esposa de Deus,
Ordem Seráfica, de autoria de Frei Jerônimo de Belém. Para
onde ensina os degraus da humildade, e Escada de Nove De-
alguns sacerdotes, ter orientandas com sintomas de santidade
graus, "por onde o Divino Amor levanta as almas ao estado da
e escrever-lhes suas vidas veneráveis era verdadeira obsessão:
perfeição". O castigo dado a estes devotos mistificadores era
FreiMazeu de São Francisco, porteiro do Convento dos Frades
geralmente a suspensão de suas ordens sacras, proibição de
Menores de Lisboa, tinha 62 anos quando foi preso pela Santa
confessar e orientar penitentes, às vezes reclusão num dos
Inquisição, acusado de ter exagerado nos supostos milagres da
conventos mais afastados da sua ordem religiosa.
donzela Maria de Jesus, moradora no Nordeste do Brasil na 'Frei Agostinho de São Jose7"b, franciscano orientador de
segunda metade do século XVII. Em seu processo de mais de Rosa, õ~fTrWmTTM4£elho" comojsra^chamado, seguirá a mesma
700 páginas, podemos apreciar várias versões, corrigidas e tradição etentação de milhares de outros confessores na história
ampliadas, da biografia desta serva de Deus completamente do catolicismo, estimulando sua dirigida não só a entrar na

246 247
delicada via do misticismo, como a deixar por escrito suas visões
e revelações celestiais. Foi logo após a mensagem recebida de
"Nossa Senhora Enfermeira", em fins de 1751, que Rosa Egip-
cíaca inaugura novafase emsuavida espiritual. Eis como narrou
ela própria este crucial episódio, quando ouvida no Juízo Ecle-
siástico do Rio de Janeiro: "Estando nesta cidade em. casa de
Maria de Pina, moradora defronte da Igreja de S anta Rita, ouviu Ú act Ofâl nd.
uma voz que lhe dizia que aprendesse a ler e escrever, a qual
voz tinha já ouvido por duas vezes nas Minas, porque só sabia
v
ler letra redonda." Perante os inquisidores, em Lisboa, deu
versão ligeiramente modificada:

"Em uma ocasião, ao acabar de comungar, sentiu no


interior uma voz que lhe disse que havia de aprender a ler
s.
t*sr
e escrever, que o Espírito Santo lhe daria uma pena florida
que havia de fazer um livro que se chamasse Sagrada
Teologia do Amor de Deus Luz Brilhante das Almas Pere-
grinas. E dando parte ao dito confessor do que ouvira, este
lhe disse que era necessário fazer o que se lhe mandava,, e
que queria ver a pena que se lhe prometia. E tomando
mestre para o referido efeito, a ensinou por ano e meio."

Já nas Minas o Espírito Santo por duas vezes mandara à


africana que aprendesse os segredos da leitura, pois queria Assinaturas originais de Rosa Maria Egipcíaca
"fazer um ninho no seu peito". Rosa diz que já nesta época sabia da Vera Cruz: a primeira, em sua confissão no Audi-
ler "escrita redonda", isto é, letra de imprensa, embora não tório Eclesiástico no Rio de Janeiro, em 1762; a se-
soubesse ainda escrever e entender letra "de mão". gunda, datada de 1764, encontra-se em seu processo
Lastimavelmente, das centenas de páginas manuscritas perante os inquisidores no Tribunal do Santo Ofício
por Rosa, sobreviveram apenas uma carta, datada de 15 de de Lisboa. A involução de sua caligrafia reflete, cer-
novembro de 1752, dirigida^a seu_ex-senhor Pedro Rodrigues tamente, a angústia e desagregação da personalidade
Arvelos e duas páginas de uma visão, ocorrida em abril de 1756, da prisioneira.
cujo conteúdo analisaremos oportunamente. A carta de 1752 é
redigida hápouco mais de um ano em que a negra mina começara
a aprender a escrever. Ao longo das 124 folhas de seu processo,
e das 23 cartas que ditou no Rio de Janeiro, encontramos 7 vezes
sua assinatura. Só nesta carta de 1752 escreveu seu nome
completo: ROZAMARIAEGYCÍACADAVERA CRUZ, Ao ser presa
nesta cidade, em 1762, no processo abreviou seunome para Roza

248 249
Maria Egcíaca, e as cinco vezes que assinou o treslado de suas "Meu Snr. P. RoizArvelos
confissões no Santo Ofício de^Lisboa firmou tão-somente Roza Estas faço pa saber da saúde de VMcê aql. estimarei seja
Ma. perfeita em comp§ de minha Snr8 Ma Thereza de Jesus e
Conforme podemos deduzir a partir de sua escritura, Rosa de minhas Snrâs mossas todas e de toda a mais obrigação
nunca chegou a dominar satisfatoriamente os segredos do alfa- de Casa, desejando que lhe asista aquella feliz saúde e em
beto: possuía caligrafia irregular e infantil, tendo de fazer pautas compâ do Snr. Menino Ds. da Prociunculla. A minha q me
a lápis, no papel, para não escrever torto. Até assinando seu asiste, como hé do agrado de Ds, he boa e offereço ao Ds.
nome, perdia o prumo, escrevendo Rosa no alto, e Maria mais por ter visso de "VMcê e de minha Snra. Esta faço só pordar
abaixo. Foi a lis^.etaJVtaria--5!eresa-do-SaGr-aiaen.tQ>_a_j^gente a VMcê o gosto dever as minhas letras pa VMcê se rir hu
doJEtg^pJhirQento-do-P-ar-to,-q.uem-ensirLQqi-a-jdde_nte a escrever, bucadinho e mais toda a casa. VMcê me mandou dizer q lá
e, de jktD.r^á_inuita^js.eDaelhança entre- -a. caHgr_afía^também não faltavão novidades, mas q não fiava do papel não, pois
primitiva, da portuguesa e a de suajaunua^carecendoàgualmen- eu rezeio saber que pa comêdar a Ds os negócios tãm
te. ajnestr.a pautar_a_lápis as folhas, emjjue escrevia a fim de importantes não se desconfia do papel, ao sim podeme
manteria.linha reta..Malgrado o ano e meio de aprendizado, diz VMcê mandar dizer se ha q desconfia de mim q novidades
o Padre Xota-Diabos que, "apesar de ter mestre, Rosa nunca são; pois me ofereço pa pedir aos Servos de Ds q peção q Ds
pôde conseguir aprender e mal sabia escrever, dizendo que porisso uns no sacrificio da Missa, outros naoração mental,
também Nossa Senhora aprendera a escrever sem mestre". pâ a Ds ponha os olhos depiedade nesses negócios, a meu
!* Afirmação baseada certamente nalguma fonte apócrifa, quem Snr. Pé. Fran00' Giz* Lopes, se ovir q bote abenção a esta
i* sabe, no livro da Soror Venerável Maria de Jesus, franciscana,
Maria Santíssima, Mística Cidade de Deus, editado em 1668,
sua escrava q não lhe escreve porq já vejo q as minhas
letras não tem efficacia no amor de Deus pâ com elle, por
onde se descreve, com os mais imaginativos e fictícios detalhes, isso antão já deixo as cousas correr por conta de Ds, se ovir
toda a vida de Nossa Senhora, obra sem nenhum respaldo deilhe minhas lembrças, e não posso emcarecer as saud
bíblico, pois os Evangelhos muito pouco informam sobre a bio- q delle tenho mais Ds se lember de nois todos e VMcê me
grafia da mãe de Jesus. A irmã leiga Ana de São Bartolomeu, dará tambe mtas sadades a minha Srâ e as Sras. mossas e
secretária de Santa Teresa dÁvila, mereceu melhores atenções minha companheira e ao Snr. Ant2 Tavares; diga a todos q
celestiais, pois, sendo analfabeta, tão logo foi escolhida pela em commendem o negocio a Ds e não se esqueção de mim
santa carmelita para ocupar o cargo de escriba, "desde o mo- q eu nãome esqueço deles: com isto não serve demais.
mento de sua nomeação soube subitamente escrever".34 Ds g e' a VMcê ms. annos.
O certo é que, apesar'da feia caligrafia, escrevendo certa- Pvio de Janro' Novidades que encomende o Reino de França
mentejbem devagar ecom estilo rústico, a africana já em fins a Ds p8 q a heresia não dure nelle mt2 tempo, porq segundo
de 1752, portanto, há menos de um ano da alfabetização, conse- as novas, o Rei está do seu Pallácio e os hereges estãm
gue redigir uma carta de seu próprio punho. Transcrevemo-la governando e asim será grande perda de nos christãos veren
m com a mesma ortografia e pontuação, inclusive com as abrevia- ultr ajarremse as imagens de Maria S antisima ainda o mesmo
* ções tão comuns nos séculos passados: Santisimo Sacram °' no Sacrário e asim peção a Ds por isto.
[R2 de Janra, em 15 de Nov0™' de 1752 anos.
Desta sua escrava q mta lhe ama e quer.
Roza Maria Egyciaca da Vera Cruz."

250 251
Talvez Rosa tenha primeiro ditado a carta para sua mestra Notas
e escriba Maria Teresa, e, a partir deste primeiro escrito, copiou
o texto com sua própria mão. Como já dissemos, Maria Teresa
também escrevia mal, com muitos erros de concordância, e 1. Monfort, São Luiz Maria G. Tratado da Verdadeira Devoção à
mesmo de caligrafia, por exemplo, colocando letras maiúsculas Santíssima Virgem (1718). Petrópolis: Vozes, 1961, p. 239.
no meio das palavras, os mesmos erros também cometidos pela 2. Pizarro e Araújo, Monsenhor José de Souza. Memórias Históricas
ex-escrava dos Arvelos. A forma irónica com que Rosa se refere do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro: Imprensa Régia, 1820, p. 194.
ao seu escrito, depreciando-o, confirma a afirmação do Padre 3. Arrese, M.B. Op. cit., 1974, p. 226.
4. ANTT, Inquisição de Lisboa, Processo n2 14.316.
., Francisco, de que "mal sabia escrever". MalgT^do-ajcusíicidade
5. Rower, Frei Basílio. A Ordem Franciscana no Brasil. Petrópolis:
de sua caligrafia e estilo, não .deixajie ser fantástico que uma Editora Vozes, 1947, p. 26; O Convento de Santo António do Rio de
africana,_como 33 anos, ex-escrava, aprenda a escrever. Salvo Janeiro, s. ed. Rio de Janeiro, 1937.
erro, esta carta, de 1752, é o manuscrito mais antigo de autoria 6. Gobry, Ivan. São Francisco de Assis e o Espírito Franciscano. Rio
dejumjL^ricananolB'r^rs'Íl~de~qu:e~se tem conhrecimento. de Janeiro: Agir, 1959. .
Rosa, ,a partir desta .dafca^-fcornar^se-ágrande escritora. 7. Leal, Juan. Op. cit., 1946, p. 861.
Recebeu o sinal verde de Frei Agostinho, seu diretor espiritual 8. Lorenzatto, José. Op. cit., 1987, p. 23.
nos primeiros cinco anos de Rio de Janeiro, o qual "dizia que 9. Rower, Basílio. Op. cit., 1947, p. 165.
Rosa tinha cheiros de santidade e que escrevesse todos os 10. Altenfelder Silva, Manoel. Brasileiros Heivis da Fé. São Paulo:
sucessos que sentisse a respeito dos favores do céu". Mesmo sem Escolas Profissionais Salesianas, 1928; Pires, Cónego Heliodoro,
nunca ter recebido aprometida "pena florida" daTerceiraPessoa Temas de História Eclesiástica do Brasil. São Paulo, s. ed., 1946.
11. Mott, Luiz. A Inquisição em Sergipe. Op, cit., 1988, p. 66.
da Santíssima Trindade, o velho franciscano alimentou a ima-
12. Rower, B. Op. cit., 1937.
ginação mística de sua filha espiritual, e ela tão seriamente 13. Idem, ibidem, p. 108.
dedicou-se a esta tarefa, que alguns anos mais tarde dirá dela 14. Pizarro e Araújo. Op. cit., 1820, tomo V.
o Padre Xota-Diabos: "Rosa, vive escrevendo e nem tem tempo 15. Fazenda, J. V. Op. cit., 1921, v. 143, p. 89.
de rezar — tudo permltldo_por seu pai espiritual" (Carta de 13 16. Conceição, FreiApolinário..Eco Sonoro da Clamorosa Voz que Deu
de janeiro de 1757 ao Sr. •Arvelos). Dedlcaremosum futuro a Cidade do Rio de Janeiro no Dia 18 de Outubro de 1.747, na
caníiaiLo_ao^_e^jrlto^jte.olQgic.os-da visionária. Saudosa Despedida do Irmão Frei Fabiana de Cristo. Lisboa: Ofi-
Observe o leitor que já nesta primeira carta, há pouco mais cina Inácio Róis, 1748, p. 29.
de um ano e meio sob a orientação espiritual do provincial francis- 17. Rower, B. Op. cit., 1937, p. 64.
cano, nossa beata já se refere à oração mental, prática mística de 18. Vainfas, Ronaldo (org.). História e Sexualidade no Brasil. Rio de
que também nos ocuparemos mais adiante. Observe ainda a Janeiro: Graal, 1988, pp. 89-106.
preocupação tão curiosa da africana pela integridade do Rei Luiz 19. Pizarro e Araújo. Op. cit., 1820, v, IV, p. 18.
20. Luiz Edmundo. Op. cit., s. d., pp. 76-78.
XV e da fé católica na França, certamente tendo ouvido dos 21. Coaracy, Vivaldo, Op. cit., 1965, p. 323,
franciscanos do Convento de Santo António a informação de que 22. Idem, ibidem, p. 332.
nos últimos anos os protestantes franceses aumentavam seu poder, 23. Chérancé, Léopold, Santa Margarida de Cartona. Salvador: Tipo-
cometendo até mesmo desacatos aos templos católicos. grafia de São Francisco, 1928, p. 174.
24. São José, Frei Nicolau. Vida da Serva de Deus Madre Jacinta de
São José. Rio de Janeiro: Est. deArtes Gráficas C.Mendes Jr., 1935,
p, 86.

252 253
25.Apud Carrato, J. F. Op. cit., 1968, p. 49, ' - 11
26. Santana, Frei José de Santana. Op. cit., 1735, p. 332.
27. Frei Odulfo, OFM. São Benedito, o Preto, e seu Culto no Brasil.
Revista Eclesiástica Brasileira, 1941,1, IV, 824-831.
Fundação do Recolhimento do Parto
28. Mott, Luiz. A Inquisição em Ilhéus, Revista FESPI, ano VI, n. 10,
jul. 1987/ dez. 1988, pp. 73-83; Silva, D. Francisco de Paula. Vida
de São Benedito. Bahia: Tipografia de S. Francisco, 1929.
29. Guastella, Salvatore. Santo António de Categeró. São Paulo: Edi- Aprender os segredos da escrita abriu novos horizontes
ções Paulinas, 1986.
para a negra Rosa, levando-se em conta que provinha de uma
30. Santa Maria, Frei Agostinho de. Santuário Mariano e Historiadas
sociedade ágrafa, sendo igru.aJm.ente analfabeta a quase-totali-
Imagens Milag7'osas de Nossa Senhora. Lisboa: Oficina de António
Pedrozo Galram, 1722, pp. 61-63. dade de seus contemporâneos no Perío_do Colonial. A partir do
31. Conceição, FreiApoKnário..KorPere,grinaj3O7' Preta. Vidado Beato momento em que se alfabetizou, encontrou enorme prazer, uma
Benedito deFiladelfo,LeigoFranciscano daSicília. Lisboa: Oficina verdadeira compulsão em botar no papel suas visões7de~vaneios
António de Sousa e Silva, 1744. e.prõí|cia.s. E foi exatamente numa distas ocasiões, emmeados
32. ANTT, Inquisição de Lisboa, Processo n2 753 (9-12-1701). de 1752, quando narrava suas impressões místicas, que ocor-
33. ANTT, Inquisição de Lisboa, Processo na 8.215 (26-8-1720). reu-lhe importante sucesso:
34. Nigg, Walter. Op. cit., 1985, p. 69.
"Emuma ocasião em que ela escrevia sobre a Ave-maria,
nas palavras 'Santa Maria', se lhe suspendeu o braço da
pena, e, levando os olhos a um quadro da Senhora da
Piedade, saiu do mesmo uma voz que dizia: 'Mandai pedir
uma esmola nas Minas ao Padre João Ferreira para com-
prar uma casa e morardes junto com as pecadoras que
dizem ofender a Deus porque não têm uma casa para
morarem.' E dando parte do referido ao seu confessor, este
lhe disse que escrevesse ao dito padre, porque se ele desse
a esmola, era certo que a voz era da Senhora e que, se não
desse, era engano."

Também aqui dispomos de versão diversa nalguns detalhes:

"Estando a escrever aAve-maria, ao chegarnaspalavras


'rogai por, nós pecadores', sentiu um impulso grande no
braço da mão que tinha a pena, e lhe suspenderam com
violência e com. a mesma violência lhe viraram, o rosto para
um quadro de Nossa Senhora da Piedade que estava na
mesma casa, e desta Senhora lhe saíram vozes que diziam
escrevesse ao Padre João Ferreira de Carvalho, morador

254 255
nas Minas do Rio das Mortes, para que lhe mandasse •uma da Piedade, teve seu rosto incontrolavelmente arrebatado para
esmola para comprar umas casas em que ela ré morasse a pintura, sentindo um grande impulso que, com violência,
com as pecadoras que nos confessionários diziam tinham suspendeu e manteve imóvel no ar sua mão e braço — arreba-
ofendido a. Deus por não terem casas para morar, com o tamento que durou o espaço de 6 Credos (aproximadamente 2
que ficou ela suspensa e entrou arezar o Credo, e, acabado, minutos). Como este fenómeno — sua paralisação extática —
lhe veio danaesma Senhora outra voz, que repetisse o Credo permanecesse após rezai- o Símbolo da Fé, afastando portanto
e assim lhe mandou tanto que acabava, de sorte que rezou qualquer suspeita de que fosse obra do Tinhoso, certificou-se de
esta oração seis vezes, e sempre com o braço suspenso, será que o fenómeno era celestial "sem ter disto dúvida". Frei Agos-
o poder levantar, e lhe tornou a mesma Senhora a dizer tinho foi mais prudente: se o padre do Rio das Mortes doasse a
que escrevesse ao padre e lhe dissesse o que ela tinha prometida esmola, então se tratava mesmo "da voz da Senhora;
mandado, e que desse também parte disto a seu confessor, se não, era engano".
com cujas palavras ficou ela ré certificada de que era a Até agora, mais de uma dezena de padres já tiveram seus
mesma Senhora a que falava, e sem ter disto dúvida. Aí nomes registrados nesta história: Padre Francisco Gonçalves
lhe pediu que deixasse ficar o seu braço no seu ser natural, Lopes, exorcista e senhor de Rosa; Padre Luiz Jaime de Maga-
e assim logo sucedeu, e foi dar parte ao dito seu confessor, lhães, vigário do Inficcionado; Padre Matias António Salgado,
o qual lhe disse que escrevesse ao Padre João Ferreira da vigário da Matriz de São João dei Rei na ocasião em que a
mesma sorte que a Senhora lhe mandava. E como ela, ré espiritada aparteou o sermão de Frei Luiz de Perúgia; Padre
depoente, não sabia ainda bem escrever, rogou a José Filipe de Souza, morador namesma freguesia e testemunha das
Gomes, que era seu mestre que a ensinava a ler, que inconveniências da demonopata; os Padres Amaro G-omes de
escrevesse a carta, que com efeito escreveu, e mandou para Oliveira e Manuel Pinto Freire, que a exorcizaram em Mariana;
as Minas ao mesmo padre.'' (-> , Frei Agostinho de São José, seu novo orientador no Rio de
- Janeiro, etc., etc. Outra dezena de sacerdotes aparecerá ainda
Teve, portanto, Rosadois mestres): ajácitadaMaria Teresa ao longo destas páginas, personagens basilares na biografia da
do Sacramento, futura regeSEè~do~Rêcolhiniento do Parto, e este visionária. Como já dissemos, Rosa "adorava" os clérigos, vene-
José Gomes, cuja documentação não fornece outros detalhes rando-os como verdadeiros representantes de Deus na terra,
sobre sua pessoa. Ensinou-a por ano e meio, confiando depois à porteiros das moradas celestes e medianeiros indispensáveis na
citada regente a tarefa alfabetizadora. Alfabetização piedosa, obtenção do perdão dos pecados e do pão dos anjos, a Sagrada
diga-se de passagem, que utilizava-se de orações, como a Ave- Eucaristia.
maria, como tema para exercícios de caligrafia. Rosa Egipcíaca teve o dom de impressionar vivamente
Na história bíblica e na hagiografia católica, muitas vezes alguns sacerdotes, tornando-se objeto de piedosa veneração por
há registro de manifestações físicas nos mortais como sintoma parte dêsíês rronisírõs do Altar. Além do Xota-Díãbos e do
da interferência, divina: São Paulo foi lançado do cavalo e ficou provincial dos frades menores do Elo de Janeiro, mais dois
cego por três dias após ouvir a voz celestial (Atos, 9:4-9); Santa sacerdotes incluíram-se no séquito dos devotos da negra mina:
Maria Egipcíaca, quando ainda prostituta,, "ao chegar à porta o capuchinho Frei João Batista da Capo Fiume, de quem trata-
do templo da Santa Cruz em Jerusalém, de nenhum modo podia remos mais adiante, e este recém-citado Padre João Ferreira de
entrar, porque parecia que a detinham e lhe faziam resistência Carvalho, aquemNossaSenhoramandouque desse uma esmola
para que não entrasse". Rosa, ao ouvir a voz saindo do quadro

256 257
para comprar uma casa onde fossem recolhidas as madalenas Senhor Sacramentado no seu peito e era comparada à Santíssi-
arrependidas. Quem era este sacerdote? ma Trindade".
Quando o bispo Dom Frei Manuel da Cruz tomou posse da Malgrado tanta devoção —verdadeira idolatria —•, o Padre
diocese de Mariana, em 1748, o Padre João Ferreira de Carvalho Ferreira custou a atender o pedido de ajuda para a construção
er aura dos 435 presbíteros residentes nas Minas Gerais, referido do recolhimento:
no rol clerical como "em uso das ordens", isto é, atuando no
ministério sacerdotal. Vivia em São João dei Rei, cura da Igreja "escrevendo por três vezes ao dito padre, respondeu a ela
de São João Batista, o mesmo templo que Rosa, no início de sua ré que era um clérigo pobre e que, se ela cuidava que tinha
conversão, e sua companheira Leandra costumavam varrer e riquezas, se enganava. Tornou-lhe a escrever dizendo que
onde, numa visão, o Divino Espírito Santo lhe ordenara que não sabia se tinha ou não cabedais, e que só fazia o que lhe
aprendesse os segredos da escrita. No Arquivo da Cúria de mandava Nossa Senhora da Piedade, e que, se ela fosse
Mariana encontramos o processo De Genere et Moribus de -um servida, ]h.e moveria o coração para que ele desse aquela
seminarista homónimo, ordenado quando opadre amigo de Rosa e.sxnola, a qual a não queria ela na sua mão, .e que a
jáhaviafalecido. Este padre fora confessor de Rosa, "fazendo-lhe remetesse a Frei Agostinho de São José, seu confessor. E
várias vezes os exorcismes, sendo seu devoto, porquanto, tendo passado algum tempo, na terceira vez que pedia a dita
contradição de algumas pessoas, que diziam não era ela vexada esmola, o padre lhe respondeu que visto Nossa Senhora o
do Demónio, sempre o Padre João Ferreira a defendeu que o era, escolher para a dita esmola, sendo sacerdote indigno, lhe
e por isto era reputado por alguns como homem mentecapto e mandaria 4 vinténs, e com efeito, dali a 3 anos, remeteu ao
ignorante". (Segundo o dicionarista Morais, "mentecapto signi- seu confessor 4mil cruzados de esmolas, com o que o mesmo
fica pessoa com falta de entendimento, louco, idiota, tolo".) frade, vendo aquele efeito, se capacitou de que a voz tinha
Como Rosa, também este clérigo era dado a visões beatífi- sido da Senhora".
cas, porém, em menor grau. Certa feita revelara ao patriarca da
família Arvelos ter visto na hóstia consagrada uma circunferên- A fundação do recolhimento tinha, portanto, o aval divino
cia vermelha, e noutra ocasião uma sombra dentro dela — e um sacerdote das Minas como patrocinador.
provavelmente a mesma visão já referida por Rosa, só que mais Entre a promessa de ajuda financeira por parte do Padre
realística, pois, em vez de auréola encarnada, ela declarou tê-la Ferreira Carvalho e afundação do recolhimento, portanto, entre
visto "toda cheia de sangue". Padre Ferreira era grande devoto meados de 1752 e agosto de 1754, data da bênção da pedra
da negra courana. Um tal de Domingos Francisco Carvalho, que inaugural do mesmo, pouca coisa informam os documentos a
conheceu a ambos quando residentes no Rio das Mortes, conta respeito de nossa biografada. Dividia ela seu tempo entre o
ter ouvido este padre dizer que Rosa "parecia ser uma santa", aprendizado da leitura e escrita e em frequentar seu orientador
convicção adquirida provavelmente quando daquele episódio do espiritual, além dos muitos exercícios pios, missas solenes,
exorcismo com a prova do fogo, pois "este padre punha a vela vias-sacras, procissões, tríduos e novenas, que consumiam, vá-
debaixo da língua de Rosa, por muito tempo, não a queimando rias horas diárias das beatas barrocas.
nem a molestando, persuadindo-se assim de sua santidade". Foi
qualificado pelo Sr. Arvelos como sendo "o maior sectário da "A todas as horas do dia o som dos sinos e mesmo, às
santidade da negra", proclamando que a mesma "tinha Nosso vezes, a detonação de foguetes anunciam a celebração de
alguma solenidade religiosa. Procissões enchem as ruas do
centro do Rio de Janeiro, sobretudo após o pôr-do-sol. Em

258 259
todas as esquinas, em nichos envidraçados, vêem-se ima- ou ditou. Muitos a desejam em sua casa. Ela cá vive cora
gens da Virgem Maria, a quem os transeuntes nunca mais sossego, vai à missa e se confessa com muito sossego
deixam de testemunhar veneração." a cada vez mais. Deus lhe está fazendo favores conhecidos
a muitos e ela tudo oferece a Deus pelos benfeitores e
E através de cinco cartas de Rosa e de duas do. Padre inimigos. Quanto mais padece, mais se alegra."
Francisco, todas dirigidas a seus compadres Arvelos de São João
dei Rei, que podemos pinçar algumas informações e aconteci- A fé deste clérigo na santidade e predestinação da africana
mentos ocorridos entre 1752 e 1754. Já transcrevemos a primei- aumenta dia a dia, e certamente por esta época já estava ciente
ra carta do Padre Xota-Diabos, datada de 15 de dezembro de da correspondência que ela mantinha com seu amigo de São João
1751, onde relatava os primeiros contactos de Rosa quando dei Rei, o Padre Ferreira, sabendo também da promessa de
recém-chegados no Rio de Janeiro. Em sua segunda missiva, de Nossa Senhora da próxima fundação do recolhimento, daí dizer
29 de junho do ano seguinte, dia de São Pedro, o sacerdote, então que "tudo há de ser certo" o quanto Rosinha profetizava. Não
com 58 anos, começa informando estar melhor de uma grande seríamos temerários em suspeitar que ele próprio, o Padre
enfermidade e livre de perigo, porém "ainda com minhas queixas Xota-Diabos, como eminência parda que foi na construção da
causadas das almorreimas". Virtuoso, interpreta as muitas santidade de sua dirigida, tivesse direta ou indiretamente su-
doenças que o afligem como "provas de Deus para sua paciência". gerido a fundação do tal recolhimento, e indicado seu amigo e
Declara agora ver-se bem descansado "porque tenho quem trate colega de sacerdócio, o Padre Ferreira, como futuro mecenas
da criatura com todo o bom trato de comer e de vestir, um bom desta instituição nascente. Para ele, a boa. acolhida com que
amigo que muito lhe quer em sua casa". Tudo nos leva a crer ambos eram premiados nesta cidade podia ser interpretada
que este bom amigo era Frei Agostinho, e a casa acolhedora, o como aval divino, tanto que oferece-se ao Sr, Arvelos, dizendo:
Convento de Santo António. Diz, outrossim, que "me governo "Se Vossa Mercê precisar algo nesta cidade, mande! Inclusive
com a esmola das missas que não me faltam, Deus seja louvado!" com o Sr. Bispo, que é muito meu camarada para tudo o que
A espórtula de uma missa oscilava na época de 200 a 320 réis, quero. Vejo que me quer bem: e todos os bens e tudo isto atribuo
o suficiente para se comprar uma arroba de farinha de mandioca à Divina Providência e à Criatura", a sua Rosinha.
ou aproximadamente 4 kg de carne de sertão, quer dizer, com a Além de privar da camaradagem do Dom António do Des-
esmola de duas ou três missas, podiam-se adquirir alimentos terro, ambos minhotos e da mesma idade, o Padre Francisco
para uma pessoapassarummês inteiro. Celebrando diariamen- criou nestes primeiros meses à beira-mar importantes redes
te, o sacerdote podia levantar de 6$000 a 9$600 réis por mês, sociais: conta ser o confessor de um licenciado da Justiça e amigo
sem falar em outros rendimentos cobrados pelos demais ofícios de Manuel.da Silva Braga, "homem muito rico e muito meu
litúrgicos, como batizados, casamentos, enterros, etc. O Xota- amigo", residente à rua dos Pescadores, em cujo endereço diz
Diabos não podia reclamar de passar dificuldades de subsistên- ser melhor enviar as próximas correspondências advindas das
cia, pois, mesmo sem receber a côngrua destinada aos capelães Minas.
e vigários, tinha com o que viver nestes meses que passou na Deve ter sido em outubro de 1752 que o Padre Francisco
cidade de São Sebastião. resolveu voltar para a Capitania das Gerais: viera para o Rio de
Ainda nesta mesma carta, tece o sacerdote alguns comen- Janeiro com a intenção de livrar sua dirigida da intolerância e
tários relativos à sua ex-escrava: perseguição das autoridades eclesiásticas da diocese de Minas.
Entregue Rosa nas boas e acolhedoras mãos do provincial dos
"Tenho fé que tudo há de ser certo o quanto Rosinha diz

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frades menores, urgia que retornasse à sua casa e freguesia, louvado seja Deus que me tirou desta terra que tanta
pois já vivia na terra do ouro há vinte e um anos, julgando-se confusão causava aos moradores. Assim mesmo houvera
certamente velho demais para começar vida nova em terra de ser. Também o Cristo foi perseguido. Queira Deus que
estranha. Aproveitando a viagem de tão querido portador, Rosa seja para sua salvação tanta crueldade."
dita uma carta a seus amigos do Rio das Mortes, sendo o escriba
provavelmente o seu primeiro mestre, José Gomes, que revela, Rosa conservava frescas na lembrança as humilhações e
além de boaredação, estilo razoavelmente erudito, até afrance- violências que sofrera em Minas Gerais: as feias cicatrizes nas
sando o sobrenome de seu destinatário para "Anvers", em vez costas e seu lado direito lesado pelas chicotadas não deixavam-
de Arvelos, como era o correto. Nesta missiva, após as saudações na esquecer tanta crueldade, daí bendizer o dom de Deus tiran-
e invocações à proteção celeste, Rosa diz que '"rainha saxj.de é do-a daquela terra que não soube distinguir e reconhecer os
boa, inda que com a costumada moléstia que não me larga". grandes desígnios que a Providência lhe tinha destinado.
Refere-se, claramente, às vexações do Malvado, "moléstia" bem O final da carta é todo dedicado a rememorar seus entes
conhecida dos Arvelos desde quando a viram pela primeira vez queridos que ficaram além da Mantiqueira. Abandonada agora
estrebuchar na Capela de Santa Rita, no Rio das Mortes. "Tivera pelo seuprotetor e amigo inseparávelnestes últimos quatro anos
vontade de ir matar as saudades, acompanhando o padre para de tribulação, o Padre Xota-Diábos, o sentimentalismo da afri-
as Minas — diz a negra — mas não foi esta a vontade de Deus." cana dilacera-lhe o coração:
De fato, teria sido uma temeridade voltar à cova dos leões,
sobretudo considerando os novos desígnios celestiais que a "Tenho muita saudade de minha mãe e companheira
predestinavam a ser a mais fragrante flor do Rio de Janeiro. [Leandra], que não sei quando me hei de encontrar com
Revela então, feliz da vida, sua alegria espiritual nesta cidade: ela. Só sei que Deus me afastou dela por meus pecados e
incapacidade; que ela não cesse de pedir a Deus por mim.
"Estou muito bem aceita no Convento de Santo António, Que o Padre José Fernandes não se esqueça do ajuste que
do Provincial Velho, cujo mandato terminou este ano, fizemos. Lembranças ao companheiro António Tavares e
homem virtuoso e justo. Frequento os sacramentos três principalmente a Leandra Maria do Sacramento. Adeus!
vezes na semana, porque estes moradores de Santa Rita Adeus, adeus! Meu padre lá vai. Tratem bem dele!"
murmuravam quando eufreqúentava o sacramento de oito
em oito dias; agora, para avivar a fé dos escolhidos, fre- A terceira carta, datada de 15 de novembro de 1752, dia de
quento na terça, na sexta e no domingo, e quando são dois Santo Alberto Magno, é aúnicamissivamanuscritapelaprópria
dias festivos, frequento junto, sem haver quem murmure vidente, carta que já transcrevemos alhures, e onde Rosa, há
desta ação, porque o confessor é douto e prudente. Mais pouco mais de um mês sozinha, sem o seu Padre Francisco,
tempo houvera eu cá estar nestas partes! E Frei Agostinho lastima sua ausência: "Não posso encarecer as saudades que
me quer muito e mais todos os religiosos desta sagrada dele tenho!" Por duas vezes, neste escrito, ela pede a seus devotos
companhia. Agora vejo que é certo: quando estava naquela de São João dei Rei que "encomendem o negócio a Deus" —
boa cidade [Mariana?] e que dizia Santo António houvera certamente referindo-se à fundação do recolhimento, o "negócio"
de ser meu exorcismador, e que na Igreja tinha homens mais importante na vida desta, conversa, desde que tivera a visão
doutos, como Santo Agostinho —- e logo achei certo que o da Ave-maria.
•' meu padre espiritual tem o nome de Agostinho! Bendito e A quarta carta de Egipcíaca traz a data de 31 de janeiro de
1753: é amais longa de suas epístolas, duas folhas inteiras, com

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letra miúda, escrita por sua mestra Maria Teresa. Tudo nos leva separados pela serra daMantiqueira, amuitos dias de caminha-
a crer que por esta época ambas moravam no recolhimento de da no lombo de animal. Não é para menos que seu pensamento
Dona Maria de Pinho, e deve ter sido sempre aí, na sala deste viva nas Minas, onde, malgrado a ingratidão de seus inimigos,
beatério, que a negra ditava suas cartas e visões à portuguesa. a africana criara fortes laços de amizade e parentesco ritual,
Como nas demais missivas, uma dezena das linhas iniciais é tendo afilhados, compadres e muitos devotos e filhos espirituais.
dedicada a orações, votos de saúde física e espiritual, augúrios Em toda carta, repete as saudades e lembranças a. seus amigos
e pedidos de proteção celeste aos destinatários: "Que o Senhor mineiros: Leandra, António Tavares, os padres seus devotos,
Menino Jesus da Porciúncula [devoção divulgada por São Fran- António Alvares Maciel, Dona Escolástica, etc. Esta carta é
cisco de Assis], que Nossa Senhora das Brotas, a Sagrada particularmente informativa sobre o estado d'alma e situação
Família aumentem a, fé, esperança e caridade de todos!" A existencial da convertida nestes dois primeiros anos de Rio de
introdução'desta nova denominação do Deus Infante revela a Janeiro — seu progresso espiritual e ideal de vida são maravi-
influência de Frei Agostinho, que, como todo franciscano, espa- lhosos:
lhava tal devoção tão cara ao fundador e membros da ordem
seráfica. Nesta carta Rosa refere-se a j á ter mandado "uma carta "Cá fico pensando que Nosso Senhor e Nossa Senhora,
feita por sua letra" e que, malgrado a lentidão dos portadores, emboraricos, viveram pobres, e eu alegro-me em tudo: com
certamente dqvia ter chegado ao Rio das Mortes, posto que os trabalhos me alegro, com a pobreza me alegro, e assim,
despachada há 50 dias. Diz ter enviado outra carta ao Padre no meu ver, sou tão rica porque nada me falta! Quando
Ferreira Carvalho, assim como j á ter escrito a Frei Agostinho e estoumais necessitada, estou mais rica; quando estou mais
ao Padre Francisco, documentos que lastimavelmente se perde- atormentada, estou mais favorecida! Então já posso me
ram. Provavelmente tratava nestas cartas da fundação do reco- gabar, com ajuda de suaDivinaMisericórdia, pois escolheu
lhimento, pois Rosa enfatiza que "o Padre Francisco lesse com para mina um religioso no Convento de São Francisco que
atenção e observe o que nela diz, pelo amor de Deus! porque sei não tenho língua com que explicar o amor com que me ama,
que é proveito para sua alma". Reclama da falta de notícias e porque reparte comigo tanto da riqueza espiritual e tem-
respostas a seus escritos: poral, que nada me falta! Se houver dez dias de festas
contínuas, em comparação, todos dez dias hei de frequentar
"Parece-me que é certo aquele ditado: quemnão aparece, o Divino Sacramento, e vejam Vossas Mercês então que
esquece... Eu, por vossas mercês, posso dizer isto, vossas riqueza é esta minha, sendo eu uma criatura frágil, em tudo
mercês por mina, não! Não há hora em minhas fracas pobre, em tudo vil, que me confiando ver estas grandezas!"
orações e limitadas obras que de Vossas Mercês me não
lembre, e se eu andaratanto como o meu pensamento anda, E concluiparafraseando a Primeira Epístola aos Coríntios:
sempre estaria lá junto com Vossas Mercês!" "Deus escolhe as pessoas mais pequenas para confusão dos
maiores..." Compare-se com o texto de São Paulo: "Deus escolheu
Pobre negrinha! Primeiro apartada de sua tribo, natal os fracos do mundo para confundir os fortes" (I Cor. 1:27).
ainda menina; adolescente, é arrancada da casa onde a criavam Em menos de dois anos de orientação espiritual, a vexada
e vendida para as Minas Gerais; após quase vinte anos no africana revela estar instruída não só em Teologia e nas Sagra-
Inficcionado, tem de fugir às pressas para o Rio de Janeiro, com das Escrituras, como também sobre ávida dos santos:
medo das justiças eclesiásticas; agora, após quatro anos de
convívio diuturno com o bondoso Padre Xota-Diabos, ei-los "Não se admirem de Deus ter-me escolhido, sendo cria-

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turatãobruta. Deus escolheu grandes pecadores, como São mil cruzados, conforme mandara a Mãe de Deus. Num outro
Pedro que o negou três vezes, São Paulo que perseguiu sua documento consta ter sido 550 mil réis o valor enviado pelo
cristandade, Santo Agostinho que fez muitos livros contra benfeitor mineiro. Tratava-se de quantia assaz significativa,
a Santíssima Trindade, Santa Maria Madalena que foi pois, por esta mesma época, o rendimento anual da Igreja de
grande pecadora, Santa Maria Egipcíaca que foi mulher Nossa Senhora da Conceição do Mato Dentro atingia por volta
lasciva! Não que eu seja igual a eles, mas confio nos divinos de 6 mil cruzados.
favores e que o Demónio está debaixo dos pés de todos os
infernos! Pois a glória acidental de Deus é uma glória que "Assim, emposse dotal dinheiro e outras muitas esmolas
ele estima sobre a glória essencial de um pecador arrepen- que concorreram, determinou Frei Agostinho de São José
dido..." ela, ré, que sefizesseum.recolhimentopara as ditas pessoas
que tinham vida lasciva e diziam que ofendiam a Deus
Quão inefáveis são, e incompreensíveis, os desígnios do porque não tinham casa para morar, e com efeito, no ano
Senhor, que coloca na boca de uma negra, há poucas décadas de 1754, juntou uma grande soma e se principiou o dito
retirada das selvas africanas, palavras e conceitos tão edifican- recolhimento junto à Igreja de Nossa Senhora do Parto no
tes e de tamanha profundidade teológica! Cumprem-se as escri- Rio de Janeiro."
turas: "Bendito sois, Pai, Senhor dos Céus e .da Terra, que
escondestes estas coisas aos sábios e inteligentes, e as revelastes Este é o momento de introduzir o leitor num. outro capítulo
aos pequeninos" (Mateus, 11:25). A sofisticação mística da ex- de nossa história religiosa, imprescindível para a compreensão
prostituta inclui conceitos extraídos da Suma Teológica de Santo destes fatos: a fundação dos recolhimentos no Brasil Colonial.
Tomás de Aquino, como esta distinção entre "glória acidental e Semelhantes, na estrutura interna, aos conventos e mos-
glória essencial", só compreensível aos- iniciados na teologia teiros de freiras, que se recolhiam do mundo para dedicar-se à
escolástica. Certamente Rosa ouvira tais distinções, seja de seu vida religiosa, nos recolhimentos as internas não faziam profis-
confessor franciscano, seja nalgum sermão. são ou votos religiosos, como as freiras regulares, embora vives-
Tranquila na sua nova vida, regalada frequentemente com sem também sob regime de reclusão, total ou parcial, depend-
o banquete eucarístico, apoiada e venerada por pessoas de endo da instituição. Enquanto nos conventos, mosteiros e aba-
destaque, acreditada e muito .amada pelo seu novo orientador dias predominavam as virgens e donzelas, excepcionalmente
espiritualj Rosa viverá entre 1752 e 1754 o auge de sua felicida- aceitando-se viúvas honestas, desde os primórdios da cristan-
de. Vivendo como recolhida em. casa de Dona Maria de Pinho, dade os recolhimentos foram procurados por mulheres convert-
sua vida era assistir à missa e cerimónias litúrgicas, quer na idas, muitas buscando, na vida comunitária e reclusa, a peni-
vizinhalgreja de SantaRita, de Santo António ou da Candelária, tência, o amparo e a negação do errado passado. Santa Maria
dedicando o tempo que lhe restava, em casa, a escrever ou ditar Madalena é considerada pela hagiografia como a fundadora do
cartas e visões que frequentemente lhe ocorriam. primeiro recolhimento de arrependidas: após milagrosa traves-
Voltemos-então, ao .final daquela:visão, em que Nossa Se- sia do Mediterrâneo, numa barca sem leme que da Palestina
nhora da Piedade inspirou à alfabetizanda Rosa, no ato de ancorou no sul da França, fundou com. suas companheiras de
escrever a saudação angélica, para que fundasse uma casa para viagem, nas cavernas da Sainte-Baume, o primeiro eremitério
convertidas. Corria o ano de 1754 quando o benfeitor desta obra, de mulheres da Europa. Em Portugal, ermitoas e beatas reu-
ó Padre João Ferreira Carvalho, envia os "4 vinténs", ou seja, 4 niam-se em pequenas comunidades isoladas do mundo, desde a.
Idade Média, sendo contudo, apenas no século XVI, fundadas as

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primeiras casas pias deste género: a Casa da Piedade das capitanias, diversas vezes os colonos manifestaram vivo interes-
Penitentes, o Recolhimento de Santa Marta (1569), o Recolhi- se na fundação destas casas pias, seja para enclausurar donze-
mento da Natividade ou de Santa Madalena (1587), o Recolhi- las, seja para reformar mulheres de vida errada. Segundo Frei
mento de Nossa Senhora do Amparo (1598), o de São Pedro de António de Santa Maria Jaboatão, data de 1644 o primeiro
Alcântara (1594). Nosfínais do séculoXVII, em Coimbra erige-se pedido dos residentes de Salvador para a fundação de um
o Recolhimento do Anjo. Em 1704 é a vez da criação da Casa Pia "mosteiro de religiosas" nesta cidade, autorizado somente em
de Nossa Senhora da Encarnação e Carmo, no lugar de Rilha- 1665 pelo Rei e em 1669 pelo Papa, chegando, porém, as quatro
folles em Lisboa, e, em 1746, a do Outeiro da Saúde, em. Coimbra. primeiras fundadoras do Convento do Desterro da Bahia, em
Na colónia indiana de Goa, nos finais do século XVI, são fundados 1677, provenientes do Mosteiro das Clarissas de Évora, tendo
os Recolhimentos de S anta Maria Madalena e de Nossa Senhora como abadessa a Madre Margarida da Coluna. Após dez anos
da Serra ou do Monte.2 Na América Espanhola, data de 1526 a de ereto, o Convento do Desterro completava as vagas de sua
construção do primeiro recolhimento de mulheres, na Hha de clausura: 50 religiosas de véu preto, embora fosse muito maior
São Domingos. o número das candidatas ao noviciado, ou melhor, o número das
Segundo nosso principal estudioso da vida religiosa femi- famílias que desejavam enclausurar suas filhas, seja por não
nina, Riolando Azzi, no Brasil, os primeiros ensaios de criação encontrarem no Brasil cônjuges à sua altura, seja p ar a excluí-las
de recolhimentos de tipo conventual aparecem no século XVI, do rol dos herdeiros, evitando assim dividir o património familiar.
quando o Padre Manuel da Nóbrega, da Companhia de Jesus, Ainda nos finais do século XVH conhecemos duas tentati-
demonstrou intenção de organizar "casas de recolhimento como vas frustradas de fundação conventual e a existência de outras
de freiras para abrigar meninas indígenas". É contudo em duas casas religiosas femininas que conseguem sobreviver por
Olinda onde se funda nossa primeira casa de recolhidas, já algumas décadas: em São Paulo, em 1685, seus moradores
funcionando em 1576 e referida no Livro das Denunciações de constróem o Recolhimento de S anta Teresa, destinado às filhas
Pernambuco em 1593 como Recolhimento de Maria Rosa. da elite local, passando a convento carmelitano somente em
Segunda Azzi, sob o termo recolhimento existiram quatro 1748; em 1687 é a vez da viúva Dona Cecília Barbalho, que
tipos de instituições diversas, destinando-se à educação de recolheu-se com três filhas e duas meninas nobres numa casinha
meninas; à reabilitação de madalenas arrependidas; à observa- adrede construída ao lado da Ermida da Ajuda, na cidade do Rio
ção por piedosas mulheres; sem votos, das regras das ordens de Janeiro. Chegando a licença régia para a ereção de um
terceiras e, finalmente, uma espécie de convento com votos convento no mesmo local em 1705, as obras só foram concluídas
particulares e clausura, mas sem autorização real. Como se sabe, em 1748 e enclausuradas as primeiras clarissas, vindas do
até o Império, qualquer fundação de casa religiosa conventual, Desterro da Bahia, em 1750. Também no século XVII, nesta
até mesmo os recolhimentos sem votos, carecia, para seu fun- mesma cidade, há notícia de que em 1695 a Câmara tinha
cionamento, de autorização da Mesa de Consciência e Ordens. deliberado "a ereção, contígua à Igreja de Santa Rita, de um
Havendo, desde o início da colonização e ao longo dos recolhimento para 30 órfãs e mulheres pobres, onde viveriam
primeiros séculos de nossa história, grande falta de mulheres em clausura até tomarem seu estado, tendo o beneplácito do
brancas no Brasil, não interessava à Coroa o enclausuramento bispo, por quem deviam ser dirigidas". Além da casa da já citada
religioso das filhas da terra, daí as dificuldades que sempre Dona Maria de Pinho, onde viveu Rosa Egipcíaca com outras
foram impostas para a institucionalização da vida religiosa recolhidas, sita em frente da dita igreja, não temos notícia da
feminina na Terra de Santa Cruz. Não obstante/nas principais existência de outra instituição congénere nesta freguesia, o que

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nos permite duvidar se de fato aquele recolhimento de 1695 a regra das ursulinas (também chamadas de jesuitinas), projeto
chegou a ser ereto. Ainda em. fins deste mesmo século, os que não teve o aval real.
agostinianos descalços daBahia, apoiados pelo Padre Alexandre E na cidade de Salvador, capital da América Portuguesa,
de Gusmão, solicitaram permissão para fundar outro recolhi- sede do único arcebispado do período colonial, onde foram cons-
mento na Bahia, mas o projeto não foi adiante. truídos o maior número de conventos e recolhimentos femininos:
No século XVIII, quando a sociedade brasileira apresenta- além do primeiro mosteiro das clarissas do Brasil, o Desterro
va maior equilíbrio demográfico e a Igreja atingia o apogeu de (1677), no século XVIII são eretas mais seis casas pias congéne-
sua riqueza e poderio, malgrado as restrições da Metrópole, uma res, existindo pela época mais oito conventos masculinos só no
dezena de conventos e recolhimentos são fundados de norte a perímetro urbano. Em 1725 concluem-se as obras do Recolhi-
sul do país. mento da Santa Casa da Misericórdia, onde, além de donzelas
Em 1716, em Minas Gerais, o ermitão alagoano Felix da filhas dos irmãos benfeitores, enclausuravam tambémmulheres
Costa funda, no lugar deMacaúbas, um recolhimento, recebendo casadas "por ausência ou discórdias com seus maridos". 6 Já em
para tanto provisão do bispo do Rio de Janeiro. Doze moças 1723 fundara-se o Recolhimento do Senhor Bom Jesus dos
inauguram esta casa pia, das quais sete eram irmãs e sobrinhas Perdões das beatas da Ordem Franciscana, contando com 35
do ermitão. Em 1725 somam-se em 32 as recolhidas e em 1743 "recolhidas exemplares". Ainda nas primeiras décadas deste
conclui-se a construção do novo edifício, seguindo as enclausu- século, funcionou em Salvador o Recolhimento do Santíssimo
radas a mesma regra das franciscanas concepcionistas, tal qual Nome de Jesus, embora desativado em 1755. Em. 1735 é a vez
lhes conferiu o capuchinho Frei Jerônimo do Monte Real quando da inauguração do Convento das Ursulinas de Nossa Senhora
aí esteve em 1733, no mesmo ano em que nossa Rosa chegava das Mercês, o primeiro mosteiro brasileiro desta ordem, fundado
nas Minas Gerais.10 De 1744 a 1749 foi regente neste Recolhi- por Santa Angela de Mérici em 1535: na Bahia teve em 50 o
mento das Macaúbas a Irmã Rosa do Coração de Jesus e Santo número máximo permitido de profess as. D ata de 17 3 8 o início
António, sendo que em 1757 solicitam as recolhidas, a El-Rei, das obras do segundo mosteiro das ursulinas de Salvador,
autorização para ampliação das instalações, abrigando então 63 chamado Convento do Santíssimo Coração de Jesus da Soledade,
mulheres mira muros.' O amontoado das recolhidas era tanto, localizado no Sítio do Queimado, nos subúrbios desta cidade.1
que quatro religiosas chegavam a compartilhar uma única cela, Seu fundador foi o controvertidojesuítaitaliano, oPadre Gabriel
"algumas dormindo juntas umas com as outras na mesma Malagrida (1689-1761), o maior taumaturgo da América Lusi-
cama", prática, aliás, proibida desde os tempos de Santo tana, queimado pela Inquisição, acusado de heresia, blasfémia
Agostinho, a fim de afastar dos beatérios o perigo do "mais torpe, e abuso da palavra de Deus. Chegando no Maranhão em 1721,
sujo e desonesto pecado": a homossexualidade! o Padre Malagrida percorreu o Norte e o Nordeste, sempre
Ainda nas Minas Gerais, nas chamadas Minas do Fanado, pregando as santas missões, fazendo penitências públicas e
a três léguas de Araçuaí, Isabel Maria Guimarães funda, em inúrneros milagres, como o já citado da vela que não lhe quei-
1734, a Casa de Oração do Vale das Lágrimas, abrigando as mava a mão, e aquele outro que tornou sua barba repentina-
filhas dos mineiros quando estes ausentavam-se da Capitania. mente branca, graças à interferência de uma alma do purgató-
Alguns anos após a ereçãò do primeiro bispado mineiro em rio. Grande devoto do Coração de Jesus, por onde passava
Mariana, Dom Manuel da Cruz tentou instalar em Vila Rica instituía seu culto. Ao chegar em Salvador, em 1736, logo erigiu
"um convento das Gloriosas Onze Mil Virgens", que devia seguir uma confraria do Sagrado Coração na Capela do Bom Jesus, e,
em 1739, funda o citado Convento do Santíssimo Coração de

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Jesus da Soledade, graças às esmolas de muitos fiéis e aproteção suas tentativas de fundar recolhimento para moças 110 Pará não
do Vice-Rei, Conde de Galveas, aprovado por Provisão de Dora foram adiante, esbarrando-se com ama vontade do bispo dioce-
João V em 1741, passando à categoria de convento de religiosas sano.26 r

em 1751, por breve de Bento XTV. Em 1764 possuía 81 celas, E, pois, neste contexto histórico, pipocando novas fundaçõ-
sendo servido por 35 escravas. Em 1744 é fundado, junto à es de recolhimentos e casas pias de norte a sul da Colónia, que
Capela da Lapa, o Convento de Nossa Senhora da Conceição da Rosa Egipcíaca acabava de receber de Nossa Senhora a missão
Lapa, tornado célebre pelo heroísmo de sua abadessa, Madre de pedir ao seu ex-exorci§J^,J?^d£e_J_O-ãoJJerT^ira. Carvalho, que
Joana Angélica. Segundo o Professor Vilhena, nos finais do desse uma j3Sjr±olaJtDara que_^e,jizess.e,iinn^reçplhiinento para
século XVIII aí viviam 21 religiosas "a quem eram permitidas jridalasgffi^
12 servas, regendo-se pela regra franciscana concepcionista". porque~não tinham casa^pâra mgr.ar]im"t_EsJLa_yisâo ocorreu,
A última casa pia a ser ereta em Salvador neste século foi o conforme já dissemos, em fins de 1751 ou princípios de 1752 —
Recolhimento de São Raimundo: em 1755 lançou-lhe a pedra na mesma quadra em que outras instituições femininas congé-
inaugural o Conde dos Arcos, tendo autorização para abrigar neres eram fundadas no Nordeste brasileiro.
"20 mulheres convertidas que querem largar o mundo e viver Como teria se originado na cabeça de Rosa a ideia desta
com honestidade, por cuja sustentação têm bastantes proprie- fundação? Embora já existissem em Minas Gerais os Recolhi-
dades. E sujeito à disposição dos Exmos. Governadores Capitães mentos de Macaúbas e do Vale das Lágrimas quando nossa
Generais, que muitas vezes se servem dele como cadeia política vidente lá residia, por situarem-se a, muitas dezenas de léguas
em que mandam recolher algumas mulheres dissolutas..." do Inficcionado, tudo nos leva a crer que jamais Rosa tenha
De acordo com o "Mapa Geral de Todos os Conventos de visitado tais casas de oração. Foi, portanto, no Rio de Janeiro
Religiosos e Religiosas da Cidade da Bahia", de 1775, Salvador que, pela primeira vez, teve oportunidade de entrar em contacto
abrigava 4 conventos de freiras e 3 recolhimentos, perfazendo com tais instituições. Conforme há pouco relatamos, ao chegar
um total de 186 religiosas professas, 24 educandas seculares, Rosa nesta cidade, em 1751, fazia apenas um ano que inaugu-
67 recolhidas seculares, 23 hóspedes e agregadas, 97 servas rara-se o Convento da Ajuda, situado a meio-caminho entre o
forras, 35 escravas da comunidade, 423 escravas e escravos Convento dos Tranciscanos e a Igreja da Lapa do Desterro, no
particulares (!), população que representava 6% a mais do que mesmo local onde hoje encontra-se a Cinelândia. Rosa, beata
a abrigada nos conventos e mosteiros masculinos. como era, certamente deve ter visitado a igreja do Convento da
Ainda no Nordeste existiram mais alguns recolhimentos: Ajuda, quem sabe chegando inclusive a falar com alguma reli-
o mesmo Padre Malagrida, incansável propagandista do Sagra- giosa, no parlatório ou na portaria, como gostavam de fazer as
do Coração, funda em Igaraçu, na Capitania de Pernambuco, o pessoas piedosas nos séculos de antanho, que procuravam as
Recolhimento do Coração de Jesus (1744), e era São Luís do enclausuradas para pedir que incluíssem seus nomes em suas
Maranhão, onde lecionou diversas disciplinas no seminário orações. Além do Convento da Ajuda, existia no Rio de Janeiro,
jesuítico, erige em 1752 o Recolhimento das Ursulinas do Cora- desde 1742, um pequenino recolhimento na Chácara da Bica,
ção de Jesus,"qu'e-em anexomantinhaum educandário onde logo nas encostas do Morro do Desterro, onde viviam duas irmãs,
na sua inauguração assistiam 13 donzelas. Apesar de o alvará Jacinta de São José e Francisca de Jesus Maria, recolhimento
real de 2 de março de 1751 ter autorizado o Padre Gabriel que tornou-se o embrião do primeiro convento carmelitano do
Malagrida a abrir livremente casas pias pelo Brasil afora, "onde Brasil. Adjunto à humilde capela dedicada ao Menino Deus, este
se criasse a mocidade com bons costumes, educação e doutrina", eremitério revelara-se pequeno para abrigar as novas candida-

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tas, tanto que, sob aproteção inicial de Dom, Antomo do Desterro materiais de se afastarem do mundo imundo. Talvez, vendo as
e sobretudo do piedoso Governador Gomes Freire de Andrade, freirinhas do Desterro, tenha-se entusiasmado ainda mais com
aos 24 de junho de 1750, procedeu-se ao lançamento da primeira a ideia de também transformar-se numa esposa do Bem-Amado;
pedra do futuro Convento de Santa Teresa, sito no mesmo Morro porém, devido à sua baixa condição de negra e ex-meretriz —
do Desterro, um pouco mais acima de onde se iniciavam os Arcos predicados inaceitáveis num convento de virgens donzelas, pu-
da Lapa, ambas as construções devidas ao empenho do gover- ras no sangue e nos costumes —, a solução seria inventar uma
nador Conde de Bobadela. As obras do convento avançavam, instituição específica para mulheres de sua mesma igualha.
devagar, tanto que, após um ano, no dia de São João, de 1751, "E com efeito, no ano de 1754, juntou uma grande soma e
fez-se a transferência das religiosas da Chácara da Bica para se principiou o dito recolhimento junto àIgrjpjylsJ£assa_SenhQr_a
um convento provisório, na antiga residência dos capuchinhos .doJParto."
do Desterro. Esta mudança foi alvo de solene liturgia: Esta é a versão de Rosa, idealizadora e primeira escolhida
por Maria Santíssima para a referida fundação. A historiografia
"Aí esperavam-nas o Exnio. .Sr. Bispo e o General Gomes oficial., contudo, além de omitir o nome danegra africana, dá versão
Freire de Andrade, o principal benfeitor desta fundação. Na diferente desta fundação. A verdade, contudo, está com Rosa.
mesma manhã o prelado esteve demoradamente conversan- Na obra Templos Históricos do Rio de Janeiro lemos que,
do com as religiosas, mandando-lhes que se houvessem como em 1742, Dom, António do Desterro resolveu construir o dito
recolhidas e clausuradas na nova residência, e aí tivessem o recolhimento ao lado da Capela do Parto. Como o referido bispo
noviciado enquanto se ia acabando o convento. só chegou a esta diocese em 1745, cai por terra tal afirmação.
Baseando-se na volumosa obra de Monsenhor Pizarro, tanto
Rosa já estava há três meses no Rio, morando exatamente Vieira Fazenda, autor das Antiqualhas e Memórias do Rio de
no Desterro, quando Madre Jacinta de São José e suas compa- Janeiro, quanto Vivaldo Coaracy e outros autores que se ocupa-
nheiras são transferidas para este convento provisório. Nada ram da história desta cidade, informam que fora através da
mais provável que nossa beata courana, que jamais vira freira doação testamentária de um tal Estevão Dias de Oliveira, morto
alguma em sua vida, fosse espiar, com o mais povo, tão insólito este sim, em 1742, no valor de 40 mil cruzados, que o citado
espetáculo: uma dezena de moçoilas, todas vestidas de hábito bispo, 10 anos mais tarde, dera início às obras. Nenhuma
marrom, a mesma indumentária de uma de suas devoções referência à doação dos 4 mil cruzados ao Padre João Ferreira
prediletas — Nossa Senhora do Monte Carmelo. Carvalho, nem à influência de Rosa e Frei Agostinho na crista-
Morando aqui e acolá, sempre às custas do favor e da lização desta ideia. Em documento existente no Instituto Histó-
caridade alheia, quando Rosarecolheu-se na casa de DonaMaria rico e Geográfico Brasileiro, sito hoje nas imediações da Igreja
de Pinho, defronte da Igreja de Santa Rita, teve oportunidade da Lapa do Desterro, encontramos uma carta de Dom António,
de experimentar um pouco da disciplina, horários e modus de 21 de julho de 1756, onde justifica a fundação desta casapara
vivendi de um recolhimento particular. Talvez já nessa época, mulheres:
PJS£0írj^49 igrejas, conventos e logradouros públicos desta
cidade, a Egipcíaca das Minas Gerais tivesse encontrado outras "Entre os grandes males que não tenho acudido com
mulheres arrependidas do mesmo passado desvairado que, como oportuno remédio, por me não ser possível, tem o primeiro
ela, enfrentavam iguais dificuldades e discriminações; daí idea- lugar a.continuaçã"o do pecado destas depravadas mulheres
lizar a fundação de uma casa pia para quantas alegavam per- de que abunda sobremaneira esta terra. As visitais ordiná-
manecer no pecado por não terem lugar decente, nem condições

274 275
lias não as corrigem, porque alegam, a pobreza para conti- tantes ordens religiosas: beneditinos, franciscanos e jesuítas
nuarem nesta vida, por não terem condições de subsistir." que, no morro do Castelo, eram vizinhos da igreja mater de São
Sebastião. Ao sopé destas elevações, na então chamada várzea,
Narra então o prelado o caso recente de -0111 marido reinol situam-se igrej as de menor grandeza, como a Candelária, Santa
que, ultrajado pelo adultério de sua esposa, matou-a e a seu Rita, Santa Luzia, São Benedito e Nossa Senhora do Rosário e
amante, crime que poderia ter sido evitado, caso houvesse uma a Ermida do Parto. O terreno plano situado entre o Castelo e os
casa onde pudessem recolher-se também as casadas que dessem dois morros (São Bento e Santo António) tinha o nome de Várzea
mau passo "e que quisessem livrar-se dos maridos". Pede então de Nossa Senhora, denominação advinda da pequena capela
ao Rei licença para fundar um recolhimento adjunto à Ermida mariana, berço do recolhimento cuja história estamos resgatando.
do Parto, contando já com 12 recolhidas "com honestidade e Ensina Vieira Fazenda que data de 1589 a construção
virtude". inicial desta capela, tendo sido, primeiro, moradia dos Monges
A^ nosso ver, a omissão donome de Rosa Egjpcíaca_como de São Bento e, depois, dos carmelitas, antes que se transferis-
fundadora deste recoISmentosélieve por duplo preconceito: por sem definitivamente para seus conventos onde até hoje se
tratar-se de uma negra e, soBretuHõ",'pc5FT:er sido píèsa pela conservam. Com a mudança destes frades da Várzea de Nossa
^^ro .^Inquisição, considerando que o estigma ae um penitenciado pelo Senhora, a capelinha, também chamada de Nossa Senhora da
' Expectação, ficou em relativo abandono, até que um certo mu-
"'"° não interessando às regentes, sucessoras da, desafortunada lato, João Fernandes, natural da Ilha da Madeira, resolveu
L , %fuTfd^õr^7'rn^nter~7Íva-m:em:ói-ra~táo vergonhosa. Conjectura- restaurá-la a fim de abrigar uma imagem da mesma Senhora
3 mós que foi exatamente após a visão na qual Nossa Senhora da que trouxera de Portuga].. Comprou alguns chãos de terra com-
Piedade ordenou a Rosa que escrevesse a seu antigo exorcista preendidos entre as antigas ruas dos Ourives, de São Francisco,
l J nas Minas, pedindo esmola para esta fundação, que Frei Agos- da Cadeia, de São José e do Largo da Carioca, e no local onde
tinho de São José deve ter-se dirigido ao bispo, oferecendo-lhe hoje está a rua da Assembleia e a de São José, em frente ao
ko - os 4 mil cruzados vindos do Rio das Mortes, sugerindo a dita caminho de Nossa Senhora da Ajuda, levantou a nova capela.
^ fundação. Como amitrajá dispunha de avultada soma destinada Corria então o ano do Senhor de 1653. Eis como o autor do
ao mesmo fim, 40 mil cruzados deixados em testamento por um Santuário Mariano, Frei Agostinho de Santa Maria, baseado
devoto, empenhando-se agora o próprio provincial dos francis- em manuscritos de Frei Miguel de São Francisco, descreve esta
canos na concretização do projeto, pressionado certamente pela capela, tal qual a viu no primeiro quartel do século XVIII:
existência incómoda de muitas madalenas arrependidas a en-
tulharem a cidade, inclusive as igrejas-e capelas conventuais, "Damesma casa e santuário de Nossa Senhora da Ajuda,
decide-se Dom António do Desterro a realizar tal fundação. correumarua, que vaipara a cidade, todapovoada de casas
Exatamente como ocorreu com a maioria das demais casas nobres e sempre frequentada de pretos e brancos. Os pretos
religiosas no Brasil Colonial, aproveitou-se uma capela secun- vão e vêm a buscar e a trazer água da Carioca, que é uma
dária, já existente, para em seu anexo construir as instalações ribeira que desce da serra, de excelente água. E no fim
da nova casa pia. O local escolhido foi a Capela de Nossa Senhora desta rua, entrando no corpo da cidade, se vê a Casa e
do Parto. . Santuário de Nossa Senhora do. Parto, aonde se venera
No Rio Antigo, os três principais morros do perímetro uma milagrosa imagem da Soberana Bainha dos Anjos,
urbano eram coroados pelas igrejas e conventos das mais impor- com muita grande devoção, mais principalmente das mu-

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lheres, que a buscam continuamente e lhe fazem novenas
e romarias para que. lhes conceda em seus partos muito
felizes sucessos, e a Senhora lhos concede, como continua-
mente o estão experimentando. E os homens, que são bem
casados, têm, também muita devoção com a Senhora, para
que às suas mulher es dê bom sucesso e p ar a que os conserve
em uma grande paz. Hoje se vê este Santuário da Senhora
do Parto reedificado de pedra e cal, e com muito maior culto,
por se haver passado a ele a Irmandade dos Clérigos de
São Pedro, que é irmandade nobilíssima e tem provedor e
tumba particular, em que levam à sepultura os clérigos,
que não são irmãos da Misericórdia. Esta Casa fundou
pelos anos de 1653 João Fernandes, mulato e natural da
Ilha da Madeira. Erarico emuito devoto de Nossa Senhora,
e assim lhe dedicou esta casa, pela grande devoção que
tinha à Senhora. E esta santíssima imagem de roca e de
vestidos está !com as mãos levantadas; a sua estatura
parece que não chega a quatro palmos. Com esta santíssi-
ma imagem têm maior e particular devoção todos aqueles
moradores circunvizinhos, porque lhe cantam em todos os
sábados a sua ladainha, com muita devoção, e a Salve-Rai-
nha, aonde concorrem muitos. Tem ermitão que pede es-
molas para"os gastos de seu culto e fábrica.
i
~_~ , Nossa Senhora do-Pa^t&r-ou-doJiomJParto, também cha-
I mada da Expectação ou Nossa Senhora do Ó, é cultuada na
J Península Ibérica desde a Idade Média, sendo atribuída a Santo
J Ildefonso (século VII) a instituição de sua devoção, cuiaimagem Nossa Senhora do Parto: imagem que se venera
| é sempre representada-cosa-o-^ventr-e—avolumada,, típico das atualmente na capela construída no mesmo local onde
l parturientes. Teve grande devoção no Brasil, sobretudo no existiu o EecoIMmento fundado por Rosa Egipcíaca. Pro-
século XVII, quando na Sé da Bahia, em 1633, "por diligência vavelmente trata-se da imagem original do século XVH.
das casadas", foi entronizada sua bela imagem de madeira
estofada, numaltarprivilegiado.de-nossaigrejamaíer. Sua festa'
era comemorada'aos 18 de dezembro, sendo muito comum,
quando umajmtlher.gr ávida tinha maiores dificuldades na hora
de "descansar", émprestar-se o manto da mesma Senhora, que,
colocado sobrèTã barriga da aflita devota, logo terminavam seus

278 279
nn

apertos, alcançando então a desejada "boa hora". EmSãoPaulo utilidade para o leitor conhecer alguns dados biográficos deste
e Maceió também tinha seus altares. eminente antístite.
Construída portanto em 1653, na Várzea de Nossa Senho- Ilustre desde o nascimento, pois descendia de fidalgos da
ra, a Ermida do Parto, em 1699 abriga a Irmandade de Nossa cidade de Viana do Lima, da família de Reimão Malheiro, nasceu
Senhora das Mercês, dos homens pardos e pretos, sendo que em 1694, coincidentemente, a poucas léguas e no mesmo ano em
alguns anos antes, em 1693, os irmãos de Nossa Senhora do que vinha ao mundo nosso conhecido Padre Xota-Diabos. Teve
Rosário dos Pretos em vão já haviam tentado transferir-se da Dom António 17 irmãos. Em 1711 fez votos na Ordem de São
Sé do Castelo para o mesmo templo, sendo impedidos pelos Bento, recebendo o doutorado em Coimbra, logo ,em seguida
mestiços. A devoção, por conseguinte, das gentes de cor do Rio sendo eleito abade no Mosteiro dá Estrela. Aos 44 anos é
de Janeiro por esta capela tem sido uma constante na sua longa nomeado bispo de Angola, tendo nessa ocasião aportado no
historia, sendo descendentes de africanos seu fundador, a pri- Brasil, quando em 1740 dirigia-se para São Paulo de Luanda,
meira irmandade que aí se instalou e a Egipcíaca courana que, onde permaneceu por seis anos à testa daquela diocese. Com a
com uma dezena de pretas e mulatas, ocuparão em breve essas vacância do bispado do Rio de Janeiro, é nomeado, em 1745, o
instalações. sexto titular desta cidade, tomando posse no primeiro dia do ano
Como já nos informara Frei Agostinho de Santa Maria, de 1747. Gomes Freire de Andrade, o beato governador das
também funcionou neste templo a Irmandade dos Clérigos de capitanias do Rio de Janeiro, S ao Paulo e Minas Gerais, o mesmo
São Pedro, entre 1705-1732, sendo nesta época, à custa dos devoto das relíquias do santinho Frei Fabiano de Cristo, benfei-
endinheirados presbíteros seculares desta confr ária, reedificada tor de Madre Jacinta de São José na fundação do Carrnelo de
a primitiva construção. Tudo feito com o aval do bispo de então, Santa Teresa e descrito por Monsenhor Pizarro como possuidoz-
Dom Frei Francisco de São Jerônimo e a dotação de 200$000 de excelsas virtudes — como desinteresse, castidade e justiça,
réis que um tal Padre José Carvalho Dias legara para a dita amor dos povos e zelo pela religião —, foi quem capitaneou a
reforma. Outras irmandades igualmente utilizaram esta igreja recepção do novo bispo, mandando inclusive imprimir o opúsculo
para suas cerimónias litúrgicas: a de São José dos Barbeiros, a Apolíneo Feudo da Magnífica e Pomposa Entrada do Exmo. e
de Santa Cecília dos Músicos e de Santo Elói dos Ourives. Foi Revmo. Dom Frei António do Desterro Malheiro, Meritíssimo
nr* J

por esta época, mais exatamente em 1719, que o cristão-novo Bispo do Rio de Janeiro, onde, através de sonetos, com forte
Felipe Mendes Leite vendeu sua morada de casas sita à rua de inspiração na mitologia grega, saúda as virtudes do novo prela-
Nossa Senhora do Parto, imóvel que foi sequestrado pelo Santo do. Também o juiz de fora e provedor dos degredos desta cidade
Ofício, quando de sua prisão. Rosa, portanto, será a segundo de São Sebastião, Dr. Luiz António Rosado da Cunha, usou sua
moradora desta fatídica rua a cair nas malhas do monstro erudiçãopararegistrar os faustos com que o pontífice foi recebido
inquisitória!. em sua novel diocese: mandou imprimir em Lisboa aRelação da
Dom António do Desterro, o bispo beneditino de maior Entrada que Fez Dom António do Desterro Malheiro, Bispo do
importância no Rio de Janeiro setecentista, governou a diocese Rio de Janeiro, em 1a de Janeiro de 1747. Através desta obra
de 1745 a 1773, sendo portanto o responsável não só pela tomamos conhecimento das festividades com que os cariocas
fundação do recolhimento de Rosa, como também por sua prisão homenagearam o prelado vindo de Angola, valendo deter-nos
e envio para a Inquisição de Lisboa. Pelo tanto que representou sumariamente na sua descrição, pois este barroco espetáculo
na fundação deste recolhimento, assim como pelo seu significado ajuda-nos a perceber o clima de respeito e devoção dispensados
como corolário sacro deste período barroco, acreditamos ser de pela nobreza, clero e povo às suas autoridades eclesiásticas.

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Chegando ao Rio de Janeiro, a l2 de dezembro de 1746, Dom preciosa coleção encontram-se na Biblioteca Nacional do Rio de
António hospedou-se primeiro no Mosteiro de São Bento, entre Janeiro, enquanto as próprias relíquias e seus ricos relicários
seus irmãos de hábito. No dia 11 foi homenageado com a apre- podem ser, até hoje, admirados na Capela de Nossa Senhora da
sentação da óperaFelinto Exaltado, estando presentes à sessão Conceição, construída às suas expensas no interior do Mosteiro
as principais autoridades civis, militares e eclesiásticas, que de São Bento. Durante seu governo, intensificou a devoção ao
muito aplaudiram "a excelente música e o muito brilho". Para a Santíssimo Sacramento através da instituição do lausperene,
solenidade de sua posse, foram construídos 7 arcos de madeira, sobretudo durante a Quaresma, consistindo tal cerimónia na
a partir da ladeira de São Bento, tendo 80 palmos de altura e adoração ininterrupta da Eucaristia, exposta quarenta e oito
40 de largura (mais de 16 metros do chão ao topo!), arcos horas seguidas, por fiéis que se sucediam, aos grupos, percor-
revestidos com sedas, galões de prata, flores, è até louça da índia, rendo as principais igrejas centrais da cidade^
"cujo guarnecimento lustroso realçava aluzida soldadesca". Tais Dentre suas preocupações pastorais, cuidou com especial
arcos, "sete maravilhas", distribuíam-se pelo caminho, até a Sé, carinho do fortalecimento da vida religiosa feminina em seu
então funcionando no Rosário, sendo o novo pastor acompanhado território, tanto que logo após sua chegada nesta cidade foram
por grande multidão e orquestra retumbante. enclausuradas as clarissas na Ajuda, lançada a primeira pedra
Dom António do Desterro é qualificado por Monsenhor do Convento de Santa Teresa, eretos o Recolhimento de Nossa
Pizarro como possuidor de "zelo vigilantíssimo, generoso em Senhora do Parto e o Recolhimento de Itaipu, em 1764, na
premiar os beneméritos, pouco severo em castigar os delinquen- freguesia de São Sebastião.
tes, porque como pai e menos como juiz deu mais lugar à Nem todos os seus contemporâneos, contudo, têm amesma
misericórdia que à justiça". Foi exemplar no modo de vida. opinião sobre as virtudes de Dom António. Segundo o jesuíta
Dizem seus contemporâneos que nunca abandonou o hábito e a José Caeiro, o principal cronista da expulsão dos inacianos do
tonsura da sua Ordem Beneditina, sendo responsável por im- Brasil, este prelado beneditino, entre outras imperfeições,
portantes realizações na sua diocese. Durante seu governo foram
reconstruídas as igrejas da Ajuda e da Ordem Terceira dos "instituíra em Palácio um negócio muito rendoso aonde
Franciscanos; iniciadas as obras do convento do Desterro e acudiam os vigários que queriam melhorar de posto no
inaugurada a clausura de Nossa Nossa Senhora da Ajuda; governo das almas; sendo bispo de Angola, costumava
criadas as freguesias de São José e Santa Rita; construídas as comprar grande número de escravos para serem, comlucro
igrejas de Santa Luzia, da Ordem Terceira do Carmo, da Con- seu, enviados ao Brasil; apossou-se, por vil fraude, da
ceição do Cónego e de São Gonçalo Garcia, além de restaurar a fazenda de uma viúva; morava numa quinta onde não
torre da Catedral e presenteá-la com preciosas alfaias. Pastor corava de, por suas mãos, vender as hortaliças, frutas,
zeloso, visitou as freguesias do recôncavo em 1754, pregando galinhas e outras coisas do amanho dela."
edificantemente nas quaresmas de 1756 e 1757. Grande devoto
das sagradas relíquias dos santos, possuía, uma centena de E conclui seu rol de denúncias: "Calo, de propósito, outras
pedacinhos de ossos, cabelos e outros despojos dos mais impor- não menos feias."
tantes luminares da corte celeste, inclusive de todos os apóstolos, Eis como Rosa descreve, em seu depoimento ao Juízo
dos principais mártires, do Santo Lenho onde Cristo morreu, de Eclesiástico do Rio de Janeiro, a fundação de "seu"recolhimento:
sua cruel coroa de espinhos e uma lasquinha da coluna onde o
"Mandou então o Padre João Ferreira Carvalho certa
Redentor foi açoitado. Os "atestados de autenticidade" [sic] desta
quantia de dinheiro a Frei Agostinho, o qual disse a ela,

282 283
depoente, que era melhor com este dinheiro principiar um Desterro participara de uma dessas cerimónias, o início das
recolhimento, aproveitando-se da Igreja de Nossa Senhora obras do Convento de Santa Teresa:
do Parto e casas dela, e que pediria ao senhor bispo, e não
deixariam de concorrer alguns devotos mais para esta obra "aos 24 de junho de 1750, às 3 horas da tarde, procedeu o
pia, o que assim sucedeu e se principiou o recolhimento." senhor bispo à bênção solene e ao lançamento da primeira
*
pedra do dito convento. Ao ato imponentissimo acharam-se
Não deve ter sido difícil obter a autorização de Dom Antó- presentes, além do Exmo. Governador, o Senado da Câma- *
nio, pois todas as circunstâncias favoreciam a concretização ra por ele convidado, as pessoas principais da cidade,
deste sonho. Nesta ocasião provavelmente Frei Agostinho deve numeroso povo e a Madre Jacinta com suas companheiras
ter falado à Sua Eminência sobre as virtudes de sua dirigida radiantes de santo júbilo. Para dar maior brilho à soleni- l»
Rosa e, quem sabe, sugerido o nome do Padre Francisco Gonçal- dade, Gomes Freire de Andrade mandoti formar grande 9
ves Lopes, então nas Minas, para ser o capelão da nova casa. parada no morro do Desterro, a qual deu numerosas salvas
Gomo alrmandade dasMercês erazeladoradaErmidadoParto, de regozijo na hora do ato.
primeiro obteve o bispo autorização expressa da Mesa Diretora
da mesma para a dita fundação, iniciando-se então as obras. Eis alguns versinhos com que o pregador desta solenidade,
Manda então Fr ei Agostinho que o próprio ermitão do Parto Frei Manuel de Nossa Senhora do Monte Carmelo, brindou os
vá às Minas entregar uma carta, em mãos, ao Padre Xota-Dia- presentes:
bos, que, segundo uma testemunha, andava na época na serra
do Ibitiruna (Rio das Mortes), ajustando para tornar-se capelão Esta pedra que vemos sepultada
de uma nova ermida. Seu plano, portanto, era permanecer na Por vossa pia mão com sacro auspício
região. Nesta carta, o frade dizia "por ser do agrado de Deus Para Deus é eterno sacrifício
tornar-se o capelão do novo recolhimento onde já haviam algu- Para vós é estátua respeitada
mas recolhidas e Rosa por Mestra..." que viesse tomar posse do Nessa pedra imortal, sagrada e pura
cargo. O mesmo ermitão diz também ter levado recado verbal Dará o mundo a ler a vossa história...
do bispo para que "fosse reger-o dito recolhirnento". Como era o
costume, certamente ao retornar para o litoral o dito ermitão As solenidades do lançamento da primeira pedra do Reco-
deve ter trazido boas oitavas de ouro que os devotos mineiros lhimento do Parto pouco deixaram a desejar, se comparadas com
ofereceram para sua ermida. as do Carmelo. O cronista deste episódio foi o próprio Padre
Volta então o Padre Francisco para o Rio de Janeiro, a Francisco, seu primeiro capelão, que em carta datada de 5 de
tempo de assistir ao lançamento da primeira pedra da nova setembro de 1754, 20 dias após este evento, descrevia a seus . *
fundação.
compadres de Minas os inícios gloriosos do recolhimento de sua
ex-escrava. Começa por dizer que
*
Como já vimos, ao lado da igrejinha do Parto havia uma
pequena casa onde vivia o ermitão, carecendo porém, de amplia-
*
ção para transformar-se embeatério. Mais do que hoje em dia, "a oferta do Padre João Ferreira foi muito bem aceita pela
Santíssima Trindade, tanto que no dia da Assunção de
no século XVIII parece ter havido grande gosto, moda e pompa
Nossa Senhora se botou a primeira pedra do recolhimento,
nas ocasiões de lançamento da pedra fundamental das constru-
a que assistiram ao botar dela o governador e todos os
ções civis ou eclesiásticas. Há pouco tempo Dom António do
religiosos de Santo António, dos barbônios [capuchinhos],

284 285
do Carmo, de São Bento e da Companhia de Jesus, e a Joaquim e Santana, por ordem, de Frei Agostinho, após
melhor parte dos cónegos da Sé. Pelo bispo estar doente, outra visão de Rosa."
veio o chantre da Sé. Pregou Frei João Batista, dos barbô-
nioSj que fez grande sermãOj que hei de remeter a. Vossa Repito: tornaremos a este assunto mais adiante, com mais
Mercê para ver o grande mistério que nele contém. Assina vagar.
se fez tudo com a grandezabem aceitapor todos os homens Lançada a primeira pedra, iniciam-se as obras.
bons. O Sr. Bispo está com, grande ânimo, de que se faça Vinte dias depois desta solenidade, na mesma carta há
tudo com a grandeza que for necessária, pois os Sagrados pouco referida, dá o Padre Francisco outras informações sobre
Corações são muito ricos, a quem é dedicado o Recolhimento a evolução do projeto: diz que o bispo tem nela gasto muito
com. Nossa Senhora do'Parto." dinheiro "por querer fazer uma obra real, e mais do que real,
porque os donos são muito ricos". Obviamente, referia-se aos
Se faltaram nesta inauguração os soldados do governador, Sagrados Corações. Diz mais: que Dom António "comprou 7
sobejaram os clérigos, pois estavam presentes "todos os religio- moradas de casas, fora a que já tinha a Senhora, e quer fazer
sos" das principais ordens e cabido diocesano — mais de uma por hora 11 celas. Por agora são só 7 recolhidas, por não haver
centena de sacerdotes portanto. O dia não podia ter sido mais cómodos".
lindo: o da gloriosa subida de Maria Santíssima aos céus. Salve Segundo Vieira Fazenda, o principal historiador deste
Maria! / recolhimento, e em cujas anotações todos os demais estudiosos
Repare o leitor um. detalhe significativo: diz este padre que se basearam, mediante autorização da Irmandade das Mercês,
o recolhimento é dedicado aos "Sagrados Corações". Situa-se, grandes alterações foram realizadas no primitivo templo e em
portanto, às vésperas do lançamento desta pedra fundamental sua casa anexa: alargou-se a igreja pelo lado direito e deitou-se
a visão mais importante de nossa mística negra — a revelação abaixo a frente do templo para correr com o recolhimento pela
dos Sagrados Corações. No momento limitamo-nos a situar aqui frente do corpo da mesma igreja, a fim de que as recolhidas
esta visão — no segundo semestre de 1754 — pois, dada sua melhor assistissem aos atos religiosos. Além destas alterações,
enorme complexidade e importância no desdobramento da vida mudou-se a porta principal para o lado da rua do Parto, e, para
mística de Madre Rosa Maria Egipcíaca da Vera Cruz, a prin- que a irmandade das Mercês não perdesse o direito que tinha à
cipal vidente e propagandista no Brasil desta devoção tão cara sua primitiva igreja, passou-se-lhe urna provisão obrigando-se
ao catolicismo, deixaremos para entrar nas artérias e profunde- a Mitra, a todo e qualquer momento, a conservar-lhe o direito
zas do culto cordícola num. capítulo vindouro. de posse, inclusive a recolocar a porta principal do templo na
Tinha razão o Padre Xota-Diabos em declarar que o Reco- rua dos Ourives, caso a irmandade assim o exigisse; Tudo
lhimento do Parto pertencia aos Sagrados Corações. Rosa lhe registrado no Cartório do Tabelião António Teixeira de Carva-
contara que, lho.41
Enquanto executavam-se as obras, utilizou-se provisoria-
"ouvindo missa na Igreja de Santo António, vira no altar mente a casa já existente ao lado da ermida para abrigar as
os três corações, de Jesus^ Maria e José, e namesma ocasião primeiras recolhidas: 7, segundo Padre Francisco, o capelão; 12
lhe disse Nosso Senhor que era do seu agrado 'que se de acordo com aja citada carta do bispo aEl-Rei, datada de 1756,
fabricasse um recolhimento em louvor dos três corações', na qual informava ter mandado recolher tais raulheres
tanto que naprimeirapedra do recolhimento se esculpiram
os três corações e, mais tarde, mais outros dois, de São "de quem, por seguras informações, tinha a certeza de que

286 287
verdadeiramente se querem livrar da recordação das suas ' réis representavam soma bastante considerável, capaz de com-
culpas, em uma casa contígua à igreja de Nossa Senhora prar por volta de duzentos escravos ou pagar a côngrua de 60
do Parto, onde se acham 12 vivendo com grande recolhi- sacerdotes por um. ano inteiro de ministério. Se o Recolhimento
mento, honestidade e virtude, dando com o seu bom exem- da Luz custou 13 mil cruzados, podemos imaginar a grandeza e
plo, que edifica, um gran.de estímulo, porque outras muitas riqueza da casa de Nossa Senhora do Parto, que dispôs de mais
pretendem fazer-lhe companhia, mas não podem ser admi- de 44 mil cruzados para sua instalação!
tidas por ser a casa pequena e sem cómodos para mais, e Tudo nos leva a crer que a inauguração oficial deste reco-
vivem de esmolas, saindo para a confissão com o hábito de lhimento ocorreu aos 7 de outubro de 1757, festa de Nossa
terceiras". Senhora do Rosário, dia em que cinco donzelas tomaram o hábito
de noviças e toda a comunidade foi transferida para a clausura
Parece ter sido como este o início de outros recolhimentos
coloniais, pois também em São Paulo, no Recolhimento de Nossa
do novo edifício! Destarte, por 3 anos, de 7 a 12 recolhidas
viveram no "consistório" e casa anexa à dita igreja, aguardando''
m
Senhora da Conceição da Divina Providência, fundado por Soror a conclusão das obras. •
HelenaMaria do Espírito Santo e FreiAntonio Santana Galvão,
as primeiras religiosas foram instaladasnos estreitos corredores
0
da Capela de Nossa Senhora da Luz, onde "se formaram as celas,
para morada daquela pobre comunidade, ficando elas totalmen- Notas
te desacomodadas, sendo os corredores de poucos palmos de
largo e as celas igualmente".
m
Com os 40 TH i l cruzados deixados em testamento por Este- 1. La Caille. Op. cif., 1763, pp. 122 e ss.
2. Pires, Camião. História de Portugal. Barcelos: Portucalense Edito-
o
vão Dias de Oliveira, mais os 4 mil do Padre Carvalho, e ainda
contando com "piedosa esmola de algumas pessoas ricas que ra, 1937, v. V, pp. 467 e ss.; Boxer, C. R. A Mulher na Expansão
contribuíram com grossas, esmolas", tinha razão o Xota-Diabos Ultramarina Ibérica. Lisboa: Livros Horizonte, 1977, p. 87.
3. Azzi, Riolando. Beatas e Penitentes: Uma Forma de Vida Religiosa
em considerar o recolhimento de Rosa como "obra real", pois tal
no Brasil Antigo. Revista Grande Sinal (RJ), 1976.
valor, mais de 44 mil cruzados, equivalia a 12:200$000 (doze
4. Azzi, Riolando. A Vida Religiosa Feminina no Brasil Colonial. A
contos e duzentos mil réis), uma pequena fortuna! Por exemplo: Vida Religiosa no Brasil. Enfoques Históricos. São Paulo: Edições
um escravo ou escrava regular valia no Bio de Janeiro, nesta Paulinas, 1983, p. 30.
época, entre 50 e 70 mil réis; a Chácara da Bica, onde Madre 5. Jaboatão, Frei António de Santa Maria. Orbe Seráfico Novo Brasí-
Jacinta recolheu-se primeiramente com sua irmã em 1742, foi lico. Lisboa: Oficina de António Vicente da Silva, 1761.
paga pelo Conde de Bobadela com2:100$000 réis; a ermida que 6. Nascimento, Ana A. V. O Convento do Desterro daBahia. Salvador:
Dom António do Desterro mandou construir em honra de São Editora Gráfica Indústria e Comunicação Ltda., 1973.
Francisco de Sales custou 1:685$536 réis; o Recolhimento de 7. Coaracy, Vivaldo. Op. cit,, 1965, p. 223,
Nossa. Senhora da Luz, há pouco referido, em São Paulo, com 22 8. Fazenda, J. V. Op.. cit., tomo 88, v. 140, 1951, p. 445.
celas, teve seu valor total calculado em 13 mil cruzados; a 9. Soeiro, Susan. The Femiriine Orders in Colonial Brazil. In: Lavin,
Assuncion (org.). Latin American Wòmen. Historical Perspectives.
côngrua dos sacerdotes (salário anual) nos meados do século
Westport: Greenwood Press, 1978.
XVIII oscilava entre 150 e 200$000 réis, valendo uma missa, 10. Barbosa, W. A. Op. cit., 1971, p. 271.
conforme já dissemos, de 200 a 320 réis. Portanto, 12:200$000

288 289
11. Arquivo Histórico Ultramarino, Caixa 111, "Requerimento das posa Entrada do Exmo. e Revmo. Dom Frei António do Desterro
Recolhidas de Macaúbas", Minas Gerais. Malheiro, Meritíssimo Bispo do Rio de Janeiro (1-1-1747).
12. Carrato, J. F. As Minas Gerais e os Primórdios do Caraça. São 36. Cunha, Luis António Rosado. Relação da Entrada que fez Dom
Paulo: Companhia Nacional, 1963, p. 105. António do Desterro Malheiro, Bispo do Rio de Janeiro, em ls de
13. Brown, Judith C. Aios Impuros. A Vida de uma Freira Lésbica na Janeiro de 1747. Rio de Janeiro: Oficina de António Isidoro Fonseca,
Itália Renascentista. São Paulo: Brasiliense, 1987. 1747.
14. Azzi, Riolando. Op. cit.,1983, p. 42. 37. Pizarro e Araújo. Op. cit., 1820, p. 29.
15. Boschi, Caio C. Op. cit., 1986, p. 84, nota 33. 38. Caeiro, José. Jesuítas do Brasil e da índia. Século XVIII, na
16. Vilhena, Luis dos Santos. A Bahia no Século XVIII. Salvador: Perseguição do Marquês de Pombal. Bahia: Escola Tipográfica
Editora Itapuã, 1969, pp. 442-449. Salesiana, 1936, p. 219.
17. Aazi, Riolando. Op. cit., 1983, p. 32. • 39. São José, Frei Nicolau. Op. cit, 1935, p. 94.
18. Vilhena, L. S. Op. cit., 1969, p. 450. 40. Sá, Manuel Tavares Serqueira. Júbilos da América. Exaltação a
19.RecopilaçãoMemorial daFundação do Convento daSoledade, Livro Gomes Freire de Andrade, Governador e Capitão General das Ca-
Manuscrito do Arquivo do Convento, Salvador. pitanias do Rio de Janeiro, Minas Gerais e São Paulo. Lisboa:
20. Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Inquisição de Lisboa, Pro- Oficina de Manuel Alvares Solano, 1754, p. 205.
cesso n2 8.064. 41. Fazenda, J. V. Op. cit, 1921, pp. 448-449.
21. Mury, P. Op. cit., 1865, p. 94. 42. Galvão, Frei António Santana. Escritos Espirituais (1766-1803).
22. Arquivo Histórico Ultramarino. "Relação dos Mosteiros de Religio- São Paulo: Museu de Arte Sacra, 1980, p. 29.
sas da Bahia", Carta de D. Manuel de Santa Inês (30-6-1764), EGA
Does. n2 6.555, 128, 1.133, 1.609, 2.010.
23. Vilhena, L. S. Op. cit., 1969, p. 450.
24. Vilhena, L. S. Op. cit., 1969, pp. 451-452.
25. Nascimento, Ana A. V. A Postura Escravocrata no Convento de
Religiosas. Salvador: Centro de Estudos Baianos, 1990, p. 10.
26. Leite, Serafim. História da Companhia de Jesus no Brasil. Rio de
Janeiro: Imprensa Nacional, 1943, v. III, pp. 124-226.
27. São José, FreiNicolau. Op. cit., 1935, p. 94.
28. Idem, ibidem, p. 95. ;
29. Maurício, António. Templos Históricos do Rio de Janeiro. Rio de
Janeiro: Gráfica Laemmert, s.d., p. 131.
30. Instituto Histórico e Geográfico do Brasil, Lata 117, n. 18 (1756).
31. Santa Maria, Frei Agostinho. Santuário Mariano e História das
Imagens Milagrosas de Nossa Senhora. Bispado do Rio de Janeiro
e todas as Ilhas. Lisboa: Oficina de António Parozo Galram, 1723,
pp. 20-21.
32. S.anta Maria, Frei. Agostinho. Op. cit, 1722, pp. 37-38.
33. Fazenda, J. V. Op. cit, 1921, pp. 448-449.
34. Novinski, Anita. Inventário de Bens Confiscados a Cristãos Novos.
. Lisboa: Imprensa Nacional, 1977, p. 102,
35. Andrade, Gomes Freire (of.). Ápolíneo Feudo da Magnífica e Pom-

290 291
12

As Primeiras Recolhidas

Tarefa das mais difíceis é tentar reconstituir como eram,


as instalações do recolhimento de Rosa, pois a documentação é
omissa a este respeito. Tendo sido demolido b velho edifício em
1906, para alargamento da rua da Assembleia, e construindo a
Mitra em seu lugar, majestoso arranha-céu, onde hoje, nos
últimos andares, vive uma comunidade jesuítica, não restou
qualquer planta que nos informe sobre como era seu espaço
interno. Dispomos contudo de algumas gravuras que o retrata-
ram após sua primeira reforma, emT789, quando um incêndio
destruiu seu interior e telhado no dia 23 de agosto deste mesmo
ano. Pelas duas pintufãs"~ã óleo do João Francisco Muzzi,
equivocadamente atribuídas a Joaquim Leandro, assim como
pelas litografias do Ludwig & Briggs, publicadas no Ostensor
Brazileiro (1845-1846), podemos vislumbrar como era este recolhi-
mento, três décadas após sua fundação.
Um grande casarão emformaretangular, com dois andares
acima do térreo, duas fileiras de 17 janelas no primeiro piso e
oito~nb segundo. Uma grande porta de duas bandas no meio do
edifício, tudo voltado para a rua dos Ouvires. Do lado da atual'
rua da Assembleia, mais cinco grandes janelas em cada andar.
Neste maciço conjunto arquitetônico, olhando-se pelo exterior,
não é possível distinguir o espaço ocupado pela igreja, embora
uma segunda porta, voltada para a rua de São José, sugira que
por aí se entrava na nave do templo.
Er a um edifício avantajado, o mais imponente e grandioso
em suas imediações, podendo facilmente ser distinguido no
conjunto do casario por quem olhasse em direção ao mar situan-
do-se no mirante do convento dos franciscanos do Largo da
Carioca. Um belo quadro de Taunay, conservado no Museu de
Belas Artes do Rio de Janeiro, pintado exatamente do alto do
referido mirante, mostra o Recolhimento do Parto pelas bandas

293
Incêndio do Recolhimento de Nossa Senhora do Parto (1789). Feliz e pronta reedifícacão da igreja e todo o antigo Reco-
(Original existente no Museu Cúria Arquidiocese do Rio de Janeiro.) lhimento de Nossa Senhora do Parto, iniciadano dia 25 de agosto
de 1789 e concluída em 8 de dezembro do mesmo ano.

294 295
do fundo, do lado oposto ao que o Mestre Muzzi o representou inferioridade e a localidade destinada às recolhidas ou
nos finais do século XVIII. senhoras reclusas, por detrás de cujas grades estas parti-
Devia possuir mais de 40 metros de fachada e aproxima- cipam do serviço divino, baixo e pesado."4
damente uns 25 metros de altura. As estreitas janelas do térreo,
gradeadas, que ficavam a quase 3 metros do solo, e os janelões Tudo nos sugere que, ao transferirem-se as primeiras sete
do primeiro piso, a aproximadamente 8 ou 10 metros do chão, mulheres para o recolhimento, só havia o térreo e o primeiro
ofereciam clausura segura e isolamento garantido das recolhi- andar, ficando no rés-do-chão o coro gradeado com rótulas de
das ante o mundo exterior. Tudo muito semelhante, na estrutura ferro e cortinas espessas, só abertas quando as recolhidas assis-
arquitetônica, como na ferragem das janelas e.postigos, ao que tiam aos ofícios sacros, recebendo a comunhão através de uma
ainda hoje pode ser observado no Recolhimento de São Raimun- portinhola existente no meio do gradeado, igual ao que se pode
do, construído no mesmo ano e com a mesma finalidade que o observar no Convento de Santa Teresa, a 30 minutos de cami-
Parto, na cidade de Salvador, a cuja paróquia coincidentemente nhada deste local. No térreo, além do coro, deviam ficar a
pertence o autor destas linhas. cozinha, o refeitório, corredor e claustro, talvez pequeno jardim,
Quem. entrava na antiga igreja via logo à direita três áreas de serviço e sanitários,, se é que existiam. No andar de
pavimentos: um térreo, frouxamente iluminado pôr três meza- cima estavam, as celas, o coro gradeado, de onde podiam assistir
ninos, guarnecidos de grades de ferros, atrás dos quais as aos atos litúrgicos sem serem vistas pelo público de dentro da
recolhidas assistiam às funções religiosas, No primeiro e segun- igreja, talvez alguma sala maior onde realizavam em comuni-
do andares, abriam-se par a a igreja dois coros, apresentando em dade alguns trabalhos, reuniões, etc. Diz o Padre Francisco, o
toda sua extensão grades de madeira ou rótulas. primeiro capelão desta casa, em carta de 5 de setembro de 1754,
O escritor carioca Joaquim Manuel de Macedo, no seu que o bispo tencionava fazer por ora 11 celas, sendo 7 as
célebre Passeio pela Cidade, do Rio de Janeiro, datado de 1862, recolhidas, só não aceitando mais postulantes "por não haver
assim descreve esta igreja: • . ' cómodos".
Data fundamental na história dessa instituição é o dia 18
"A Capela do Parto têm duas faces. Uma que se levanta de novembro, quando o bispo nomeia, através de portaria, a
na extrema da rua dos Ourives, com edifício de três pavi- primeira regente deste recolhimento, documento que encontra-
mentos e cinco janelas; outra, que se estende em direção à mos no Arquivo da Cúria do Rio de Janeiro, dos poucos que, além
rua do Parto, que é rasgada por duas portas, uma abrin- do processo de Rosa, guardado na Torre do Tombo de Lisboa,
do-se para o corpo da igreja e outra com grades para a descrevem os primeiros anos desta associação.
sacristia. O aspecto exterior da capela é triste e sem
majestade. "Dom Frei António do Desterro, por mercê de Deus e da
Santa Sé, Bispo do Rio de Janeiro, do Conselho de Sua
No começo do século XIX, o inglês John Luccock assim vira Majestade Fidelíssima, etc. Porquanto tenho dado princí-
esta construção: pio ao recolhimento das convertidas na Igreja de Nossa
Senhora do Parto e nele se acham já algumas vivendo por
"Na ponta do Recolhimento do Parto, no fim da rua dos nossa ordem abstraídas do século e livres da comunicação
Ourives, já r.a rua de São José, fica a capela, que em geral popular, exercitando-se nas virtudes em mostras de que
é bem freqúe.atada, porém mal iluminada e escassamente irão em aumento e crescerão em número em havendo
ornamentada. O altar não se distingue senão pela sua princípio de uma pequena comunidade em que necessária-

296 297
mente deve haver uma superiora a quem as demais obe- Sacramento, natural de Lisboa, da freguesia do Santíssimo
deçam para o bom regímen e união da comunidade; por- Sacramento, donde tirou o sobrenome. Tinha 28 anos quando
tanto, por termos toda informação da capacidade e direção escolhidapara o cargo. Vivia em casa de sua irmã, que era casada
de Maria Teresa do Sacramento, e que concorrem nela os comxrm "requerente de causas", Manuel Barbosa, originário de
requisitos necessários para o referido emprego, houvemos Guimarães. Seu pai, João Pedroso, era amigo do Padre Xota-
por bem. elegê-la e nomeá-la regente do recolhimento e lhe Diabos, tanto que em 1751, quando este sacerdote chegou ao Rio
encarregamos o seu bom regímen, confiados de que terá a de Janeiro, levou sua negra espiritada para a casa do mesmo,
sua obrigação com aquele zelo e diligência que da eleita, "dizendo que era uma grande serva de Deus, que nela se ocultava
esperamos p ar a o exercício da maior perfeição das virtudes um grande mistério e que nela falavam os anjos e santos, mas
e costumes, e mandamos a todas que se achem no recolhi- que vinha um tal Lúcifer para impedir e atrapalhar".
mento e forem admitidas, venerem e reconheçam a dita Talvez Maria Teresa fosse •uma beata dirigida por Frei
Maria Teresa do Sacramento por sua regente superiora, Agostinho, pois, além de ensinar a africana a escrever, era quem
obedecendo-lhe e cumprindo em tudo o que lhes mandar anotava suas revelações e fazia-lhe as cartas, daí algumas
para perpétua conservação do mesmo, maior glória e honra testemunhas chamarem-na de "secretária de Rosa". Suspeita-
de Deus e consolação nossa.3 mos que tenha sido o mesmo frade quem sugeriu seu nome ao
bispo para reger a nova fundação, considerando reunir "os
Rosa nunca foi oficialmente regente doJParto. Negra, ex- requisitos necessários e capacidade para a direção". Pusilânime
prostituta, tropegimente alfabetizada, vexada por espírito irre- e vaidosa, Maria Teresa com o tempo vai considerar-se injuriada
qu1reto7irã~o"õifeTeTda~ã^^5ndÍç5es mínimas para merecer nomea- por darem à"Madre" Rosa o respeito e obediência que por ordem
ção_£or_p_arte dcTblspo. Não obstante recair em outra beata a. episcopal só a ela pertenciam, criando uma danosa trama de
direção oficial desta casa recém-fundada, segredava o capelão enredos e calúnias que levarão à expulsão da visionária do
do recolhimento a seu compadre Arvelos: "Nada se faz sem a próprio recolhimento que os céus lhe incumbiram de fundar.
ordem da regente, e o que ela diz, se faz, sem pôr em dúvida, e Outra lusitana, filha do mesmo João Pedroso, também
VossaMercêbem sabe quem.é aregente... VossaMercê e o Padre fez-se recolhida no Parto: Ana Joaquina do Sacramento, ao
João Ferreira e todos os mais têm nela uma grande protetora. ingressar na vida religiosa, teve seu sobrenome substituído de
Por hora não posso dizer mais nada." Sacramento para São José; tinha 24 anos. Tanto Rosa quanto
No papel, e à vista do Bispo, Maria Teresa do Sacramento seu padre capelão terão importante presença na vida espiritual
era aregente; na prática, contudo, era a .negra quem mandava, dessa família, ora revelando a situação de seus finados parentes,
tanto que a partir desta época passa a ser chamada por todos ora profetizando o futuro de seus membros. Todos eram devotos
de madre: Madre Rosa Maria Egipcíaca da Vera Cruz. Tinha, incondicionais da africana, cujo espírito tiveram oportunidade
então, 36 anos. de ver se manifestar por diversas vezes quando a hospedaram
Pouco nos dizem os documentos sobre suas primeiras recém-chegada das Minas Gerais.
companheiras. Assim mesmo,.pinçando aqui e acolá, consegui- Mais duas português as, só que naturais dos Açores, dallha
mos reconstituir fragmentos identificadores destas mulheres, do Faial: Ana Maria de Jesus, moradora da rua Nova de São
faltando contudo para a maior parte delas informação sobre a Francisco, contava 18 anos quando entrou no recolhimento.
data em. que abandonaram o mundo para recolher-se. . Disse ter vindo pequenina para o Brasil. Seu primeiro contacto
• A primeira regente, como vimos, foi Maria Teresa do com Rosa foi marcado pela violência: num dia da Ascensão,

298 299
provavelmente em 1754, estando a portuguesinha em conversa São José, natural da freguesia de São Gonçalo, viúva, 41 anos,
frívola com uma vizinha dentro da Igreja de Santo António, também cozinheira, da comunidade, e Ana Clara Maria dos
avançou a negra espiritada contra ela, possuída então pelo Anjos, cuja aparência deixou algumas testemunhas em dúvida
Espírito Zelador dos Templos, e "arrancando violentamente o se era mesmo mulata ou negra.
cordão de irmã terceira de São Francisco que ela trazia, deu-lhe As pretas eram. em número de 7: Ana do Santíssimo
pancadas que lhe feriram a cabeça nas grades da igreja". Cer- Coração de Jesus, natural de VilaRica, do arraial do Padre Faria,
tamente Ana, Maria tomou a violência como castigo celeste tinha 25 anos, sabendo ler e escrever; Ana do Santíssimo Coração
contra sua conduta irreverente, tanto que decidiu-se por entrar de Maria, conhecida no mundo como "AnaBela", crioula nascida
para a mesma casa de oração onde a africana reinava soberana. na Ilha do Bom Jesus, no recôncavo do Rio de Janeiro, 28 anos;
Teresa de Jesus provinha da mesma ilha e tinha os mesmos Maria Antonia do Coração de São Joaquim, Maria Rosa do
18 anos quando se recolheu. Analfabeta, foi uma das cozinheiras Coração de São José, Maria Joaquina do Coração de Santo
do Parto, exercendo tal função por 4 anos seguidos. Agostinho e Justa de Brito, sobre cujas identidades nada infor-
Das brasileiras brancas que primeiramente entraram nes- mam os documentos, além de especificar em que tinham a mesma
ta instituição temos as seguintes informações: Joana Maria do cor negra de Madre Rosa Egipcíaca. Pelo visto, com exceção da
Rosário, 33 anos, nascida e batizada na freguesia de Campo fundadora, que era natural da costa africana, todas as demais
Grande, morou primeiro na rua da Prainha e depois "viveujunto eram já crioulas, nascidas quer nas Minas, quer no Rio de
com Rosa quando esteve no consistório da Igreja do Parto, antes Janeiro.
de fazer-se o recolhimento". Ficando doente e entrevada, voltou A heterogeneidade social, racial e etária das ocupantes do
para sua casa sem ter-se recolhido no novo edifício. recolhimento sempre foi a tónica desta comunidade, talvez o
Também carioca era Francisca Xavier dos Serafins, bati- mesmo ocorrendo em outras instituições congéneres do Brasil
zada na Sé do Rio de Janeiro. Tinha 33 anos quando entrou na Colonial. Nos conventos reais, como no do Desterro da Bahia,
comunidade de Rosa. no de Santa Teresa e no da Ajuda do Rio de Janeiro, a 'limpeza
Sobre as recolhidas Maria do Rosário e Luciana Maria de de sangue" era uma das condições essenciais para a aceitação
Jesus só sabemos que ambas eram brancas, sendo de Pernam- de noviças, havendo mesmo casos de brasileiras levemente
buco a derradeira. Quatro recolhidas, ingressas a partir de 1757, amestiçadas que, tendo sido recusadas nos conventos daqui,
eram irmãs entre si: Faustina,- Francisca Tomásia, Maria Ja- foram aceitas como enclausuradas nos do Reino. Nos recolhi-
cinta e Genoveva, todas quatro filhas de Pedro Rodrigues Arve- mentos, contudo, parece que sempre houve maior tolerância
los, ex-dono de Rosa, compadre seu e do Padre Xota-Diabos. para as mestiças. Já em Portugal, no século XVI, a negra
Sobre estas moças trataremos mais adiante, dada a condição de Violante da Conceição, amiga pessoal da Rainha Dona Catarina,
parentesco ritual existente entre aquela família e a negra cou- deixara sua fortuna para a fundação do Recolhimento de San-
rana. tana, aceitando-se aí mulheres de tez escura, o mesmo ocorrendo
Ao todo viviam, portanto, no Recolhimento do Parto, 12 em Goa, onde não só no Recolhimento de SantaMariaMadalena,
recolhidas brancas, entre-cariocasrlusitanas e mineiras. Nove quanto no Real Convento de Nossa Senhora do Monte, era
religiosas eram de cor, sendo três mulatas: Leandra Maria do marcante a presença de filhas de indianos, muçulmanos e mes-
Sacramento, a já referida principal amiga e companheira de mo de africanos. Como o Recolhimento de Nossa Senhora do
Rosa, natural de Pernambuco e, como ela, exorcizada pelo Padre Parto, contudo, não há semelhante no império lusitano, pois, ao
Francisco desde os tempos do Rio das Mortes; Páscoa Maria de menos em sua fundação e nos 10 primeiros anos de sua existên-

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cia, as mulheres de cor representavam quase a metade das esposas, como às esposas de maus maridos, e também às
reclusas: 12 brancas e 10 negras e mestiças amulatadas. moças solteiras, filhas de pais enfezados, cabeçudos e
Se na origem desta casa pia seu, objetivo era abrigar prepotentes. B astava um marido tirano querer livrar-se da
mulheres arrependidas, ou "convertidas", como a elas se referia esposa, paralogo interná-lano Parto. Não haviabriga entre
o bispo, na portaria de nomeação da primeira regente, desde seu marido e mulher que não arrefecesse imediatamente ao
início, contado, donzelas e viúvas honestas, inclusive mulheres pronunciar das terríveis palavras: 'Olha o Recolhimento
casadas virtuosas, também aí encontraram espaço p ar a fugirem do Parto!' O próprio incêndio desta casa, em 1789, foi
do mundo. Além de Rosa, que viveu lascivamente dos 14 aos 29 atribuído, na época, à vingança de uma recolhida revoltada
anos, também a preta Ana Bela, antes de converter-se em irmã com sua indesejada reclusã.o."
Ana do Coração de Maria, é apontada pelo Comissário do Santo
Ofício, Frei Bernardo de Vasconcelos, carmelita, como "bem. Não é difícil imaginarmos quão problemática e atribulada
conhecida pelas suas escândalos as dissoluções...", pró vavelmen- devia ser a convivência, dentro desta instituição fechada, de
te mulher da vida, como tinha sido nossa biografada. Só destas mulheres e moças provenientes de classes sociais, nichos cultu-
duas há referência explícita ao passadopecaminoso. Das demais, rais e com idades tão desencontradas. Beatas empedernidas
ao menos seis delas eram filhas de famíha, donzelas; as restan- solteironas, lado a lado com madalenas há pouco saídas dos
tes, solteironas, beatas ou, quem sabe, mulheres que deram um lupanares; donzelas enclausuradas à força compartilhando o
mau passo na vida, sem contudo poderem ser enquadradas na mesmo dormitório e espaços coletivos com ex-escravas criadas
laia das dissolutas Rosa e Ana Bela. Sobre esta questão ensina na promiscuidade das senzalas; brancas cristãs-velhas, de "san-
o historiador Vieira Fazenda: "Esse recolhimento serviria não gue puro", sentando-se na mesma mesa do refeitório com afri-
só parareceber mulheres convertidas, como também as casadas, canas e crioulas de primeira geração. O Parto foi, na sua origem,
a que estivesse obrigado a acudir, ou. para as livrar da morte, uma típica Babel, e com o correr dos anos tornar-se-á um
ou para seus maridos as livrarem de que continuem em ofendê- pandemônio de fazer inveja ao Apocalipse.
los."3 Apropria Egipcíaca, em carta provavelmente escrita em Rosa não devia caber em si de alegria com a fundação do
1760, dirá a este propósito: fDizem os Santíssimos Corações que recolhimento: além de ter garantido um lugar para viver e
o Senhor tinha feito este rècolloimento para mulheres publica- dormir, comida na mesa na hora certa, tinha espaço e tempo
nas, para depois fazê-las almas justas, mas, faltando estas, para para seus voos místicos. Mais ainda: era amada e respeitada por
donzelas honestas." Da mesma forma como ocorreu com o Reco- uma dezena de mulheres, brancas e negras, que a tratavam por
lhimento São Raimundo, naBahia, fundado um ano após o Parto, Madre e a veneravam como a preferida do Divino Mestre e
em 1755, com o tempo ambos vão se tornar uma espécie de prisão Esposa da Santíssima Trindade. Em carta de 16 de setembro de
feminina, onde maridos tiranos enclausuravam suas mulheres 1755, dia de São Cipriano, Madre Egipcíaca revela que o reco-
ou filhas, seja para eles próprios viverem com mais licença, seja lhimento representava uma poderosa arma na guerra contra o
para castigá-las pelos excessos de liberdade, verdadeiros ou não. Espírito Maligno. Eis suas palavras:
Tornou-se assim o.Recolhimento-do~ Parto, como o de São Rai-
mundo, uma terrível ameaça contra o belo sexo, passando a "Já vêm em campo os Santíssimos Corações, com o
significar, no dizer de Joaquim Manuel de Macedo, estandarte do seu divino braço aberto, afugentando os
nossos inimigos contrários da nossa alma, que são o mundo,
• "uma espécie de cadeia que fazia medo, não só às más o diabo, a carne e seus sequazes incrédulos, pois já está
posta a primeira pedra da fundação do recolhimento no dia

302 303
da Assunção de Nossa Senhora. Creio que está a pedra vos onde poderia estar guardado foi achado. Encontramos ou-
posta na porta do inferno, na cabeça de todos os demónios! trossim estatutos de outros recolhimentos e conventos de reli-
Que Jesus seja o fogo, © Maria a pólvora para quebrantar giosas contemporâneos ao Parto, permitindo-nos supor que nos-
nossos corações de pedra!" sas recolhidas deviam organizar seu dia e suas vidas por ditames
semelhantes. Para familiarizar-nos com o universo destas ins-
É nesta carta que a ex-escrava dos Arvelos manifesta pela tituições femininas, vejamos sumariamente como funcionavam,
primeira vez debicado desejo: convida a filha de seu ex-senhor, de acordo com os estatutos, os recolhimentos de Macaúbas, de
Maria Faustina, a se tornar "esposa do Menino Jesus no Reco- Nossa Senhora da Glória e da Ajuda.
lhimento dos Santíssimos Corações", Desde cedo Rosa percebe Supomos que o mais provável é ter o Recolhimento do Parto
que melhor seria que sua casa não se limitasse em abrigar seguido a orientação dos franciscanos na escolha de sua disci-
"publicanas" e negras como ela: quer também donzelas, brancas, plina interna, pois, além de Frei Agostinho de São José, o já
quer as filhas de seu ex-senhor, todas sob sua tutela e direção. nosso conhecido diretor espiritual de Rosa entre 1751 e 1758,
O zelo espiritual e a ambição destabeatanâo conheciam limites: que se autoproclamou "fundador do recolhimento", outros fran-
tinha esperança e convicção de que o Recolhimento, do Parto ciscanos continuaram a dar assistência espiritual às recolhidas,
transformar-se-ia no principal convento real do Império Portu- anos seguidos, dada a proximidade entre o Convento de Santo
guês. Daí querer diversificar racialmente as componentes desta António e esta casa recoleta. Os próprios franciscanos observa-
comunidade mística. vam, no Rio de Janeiro, o seguinte horário diário:
Como viviam as recolhidas nestes primeiros anos após a,
fundação do Parto? Também aqui, infelizmente, a documentação 4h Levantar
deixa a desej ar. Há poucas referências sobre a existência de uma 5h Ofício Divino e Missa Conventual
Regra escrita que governasse a comunidade. Rosa, em carta de 7h Classes
12 de setembro de 1780, dirigida à sua ex-patroa Dona Maria llh Jantar
Teresa Arvelos, diz que "nosoO esía."aito manda que as religiosas 14h Classes
que forem rebeldes, que se metam no cárcere e se penitenciem..." 17h Ofício Divino
E completarespaldando-se na tradição monástica: "Pergunte ao 19h Ceia
meu compadre [Pedro Arvelos] como é que se faz nas Ordens 21h Ofício Divino, Oração Mental, repouso. °
Terceiras quando algum irmão tem rebelião de espírito." Em
outra missiva, destinada à mesma família, de 5 de fevereiro de No Recolhimento das Macaúbas, em Minas Gerais, era
1762, escreve assim: "Nosso instatuto [sic] são os três votos: seguida a regra franciscana desde 1733, levantando-se também
pobreza voluntária, obediência inteira e castidade perpétua". E as religiosas às 4 horas da manhã, iniciando suas orações
diz ainda: "Os livros espirituais por onde me governo e dirijo matutinas com o Bendito ao Santíssimo Sacramento e à Imacu-
estão cheios de espirituais lições de como devem as mestras e lada Conceição:
mestres de Espírito ligar as almas com Deus, livrando- as de todo
trato familiar do século, fazendo que tenham só os espíritos Bendita seja a luz do dia, bendito seja quem a cria
recolhidos em Deus, sem distrações..." . .. . O Filho da Virgem Maria, o Santo deste dia.
Se algum dia o recolhimento de Rosa chegou a ter estatuto Vamos à Prima louvar a Deus e a sua Mãe Santíssima.
escrito, infelizmente este se perdeu, pois em nenhum dos arqui- Cobri-nos com vosso manto, Esposa do Espírito Santo!

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instituição de donzelas: o confessor devia ser de idade madura
Os estatutos do Recolhimento de Nossa Senhora da Glória, e conhecida probidade, exercendo a capelania da igreja e admi-
sito no lugar da Boa Vista, em Recife, apesar de ser destinado nistração dos sacramentos, recebendo 120$000 réis por ano,
a donzelas brancas, com. mais de 16 anos, provenientes de boas tendo como obrigações dizer missa diariamente—sendo cantada
famílias, dá-nos uma ideia de como funcionavam tais institui- nos dias de festa solene —, ouvir confissão, administrar os
ções no Brasil colonial. Eis seu horário diário: sacramentos, pregar aos domingos e autorizar a entrada de
serviçais no recolhimento para as obras necessárias. Quanto à
5h Despertar regente, também requeria-se ter idade madura "trabalhando
5:30h Coro: "após o sinal da cruz e adoração do Santís- com caridade para que todas fiquem unidas em. um só espírito,
simo Sacramento, dirão o hino do Espírito Santo, não permitindo que as súditas façam a Deus promessas ou votos
leitura dos pontos da meditação e um quarto de inconsiderados, repreendendo sempre em particular como boa
hora de oração mental" mãe". Constavam ainda alguns encarregados dos ofícios exte-
6h Oficio Parvo de Nossa Senhora e volta para a cela riores: sacristão, serventes para compras, hortelão, procurador
8h Missa e Ofício Divino para cuidar das rendas e o médico.
9h Empregos e ocupações Dom António do Desterro, o bispo fundador do Recolhimen-
12h Jantar e recreio "onde falarão umas com as outras to do Parto, quando do enclausuramento das franciscanas no
de cousas agradáveis e santamente alegres, com Convento de Nossa Senhora da Ajuda, em 1750, também baixou
muitapaz e cortesia, nunca jamais dirão palavras portaria especificando, nos vários detalhes, como deviam viver
incivis, nem de murmuração" •• tais religiosas. Embora se trate de um convento de votos solenes,
14h Ofício Divino e trabalho em princípio mais rigoroso e estrito, por se tratar de uma "regra
18h Rosário e Ladainha de Nossa Senhora carioca" e da mesma década em que o Recolhimento do Parto foi
19h Ceia e meia hora de recreio, "acompanhando a. instituído, certamente muitos destes detalhes foram, incorpora-
seguir a regente cada recolhida à porta de sua dos aos estatutos de nossas recoletas; daí o interesse em sua
cela para ocupar o tempo com orações e exames divulgação.
de consciência" Começam as "Regras das Freiras da Ajuda" determinando
21h Toque de recolher que não se aceitassem na clausura meninas com menos de 12
22:15h Apagar as luzes anos, nem. mulheres muito velhas, pelos inconvenientes.resul-
tantes dessas idades. Que o hábito das religiosas fosse uma
O governo interior das recolhidas era confiado a um padre túnica com escapulário branco e manto azul, com a Virgem Nossa
espiritual ou confessor, que devia morar perto do recolhimento Senhora da Ajuda bordada no ombro esquerdo, cingindo-se a
e "tomar a si o cuidado de confessar, dirigir e encaminhar para cintura com uma corda de linho àmodafranciscana, cobrindo-se
a virtude as pessoas que habitarem dentro dele". A regente, a cabeça das noviças com uma toalha branca de linho, e as
eleita- pelo bispo, devia ter toda a superioridade no governo da professas com véu preto, escondendo-se atesta, face e garganta
casa, secundada pela vigária do coro, procuradora, porteira, com pano branco. Os cabelos deviam ser sempre cortados. Nos
sacristã, rodeira, enfermeira, despenseira, refeitoreira, todas pés, podiam escolher: alpargatas, calçado ou pantufas. O dormi-
nomeadas pela regente. Os estatutos do Recolhimento da Glória tório era comum: "durmam todas com seus hábitos vestidas,
especificam ainda as qualidades dos principais dirigentes desta cingidas com cordões, estando unia lâmpada acesa. Que cada

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uma durma só em sua cama". Preocupação puritana documen- do a leitura das constituições religiosas ou dos livros sacros. A
tada desde os tempos de Santo Agostinho (século V) e ratificada recreação não deviaultrapassar duas horas por dia, obedecendo
pelos padres da Igreja, prevenindo a tentação das amizades à orientação dos Santos Padres, que proibiam fossem proferidas
carnais entre as religiosas, sendo que já no Concílio de Paris "palavras de murmuração, leviandades ou frases picantes, proi-
(1212) é oficialmente proibido a duas freiras dormirem na bindo-se falar de gerações e de suas terras, vetando-se as porfias
mesma cama, certamente p ar a evitar que a homossexualidade, e contendas. Caso houvesse desobediência, que se prive a reli-
popularmente chamada de 'Vicio dos clérigos", tambémpassasse giosa de umahora de recreação, fazendo adoração ao Santíssimo
a ser rotulada de "vício das freiras"... Sacramento no altar".
Eis o horário do Convento da Ajuda, situado então a menos Em outra portaria, Dom António Malheiro trata da disci-
de 15 minutos de caminhada do Recolhimento do Parto: plina e circunspecção que as enclausuradas deviam ter no
contacto entre si e com o mundo exterior: que as noviças ficassem
5h I^vantar(entreaPáscoaeafestadaSantaCruz, às6h) proibidas de falar com seus pais durante o Advento e Quaresma,
Oração mental, Oficio divino e trabalho nas oficinas que se interditassem os bailes e descantes no convento "por
9h Missa conventual, em seguida permanecem as serem totalmente alheios ao estado religioso e serem ocasiões
religiosas na "casa de lavor" de ruínas espirituais"; que a porteira fosse vigilante com a porta
lOh Exame de consciência (meia hora) do mosteiro, não abrindo as duas bandas anão ser para o general
llh Jantar e graças a Deus no coro até 12:30h da capitania ou pessoas de primeira classe, médicos, cirurgiões
12:30h Silêncio até 14h e confessores.
14h Ofício Divino Tais regras de recolhimentos e conventos de freiras do
15:45h Recreação século XVIII permitem-nos vislumbrar como funcionaria o Re-
17:30h Oração no coro colhimento de Nossa Senhora do Parto, cujo estatuto devia
18;30h Ceia e recreação repetir, mutatis mutandis, os mesmos princípios organizacio-
21:15h Exame de consciência • nais das demais casas religiosas. Talvez com um pouco mais de
22h Recolher improvisação e menor rigor nos horários e disciplina, dada a
inexperiência da regente oficial, Maria Teresa do Sacramento,
Quanto aos exercícios espirituais, deviam as enclausura- então com 28 anos, e a heterogeneidade das mulheres e donzelas
das tomar disciplina todas as sextas-feiras, flagelando-se em aí reclusas. Conseguimos levantar os nomes das primeiras
comunidade durante o tempo do salmo Miserere; na Semana ocupantes de alguns cargos desta comunidade: como dirigentes,
Santa, nos seus três dias mais solenes, a flagelação devia ter conforme acabamos de referir, além da regente Maria Teresa,
seu tempo triplicado, durando todo o período em que se cantava lá estava o Padre Francisco Gonçalves Lopes, capelão e confessor
o mesmo Salmo 50, tudo oferecido "para aumento da Santa Fé das recoletas, o qualpossuíaresidência adjunta ao recolhimento,
Católica, por El-Rei, pelas almas, pelos aflitos, cativos e por celebrando diariamente a Santa Missa no altar-mor da dita
quantos estavam empeçado mortal". Só aprelada ou o confessor igreja. Um ermitão, o Irmão João das Barbas, fazia os serviços
podiam autorizar disciplinas ou penitências extraordinárias, de sacristão externo, também esmolando embenefício desta casa
devendo as religiosas comungar todos os domingos e festas santa. Em vez de hortelão e servente para compras, o próprio
solenes, fazendo 15 minutos de atos de agradecimento após a capelão possuía um escravo, o cabraBrás, sugerindo a documen-
eucaristia. Np refeitório deviam permanecer em silêncio, ouvin- tação que vez por outra contratavam outros cativos, como alu-

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gados, para serviços extras dentro do edifício. Em 21 de novem- decotadas. Como, porém, o incêndio ocorreu à noite, talvez os
bro de 1754 o bispo nomeia dois procuradores para "requerer e saiões brancos das ditas mulheres fossem roupa de dormir, pois
alegar toda a justiça que se oferecer em qualquer causa perten- Rosa declarou certa feita que dormia "com túnica e saia branca
cente ao recolhimento das convertidas e abstraídas do século, de estopa". Para as cerimónias no coro, no refeitório e nos demais
administrando as obras e fazendo todo o dispêndio necessário: atos comunitários, as recolhidas deviam vestir o hábito marrom,
Miguel Róis Batalha e Manoel Costa Cardoso".16 Da cozinha do cingindo a cintura com o cordão branco, tendo a cabeça coberta
recolhimento ocupavam-se as irmãs Páscoa Maria e Teresa de com véu branco e provavelmente o rosário dependurado ao lado
Jesus. Certamente deviam outras enclausuradas ocupar as da cintura.
funções de porteira, sacristã, refeitoreira, etc., embora os docu- Deixemos esta dezena de mulheres e moças em seu reco-
mentos não registrem seus nomes. Na hierarquia interna desta lhimento, rezando o Ofício de Nossa Senhora, ladainhas e nove-
comunidade, embora a regente fosse por direito a autoridade nas, cuidando dos afazeres materiais, aprendendo devagarinho
máxima, cabendo-lhe inclusive a nomeação das demais recolhi- como viver piedosamente em comunidade, e voltemos a Rosa
das para ocupar os cargos previstos para seu funcionamento, na Egipcíaca, cujas visões beatíficas se tornam cada vez mais
prática, como veremos, as coisas se passavam diferentemente: espantosas, desde que transferiu-se para o litoral e começou a
Rosa era amadre superiora, e quatro de suas mais devotas filhas frequentar o convento dos franciscanos.
comandavam este pequeno rebanho recolhido na Várzea de
Nossa Senhora!
Sendo um franciscano o .fundador desta casa e contando
tais mulheres com a orientação constante dos frades menores Notas
do Convento de Santo António, sito a 10 minutos de caminhada
um local do outro, nada mais possível que, como Rosa, também
as demais recolhidas usassem o hábito marrom da Ordem 1. "Fatal e rápido incêndio que reduziu a cinzas, a 23-1-1789 todo o
Seráfica. Nenhum documento informa cabalmente como era o antigo Recolhimento de Nossa Senhora do Parto, salvando-se ilesa
hábito dessas beatas. Dom António diz, apenas, que ao saírem entre as chamas a milagrosa imagem da mesma Senhora" e "Feliz
na rua, quando ainda estavam vivendo no consistório, antes do e pronta reedificarão da Igreja e todo o Recolhimento de Nossa
Senhora do Parto, começada a 25-8-1789 e concluída a 8-12 do
término das obras do novo prédio, para irem confessar-se, usa-
mesmo ano", Fundação Raimundo Otoni de Castro Maia, Rio de
vam íchábito de terceiras" — quer dizer, terceiras franciscanas. Janeiro. Duas reproduções destas telas, atribuídas a JoaquimLean-
Uma testemunha declarou textualmente que Rosa andava de dro, encontram-se no Museu da Arquidiocese do Rio de Janeiro.
"burel de capucho", isto é, hábito franciscano. Parece que dentro 2. Anónimo. Nossa Senhora do Parto e sualgreja. Rio de Janeiro, s.ed.,
da clausura algumas recolhidas vestiam longos vestidos bran- 1938, p. 4.
cos, pois é assim que dez delas foram retratadas por Muzzi, 3. Macedo, Joaquim Manuel. Passeio pela Cidade do Rio de Janeiro.
quando às pressas abandonavam o edifício do Parto por ocasião Rio de Janeiro: Tipografia Imparcial, 1862, 2 v.
do-citado incêndio de- 1789: .sete delas, contudo, na mesma 4. Luccock, John. Notas sobre o Rio de Janeiro e Partes Meridionais
pintura, aparecem vestidas comoburelmarrom de franciscanas. do Brasil Itatiaia-USP, 1975, pp. 47-48.
Algumas negras aparecem também estampadas no quadro, 5. Arquivo da Cúria do Rio de Janeiro, Registro de Portarias, Livro
. certamente escravas do recolhimento ou de alguma das internas, II, "Registro de uma Portaria de 18-11-1755, para Regente do
trazendo estas saiões escuros, algumas com blusas vermelhas Recolhimento do Parto", fl. 57.
6. Russel Wood, A. Op. dt., 1982, p. 70.

310 311
7. Boxer, C. Op. cit., 1977, p. 89. 13
8. Fazenda, J. V. Op. cit., 1921, p. 449.
9. Macedo, J. M. Op. cit., 1862, 2 ed., 1942, pp. 289-333; Dunlop, C. J. Visão dos Sagrados Corações
Rio Antigo, Rio de Janeiro, s.ed., 1958, p. 46.
10. Rower, Basflio. Op. cit., 1937.
11. Sousa, D. Joaquim Silvério. Sítios e Personagens. S. Paulo: Tipo-
grafia S alesiana, 1937, p. 303.
12.Azeredo Coutmho, D. José J. C. J3sta.tu.tos do Recolhimento deNossa Foi logo após a revelação de Nossa Senhora Jjxgambmdo-a
Senhora da Glória, deBoa Vista-de Pernambuco. Lisboa: Tipografia de_fur^dar,oj:ecolhimento. que Eosa t,em_um.a_série de visões de
da Academia de Ciências, 1798. crucial importância, para sua vida mística. Estamos na Páscoa
13. Curb, Rosemary & Manahan, Nancy. Lesbian Nuns: Breaking
de 1754: indo à Igreja de Santo António, seu local predileto de
Silence. New York: Warner Books, 1985.
orações e raptos beatíficos, após confessar-se
14. Arquivo da Cúria do Rio de Janeiro, Registro de Portarias, Livro I,
fl. 22 (1750-1751). m
15. Arquivo da Cúria do Rio de Janeiro, Registro de Portarias, Livro I,
fl. 20 (16-11-1750).
"se pôs a ouvir missa no altar de Nossa Senhora da Con-
ceição, e tanto que o sacerdote disse Sanctus, Sanctus,
*
16. Arquivo da Cúria do Rio de Janeiro, Registro de Portarias, Livro Sanctus, beijou ela, ré, o chão e, levantando-se, viu. p nicho
II, fl. 57 (21-11-175?). em que estava Nossa Senhora coberto como com espelho,
mas muito luzido e claro, trémulo assim como de águas
cristalinas quando neles reverbera o sol, e, no meio disto,
viu três corações, um cercado com uma coisa verde como
coroa de espinhos e, em cima, uma chama como que lançava
fogo, no meio do qual estava uma cruz pequena; e do lado
direito deste coração estava outro, atravessado com uma
espada, que o passava de parte aparte, e, ao lado esquerdo,
outro coração também atravessado com uma flor, E todos
estes corações eram de cor sanguínea e se moviam juntos
com a mesma ordem dentro daquele cristal onde estiveram
até o sacerdote consumir a sagrada hóstia, e então desa-
pareceram. E teve ela, ré, com uma certeza que se lhe pôs
no entendimento, de que o coração do meio era de Jesus, o m
da parte direita de Maria, o da esquerda de José, e que era
a Trindade na Terra, cuja visita assim da mesma sorte se
m
lhe repetiu na missapor três dias oumais, do que deuparte
ao seu confessor. E estando ela mesma, depoente., contem-
plando uma vez neste prodígio, se lhe disse no entendimen-
to que estes Sagrados Corações queriam casa para assisti-
rem na Terra".

312 313
Já nas Minas esta africana tivera uma outra visão onde se
lhe apareceu o Sagrado Coração: no Inficcionado, uma de suas
primeiras manifestações espirituais foi ver no céu, claramente,
umafigura de "um coração de cor vermelha, cheio de luz, cercado
com uma coroa de penetrantes espinhos", recebendo emMariana
a revelação de que "se preparasse para sofrer por Jesus Cristo,
lembrando-se do Amante Coração com que o mesmo Senhor se
dispôs a padecer pelos filhos de Adão".
As visões do Sagrado Coração de Jesus remontam, à Idade
Média. Já no século XIII, a beneditina Santa Gertrudes Magna,
intrigada com o silêncio dos santos que a precederam não
divulgando tal culto, recebeu do Cristo esta resposta: "Deus
reservou revelar os segredos de seu coração mais tarde, em
tempos de grande tibieza espiritual, guardando estas maravi-
lhas para atear a chama da caridade quando ela revelasse luz
fraca e perigo de se extinguir."
Embora'desde o tempo de São Cipriano (século III), Santo
Ambrósio (século IV), Santo Agostinho e São Gregório (século
V), o coração de Cristo Crucificado, trespassado pelalança, fosse
representado como símbolo dalgrejae de seus santos, batizados
pela água e alguns pelo sangue do martírio, tema aliás retomado
na Idade Média por São Bernardo, Santo Tomás de Aquino, São
Bóaventura, Santa Gertrudes e Santa Catarina de Sena, entre
muitos outros, foi através das espetaculares visões de Santa
Margarida Maria Alacoque, no século XVII, que o culto ao
Sagrado Coração alcançouseu apogeu e expansão em toda Igreja Imagem dos "Sagrados Corações", original manda-
Universal, inserindo-se Rosaperfeitamenteno rol dos luminares do esculpir por D. Frei Manuel da Cruz, 'a primeira
desta espiritualidade. representação deste culto no Brasil, e que serviu de
Margarida Maria, nascida na Borgôndia, em 1647, entrou inspiração para Rosa Egipcíaca elaborar a devoção aos
para o Mosteiro das Visitacionistas de Paray-le-Monial em 1671. "Corações da Sagrada Família". (Museu de Arte Sacra,
Tal congregação, fundada em 1610 por São Francisco de Salles Mariana, Minas Gerais)
e Santa Joana de Chantal, já tinha em seu brasão um coração
atravessado por duas setas e rodeado por uma coroa de espinhos.
Foi contudo em 1673, diante do Santíssimo Sacramento, no dia
da festa de São João Evangelista, que Santa Margarida Maria,
então com. 26 anos, mereceu o privilégio de adentrar no peito do
Deus Homem, descobrindo os segredos de seu Sagrado Coração,

314 315

"todo radioso e mais brilhante que o sol e transparente como um
cristal", ostentando setas semelhantes aos símbolos de sua
de Jesus, do agostiniano Frei Manuel da Ascensão; e em 1749,
novamente Frei Francisco Brandão assina outra obra: Escola

agremiação religiosa. Numa segunda visão, ocorrida após ter do Coração de Jesus. m
ficado sessenta dias com febre alta, Soeur Marguerite Marie viu Tal listagem está longe de ser exaustiva e, com ela preten-
de novo o coração de Cristo, agora numa fornalha cheia de demos realçar o quanto esta nova devoção atraiu a atenção de
chamas, 'lançando seus raios ardentíssimos como sol brilhante escritores, místicos e religiosos de todas ordens e do povo em 9
de luz". Apesar da forte oposição de muitos teólogos e bispos e geral. No Brasil, conquanto já nos finais do século XVII o jesuíta
da resistência de diversos papas, a devoção ao Coração de Jesus Conrado Pfeil incluísse numa carta a outro confrade a expressão
se alastra pela ci-istandade: 8 anos após a morte desta serva de "Coração Santíssimo de Jesus", foi outro jesuíta, já nosso bem
Deus, em 1698, a Confraria do Sagrado Coração já contava com conhecido, o Padre Gabriel Malagrida, quem,'a justo título, deve
13 mU sócios; em 1719 o arcebispo de Lyon autoriza sua festa ser proclamado como o maior divulgador desta barroca devoção
em todas as igrejas da diocese; em 1728, no convento das na Terra de Santa Cruz. Foi ele quem instituiu, em Salvador,
franciscanas de Sacavam, nos arredores de Lisboa, se festeja em 1736, nossa primeira Confraria do Coração de Jesus, sita na *
pela primeira vez em Portugal tal devoção, datando de 1731 o Capela do Bom Jesus, fundando, em 1739, o primeiro convento *
primeiro livro publicado em português sobre esta novidade dedicado a tal orago: o Mosteiro das Ursulinas do Santíssimo
devocional: Coração de Jesus Comunicado aos Corações dos Coração de Jesus da Soledade, repetindo o mesmo título em *
O
Fiéis. Dá-se Notícia de uma Prodigiosa Visão em que Cristo 1744, na vila de Igaraçu, Pernambuco, no Recolhimento do 9
Manifestou-se à Venerável Madre Margarida Maria Alacoque, Coração de Jesus, e em 1752, em São Luís do Maranhão, no
Religiosa da Ordem da Visitação de Santa Maria — o Culto de Convento das Ursulinas do Coração de Jesus. Por pouco Rosa
seu Santíssimo Coração. Trata-se de Muitas Excelências suas; não encontrou este devoto sacerdote cordícola em Minas Gerais,
Regras para sua Confraria; Devoções Utilíssimas; uma Devota pois, ao chegar em Mariana seu primeiro prelado, Dom Frei
Novena e, no Fim, uma Sumária Notícia da Portentosa Vida Manuel da Cruz, escreveu este piedoso pastor ao Padre Mala-
Daquela Serva de Deus, Escrito por Frei Jerônimo de Belém, grida que viesse pregar missões em sua novel diocese, não
Franciscano do Algarve. , consumando-se, porém, seu desiderato pelas muitas viagens
Dois anos depois, outra obra, assinada esta pelo Padre missionárias que o jesuíta italiano fazia pelo Brasil afora. Este
Manuel Consciência, introduz emnossa antiga metrópole o culto bispo, Dom Manuel da Cruz, disputa com o Padre Malagrida a
aos três corações: Aljava de Sagrados .Aios, os Santíssimos preeminência na divulgação deste culto; chegando em Mariana,
Corações dos Soberanos Senhores Jesus, Maria e José (1733); no logo quis instituir sua devoção, mandando esculpir um coração
ano seguinte, Frei Francisco Brandão, agostiniano, publica sua em madeira, circundado por coroa de espinhos e rodeado por um
Devoção do Santíssimo Coração de Jesus (1734); em 1736 é a esplendor em chamas, apoiado sobre a cabeça de um querubim.
vez de Frei José de Nossa Senhora, OFM, que manda imprimir Tão insólito objeto encontra-se exposto no Museu de Arte Sacra
seu Sermão Panegírico do Coração de Jesus, Manifesto no de Mariana. Essa novidade devocional provocou repulsa dos
Santíssimo Sacramento no seu Dia Oitavo; em 1740, outro cónegos capitulares, que sub-repticiamente retiram a imagem
Sermão do Santíssimo Coração de Jesus Pregado no Dia do do altar, escondendo-a no quarto de despejos da catedral maria-
Batista, Estando o Santíssimo Exposto no Convento de São nense. Acharam que este novo culto não merecia a veneração
Francisco deXabregas, de autoria de Frei Pedro da Encarnação, pública. Resoluto, Dom Manuel introduz em 1752 novaimagem,
íranciscano; em 1746 é a vez do Sermão do Santíssimo Coração agora não mais apenas um único, mas três corações lado a lado,

316 317
Jesus-Maria-José, que, colocados numa 'espécie de custódia descrição das visões de Santa Margarida Maria, aparições ocor-
ardente, ganham lugar no altar da catedral, O cabido desta vez ridas na França há 80 anos passados, e que desde 1731 eram
não teve como reagir, e a devoção instituiu-se pelas Minas descritas em português no livrinho do capucho Frei Jerônimo de
Gerais: fundam-se irmandades dos Sagrados Corações em Vila Belém. Com certeza os franciscanos do Rio de Janeiro possuíam
Rica e no lugar da Passagem, sendo ereta em 1760 a primeira tal opúsculo e outros do género em sua biblioteca, pois temos
capela que deu origem à cidade de Três Corações, celebrizada notícias de que, já em 174-2, no sertão do Piauí, um sacerdote
neste século por ser a terra natal do mais famoso descendente secular, o Padre FranciscoXavier Rosa, conservava emseupoder
de africanos do Brasil contemporâneo: Pele. O Coração de Jesus Comunicado aos Corações dos Fiéis, com-
A primeira visão cordícola de Rosa ocorreu por volta de provando a rapidez como esta obra se expandiu pelo Brasil afora
1750, quando Dom Frei Manuel da Cruz, há mais de um ano, logo após sua publicação.
tomaraposse de sua diocese. Jáfazia vinte anos que emPortugal A descrição da fornalha ardente e do brilho indescritível
venerava-se o Sagrado Coração, existindo desde 1752, no Rio de com que a Egipcíaca pinta tal aparição repete as mesmas
Janeiro, uma confraria a ele dedicada. Portanto, pode ter sido imagens da vidente de Paray-le-Monial, constando inclusive o
através das pregações devotas destebispo que a escrava courana detalhe da pequena cruz sobre a. aorta do Coração de Cristo. O
tenha ouvido falar pela primeira vez no Coração de Cristo; é imaginário místico da africana, contudo, é ainda mais barroco
possível mesmo que tenha visto- alguma estampa ou aquela do que o da visitacionista francesa: não apenas Cristo, mas toda
polêmicaimagèmintroduzidanaSédeMarianaerecusadapelos a Trindade na Terra brindam-na cora. a intimidade de seus
cónegos. Foi nesta mesma igreja que, em 1750, esta negra fora preciosos corações.
examinada por uma junta de exorcistas, os mesmos cónegos que Conforme relatamos, as primeiras videntes deste inefável
esconderam tal escultura. Será contudo no Rio de Janeiro, em mistério, as santas Lutgarda, Gertrudes, Catarina de Sena,
1754, que Rosa Egipcíaca vai incorporar-se no séquito de Mala- Margarida Maria, viram tão-somente o Coração de Jesus, cora-
grida e de DomManuel da Cruz, tornando-se a principal vidente ção isolado, separado do corpo, rodeado de esplendores cristali-
e propagandista deste excelso culto: Rosa é nossa Margarida nos e chamas ardentes. Foi somente mais tarde, já no século
Maria afro-brasileira. XVIII, que novas visionárias dirão ter visto, além do coração de
Acompanhemos a evolução de suas visões: nas Minas, a Jesus, o coração de Maria. E certo que São João Eudes (1601-
ex-meretriz vira tão-somenté um coração vermelho cheio de luz 1680), já à época de Margarida Maria, fundara a "Sociedade do
e cercado com uma coroa de penetrantes espinhos. No Rio serão Coração da Mãe Admirável", sendo considerado pelos historia-
inicialmente três corações envoltos em uma auréola que brilhava dores como "pai, doutor e apóstolo do culto litúrgico dos Sagrados
como sol, fogo e cristal refletidos num espelho. Atente o leitor Corações". Contudo, a devoção ao Imaculado Coração de Maria
que, nos séculos passados, quando a luz artificial mais brilhante só mais tardiamente se espalharápelalgrejaUniversal, estando
era a chama de uma vela, o reflexo do sol incandescente 'espe- sempre atrelado ao culto primeiro: o Cor Christi. Em Portugal,
lhado em águas cristalinas, "reverberando" (isto é, brilhando, já em 1731 o jesuíta Hipólito Mor eira publica A Devoção e Culto
resplandecendo), representava o máximo de luz e brilho imagi- ao Sagrado Coração de Maria, e em, 1747, Alexandre António
náveis pelos cidadãos no "século das luzes". Portanto, o brilho de Lima, grande poeta lisboeta, edita Novena do Santíssimo
que Rosa viu circundando os corações representava a luminosi- Coração de Jesus, na qual se inclui o Obséquio do Precioso
dade mais ofuscante que os sentidos podiam perceber. Coração de Maria Santíssima Nossa Senhora.
•< Provavelmente já nesta época a visionária tinha ouvido a O culto aos três corações, Jesus-Maria-José, salvo erro, teve

318 319
sua primeira divulgação em língua portuguesa em 1733, através dobrar a má vontade do frade porteiro deste convento, que
da já citada obra Aljava dos Sagrados Atos, os Santíssimos • levou-me ao corredor do dormitório, no' primeiro andar, ao
Corações Soberanos Senhores Jesus, Maria e José, de autoria do abrir-se a porta da dita capela, deparei-me exatamente com a
Padre Manuel Consciência, seguida em 1738 pela Saudação
Angélica aos Santíssimos Corações de Jesus, Maria e José,
representação fidelíssima desta barroca visão da nossa biogra-
fada. Lá estava, guardada há mais de duzentos e trinta anos,
m
*

assinada pelo Padre Bernardo Fernandes Gaioso. um segredo que só agora temos a alegria de divulgar, e que só
Enquanto o Padre Malagrida propagava no Brasil tão-so- eu tinha conhecimento: a inspiradora desta rica capela, única
mente o culto ao coração de Jesus, Dom Manuel da Cruz reve- no Brasil, quiçá no mundo, foi nada menos que .nossa negra
la-se apaixonado pelos três corações, sendo portanto ele quem
primeiro divulgou tal devoção entre nós, a partir de 1752. Dois
africana, na sua época considerada pelos mesmos frades ocu-
p antes deste convento como a "Flor do Rio de Janeiro", mas que, m
anos depois, no Bio de Janeiro, RosaEgipcíaca torna-se a grande
mensageira dos soberanos corações, que, em visão há pouco
anos depois, caiu em desgraça, sendo presa pela Inquisição de
Lisboa e tendo sua memória apagada, até agora, de qualquer
o
relatada, "se lhe disse no entendimento que estes corações lembrança.
queriam casa para assistirem na Terra". A foto em. preto e branco de Vieira, reproduzida em 1937
Esta visão ocorreu no dia da Páscoa "e se lhe repetiu na no citado livro de Frei Basílio Rower, e a fotografia que fiz, em
missa por três dias ou mais, do que deu parte ao seu confessor, 1985, a cores, coincidem exatamente com a descrição existente
e ele, Frei Agostinho, cuidou em fabricar três corações com a nos manuscritos da Torre do Tombo: Frei Agostinho mandara
semelhança do que ela via, e os colocou em uma capela". Esta fabricar a escultura dos três corações igualzinho como sua filha
mesma informação é corroborada pelo capelão do recolhimento, espiritual descrevera tê-los visto aos pés do altar de Nossa
que acrescenta: Senhora da Conceição, também ela ainda hoje conservada na
igreja ílo convento.
"Enquanto fazia oração no altar de Nossa' Senhora da Sobre um altar recostado na parede, no meio do mesmo,'
Conceição, apareceram a Rosa, na mesma Senhora, três um rico resplendor de madeira ostenta, formando um triângulo,
corações, e teve inteligência dada por Deus que eram os os três corações: no lado direito, traspassado por uma seta, o de
corações de Jesus, Maria e José, pois estavam com as São José, saindo-lhe da aorta um lírio branco; no lado esquerdo,
insígnias: um com a coroa de espinhos e com uma cruz em o lado do coração, está o de Maria, também vermelho, cravado
cima; o outro atravessado com uma espada, e o outro com com uma espada de ouro, encimado por uma rosa; no vértice
uma seta. E, com a aprovação do bispo, fundou Frei Agos- deste imaginário triângulo, o coração'de Cristo, circundado por
tinho uma capela dos três corações no dormitório do Con-
*
uma coroa verde de espinhos, tendo em cima uma cruzinha
vento de Santo António." . doirada. *
Tal representação não poderia ser mais barroca: as asas
Diz Frei Basílio Rower, autor de O Convento de Santo de um querubim rechonchudo servem de base para o ostensório,
António do Rio de Janeiro (1937), que no seu claustro, no século sendo secundado por dois roliços serafins que, com suas mãozi-
XVIII, existiam cinco capelas; do Menino Jesus da Porciúncula, nhas, suspendem uma auréola de nuvens onde mais meia dúzia
de Nossa Senhora das Dores, do Ecce Homo, de São Joaquim e de querubins prestam reverente culto à "Trindade na Terra".
dos Três Corações. Nada mais informam os tratados a respeito Dentro desta auréola de nuvens, sobre o coração de Cristo, vê-se
desta capela conventual. o Divino Espírito Santo, dardejando setas de luz. No topo desta
Imagine o leitor minha emoção quando, após conseguir

320 321
representação fantástica, lá está o velho Deus Pai, barbudo e
com vasta cabeleira, tendo na mão o globo terrestre. Corno se
não bastassem tantas divindades reunidas numa única peça
sacra, no ápice do altar outro resplendor, com a mesma auréola
etérea e mais outros três corações com os mesmos símbolos, só
que ausentes as figuras aladas.
Nas primeiras décadas após as revelações feitas a Soeur
Marguerite Marie Alacoque, Roma titubeou em aprovar oficial-
mente tal devoção, receando que, com o tempo, outras partes do
corpo de Jesus se tornassem igualmente objeto de veneração.
Bento XIV (1740-1758) reprovava a devoção ao Coração de Jesus,
alegando a ilegitimidade desta festa, sua novidade, origem
suspeita fundada em visão particular de uma mulher e não
provada, assim como pelas consequências perigosas e erróneas
que dela poderiam seguir.
Malgrado estes justos e poderosos argumentos, em 1765,
Clemente XIII oficialmente aprova o culto cordícola, certamente
levando em conta sua incontrolável expansão por toda cristan-
dade. Aprova, porém, apenas e exclusivamente, a veneração aos
sagrados corações de Jesus e Maria, proibindo cultuar outros
corações.
Ao tempo em que Rosa teve estas visões, a Santa Sé
tolerava- a devoção cordícola, sem tê-la contudo oficializado.
Portanto, se até bispos, como o de Mariana, há pouco referido,
e teólogos, como os citados Padre Consciência e Padre Gaioso
propagavam a veneração aos três corações, incluindo o de São
José, não causou espécie ao bispo do Rio de Janeiro autorizar o
ex-provincial dos franciscanos que iniciasse no seu convento
carioca o culto à "Trindade na Terra". Talvez Frei Agostinho
tenha até relatado ao bispo Dom António a visão de sua dirigida,
ficando ambos admirados com. a semelhança e recorrência entre
o que ela vira e as visões da beata francesa, sem falar dos então
recentes escritos teológicos e litúrgicos sobre esta nova devoção.
Dom António do Desterro, malgrado sua p articular amizade com
Detalhe da capela dos Sagrados Corações no Con- o Marquês de Pombal, ambos declarados inimigos dos jesuítas
vento de Santo António do Rio de Janeiro, que reproduz e defensores do novo catecismo dos jansenistas de Montpellier,
a visão tida por Rosa Egipcíaca em 1754. todos opositores ferrenhos das devoções' sentimentalistas de

322 323
cunho passional, como era o culto aos Sagrados Corações, não de todas as suas revelações celestiais. O leitor ou leitora, inte-
obstante tais antecedentes o velho bispo revelava-se ele próprio ressado em aprofundar tal questão, consultará com proveito o
devoto cordícola. Data de sua chegada nesta diocese a constru- livro de Frei Francisco da Conceição, OFM, Diretor Místico
ção, na Igreja de São José, da primeira Irmandade do Coração Instruído ou Breve Resumo da Mística Teológica para Instrução
de Jesus no Rio de Janeiro, antes de 1752; numa Pastoral dos Diretores que Carecerem da Necessária, e Principalmente
dirigida às religiosas da Ajuda, posterior a 1761, implorava o dos Párocos que de Justiça e Obrigação do Ministério Devem Ser
antístite, "pelo Coração Santíssimo de Nosso Senhor Jesus e Saber Ser Diretores (1789).
Cristo e pelo Coração Puríssimo de Maria Santíssima", que as O próprio Dom António do Desterro, naja citada portaria
freiras se mantivessem fiéis ao cumprimento de sua santa d'e instituição da clausura das freiras da Ajuda, em 1750, às
regra, demonstrando ser discípulo de Santa Gertrudes no folhas 22, advertia:
devocionário, ambos pertencentes à Ordem do Patriarca São
Bento. "Mandamos estreitamente a todas as religiosas, pelo
C Os Sagrados Corações tornaram-se, nesses meados do mérito da santa obediência, que nas visitas canónicas, ou
l século XVIII, a grande moda devocional, irmanando bispos e fora delas, quando ocorrer, dêem parte de qualquer espírito
i beatas de toda a cristandade. MadreRosa Egipcíaca tornar-se-á particular que em alguma religiosa houver, como revéla-
^ sua principal propagandista entre nós. .. coes, visões, êxtases e arrebatamentos ou de outra maneira
/ Vimos/1 que esta sua última viagem mística ocorreu na • . fora dos comuns e ordinários caminhos, comunicando ao
VPáscoa, por volta de março-abril de 1754. prelado ou aos padres visitadores."

"Passados alguns dias, estando ela, ré, ouvindo missa Obediente, mas ansiosa, Rosa relata esta nova visão cujos
no dito altar de Nossa Senhora da Conceição, se lhe tornou corações formavam agora verdadeira constelação: seis ao todo.
a apresentar a mesma visão, porém com mais corações, Frei Agostinho
porque, além daqueles três, viu mais outros três: um da _
parte do que lhe dizia ser de Maria Santíssima, e abaixo "lhe manda então que pedisse a Deus lhe declarasse de
deste, no meio do qual estava uma chama ardendo, e da quem eram aqueles três corações que acresceram, ao que
outra parte, por baixo do de São José, estava outro coração obedeceu ela, ré, e, confessando-se, pôs-se em oração, pe-
atravessado de uma flor roxa, e por baixo de todos estes, dindo aquilo a Deusj porém se lhe não disse coisa alguma,
estava outro que não tinha divisa alguma, do que deuparte do que deu também parte ao mesmo seu confessor, que
ao dito seu confessor." tornou a mandar-lhe instasse a Deus que declarasse isto,
o que ela fez e teve uma voz no entendimento que lhe disse:
Dirigida prudente, Rosa sempre corria a transmitir tudo De que te admiras deveres os corações? O coração que tinha
que via ou ouvia, mercê dos céus, a seu pai espiritual: a depen- a chamano meio era o de Santana; o que estava atravessado
dência das santas e visionárias face a seus confessores era um com a flor roxa era o de São Joaquim, e sobre o último, lhe
dos fundamentos da ascese mística e recurso inteligentemente disse tal voz, que lhe não importasse o saber de quem era,
imposto por frades e presbíteros para não perder o controle total porque podia ser ou do Papa, ou de El-Rei Dom José, ou do
e supervisão de suas dirigidas. Também na igreja, as mulheres, seu confessor Frei Agostinho, ou o dela, depoente".
mesmo as esposas do Divino Mestre, deviam estar sujeitas ao
varão, submetendo a seus pais espirituais a aprovação ou não E conclui amisteriosavoz dando-lhe ura pito: "'Não queiras

324 325
saber mais do que eu te queria dizer!' Com o que ela, ré, ficou Santana e São Joaquim serem representados por uma chama e
aterrorizada, pedindo perdão a Deus de sua curiosidade." por uma flor roxa, respectivamente, é novidade inventada pela
A São João Evangelista, o discípulo que Jesus amava, o beata negra, posto que nem sequer o ex-provincial dos frades
Divino Mestre permitiu que naúltima ceiaficasse gostosamente menores solucionara tal charada. Na lista dos emblemas dos
recostado no seu imaculado peito; a Santa Margarida Maria santos, tal qualrevela o Dictionary ofSainís, de Donald Attwater
abriu a chaga do lado e revelou-lhe seu sagrado Coração; São (1965), não há referência a tais símbolos, nem tampouco no
João Eudes recebe a graça de contemplar o brilho dos divinos Oxford Dictionary ofSaints. Mistério!
corações de Jesus e Maria; Madre Rosa Egipcíaca é de todos a ;- Quanto ao sexto coração, situado na b ase deste conjunto,
mais afortunada: viu os sagrados corações não só da "Trindade desprovido de símbolos identificadores, os céus deixaram-no em
na Terra", mas de toda a Sagrada Família — Jesus, Maria sua aberto, conforme fora revelado à vidente: poderia ser o do
mãe, seu pai José, sua avó Ana e seu avô Joaquim. Soberano Pontífice, na época Bento XIV; o do Rei Dom José I; o
Diz o Padre Xota-Diabos que tais visões ocorreram às de seu frade confessor, ou o dela própria. Deus não tinha ainda
vésperas de se lançar a primeira pedra do recolhimento, e que, "decidido a quem premiar, e considerou impertinente tal curio-
nesta mesma pedra fundamental, "Frei Agostinho mandou es- sidade. "Quão grandes e impenetráveis são vossos juízos, Se-
culpir os três corações, e mais dois", tudo conforme a visão que nhor! Por isso as almas grosseiras caíram no erro!" (Livro da
a Madre Fundadora recebera dos céus. Destarte, o Parto passou Sabedoria, 17:1)
a ser a primeira casa pia não só do Rio de Janeiro, mas do Refietimos longamente sobre as motivações conscientes ou
universo, a ter como patronos os cinco corações: Jesus, Maria, inconscientes que teriam levado nossa beata a inventar o culto
José, Santana e São Joaquim. Em nossas pesquisas cordícolas, aos corações da S agrada Família. Inicialmente suspeitamos que
não encontramos outra referência a esta devoção quíntupla. Rosinha, a desafortunada menina africana, roubada por cruéis
Desde a Idade Média cultua-se o coração de Santo Agostinho caçadores de gado humano e separada de sua família tribal,
(daí uma das recolhidas desta comunidade ter sido chamada jogada num tumbeiro e criada como escrava em casas alheias,
Irmã Maria Joaquina do Coração de Santo Agostinho), e Santa teria se apegado à S agrada Família copio erzats, uma substitui-
Catarina Labouré, ern 1830, disse ter visto em três dias seguidos ção compensadora de sua infeliz orfandade. Mais ainda: prove-
o coração de São Vicente'de Paulo, branco, anunciando a paz; niente de uma sociedade tribal fortemente marcada pela matri-
vermelho claro, para renovar a caridade, e vermelho escuro linearidade, cuj a função organizativa da família matricentral se
"referindo-se à mudança de governo na França..." Quanto aos redefinirá, ampliando-se, na diáspora no Novo Mundo, Rosa
cinco corações, é invenção devocional de nossa visionária africa- teria então encontrado na Sagrada Família., pela descendência
na. Também é sua a identificação de alguns símbolos com certos matrilinear, a reprodução na esfera celestial do seu'protótipo
desses santos, tanto que nem. seu confessor soube decifrar o familiar jamais realizado na esfera terrestre. Com o tempo,
segredo desta segunda visão. Os corações de Maria e de Cristo, nossa vidente ampliará suas veleidades místicas: dirá ser ela
trespassados respectivamente por uma espada e pela coroa de própria, ora a esposa da Santíssima Trindade, ora filha de São
espinhos, são símbolos antiquíssimos da iconografia cristã. São Joaquim e Santana, irmã, portanto da Virgem Maria, e, como
José também sempre foi identificado com o ramo de lírio branco, ela, também mãe do Menino Jesus. Por hora é importante
pois, segundo a tradição dos evangelhos apócrifos, seu bastão atentar para sua devoção aos avós de Cristo. Não há indicação,
teria florido como garantia celestial de que sua esposa Maria na história da Igreja, de outra referência de culto aos corações
tinha engravidado por intermédio do Espírito Santo. Quanto a de Santana e São Joaquim. Até que ponto, indagamos inicial-

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mente, não seria também, esta uma influência da ideologia dirigida em pouco tempo exigiria que se cultuasse nova galáxia
parental africana, repetindo e refl.etin.do Rosa, no seu panteão de sagrados corações. Barreira, diga-se de passagem, que parece
místico, a mesma importância que na maioria das tribos da ter sido inspirada pelo Além, pois, por aquela mesma ocasião,
África Ocidental se dá à família extensa e ao avunculado? Esta
é uma pista que deixo aos antropólogos e etno-historiadores "estando Rosa no recolhimento com dez companheiras
africanistas aprofundar. Embora sem descartar as influências mais, e querendo com as mesmas fazer uma novena aos
africanas na sua invenção de culto aos corações dos avós de ditos corações, por mais diligência que fez para rezar as
Cristo, cumpre informar que foi exatamente nas primeiras estações, sempre a voz e o seu interior se inclinavam para
décadas do século XVIII que se aviva no ocidente cristão, y proferir o Miserere, até que, vencida esta inclinação, se
compris a América Portuguesa, a devoção a Santana e a São deixou levar dela, e logo no seuinterior sentiu que se rezava
Joaquim. A vidente cour anã se insere de cheio dentro da corrente o Miserere até o fim, sem que ela o soubesse".
mística do barroco latino, não apenas ibérico, mas latino mesmo,
pois foi através dos capuchinhos e franciscanos italianos que se No ano seguinte, 1755,
espalha mundo afora a devoção à avó de Cristo, cabendo igual-
mente a um. italiano jesuíta papel primordial na expansão do "quando ela, ré, está já com algumas recolhidas nas casas
culto cordícola em nossa terra, o já citado Padre Malagrida, ele da Igreja do Parto, estando fazendo a oração mental,
próprio devotíssimo de Santana e autor de uma biografia desta chegando àquele ponto em que se faz o Ato de Fé, crendo-se
santa matrona. Portanto, Madre Rosa Egipcíaca revela-se típica que se está na presença de Deus, prostrando-se todas e ela,
iluminada deste século barroco, inaugurando o culto aos cora- ré, viu uma iluminação muito clara no entendimento com
ções dos cinco membros da Sagrada Família, e divulgando, entre que viu distintamente e lhe figurou uma árvore muito
seus devotos de Minas e do Rio, a devoção privilegiada à avó de grossa de cor branca com folhas miúdas, por uma parte
Jesus, inventando inclusive um rosário especialmente a ela verdes e pela outra brancas, em cuja árvore estavam os
dedicado, conforme veremos mais adiante. Considerando a im- cinco corações que ela, depoente, tinha visto na missa, e
portância que Santana desempenhou na espiritualidade de em cima desta árvore estava uma figura coberta com um
nossa beata e no imaginário de nossos antepassados, transferi- véu branco, mas muito rico e luzido, que a encobria, e
mos para o capítulo dedicado à mística de Rosa a análise e andava pela tal árvore tocando nesses corações, e no fim
interpretação desta devoção, cujo significado sociológico para a dela estava aquele sexto coração que se lhe representou a
história da família brasileira não foi até agora explorado. ela, ré, no altar de Nossa Senhora na Igreja de Santo
Observe-se, contudo, que, malgrado ter Frei Agostinho António, porém com a diferença de que, nesta ocasião e nas
mandado esculpir os cinco corações na pedra angular do Reco- mais em que viu, não tinha divisa alguma, porém desta vez
lhimento do Parto, limitou-se, na capela que mandou construir se lhe representou no pé daquela árvore e estava com três
no corredor do dormitório de seu convento, aos corações da cravos nele pregados, e com uma seta trespassado, e deste
"Trindade na Terra". Se o culto aos três já era novidade, seria coração brotava aquela árvore em que estavam os cinco
temerário colocar no retábulo do altar uma constelação de cinco corações".
corações, demonstrando destarte a insegurança do frade em
adotar tal inovação devocional publicamente. Fez bem em assim Quando presa pelo Santo Ofício, em Lisboa, a vidente dá
-proceder, pois, se não pusesse freio nos devaneios místicos, sua versão um pouco diversa desta revelação, situando-a noutro

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ambiente, o que nos sugere que tenham sido dois êxtases dife- mais importante árvore da tradição cristã — além do Santo
rentes. Lenho onde o pecado de nossos primeiros pais foi lavado com o
sangue de Cristo — é a árvore de Jessé, que mostra no chão,
"Disse mais, que era um dia, em 1755, estando ela, ré, servindo de base, o velho Jessé, o pai de Davi, e dele brotando
em oração diante de um oratório que tinha na cela do dito
os antepassados dafamOiadeMariae José, até chegar em Cristo,
recolhimento, viu uma árvore branca e sobre ela um vulto saudado desde a Idade Média como "Fios de rodice Jesse",
como de menino de seis meses,, coberto com, um pano Rosa encurtou a genealogia divina: deste coração incógnito
branco, muito cândido, e, nos ramos da mesma, cinco brotavam os sagrados corações dos avós, pais e o próprio coração
corações e um abaixo nos pés, com os quais o dito vulto de Jesus. Coração privilegiado este, pois, além de fazer brotar e
brincava ficando muito mais cândido quando os largava da ' sustentar a família extensa de Jesus Cristo, ostentava os sím-
mão e se punha em cima de um deles, que era grande, com bolos de sua paixão, os três cravos e a seta. Aliás, como é sabido,
coroa de espinhos." foi São Luiz, Rei de França (1214-1270), quem trouxe para a
Sainte-Chapelle, entre outras relíquias, os cravos usados na
A árvore, figura tão rica de significados simbólicos na crucificação do Messias; daí sua imagem muitas vezes ser rep-
história humana, resgatada inclusive pela moderna psicologia resentada segurando um coração perfurado pelos três cravos, o
através do teste de Koch, gozou sempre de lugar destacado na mesmo símbolo utilizado também por São Paulo da Cruz (1694-
mitologiabíbh'ca, desde que o Criador plantouno meio do paraíso 1775) no hábito da OrdemPassionista. Como terceiro francisca-
terrestre "a árvore da vida e da ciência do bem e do mal" (Gên. no que era, provavelmente Rosa devia ter visto a imagem do
2:9).Também alguns profetas hebreus, comoDaniel, igualmente
santo Rei na capela da Ordem Franciscana da Penitência,
a Rosa, deportado de sua terra natal, utilizaram a mesma
adjunta ao templo de Santo António, daí incluir mais este
simbologia vegetal: 'Tais eram as visões do meu espírito que
símbolo iconográfico na sua constelação cordícola. Tal visão
tive em sonhos: Eu via uma árvore de alto porte. Esta árvore
causou profundaimpressão nabeata africana: "Esta vista trouxe
cresceu, era vigorosa. O cimo tocava o céu, era avistada até nos
ela firmemente na lembrança, com clareza de entendimento, por
confins da terra. A folhagem, era bela, e seus abundantes frutos
três dias e três noites, de tal sorte que sempre lhe parecia que
forneciam a todos o que comer" (Dan. 4:7-9).
a estava vendo, e neste tempo foi dar parte disto ao seu confes-
Rosa descreve mais árvores em suas visões, embora esta
sor." Quem sabe não teriaRosa visto alguma estampa do coração
última seja das mais prenhes de simbologia, pois, esta é a. árvore
de Jesus de autoria do famoso gravador Joaquim Carneiro da
dos Sagrados Corações, cuja raiz brota exatamente daquele
Silva, que viveu no Rio de Janeiro de 1739 a 1756, e que em sua
sexto misterioso coração que poderia ser do Papa, do Rei, de seu coleção iconográfica incluem-se os sagrados corações cercados
confessor ou dela própria. Essa imagem, uma árvore carregada
com.os símbolos da paixão?
de frutos místicos, foi muito cara à iconografia cristã, existindo Frei Agostinho tinha se entusiasmado com as duas visões
inclusive sua representação na entrada do Mosteiro de São anteriores, mandando inclusive esculpir napedra e no ostensório
Bento do Rio de Janeiro, local certamente visitado diversas vezes os sacros corações. Agora, contudo, reage negativamente contra
por nossa beata. John Luccock, que admirou esta pintura na esta nova ilusão: deu-se conta de que algo estava errado, pois,
primeira década do oitocentos, diz que representava "a árvore se o sexto coração era de um mortal, mesmo que fosse o do Papa,
da vida, redonda e frondosa, com raízes sólidas, tronco vigoroso não era possível, dentro da lógica divina, que os corações da
e galhos cobertos de folhagem. Contém a um tempo flores e sagrada família brotassem de um. coração pecador. De Maria
frutos, mostrando um monge sentado no meio de uma flor". A

330 331
Santíssimaj concebida imaculada, virgem mantida antes, du- Notas
rante e depois do parto, sim, tanto que é saudada com o hino
"Flor da raiz de Jessé", mas de nenhum outro mortal seria
possível atribuir tal geração cordícola, muito menos de humanos 1. Bougaud, E. Histoire de Ia Bienheureuse Marguerite-Marie Alaco-
pertencentes a genealogias contemporâneas a Dom José I, que. Paris: Poussiegue, 1880, p. 239.
No seu íntimo, Rosa não tinha dúvida, e somente por 2. Vekemans, Rober. Cor Christi. Bogotá: Instituto Internacional dei
Corazon de Jesus, 1980.
humildade, ou melhor, por cautela, não proclamava claramente 3. Alacoque, Margarida Maria. Autobiografia. São Paulo: Edições
o que era óbvio: aquele incógnito coração era o dela própria, Loyola, 1985, p. 42.
escolhida por Jesus para ser sua nova mãe e futura redentora 4. Abrancb.es, Padre J. S. O Coração de Jesus. Lisboa: Tipografia do
da humanidade. O que para ela era pacífico, posto receber tal Anuário Comercial, 1907.
privilégio divino não por seus merecimentos, mas por livre 5. Leite, Padre Serafim. Op. cit., 1943, v. IV, p. 242.
escolha, de Deus — para o padre Xota-Diabos, uma verdade 6. Trindade, Monsenhor Raimundo. Op. cit., 1953.
inquestionável; para Frei Agostinho, menos crédulo, era uma 7. ANTT, Inquisição de Lisboa, Processo n2 8.059 (1742).
tentação diabólica, tanto que, ouvindo esta última revelação, "a 8. Georges, R. P. SaintJean Eudes. Paris: Bdition LetbieHeux, 1936,
mandou para a igreja de seu convento e ali lhe fez fazer a pp. 237-277.
protestação de fé, e a exorcizou, pondo muitos preceitos ao 9. Marcniniszyn, Frei Albano. Convento de Santo António do Rio de
Janeiro. Separata da Revista VidaFranciscana, n, 48, anoLII, 1982,
demónio para que, se aquilo era ilusão sua, a desvanecesse, e pp. 8-9.
lhe disse que não desse ascensão ao que via". Por esta época, 10. Anónimo, Do Coração de Jesus. Lisboa: Oficina António Róis Ga-
Rosa perdera já o controle sobre seu imaginário, tanto que lhardo, 1802.
"sempre se lhe conservava no entendimento aquela visão muito 11. Pires, Cónego Heliodoro. Uma Teologia Jansenista no Brasil. Re-
clara e só se ocultou passados três dias e três noites, e nunca vista Eclesiástica Brasileira, v. 8,1948, pp. 327-340.
mais lhe apareceram os tais corações". Segundo declarou uma 12. Arquivo da Cúria do Rio de Janeiro, Registro de Portarias, Livro II
sua devota, Maria Tecla de Jesus, "o sexto coração era de uma (1761-1779), fl. 5.
criatura arrependida"— abom entendedor, meiapalavrabasta! 13. Bastide, Roger, Lês Ameriques Noires. Paris: Payot, 1967.
Não obstante tal declaração final, o certo é que por diversas 14. Kocn, K. The Tree Test. New York: Grune, 1952.
vezes os sagrados corações vão interferir na vida desta recolhida, 15. Luccock, J. Op. cit., 1975, p. 45.
que a partir de 1754 torna-se arauta e comandante-chefe de uma 16. Biblioteca Nacional de Lisboa, Colecão de Registros de Santos,
cruzada cujo objetivo era preparar a vinda destes riquíssimos Seção de Iconografia,
visitantes: "já. em campo vêm os santíssimos corações, com o
estandarte de seu divino braço aberto, afugentando os nossos
inimigos contrários à alma", dizia em carta de 16 de setembro
de 1755, pouco depois, portanto, da referida visão arbórea.

332 333
• t ,

' ;

14
Reflexos do Terremoto de Lisboa
na América Portuguesa

Uma catástrofe meteorológica ocorrida' a dois meses de


caravela do Brasil teve consequências cruciais não só na vida de
Eosà Egipcíaca, como de toda a América Portuguesa. Kefiro-me
ao terremoto de Lisboa. Deixemos por uns tempos a América
Portuguesa, e vejamos o que sucedia na capital do Reino.
Na manhã de 1a de novembro de 1755, dia de Todos os
Santos, toda a gente de Lisboa se acotovelava dentro das igrej as,
dia de missa obrigatória e dos mais festivos do calendário
litúrgico. No intróito da missa, o celebrante rezava: "Alegremo-
.. C<LEÍ;.:.^La_
nos todos no Senhor festejando este dia em honra de todos os
santos; por sua solenidade se regozijam os anjos e glorificam o
Filho de Deus." À Epístola, temerosos, os fiéis ouviam o capítulo
sétimo do Apocalipse: "Naqueles dias, eu, João, vi outro anjo que
subia do Oriente tendo ria mão o selo de Deus vivo e clamando
em alta voz aos quatro anjos, dizendo: 'Não façais mal à. terra,
nem ao mar, nem às árvores/" Desobedientes à ordem divina,
neste dia, l2 de novembro de 1755, os anjos que volateavam sobre
Lisboa agiram como demónios:

"De repente, a terra bruscamente moveu-se. Os mari-


nheiros que estavam no estuário do Tejo viram Lisboa com
os seus palácios, as suas torres, as suas flechas, as suas
cúpulas, mover-se como uma seara agitadapelo vento. Nas
ruas, as parelhas, os telheiros, as bancas voltaram-se de
1 pernas ao ar. As pessoas eram atiradas para o chão. Nas
casas, partiam-se os candeeiros, caíam os móveis, as pare-
des rachavam, os tetos se abatiam. E nas igrejas, os púlpi-
tos cediam sob o peso dos órgãos despedaçados, os vitrais
estilhaçavam-se, os portões de grades abatiam. Do solo

335
estalado esfuziavam feixes de vapor e enxofre. Durante equidade suprema senão luto e tormento? Em Lisboa du-
seis minutos, a cidade oscilou nos seus alicerces, dilacerou- plicavam-se os delitos: estava cheia de delícias e obsceni-
se e vacilou. Lá fora a multidão não conseguia dispersar, dades, roubos, violências, soberba, ambição, por isto lhe
prisioneira do entulho quebloqueava as ruas. Subitamente foram também duplicados os castigos. Oh! Babilónia de
levantou-se um vento furioso que agitou os turbilhões de Portugal! Quantas vezes se avisou a Misericórdia Divina
poeira acre, dobrou e avivou as chamas. As pessoas corre- nos clamores do púlpito e dos confessionários! Bem pouco
ram para o Tejo: o mar de Palha, ainda há pouco tão liso e tempo há que uma alma profética anunciou e te deu o aviso
calmo, parecia ferver como chumbo derretido. Transborda- [dos castigos] no Convento do Louriçal... E tu não quiseste
va, lançava os barcos contra os marcos de pedra do Terreiro crer a uma serva de Deus, que em tudo se informava com
do Paço, subia e assaltava as ruas baixas. Depois pareceu a sua divina vontade. Duas coisas são para se notar nas
aspirado por um sorvedouro gigantesco que lhe secava as relações do terremoto: uma, que não ficasse templo nem
margens, e esta estranha ressaca punha a descoberto os tribunal inteiro, outra, que não caísse nenhuma casa da-
fundos de vasa infecta, um betume onde gorgolejavam, quela rua que antes se chamava das meretrizes. E possível,
espessos turbilhões e derramavam fatos sulfurosos, lín- Senhor, que se compadeça a vossa justiça de uns lupanares
guas de uma chama azulada. Os barcos chocavam-se uns tão sórdidos e que se irrite contra aqueles edifícios que se
contra os outros e rebentavam como nozes. Este sorvedouro instituíram para vosso louvor e para o governo público,
negro, aberto como uma chaga infecta, foi visível durante ficando em pé as casas da dissolução e do escândalo? Não
um instante que ninguém pôde contar, tal era seu fasci- foram as lascívias de Lisboa as primeiras que se repre-
nante horror. Mas já a água, erguida com. um prolongado sentaram à vossa cólerapara se lhe fuhnin ar o raio? Quanto
sibilo de asfixia, voltava a cair e rebentar na mesma vaga mais me dilato neste pensamento, mais me confunde e pode
gigantesca. Avançou com a velocidade dum cavalo a galope, aqui menos a consideração que o assombro."
rebentou os cais, minou as fachadas, rolou na sua torrente,
de destroços afogados, vindo cobrir com a sua espuma o Tal sinistro, e a contraditória irradiação da destruição,
Rossio onde tudo estava em chamas." poupando os templos do pecado e arrasando os da virtude, serviu
de inspiração até ao agnóstico Voltaire, que, em seu pouco
Lisboa se tornara o Apocalipse. conhecido Poème sur lê Desastre de Lisbonne, ou Examen de cet
Quarenta mil mortos! O terremoto foi tão forte, que fez-se Axiome: ToutestBien, mais uma vez descarta o dogma da Divina
sentir até na Suíça. Como se disse na época, "o que não ruiu, Providência: "Comment concevoir un Dieu, Ia bonté même, qui
ardeu", pois um incêndio devorador destruiu o que sobrara de . prodigua sés biens à sés enfants qu'il aime, et qui versa sur eux
pé. O Padre Francisco Pina de Mello, em sermão pregado na lês maux àpleines mains1?"
Capela do Hospital Real de Monte Mor, O Velho, no ano seguinte O terrível sismo de Lisboa dividiu os espíritos^^tigando a
a este sinistro comparava Lisboa à Babilónia, e, como todos, imaginação dos jnjsticos. De início, o próprio Rei Dom José I
estava perplexo e atónito com a violência do castigo divino que, interpretou essa desgraça como a maioria da população^castigo
aos olhos dos-mortais, mostrava-se ilógico: divino! Tanto que na primeira carta que el-Rei enviou a todos
os governadores da América, datada de 11 de fevereiro de 1756,
"Erapreciso que avingança correspondesse à culpa, pois portanto cem dias após a destruição da capital do Reino, dizia:
assim procede a justiça de Deus, e como Lisboa se jactava "Havendo a Onipotência Divina avisado a estes reinos no dia l9
de suas mesmas dissoluções, o que podia esperar-se da

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de novembro de 1755 com um terremoto tão funesto que em 5 reserva e suspeita pelo poderoso primeiro ministro de Dom José
minutos de tempo arruinou templos, palácios, tribunais, alfân- I, o Marquês de Pombal. Malagrida assina logo em 1756 o
degas e a maior parte dos edifícios de Lisboa, perecendo um opúsculo Juízo da Verdadeira Causa do Terremoto que Padeceu
grande número de pessoas de todos os estados..." Comunica a a Corte de Lisboa, obra que, embora contando com as devidas
todos os fiéis vassalos que, além do grande sentimento, louvem licenças do Rei e do Santo Ofício, causou a maior irritação no
àDivindade "por ter suspendido o castigo com quepuderater-iios racionalista marquês, que desterrou o velho jesuíta para Setú-
aniquilado", em tempo que pede subsídios aos colonos para a bal, a 82 km da Corte, em castigo por acusar sua nova política
reedificação da capital do Reino. de modernização do Reino como a principal responsável pelo
~~ "Vários ésctrtoreT3j~3ac'ros e leigos, dão suas interpretações terrível castigo divinal.
para este terrível sismo, considerado pelos estudiosos como dos Quando el-Rei oficiou aos governadores do Brasil o trágico
piores que se tem notícia na história humana. Frei Francisco de cataclismo, essa aterradora notícia já tinha se espalhado pela
Santo Alberto, OFM, no opúsculo Estragos do Terremoto (1757), Colónia, tanto que aos 20 de março de 1756, Rosa escrevia ao
analisa as causas naturais e mor ais deste acidente; João António Rio das Mortes dizendo:
Bezerra e Lima, na Declamação Sagrada na Ruína de Lisboa
(1757), detém-se mais na interpretação religiosa deste fenóme- "Eu bem vejo e ouço aquela trombeta divina que pelas
no. Dentre esses autores, destacou-se uma filha espiritual do Minas andava, umas vezes tocando, outras falando. Já vai
Padre Gabriel Malagrida, Irmã Mariana Inácia de São Miguel, chegando agora a nova e se cumprir a Profecia: o Rio das
religiosa franciscana do Convento de Santana de Lisboa, então Mortes e Mariana serão castigados pelo Visitador! O Reino
com 50 anos de idade. Na Torre do Tombo localizamos as oitenta de Portugal, que é nossa cabeça, já está castigado, e a
folhas de seu manuscrito: "Vozes da verdade que manifestam batalha vai da Turquia até Lisboa e às partes da América."
aos portugueses os motivos do terremoto que destruiu sua corte,
declarando-lhes os meios mais convincentes e sólidos que se E completa citando uma das lições de seu confessor: "Como
devem tomar para a sua reedificação, escrito pelo vil instrumen- diz Frei Agostinho, quando vires as barbas de teu vizinho arder,
to da mais indigna criatura, a Madre Soror Joana Maria Angé- bota as tuas de molho! Que tenhamos o santo temor de não
lica Medugis, religiosa professa da Ordem Seráfica, dedicados suceder aqui na América o mesmo que na corte!"
à Rainha dos Anjos em sua Conceição Imaculada". Três dias depois desta carta, certamente para aproveitar
Discípula do Padre Malagrida, essa freirinha capucha, o mesmo portador, o PadreXota-Diabos escreve à mesma família
dizendo-se inspirada por São João Batista, atribuiu a ruína de Arvelos descrevendo o clima, de pavor criado pelo terremoto na
Lisboa à ambição de seus moradores, especialmente ao comércio população do Rio de Janeiro:
com os estrangeiros, "pestilento veneno", culpando também o
luxo, sobretudo das mulheres, que atiçaram a ira divina, dei- "Nesta cidade está toda a gente com muito susto, temen-
xando de usar os antigos mantos que as cobriam, cabendo do o castigo. Se fizeram muitas procissões, preces e peni-
também às óperas e bailes ter provocado o terrível chicote de tências. Os sinais do castigo já têm. aparecido de noite e de
Deus.6 dia. O castigo é certo e se Deus não ouvir alguns justos...
O manuscrito desta freira seguia a mesma inspiração de O Rio das Mortes e as Gerais estão muito ameaçados do
seu pai espiritual, o cordícola Malagrida, amigo e protegido de grande castigo, com certeza certa do que foi em Lisboa. Até
Dora João V.e de Dona Mariana de Áustria, mas olhado com o Rei e todas as pessoas reais estão abarracados no campo
porque em Lisboa só ficou ruína. Isto tudo pelos nossos

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pecados. E nós, muito mais, pelos avisos que já temos tido nossas, a ira de Deus, e pela intercessão de todos os santos,
de Deus, Esta hora é de penitência e não de regalo. Depois suspenda qualquer castigo que pelos nossos tão execrandos
não me digam que eu os enganei!" e abomináveis pecados nos queria dar."
De fato, tanto nas Minas, quanto no Rio e nas demais Neste mesmo ano, 1756, mais três cartas de Rosa e do
capitanias, o pavor tomou conta dos colonos. Passageiros chega- capelão do recolhimento fornecem informações sobre o clima de
dos recentemente do Reino, testemunhas da tragédia sísmica, tensão e as atividades desenvolvidas por ambos na instalação
davam notícia pormenorizada da desolação em que ficou a bela do Parto.
Lisboa. Dentre os brasileiros que sofreram o terremoto estava "Não há nada de bom que não venha de. Deus!", escrevia o
nossa já conhecida Madre Jacinta de São José, a carioca funda- Padre Francisco, a 1a de junho de 1756, afiançando que, "se não
dora do Convento Carmelita de Santa Teresa, que, sã e salva, houver reforma nas vidas, há de haver muitos castigos, e não
retornou ao Rio de Janeiro aos 17 de abril de 1756, sábado de há de tardar muito tempo. Estejamos como quem. está com a
Aleluia. Os bispos foram os primeiros a mobilizar os fiéis para ovelhanamãoparadar contas a Deus!" E completa: "Não escrevo
aplacar a ira divina e inspirar sincero arrependimento nos mais aos amigos porque não tenho tempo. Não me deixam
pecadores. De Mariana escrevia Dom Manuel da Cruz a seu nenhum instante descansar, nem de noite, assistindo doentes,
amigo Malagrida, botando mais fogo na fogueira: "O terremoto porque nesta cidade há muitos que os médicos os não conhecem
ajusto castigo de Deus, sobretudo por causa das dissipações da e assim vão morrendo sem saber de quê. E com esta lida, sempre
Corte!' Baixando três pastorais, a partir de 22 de fevereiro de ando doente." O Xota-Diabos com certeza referia-se aos doentes
1756, mobilizou seus diocesanos para que, através de preces do espírito, os endiabrados ou sofredores de encosto do maligno.
públicas e privadas, pedissem aos Céus que tratassem a Terra Em outras cartas, confirmará que até nas altas horas da ma-
mais com misericórdia do que com justiça, imitando todos os drugada era chamado para enxotar o Coisa Ruim, tarefa árdua
súditos a família real que fazia exercícios espirituais em peni- e por demais esgotante para um velho de 62 anos, agravado de
tência pela "Babilónia de vícios" em que se tinha transformado diversos achaques. Humilde, conclui a carta dizendo: "se Deus
o Reino. por misericórdia não me perdoar, temo o inferno. Deus nos
No Rio de Janeiro, Dom António do Desterro, através de defenda e guarde!"
Edital, ordena a realização, de procissões e preces públicas Por que um sacerdote devotado dia e noite ao serviço dos
durante três dias seguidos, em todas as igrejas da cidade, necessitados, exímio na difícil arte de expulsar Lúcifer, confes-
concedendo quarenta dias de indulgências a quem delas parti- sava temer o inferno, caso Deus não o perdoasse? Que pecados
cipasse, cerimónias que se repetiram anos seguidos, sempre a ocultos teria cometido, que o deixavam tão inseguro? Em outra
l2 de novembro, data da fatídica catástrofe. Eis suas palavras: carta, dois meses passados, novamente o Padre Francisco re-
lembra as sequelas do terremoto: "a espada da justiça está
"Estando próxima a lembrança do dia em que Nosso embainhada e, depois dela, há ainda cinco anos de prazo, se não
Senhor, desembainhando a espada de sua divina justiça, houver reforma. Em tudo seja o Senhor servido".
descarregou o golpe sobre Lisboa, cabeça do Reino, lançan- Rosa, por seu turno, sempre utilizando a Regente Maria
do-a por terra com aquele lamentável terremoto que todos Teresa como escriba, assim se expressava:
souberam, e de cujos estragos funestos só a lembrança nos
, faz ainda tremer e recear que volte também sobre nós "Que os sagrados Corações de Jesus, Maria, José, San-
aquela mesma espada... que com repetidas deprecaçÕes tana e São Joaquim sejam conosco! Eu vou passando como

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Deus quer. Deus mandou o seu Menino para nos salvar e demónio, a voz lhe disse que também com Deus se fazia
se fez homem, daí nada lhe será dificultoso afugentar estes pacto, e logo lhe ensinou o modo como era, e se contém nas
três bichos [o mundo, o diabo e a carne] de sua fazenda [o seguintes palavras: "Eu, como criatura remida com o san-
recolhimento]. Cobro confiança com os divinos auxílios de gue de meu Senhor Jesus Cristo, vos entrego a minha alma
meu Senhor." com suas três potências, e o meu corpo com seus cinco
sentidos, minha vida e meus desejos e afetos, minha fé e
Repete então o mesmo recado já anunciado em carta do esperança, minha vontade para que nela se cumpra a de
ano anterior: que não só Faustina Maria, a segunda filha do meu Senhor Jesus Cristo. Enquanto viva for neste mundo,
casa], Arvelos, mas também Francisca Tomásia do Sacramento, não quero outros amores mais que o de meu Deus, para
a mais caçula, eram chamadas por Frei Agostinho para ingres- que a minha alma expire e respire em vós. Livrai-me do
sarem no Recolhimento do Parto. Demónio e de todas as suas tragédias. Amém.' Esta prática
Particularmente rico para Rosa em visões beatíficas foi o lhe ficou impressa na memória, e foi logo participar ao dito
ano de 1756. O generalizado terror causado pelo terremoto de seu padre para que ele lhe permitisse fazer o pacto que a
Lisboa e o medo da cólera divina devem, ter atiçado sua imagi- dita voz lhe pedia. E o mesmo padre, para experimentar a
nação delirante. Em seus depoimentos prestados na Câmara verdade do sucesso, tomando a estola a exorcismou dizendo
Eclesiástica do Rio de Janeiro, ratificados posteriormente em que, se a voz, sem embargo do exorcismo, tornasse a falar,
Lisboa, encontramos referência a alucinações ocorridas nas era verdadeira, e que ele, padre, como ela, ré, faria o dito
seguintes festas litúrgicas: pacto. E, como a voz continuasse, o padre capacitou [ser
verdade], ainda que não ouvia, e só por ela, ré, lho dizer. E
. 28 de maio: Ascensão de Jesus Cristo ambos fizeram o pacto na forma referida, tomando por
. 6 de agosto: Transfiguração do Senhor testemunha Nossa Senhora e os mais santos".
. 12 de agosto: Santa Clara de Assis
. 4 de setembro: Santa Rosa de Viterbo Pelo visto, além de Rosa, outras beatas brasileiras, no
, 6 de outubro: São Pedro de Alcântara século XVIII, também vincularam seuitinerário místico através
de pactos espirituais. A fundadora do Recolhimento de Nossa
Aprimeira destas revelações ocorreuno dia em que a Santa Senhora da Luz, de São Paulo, onde funciona atualmente o
Madre Igreja comemora a subida de Cristo aos céus, quarenta Museu de Arte Sacra da avenida Tiradentes, manuscreveuuma
dias após sua ressurreição. Foi no dia 28 de maio. Disse Rosa "cédula irrevogável", onde declarava: "de todo coração, de minha
que própria e livre vontade, dou por meu Deus, ao padre confessor
Frei António de Santana, todos os atos das virtudes interiorea
"em várias ocasiões em que comungava, sentia a hóstia e todo o fruto interior e união de minha alma com Deus, neste
como fogo que lhe queimava a boca, especialmente no dia dia de São Miguel de 1772". Por sua vez, o confessor agraciado
da Ascensão do Senhor, quando, recebendo amesma hóstia, com tão inefáveis dons, repetia o mesmo pacto, prometendo à
lhe parecia uma brasa, deixando-lhe a garganta e boca IrmãHelena do Espírito Santo, "minhafilha espiritual, lembrar-
escaldadas, como ela, ré, mostrou ao seu confessor. E, me dela no Santo Sacrifício da Missa até a minha morte". Já
estando na hora da oração deste dia, ouviu uma voz no em pleno século XX, nosso mais forte candidato à canonização,
entendimento ou no coração que lhe dizia que fizessem um o Padre João Batista Réus, jesuíta residente no Rio Grande do
pacto. È, repugnando ela, ré, por entender ser coisa do

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Sul, retoma esta tradição ascética, redigindo o seguinte pacto: de água-benta e o latinório dos exorcismes, consentiram, no
"Cada pulsação de meu coração, cada respiração, todo movimen- contrato. O texto do pacto revela os progressos da cultura
to mínimo da vista ou de outra parte do corpo, sirvam para vos teológica da africana, que já sabe classificar as três potências da
louvar, meu Redentor Jesus Cristo..." alma, que, segundo o Doutor Angélico, Sajito Tomás de Aquino,
A sofisticação teológica e a criatividade mística de nossa são o entendimento, a vontade e a memória. Sabe também que
convertida crescem dia-a-dia. Como Santa Margarida Maria e o corpo ostenta cinco sentidos e já conhece as virtudes teologais
outros santos, também Rosa sentirá dentro de si fagulhas do — fé, esperança e caridade. O convívio anos afio com sacerdotes,
fogo divino, queimando-a, ao receber a sagrada eucaristia. Os a orientação espiritual quase diária com seu "Provincial Velho",
primeiros discípulos de Cristo receberam o Espírito Santo no os milhares de sermões ouvidos em Minas Gerais e na cidade de
dia de Pentescostes sob a forma de línguas de fogo; a negra São Sebastião, as leituras devocionais ouvidas no coro do reco-
courana ficará com sua língua e entranhas incendiadas pelas lhimento, os livros de mestres espirituais pelos quais disse, em
hóstia divina, sentindo a mesma serísação de quando, para carta já citada, que se orientava, tudo armazenado no entendi-
provar ser realmente espiritada, nas Gerais, suportara por cinco mento e memória da recolhida aflorava quando a luz divina
minutos a chama de uma vela sob sua língua. Também trilhando arrebatava-apelos domínios do inconsciente. A cultura, erudição
o mesmo caminho místico de outros bem-aventurados, Rosa e memória religiosas da ex-escrava são fantásticas!
Egipcíaca, em vez de realizar o casamento místico com o Divino Passados pouco mais de dois meses, outra visão, cuja
Esposo, tal qual fizeram. Santa Catarina de Sena, Verónica semelhança com a anterior permite-nos suspeitar que Rosa se
Giuliani, Rosa de Lima, entre muitas outras, será agraciada com confundira nas datas e nos detalhes ao confessar no Rio e em
o pacto. De início a visionária suspeitou tratar-se de uma cilada Lisboa, passados dois anos entre a primeira e a segunda sessão
a mais do Tentador, pois naquela época, muitas pessoas acredi- de perguntas. Esta revelação, segundo depôs no Juízo Eclesiás-
tavam que, fazendo "pacto com o demónio", conseguiriam suces- tico ordenado por Dom António do Desterro, teria ocorrido no
so em suas vidas. Nos arquivos da Inquisição são conservados dia em que a Igreja comemora a Transfiguração do Senhor.
vários exemplares destes documentos diabólicos, e, para que o Conforme ensinam os Evangelhos, foi no Monte Tabor, a 602
leitor sinta melhor o espanto de nossa visionária, transcrevemos metros acima do vale de Nazaré, que Cristo, perante seus quatro
o texto de um destes pactos satânicos: discípulos mais íntimos, se transfigurou: "seurosto brilhou como
o sol, suas vestes tornaram-se resplandecentes de brancura. E
"Por este documento, por mim feito e assinado, digo eu, eis que apareceram Moisés e Elias, conversando com Ele... E
Geraldo Nobre Ferreira, que é verdade que darei o que me ' umanuvemluminosa os envolveu, fazendo-se ouvir uma voz que
pedir o Diabo, se me quiser servir, com a condição de que dizia: Eis o meu filho muito amado, em quem pus toda minha
hoje há de estar em meu poder, pronto para me servir com afeição: ouvi-o!" (Mateus, 17:2-3,5)
que eu quiser e ir buscar o que eu lhe pedir, e há de andar Foi neste dia tão prenhe de sobrenaturalidade que,
em figura de um negro por toda a parte, e isto há de ser
até o jantar, quando ele há de v i r . " . , . . . "indo Rosa para a Igreja de Santo António e não havendo
pessoa alguma no caminho, ouviu junto de si uma voz que
Escusado dizer que o Diabo não apareceu. lhe disse: 'Adeus, amiga, companheira! Dás-me avidapara
Tanto Rosa quanto seu confessor duvidaram, do insólito eu viver em ti e tu em mim, para eu participar destas tuas
pedido ouvido na revelação, mas, como a misteriosa voz, só infâmias e tu participares dos frutos de minha sagrada
ouvida péla negra, insistisse na ideia, mesmo após o chuvisco

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"\.
morte e paixão.5 Ficou ela, ré, toda perturbada e assustada para a vida muitos mortos, dom especioso que com o tempo
e, chegando defronte de uma cruz, repetiu a dita voz o ser-lhe-á ainda aumentado. Perante tamanha grandeza mística,
mesmo, e por todo o caminho ouvia a dita voz, que também qualquer confessor prudente teria agido como o velho francisca-
lhe pediu a vida para dar a muitos mortos e para fazer no: essa troca parecia mais coisa do Maligno do que de Deus,
justiça a muitos réus de delitos. Chegando à igreja, para pois só a Jesus foi conferido o poder de resgatar os mortos do
se defender da dita voz, a que não dava assenso, aspergiu poder das trevas e guindá-los para o reino da luz: ao descer aos
água henta sobre si, e, comunicando o referido a seu infernos, o Ressuscitado libertou quantos penavam sob o poder
confessor, este lhe disse que era o Demónio que a tentava, de Satanás. Com este contrato d'alma, a beata africana repete
e, pedindo a estola, a exorcismou; porém, acabado o exor- a façanha do Filho de Deus. Feitos os exorcismes, em vez de
cismo, tornou a sobredita voz a repetir as mesmas palavras calar-se a revelação, repetiu as mesmas palavras, caindo a
acima referidas, e ela, ré, posta de joelhos com o dito seu visionária desacordada enquanto pedia a proteção da Rainha
confessor, e, rez ando S alve-Rainhas, uma ladainha a Nossa dos Anjos. Restabelecendo-se, foi informada por Frei Agostinho
Senhora para que lhe inspirasse que voz era aquela que que tinham selado um "contrato espiritual", incluindo o nome
.lhe fazia a dita petição, às palavras, 'nos mostrai Jesus', um do outro em todas as orações que doravante fizessem.
caiu ela com desacordo, e restituindo-se se achou em que Embora tal contrato tenha sido ornais solene, a vidente j á tinha
o dito padre seu confessor lhe disse que fizesse um contrato firmado semelhante intercâmbio de orações com outros devotos:
espiritual, que era participarem um do outro nas orações com o Padre José Ferreira Carvalho, com o seu Padre Xota-Dia-
que cada um fizesse, obedecendo àquela voz no que pedia". "bos, com seu companheiro António Tavares lá do Rio dasMortes,
tendo em várias de suas cartas lembrado a tais compadres o
Também no Rio nossa africana carregava o estigma de ser compromisso assumido.
feiticeira. Endemoniada, falsa ou verdadeira, disto, sim, po- Mal transcorre uma semana desta revelação, a 12 de
diam-na chamar. De feiticeira, contudo, nada podia incriminá- agosto, dia de Santa Clara, fundadora com São Francisco da
la, pois nenhuma testemunha referiu tê-la visto fazer qualquer Ordem das Irmãs Menores, outro colóquio espiritual transporta
sortilégio que disso pudesse inculpá-laformalouindiretamente. Rosa para o Além:
Talvez por ser negra e endiabrada, os cariocas logo a identifica-
ram com as artes diabólicas, afinal, no imaginário popular, negra "estando ela, depoente, no Recolhimento do Parto, a horas
é a cor do Diabo. Associação, diga-se de passagem, que nem -
da madrugada, estando ainda na cama, mas acordada e
mesmo isentava seu diretor espiritual, que por mais de uma vez, .56 com perfeita advertência, viu uma luz junto dela e ouviu
como ocorreu há pouco, suspeitou que as revelações que Rosa uma voz que dizia-lhe, desse ela, depoente, a sua vontade
lhe confiava podiam perfeitamente ser artimanhas do Manhoso. e que também se lhe daria a sua, sem declarar a tal voz de
Nesta visão, o mais importante a realçar são os dois contratos quem era. E logo ela entrou a rezar o Credo e fazer a
espirituais firmados entre a beata e Cristo, e entre ela e seu protestação de fé, mas a mesma voz insistindo nessa pre-
confessor. Madre Egipcíaca, como o apóstolo Paulo, poderá dizer tensão. Levantou então a ré e foi fazer oração no seu
após este dia da Transfiguração que "não sou eu quem vive, mas oratório, aonde lhe tornou a repetir a mesma coisa aquela
é o Cristo que vive em mim" (Epístola aos Gaiatas, 2:20), pois voz, com o que foi ela, depoente, dar parte a seu confessor,
trocou sua vida com a de Cristo, "para eu viver em. ti e tu em o qual a fez confessar, e, ao depois disto fazer, outra vez
mim". Mais ainda: doando sua alma a Jesus, Rosa resgatava rezou a protestação de fé, e, não obstante isto, a importu-

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liava aquela voz mesma pedindo-lhe da mesma sorte que penetrar nas intimidad.es do seu coração. No dia de Santa Rosa
lhe desse ela, ré, a sua vontade, até que o seu confessor fez de Viterbo,
com que ela oferecesse a Deus a sua vontade, resignada-
mente, para tudo o que o mesmo Senhor quisesse, implo- "de madrugada, estando acordada dentro de sua cela, no
rando o patrocínio de Nossa Senhora e de Santo António, Recolhimento do Parto, e querendo ela, ré, pôr-se em
para que Deus lhe recebesse a vontade, que sacrificava. E oração, e não tendo luz na sua casa, nem as mais compa-
com isto cessou aquela voz". nheiras nas suas celas, viu entrar por uma fresta uma luz
que parecia do sol, e dentro dela uma cruz muito grossa e
Muitos santos e santas, antes e depois deste episódio, comprida, com madeiro redondo e vermelho, e,- sem ver
seguiram igual convite do Divino Mestre, consagrando-lhe cor- quem a trazia, bateu na porta de sua cela e logo uma voz m

po, alma e vontade. Santa Margarida Maria, a mais respeitada


das videntes do Coração de Jesus, em cuja vida mística certa-
perceptivelmente lhe disse: 'Ajuda-me a levar minha cruz,'
Ela, com grande temor, lhe respondeu e disse que não

mente Rosa se inspirou, fez por escrito com seu próprio sangue queria cruz porque não queria trabalhos e entrou a dizer
vários atos de consagração a Nosso Senhor, elaborando uma o Credo. Tornando a dizer a voz as mesmas palavras e que
fórmula em 1686 que até hoje continua sendo divulgada, nos também queria visitar outra sua companheira, chamada
manuais de piedade. Eis seu texto: Páscoa, que estava muito doente. E desapareceu a dita
visão. E levantando-se ela, depoente, foi-se confessar e dar
"Consagração ao Coração de Jesus: Eu vos dou. e consa- parte disto a Frei Agostinho. Principiando a ouvir missa,
gro, ó Sagrado Coração de Jesus, minha pessoa e minha viuno ar, suspensa, aquela mesma cruz e, pela continuação
vida, minhas ações, penas e sofrimentos, para não querer da missa, foi descendo essa cruz até que se pôs junto dela,
mais servir de nenhuma parte de meu ser, senão para vos depoente, quando o sacerdote levantou a sagrada hóstia,
louvar, honrar e glorificar. Esta é minha vontade irrevo- continuando a mesma voz a dizer que o ajudasse a levar a
gável. Qnero fazer consistir toda minha felicidade e toda a sua cruz, do que tornou a dar parte ao seu confessor, que
minha glória em viver e morrer como vossa escrava. lhe disse consentisse ela no que a voz lhe pedia, oferecen-
Amém."^4 do-se para levar tal cruz, o que repugnou ela, depoente,
dizendo não podia porque era muito grande. E sobre isto
A semelhança entre este "ato de consagração" e o "pacto" lhe respondeu o mesmo seu confessor que se sujeitasse a
de Rosa salta à vista, malgrado quase um século separar um do sustentar essa cruz que ele a, ajudaria e levariam ambos.
outro. Tudo nos leva a crer, como mostraremos logo a seguir, No que conviu, oferecendo-se a isso, e tanto que o fez, veio
que Rosa conhecia e se inspirava na biografia de Santa Marga- a dita cruz correndo com grande força e caiu sobre seu
rida Maria de Alacoque, imitando-lhe a espiritualidade. ombro esquerdo, que com o peso-da mesma caiu por terra
Já lá se iam quase dez anos que a ex-prostituta obedecera desacordada e desde então ficou sempre, em todos os dias
à vontade de Deus distribuindo seus bens, amealhados no de festividades solenes da igreja, sentindo sobre o ombro o
pecado, para os pobres. Jesus exigia-lhe agora algo mais: além dito peso, especialmente na Semana Santa, em que não
dos pertences materiais, queria sua própria vontade, tornando- pode estar senão deitada, pelo peso que sente naquela
se, com tal entrega, literalmente, escrava do Senhor. parte. Estando suprimida sem poder mover-se, e assim
Ainda em 1756, no dia 4 de setembro, outro mimo do Divino . esteve um pouco de tempo até que se lhe aliviou aquele
Mestre faz. de Rosa a primeira negra a quem Jesus permitiu

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peso e se levantou, cuja cruz lhe tornou a aparecer na diversasvezes afigura deste mimoso animal, seja de pé no Monte
sagrada hóstia quando o sacerdote a levantou em uma Sião, seja travestido em espantosa figura, "imolado sobre um
missa no altar de Nossa Senhora do Parto, estando na trono, com sete chifres e sete olhos" (Apocalipse, 5:6).
mesma hóstia a figura de um cordeiro branco". Os carneirinhos sempre encantaram as santas mulheres:
Santa Inês, martirizada ainda adolescente nos primeiros anos
Estamos convencidos de que por esta época Rosa Egipcíaca do cristianismo, é representada sempre com um cordeirinho no
andava lendo O Coração de Jesus Comunicado aos Corações dos. braçp^sínib.olo-de-sua^-ir-ginalp-Ur.ez.a;.n.oJBr.asil,-a-servadeDeus,
Fiéis (1733), onde Frei Jerônimo de Belém, da mesma ordem Madre Helena, fundadora do Recolhinxent.Q-de-N-ossa Senhora
que seu confessor, resumia "a portentosa vida da venerável daTLuz- de-São-P-aTalor-teve-uma-vi-são-onde-o Divino Esposo
Madre Margarida Maria". As semelhanças entre os fenómenos aparecia cercado de muitas ovelhas que tentavam subir-lhe o
místicos ocorridos com estas duas beatas são notórias. Eis como corpo pelos braços e ombros. Então o Senhor disse à sua serva:
a monja francesa descreveu sua visão da Santa Cruz: "Eis aqui minhas ovelhas que procuram um aprisco para se
abrigarem e não encontram, pois não quereis subministrar-lhes,
"Durante um desmaio, as três pessoas da Santíssima fundando um convento, conforme minha vontade..." Dois belos
Trindade apareceram-me e me fizeram sentir grandes quadros do século XVIII representam esta visão e podem ser
consolações. Apareceu-me o Pai Eterno apresentando- admirados no citado recolhimento paulistano.
me uma grossíssima cruz, toda coberta de espinhos, com Seis anos antes de Rosa transferir-se para o Rio de Janeiro,
todos os instrumentos da paixão, e me disse: 'Toma, a fundadora do Convento de Santa Teresa desta cidade, Madre
minha filha, faço-te o mesmo presente que fiz a meu muito Jacinta de São José, também fora agraciada não só com. a visão,
amado Filho/"í5 mas ainda, com os afagos do carneirinho místico. Deixemos que
seu biógrafo e confessor, Frei João dos Santos, descreva tão
Digna de destaque nesta visão de Rosa é a solidariedade delicado milagre:
de seu velho confessor em auxiliar a visionária a carregar.sua
cruz, ratificando mais uma vez a fé que depositava na predesti- "Numa festa de São João Batista, descendo o morro do
nação sobrenatural de sua dirigida. Se outros virtuosos confes- Desterro, viu a seus pés cordeirinho misterioso, muito
sores, como o Beato La Colombière, fizeram, fé nas revelações de bonito e cândido, como a neve. Jubilosa, a serva de Deus
suas orientandas, Frei Agostinho imitava-lhes o exemplo. Santa lhe disse: oh quanto te amo! Saltou-lhe então o cordeirinho
Ingenuidade, orapro nobisl ao ombro e começou a afagá-la. Vendo que se lhe metia no
Novamente aqui Rosa tem visões no momento em que o peito, queria acariciá-lo e cobri-lo com sua capa, mas ele
sacerdote levanta a hóstia consagrada. Só que agora, em vez de sumiu inteiramente. De noite, estando na cela, sentada;
bolas.de fogo ou sangue pingando, viu na circunferência de tornou a aparecer-lhe o cordeirinho, saindo-lhe do peito e
Jesus-Hóstiaum cordeirinho, o símbolo do próprio Cristo, nosso deitando-se a dormir em seu regaço. Pondo-se ela a afagá-
Cordeiro Pascal. Percorrendo as igrejas em Minas e no Rio, Rosa lo, acordou e, saltando, se lhe pôs nos braços. Nisto ficou
deparou-se inúmeras veizes com gravuras e esculturas do cor- Jacinta arrebatada em êxtase e viu sair-lhe do coração o
deirinho branco, quase sempre estampado nas portas dos taber- Menino Jesus, Cordeiro Imaculado."
náculos ou nos tímpanos dos altares. Em cada missa e ladainha
que rezava, repetia várias vezes oÂgnusDei, Cordeiro de Deus. Viva Jesus!
Também o- evangelista João, autor do Apocalipse, vira por

350 351
As últimas visões de Rosa, em 1756, ocorreram três meses guardado neste mundo para um alto fim. de sua providên-
após a festa da Transfiguração: cia. E, acabada a ditaprática, lhe disse que se fosse embora,
o que ela fez, recolhendo-se para casa muito atemorizada".
"Estando ela, ré, deitada em sua cama, pelas três horas
danoite', sentiu que a acordavam, abanando-a. E com pleno Justitia et Misericórdia era o lema não só da Santa Inqui-
conhecimento do que se dizia, ouviu uma voz que lhe disse . . sição, como um dos pressupostos cruciais do pensamento reli-
que fosse devota de São Pedro de Alcântara, e lhe rezasse • gioso cristão em relação a Deus nosso Senhor: se o Ohipotente
um Padre-nosso e uma Ave-maria e lhe pedisse que fosse agisse apenas como Justo Juiz, o mundo já estaria arrasado. É
seu confessor na vida e na morte. No mesmo dia, dando através de sua paciência como Pai Misericordioso que a Divina
conta ao dito Frei Agostinho do referido, lhe disse que . Providência impede que a espada de São Miguel esmague os
aquele dia era o dainvocação do mesmo santo, e lhe aprovou ingratos filhos de Eva. Dando a Madre Rosa a potência da
a devoção que a voz lhe tinha recomendado." misericórdia, os céus equiparavam-na à Maria Santíssima, sau-
dada na Sàlve-Rainha com o título de Mater Misericórdias. De
São Pedro de Alcântara (1499-1562) tem. sua festa celebra- fato, grandes eram, os desígnios que Deus planejava para a
da no dia 19 de outubro. Foi dos maiores místicos da Península ex-escrava de Dona Ana do Inficcionado!
*
Ibérica, estimulando inclusive Santa Teresa d'Avila na reforma Algumas visões ou revelações incluem certas imagens ou
da Ordem Carmelitana. Autor do Tratado da Oração e Medita- diálogos cujo significado não podemos decifrar, talvez prejudi-
ção, fez grandes missões em Portugal, onde deixou muitos cados pela má redação dos notários encarregados de reproduzir
devotos. Poucos santos igualaram-no na penitência: nunca pro- as rocambolescas declarações da africana. Várias delas, contudo,
vou vinho, dormia apenas uma hora e meia por noite, andava terminam, com a indicação, por parte da depoente, de que ficara
descalço e sem chapéu, mesmo no inverno. Quando rezava, dava "muito atemorizada" com o visto ou ouvido. Temor virtuoso, pois,
tais gritos que aterrorizava os que ouviam-no. Foi visto várias como ensinam as Escrituras, "o temor de Deus é o início da
vezes levitando nos ares quando celebrava a Missa, saindo-lhe sabedoria" (Provérbios, 1:7). Temor também que seus delírios
dos olhos raios resplandecentes como o sol. Tinha o dom de fossem comédias do Capeta, sempre ávido em enganar e desviar
desvendar pensamentos ocultos e especados escondidos por seus os fiéis do caminho da salvação.
confessantes.18 Canonizado em 1669, teve seu culto populariza- Como filha obediente de seu pai espiritual, Madre Egipcía-
-do no Brasil sobretudo no século XIX, quando nosso segundo ca só fazia e acreditava no que Frei Agostinho lhe autorizava,
Imperador foi batizado com o nome e sobrenome deste tauma- pois, como ensinou a grande mestra d'alma, Santa Teresa,
turgo franciscano. "sempre que o Senhor me mandava alguma coisa na oração, se
Após esta visão, ao voltar Rosa para casa, o confessor me dizia outra, eu me tornava ao Senhor a dizer que
obedecesse ao confessor". É sempre o sacerdote quem tem a
"passando por um presépio que fica no adro da igreja de últimapalavrano tocante às revelações, devendo-se a visionária
Santo António, ficou imóvel e logo lhe perguntou uma voz: acatar sua palavra, mesmo que o Todo-Poderoso tenha mandado
'Quantas almas nasceram no dia em que ela nasceu?' diversamente. A palavra e o julgamento do sacerdote, nestes
Fazendo-lhe mais diferentes perguntas a que ela respon- casos, valem mais do que as próprias palavras de Deus.
dia. E lhe disse a dita voz que tinha duas potências: uma Rosa era duplamente controlada: por seu confessor fran-
de misericórdia e outra de justiça, que a ela, ré, lhe concedia ciscano e pelo capelão do recolhimento, o Padre Xota-Diabos,
uma, mas lhe negava a outra, de justiça, e que ambas tinha

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que há oito anos ciceroneava a negra, primeiro como energúme- Notas
na, depois como sua escrava, agora, como liberta travestida em
"Madre Regente" da casa pia onde ele ministrava os sacramentos.
Aos 28 de dezembro de 1756, portanto, dois meses após á. 1. Ghantal, Suzanne. A Vida Quotidiana em Portugal no Tempo do
última visão de São Pedro de Alcântara, o capelão escreve a seu Terremoto. Lisboa: Edição Livros do Brasil, s.d., pp. 20-22.
sobrinho e afilhado Arvelos. Como em quase todas as cartas, 2. Mello, Francisco Pina. Juízo sobre o Terremoto, Coimbra: Oficina
começa com piedosas saudações aos santíssimos corações e a de António Simões Ferreira, 1756.
outros santos de seu devocionârio. Em seguida, reclama da 3. Voltaire, François Marie Arouet. Poèmes, Paris, 1756, p. 179.
saúde: "fiquei doente de reumatismo maligno e juntamente 4. Arquivo Histórico Ultramarino, Rio de Janeiro, Caixa 59 (11-2-
erisipela em ambas as pernas". Diz que, apesar de convalescente, 1756). . • .
muito lhe custava sair para a rua devido à dor nas pernas. 5. ANTT, Inquisição de Lisboa, Processo na 15.953.
6. ANTT, Inquisição de Lisboa, Processo n9 7.141 (1761).
Também o velho frei Agostinho andava adoentado das pernas . 7. Malagrida, Padre Gabriel. Juízo da Verdadeira Causa do Terremoto
—• doença de anciãos europeus alquebrados pelas intempéries e que Padeceu a Corte de Lisboa. Lisboa: Oficina de Manuel Soares,
endemias tropicais. Mesmo doente, 1756; Santo Alberto, Frei Francisco. Estragos do Terremoto, Lisboa:
Oficina S. Bento de Xabregas, 1757; Bezerra e Lima, João António.
"tenho sido muito perseguido com a impertinência dos Declamação Sagrada na Ruína de Lisboa. Lisboa: Oficina Patriar-
enfermos, mas Deus assim o permite. Agora entendo as cal de Francisco Luiz Ameno, 1757.
coisas que estão acontecendo, pois já se vai mostrando, mas 8. São José, FreiNicolau. Op. cit., 1935, p, 107.
não posso explicar o mistério, porquanto Deus não quer, e 9. Trindade, R. Op. cit., 1953, p. 120.
só Deus o quer mostrar oculto até ser o tempo em que todos 10. Arquivo da Cúria do Rio de Janeiro, Livro de Registro de Portarias,
ficarão com os olhos abertos. Só alguns religiosos do Con- Livro H, fl. 55.
vento de Santo António e o Senhor Bispo (por serem bons 11. Galvão, Frei António S. Op. cit., 1980, p. 7.
e sábios) lhe deu mercê de mostrar-lhes aquelas coisas",.. 12. Baumann, Padre Ferdinando. Padre Réus: Um Apóstolo do Coração
de Jesus. São Leopoldo, 1987, p. 180,"
13. ANTT, Inquisição de Coimbra, Processo n2 8.018 (11-3-1720).
Sem dúvida o tal mistério tão enigmaticamente referido
14. Agostinho, Frei José. A Grande Promessa. Petropólis: Vozes, 1983,
pelo missivista era a revelação dos. cinco corações, prenúncio de p. 26.
novos castigos semelhantes ou piores aos sofridospelos lisboetas 15. Alacoque, Margarida Maria. Op. cit., 1985, p. 46.
no ano anterior. Portanto, só poucos eleitos tcbons e sábios" 16. Sor Miryam. Vida do Venerável Servo de Deus Frei António de
estavam inteirados destes desígnios cujo epicentro era o sexto Santana Galvão. São Paulo, Tipografia Cupolo, 1936, p. 36.
coração daquela árvore mística: Madre Rosa Maria Egipcíaca 17. São José, Frei Nicolau. Op. cit., 1935, p. 77.
da Vera Cruz, a "Rosinha" do Padre Francisco. 18,Fios Sanctorum. Lisboa, 1870, v. 12, p. 103.
1 Nesta mesma carta diz este padre que a própria vidente 19. D'Ávila, Teresa. Obras Completas. Aveiro: Edições Carmelo, 1978,
"ia escrever contando sobre este mistério, mas seus olhos ficaram Livro II, Capítulo 26, p. 5.
tão cheios de lágrimas que não pôde escrever". Termina lem-
brando da pouca devoção tributada ao Menino Jesus e à Nossa
Senhora da Piedade, intercedendo que Santana e sua Filha
Maria Santíssima protejam a todos nós.

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15
Formação das Noviças

1757 é um ano muito importante para o Recolhimento dos


Santíssimos-Corações e de Nossa Senhora do Parto, pois marca
não só a transferência das beatas das casas anexas àigrejapara
dentro da clausura da nova fundação, como a tomada de hábito
das primeiras noviças, tornando-se esta casa pia não apenas
reforrnatórin^de.jaiu]hBr^_s _erradas. corno também, celeiro de
virgens impolutas, solteiras_ou casadoiras.
Uma carta, provavelmente da lavra da regente Maria
Teresa, datada de 8 de janeiro de 1757, dá o clima de como viviam
as pessoas no Rio de Janeiro nesta época, ainda assustadas com
o terremoto, assim como demonstrando a crescente veneração
que dedicavam à beata negra, "nossa Protetora":

"A notícia que mando é que cá anda muita justiça, e está


despejando todo o inferno para destruir a cristandade.
Alembre-se Vossa Mercê do que aconteceu em Lisboa no
dia de Todos os Santos. A execução deve vir quando não
sei. Nem que o povo torne a negar, ela há de vir. Rogue a
Deus que conserve a nossa Protetora, que sem ela, se não
fosse ela, j á tínhamos padecido a ruína, por que por ela todo
o bem ao mundo se f ar á. Só sei que Deus está par a castigar."

E termina mandando um recado de Rosa para "meu irmão


Pedro Róis Arvelos: "Que a Virgem Maria o queira guiar,'pois
ela o mandou chamar como pomba debaixo de seu muito grande
pombal. Sua irmã e serva, Rosa."
Passa-se um mês. A 11 de fevereiro, nova carta de Madre
Rosa para os Arvelos. Desculpa-se da demora em escrever,
alegando: "Quem é escrava [dos Santíssimos Corações] não pode
satisfazer o seu apetite como deseja. Por mim, escreveria todos
os dias, mas tenho muitos afazeres. Meu Divino Menino me diz,

357
quando estou com as criaturas, que é tempo furtado." Comenta sempre o nome um do outro em todas as suas orações. Tendo-lhe
então sobre a vinda de Faustiiia Arvelos para seu recolhimento: morrido um irmão, este deixou em sua companhia uma filha
que a jovem "não se envergonhe de vir para nossa companhia, natural nascida de uma escrava, Maria Antonia, "moça que
pois o Senhor não se envergonhou de estar na cruz, nu, despido sempre repudiou ser casada". Conseguiu então José Alvares que
no meio de dois ladrões". Diz ainda que Frei Agostinho ficou seu amigo padre garantisse um lugar no novo recolhimento para
contente com a decisão de recolherem a mocinha, e manda que sua sobrinha, fazendo parte da comitiva que, emmeados de 1757,
enviem também. Francisca, pois "os Santíssimos Corações que- desceu para o litoral fluminense. Numa carta do ano anterior,
rem-nas como vítimas", e que fosse logo, pois, quando se mudas- Rosa já tinha dito: "se a moça das Minas [Maria Antonia], que
sem, para o recolhimento, as novas ingressas teriam, de trazer quer vir, for sincera, e não fingida, que venha, pois j á há licença
dote, exceto as convertidas, pois Rosa sabia que os Arvelos não para as recolher. Se a minha companheira Leandra quiser se
teriam condições de colocar as filhas num convento de freiras, recolher a esta Arca, já pode vir". O próprio capelão do recolhi-
onde o dote exigido era altíssimo. mento demonstrava certo interesse na reclusão de Leandra,
No mês seguinte, a 13 de março de 1757, outra carta do embora ponderasse, desde outubro de 1756, que,
capelão Francisco, ratificando a ordem do Senhor Bispo, e do
'Trovincial Velho", para que Faustina viesse prontamente tòr- "se Leandra tiver tempo, pode vir, pois por muito tempo
nar-se "recolhida do Coração de Jesus". E completa: "Rosa vive espero por ela e por António Tavares. Leandra pode estar
escrevendo1 e nem tempo tem de rezar, tudo permitido por seu onde estão as recolhidas, se ela quiser [abandonar] os
pai espiritual. Ela já não é desse mundo! É o Menino Jesus que negócios do mundo, pois ainda é mulher de negócios [que]
domina ela." com muita pretensão o Demónio lhe introduz. Se disto se
Todo esse empenho em trazer das Minas as donzelas da ofender, pior será para ela, pois quem não é humilde, não
família Arvelos pode ser interpretado como o desejo, por parte segue a Deus".
dos fundadores, de "purificar" o Recolhimento do Parto, contra-
balançando com virgens e castas moçoilas a esmagadora pre- Que negócios seriam esses? A documentação não informa.
sença de mulheres extraídas do meretrício. Pedro Róis Arvelos e José Alvares Pereira passaram três
Deve ter sido pelo inês de junho de 1757 que chegam ao semanas no Rio de Janeiro, desenfadando-se da caminhada e
Rio de Janeiro, vindas dó Rio das Mortes, as novas recolhidas. certamente aproveitando pararealizar alguns negócios na prin-
Na caravana que desceu a Mantiqueira vieram: o Sr. Arvelos, cipal cidade portuária da Colónia.
suas filhas Faustina Maria de Jesus, 15 anos, e Francisca O depoimento do tio de Maria Antonia não poderia ser mais
Tomásia do Sacramento, com 9 para 10 anos; a pretinha Maria favorável à nova fundação: "No dito recolhimento estivemos
Àntonia, seu tio José Alvares, amigo e fiel devoto de Rosa, e vinte dias, com. muito gosto, por vermos o muito que naquela
finalmente a amiga do coração de Rosa, Leandra, mulata de casa se louvava a Deus e a sua Santíssima Mãe." Diz que, "com
Pernambuco que desde 1749 vivia com os Arvelos em sua as que chegaram, eram .17 as recolhidas". O pequeno rebanho
propriedade de Santa Rita. crescia em número e dava sinais de santidade.
Esta Maria Antonia era sobrinha do português José Alva- Poucos dias após regressarem para as Minas, Madre Rosa
res Pereira, 60 anos, morador na freguesia do Pilar de São João dá notícia aos Arvelos sobre as recém-chegadas, informando a
dei Rei. Amigo íntimo do Padre Xota-Diabos, devoto incondicio- respeito dama vontade deFaustina, internada contra seu desejo,
nal de Rosa, eraum dos que fizerampacto com abeata de incluir que resistia tenazmente às suas superioras:

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notícia sobre Francisca Tomásia, a caçula dos Arvelos, que com
"Faustina confessou-se na véspera do Corpo de Deus, 10 anos incompletos parece ter, esta pobre menininha, se adap-
mas fez confissão nula, porque, em vez de entregar-se aos tado à nova vida sem maiores resistências, sobretudo tendo o
Santíssimos Corações, tinha em seu coração desobediência
e rebeldia de vontade, ficando toda negra como tição,
amparo da irmã mais velha como substituta de sua mãe Maria m
causando grande admiração a quem. a viu, pois ela consi-
Teresa de Jesus, na época com 35 anos.
É através de outra carta do Padre Francisco, de 26 de
*
derava vil a casa do recolhimento e conservava em. seu outubro deste mesmo ano do Senhor de 1757, que ternos notícia
coração ódio a seus pais por a terem trazido para cá: é o. da primeira tomada de hábito no Recolhimento dos Santíssimos
mesmo pecado de Lúcifer. Como ela não escreve nada disto Corações B de Nossa Senhora do Parto.
a Vossa Mercê, nem pede perdão, é. sinal, de que ainda está O dia escolhido não podia ter sido melhor: 7 de outubro,
pertinaz." festa de Nossa Senhora do Rosário, incontestavelmente, a mais
querida de todas as devoções de brancos e pretos no Brasil
Não obstante tal situação, informa a madre que Faustina
Colonial.
preparava-se para fazer uma confissão geral, prática comum Na Igreja do Parto, diante do altar, lá estavam cinco
aconselhada a quem entrava para o convento, declarando, de postulantes: Faustina, Francisca Tomásia, a pretinha Maria
uma só vez, todos os pecados do presente e passado, inclusive os Antonia e mais duas moças cujos nomes e cores desconhecemos.
já previamente absolvidos. Após ter assinado esta carta, Rosa Após as ladainhas, sermão e outras orações, retiraram-se as
acrescenta umposí-scripíum. dizendo ter visto a mensagem que mocinhas para a sacristia, onde foram substituídos seus trajes
Faustina escrevera para os pais, onde declarava sua enorme seculares, provavelmente vestidos brancos, cortados os cabelos,
saudade, sobretudo da irmã que ficou nas Minas, dizendo que cobrindo-se então com o véu e hábito marrom de terceiras
"não podia tirar o sentido do mundo, dando a entender que ama franciscanas. Prostradas no chão, de braços abertos, as novas
mais a ela que a Deus". Pobre Faustina, a mineirinha de 15 anos recolhidas pedem a proteção do Espírito Santo, enquanto a
que tanto vai sofrer longe dos seus, enclausurada contra sua comunidade cantava o Veni Sancte Spiritus:
vontade, obrigada a viver lado a lado com mulheres completa-
mente diferentes de si na classe, idade e costumes. 'Vinde Santo Espírito, emiti um raio da celeste luz:
Padre Francisco, compadre dos Arvelos, manda-lhes notí- Ao sujo lavai, ao seco regai, curai o doente,
cias mais tranquilizadoras. Logo no segundo dia de julho escreve: Envergai o rígido, aquecei o frígido, conduzi o errante.,."
"Faustina antes quer morrer do que sair desta casa..." obvia-
mente, "uma mentirinha, pois a resistência que manifestou ao Celebrada a missa por Frei Agostinho, dizem os documen-
vir para o Rio de Janeiro, o desagrado, talvez até o choro e manha tos ter conferido este, ao capelão Padre Francisco, o privilégio
com que deve ter se despedido de seu velho pai quando este de dar a comunhão às noviças, que em procissão foram encami-
retornou para o Rio das Mortes, comprovam que Rosa estava nhadas à clausura. Fechada aporta, a chave é confiada à Regente
sendo mais verdadeira do que o capelão, ao revelar a repulsa Maria Teresa, que a carregará doravante sempre dependurada
desta mocinha em tornar-se recolhida. Nesta mesma carta diz no cordão franciscano que lhe cinge a cintura. Tem início, então,
ainda o Padre Francisco: "Quando umarecolhidatermam defeito, a vida reclusa no novo recolhimento.
logo é corrigido, porque Deus não quer nesta casa santa coisa Cerimónia comovente, solenizada pela presença de "todos
alguma que não seja sua. Devem Vossas Mercês dar graças a os religiosos de autoridade" do vizinho Convento de Santo An-
Deus de ter escolhido suas duas filhas para esposas." Nenhuma tónio, embora estando muito aquém das tomadas de hábito e

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profissões solenes dos conventos reais, onde não faltavam eru- Enquanto as recolhidas engatinhavam no caminho da
ditos oradores que chegavam a ter seus sermões impressos, como perfeição, aprendendo o be-a-bá da vida mística, Rosa avançava
o de autoria de Frei Inácio de Jesus Maria, carmelita, que a todo galope, escrevendo páginas e páginas de suas visões quase
assinou o Sermão no dia de São Francisco, naprofissão da Soror diárias.
Maria de Santa Rosa, do Convento de Santa Clara do Desterro No segundo semestre deste mesmo ano, 1757, Madre Egip-
da Bahia, publicado em Lisboa em 1697, ou, ainda, a Oblação cíaca tem quando menos três importantes revelações beatíficas:
Métrica à Abadessa do Convento da Castanheira, de autoria do a primeira ocorreu na noite de 8 de julho, festa de Santa Isabel,
carioca Manuel José Cherem (1753). Rainha de Portugal (1271-1336), como Rosa, também fundadora
Informa o capelão que, a partir deste dia, as recolhidas de uma casa pia de mulheres, o Mosteiro das Clarissas de
passaram a se confessar e areceber a eucaristia atrás das grades, Coimbra.
através de uma portinhola fechada também por dentro, e que
tão somente o médico-cirurgião, quando necessário, tinha entra- "Estando ela, ré, rezando em sua cela, viu junto de si um
da em seu interior. Padre Francisco diz ainda que vulto da altura de um côvado e meio [um metro], vestido
de branco, bem figurado. Com te.mor, rezou dois Credos.
"Nada lhes falta: têm cozinha, refeitório... Faustina Então lhe disse o dito vulto, com voz que percebia com os
andou uns dias doente mas tem só sentimento de servir a ouvidos corpóreos, que rezasse mais um Credo. Entre
Deus e não descura da obediência à mãe Rosa. Esta casa outras perguntas e respostas, lhe pediu o dito vulto que lhe
é reservada para esposas de Jesus Cristo. Rosa não tem desse ela, depoente, o seu coração como anel por prenda do
tempo par a nada, nempara dizer umaAve-maria: sua vida seu desposório, e que lhe daria o seu, porque, no consórcio
é escrever o que Deus permite. Posso afirmar com jura- que as criaturas faziam, costumavam prendar-se recipro-
mento que Deus disse que toda pessoa que concorrer para camente, porém ela, ré, insistiu que não dava o coração
sustento de suas esposas alcançará a bênção do Padre sem tomar obediência ao seu confessor, a quem logo parti-
Eterno." , . cipou o referido. E ele lhe disse que Deus costumava pedir
os corações dos pecadores e que lho desse juntamente com
Termina dizendo quê Faustina não tem licença de escrever o seu, pois também queria acabar como verdadeiro religio-
a ninguém: "é a regra das;noyiças!", recomendando que disses- so. E indo ela, ré, ouvir missa na Capela da Rainha Santa
sem a ela que, antes de enviar-lhes as cartas, que as mostrasse Isabel, ao levantar a hóstia, lhe falou a mesma santa,
para suas superioras, "para não escrever nada que não seja do repreendendo-a que sendo cadáver ressuscitado, por que
agrado de Deus". Em curto post-scriptum dá a. mesma ordem não [acreditava]? E para que tinha Deus neste mundo?
repetida em muitas outras cartas: que não mostrassem esta Cujas palavras se intimidou ela tanto, que, além das
carta a ninguém, só à comadre Arvelos, ao Padre João Ferreira lágrimas, sentiu outros efeitos naturais e próprios da fra-
Carvalho e a José Alvares. Este receio e cautela, como veremos gilidade de sua natureza. Disse mais que, na noite do
mais adiante, comprometem em parte a honestidade, boa fé e referido dia, estando ela, ré, em oração, tornou a dita voz
credibilidade deste sacerdote e de sua espiritada, pois certamen- a pedir-lhe o seu coração, e respondendo ela: o dito, dito e
te temiam que a divulgação dos supostos prodígios e discutíveis o dado, dado, e desapareceu a visão."
poderes de Madre Rosa chegasse ao conhecimento do Santo
-Ofício e viesse a prejudicá-los, aliás, como vai ocorrer em poucos Não faltam exemplos na história católica de santos que
anos. trocaram seus corações com o do Cristo: as santas Catarina, de

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Siena e de Ricci, Santa Lutgarda, Santa Gertrudes, Beata Ave-marias, lhe tornou a dizer que avisasse às filhas da
Dorotéia, São Miguel de Sanctis, o Venerável JoãoBatistaReus, cidade do Rio de Janeiro que tinha vindo fazer uma casa
jesuíta alemão falecido no Rio Grande do Sul com odores de na sua terra para as recolher do dilúvio da culpa de que
santidade e cujoprocesso de beatificação acha-se em andamento. todas zombavam, mas que, no dia do Juízo, havia de vir
Eis como S anta Margarida Maria descreve em sua autobiografia assentado no teatro de seu amor julgar a elas, e às filhas
como se deu sua troca de corações: de outras cidades. E logo ela, ré, se achou em um campo
junto do qual estava um monte altíssimo, e sobre ele a
"Estava diante do Santíssimo Sacramento: encontrava- Senhora da Piedade em carne, com o Senhor. Morto nos
me tão fortemente possuída pela presença divina que me braços também em corpo e carnes, e estavam muitos santos
esqueci de mim mesma. Entreguei-me, então, ao Divino na sua mesma figura, em carne, uns com báculos pastorais
Esposo. Ele me disse: 'O meu divino coração está abrasado e mitras na cabeça, outros com estolas brancas, e outros
de amor p ar a com os homens, e em particular par a contigo.' que as tinham roxas, outros vermelhas, outros verdes, e
Pediu, então, o meu coração. Eu roguei-lhe que o tomasse, outros azuis. E muita gente mais, vestidos uns em vestias,
o que ele fez, e o colocou em seu admirável coração e tirou outros com casacas e outros de capotes. E não conheceu
o seu coração, como chama viva, e o recolocou no lugar de pessoa nenhuma. E à Senhora disse àquela multidão: Ite
onde tinha tirado."1 maledicti — Ide malditos —, que até agora fui Mãe de
l . misericórdia, e agora o sou de justiça.' E cadauxn dos santos
Rosa descreve com menor brilho literário essa mesma troca referia o que tinha passado para ganhar o céu. E São
mística. Em seu negro peito, desde o dia 8 de julho de 1757, Franscisco de Assis, que também estava no mesmo monte,
pulsava o próprio coração de Jesus. Maravilha das maravilhas: e o viu ela, depoente, com a divisa das chagas, e disse o
Deus Nosso Senhor confirmava o Sermão do Glorioso Lusitano mesmo santo: Ide, malditosFE cadaxim dos santos acabava
Santo António, pregado no Convento do Rio de Janeiro a 13 de a prática mostrando à gente as poucas obras que faziam
junho de 1674, por Frei Agostinho da Conceição, OFM, ao 'por eles, da mesma sorte que a Senhora, dizendo: 'Ite
afirmar que o mesmo Senhor "escolheu particularmente Portu-
gal [e suas Colónias] para seu império e sua morada na Terra".
maledicti/JÍZ, cobrindo-se o dito monte com '011.1 véu preto,
se achou cada pessoa dos que ali estavam, com meia folha
o
O coração de Jesus vivo e flamejante batia agora no peito da de papel nas mãos, escrita de letras muito grandes, grossas
"Flor do Rio de Janeiro".
Nesta mesma noite, ó noite verdadeiramente ditosa,
e negras, que não sabe o que diziam, e só ela, ré, tinha um *
quarto do mesmo papel muito branco. E logo desapareceu
aquela visão, e, restituída aos sentidos de seu corpo, achou
"estando ela, ré, em oração mental junto com as recolhidas, que se tinha passado uma hora naquelas visões, e se achou
vendo-se o ponto do Juízo, para meditar nele, caiu ela, no mesmo coro do recolhimento. Querendo perguntar às
depoente, no chão e se achou não sabe em que paragem foi, companheiras se se tinha acabado a oração, lhe disse uma
nem será neste mundo, ou no outro, aonde a mesma voz voz: 'Adeus, fica-te, embora eu me vou embora/ E pergun-
lhe tomou uma estreita conta de todos os seus pecados, tando ela, ré, quem falava, tornou a dizer a dita voz que ia
í referindo-lhe miudamente todos os pensamentos, palavras
e obras de que ela se achava ré, e dos benefícios que lhe
para o céu, revestido das asas do merecimento da Paixão
de Jesus Cristo, depositar-se no seu cofre. E neste tempo
tinhafeito da criação, daredenção, da vocação, dos auxílios saiu junto delaumfacho de fogo e, ao tempo, que ia subindo,
e graças que tinha-lhe feito e, calando-se por espaço de três.

364 365
foi ela, ré, perdendo os sentidos e estava amortecida, de
sorte que, aplicando-se-lhe fumaças e espíritos, nada sen- "Uma noite Rosa lançou-se no chão do coro como morta,
tia, e assim esteve por espaço de quatro horas, no fim das por muito tempo, e o padre começou a fazer muitas excla-
quais sentiu três apertos no seu interior e logo se restituiu, mações junto dela, dizendo que Nosso Senhortirava aquela
e as mais recolhidas lhe contaram que, no tempo do desa- prenda do mundo, que era p ara castigá-lo, e, levantando-se
cordo, dizia ela, ré, à Senhora: 'O meu coração já veio, viva depois Rosa, disse ter estado num campo onde se via uma
o amor de Deus!' E dando ela, depoente, parte ao dito padre imensidade de almas com seus papéis na mão, com muitos
seu confessor da referida visão do Juízo, o padre lhe disse borrões."
que se confessasse e comungasse e pedisse ao Senhor que
inspirasse que campo era aquele. E fazendo ela assim, E contou então detalhadamente a mesma visão há pouco
estando nessa súplica, ouviu uma voz que lhe disse que relatada. Lado a lado coxa os santos maiorais da corte celeste, a
aquele campo se .tinha comprado com o dinheiro que se negra era a única dos mortais a ter a folha de sua vida perfeita-
tinha vendido o mais justo homem que houve no mundo. mente impoluta, sem borrões, "branca como a neve"; daí ter sido
Que aquele campo havia de vir a julgar e se chamava escolhida por Deus para voltar ao mundo, ressuscitada, e cum-
Campo de Josaphat, como a Igreja ensinava". prir missão crucial neste vale de lágrimas.
Rosa diz ter ficado particularmente atemorizada após este
O dia ,8 de julho de 1757, festa da Rainha Santa Isabel de arrebatamento místico. Também, não era para menos, pois a
Portugal, foi sem dúvida dos mais ricos de sobrenaturalidade visão do Juízo Final, tal qual descreviam os manuais de piedade,
em toda a história sacra do Rio de Janeiro, quiçá do Brasil. Do era a situação mais terrível e assustadora que um mortal podia
dia para a noite, Madre Rosa Maria teve duas importantíssimas imaginar.
visões: a troca dos corações, através da qual Deus escolheu o
negro peito de sua serva para aqui fazer a morada, e o Juízo "Considera, pecador, que no instante em que atua alma
Final, através do-qual a ex-escrava ganha o passaporte para a se apartar do teu corpo, há de comparecer perante o tribu-
glória celeste. Neste dia, Rosa recebe ainda maravilhosos sinais nal de Jesus Cristo para ser julgada. Que confusão e que

5 da santidade: viu um "vulto bem figurado" de aproximadamente


um metro de altura, certamente o Menino Jesus; ouviu a voz de
Deus saindo da hóstia consagrada; permaneceu em êxtase bea-
tífico por mais de quatro horas seguidas, e, para corolário de
horror será o teu, pecador, se quando compareceres em
juízo ainda estiveres em pecado mortal? Oh! quão grande
será o teu susto e assombro quando os teus olhos pela
primeira vez se encontrarem com aquela divina face em

l tantos prodígios, irradiou de seu corpo um facho de fogo —


privilégio só conferido por Deus a poucos eleitos, como ao profeta
Eliseu e a Santo António do Categeró.
Essas quatro horas em que Rosa passou desacordada par-
que descarregaste tantas e tão grandes bofetadas, isto
todas as vezes que cometias as culpas?... Como poderás
suportar a face de um Deus irado contra ti, se um Santo
Jó, sendo inocente, antes queria esconder-se no fundo do
ticipando do Juízo_ Finalforam.interpretadas por ela própria e inferno, do que aparecer em juízo? O juiz quê há de julgar-te
pelo Padre Francisco como tendo morrido, passado pelo julga- é um Deus Onipotente, um Deus por ti ofendido e maltra-
mento e, por graça especiosíssima de Deus, ressuscitado. Faus- tado, por ti desprezado e até crucificado. Oh! quanto Ele
tina Arvelos foi uma das recolhidas que estavam presentes estará irritado contra ti, pecador! Os seus divinos olhos
quando deste acidente, tèndo-o assim descrito: estarão lançando faíscas de fogo contra ti. As suas mãos

estarão cheias de raio contra ti. O seu semblante estará
í:
366 367
cintilando furor contra ti. Só a sua vista irada é bastante com. inúmeros poderes extraordinários, venerada como mil.agro-
para reduzir-te a cinzas. E quanto mais se aumentará o sã, profetisa e vidente, não só pelas demais recolhidas,j?omp por
• teu susto, e crescerá a tua aflição, quando o. Juiz Supremo ic_ejjIoj;e_s_e._pj^^ se-
te pedir estreita conta de toda atua vida, e te for mostrando culares-tanto nas Minas quanto na cidade de São Sebastião, a
todo o horror dos teus pecados, em que tantas vezes tens negra courana, além de inspirar sua fundação, é a regente
caído?! Que será então de ti, pecador, quando te vires nesses plenipotenciária desta casa pia, cujo próprio nome forapor Deus
apertos os mais terríveis? Os demónios acusando todas as a ela revelado: Recolhimento dos Santíssimos Corações. As
tuas malvadezas; o Anjo da tua guarda confirmando estas próprias recoletas diziam assim: "Rosa é a fundadora e Mestra
acusações; Maria Santíssima apresentando o seu coração
rasgado por esses punhais dos teus pecados, que sobre ela
do Recolhimento, e esses títulos foram dados pelo próprio Deus."
B como ela já dissera certa vez: "o dito, dito; o dado, dado!" m
descarregaste; seu filho Jesus Cristo, o mesmo Juiz, cober-
to de chagas, também te estará mostrando o sangue, ainda
Para manter a paz e concórdia nesta dúzia e meia de
mulheres e moças, tão díspares na idade, origem social e expe-
0
escorrendo das feridas que há pouco agravaste com as tuas riência de vida, onde meninas impúberes repartiam o espaço
culpas... Lá o processo são as tuas culpas, a sentença é sem com negras recém-egressas do meretrício, a obediência cega e
apelação, a pena é um inferno de fogo o mais devorante, total às ordens e desejos da Mestra e Fundadora tornou-se a
são tormentos eternos.' Não há lá companheiros, nem ad- primeira regra do funcionamento dêista còmura3ã3e7 Regra,
vogados em teu favor, ninguém lá responderá por ti, nin- aliás, comum^as associações religiosas, tanto que até hoje pode-
guém falará por ti, porque o tempo das misericórdias de mos ler, no frontão do coro do Convento de Nossa Senhora da
todo se acabou para ti. Então conhecerás, pecador, a gra- Lapa, onde viveu a baiana, Joana Angélica, as seguintes instru-
vidade dos teus crimes, e o seu grande número, e não ções/^Ohedecer^raj e, Trabalhar", sempre aparecendo a obe-
poderás desculpá-los, ou negá-los..." diência em primenxTlugarT

Que Deus nos livre deste momento terrível: Dies irae, dies
Dentre todas as recolhidas, parece ter sido exatamente
Faustina Arvelos quem mais tenazmente resistiu a curvar-se
0
illa, calamitatis et misericíe\s um pouco de lado as visões de nossa santa e perante a autoridade daquela que alguns anos antes, em casa 0
de seus pais, não passava de uma escrava africana endiabrada. 0
adentremo-nos no Recolhimento do Parto, para ver como viviam, "A rebeldia foi o que fechou as portas do céu e abriu a porta do
quais^jss problemas, angústias e alegrias compartilhadas por inferno", diziaRosa, numa carta enviada ao Rio dasMortes, onde
estas 17/aulheres afastadas_do mundo para seguir em comuni- pedia aos pais da rebelde noviça que a ajudassem, através de
dade o ideal religioso proposto pelo Divino Mestre. Embora pela conselhos, "a domar suas filhas e metê-las debaixo do jugo da
portaria do bispo, datada de 18 de novembro de 1755, a Irmã obediência, porque não sou eu que as domo, é a Virgem Nossa 0
MariaTeresado Sacramento, então com31 anos, fosse aregente, Senhora do Parto e seu Santíssimo Filho: eu sou só instrumento 0
devendo ser venerada e reconhecida como a superiora, "obede- do Senhor e da Senhora".
li.. cendo-lhe e cumprindo em tudo o que mandar", eraRosa, dejato, Não nos admiremos da dureza dos termos "jugo", "domar"
5 quem liderava a comunidade, mandando e desmandando a seu — usados hoje mais para o trato dos animais do que para os
li bel-prazer,_qu melhor, conforme os ditames celestiais. .Oito anos humanos. O próprio Cristo já dissera que "meu jugo é suave",
mais velha que a Regente, muito mais experimentada na vida apesar de os mestres da vida espiritual terem endurecido tal
mundana e espiritual, dotada de personalidade forte e agraciada suavidade com uma série de condicionamentos disciplinares que

368 369
.—•Í

í
•íl
tornaram a ascese uma verdadeira via crucis. O mesmo Senhor estatuto manda que as religiosas que forem rebeldes, que se
também dissera: "se alguém quer vir após mim, renegue-se a si metam no cárcere e se penitenciem."
mesmo, tome cada dia sua cruz e siga-me" (Lucas 9:23). Estaria falando figurativamente, ou também no Parto,
Sobretudo para_guem entra na. vida religiosa, domar a como nos demais conventos de freiras e frades, existiria de fato
vontade era_o_pr.imeiro passo. Obeãire perinãê~ãc~caãàver, isto 'uma ceíãfortè onde eram encarceradas as mais recalcitrantes?
é, obedecer como um cadáver, é um dos lemas atribuídos à 'êlõrigõFHãs penitências aí praticadas, como veremos a seguir,
Companhia de Jesus, e, no Espelho de Disciplina para Criação tudo nos leva a responder afirmativamente.
das Noviços e Novos Professos, Frei Manuel da Cruz, OFM, já Outros artifícios nem sempre tão piedosos eram igualmen-
em 1735 ensinava: "Há de se deixar o homem velho e revestir-se te acionados para domar a liberdade ou rebeldia das enclausu-
do novo. Se a cera não amolece, não recebe a forma, assim radas. Mal receberam o hábito, contam as duas irmãs Arvelos
também, o homem não se dobra à forma da virtude se não for que, "passados alguns dias, reuniu o Padre Francisco a comuni-
humilhado por humildade de toda a dureza da soberba e contra- dade dizendo que, comungando muitas das irmãs, se viram três
-rVt dição." E termina com. o seguinte conselho aos que entram no com as almas negras como carvão, e que cada uma olhasse para
jj- noviciado: "Nunca julguem a sentença dos superiores. Se por- si". E, em outra ocasião, "pegou Rosa uma caveira e a pôs nas
,' ventura alguma coisa grave ou impossível lhes é mandada, mãos de Faustina e na de outras duas recolhidas, dizendo que
o recebam com. toda mansidão." eram aquelas as três almas negras". Tal caveira diziam ter
Também S ao Bento (480-547), o patriarca da vida monácal pertencido a um terceiro franciscano que, segundo a vidente,
no Ocidente, na sua famosa Regra, no capítulo V, ao tratar da teria sido condenado ao inferno—o que tornava a correção ainda
obediência assim ensinou: "O primeiro grau da humildade é a mais macabra e alegórica. O longo depoimento de uma das
obediência sem tardança", nialn^^íó~quê7t'ãõ~Tõgò o religioso acusadas de sacrílega, Irmã Teresa Maria de Jesus, 21 anos,
re"cêba umã~Órde:ní superior, imediatamente deve abandonar a natural da Ilha do Faial, revela vivamente as estratégias utili-
vontade própria, largar o que tem entre as mãos, deixando por zadas por Rosa, pelo capelão e demais recolhidas mais antigas
acabar o que se estava fazendo. E conclui: "Se o discípulo e fiéis à madre, a fim, de, pelo tejÇTOr^suhjugar as mais_re.sM^as
obedecer de má vontade-, e murmurar, não já de boca, mas 'tr ^independentes. Primeiro impingia-se nas recém-enclausura-
tão-somente no seu coração, ainda que faça o que lhe mandam, das toda uma devoção compulsória à negra regente: "após o terço,
já não será aceite a Deus^ que lhe vê o coração murmurar." pedia-se no coro que se rezasse uma estação (cinco Padre-nossos
Obediência total, como a do próprio Cristo, -que, segundo as e cinco Ave-marias) ao Santíssimo Sacramento e se ofereciapelos
palavras de São Paulo, "foi obediente até a morte, e morte de irmãos vivos e defuntos, religiosos do seráfico São Francisco,
cruz!" (Epístola aos Filipenses, 2:8). depositada no tesouro riquíssimo do coração de Rosa Maria
Rosa, ao exigir obediência total das recolhidas, notadamen- Egipcíaca da Vera Cruz". Oração ensinada por ela própria e
te das noviças, pautava-se pela tradição conventual, autoritária repetida todas as noites antes do toque de recolher. Conta mais
^humilhante. Eis suas palavras: "Os livros espirituais por onde esta freirinha portuguesa que, estando certa feita na cozinha,
eu me governo e dirijo- estão cheios de-espirituais lições de como às 5 horas, ouviu no teto um grande estrondo, e, correndo para
devem as mestras e mestres de espírito ligar as almas a Deus, cima, achou no coro duas recolhidas com uma vela acesa na mão,
livrando-as de todo trato familiar do século, fazendo que tenham que de joelhos ouviam o capelão dizer que, se alguma falasse
para fora o que_s^passava_dentrodorecolhim.ento, "seriam como
só os espíritos recolhidos em Deus, sem distrações." E mais '•Í- velas apagadas", causando tal advertência, grande medo na
adiante, completa, justificando o rigor de sua conduta: "Nosso

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cozinheira. Disse mais que, confessandb-se com. o mesmo padre "e que a obedecesse, porque o que mandava era do agrado de
no dia da Assunção, ficou cheia de escrúpulos de não ter revelado Deus". Para quebrar-lhe a resistência e orgulho, a negra do
uma circunstância grave de um pecado, voltando a confessá-lo Coração de Maria mandava que a cozinheira beijasse os pés de
passados alguns dias. Chamou-a então em particular a Irmã Madre Egipcíaca, pois assim ganhava muitas indulgências.
Ana do Santíssimo Coração de Maria — uma das mais fiéis Tamanha lavagem, cerebral causou os efeitos esperados,
discípulas de Rosa, preta como ela, igualmente egressa do pois a amedrontada freirinha, "atónita e atormentada", começou
meretrício — e começoti a revelar-lhe vários episódios de sua a ter visões, ou melhor, alucinações. Relata que
vida e vizinhança, inclusive que roupas usava antigamente,
dizendo-lhe também que escondera um pecado grave, comun- ... "certa vez, na cozinha, viu três figuras horríveis assentadas
gando sacrilegicamente, o que de fato aconteceu, poisj "naquele sobre uma caixa, que tinham, a representação de homens *
muito altos e de espantoso aspecto. Ficou assombrada. •
dia, tivera uma espécie de desmaio em que esteve adormecida, 0
e a dita irmã disse que vira-a cercada de demónios e a alma preta Pouco depois desapareceram. A seguir lhe davam uns
como carvão", apontando como solução ir confessar-se aos pés . assobios horrorosos nos ouvidos e viu suspensos no ar dois
de Mãe Rosa, ensinando-lhe como declarar suas faltas. Voltando
para a cozinha, novamente ficou aterrorizada por outro grande
ramos de flores, e, estando neste tempo ansiada, rompeu
em vozes, a que acudiram as irmãs que a acharam ansiada
m
*

estrondo e gritos espantosos vindos do coro, aparecendo então a e assim ficou por muito tempo padecendo aflições e dores
dita irmã do Coração de Maria e, 'lhe pegando com os dentes grandes que diziam que era o demónio, e Rosa dizia que
em um dos braços, assim a levou para cima", onde estavam o era o demónio de uma irmã que tinha se confessado e
capelão, Rosa e outras recolhidas. Aí Madre Egipcíaca começou descido para ela".
a chorar, dizendo querer um remédio para uma de suas filhas.
Cheia de temor, Teresa Maria, em particular, ajoelhou-se aos O ritual de(aniquilamento doego da pobre noviça compor-
pés da negra, abrindo sem reservas seu coração, recebendo tou verdadeiras sessoisUe asquerosa tortura:
absolvição "em nome da Santíssima Trindade", tendo sido enca-
"No dormitório debaixo, estando a comunidade reunida,
minhada em seguida ao Padre Francisco para ser absolvida
pegou a Irmã Ana do Coração de Maria um prato com
sacramentalmente. Este sacerdote despacha-a mais uma vez
escarro de todas as recolhidas e o lançou sobre a cabeça
para os pés da negra, mandando-a "obedecer em tudo, porque
dela, testemunha, e aparava o que caía com o mesmo prato,
Rosa é a fonte da graça".
a qual bebia a mesma irmã e tornava a vomitar no dito
Pobre portuguesinha, emigrada dos Açores e obrigada a
prato e lançá-lo por cima da cabeça dela testemunha,
sujeitar-se aos caprichos de uma congregação de negras espiri-
enquanto Rosa falava algumas palavras. Aí foram-se des-
tadas cujo poder e santidade eram afiançados por um velho
vanecendo aquelas duvidas e capacitou-se que tudo de Rosa
capelão minhoto! TeresaMaria obedeceu, mas os escrúpulos não
parecia certo."
cessaram aí, tanto que, perseguida novamente por Irmã Ana do
Coração de Maria, sempre "atónita", foi confessar-se outra vez Este ritual, tão nojento dentro da ótica ocidental, sugere-
com o Xota-Diabos, e estava tão atormentada e com grande ânsia nos duas interpretações: podia sei* um exercício de correçâo
que não conseguiu articular palavra alguma, destravando-se- exemplar destinado a quebrar a vontade da noviça sacrílega e
lhe, porém, a língua quando abriu o coração perante Mãe Rosa, descrente, que, sendo obrigada a suportar um banho fétido de
que lhe disse que sua incredulidade tinha escandalizado a Deus escarr^s7^preiidiã~lTb.urniI3ã3.e pelo exemplojlaJÇrmã Aha do

372 373
Coração de Maria, que bebia e regorgitava aquela poção repug- recoleta. Por trás deste culto, verdadeira idolatria, lá estava
nante. Ou então, como veremos mais adiante, jjuem. sabe tal sempre o Padre Francisco Gonçalves Lopes, que, através de
cerjniôma^epjroduriTrggjSRIãlmente um antigoritual da reli- cartas, sermões e no confessionário, estimulava que todos se
.iò^.9. .4OS .Qrjj^§§»-9L.-B.orJ.. atravéj3-do..qual. .soprando a saliva na entregassem como filhos devotos à Mãe Rosa, à sua Rosinha.
cab?£a .40s.iniçiadQs^transmite-se p_oxé à pessoa. O certo é que Para a comadre Arvelos, sugeria em carta de 7 de outubro de
tal ritual produziu ps efeitos esperados. 1758:
Alem destas cerimónias e intimidações, certos exercícios
espirituais praticados pela comunidade contribuíam na constru- "Ofereça à sua Mãe Rosa suas filhas, e peça que as tome
ção de uma nova personalidade nas recolhidas do Coração de por filhas. Todas as orações e atos meritórios que fizer,
Jesus. As meditações, chamadas na época de oração mental, sejam oferecidos por Rosa a Deus, e então tudo irá como
funcionavam como porta de entrada no universo sobrenatural. Ele quer! Se sua filha Genoveva se oferecesse como filha
Eis o impressionante relato desta mesma freirinha que, na de nossa Rosa Egipcíaca da Vera Cruz, já o Demónio não
cozinha, era atormentada por barulhos e assovios infernais, há de ter poder nela, porque sei. decerto que quem for filho
visitas de duendes apavorantes e que na oração mental, em de Rosa se não há de perder. Mais não posso falar, mas o
comunidade, encontrou o lenitivo para todos esses incómodos: tempo mostrará que até os mortos hão de mostrar as
grandezas dela e deste recolhimento. Que Rosa lhe dê
"Apartir daí, começou ater algumas locuções sobretudo Jesus, pois Jesus é de Rosa, e o que ela quer, quer Jesus!
na oração mental, sempre aparecendo-lhe vozes que diziam Todos os que forem de Rosa são de Jesus e assim todos os
das virtudes de Rosa, inclusive aparecendo-lhe Santa Te- que forem de padecer e ter cruz, assim o levem com valor
resa, confirmando que lhe desse crédito. Rosa sempre até o Calvário. Se Vossa Mercê cá viesse, saberia as gran-
aparecia na oração mental, sem poder pensar em outra dezas desta Santa Casa, e que pessoas há nela, e de quem
coisa senão na santidade de Rosa, de modo que, após a é Rosa. Faça tudo o que Rosa mandar Vossa Mercê obrar!
leitura do ponto que se devia meditar, se esquecia este E que Deus nos assista;"
totalmente, e todo o tempo da meditação se lhe apresentava
no entendimento a. Rosa, umas vezes vestida com aparatos A própria espiritada encarregava-se de incrementar entre
riquíssimos, outras vezes cercada de luzes e coroada pelos seus amigos o culto à sua pessoa. Numa carta de três folhas, de
anjos, e assim sucedia tanto que se recolhia interiormente 28 de setembro de 1758, manuscrita pela Regente Maria Teresa,
para fazer aquela devoção, de sorte que nem o Rosário de e assinada pela visionária megalomaníaca, assim dizia a seu
Nossa Senhora podia rezar com advertência e'sossego. E ex-senhor:
assim andou algum ano e meio e até que adoeceu e com a
moléstia se lhe foi tirando aquilo do sentido, pois, como ela "Meu querido filho e senhor. Chamo-o de filho, não por
deixou de dar parte do que passava interiormente a Rosa glória de meu coração, senão, por glória do coração de meu
e ao Padre JTran cisco, não obstante persuadi-la estes por Senhor Jesus Cristo e Vossa Mercê me chama de Mãe pelos
muitas vezes, a que lhes desse parte, mas ela se desculpava merecimentos de suas chagas santíssimas. Perguntando
com a tal moléstia." eu ao Senhor se antes todos não eram seus filhos, respon-
deu-me que sim, mas que, pelos pecados que exercitavam,
A santidade, poder sobrenatural e predestinação de Madre nos corações, ficaram longe desta graça, e aqueles que
Rosa tornàram-se uma doentia obsessão dentro desta casa contritos e arrependidos me procurassem por Mãe, que

.- 374 375

j "_•
B!

Perpétua Solenidade, Rio de Celestiais Delícias, Santuário


permitia fazê-los bem-aventurados na glória de seu cora-
de Deus, Terrestre Paraíso, Vinha do Amado, Zona da
ção. E desde esta hora que me fez esta promessa para cá,
Celeste Pureza... Não é para menos que muitos católicos
é tal o fervor e impulso que sente o meu coração e desejo
no Brasil antigo tenham sido denunciados ao Santo Oficio
ardente de ir para esse mundo todo, se me fora possível,
de Lisboa, por terem blasfemado dizendo que 'a vida de
dizer aos maiores pecadores do mundo todo que me tomas-
casado era melhor do que a de religioso'.
sem por Mãe e eu lhes permitia, de parte de Deus, fazer *
«
com eles uma eterna aliança do amor de Jesus, Maria, José,
Santana e São Joaquim para assim, todos, lhe formarmos
uma coroa de glória." *
Notas
Nesta mesma carta, Madre Egipcíaca informa a quantas
andavam as meninas Arvelos e sua fundação:
1. Alacoque, Margarida Maria. Op. cit., 1985, p, 42.
2. Couto, Padre Manoel J. G-. Op. cit., 1884, pp. 72 e ss.
"Minha casa, onde estão os Sagrados Corações, está 3. Regra do Glorioso Patriarca São Bento. Mosteiro de Singeverga:
sempre sendo atacada pelo Demónio, que tem nos homens Edições Ora et Labora, 1951, pp. 17-18.
seus alcoviteiros e mensageiros. Parabéns ao Sr. Arvelos 4. Azevedo, D. Joaquim. Breve Notícia das Ordens Religiosas, Lisboa:
e sua esposa por terem aqui na casa de Deus dois soldados Oficina Simão Tadeu Ferreira, 1790, pp. 383 e ss.
como estrelas do céu, como duas flores do jardim de meu 5. Vaiiifas, Eonaldo. Trópico dos Pecados. Eio de Janeiro: Campus,
coração—que é arnesma coisa que dizer que são do Coração 1990.
de Jesus. Todos que não derem ouvido aos Demónios e
continuarem na fé, e terem a mim por Mãe, permanecendo
nesta verdade, terão a glória, porque esta é a casa da
verdade e sala do desengano. Quanto a mim, estou muito
contente com este pequeno rebanho do Senhor, soldados
em campanha." . •

Chamando seu recolhimento de "casa da verdade e sala do


desengano" nossa santinha insere-se na tradição encomiástica
iniciada por São Paulo, que situa a vida religiosa no ápice do
patamar do caminho para p céu. Eis como, no "Alfabeto dos
Louvores à Vida Religiosa", composto por um certo Monge
Cartuxo, texto do século XVIII, é referido o espaço conventual:

"Arca de..Deus, Banho das Almas, Casa da Sabedoria,


Deserto de Sião, Escola de Cristo, Fornalha do Espírito
Santo, Horto de Delícias, Jardim Perpétuo, Lavatório de
Ovelhas Mais Contritas, Margarida Preciosa, Navio 'do
Instituidor, Oficina de Virtudes, Porta do Céu, Quinta de
m
376
377

m
16

Expulsão do Recolhimento

Não apenas o Padre Francisco, Frei Agostinho, as recolhi-


das e uma dezena de moradores nas Minas Gerais conheciam e
acreditavamjias.yirtudeSj-saíHtidade-e-predestinação-desta ne-
gra que se dizia possuidora do Coragão de Deus. Muitas pessoas
também na cidade do Rio de Janeiro tinham sentido a fragrância
He_sua pretematuxaKdadej-e0nfirmando o dito de seu confessor:
Ç^Rosa tem odor de santidade/!)
Várias testemunhas arroladas em seu processo confirmam
queMadreRosa eramuito conhecidana cidade de São Sebastião.
Morando defronte da Igreja de Santa Rita por mais de dois anos,
Rosa fez muitos conhecidos e devotos, residentes nesta mesma
área, tendo amigos com casas à rua dos Pescadores (hoje Barão
de Inhaúma), àPrainba, à rua da Viola (Teófilo Otoni), à rua da
Cadeia (Assembleia), às ruas Nova de São Francisco, da Alfân-
dega e do Rosário. Um destes mor adores, o Padre Filipe de Sousa,
57 anos, lisboeta, residente então à rua dos Pescadores, criticava
a crendice popular na espiritada, dizendo que, "por suas flccões
e embustes, fazia capacitar a muita gente que seguia os seus
erros e arepresentavapor santa". Conhecendo-a desde os tempos
de Mariana, acusava também o Padre Xota-Diabos de ser "ni-
miamente crédulo em seus embustes, respeitando-a por pessoa
de gran.de virtude". Alguns destes moradores tornaram-se seus
devotos por presenciarem suas diabruras quando possessa pelo
Espírito Zelador dos Templos: falando grosso com voz cavernosa,
caindo desacordada no chão, sempre com o rosário na mão
rezando aos pés dos santos e altares, comungando várias vezes
por semana, vestida de franciscana, avançando brutalmente
contra os irreverentes nos ofícios divinos. Todo este comporta-
mento virtuoso e místico, além do apoio que recebia dos padres
e até do bispo, contribuíam para que mais e mais pessoas a
reputassem como santa. Sua fama corria de boca em boca:

379
Feliciano Joaquim de Sousa, 40 anos, carioca da freguesia da e pretos, leigos e até religiosos. Era certamente a primeira vez
Conceição, administrador do sabão, declarou ter conhecido mui- que se via, no Rio de Janeiro, uma negra vestida de terceira
to bem a africana "que era tratada nesta cidade porQVIadre Rosa"J franciscana andando pelas ruas, hábito idêntico ao da imagem
Contou que, quando vexada, fazia visagens estranhas e que fofa da Rainha Santa Isabel, em cujos pés esta negra mina há pouco
o soldado Francisco Xavier, morador na rua do Hospício dos estrebuchara num de seus raptos místicos. Dois episódios ocor-
Capuchos, quem lhe dissera que "Rosa era criatura de vida ridos no segundo semestre de 1758 tornarão ainda mais pesada
inculpável, pois fazia rigorosas penitências e padecia muitos a cruz, que Rosa disse ter recebido, numa visão, redundando em
vexames do Demónio, que falava em pontos da fé com muita sua trágica expulsão do recolhimento, esta mesma "casa santa"
inteligência, delicadeza e acerto, que escrevia matérias teológi- que com tanto entusiasmo e apoio celestial fundara.
cas com suma profundidade, que tinha muitos e frequentes Este versinho de seu ex-patrão, Frei José de Santa Rita
raptos e êxtases, que neles se participavam mistérios altíssimos Durão, parece ter sido composto para descrever o episódio sobre
e coisas grandes que se haviam de ver paira o futuro". Mais ainda, o qual trataremos a seguir, muito embora a protagonista seja
ao referir-se aseurecolhimento, assegurou que "as outras ordens Catarina de Paraguaçu:
religiosas do Rio de Janeiro em comparação com as recolhidas
do Parto eram como corvos à vista das pombas..." Amava nela o peito valoroso e o génio
Com certeza a imagem fora proposital: o recolhimento dócil que a fé consente,
liderado péla negra travestia-se em abrigo de pombinhas bran- Amor que ocasionou, como é costume
cas, enquanto os tradicionais conventos de frades e freiras, Em algumas, inveja, e noutras ciúme,
Todas à bela dama aborrecendo,
*

ocupados tão-somente por cristãos-velhos que provassem ter
"sangue puro, sem mistura de negro, mulato, mouro ou judeu", Conspiram feras, em tirar-lhe a vida. *'
nas palavras do citado devoto, eram rebaixados e denegridos à
Repetindo também neste detalhe ávida de Cristo, Rosa há
reles condição de urubus...
de ser traída exatamente por duas pessoas de sua intimidade:
Mais de uma dezena de devotos do Rio de Janeiro, admi-
pfSoèiro, por (Maria Teresa do Sacramento, sua secretária,
radores do inigualável curriculum vitae de Rosa Egipcíaca, têm
escriba e regente, e,~5ipõís7 por seu q"UeTido confessor, Frej^
seus nomes arrolados nos processos da santa e de seu exorcista:
Agostinho de São José. Deixemos que a própria delatada nos
os oito membros da família de João Pedroso, velho lisboeta, j ..y..
conte como ocorreu tal episódio, cuja data deve situar-se entre
morador à rua do Rosário, cujas duas filhas, Maria Teresa do
agosto e setembro de 1758, pouco antes do falecimento de seu
Sacramento e Ana Joaquina, viveram recolhidas no Parto, a
orientador espiritual e pouco depois da visão do Juízo Final.
primeira, como regente; o negociante Domingos Lopes da Cunha;
Trata-se de uma visão profética cujos enigmas são decifrados
João Fernandes da Costa, 62 anos, morador à travessa da
pela mesma voz misteriosa que desde os tempos do Inficcionado a
Alfândega; Dona Maria Tecla de Jesus, em casa de quem Rosa
também hospedou-se, logo que chegou nesta cidade; etc,, etc. acompanha.
Sua crescente popularidade, dentro e fora do recolhimento, "Estando em oração, viu diante de si um novelo de linhas
causava inveja, màl^estar e revolta em. muitas pessoas inconfor- de quatro quinas, das quais saíam quatro línguas de fogo.
madas em ver uma reles africana, alforriada há pouco do cati-
Querendo ela fugir daquela visão, lhe disse uma voz: 'o que
veiro, prostituta, também há pouco afastada do lupanar, rece-
vês, naquele novelo de linhas, é o coração de teu padre
bendo provas de tanto respeito e veneração por parte de brancos
confessor atado com aquelas linhas que são enredos, injus-

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tiças e mexericos. O fogo são dúvidas, incredulidades e capa da virtude, a dar vazão à sua antiga luxúria. Já em 1750
contradições que se hão de levantar contra ti'. Dali a um o zeloso preladpbaixaraumaportariapreventiva destes deslizes
tempo veio ao Recolhimento do Parto um religioso chamado no domínio da sensualidade intraclaustros:
Frei Caetano de Alfama, missionário de São Francisco, e, "Os pastores eclesiásticos devem vigiar incessantemente
chamando todas as recolhidas, disse a ela, ré, da parte do pelo bem espiritual das religiosas suas súditas, para que de
bispo, que se não confessava bem, porque uma recolhida algum, descuido não tenha ocasião o faminto lobo de inquietar
fora dizer ao bispo que ela, ré, de noite, se levantara em estas puras ovelhas no desvelo que devem ter de agradar seu
fralda e fora se meter com o capelão, Padre Francisco divino Esposo...
m Gonçalves Lopes na sua cama, levando consigo uma meni- A presença de uma menina de 8 anos morando no recolhi-

m na que havia no recolhimento de 8 anos de idade." mento, juntamente comTornásia Arvelos, que disse ter de 9 para
10 anos ao receber o hábito, representava já uma pequena
Grande escândalo! No recolhimento das madalenas arre- irregularidade canónica, pois o mesmo bispo determinara que
pendidas, o próprio capelão e a mais destacada das enclausura- em sua diocese as casas pias femininas não aceitassem meninas
das se entregando a devassidões infames, próprias de Sodoma com menos de 12 anos, aliás, a mesma idade mínima autorizada
e Gomprra, absolutamente inaceitáveis numa casa de penitência pelas Constituições canónicas do Brasil para o casamento das
e_ cjOTreção. Em vez de seguirem a orientação do próprio bispo, donzelas. Na prática, porém, era costume das casas religiosas,
de "dormir f todas com seus hábitos vestidos e cingidos com fossem, conventos, fossem recolhimentos, desde antigamente,
cordões, em um. dormitório onde esteja uma lâmpada acesa e acolher meninas de tenra idade. Santa Gertrudes Magna é um
cada uma só em sua cama", a denúncia dava conta de que havia exemplo, pois entrou para o Mosteiro Beneditino de Rodardes,
no Parto uma religiosa que dormia só de fralda ("a parte do na Saxônia, quando tinha apenas 5 aninhos, a mesma idade de
vestido abaixo da cintura"), e que, altas horas danoite, maculava Maria Joaquina do Coração de Jesus, uma interna no Convento
a inocência de uma menina de 8 anos no leito do próprio capelão. do Santíssimo Coração de Jesus da Soledade da Bahia.
A tentação de "imoralidades", dentro dos conventos de Aversão de Rosapara esta grave denúncia é completamen-
freiras, era um"pCTÍgÕ~c"onsta±ite nos séculos passados e nem te diversa:
mesmo õtlé~c^ó^os"WosteÍros~fe:n^^ escapou à
devassíoTào dos costuniesrDõfSTManueíuB^&antalnês, o 19Qbispo "A causa do referido recado ao bispo foi que, em uma
dlTTJaTGãnrínri^TTTI)» escrevia à Corte que "o Convento do noite que o dito padre capelão estava exorcismando uma
Desterro é o escândalo desta cidade! Se o próprio Rei Dom João criatura possessa, com o empenho de não a deixar em, toda
V dava o mau exemplo, tendo filhos bastardos com a Irmã Paula, a noite enquanto o demónio não fosse para o inferno, vendo
do Convento de Odivelas, não seria de todo inusitado que, num ela, ré, que eram duas horas depois da meia-noite, e que
recolhimento de ex-mulheres davida, o demónio da sensualidade por aquela causa estavam abertas as portas do recolhimen-
se fizesse presente de quando em vez. Se até Santa Maria to, esperando pela possessa, se levantou ela, ré, da cama,
Egipcíaca, malgrado a forte presença de Deus em sua vida vestida com uma túnica de estambre [tecido de baeta
eremítica, confessou ter padecido violentas tentações carnais inferior], e com uma saia branca de estopa, porque sempre
durante os dezessete primeiros anos após sua conversão, por assim dormia, e, tomando uma capa, chegou à porta da
pouco não voltando à vida alegre, não deve ter sido difícil casa onde o dito padre estava exorcismando, presentes um
, convencer o bispo de que uma ex-meretriz continuasse, sob a ermitão, uma mulher e dois moleques, e da porta disse ela,

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ré, ao dito padre, que deixasse recolher aquelamulherpara Comparando diferentes peças do processo de Rosa, concluí-
se fecharem as portas do recolhimento, ao que ele não mos que, primeiramente, a regente Maria Teresa contou o
respondeu, nem se passou mais coisa alguma." escândalo envolvendo a ex-prostituta e seu capelão a Frei Agos-
tinho, e este, juntamente com a delatora, denunciaram-nos a
• Esta versão, completamente diferente e inócua, inocenta Dom António do Desterro. Talvez a delatante tenha revelado
os dois principais suspeitos: a negra e seu ex-senhor, o Padre outros episódios, seja de sensualidade, seja de culto à persona-
Xóta-Diabos. Tal relato fornece-nos, contudo, mais alguns deta- lidade e idolatria praticados no recolhimento, ou mesmo algu-
lhes sobre a vida do recolhimento e de sua fundadora que mas práticas ou atitudes que poderiam ser enquadradas na
merecem ser realçados: a precisão com que Rosa fala do horário categoria de "suspeição de heresia", a matéria-prima com que
em que ocorreu tal episódio sugere-nos que, nestes meados do se alimentava o Terribile Monstrum inquisitória!. Tais revela-
século XVIII, o relógio do Colégio dos Jesuítas era o marcador ções devem ter aberto os olhos do "Provincial Velho", até então
oficial das horas "na cidacle_cio.JR.ÍQ de Janeiro, e suas baladas grande admirador e propagandista de sua dirigida, a qual, em
sonoras e retumbantes eram ouvidas noite adentro pelos mora- vez de "Mestra" e "Flor do Rio de Janeiro", como gostava de
dores das~íregueslãsx:ircunvizinhas. chamá-la, passa a ser considerada embusteira e agente do diabo.
f As roupas oVâormir da africana demonstram a pobreza e O conhecimento deste lado pecaminoso e fingido de sua confés-
austeridade esperadas de mulheres convertidas: estambre e sanda, a quem há anos vinha assistindo material e espiritual-
estopa, tecidos feitos com a parte mais grosseira e áspera da lã mente, deve ter causado profunda tristeza no incauto sacerdote.
e do linho. A cerimónia do exorcismo realizada em plena madru- A idade avançada e constantes doenças, agravadas agora pela
gada — duas horas depois da meia-noite — não deve nos chocar, desilusão de ter acreditado piamente e patrocinado uma fraude,
pois alguns atos litúrgicos nos séculos passados transcorriam levaram-no, em poucos meses, à morte. Antes, porém, Frei
nestes horários. O Abade de Ia Caille, já citado, que esteve no Agostinho materializou sua ruptura com a negra embusteira:
Rio de Janeiro no mesmo ano em que Rosa aí chegar a procedente queimou mais de duas resmas (1.000 folhas) das "coisas profun-
das Minas, disse ter visto mulheres indo à missa nos domingos das" que Rosa escrevera, recusando-se, desde então, a recebê-la
e dias santos às 3 ou 4 horas da manhã, aproveitando-se também no confessionário. Rosa deve ter ficado profundamente abalada,
os penitentes para, em procissão, percorrerem as ruas centrais embora, numa carta de 27 de setembro deste ano — 1758 —,
desta cidade, noite adentro, se disciplinando com rigorosas demonstre exatamente o contrário:
chicotadas. Mesmo apresençado capelão dentro do recolhimento
não deve causar espanto, pois até em locais mais disciplinados "Eu me alegro com as calúnias e infâmias que se põem.
como na Itália, nesta mesma época, os confessores tinham na minha vida, porque há duas castas de gente: uns que
entrada livre nestes beatérios para prestar serviços espirituais. servem de Deus, outros de quem Deus se serve para
Santa Maria Francisca das Cinco Chagas, da mesma Terceira perseguirem os seus. Eu bem sei que a mentira tem asas
Ordem Franciscana, de Nápoles, cuja biografia também ostenta e voa muito longe e direto. A verdade é coxa. A mentira
muitos detalhes semelhantes à de nossa africana, igualmente tem mais agasalho e entra nos corações humanos; a ver-
foi acusada de ser feiticeira e possessapelo Demónio, livrando-se dade tem menos lugar, ela vem devagar, mas, quando
contudo da pecha de libidinosa, embora seu confessor também chega, a mentira desaparece e ela fica senhora do campo.
morasse dentro de, sua casa, para melhor assisti-la quando Assim espero que suceda nas obras de meu Senhor, da
raptada pelo esposo divino. . infâmia e do veneno que nela se bota."

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Concluiu a epístola, sempre conformada, seguindo o exem- recolhidas, Sr. José Alvares, certa feita, quando Frei Caetano
plo do justo Jó, de quem Deus permitiu ao Diabo destruir a casa, exorcizava Madre Rosa,
família e saúde, mas que, com o auxílio divino, permaneceu
inabalável no temor do Todo-Poderoso: .-"o demónio lhe não quisera obedecer, pelo que [concluiu]
era falso o estar Rosa possessa, porquanto o Diabo [devia]
"Tudo assim é necessário para a maior grandeza do seu , obedecer a qualquer sacerdote, pondo-lhe para isto precei-
amor. Reparem que são muitos cães que ladram e nenhum.' - tos. Por esta causa, lhe tomara o frade ódio, e junto com o
pode morder. As obras do Senhor sempre foram persegui- que lhe tinha a regente Maria Teresa, nascido de as reco-
das e tentam [nelas] jogar cizânia e embustices. Deus lhidas lhe terem anais respeito do que a ela, fora esta a
escolheu seupequeno rebanho, pequenos e ignorantes, pois , causa destes distúrbios".
os grandes do mundo são imitadores de Lúcifer na falsa
ciência. Deus escolhe os pequenos para quebrantar a cabe- - - - - - Não bastassem estes problemas intraclaustros, a desafor-
ça da soberba dos grandes." tunada Madre Egipcíaca se envolveu em outra desgastante
confusão. Devia estar fortemente abalada por tantas tragédias
Que bela lição de confiança na Divina Providência! Ou ocorridas umas atrás das outras, quando novamente o incansá-
realmente a negra era virtuosa e estava sendo alvo de maldosa vel Espírito Zelador dos Templos toma conta da courana, levan-
calúnia, ou representava muito bem o papel de embusteira e dò^a a cometer desatinos. .
falsa santa. No fundo de seu coração, Rosa esperava que, dia Estando por estes dias a rezar na igreja dos franciscanos,
mais cedo, dia mais tarde, Deus lhe faria justiça, e a verdade viu queumamulher se comportavaindevidamente^conxersando
haveria de triunfar, desmascarando a mentira e mostrando de com outra durante õ?fíclõaivino. Incontinente, Rosa, oumelhor,
que lado estavam a virtude e o bem. o Espírito Zelador dos Templos_avai'iça_ssntra esta irrequieta
Além das acusações de imoralidade levadas ao bispo e da criatura. Para sua infelicidade, tratava-se de Dona Quitéria,
falsa santidade eidolatria constatadas por Frei Agostinho, outro esposa do Dr. José Gomes, "importante letrado", e grande amiga
grave episódio contribuiu decisivamente para a derrota da vi- do mestre de Teologia, Frei Manuel da Encarnação, inimigo de
sionária, logo no início da fundação do seu recolhimento. Frei Agostinho.
O Convento de Santo António vivia nesta época em grande
perturbação intestina. Os frades, em facções, lutavam acirrada- . "Houve entre Rosa e Dona Quitéria uma grande conten-
mente pelo poder: de um lado, os orgulhosos portugueses, até - da, caindo possuída a negra como morta e sem sentidos no
então detentores exclusivos dos cargos de custódio e provincial; chão. Tirada para fora da igreja aos rastos e empurrões,
do outro, os desprezados brasileiros, desejosos também de par- , querendo o juiz do crime do Rio de Janeiro prendê-la, foi
tilhar a direção da Província da Imaculada Conceição. Adoe- dissuadido pelo Tenente Gaspar dos Reis, que disse-lhe que
cendo Frei Agostinho, o "Provincial Velho", adepto dos lusitanos, ela não era culpada, mas sim um espírito que a impelia. E
foram nomeados, como confessores de Rosa e das demais reco- p novo provincial do convento disse que Rosa-era uma
letas do Parto, dois frades do outro partido, Frei Manuel da cachorra e embusteira e andava amotinando o povo e que
Encarnação, mestre de Teologia e canonista, futuro provincial, mandaria tirar-lhe o hábito de São Francisco e açoitá-la.
e Frei Caetano de Alfama. Este último, examinando os escritos E, por seu empenho e de Dona Quitéria, foi Rosa expulsa
da visionária, reprovou seu conteúdo, levando Frei Agostinho a do recolhimento por ordem do vigário geral, com proibição
queimá-los. Mais ainda: segundo depoimento do tio de uma das de nunca mais entrar no dito Recolhimento do Parto."

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J.
Airritação extrema damulher do ilustre escrivão e areacão carta de minha liberdade. Não porque eu queira ser liberta,
não só do novo provincial dos frades menores, como do juiz do porque sempre me conto do número dos meus parceiros
crime e do vigário geral do bispado revelam o enorme mal-estar [escravos], e quero que Vossas Mercês também me contem.
provocado pela espiritada: onde já se viu tamanha ousadia, uma Os meus santíssimos e amabilíssimos corações, o Divino
negra africana iniciar uma contenda (altercação, disputa, con- Menino Jesus da Porciúncula é que hão de pagar e remu-
trovérsia) com uma representante_da_elítie~3o potter, numa das nerar tudo pelos merecimentos do seu santíssimo coração."
igrejas mais nobres desta cidade?! Como tolerar tamanho des-
f esperto, péssimo exemplo para a gentalha, sempre ameagadora - - Tendo carta de alforriada, podia provar ser liberta, e
da tranquilidade pública? Justamente por desrespeitar a dis- livrar-se, em consequência, de eventuais açoites mandados dar
tância e subserviência esperadas das classes inferiores, a negra pela autoridade civil, por ordem do bispo, do vigário geral ou da
foi acusada de demonopata e amotinadora do povo. A alguns Vara. Lastimavelmente, não localizamos, no processo de Rosa,
pés-rapados, o espírito de Rosa descompusera sem maiores sua carta de alforria. Talvez haja cópia da mesma num Livro de
consequências, como sucedeu comummulato, na Igrej a do Parto, Registro de Notas na comarcajle_São João dei Rei: se algum
contra o qual a endiabrada "arremessou atoalha que tinha para pesquisador localizá-la, não deixe de me comunicar!
comungar e correu pela igreja abaixo para o acometer, fugindo "Zeloso para que sua nova fundação não se tornasse um
o pardo", ou mesmo como acontecera com a portuguesinha, Ana antro de perdição logo em seu nascedouro, Dona António do
Maria de Jesus, j á referida, que teve sua conversa interrompida, Desterro ratifica a decisão do vigário geral: jaxpulsa Rosa do
na mesma igreja dos franciscanos, por golpes do cordão da recolhimento, evitando assim que o escândalo a ele reveladojaêlâ
Ordem Terceira que Rosa desferiu-lhe, chegando a machucar- regente contaminasse as outras virtuoaas-xecoletas. Eis como a
lhe a cabeça nas grades deste templo. Dona Quitéria, contudo, beata africana descreveu este melancólico episódio:
não era qualquer uma: ultrajada em seu orgulho, lavou sua
honra vingando-se da^nêgm descarada: "cachorra, embusteira "Disse mais, que a referida denúncia foi a causa de que
e amotiiíaaorãVsÊgu^do a opinião do novo superior desse mesmo o bispo expulsasse a ela, ré, do recolhimento, e, andando
convento. Põf ele, a ousadia destajnegra forra era merecedora - -muito desconsolada, sucedeu que, estando uma vez em
do maior e exemplar castigo, e por pouco não se repete a mesma oração diante de um crucifixo, o Senhor lhe disse que
cena de Mãriana, onde; há dez anos o bispo mandou açoitar a dissesse a Maria Teresa do Sacramento que ela era uma
negra espiritada, pela ousadia de interromper o sermão de um - adúltera, que, sendo casada com um homem, parira de
capuchinho, vociferando no meio da igreja como se fosse o outro, e que a mesma era a causa de ela, ré, andar assim
demónio em pessoa. --como andava. E participando isto à mesma Maria Teresa,
Deve ter sido depois e a partir da ameaça do frade francis- ~- • ela lhe negou, porém, em uma ocasião em que se tinha
cano, queprometeumandar açoitá-la, que a espiritada, ou talvez confessado, lhe veio pedir perdão depois de ter ido falar
o capelão, escreve a São João dei Rei, solicitando ao Sr. Pedro com o bispo que ela era quem lhe tinha levantado aquele
Róis Arvelos que mandasse a sua carta de alforria. Em missiva [falso] testemunho por causa de que a sua inveja e male-
de 27 de setembro deste mesmo ano, 1758, Rosa escreve: volência tinha concebido para fazer que o dito padre Frei
Caetano fosse capelão e ela ficasse com sua liberdade,
"Minha muito amada e querida senhora Maria Teresa - expulsando do recolhimento ela, ré, e o dito Padre Francisco
de Jesus: Agradeço muito a Vossas Mercês o mandarem a Gonçalves Lopes."

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Em todo o processo, esta é a única vez em que aparece a por terem cedido às mesmas tentações carnais. Citarei apenas
informação de que Maria Teresa assumiu ter caluniado sua alguns casos, para que o leitor sinta o clima de licenciosidade
aluna Rosa. Também só nesta parte há referência de que a "reinante dentro dos confessionários, conventos e recolhimentos
regente antes já fora casada e tivera um filho adulterino, pois, de óutrora, ajudando-nos a esclarecer a questão empauta: Padre
ao ser inquirida posteriormente, a ex-regente declarou-se sol- Francisco e Rosa Egipcíaca eram mesmo amantes e chegavam
teira. a incrementar seus encontros libidinosos incluindo até ménage
Certamente o leitor, tanto quanto eu, deve ter-se pergun- à trois, ou não passou de calúnia, tanto a fama de serem
" tado: afinal, quem dizia a verdade neste cipoal de intrigas? Rosa 'amancebados, quanto a última denúncia feita pela regente?
ou a regente? Ou melhor: o tal.episódio envolvendo a negra, seu Na Capitania do Rio de Janeiro, um dos maiores escândalos
• padre exorcista e a menina de 8 anos — todos os três, altas horas •do clero relacionados à luxúria envolveu o carmelita capixaba
da noite, entregues a sensualidades na cama do próprio sacer- 4Frei Manuel do Espírito Santo, do Convento de Ilha Grande,
dote —, teria mesmo acontecido, ou fora invencionice da despei- ".preso pelo Santo Ofício em 1740, acusado de ter solicitado,
tada regente? Alguns detalhes da biografia de nossa africana, -bolinado, apalpado e outras mais intimidades com os peitos e
fora e dentro do recolhimento, reunidos à devassidão dos costu- " partes pudendas de meia dúzia de moças e mulheres, fazendo
mes do clero no Brasil setecentista, permitem-nos concluir, pela — também apaixonadas declarações de amor a diversas de suas
probabilidade, que Rosa e seupadre tinham def ato alguma culpa filhas espirituais. Sua sentença, após julgamento em Lisboa,
no cartóriq no tocante à luxúria. incluiu a perda do direito de confessar e a reclusão, por nove
Já vimos anteriormente, quando o Xota-Diabos e sua ener- anos, no convento mais remoto de sua província, sendo proibido
gúmena fogem das Minas que numa estalagem na beira do de retornar aos lugares onde perpetrou tais incontinências.8 No
Caminho Novo, ao atravessar a Mantiqueira, a ex-rnulher da _ ano seguinte à prisão deste carmelita, na mesma igreja onde

li
vida, sob o pretexto de estar em transe místico, chegou a "pôr-se Rosa fora batizada, a Candelária, um de seus capelões, o Padre
sobre o padre, .pretendendo que a desonestasse, o que ele perce- José Rabelo Perdigão, é acusado "de ter tratado a escrava Inácia
beu pelas ações desonestas que fazia..."Mostrando-se virtuoso com as palavras: Meu amor, minha vida, meu coração! e dito que
perante os inquisidores, Padre Francisco disse ter resistido à _ melhor vos fora a vós estardes metida com um padre, do que
tentação, percebendo que a negra "fingia estar vexada do espí- com este homem com quem estais, porque nós, ainda que somos
rito". E nesta parte que ò manuscrito nos informa correr a fama padres, e fazemos a figura de Deus, também somos homens!
nas Minas Gerais que o Padre e sua então escrava viviam Mais direto foi Frei Manoel João dos Serafins, franciscano
amancebados: ele na época com 57 anos, ela com 32, portanto, 'damesma igreja, onde Rosa ia miudamente se confessar: sugeriu
25 anos de diferença de idade um do outro. Járelatamos diversos " ""ã parda Eugenia morar nas senzalas de seu convento, pois laja
casos de sacerdotes, nas Minas, à mesma época em que a escrava lanha a mulata Custódia, "que a assistia e tratava por seus
de Dona Ana Durão vivia no Inficcionado, que não resistiram à amores". O frade não se contentava, portanto, só com uma
tentação de solicitar suas confessandas durante o Sacramento concubina; queria duas barregãs, aliás, costume arraigado no
da Penitência, alguns mantendo relações duradouras e notórias _ 'clero colonial, merecendo do poeta Gregório de Matos um soneto
com suas mancebas da cor de ébano ou de canela, muitas delas "intitulado: "Aum clérigo [Padre Baltasar Miranda] que se dizia
presas ao cativeiro, outras, forras ou libertas. No Rio de Janeiro "estar amancebado de portas adentro com duas mulheres, uma
também, à época em que Rosa aí vivia, diversos sacerdotes negra e uma mulata." ., Também do mesmo Convento de Santo
seculares e regulares são igualmente denunciados à Inquisição António, em 1751, na época em'que Frei Agostinho terminava

390 391
Li •

seu provincialato, outro frade, Frei António de Santa Maria, é notório no Rio de Janeiro que este padre e a escrava mulata
denunciado por resvalar no mesmo pecado de solicitação ad Quitaria, 30 anos, eram amancebados, tendo inclusive gerado
turpia, mostrando que, neste venerando jardim seráfico, convi- um filho bastardo falecido logo após seu nascimento. Comenta-
viam, lado alado, austeros observantes, como oreferido santinho va-se, à boca pequena, que o padre proibira sua mulata de
Frei Fabiano de Cristo, e dissolutos "fodichões", como os dois confessar-se com outros sacerdotes. Além disso, ensinou-lhe
solicitantes franciscanos ora citados. Na residência do Carmo, meios cabalísticos e suspeitos de "abrandar os ânimos das
em 1747, é a vez de ser acusado ao Santo Ofício o mestre jubilado criaturas". Quitéria, antes tão dócil, desde que convivia com o
de Teologia, Frei João de Moura: mais pudico que os anteriores, ~ clérigo tornara-se, no dizer de sua dona, "imprudente e absoluta,
gostaya de tecer suspeitos elogios a suas penitentes, ou fazer-
1. lhes indiscretas e maliciosas perguntinhas, convidando-as in-
clusiveairemàsuacelaparafinspecaminosos. Outro religioso
dando-lhe respostas". Cauteloso, PadreBaltasar, quando queria
comunicar-se com Quitéria, vinha à sua janela disfarçado com
-meias brancas e chapéu de abas caídas, disfarce que não enco-
ousado foi o Padre António Teixeira, jesuíta do Colégio do Rio briu-lhe a paixão, tanto que suas peripécias eróticas foram
de Janeiro, que viveu muitos anos amancebado com uma parda, " registradas no mesmo Caderno na 26 dos Solicitantes, à folha
Inácia, ~ 390, no Arquivo da Torre do Tombo.
•• - ',-.- Durante os dez anos que Rosa viveu recolhida no Rio de
"a qual introduzia à noite na clausura, ficando uma vez Janeiro, pelo menos sete sacerdotes deste bispado foram denun-
oito dias seguidos em seu cxibículo, saindo à noite para ciados à Inquisição por irregularidades tocantes à solicitação no
fartar com outras mulheres seu apetite... O mais prostituto — confessionário: o já citado Frei António de Santa Maria, OFM;
que jamais se viu, outrossim, foi o Padre Luiz Cardoso, ~ Padre Bento de Sousa Alvares; Padre Bernardo Pereira; os
morador no Engenho Velho, a quem poucas escravas lhe jesuítas Inácio Antunes e José Nogueira; o Padre Francisco
escapavam... A Quinta de São Cristóvão tem sido uma Xavier Tavares de Morais e o frade Frei Manuel do Sacramento
Sodoma, principalmente nos tempos em que leram filosofia ^Sequeira. Destes, os dois jesuítas foram denunciados por Soror
os Padres Manuel de Araújo, Manuel Cardim e Francisco J~Arfa Luiza de Santa Clara, religiosa do Convento da Ajuda.
de Faria, cujos discípulos, sem temor de Deus, nem vergo- _~Portanto, nem mesmo às "esposas de Cristo" os confessores
nha dos homens, pelas cercas, vaiadas e matas, gastavam poupavam de suas investidas pornossacramentais. Além desta
o dia todo com as escravas e outras mulheres"... freira da Ajuda, Soror Ana do Monte Carmelo, do Convento de
TSanta Teresa, também denunciou ao Santo Oficio, por terem-na
Tais informações foram prestadas ao próprio Dom António
namorado, três de seus confessores: Frei António de São Vicente
do Desterro por um ex-jesuíta, o Padre Bento Pinheiro d'Horta Ferreira, do mesmo convento do confessor de Rosa, e os Padres
da Silva Cepeda, por ocasião da expulsão da Companhia de Jesus •António José de Castro e Fernando Salgado. Soror Bernarda
do Brasil. . -Tomásia do Nascimento, ursulina, denunciou, em 1748, as in-
Aindanamesma Candelária, outro capelão, Padre Fernan- vestidas imorais do Padre Caetano Róis de Vasconcelos. Prati-
do Alves B atista, perguntou a uma confitente "por qual porta da ..camente, em todos os conventos e recolhimentos do Brasil há
casa entrava seu amante à noite?", tendo como intenção seguir- registros destas intimidades pecaminosas entre confessores e
lhe o mesmo itinerário até à cama desta cobiçada mulher. No enclausuradas: no Recolhimento de Nossa Senhora da Conceição
ano seguinte a esta confissão, 1747, outra denúncia sobre as das Meicaúbas, MG, Padre Manuel de Oliveira Rabelo, em.1759,
safadezas do PadreBartolomeuVaz, presbítero secular, natural confessou que duas religiosas tomaram a iniciativa de seduzi-lo,
das Ilhas, e morador na mesma paróquia que o precedente. Era

392 393
mandando-lhe billietinh.os "com palavras afetuosas e pedindo- sobretudo do escandaloso ménage à trois, incluindo a menina
lhe ósculos".16No Convento da Soledade, daBahia, Madre Maria menor de idade, que levou Frei Agostinho ao bispo, e este a
Bernarda do Sacramento denunciou, em 1762, que o Padre decidir-se pela expulsão da hipócrita recolhida, madalena sim,
Anastácio Pereira mantinha consigo práticas e comunicações arrependida não! A_confusâo com jjojia^Quitéria, a mulher do
amorosas.. letrado naigrej a dos francis^cjno^Joj^goj:a_d!águajifiateJtar.bilhão
Tal era o clima de licenciosidade e volúpia reinante no clero de desènSõntTOS^einfoEtúnios.que tinha a negra endemoniadacomo
do Rio de Janeiro, não poupando sequer as esposas de Cristo epicentro.
que, por voto ou opção, abandonaram o mundo para, na pureza Numa carta de Faustina a seus pais, escritaprovavelmente
e castidade, entregarem-se imaculadas ao Bom Pastor. Que poucos dias após a expulsão da "Abelha Mestra" de seu cortiço
pensar, então, de uma ex-prostituta, na flor da idade, publica- místico, a noviça mineira assim retrata tais episódios:
mente apontada como manceba do clérigo português, acompa- -~"~*'~"

nhando-o por onde andava nos últimos dez anos de sua vida? fc.; - . "Na segunda-feira veio o meirinho geral, das igrejas para
Acrescentem-se à notória fama duas denúncias de tentativas de '"^'riòs tirar do Sacro Colégio com uma excomunhão, proibindo
atos impuros: a primeira, formulada por seu próprio suposto : 'õ padre e Rosa de falarem com as recolhidas. O padre e
amante; a segunda, pela regente do recolhimento, tentativas, ""minha mãe Rosa ficarain apaixonadíssimos e com muitas
quem sabe,. bem-sucedidas, posto não nos informarem com f • lágrimas, pois foram cinco anos de tantos trabalhos para
precisão os documentos se tais atos chegaram a se consumar. ' receber tão bom pago! Estivemos fora treze dias paxá
O depoimento de algumas recolhidas que conviveram com ' sermos perguntadas, porém Deus é todo-poderoso e con-
Madre Egipcíaca corrobora a suspeita de que "Rosinha" — como fundiu a todas maquinações que queriam aniquilar a casa
/ o capelão gostava de cliamá-íã—e seu ^^^^^"Ministro", como de Deus. Chamo por Jesus, meu Capitão General, e por
a ele costumava se referira courana, mantiveram anos seguidos minha Mãe amada, Mestra e Madrinha, que está disposta
relaçõesTn'ai"s~íntimã"s~e 'dioilisíacas do~que~a~ simples interação a sustentar sua verdade a quantos forem, os tormentos..."
de exorcista e energúmena. As Irmãs Fr ancisca Tom"ásia e Maria
Jacinta declararam que q Padre Francisco, muitas vezes, de dia Impossível saber se, de fato, Faustina Arvelos dizia o que
ou de noite, ia visitar Rosa dentro do recolhimento, permane- sentia, ou escrevia, com seu próprio punho, o que lhe ditavam
cendo horas seguidas no interior de sua cela, sempre de porta seus superiores. Neste caso, quem estaria ao pé de seu ouvido:
fechada. Só quando comiam e bebiam juntos é que abriam a _a própria Rosa, o Padre Francisco, Leandra ou alguma das
porta. Contaram mais: que o padre muitas noites ficava no evangelistas? Impossível responder a este enigma.
cubículo de-Mãe Rosa até às 2 ou 3 horas depois da meia-noite, ~~ Por sete meses seguidos, a "Ab,eJh.aJB^nh^lfiça]cá.p_roibida
"fechando-se ambos no cubículo, dizendo que lhe queria dar de entrar em sua colmeia, nesta "nobre casa", em cuja, fondação
conta de seu Espírito". Intimidade suspeita demais e proibida ta£.to_s.eMemp,e_nhara. Neste segundo semestre de 1758, dester-
pelo Rituole Romanwn que determinava fossem os exorcismes rada do Parto, Rosa viveu, primeiro em casa de sua fiel devota,
realizados publicamente.dentro da igreja, pois, mesmo sendo Dona Maria Tecla de Jesus, viúva de 48 anos, moradora à rua
forte o espírito, a carne fraquejava.. Às vezes era a própria da Ajuda. Depois, foi viver na própria residência do Padre
espiritada quem "saía para a casa do padre, dizendo que era Francisco, anexa, ao recolhimento. Em, carta de 26 de setembro
para dar conta de seu Espírito". . deste mesmo ano, assim escrevia o capelão a seu compadre do
Deve.ter sido a revelação de tais suspeitas intimidades, Rio das Mortes:

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395

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vida como um navegante sobre mar com muitas tempesta- m.
"Não tema! Entregue tudo a Deus, pois tudo o mais são
estratagemas do Diabo. Eu e minhas filhas, com a ajuda
-' dês no que respeita o mundo, porque já o tenho renunciado
.-, e a seus bens e respeitos. Vou com muita felicidade no que
m
de Deus, estamos prontos para brigar com todo o inferno e "/ respeita ao Meu Jesus, [pois se] ele é por mim, ninguém é •
seus sequazes. Rosa está aqui comigo. Não está dentro do
recolhimento porque eu não quero ainda, mas é ela que
.contra mim. Confio na Senhora Santana e chegar com
: vitória ao fim. da navegação, com feliz sucesso, pois creio
t
governa as suas filhas, e, no dizer de Faustina, é a regente. . em Deus, espero em Deus e confio em Deus com toda a fé,
Ela está em todo o sentido boa, e Francisca o mesmo. Não " por isto às vezes me rio deste louco mundo, das suas
sr
tenha susto de nada porque Deus é conosco." embustices, porque, apesar de Lúcifer e de todos seus
sequazes, eu hei de lhes quebrar a castanha na boca e hão
Dois dias depois é a própria expulsa quem. escreve aos í-:de confessar o poder de meus Santíssimos Corações, não
mesmos destinatários. Já transcrevemos alhures o início desta •jí-só os demónios dos infernos também os mortos. Sou uma
carta onde Rosa chama seu ex-senhor de filho, justificando tal y alma peregrina solitária, acompanhada com o meu Padre
familiaridade "não por glória de meu coração, senão por glória Francisco: agora estou morando com. ele. Quanto às meni-
do Coração de meu Senhor Jesus Cristo". Mesmo humilhada. nas, não foram vocês que as ofereceram, nem mandaram
Rosa Maria não esmorece em sua convicção de que fora predes- para o recolhimento, mas foi Deus que as chamou e há de
tinada para grandes desígnios, promessa feita por Deus quando suportá-las para sempre." *
l trocou seu coração com o da visionária. E completa a carta, às •
vezes mais mística, às vezes poeta: Na conclusão, novamente Madre Rosa refere-se a seus
detratores: "Duas castas de gente me perseguem e ambas vão *
"Minha casa, onde estão os Sagrados Corações, está enganadas: uns que dizem que tenho pacto com o Demónio. Para
sempre sendo atacada pelo Demónio, que tem nos homens estes, diz o Senhor que cairão no abismo de sua condenação e
seus alcoviteiros e mensageiros. Dou, contudo, parabéns a caminham com o sambenito da culpa. Outros dizem que sou
Vossas Mercês que têm aqui na Casa de Deus dois soldados enganada pelo Demónio." *
como estrelas do céu, como duas flores do jardim de meu
coração, que é a mesma, coisa que dizer que são do jardim
Certamente Rosa incluiu Frei Agostinho nesta última
categoria, desde que ele desacreditou em sua santidade e rasgou
*
do Coração de Jesus..." seus escritos espirituais. Deve ter sido pelos fins de agosto, *
começo de setembro de 1758, que o "Provincial Velho" veio a
Quem lê as cartas de Rosa, deste período, fica com a falecer. Este franciscano teve papel fundamental na vida de
impressão dividida: ou a negra era mesmo virtuosa e estava nossa santa desde que chegou ao Rio de Janeiro: foi seu pai
segura de que a Divina Providência não a desampararia, mesmo espiritual e a introduziu nas moradas internas da vida mística,
f:
quando insultada pelo novo provincial franciscano e expulsa do sustentando-a materialmente, por anos seguidos, até recolher-
i. recolhimento, ou então, para não assustar a família Arvelos,
cujas duas filhas continuavam recolhidas no Parto, procura
se. Gostava Frei Agostinho de auto-intitular-se "Fundador do
Recolhimento do Parto". Primeiro exercera o cargo de guardião,
transmitir, assim como fazia o capelão, imagem tranquilizador a sendo eleito provincial para o triénio 1748-1751. Conserva-se,
destes dramáticos momentos: deste período, uma pastoral de sua iniciativa, onde revela o
lastimoso estado da província franciscana, devido àinobservân-
"Hei de relatar a Vossa Mercê que vou correndo minha

-i
396 397
-___

*.]•

cia das leis, sobretudo a da pobreza. Regulamenta minuciosa- aquela voz, que lhe disse que era o Menino Jesus de Nossa
mente o cardápio da comunidade, "não passando de quatro Senhora do Carmo, e que lhe certificava que o dito Frei
pratos diários, e nas festas seis pratos diferentes". Proíbe a Agostinho havia de morrer daquela enfermidade em que
realização de exorcismes fora do convento e à noite, restringin- estava e havia de ser réprobo pela ingratidão que tinha, e
do-se às pessoas de distinção, benfeitores e devotos da Ordem, com isto desapareceu atai voz e com efeito sucedeu amorrer
"nunca a negros e mulatos, a quem se dê a bênção, somente à • nessa ocasião o dito padre."
tarde. Os religiosos que têm confessandas particulares, ouçam-
nas até às 10 horas, e não se dê a comunhão depois do meio-dia". A morte do confessor de Rosa deu motivo a muita especu-
Devemos a Frei Agostinho de São José a construção do segundo lação dentro do Recolhimento do Parto e por parte dos devotos
andar do Convento de Santo António, empreendimento arqui- da visionária. O próprio capelão escrevia aos Arvelos, em outu-
tetônico arrojado que até hojepodemos admirar. Foi este frade bro deste mesmo ano: "Rezem em sufrágio de Frei Agostinho
que estimulou nossa beata a escrever suas visões, permitindo para que Deus o livre das prisões em que está, para poder
tão-somente a Frei José de Santa Maria Silva, guardião do restaurar o crédito que [Rosa] tinha, para bem de muitas almas.
convento, ouvi-la em confissão quando ele próprio estava impe- Que [Deus] tenha compaixão dele, pois tudo o que se faz nesta
dido. Rosa, por seu turno, idolatrava seu benfeitor, qualifican- Santa Casa é por Ele. E mais não posso explicar porque não
do-o em suas cartas como "virtuoso, justo, douto e prudente". permite Deus."
Comparavá-o ao doutor da igreja, Santo Agostinho. Paixão Foram, sobretudo, as amigas mais íntimas de Madre Egip-
recíproca, pois ela escrevera certa vez: "Não tenho língua para cíaca que divulgaram revelações envolvendo a figura do finado
explicar o amor com que Frei Agostinho me ama!" Amor exclu- franciscano: no Parto, além de Rosa, várias outras recolhidas
sivamente espiritual ou também, este velho português não teria também eram espiritadas, possuindo igual dom de visões e
resistido aos encantos carnais desta sedutora negra mina, cale- profecias. Entre elas, a amiga mais íntima da "regente", Irmã
jada na arte de dar prazer aos homens? Ana do Coração de Maria, que "viu a alma de Frei Agostinho
Quando estava tudo às mil maravilhas para a vidente, padecendo ao pé do inferno, onde ouvia as blasfémias que os
mandando e desmandando em "seu" recolhimento, eis que, condenados diziam, e padecia muito porque, crendo na negra
estando em oração, viu diante de si o coração de seu confessor Rosa, depois duvidara". Leandra, sua fiel companheira desde o
atado com um novelo de linhas "que são os enredos, injustiças e Inficcionado, "muitas vezes dizia estar encarnada em si a alma
mexericos, dúvidas, incredulidade e contradições" que iam ser de Frei Agostinho, gritando: 'Eu sou a alma de Frei Agostinho!'"
levantados contra si. Nesta mesma quadra, nossa beata tem A própria Rosa divulgava que a alma de seu confessor estava na
outra revelação à moda de profecia complementar àqueloutra: porta do inferno, de onde via os terríveis tormentos sofridos pelos
réprobos, e que só sairia deste lugar tenebroso quando ela
"Estando ela, depoente, em uma noite dormindo, e tendo passasse deste vale de lágrimas para a glória celestial. Embora
antes aviso de seu confessor Frei Agostinho que se achava merecesse o inferno, ficou penando apenas em suas portas, pois
então enfermo, e -mandando-lhe pedir rogasse a Deus por • Rosa garantira que todos que a tivessem tomado por mãe seriam
ele, acordou ela desse sono em que estava, e ouviu uma voz salvos: "Frei Agostinho teve sua sentença embargada por Nossa
no seu interior, em que lhe dizia que havia de morrer e ser Senhora, porque ele fora confessor de Rosa", comentava Padre
1 réprobo [pessoa má destinada por Deus às penas eternas]. Francisco numa de suas missivas. Aliás, este velho sacerdote,
Com isto se afligiu muito ela mesma,-e entrou a conjurar amigo íntimo de Frei Agostinho, escolhido por ele próprio para

398 399
ser o capelão desta casa recoleta, jogava mais lenha na fogueira vinha pedir perdão do mal que lhe tinha feito, porque a dita
do finado franciscano, ora ratificando a visão de que o frade regente Maria Teresa o enganou, e que da parte de Deus
estava penando na porta da geena, ora divulgando outra versão: lhe pedia que mandasse dizer uma capela de missas que
que a alma de Frei Agostinho estava presa na portaria do se acabassem no dia de São Miguel, ditas no altar do
recolhimento, e que só iria para o céu depois de Rosa lá entrar. . Coração de Jesus pelo Padre Manuel Veloso. E com efeito,
Tal versão tinha como objetivo assustar as recolhidas que tives- ela, ré, tirando esmolas, satisfez a referida petição".
sem a tentação de deixar este "santo colégio", pois encontrar a
alma de um réprobo devia ser dos maiores temores que podiam Era costume, antigamente, pessoas piedosas pedirem es-
assaltar a imaginação piegas de nossos antepassados do século molas aos fiéis para celebrar missas pelo sufrágio das almas do
XVHI. purgatório. Assim fazendo, Rosa cumpria duplo objetivo: de-
Foi, contudo, Irmã Ana Clara quem teve a visão mais monstrava sua humildade e sentimento cristão, mendigando
elaborada relativa ao embroglio Frei Agostinho: doações para o refrigério da alma do frade que fora o causador
de sua expulsão do recolhimento e, indo de porta em porta,
"Viu Rosa com muitas glórias no céu e, em cima dela, esmolando para o pagamento de uma capela de missas, tinha
um buraco com uma árvore próxima, com muitas frutas, e oportunidade de dar sua versão sobre estes polémicos sucessos
'
l quantos pegavam nelas, caíam no buraco, que eraoinferno,
e a tal árvore era Frei Agostinho, as frutas eram as dúvidas
e divulgar as visões que ela e as demais recolhidas tinham tido
sobre os infoi-túnios sofridos pela alma do frade detrator. Faus-
que punham à santidade de Rosa, e os que caíam no buraco, tina Arvelos contoumesmo que anegra Ana do Coração de Maria
os que duvidavam de sua virtude e santidade." afirmara ter recebido ordem divina "para que mandasse a
Regente Maria Teresa falar com o bispo e lhe dissesse que vira
Quer dizer: ou se acredita em Madre Rosa, ou se é conde- a alma de Frei Agostinho pedindo que lhe desse licença para ir
nado ao fogo do inferno. O próprio Cristo já não dissera, "quem pelas freguesias para restituir o crédito de Rosa, pois ele não
não é por mim, é contra mim"? .aass podia fazê-lo por ser defunto, já que ele fora o motivo de descon-
Até alguns devotos, da injustiçada africana receberam re- fiança do bispo". Não informam os documentos se a regente
velações condenatórias do caluniador Frei Agostinho: o sapatei- chegou de fato a cumprir tal missão itiner ante; o que ficapatente,
ro Inácio do Rosário, 37 anos, casado, morador à rua do Carmo, contudo, é que os devotos de Rosa ultrapassavam os limites da
declarou ter recebido a visita da alma do "Provincial Velho", cidade do Rio de Janeiro, espalhando-se por outras freguesias
dizendo "que era o Judas do Mistério que Rosa escrevia, por isto, do Recôncavo Fluminense.
estava em cárcere fechado com sete chaves, sendo carcereiro um Pelo visto, a expulsão de Rosa.de seu recolhimento não
Demónio". Cruz Credo! abalou a fé que seus devotos nela depositavam, tanto que teve
•iís: -saEísr,::
If Mãe de misericórdia" como era, Madre Rosa, mesmo tendo êxito em arrecadar soma suficiente para pagar a espórtula de
sua reputação gravemente abalada por seu ex-confessor, não o cinquenta missas, "uma capela", e, ainda mais, conseguiu, que
desamparou em seu desafortunadopost-mortem. Assim sendo, tais sufrágios fossem celebrados na própria capela que, através
de suas visões, Frei Agostinho mandara construir no altar do
"passados seis meses da morte de Frei Agostinho, em uma Coração de Jesus. O celebrante, Padre Manuel Veloso, certa-
noite, ouviu Rosa uns gemidos que, chegando-se para ela, mente era o mesmo Frei Manuel de Santa Teresa Veloso, que
ré, com eles, lhe disse uma voz que era a alma do dito padre, exerceu o cargo de guardião do convento franciscano entre 1757
e que melhor lhe fora não ter sido seu confessor, que lhe

400; 401
2
í- -'„

e 1761, o período de maior riqueza e- embelezamento desta 11. Matos, Gregório. Crónica do Viver Baiano Seiscentista. Salvador:
instituição multissecular. Para quem tinha sido chamada publi- Editora Janaína, s.d., pp. 287-290.
camente, há menos de um ano, de "cachorra e embusteira", pelo 12. As referências de solicitantes, sem indicação da fonte arquivística,
futuro provincial franciscano, Fxei Manuel da Encarnação, con- foram-me gentilmente fornecidas por Lana Lage.
seguir que o próprio guardião do convento celebrasse uma capela 13. ANTT, Inquisição de Lisboa, Caderno dos Solicitantes n2 26, fl. 142
de missas, no novo altar dos Sagrados Corações, representava (1747).
enorme vitória, quem sabe, até mesmo o reconhecimento, por 14. Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Lata 117, n° 18, Ofício de
Dom António do Desterro ao Rei (20-2-1761), "Relação sobre o Deplo-
parte de Frei Veloso e de sua facção, de que a expulsão e
rável Estado a que Chegou a Companhia de Jesus nesta Província do
ostracismo da negra foram uma iniquidade. Brasil", de autoria do ex-jesuíta Padre Cepeda..
A celebração destas missas reuniu em torno de Rosa uma 15. ANTT, Inquisição de Lisboa, Caderno dos Solicitantes na 26, fl. 219
dezena de fiéis devotos, inconformados com a injustiça praticada' (1746).
pelo bispo, expulsando-a do Parto, do "seu" recolhimento. Deve 16. ANTT, Inquisição de Lisboa, Caderno dos Solicitantes n3 30, fl. 57
ter sido exatamente após estas cerimónias fúnebres, em sufrágio (1759).
póstumo pela alma de seu confessor, que ocorre outro episódio 17. ANTT, Inquisição de Lisboa, Caderno dos Solicitantes n21.221, fl. 344
importantíssimo na vida atribulada desta vidente: a profecia do (1762).
dilúvio do Rio de Janeiro. 18. Rower, Frei Basflio. Op. cit., 1951, p. 109.
19. Idem, ibidem. Segundo este autor, em 1761, possuía a Província da
Imaculada Conceição 397 religiosos, atingindo 490 em 1764, período
áureo desta ordem, seguido de irrecuperável decadência, com a proibi-
ção pelo Marquês de Pombal da tomada de hábito de novos postulantes ao
Notas
noviciado.

1. Santa Rita Durão, Frei José. Caramuru. Lisboa: Regia Oficina


Tipográfica, 1781, p. 169.
2. Nascimento, Ana A.V. Op.\cit., s.d., p. 49.
3. Arquivo da Cúria do Rio de Janeiro, Livro II de Portarias, "Pastoral
. às Religiosas da Ajuda" (1750-1751), fl. 5.
é.FlosSanctorum,Op.cit.,p.l.21.
5. Arquivo do Convento da Soledade, Salvador: "Recopilação Memorial
da Fundação do Convento", Bahia, 1830.
6. Guerin, P. Lês Peiits Bollandistes. Vie dês Saints. Paris: Librairie
Bloud et Barrai, 1876, v. 12, p. 103.
7. Rower, Frei Basflio. História da Província Franciscana da Imacu-
lada Conceição do Brasil, Petrópolis: Vozes, 1951.
8. ANTT, Inquisição de Lisboa, Processo n9 3.890 (1740).
9. ANTT, Inquisição de Lisboa, Caderno dos Solicitantes 143-4-20, fl.
125 (1741).
10. ANTT, Inquisição de Lisboa, Caderno dos Solicitantes nfi 26, fl. 37
(9-11-1744). ' .,. ' '

402 403
a
í:

17

Profecia do Dilúvio
i;i

Após o espantoso terremoto de Lisboa, de 1a de novembro


de 1755, conforme já vimos, a população do Brasil entrou em
verdadeiro pânico, receando que a ira divina atingisse também
estas partes da América. Eis que cinco meses após a destruição
da capital do Reino, quando a notícia deste sinistro mal chegara
ao Brasil, uma terrível tempestade assolou o Rio de Janeiro,
levando seus habitantes a identificá-la como a manifestação do
chicote de Deus contra a colónia luso-americana. Segundo infor-
mação do principal cronista do Rio setecentista, Dr. Baltasar da
Silva Lisboa,

"as trovoadas ocasionaram grandes inundações. No dia 4


de abril de 1756, depois de uma hora da tarde, choveu tão
grossa e copiosa chuva, precedida de veementes concussões
de ar e espantosos furacões, por três dias ininterruptos,
que o temor e o susto apoderaram-se de tal sorte do ânimo
dos habitantes, que desde a primeira noite muita gente
desamparou as casas, as quais caíram, fugindo sem tino
para as igrejas. Desde então, as águas cresceram por tal
maneira que inundaram a rua dos Ourives e entraram
pelas casas adentro, por não caberem na vala. No dia 5,
saindo o Santíssimo da Sé, o sacerdote que levava o Senhor
foi descalço e também assim os irmãos da Irmandade do
Santíssimo. Todo o campopareciaumlagamar. Vadeavam-
se as ruas de canoas, e no dia 6 uma canoa navegou desde
o Valongo até a Igreja do Rosário dos Pretos [Catedral] com
sete pessoas dentro".
—znf~
. As inundações e deslizamentos contemporâneos ocorridos
nesta mesma cidade permitem-nos visualizar a calamidade
deste superalagamento de 1756.

405
Dom António do Desterro, em carta escrita ao Rei, três chega nova leva de barbadinhos, vindos agora da Itália, fundan-
meses após tais intempérieSj assim a elas se referia: do em 1742 o seuhospício, dedicado a Nossa Senhora da Oliveira,
sito no Caminho do Desterro, que então passou a chamar-se rua
"Nesta terra escapamos do terremoto, mas não das dos Barbônios e, hoje, rua Evaristo da Veiga. Mesmo antes de
inundações de chuvas tão violentas, que em pouco tempo oficialmente instalada a prefeitura capuchinha desta cidade,
se alagou parte desta cidade, arruinando-se bastantes alguns barbadinhos italianos percorreram o interior da Capita-
casas e fugindo a gente para os altos. Repetiram as chuvas • .nia do Rio de Janeiro, pregando as santas missões, uma-das
em mais duas ocasiões, abrigando-se a gente na capela do especialidades catequéticas desta agremiação religiosa. Já vi-
Palácio Episcopal, que fica no alto do Rio Comprido." mos que, em 1733, um tal Frei Jerônimo de Monte Reale, ao
visitar o Recolhimento em Macaúbas, ai instituiu a observância
E terminava confiante: "Queira a misericórdia de Deus que da Regra das franciscanas concepcionistas, e que, em 1748, na
estejamos livres de todo susto". vila de São João dei Rei, outro capuchinho, Frei Luiz de Perugia,
Certamente foi esta desastrosa e inédita inundação, a ao pregar na Matriz do Pilar, fora interrompido teatralmente
maior de que se teve notícia até então, na história da cidade de por nossa Rosa Negra, que vociferava como se fosse o próprio
São Sebastião, que serviu de inspiração para Madre Rosa, então Lúcifer.
expulsa do recolhimento, se tornar a mensageira de uma ater- Muito benquistos pelos bispos, diversos capuchinhos ita-
radora profecia: o Rio dlTJãneiro íãrsêFsubmerso por um dilúvio lianos acompanhavam os prelados em suas visitas pastorais,
muito mais destruidor do que as inundações dê~TT5"6. E embora causando muitas conversões e avivamento da piedade popular,
Rosa e seurecolhimentõTossem o"epicentrcrdêste vaticínio, coube através de suas dramáticas pregações, entremeadas por auto-
a um sacerdote capuchinho, Frei João Batista da Capo Fiume, flagelaçóes e espantosas descrições do fogo do inferno. Quando
a invenção e primeira divulgação desta falsa profecia. da visita do bispo do Rio de Janeiro às Minas Gerais, Dom João
Esta é a segunda vez que citamos o nome deste franciscano da Cruz, entre 1742 e 1744, acompanharam-no dois barbadinhos
capucho: quando do lançamento da primeira pedra do Recolhi- — Frei Jerônimo de Monte Reale e Frei Mariano, colhendo
mento do Parto, em 1754, escrevia o Padre Xota-Diabos que abundantes frutos espirituais e polpudas esmolas para a funda-
perante a melhor parte do clero fluminense "pregou Frei João ção de seu hospício no Desterro.
Batista, dosbafbônios, que fez grande sermão... enele se contém Frei GiovanniBattista, natural de Capo Fiume, pequeno
grande mistério". vilarejonobispado deBolonha,membro da família Sarti,nascido
Barbônios, barbadinhos; capuchos e capuchinhos, assim em. 29 de setembro de 1712, era sete anos mais novo do que Rosa
eram chamados os frades seguidores da' reforma franciscana Egipcíaca. Tomou hábito religioso em 1731, tendo sido enviado
iniciada por Frei Matteo Baschi, em 1528, que pretendiam para o Reino do Congo em 1742 na qualidade de missionário
pautar suas vidas e ministérios pormaiorpobrezae simplicidade apostólicopela Sagrada Congregação da Propaganda da Fé, onde
do que os frades menores, segundo eles, desviados do ideal os barbadinhos possuíam uma importante prefeitura. O mis-
primitivo ensinado pelopoverello de Assis. sionário apostólico, segundo os decretos gerais de Roma, devia
Os primeiros missionários da Ordem dos Frades Menores distinguir-se "pela viva fé, probidade dos costumes, doutrina,
Capuchinhos, ao chegarem ao Brasil vindos daFrança, em 1612, observânciaregular e zelo napregação do Evangelho, pondo todo
instalaram-se no Maranhão. Em 1659, a pedido da Câmara, empenho em alimentar a vida espiritual por meio da oração, do
abrem uma residência no Rio de Janeiro, anexa ao Recolhimento retiro anual de quinze dias e por outras práticas de piedade".
da Conceição, deixando porém'esta cidade em 1701. Em 1734

406 407

j
Estranhando o clima africano, logo Frei João Batista caiu O desafortunado Frei João Batista, como muitos outros
doente por longos meses, obtendo então licença para transferir- confrades seus da Ordinis Capuccinorum antes de desembarcar
se para o Rio de Janeiro, aí chegando em. 1746. Os ares do no Brasil, passara alguns anos nos Reinos do Congo e .Angola,
Desterro fizeram-lbe bem, tanto que, mal desembarcado, parte já tendo, portanto, certa familiaridade com a evangelização dos
com Frei Jacinto de Foligno a missionar pelo interior da Capi- negros e com a língua portuguesa, falada naqueles territórios
tania, retornando ao Hospício de Nossa Senhora da Oliveira em pertencentes, como o Brasil, a Portugal. A África servia-lhes
1748. A pedido do vigário capitular de São Paulo, parte de novo como uma espécie de noviciado para o trabalho apostólico na
em missão, em 1749, acompanhando agora Frei Francisco de América Portuguesa. Nosso Frei João Batista não foi o único
Gubio, percorrendo zonas onde nunca haviam estado antes frade neste período a ter sérios problemas mentais ao chegar ao
outros missionários e colhendo copiosos frutos espirituais de Brasil: Frei Francisco António Novi, de Génova, indo substituir
suas candentes pregações. Conforme relata um documento da seu colega enlouquecido, também foi atacado pela mesma de-
época, mência, só que "manifestou loucura benigna, com perda de
memória e sinais de alienação". Por recomendação médica, foi
"todo capuchinho se empenha em cumprir fielmente seu embarcado para Lisboa no ano de 1756. Por conta própria,
ministério na assiduidade ao confessionário; na pregação í ~ porém, e à revelia de seus superiores, desembarcouna ouvidoria
da palavra de Deus e no ensino do catecismo dominical do Espírito Santo, "onde obrou muitas inconveniências". Só no
dialogado, com duração de oito rneses por ano, com grande ano seguinte foi localizado e preso na vila de Porto Seguro, a
participação do povo e proveito das almas; na assistência muitas léguas distante de Vitória. Remetido para a Europa,
• aos moribundos; na visita aos enfermos; no exorcismo aos morreu em 1758.
endemoniados; no auxílio aos pobres em suas necessidades Que circunstâncias, choques, poções, paixões ou emoções
espirituais e materiais, mediante a esmola que recebem incontroláveis teriam causado a loucura nestes dois frades
dos ricos",7 • italianos, no período de menos de um ano, no mesmo interior da
Capitania de São Paulo? Que comportamentos exóticos, agres-
Tanto ela missionário num frade convalescente de sivos ou benignos teriam sido diagnosticados naquela época
doenças adquiridas naAfrica redundou em funestas con- como loucura? Infelizmente, não temos a resposta, mas encon-
sequências ao frade de Capo Fiume. Tanto que, "certo dia, tramos, outrossim, um documento, no Livro das Portarias de
no púlpito, no auge de seu arrebatamento, Frei João Ba- Dom António do Desterro, datado de 1759, portanto, à época
tista enlouqueceu. A superexcitação de seu sistema nervo- destes endoidecimentos, que permite-nos supor ser a loucura
so o fez louco furioso. Interrompeu-se a missão e voltaram dos barbônios, em terras brasílicas, grave e frequente preocu-
ambos para o Rio de Janeiro, indo amarrado e muito bem pação para a direção deste grémio religioso. Trata-se de uma
acompanhado o pobre religioso. No Rio tiveram que acor- resolução da Sagrada Congregação de Propaganda da Fé auto-
rentá-lo, sendo mantido fechado numa cela forte por cinco rizando o prefeito dos capuchinhos do Rio de Janeiro a remeter
meses "até recuperar a saúde. Embarcou a 22 de maio de para suas províncias de origem os missionários "que enlouque-
1758 para .Lisboa —- insistindo com sua particular ordem cerem e curados que não melhorarem". Por esta época, segundo
o Exms Prelado, e com obediência e consentimento de toda informa o bispo do Rio de Janeiro, viviam nesta cidade 14
família [capuchinha] pelo iminente receio de recair na ' barbadinhos, "homens muito apostólicos, insignes na virtude e
passada doidice". Morreu emBolonha a 5 de junho de 1786, muito úteis ao bispado. Gozam do subsídio não pequeno das
com 74 anos.

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esmolas". O próprio Dom António do Desterro, inspirado por imediações do Morro do Desterro, a negra recém-chegada das
piedoso ela religioso, recebeu, em 1756, das mãos do barbadinho Minas provavelmente frequentou a Igreja de Nossa Senhora da
Frei Anselmo de Castelo Bertrand, o cordão de irmão da Ordem Oliveira, sita na mesma elevação. Sua devoção ao Menino Jesus
Terceira dos Mínimos de São Francisco de Paula, tornando-se da Porciúncula também pode ter sido inspirada pelos barbônios,
vice-comissário da irmandade' e revelando, por tal ato, a boa mais ainda do que pelos frades menores, principais propagan-
acolhida dapopulação à espiritualidade capuchinha, aindamais distas desta invocação. O conhecimento entre ambos, com cer-
emotiva e barroca do que a de seus irmãos seráficos: a primeira teza, é anterior a 1754, data em que Frei João Batista recitou o
esmola recebida para a instituição da ermida de São Francisco impressionante sermão inaugural das obras do Parto, sermão
de Sales foi uma escrava, que, vendida, rendeu 64$000 para a revelador de um "grande mistério". Diz uma testemunha do
pia fundação. processo de Rosa, José de Souza, natural de Mariana, 38 anos,
Ora, segundo rezara as crónicas, se Frei João Batista, "no "que vive de sua arte de música", morador à rua da Cadeia, que
auge de seu arrebatamento, fez-se louco furioso", por volta de Frei João Batista "confessava e dirigia Rosa" — provavelmente
1749, em 1754, quando da bênção da primeira pedra do Reco- assumindo tal orientação com exclusividade, após a morte de
lhimento do Parto, já devia estar curado, pois ele próprio fora Frei Agostinho de São José, muito embora já se conhecessem há
encarregado de recitar o sermão inaugural desta nova agremia- mais tempo. Outra testemunha, José da Silva Lobato, 35 anos,
ção de madalenas arrependidas, sermão pregado na frente da também músico e natural de Ouro Preto, informou que o frade
fina flor do clero fluminense, e, segundo comentava o Padre barbadinho "ia muitas vezes ao recolhimento falar com Rosa",
Xota-Diabos em uma carta já citada, causou a melhor das corroborando a ilação de que era íntimo e intenso o colóquio
impressões nos ouvintes, tanto que prometera enviar cópias do espiritual entre ambos.
mesmo para seus compadres no Rio das Mortes. Lastimavel- Tendo missionado na África, o jovem capuchinho deve ter
mente até agora não conseguimos encontrá-la: quem sabe ainda ficado vivamente impressionado com abeata cour anã, tão devota
se conserve entre os despojos deste missionário, no convento e iluminadapela graça divina. "Frei João Batista dizia que Rosa
onde expirou, na sua Bolonha natal? era mulher de vida exemplar e inculpável, que tivera muitas
Como lembra o estudioso Lycurgo Santos Filhos, em sua visões, êxtases, e que Deus a escolhera para revelar mistérios
História Geral daMedicinaBrasileira, "consideradospossessos, altíssimos e do futuro, causando pasmo e confusão daqueles que
danados, os psicóticos, os dementes foram exorcizados e escon- não criam na virtude dela e nas grandes coisas que estavam
jurados, acorrentados e surrados. Não eram recolhidos a noso- destinadas àquele recolhimento." O depoimento é de Feliciano
cômios, mas às prisões. A cadeia ainda há pouco tempo foi o Joaquim de Souza, 40 anos, "morador junto às freiras da Con-
hospital dos loucos". 2 ceição". Foi, portanto, em. consideração a tão sublimes desígnios,
Não sabe~mos em que constitui "o rigoroso tratamento" a que o frade a escolheu para ser o arauto do castigo divino contra
que o infeliz frade louco foi submetido em sua fúria: fez efeito o povo da dissoluta Rio de Janeiro. Escolha, diga-se de passagem,
parcial, pois, embora Frei João Batista fosse reintegrado ao astuta e prudente, pois, caso aprofecia não se cumprisse, o fiasco
ministério sacerdotal, passou ater alucinações místicas — entre e descrédito seriam da negra e não dele.
elas a de que-o Rio de Janeiro seria destruído por um dilúvio. Embora algumas testemunhas tenham atribuído a Rosa a
Voltemos à profecia. "•' autoria deste vaticínio, não há dúvida de que Frei João Batista
Devia datar de alguns anos o relacionamento de Rosa com foi seu inspirador. Padre Vicente Ferreira, carioca de 24 anos,
Frei João Batista da Capo Fiume: tendo primeiro residido nas morador na rua de São Pedro, freguesia da Candelária, depôs

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ter ele próprio ouvido o carmelita Frei Domingos Lourenço as recolhidas em oração no coro, entrou em êxtase decla-
afirmar ter denunciado ao comissário do Santo Oficio — Padre rando
Fernandes Simões —, que Frei João B atista profetizar a a inun-
dação desta cidade por um dilúvio, usando Rosa como divulga- "que o Arcanjo Gabriel falava por sua boca e que todos
dora do prognostico. Tal profecia deve ter nascido na mente se concentrassem porque Deus havia de arrasar o Rio de
alucinada do frade aloucado, em decorrência dos maus costumes Janeiro, que não ficaria pedra sobre pedra, só escapando
e impiedade dominantes na principal cidade portuária da Amé- os que estivessem na arca. Perguntou então o Padre Fran-
rica Portuguesa. Para os intransigentes e fanáticos capuchi- cisco Gonçalves Lopes, que estava presente, como confir-
nhos, o Rio de Janeiro parecia-lhes ora uma Babel, ora Sodoma mava aquela embaixada? Respondeu ela que, por aquela
e Gomorra, Numa carta assinada por Frei António de Perugia, [relíquia] do Santo Lenho que em si tinha, ò confirmava;, e
esta cidade era descrita como "uma mistura de judeus, gentios aí o padre a confirmou e mandou que todos se pusessem,
e pagãos, com poucos cristãos, cujos costumes estavam em bem com Deus".
manifesto contraste com os mandamentos da lei de Deus e com
os preceitos da Igreja. No seio do clero regular e secular cam- Francisca Arvelos, que estava presente no coro quando
peavam, de modo espantoso, a simonia e a corrupção". desta revelação, disse que a data marcada para acontecer o
Dada a gravidade do esperado castigo divino, pois o dilúvio dilúvio seria "no dia doMissus est, e se havia de arrasar a cidade,
arrasaria toda a população do Rio de Janeiro, convinha quê tal somente escapando as pessoas que estivessem no recolhimento.
profecia fosse amplamente divulgada, para que o maior número
possível de eleitos escapasse à destruição. Como Rosa estava
E quando se principiasse aquele estrago, deviamfechar asportas
e janelas e que se avisassem os devotos de Rosa". *

vivendo extramuros, proibida até de entrar no recolhimento, foi Há contradição entre as testemunhas quanto ao dia profe-
sua fiel vassala, Irmã Ana do Coração de Maria, quem encarre- tizado para ocorrer o dilúvio. Esta mesma informante ora citada •
gou-se de divulgar, dentro da comunidade, o iminente castigo disse assim: "parece que foi em 1758, pelos meses de fevereiro
pluvial. Com certeza, o frade barbônio estava por trás de tais ou março, logo depois da Páscoa"; o cirurgião Moreira citou o dia
episódios, estimulando e aprovando novas visões ratificadoras de São Tomé, 21 de dezembro de 1758; um grande devoto de
da profecia. Informa Feliciano Joaquim de Sousa, o músico há Rosa, Francisco Xavier, morador na Ilha de Paquetá, afirmou
pouco citado, que :. que tal evento ocorreu dois anos após o terremoto de Lisboa, e
ele próprio presenciara um curioso diálogo da vidente com o *

"no castigo ao Rio de Janeiro, o Recolhimento dos Santís- frade italiano, quando então acertaram o dia fatídico: "Frei João
simos Corações seria como a arca de Noé, pois aí se guar- B atista disse à Rosa: Missus est, e ela respondeu: Tristis est
dava uma prenda preciosíssima, e a mais maravilhosa que anima mea. E o frade disse então que em 25 de março o *
ali se guardava fora trazida pelo Arcanjo São Miguel e Recolhimento do Parto ia se tornar a arca do dilúvio." Infeliz-
entregue a Madre Rosa, e, naquele momento da entrega, mente a documentação não permite concluir cabalmente o ano
se enfureceram de tal sorte os Demónios, que causaram deste episódio, parecendo-nos mais provável que tenha ocorrido
nesta cidade a terrível trovoada ocorrida no dia dos Reis". em 1759,
Irmã Ana do Coração de Maria divulga amplamente dentro Reunindo este diálogo com a visão de Ana do Coração de
efora da comunidade suaúltimavisão: certanoite, estando Maria, encontramos a chave do enigma. Dia 24 de março a Igreja
comemora a festa de São Gabriel Arcanjo, o grande mensageiro *
da Encarnação do Verbo Divino. Daí Irmã do Coração de Maria •
o
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dizer-se possuída pelo dito Arcanjo e ter anunciado que o dilúvio viera de sua fazenda de farinha, no Recôncavo da baía de
seria no dia do Missus est. Dia 25 de março é a festa da Guanabara, temerosa de que as águas do dilúvio chegassem até
Anunciação de Nossa Senhora, lendo-se no Evangelho da missa sua propriedade. Esta informante declarou no processo que,
deste dia que in illo tempore, missusestAngelus Gabriel aDeo... diversamente do esperado por todos, o dia 25 de março "foi um
("naquele tempo, foi enviado o Anjo Gabriel por Deus...")- Dia dia muito sereno, sem demonstração de castigo". Entre orações,
duplamente significativo par a um grande evento, pois marca os ladainhas, atos de contrição e mais devoções propiciatórias,
dois maiores acontecimentos da história cristã: a Encarnação acotovelavam-se, com todos aqueles trastes, alfaias, alimentos,
de Deus e nossa redenção no Calvário. Conforme Rosa já ensi- crianças e rapazes, certamente também alguns escravos, ani-
nara numa de suas primeiras revelações, "25 de março era a mais domésticos e de estimação. De repente, "os refugiados
verdadeira Sexta-Feira [Santa] em que om.undo foiremido". Por ouviram por algum espaço de tempo um estrondo e movimento
isto, Madre Egipcíaca respondeu à saudação "Missus est" com de águas." "E com efeito", diz a mulher de Lucas Pereira,
*~
outro versículo do Evangelho "tristis est anima mea", a frase que "chegara mesmo a ver o chão coberto de água, porém, ficou
Cristo disse no Horto das Oliveiras, na Sexta-Feira Santa, pouco admirada de não ver vestígio de haver chovido nesse dia". Tais
antes de iniciar-se sua paixão. sinais, ou foram fruto de alucinação coletiva, ou recurso teatral
À passagem do Cometa Halley, aos 12 de março de 1759, escuso dos corifeus desta profecia, pois nenhuma gota de chuva
talvez tenha sido interpretada por nossos mistificadores como caiu do céu neste inesquecível dia da Anunciação.
prenúncio de próximas catástrofes. Frei João Batista e seus sequazes haviam planejado bem
Acertado o dia fatídico, só faltava aguardar que as compor- esta encenação mística: enquanto todos se achavam temerosos
tas dos céus fossem escancaradas, e_a_arca_deJRosa flutuasse e compungidos no Recolhimento do Parto, Rosa permanecia na
altaneipa-por sobre os muitos morros da dissoluta Rio dinfaneirò. Igreja de Santo António, no alto do morro da Carioca. José de
O dia esc^IEMc)^"ão3ro^arter~sixio-nrelhor: além de evocar Souza, o tal devoto músico de Mariana, um dos que estavam
riquíssima simbologia religiosa, estava dentro do período das refugiados na "arca", contou que, "de quando em quando, algu-
chuvas (a grande inundação de 1756 ocorrera exatamente na mas pessoas iam reparar na porta da igreja do recolhimento se
primeira semana de abril), daí sua escolha; se Deus não ajudas- Rosa saía da Igreja de Santo António, [pois] diziam, que, se ela
se, poderia cair algumachuvatípicadesta estação, cumprindo-se saísse, não havia de haver coisa alguma e, se Rosa viesse para
assim, indiretamente, o vaticínio. o Parto, havia de haver o dilúvio, e, se fosse para sua casa, então
Seguindo o conselho de Frei João Batista, as revelações de não haveria o castigo. E reparando que ela não veio para o
Irmã Ana do Coração de Maria e as admoestações de Rosa e de recolhimento, ficaram satisfeitos, e, passando poucos instantes,
seu capelão, "a partir daí recolheram muitos mantimentos no disse Frei João Batista que dessem graças a Deus porque já não
Parto, e muita gente: homens, mulheres casadas 'com suas haveria dilúvio algum, por estar aquela Pomba Rosa for a da arca
famílias, rapazes, todos levando seus bens, trastes, alfaias e e porque Deus tinha perdoado". Ana do Coração de Maria
mantimentos". Lá estavam dois sacerdotes: o capuchinho e o reforçou no mesmo tom a explicação do fiasco: "pelas orações de
Padre Xota-Diabos "e muita gente mais": 50,100, 200 pessoas? Rosa, Deus suspendera aquele castigo". Quando os sinos repi-
Dentre os presentes, com certeza, confirmaram as testemunhas caram ao meio-dia, Padre Francisco despachou as pessoas de
a presença dos principais e fiéis devotos de Rosa, entre eles toda volta para suas casas, mandando que agradecessem a miseri-
a.família da regente Maria Teresa do Sacramento. Uma das córdia de Deus, explicando que "não ocorrera o dilúvio porque a
assustadas devotas da africana, a mulher de Lucas Pereira, 'Abelha Mestra' não viera para o cortiço". Dona Maria Tecla de

414 415

Jesus, a viúva em cuja casa Rosa se albergava nesta época, regente, que declarou não passar tudo de calúnia, tenha levado 9
estava ao lado da vidente na igreja dos franciscanos neste dia as autoridades religiosas fluminenses a perdoar o padre e a A
25 de março e, ao voltarem para casa, Rosa lhe dissera que permitir o retorno da injustiçada Rosa ao mesmo recolhimento
"Nossa Senhora perdoara o castigo porque muitas pessoas se que tanto se empenhara em fundar. Afinal, errar é humano, e a 9
haviam sacramentado nesse dia e também porque elanão estava história da Igreja registra vários episódios semelhantes, de erros A<
no recolhimento, porque era arosa mais fragrante para o agrado de julgamento, como ocorreu na Idade Média com Santa Joana ^
de Deus". Aleluia, aleluia! A todos os refugiados, os dois sacer- d'Arc e, namesma época em que Rosa vivia, com o Santo Cardeal ^
dotes presentes "pediram muito segredo e que não revelassem Afonso de Liguori (1696-1787), fundador dos redentpristas, que £,
[o ocorrido] de modo algum!" também fora expulso de sua própria congregação 'e acabou por A
O fiasco do dilúvio não arrefeceu a fé dos devotos na beata receber as honras do altar.
africana. Entre o cumprimento da profecia de Frei João B atista, Dois acontecimentos ocorridos em 1759 talvez. tenham d
que previa a destruição do Rio de Janeiro pelas águas, e o contribuído favoravelmente para que o retorno dessa madalena m
aplacamento da ira divina, pela intercessão de Rosa, voltando negra à Casa do Parto passasse despercebido: 1759 é o ano da
cada qual para sua casa e parentela, certamente os refugiados expulsão dos jesuítas do Brasil, e Dom António do Desterro devia w
deram preferência à segunda solução, ficando reconhecidos à estar tão envolvido com tal quiproquó que não tinha tempo para A
"Abelha Mestra" por ter impedido que as águas submergissem, ocupar-se de questiúnculas de somenos importância envolvendo _
esta cidade./Deus seja louvado! uma ex-escrava. Outro fator, de ordem pessoal, não deve ser ™
Embora tal episódio tivesse ficado conhecido apenas pelo esquecido: como é sabido, o bispo do Rio de Janeiro sempre teve {£
pequeno rebanho dos devotos da beata africana, aconselhados saúde muito frágil. Já em 1753, em carta enviada à Corte, dizia A
que foram a conservarem em segredo tudo que viram e ouviram, que por onze meses estivera quase morto, "não estando capaz
o certo é que, a partir desta data— 25 de março de 1759 —, bons de governar o bispado com minhas moléstias". Em 1759, o W
ventos alçarão novamente Madre RosaMaria Egipcíaca da Vera mesmo ano dareassunção de Rosa ao Parto, o débil antístite por A
Cruz ao apogeu de sua glória terrena. pouco não falecia, passando talvez despercebida o retorno da
Tudo leva-nos a crer que as autoridades eclesiásticas per- vidente para o recolhimento. Ela própria refere-se ao estado ™
seguidoras de Rosa, ou acreditaram em sua inocência, ou sim- crítico da saúde de Dom António em uma de suas visões. A
plesmente, por inércia e esquecimento, deixaram-na recuperar Rosa deve ter ficado radiante de alegria ao voltar à sua ^
o espaço perdido: Rosa volta à sua querida fundação. casa santa, recolher-se novamente à sua cela, rever suas queri- ^
"Disse mais, que no ano de 1759, estando na igreja do das filhas e poder continuar sua caminhada na busca da santi- 0:
Recolhimento do Parto para comungar, pediram as recolhidas dade. Após quase um ano impedida de entrar em sua dileta ^
ao capelão que a deixassem entrar para receber com elas o morada e comunidade, humilhada e coberta de calúnias, a
Sacramento, e assim lho permitiu." Divina Providência abria-lhe de novo as portas da casa dos w
Causa-nos admiração que o capelão tivesse autoridade Sagrados Corações. Como ela sempre dizia: "as obras do Senhor ffc
para readmitir à comunidade uma recolhida expulsa por deter- sempre foram perseguidas e tentam jogar cizânia e embustices".
minação do vigário geral do bisp ado, com o beneplácito do próprio Seus infortúnios agora tinham a desforra: seu retorno era a ^
prelado. Talvez, como ele próprio, Padre Francisco, denunciado prova de que Deus não a desamparara, tanto que "o Soberano £
juntamente com a negra espiritada, de conduta imoral, sem Médico das almas lhe disse que aconteceria com ela igual a José A
mesmo assina ter perdido a capelania do Parto, o desmentido da do Egito que, desprezado e vendido, depois foi adorado como rei".

4.16 417
Algumas cartas deste ano, endereçadas sempre à família Pelo visto, o casal Arvelos foi bastante prolífero, pois, além
Arvelos, permitem-nos acompanhar a consolidação da fundação destas quatro donzelas, são mencionados nas cartas os nomes
do Recolhimento do Parto, assim como conhecer os sentimentos de outros filhos, a saber: Ana Maria, Emerenciana, Félix, Paulo
e preocupações de nossa biografada que, neste ano do Senhor de e Teodoro. Alguns destes eram afilhados do Padre Francisco,
1759, completava 40 anos de idade. outros, de Kosa.
Numa carta de 20 de dezembro de 1758, Rosa manifestava, Ao mandar suas quatro filhas mais velhas para o recolhi-
pela primeira vez, o desejo de que se tornassem igualmente mento dirigido por sua ex-escrava, o Sr. Arvelos se movia
recolhidas as outras duas filhas de seus compadres do Rio das basicamente por três razões: garantir rígida educação religiosa
Mortes: "E a vontade de Deus que mandem também as outras às meninas; protegê-las dos riscos de sedução ou de namoros
meninas, sem ficar especulando a vontade delas, porque nin- indesejados; obedecer aos desígnios celestes, que, através das
guém, as ama mais do que eu, que sou seu pai..." Da mesma mensagens do Padre Xota-Diabos e de Madre Rosa Egipcíaca,
forma, o Capelão Xota-Diabos manifestava semelhante alvitre, afiançavam terem sido suas filhas escolhidas para "esposas do
dizendo ao compadre Pedro Róis Arvelos "que Maria Jacinta Menino Jesus". Como veremos mais adiante, tanto Rosa quanto
viesse junto com Genoveva, mas se VbssaMercê puder sustentar seus devotos acreditavam estar próximo o fim dos tempos e
as que vêm, é bom, pois eu cá dou conta das que já estão". iminente a nova redenção do género humano; daí ser boa estra-
Deve ter sido pelos fins de fevereiro de 1759 que chegam tégia, na economia salvífica, abandonar o mundo e suas vaida-
ao Recolhimento dos Sagrados Corações mais duas filhas dos des, abraçando a vida religiosa, caminho certo para a glória
Arvelos, completando quatro irmãs carnais da mesma f amília a celeste.
serem enclausuradas: A preocupação pela integridade moral destas donzelas é
referida várias vezes em diversas cartas. Tanto o padre quanto
"Cá chegar amnossas filhas Maria Jacinta, muito alegre, Rosa aconselham aos Arvelos, repetidamente, que tivessem
e airmã Genoveva, mais triste, mas já estámais consolada cuidado, que fossem severos e vigilantes, impedindo sobretudo
e resolvida. O Menino Jesus tem feito mais atenção a elas intimidade de seus filhos com a escr avaria. Eis como a ex-escrava
do que às outras recolhidas, e elas já começam a aprender Madre Egipcíaca avaliava tal questão:
a humildade, que consiste na verdadeira vida espiritual. "Não consintam que a escrava Maria Benguela tenha
Que sejam como um tapete da cor da terra, que se devem comunicação com as meninas, porque muitas casas estão perdi-
pisar de todos, para depois se levantarem bem vistas aos das com semelhantes escravas, pela pouca cautela que há nos
olhos de Deus. Vossa Mercê tenha-se por mãe ditosa e pais e mães de família, porque se fiam nelas, por serem filhas,
afortunada, pois Nosso Senhor lhe tira de casa as filhas e nas escravas, por serem súditas, e, por tal confiança, há muita
para aliviá-la do trab alho de 'as andar vigiando e viver sem confusão no inferno, porque o pecado no tempo de se cometer,
sobressalto." [Carta de Rosa para Maria Teresa Arvelos, não há escolha, porque a tentação não dá lugar..."
de 13 de março de 1759] '"
l Que "tentação" seria esta: a do "amor que não ousa dizer o
Maria Jacinta tinha 13 anos quando entrou para o recolhi- nome"?
mento, e Genoveva, a mais velha e também a menos lúcida das E para reforçar a veracidade de seus conselhos — os
quatro irmãs, completava 19. Portanto, relembrando as idades mesmos que costumavam dar os jesuítas Antonil e Benci —,
.dás quatro filhas dos Arvelos-em 1759: Genoveva, 19 anos;
Faustina 1"6; Jacinta, 13, e Francisca Tomásia, 11.

418 419
conta Kosa uma curiosa história que disse ter ouvido ler num
.L-:'
avisos e lições são da parte de meu Senhor, que é zeloso do
livro de piedade: bem e me alumina para que lhes diga."
'Sim moço casou-se sete vezes, porque em todas as seis Não deve o leitor chocar-se com a autoridade e a violência
mulheres achou tudo desmanchado e bulido — aí elas dos ditames desta ex-escrava: faziaparte dapedagogia de nossos
morriam. Triste e sem. saber a razão, casou-se, então, com antepassados tal código repressor, onde a palmatória, a vara de
a sétima, que tinha apenas sete anos. Mas esta contou-lhe marmelo, o cipó-caboclo, mesmo as correias de couro, eram
que o estribeiro de seupaijá tinhabuJido com ela e, quando frequentemente usadas por pais e mestres, a fim de corrigir e
foi o tempo, fecundou-a Deus com uma barriga, parindo educar crianças e adolescentes. Nas sociedades escravistas, a
duas meninas, que, mal caíram aos pés da mãe, meteu-as violência física era ainda mais cruel, sendo praticada como m
num saco e levou-as a um convento para recolhê-las, to-
mando exemplo na mãe, que sendo de tão tenra idade, se
condição sine qua non da manutenção da hegemonia da elite m
tinha desmanchado". (Desmanchar pode aqui ser entendi-
branca.
Rosa, noutra carta, escrita no dia de São Tomé, de 1760, m
do como desregrar-se, quiçá perder a virgindade, e bulir ratifica sua postura autoritária e classista:
como sinónimo de bolinar.)
"Quem perde o temor dos pais, também perde o temor
Após esta incrível parábola, na qual o recolhimento é de Deus. Não deveriam Vossas Mercês dar tanta liberdade
apontado como a melhor e mais segura solução para proteger para os filhos, não deixá-los especular nem falar com os
intacta a pureza das donzelas, Madre Rosa dá alguns conselhos fâmulos da casa, pois eles são mensageiros, e aquele escra-
práticos de como tratar os escravos da casa para mante-los vo que morreu afogado era um dos diabos, e o crioulinho
inofensivos: também tem o mesmo diabo."
"Tomem Vossas Mercês o exemplo nesta história para Da mesma forma, o Padre Francisco defende igual peda-
não fiarem as meninas. Me perdoem esta matraca, mas gogiarepressorae, em carta datada de 1759, assim recomendava
assim convém no que respeita a crioula e o mulato, e, para a seus compadres sitiantes nas Minas Gerais:
haver quietação, mande o mulato para a fazenda do gado,
e ela, açoitem-na bem, e tragam bemsupiada [?] diante dos "Não consintam que minhas afilhadas estejam em com-
olhos. Também não quero o mulato aí, por amor das panhia de negras e negros, nem moleques; os tragam
meninas, nem quero que a crioula tenha com elas muita sempre à sua vista, porque antes os quero brutos do que
confiança, porque uma carne danada metida no meio de malcriados e mal-acostumados. Ana Maria não está mais
outra que está sã também a dana. Também não quero que em idade de fazer companhia com suas negras e negros.
os irmãos machos tenham cama junto com as fêmeas: quero Antes levem castigo de mais, do que de menos."
que os criem com o santo hábito do temor de Deus e que
Vossas Mercês se mostrem.severos com eles, para que eles Noutra carta, no ano seguinte, novas instruções do capelão
saibam temer a Deus, porque os filhos que não sabem a respeito da educação dos filhos de Pedro e Maria Teresa
respeitar e temer seus pais não sabem respeitar a Deus, Arvelos:
nem temê-lo, nem sabem fugir do risco e perigo. Estes
"Que minhas afilhadas sejam criadas com sua mãe,

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nunca acompanhem-nas os moleques," nem as carreguem,
nem os negros; nem folguem, nem [...]. Antes sejam brutos
e sem. civilidades, do que más companhias. Só a virtude de
suamâeepaios vej a e sempre é bom que não tenham longe
Notas
os açoites e tenham ao menos os sinais frescos [dos açoites]
e antes mais do que menos, para que de pequenos tenham
obediência e temor de Deus. E isto não é para me queixar l Fazenda, J.V. Op. cit., 1924, v. 149, tomo 95, p. 167.
das que cá estão, pois todas são humildes, e, se o não fossem, 2. Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Lata 117, n. 18, "Cor-
tenho muita boa palmatória para elas quando mereces- respondência dos Bispos do Rio de Janeiro", Carta de Dom António
sem..." do Desterro (22-7-1756).
3. Coaracy, Vivaldo. Op. cit., 1965, pp. 236-237-438.
Não fora o próprio Javé quem ensinara, "quem ama, cas- 4. Primiero, Frei Fidelis. Op. cit., 1942.
tiga!"? 5. AxLÔxàmo.CompendiosaNotíciaHistóricaãoHospício dos Religiosos
Se para a família Arvelos era uma segurança moral e Capuchinhos na Cidade do Rio de Janeiro (1659-1814), Génova,
sobrenatural ter enclausuradas suas filhas no Recolhimento dos s.ed., 1906, pp. 15-16, Devo a Frei Pietro Vittorino Regra a gentil
Santíssimos Corações, a presença destas quatro donzelas bran- indicação desta obra, assim como outras informações relativas a
Frei João Batista da Capo Fiume,
cas, filhas de pais lusitanos, cristãos-velhos, representava um 6. Regni, Frei Pietro V. Os CapuchinJios na Bahia. Salvador: Casa
importante fator de enobrecimento desta instituição crioula, Provincial dos Capuchinhos, 1988, p. 285; Cavazzi deMontécuccolo,
onde predominavam até então mulheres negras e mulatas, Frei João A. Descrição Histórica dos Três Reinos: Congo,- Matamba
várias delas egressas do meretrício. Não seria infundado con- e Angola (1645-1670). Listoa: Junta de Investigação do Ultramar,
jecturar que as brancas do Rio de Janeiro, sobretudo as donzelas, 1965, 2 v.
resistissem obstinadamente à ideia de recolher-se no Parto, 7. Regni, P. V, Op. cit., 1988, v. n, p. 129.
devendo existir igual preconceito por parte das famílias de 8. Primiero, F. F. Op, cit., 1942, pp. 214 e ss. Taubaté, Frei Modesto.
"sangue puro"'em mandar suas filhas e par-entas para comuni- Os Missionários Capuchinhos no Brasil. São Paulo: Tipografia La
dade tão impura na mistura das raças e na idoneidade moral Squilla, 1929.
das recoletas. Daí a relutância e tenaz rebeldia com que algumas 9. Arquivo da Cúria do Rio de Janeiro, Registro de Portarias, Livro II
jovens recolhidas resistiram a curvar-se perante Rosa e os
..•K (3-11-1759).
^ 10. Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Lata 769, Doe, 5, Cópia
estatutos deste beatério. Dentre as mais rebeldes e resolutas, do Arquivo Secreto do Vaticano (29-7-1752).
estava Faustina Arvelos. 11. Fazenda, J. V. Op. cit., tomo 95, 1924; Pallazzolo, Frei Jacinto,
Dois temas cruciais centralizam a atenção das recolhidas, Crónica dos Capuchinhos do Rio de Janeiro.'Peírópólis: Vozes, 1966.
de Rosa e do capelão após o retorno de nossa biografada ao 12. Santos Filho, L. Op. cit., 1977, p. 215.
Recolhimento do Parto: a sujeição das noviças indisciplinadas e 13. Regni, P. V. Op. cit., 1988, v. II, p. 71.
a consolidação do reconhecimento da santidade da "Abelha 14. Arquivo Histórico Ultramarino, ECA Documento n2 6.289 (6-11-
Mestra". Tais serão, por conseguinte, os temas que trataremos 1753).
a seguir, começando pela seguiida filha do casal Arvelos. 15. Mott, Luiz. "Terror na Casa da Torre", Op. cit., 1988.

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IF:

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A Vida no Sacro Colégio

Já descrevemos alhures a chegada no Rio de Janeiro de


Faustina e Francisca Tomásia, assim como a cerimónia de
m
tomada de hábito das primeiras noviças no Recolhimento Parto, *
ocorrida a 7 de outubro de 1757, festa de Nossa Senhora do
Rosário. Quando as outras duas irmãs são internadas no mesmo
recolhimento, em princípios de 1759, já fazia quase ano e meio
que as primeiras achavam-se enclausuradas. Francisca Tomá-
sia, coitadinha, com seus 9 para 10 anos, era cera ainda mole,
i- adaptando-se sem maiores problemas e conflitos à nova vida ao
lado da irmã mais velha. Foi doutrinada, desde que chegou, para
não oferecer qualotuer_s.ox.te-de-resistência aos.ditames.da-Madre
Sugeriora, Sete anos depois desuachegadanoParto, aindatinha
viva na memória a cena e o conteúdo aterrador de uma visão
revelada pela madre regente, poucos dias após sua tomada de
hábito: "Deitando-se no chão do coro, disse Rosa ter visto una
boqueiral ou buraco negro, que era o inferno, e por ele entrarem
tantas almas, como chuva miúda, e que aquelas almas eram
daqueles que não criam [nela]. E dizia que aquilo que se obrava
no corpo dela, Rosa, era de Deus."
Como suas demais irmãs, Francisca Tomásia também já
veio alfabetizada das Minas, provavelmente ensinada por sua
mãe, Maria Teresa, que, por ser natural do Porto, devia ter
aprendido a ler e escrever ainda naquela cidade. Francisquinhã
foi usada como escriba das visionárias analfabetas, sobretudo
das irmãs Páscoa do Coração de São José e da parda Ana Clara,
quem lhe ditou a visão, j á reproduzida, da árvore cheia de frutas m
representando as dúvidas de Frei Agostinho quanto à santidade m
de Mãe Rosa. Disse que, por ordem da fundadora e da regente,
"passou quase um ano escrevendo visões e cantigas compostas
m
em louvor de Rosa".
Após três meses no recolhimento, contou Rosa numa carta,

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a menina Francisca Tomásia, agora chamada de Irmã Francisca
das outras duas desobedientes uma caveira, "dizendo que eram.
Josefa do Santíssimo Sacramento, ocupava seu tempo com
aquelas as três almas negras", acusadas de terem omitido seus
piedosas distraçÕes: "Minha filha Francisca é muito devota do pecados e feito, portanto, confissão nula. S eu noviciado e primei-
Santíssimo Sacramento" — escrevia a madre para a progenitora
ros anos de vida recoleta foram urna interminável via crucis.
da donzela—; "ela andapregando seus rezetinhos [?] e cruzinhas Já transcrevemos, anteriormente, algumas cartas expedi-
pelas paredes, para rezar as estações [via-sacra] e, quando acha das do recolhimento, nas quais o padre e a mestra dão notícia
seu incenso, todo seu enleio é incensar..."
de Faustina a seus pais, ele geralmente mais superficial e
Tornando-se mais crescidinha, ao entrar na adolescência,
tranquilizador, Rosa sempre chamando a noviça de pertinaz,
Francisca também principiou a rebelar-se contra as ordens de convocando seus compadres a que, através de conselhos episto-
suas superioras, sofrendo os mesmos castigos que sua irmã mais lares, ajudassem-na a domar Faustina. Ambos, às vezes, inven-
velha, Faustina, punições sobre as quais trataremos logo a tavam pequenas mentiras a fim de não deixar o casal de com-
seguir. Numa carta de 1760 Rosa dizia: padres sobressaltado, inclusive obrigando á noviça a escrever
"As meninas vão como Deus ajuda, só a menor que tem
falsamente, como se estivesse resignada e feliz com seu novo
uma dureza na barriga." Que doença estomacal ou intestinal
estado de recolhida.
estaria atacando esta rapariga? Flato, ventosidade, fleuma do
O próprio Padre Francisco, em carta de outubro de 1757,
estômago ou opilação do fígado?
dizia claramente: "Faustina não tem licença de escrever a nin-
Nada rtíais informam as testemunhas ou as cartas sobre
guém. E a regra das noviças. Digam a ela que mostre as cartas,
esta alegre criaturinha que, na inocência dos seus 10 anos, é
para não escrever nada que não seja do agrado de Deus." A
arrancada de seu aprazível sítio em São João dei Rei e escolhida
censura da correspondência, e sua interdição no Advento e
pelo Padre Xota-Diabos como "esposa de Deus": casamento
Quaresma, foram sempre uma regra das ordens religiosas,
precoce e curto, pois só durou cinco anos.
instrumento de controle dos neófitos e treinamento da humilda-
Das quatro filhas dos Arvelos, Faustina foi a que mais
de cristã. Eu próprio, nos oito anos que vivi na Ordem Domini-
resistência ofereceu à sua reclusão. Enquanto as três irmãs
cana, tive toda minha correspondência previamente aberta e
juntas aparecem citadas 18 vezes nas cartas e demais documen-
lida por meus superiores, tanto a recebida quanto a que enviava.
tos processuais, Faustina'é referida 25 vezes! Quase sempre Regras medievais ainda praticadas em pleno século XX!
envolvida cora desobediências, rebeldias e castigos. A carta que transcreveremos a seguir, escrita provavel-
Desde o início opôs resistência, pois não queria abandonar mente em 1758, situa-se logo após ò retorno do Sr. Arvelos para
a família. Levada a contragosto para o Rio de Janeiro, mante- as Minas, quando deixou, no Rio de Janeiro, suas duas filhas
ve-se rebelde por anos a fio, recusando-se a aceitar de boa recolhidas sob a tutela de Madre Rosa. Deve ter sido ditada por
vontade e com humildade o determinado por seus pais e supe- ela própria ou pela Regente Maria Teresa, embora manuscrita
riores. Tinha 15 anos quando desceu a Mantiqueira, permane- por Faustina:
cendo cinco anos interna no recolhimento. Mal tendo recebido o
hábito marrom de noviça, começou a. sofrer humilhações e "Meu querido pai e senhor:
castigos, tudo'com vistas a aquebrantar-lhe a rebeldia. Identi- Recebemos a carta de Vossa Mercê com muito contenta-
ficada por Rosa, numa visão, como uma das três recolhidas que mento, por saber de sua feliz chegada e tornada, como me
ostentavam a "alma negra", por ter comungado sacrilegamente contou minha mãe e mestra. Eu cá luto contra os três
com o pecado do orgulho, a vidente pôs nas mãos de Faustina e inimigos de minha alma: o inundo, o Diabo e a carne, por

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m
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isto me ponho sob os corações de Jesus, Maria, José, falo em comum pelas filhas da América, e, como as suas m
Santana e São Joaquim, pedindo-lhes a sua bênção... Peço
ao Coração de Jesus para ser transplantada para o jardim
são da mesma terra, sempre alguma coisa há de soberba." 0
da contrição, pois ao se porem as contas no Tribunal, do É nesta mesma carta. que,, zombeteiro, o velho capelão
Supremo, depois da morte, não valem os desejos, e para lembrava possuir "muito boa palmatória" para disciplinar as
isto está Jesus de braços abertos para os pecadores." que merecessem castigo.
Se chegou de fato a dar alguns bolos nas mãozinhas das
E termina com exemplar e inusitada humildade: "De sua meninas Arvelos, não sabemos. Provavelmente sim, como era
filha, pecadora e ingrata aos benefícios de Deus, Faustina." costumeiro na época. Que foi conivente e autorizou castigos
Os fatos, contudo, provavam exatamente o contrário: a morais contra elas, não resta dúvida.
segunda filha dos Arvelos continuará rebelde e indócil por mais Além do orgulho próprio de sua condição de branca daterra,
de quatro anos seguidos. Só à custa de muito castigo e humilha- Faustina "considerava vil a casa do recolhimento e conservava
ções, abrirá mão de sua altaneira liberdade e amor-próprio. ódio em seu coração por seus pais a terem trazido para cá: ela
Rosa culpava em parte a Senhora Arvelos pela resistência não fala nada disto a vossa Mercê, nem pede perdão, sinal que m
desta donzela em sujeitar-se aos estatutos do recolhimento.
Ainda em 1760, após a chegada das outras irmãs, Rosa recla-
ainda está pertinaz", escrevia Rosa.
Foi a pequena Fr ancisca Tomásia quem revelou, anos mais
m
mava de Dona Maria Teresa Arvelos ter dado muita autoridade tarde, que Leandra e Ana do Coração de Maria eram, em 9
a Faustina: "Ela não quer ser governada porque Vossa Mercê particular, agressivas em castigar Faustina. A primeira, certa- O
lhe deu o título para governar as irmãs mais novas. Não é bom mente para vingar-se de algum desafeto antigo, do tempo em
ter dado aresponsabilidade das outras a Faustina, porque assim que vivia agregada à casa dos pais da donzela, no Rio das Mortes;
ficou dominadora." E conclui dogmática: "Entregue suas filhas a segunda, ex-prostituta, negra retinta, quem sabe, por se sentir

aos cuidados do confessor Padre Francisco e amim, IrmãMestra, desprezada pela moçoila branca, diferentemente dela, pura na
que o céu me elegeu, porque assim, se pratica nas outras reli giões cor e no corpo. Relatou a irmãzinha mais nova que certa feita,
e eu quero seguir o que segue e ensina a Santa Madre Igreja dizendo-se possuídapor São Miguel e querendo castigar aincre-
Católica Romana." ' • . . . . . •
Interessante e sociològicamente correta é a análise que fez
dulidade de Faustina, a mulata Leandra agarrou no pescoço da
noviça rebelde como se quisesse sufocá-la. E logo após a morte
m
Padre Francisco, interpretando a rebeldia de Faustina num de Frei Agostinho, "mandou que Faustina ficasse de joelhos no m
contexto mais amplo e característico do compox-tamento das refeitório, de olhos baixos, só comendo o que sobrasse, ou nada, m
brasileiras nesta parte da América Portuguesa nos meados do
Setecentos, influenciadas pela ideologia escravista que fazia dos
se a comida acabava". Tal penitência perdurou meses seguidos
e, "depois, fez o mesmo com Francisca, por mais de um ano, e m
brancos os senhores poderosos e arrogantes do populacho "de
cor" ou de "sarigue impuro": ,
tudo via o Padre Francisco, pois sempre passava pelo refeitório
quando ia visitar Rosa em seu cubículo". A pobre mineirinha
m
tinha 11 anos quando foi condenada atão grave castigo. Castigo,
'Teçam à. Deus, dizia o sacerdote, sobretudo pelas se- aliás, que, emborapareça-nos chocante, eraperfeitamente aceito
nhoras brancas deste recolhimento, para que Deus as faça e corriqueiro nos conventos e mosteiros de ambos os sexos. No
filhas da obediência e lhes tire a presunção de fidalgas e vizinho.Convento de Santo António, os franciscanos, à mesma
- nobres. E isto não cuidem que falo pelas suas filhas, mas época, praticavam as seguintes penitências contra os frades

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faltosos: obrigação de confessar em. voz alta perante a comuni-
"Tivemos um grande banquete no dia em que Irmã
dade suas culpas; açoites com nove golpes nas costas desnudas;
Faustina se converteu, fazendo sua confissão. Céu e Terra
jejum a pão e água; comer no refeitório sentado debaixo da mesa;
festejaram, e o inferno todo chorou, por estar feita ela
mendigar comida aos frades sentados na mesa; ficar com os olhos
rainha e esposa de Lúcifer, a quem ele tanto estimava!
vendados e um pau na boca, andando no refeitório com uma peia
Neste diarecebemos tanta alegria e tudo quanto Deus criou
nos pés ou carregando uma pedràpara servir de travesseiro, etc.
•— as pedras, montes, aves e brutos — havia de ter alegria.
etc. Regras, aliás, legitimadas por São Pedro de Alcântara e
De alegre, chorei em ver como Faustina andava, e como
praticadas comumente nas comunidades seráficas ainda em
tinha ficado, e o desvelo como a Senhora anda com ela..."
1764. No também vizinho Convento da Ajuda, das franciscanas
clarissas, fora o próprio Dom António do Desterro quem, para
Parece que — ou por fingimento, ou por alienação mental,
as freiras revoltosas, "permitiu alguns sacrifícios: beijar os pés
ou por sincera conversão mística -— a antiga esposa de Lúcifer,
das demais religiosas; comer sentadas no chão ou de joelhos;
após. quase cinco anos de resistência, deu a mão à palmatória,
ficar de joelhos com as mãos em cruz, proibindo-se, porém,
conformando-se em viver como esposa do Menino Jesus. A
arrastar-se pelo chão".
confissão geral e o banquete festivo marcar am o enterro do "velho
Humilhada, ameaçada com as penas do inferno, esganada,
homem", e, a partir de então, Faustina se tornou outra criatura:
obrigada a mendigar o alimento e comer, de joelhos, os restos
nas duas cartas há pouco citadas, Jacinta conta que sua irmã
da comunidade — após tão severa e prolongada provação, com
"anda dançando e saltando pelo meio da casa, de amor por Deus,
a chegada das outras irmãs, quem. sabe, aconselhada por elas,
como São Pascoal Bailão". Este santo, irmão leigo franciscano
finalmente Faustina capitula. Foi sua irmã Jacinta quem deu
espanhol, canonizado em 1690, tinha por devoto costume bailar
tão auspiciosa notícia a seu progenitor, em carta provavelmente
em frente à imagem da Virgem Maria, a qual, agradecida por
de 1760: ;
tão espontânea devoção, sempre dava um belo sorriso para o
"Meu pai e senhor do meu coração: santinho. Faustina imitava o santo Bailão nos seus arroubos
místicos, e Mãe Rosa, sempre solícita na condução de seu peque-
por estas regras vou aos pés de Vossa Mercê pedindo-lhe
no rebanho, incluía entre suas jóias espirituais a conversão desta
a suabênção, dando par abéns pelo bómparto e feliz sucesso
pertinaz noviça. Em carta de 5 de fevereiro de 1762, comentava
que teve a rainha mãe ;e mestra Rosa, com a sua nova .
com seus compadres de São João délRei: "Parabéns! porque lhes
convertida, que é a Irmã Faustina Maria do Coração de
nasceu num feliz parto uma filha da contrição: Faustina Maria
Santana, que Deus a cubra com a. sua graça! Que também
do Menino Jesus da Porciúncula, pois curou-se da soberba, tendo
nós, com santa inveja, cheguemos ao mar e jardim da
Santana como suamadrinha e o Menino Jesus como seu caçador,
contrição, por intercessão dé"minha mãe e capitoa, e 'nós,
que fez do meu coração o arco e flechapara flechá-la." E completa
as soldadas [vamos] dançar'è festejar o Divino Amor."
revelando seu projeto em relação à jovem convertida: "Desejo
Estilo tão laudatório mais faz lembrar a Regente Maria que Faustina faça os três votos: pobreza voluntária, obediência
Teresa do que a signatária da missiva, na época, com apenas 13 inteira e castidade perpétua, que é esse o nosso instatuto (sic),
ou 14 aninhos. .-. ... : "- porque esta é a regra que Deus me deu: comer e beber do amor
Noutra carta, provavelmente escrita algumas semanas de Deus, falar e conversar do amor de Deus."
após a anterior, a mesma Mariá"Jacinta dá mais detalhes sobre Sobre as duas outras filhas dos Arvelos, que se recolheram
tão importante acontecimento: - em 1759, pouco informam os documentos processuais. Genove-

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va, 19 anos, era a primogénita. Por sua caligrafia mal desenhada bastante moléstia, mas com tudo se acomoda e se conforta com
e laconismo constante, sugere ter sido pouco dotada intelectual- tudo. Todos têm sua cruz e, sem ela, ninguém se pode salvar".
mente, quiçá, como diagnostica o povo, "fraca da cabeça". Era Embora fosse a mais velha das quatro, era Faustina, a segunda
naturalmente adoentada. Segundo o Padre Xota-Diabos, seus na ordem dos nascimentos, quem liderava as meninas Arvelos,
achaques provinham do Espírito das Trevas: "o sentido que inclusive recebendo de sua progenitora delegação para tanto —
Genoveva tem no corpo não é seu; é o Demónio que tem no corpo, o que reforça nossa ilação de que a primogénita sofresse de
como tinha Faustina". E noutra carta, do mesmo ano de 1758, alguma debilidade mental, além das incuráveis feridas.
quando ainda vivia nas Minas, repete o mesmo diagnóstico: "A Maria Jacinta, a terceira filha do casal, parece que foi a
inclinação que Genoveva tem ê o Demónio e se ela se oferecer que menor resistência e problemas apresentou com suareclusão.
como filha de nossa Rosa Egipcíaca da Vera Cruz, já o demónio Nas 22 cartas que o capelão escreveu para seus compadres, não
não há de ter poder nela, porque sei decerto que quem for filha se refere a Jacinta nenhuma vez sequer, e Rosa apenas diz, numa
dela, se não há de perder!" missiva de 13 de março de 1759: "Cá chegaram nossas filhas
Depois de internada no Recolhimento, suas doenças e Maria Jacinta, muito alegre, e a irmã Genoveva, mais triste,
conduta estranha persistiram. Eis o que informava Rosa a seus mas já está mais consolada e resolvida." Se foi a menos citada,
compadres em carta de 5 de fevereiro de 1762: Maria Jacinta foi, no entanto, quem mais cartas, e mais deta-
lhadas, escreveu para seus pais.
o
"Genoveva anda sempre com umas feridas nos pés e não Como as demais, declarou também que "por obediência a 9
sei que feridas são, pois lhe tem feito inúmeros remédios e seu pai fora levada ao recolhimento". Era tempos pretéritos, a
purgas. As feridas saram e tornam a rebentar. Não sei se vocação ou desejo dos filhos e filhas não contava, quando os •
será causado pelo Espirito, Quando está [no andar] de cima, progenitores, sobretudo o pater famílias, consideravam boa e
come bem com as outras, quando está embaixo, não. Quan- acertada a decisão de escolher o estado para seus descendentes, *
do as criaturas estão atribuladas, o seu negócio desce e está indicando os cônjuges para os mais afortunados, mandando •
rindo das aflições das criaturas. Mandei o padre a exorcis- ordenar alguns filhos varões, enclausurando quantas filhas
mar, melhorou, surgiu outra ferida no braço." achassem que maior bem fariam à família e à salvação de suas *
almas, se pronunciassem os votos religiosos.
Que feridas incuráveis seriam estas, pipocando ora nos Mal chegada ao Parto, o compadre de seupai, capelão Padre
braços, ora nas pernas, alterando seu humor? Talvez se tratasse Francisco, logo foi-lhe informando que "Rosa era a fundadora e
da bouba (framboesia trópico), doença endémica já existente no mestra do recolhimento, título que dizia Deus ter-lhe dado". Foi
Brasil à época da descoberta, que provocava ulcerações muito Jacinta quem noticiou aos progenitores "o feliz sucesso" da
semelhantes à sífilis, embora não sendo congénita nem heredi- conversão de sua irmã Faustina e de seus arroubos dançantes.
tária. Muito espalhada no Rio de Janeiro à época colonial, foi Em três cartas conservadas por sua mãe Maria Teresa, poste-
um carioca, o Dr. Bernardino António Gomes, que, em 1797, riormente incluídas no processo contra a negra Rosa, Jacinta
primeiro descreveu cientificamente tais feridas na sua obra, revela alguns aspectos interessantes da vida desta comunidade
Memória sobre as Boubas. crioula. Sua tomada de hábito parece ter sido mais simples e 0
Suspeito que era oligofrênicas pois comportava-se via de frugal que a das outras noviças, o que deve ter-lhe causado certo
regra com passividade, sem reagir a seus infortúnios. Relata o
capelão, em carta deste mesmo ano (1762), que "Genoveva
constragimento: "Vamos tomar o hábito e não temos com que •
fazer a festa! Se, ao se casar, as pessoas fazem tanta festa, quem
sempre anda doente de feridas no corpo e pernas, do que padece *
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dirá o que merece o Hei dos Reis!!!" Compreensiva, porém,
recomenda que o pai "não faça dívida por isso". : todo rendida ao Senhor, ele não estivera tão agravado e queixoso
como está."
Entrando para a clausura, a terceira filha dos Arvelos
E continua, masoquista:
passou a ser chamada Irmã Maria Jacinta dos Anjos. Em todas
as suas cartas, a jovem noviça, então com 13 anos, além de
"Toda a minha vida fui soberba, desobediente e rebelde,
grande humildade, revela-se extremamente severa no julga-
fazendo grande garbo e parecendo-me que era rica prenda.
mento que faz de sua vida presente e passada, o que nos permite
Que o Senhor nunca mais permita tão infernais prendas,
mais uma vez suspeitar que, ao escrever aos pais, Madre Rosa
pois só Lúcifer as pode dar. Que o Senhor me -queira, por
ou a regente, quiçá mesmo o capelão, inspirassem-lhe tais
intercessão de minha mãe e mestra Rosa, fazer de mim e
sentimentos e expressões tão depreciativos.
minhas irmãs suas verdadeiras filhas pelo caminho da
"Minha mãe e senhora: obediência e humildade... Ainda não sou sua filha e nem,
sei quando serei pela minha grande soberba e desobediên-
Deus sejalouvado e ajude estanobre casa. A saúde vai boa,
cia. [...] O Padre Francisco meu pai e minha mestra e mãe
com a graça de Deus. Prostrada a seus pés, peço perdão pelas
nos tratam com muito amor."
desobediências e rebeldias, pois quem comete desobediências
aos pais merece castigo eterno, mas espero perdão e confio na Foi logo após o banquete comemorativo da conversão de
bondade de VossaMercê. Deus não despreza os pecadores, senão Irmã Faustina do Coração de Santana (às vezes também cha-
eu estaria sepultada nos abismos do inferno, penando para mada de Irmã Faustina do Menino'Jesus da Porciúncula), que
sempre. Por valia de minha mãe e senhora Rosa, estou me esta comunidade presenciou uma paraliturgia das mais simpá-
corrigindo de minha estragada vida. Depois de cá estar, queria ticas ocorridas no recolhimento. Foi no dia 6 de janeiro de 1760.
sair. Ai, triste de m í m se, saísse outra.vez, aonde estaria já Jacinta, uma das quatro protagonistas, relatou o episódio:
penando sem remédio?! As milhares de línguas queháno mundo
não saberão explicar este mistério tão grande e tão inefáveis "Minhas três companheiras [as outras três irmãs?] cha-
grandezas! Deus há de pagar o bem que fizeram trazendo-me mam-se "ninfas do amor", porque no dia dos Reis, à noite,
para este sacro colégio!" ' . . houve grande festa de amor, e o Senhor Menino não olhou
para quem eu era e me deu os pandeirinhos do amor e,
Noutra carta, o mesmo discurso ultra-severo em auto-re- assim que ele toca, entro a dançar com as minhas compa-
provação, sobretudo lembrando o leitor que esta mineirinha, nheiras, dizendo: Viva o amor, o amor de Jesus! Ora viva,
criada numa fazendola 110 interior de São João dei Rei, tinha ora viva, ora viva o amor de Jesus!' E assim, ficamos todas
apenas 13 anos quando escreveu* estas linhas: tão arrebatadas e ficamos como mortas, mas logo tornamos
a ficar em nós. Esta é a nossa vida e o nosso amor em que
"Minha mãe e senhora muito do meu coração: . levamos o tempo — exceto eu, que não sei quando assim
Muito estimaria que. estas..limitadas regras achem Vossa andarei, porque sou mui pobre e mui. pecadora."
Mercê assistida de perfeita saúde em companhia de minhas
irmãs e irmãos e de toda a casa. Deus tem muita misericórdia Superego ultra-rigoroso ou opinião de seus superiores?
com esta.ingrata e rebelde criatura, pois, se eu já .estivera de Até hoje, no dia.dos Reis Magos, comemoram-se nas áreas
mais tradicionais do Brasil os bailes pastoris, onde ciganinhas
com pandeiros e pastorinhas engalanadas, dançando, prestam

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adoração ao Divino Infante, cantando versinhos como este: que os frequentadores da Igreja do Parto e devotos de Madre
"Somos as flores mais perfumosas; onde vem pousar o beija-flor; Rosa espontaneamente ofereciam, contava o recolhimento com
somos rainhas cheias de fragrâncias; desse risonho jardim do umafonte regular de ingresso: as espórtulas das missas e demais
Senhor..."5 ofícios sacros celebrados pelo Padre Francisco Gonçalves Lopes.
Consultando a obra. Bailes Pastoris na Bahia, do precursor Recebendo 320 réis por missa celebrada, em cada mês, o sacer-
Manoel Querino, encontramos um versinho do "Baile do Pago- dote podia arrecadar por volta de 10 mil réis, sem falar nas
dista", que lembra o recitado pelas "ninfas do amor" — folclore demais espórtulas ou doações recebidas pela celebração de ba-
mineiro, baiano, carioca ou lusitano? Diz o pagodista: "Ora viva tizados, casamentos, etc. O próprio sacerdote já dizia em 1752,
Deus Menino, que nascido é, viva a Virgem pura, viva São José, recém-chegado ao litoral: "Me governo com a esmola da missa,
ora viva o Deus Menino!"8 que não me falta, Deus seja louvado!" Como nenhum cristão
Após tais informações sobre a adaptação das quatro filhas deixava de incluir em seu testamento a celebração de várias
da família Arvelos à vida recolhida, cremos que seria agora a capelas de missa, chegando muitos devotos a encomendar até
melhor ocasião para, mais uma vez, entrarmos portas adentro 10 mil missas de sufrágio .por seu descanso eterno, tinha o clero,
desta casa pia, a fim de reconstituir um importante aspecto de além das prebendas pagas pelo erário público, esta importante
seu funcionamento: a manutenção material da comunidade. fonte de renda representada pela celebração diária do santo
Já vimos que, para sua fundação, o Recolhimento do Parto sacrifício da missa. Alguns sacerdotes mais gananciosos e incul-
contou com dois tipos de contribuições caritativas: doação tes- pados de simonia foram denunciados ao Tribunal da Inquisição
tamentãria e esmolas departiculares. Sendo das virtudes cristãs por terem celebrado mais de uma missa num único dia, motiva-
mais valorizadas socorrer os necessitados e realizar obras de dos não por excessiva piedade, mas pela cobiça de receber suas
caridade, muitas instituições no Brasil Antigo viviam de esmo- espórtulas.
las, tendo para tanto esmoleres oficiais que percorriam as casas, Consoante informava o Xota-Diabos numa de suas primei-
freguesias e interiores, arrecadando subsídios para tais associa- ras cartas, as recolhidas egressas do meretrício, as madalenas
ções. A Igreja do Parto, mesmo, possuía um ermitão, ò Irmão arrependidas, entravam gratuitamente para a vida religiosa,
José das Barbas, que serviu de emissário de Frei Agostinho para dada a falta de património comum às mulheres de ponta de rua.
ir convidar o Padre Xotã-Diábos avir das Minas e ocupar o posto As donzelas que primeiro entraram para o recolhimento goza-
de capelão do novo recolhimento que se pretendia fundar. Cer- ram de idêntico privilégio, porém, tão logo se construíram as
tamente agia como os esmoleres das demais casas pias: levava instalações definitivas, o senhor bispo determinara que, como
uma estampa ouregistro de Nossa Senhora do Parto, quem sabe ocorria nos conventos de freiras, também aí se passaria a exigir
mesmo um grande medalhão em prata da santa protetora, e um dote das postulantes. No Convento do Desterro, por exemplp, o
cofre de madeira ou ernbornal de veludo vermelho onde os fiéis, dote requerido às noviças variava de 300 a 600$000 réis, o
ao beijar a figura de sua santa protetora, depositavam suas equivalente, mais ou menos, ao valor de um casal de escravos
esmolas. Havia até uma fórmula padronizada para estes pedi- de boa qualidade.
tórios, dizendo o beato: "Esmolas pelo amor de Deus!" A quem Pode ser que algumas donzelas brancas, admitidas após a
podia dar, o agradecimento era: "Que Nossa Senhora do Parto primeira tomada de hábito, em 1758, tenham trazido dote ou
[ou outro oráculo para quem se esmolava] lhe acrescente!" A alguma contribuição monetária oumaterial para a comunidade.
quem não dava, dizia-se: "Deus o favoreça, irmão!" O mais provável é que as famílias em melhor situação financeira
•' Além dos donativos arrecadados pelo esmoler e daqueles contribuíssem de quando em quando para o sustento das reli-

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giosas. O próprio capelão, ao sugerir a seu compadre que man- Deve-se, portanto, atai quadro humilde a reserva com que
dasse Genoveva e Jacinta para o Parto, dizia: "Se Vossa Mercê o capelão aceitara, naqueles inícios dafundação do recolhimento,
puder sustentar as que vêm, é bom, pois eu cá dou conta das que a esmola de seu compadre sitiante. Não obstante tais limitações,
já estão." E desabafava narrando as dificuldades enfrentadas com o passar do tempo, rara é a carta, sobretudo de Rosa, em
na manutenção desta comunidade: "Vivemos de esmola e aqui que não se solicita ou se agradece alguma esmola oferecida pela
comem 29 pessoas, quase todas doentes! Veja como sustentar família Arvelos. "Como nossa constituição é pobre, escrevia a
tanta gente com as patacas das minhas missas!!!" Entre esses ex-escrava, as esmolas que mandam são bem. aceites, pois vive-
29 comensais, além de uma vintena de recolhidas, incluíam-se mos de esmolas [que neste princípio são poucas], pois temos sido
o ermitão, um escravo do capelão e talvez alguns agregados e alvo de desprezo e escárnio." Às vezes é Madre Egipcíaca quem
esmoleres que frequentavam a. portaria do recolhimento em toma a iniciativa de pedir dádivas para fins religiosos: 'Teço
busca da sopa de caridade, uma esmola em louvor dos meus amantíssimos Corações que
Um dos aspectos mais saborosos da correspondência entre apareceram nas mãos da Conceição: que suas filhas ajudem na
o Recolhimento do Parto e afamília Arvelos são os detalhes sobre esmola". Outra vez, quando as meninas ainda estavam mor ando
o envio de mantimentos, guloseimas e presentes das Minas para com seus pais, pediu: "Maria Jacinta, Genoveva e Maria Faus-
a comunidade da várzea de Nossa Senhora, e vice-versa. Mesmo tina me mandem uma esmola em louvor do Bom Jesus dos
antes da mudança de Faustina e Franciscapara o Rio de Janeiro, Passos, fazendo urna toalha para o altar que está muito pobre-
já em 1752 o Sr. Arvelos mandava alguma "esmola" para seu zinho."
compadre, caridade que o Padre Francisco considerava ser Premidos pela necessidade, o padre e sua energúmena
dispensável "porque Vossa Mercê sabe que não pode fazer pedem para o mesmo fim: 'Vivemos tão pobrezinhos, que tudo
esmola". Pelo visto, ao menos naquela quadra, parece que os cai nas costas do Padre Francisco, que não tem nenhuma vestia,
negócios lá em São João dei Rei não andavam a contento. É só calções nem timão para vestir, que é urna vergonha vê-lo." O
indiretamente que podemos avaliar o cabedal de Pedro Róis padre confirmava sua penúria no ano de 1758: "Já não tenho
Arvelos, pois a documentação é bastante lacunosa sobre este com que me possa vestir!" E para comover ainda mais seus
particular: tratava-se de um pequeno proprietário, possuidor de amigos, fala de seus incuráveis achaques: "Ando com feridas nas
quatro ou cinco escravos, um sítio com. engenhoca de açúcar, pernas e coceiras no corpo, com sarnas secas que não passam."
pasto de criatório com alguns bois e cavalos, além de uma data Reclama, em carta de 23 de janeiro de 1760, da insensibilidade
de mineração separada da fazendola. Devia viver remediada- dos cariocas: "Nesta cidade não há caridade e há muita pobreza!"
mente, inclusive às vezes com certa dificuldade material, sobre- Coitado do Xota-Diabos, que deixou a opulenta Minas Gerais,
tudo nos finais de 1757, quando assaltantes roubaram-lhe acata seu sítio em São João dei Rei, para, maltrapilho, passar penúria
de ouro que possuía no Rio das Mortes. Teve de enfrentar na cidade de São Sebastião. Ingratidão da cristandade flumi-
também, desde 1752, uma pendência judicial, cuja razão desco- nense com o velho sacerdote, sempre tão prestativo com os
nhecemos, e que custou-lhe alguns bons mil réis com gastos de energúmenos que, em altas horas da noite, vinham pedir-lhe o
tabelionato.. Em-junho- de 1759-o Padre-Francisco dizia ter conforto dos exorcismos, e agora encontrava-se completamente
entregue "na repartição [no Rio de Janeiro] 30 mil réis", quantia abandonado pelos fiéis, em suas doenças e necessidades. Neste
avultada, que o Sr. Arvelos enviara através de portador de sua mesmo ano, revela ter ficado três semanas consecutivas imóvel
confiança, destinada a cobrir as citadas despesas burocráticas, na cama, muito doente, aumentando-lhe apenúriapor não poder
e cuja sentença só há de ser pronunciada em 1761;

438 439
m
celebrar a missa, deixando por conseguinte de receber as espór-
tulas correspondentes.
pesaroso, informava que "os barris dos lombos estavam cheiran-
do mal— estavam podres". E recomendava que não mandassem
m
"Quem dá aos pobres, empresta a Deus", diz o brocardo mais semelhantes conservas, "que é dinheiro perdido e desgosto".
popular. Padre Francisco vai mais longe, escrevendo a seus Em troca, e como agrado, Rosa às vezes também retribuía
compadres: "Posso afirmar, com juramento, que Deus disse que enviando alguns presentinhos a seus inesquecíveis amigos do
toda pessoa que concorrer para o sustento de suas esposas Rio das Mortes, sempre agradecida pelos muitos meses que a
alcançará abênção do Padre Eterno!"—uma garantia e estímulo acolheram em seu sítio, quando fugida da perseguição do bispo
para que os devotos de sua visionária fizessem generosos dona- de Mariana, e agora, constantemente presenteando-a e à sua
tivos às carentes recolhidas. comunidade com géneros variados. Como alma piedosa, Rosa
Maria Jacinta ajuntava sua voz supervalorizando as ofe- obsequiava sobretudo com pequenas lembranças devocionais:
rendas que seus pais faziam à comunidade: "Que o Senhor lhes em 1755, mandou à Dona Maria Teresa Arvelos "os olhos de
pague a esmola! Nosso Senhor dará a paga pela esmola que nos SantaLuzia"—; provavelmente um ex-voto f eito em prata, quiçá
mandaram: se não for nesta, será na outra vida!" Faustina, por em ouro baixo, reproduzindo em tamanho natural ou reduzido,
sua vez, refere-se detalhadamente ao recebimento de certos o par de olhos desta mártir romana, muito usado, antigamente,
presentes enviados das Minas: para pagar promessas, sendo depositados aos pés ou cosidos no
vestido da santa. Em 1758, enviou um "mimo de Santana", um
"Ficamos contentes com as dádivas: 6 tostões para a rosário com contas cinzas e vermelhas, cuja fórmula de rezar
compra de uma boceta e 12 para a festa de Santana, m ais fora inventada pela negra para homenagear a avó de Cristo.
uma oitava de ouro para cada uma de nós, uma arroba de Mais adiante foi a vez de presentear sua comadre com "uns
• açúcar e um capado. O capado, me disse o portador Manuel papelinhos do Sr. São Joaquim, que lhe coube por sorte neste
que custava meia dobla e uma pataca de o trazerem da ano de 1760 para 1761, que se lembre mais do santo que neste
roça. Gastou três dias de viagem. Perguntou como o que- ano andou muito esquecido". Neste mesmo ano presenteia-a
ríamos, disse que vivo, paramor de aproveitarmos o sangue "com uma coroa que São Francisco de Sales lhe deu na sua
e as tripas para chouriços, que [aqui] não há, os [quais] não f
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novena". Tais lembrancinhas paralitúrgicas eram devotamente
vemos nem comemos, especialmente por ser assim vontade *p*f-- guardadas por seus amigos, que as veneravam como verdadeiras
•.it-.SdÉfíí-v
de minha mãe.e mestra; O capado é bom, porém chegou e potentes relíquias.
muito desfeito. Também recebemos os biscoitos. De tudo, . Algumas poucas vezes Rosa obsequiou seus compadres e
Senhora Santana lhes dê o pago!" amigos com guloseimas do litoral, raridades muito custosas e
cobiçadas no interior das Minas Gerais. Mal chegada ao Rio de
De sua "chácara e engenho no bairro da Glória no Rio das Janeiro, em 1752, diz ter despachado para os Arvelos, através
Mortes" a família Arvelos mandava, vez por outra, alguns do portador Caetano, uma carta acompanhada de "miudezas que
géneros de primeira necessidade ou guloseimas regionais: em lhe fez mercê seu padre Frei Agostinho. E manda agora umas
1756, Padre Francisco agradecia a remessa de queijos — desde poucas de nozes e quatro pares de ovas de tainha para [os
'.í então uma das especialidades de Minas —- e, em 1758, era Rosa compadres] comerem junto com o Padre Francisco [que na
a agradecer "pela esmola da farinha que mandaram, restando ocasião tinha retornado para o Rio das Mortes]". E completa
ainda um tanto"; no ano seguinte Padre Francisco refere-se "à desolada: "Não mando mais porque estão em falta no Rio de
lembrança do fumo: chegaram 15 rolos. Os toucinhos e lombos Janeiro. Vai uma ova embrulhada solta à parte para minha
ficam para b Natal". Nesta mesma ocasião, em post scriptum,

440 441
L .,-.

companheira [Leandra], e também uns biscoitinhos brabos para mindo-se era média seis sacos por mês,j3agand(>se_na época
ela. As nozes, se o portador quiser levar, são para Vossas Mercês 1$2QO réis_po£.saco. Embora não se especifTqulTdêrqTTrfaTmh-a
e o padre." se tratava, acreditamos ser mesmo farinha de mandioca, tal qual
Uma das delicatessen mais cobiçadas no interior do Brasil ainda hoje se come popularmente no Rio de Janeiro, herança
eram os cocos da praia (cocus nucifera), ingrediente indispensá- dos tamoios do litoral, diferente do costume do interior, seja das
vel na confecção de inúmeras receitas mineiras antigas. Rosa Minas, seja de São Paulo, onde prevaleceu o padrão guarani,
lastima não poder mandá-los como queria: "Os cocos apodrece- perpetuado pelos caipiras, do consumo quase exclusivo da fari-
ram, e vão uns coquinhos para as moças se divertirem, que são nha de milho. •
desta terra." Depois da farinha de mandioca, segue-se o arroz, cujo
Também as meninas Arvelos referem-se era suas cartas ao consumo do recolhimento atingia de um a três sacos por mês
envio de presentinhos para sua parentela: no mais das vezes, [sacos de 60 kg?]. Seu preço era duas vezes e meia mais-caro que
lastimam não ter o que enviar. Jacinta diz duas vezes: "Não o da farinha. Geralmente já vinha .sem casca, embora conste
tenho nada a mandar", e Faustina refere-se em diversas cartas também "arroz com casca", certamente pilado dentro da área de
ao problema constante das dificuldades com os portadores, serviço do recolhimento, quem sabe destinado à feitura de
neste vaivém, do interior par a o litoral: "Tememos que o portador mingaus ou quirela para aves ou pássaros. O feijão era propor-
não tivesse chegado a tempo, porque estava com a perna doente cionalmente muito menos consumido do que em nossos dias,
e talvez lhe tivesse ocorrido alguma grande dor que não pudesse embora já nesta época fosse dada preferência, no Rio, ao feijão
andar pelo caminho."Noutra missiva comenta: "Ia mandar-lhes preto, valendo o mesmo preço que a farinha de mandioca.
^ Durante todo um ano, registrar am-se apenas "dois sacos de feijão
um presente com autorização que liberalmente me deu Madre
Rosa e o padre, mas o preto portador está com o joelho molestado preto".
e Santana ajude que cheguebem!" Subir e descer aMantiqueira, Fora das épocas de abstinência de carne — ao todo quase
atravessando florestas, rios e riachos, era uma verdadeira odis- cem dias no ano interditava a Igreja o consumo de carnes, ovos
seia! e laticínios -— consumia o recolhimento cerca de trêz arrobas
Lançando mão da lista de géneros alimentícios citados nas de carne fresca por mês: a carne-seca ou carne-do-sertão, infor-
cartas trocadas pela família Arvelos com as recolhidas do Parto mam os documentos, destinava-se à alimentação dos escravos
e sobretudo através do "Livro de Receitas e Despesas do Patri- ou pedintes. Porcos e leitões aparecem raramente entre os
géneros arrolados no "Livro de Despesas".
mónio da Igreja de Nossa Senhora do Parto", ^amiscritoque
Situando-se o recolhimento próximo à ribeira do peixe e ao
tivemos a alegria desencontrar no Arquivo da Cúria do Rio de
mercado e quitandas da Prainha, e sendo numerosíssimos os
Janeiro, podemos ter uma ideia bemjarJáxJma. do que se comia
^ uase;. dias em que a Igreja proibia o consumo de carnes, o peixe devia
no rêcõTEimento dlTMãdíejR^sa^nesta^segundajnetade do século
aparecer frequentemente no cardápio da comunidade: Rosa
XVniTApesar de esTêlivro só ter sido iniciado em 1786, podemos
mandou ovas de tainha defumadas para as Minas e, no rol de
coníudcTchegar bem perto da cozinha e refeitório das recolhidas,
compras, consta também o consumo de peixe e bacalhau.
considerando que os padrões alimentares de uma região ou
Toucinho e banha de porco eram as principais matérias
comunidade cdstumammanter-se fixos ou variar pouco, ao longo
gordurosas usadas no Brasil Antigo e foram ainda mais consu-
das gerações, consoante informa Mestre Cascudo.
midas desde que Dom António do Desterro permitiu sua utili-
O género alimentício que mais frequentemente aparece na
zação, assim como damanteiga e laticínios, durante os quarenta
lista de compras do Recolhimento do Parto é a(fárinhaj consu-

442 443
dias da Quaresma e demais dias desjejum, e abstinência. dientes talvez usados nas decantadas receitas de doces conven-
Gastava-se, no Parto, deumaaduas arrobas de toucinho e banha tuais, como os tradicionais 'jesuítas", "papos-de-anjo", "barri-
por mês. Qxianto aos condimentos para temperar o feijão, as gas-de-freira", etc. Não há nenhuma referência ao consumo de
viandas e pescados, encontramos na lista de compras do Parto:
alho, cebola, vinagre, "azeite doce" (azeite de oliva, até hoje assim • Frutas e verduras aparecem raramente: apenas é citada a
chamado na Bahia), pimenta, azeitona. Em ocasiões festivas, compra de banana, melancíãlTãlface. Certamente no interior
talvez como aconteceuno citado banquete que fizeram, em 1759, do recolhimento devia haver um quintal onde cresciam tempe-
para comemorar a relutante conversão da Irmã Faustina, o ros, ervas medicinais, flores para os altares, quiçá algumas
cardápio chegava a ser pantagruélico: 12 galinhas, 4 perus,'6 õl qua^era o costume no Brasil de nossos bisavós.
paios "e mais miudezas", a saber, queijos, pastel, presunto, pão, CozinEava-se"lTleitlja7Trcarvão-costum-ava ser usado nos /
aletria. Frangos e galinhas, além da presença obrigatória nos fogareiros, quando se desejava uma chama mais rápida e por/
banquetes de antanho, eram alimentos básicos na dieta das menor tempo. Constava na lista de pertences dessa cozinha:L
pessoas doentes ou convalescentes. Numa carta de 7 de outubro fogareiros e grelhas, frigideiras, panelas de barro e cobre, game- f
de 1758, Padre Francisco contava que Irmã Maria Antonia, Ias de madeira, tachos de cobre, bacias de arame (o mesmo metal '•
aquela pretinha das Minas Gerais que acompanhara as duas com que se fazem os fios de arame), tigelas de cobre, pratos de j
primeiras meninas Arvelos, "estava muito doente há três meses cerâmica, peneiras e vassouras. J
e necessita/ de duas a três galinhas" (provavelmente por mês). Outros objetos, fazendas e matéria-prima incluíam-se no
A lista dos géneros consumidos pelas enclausuradas in- consumo desta comunidade, seja para vestimentas das recolhi-
cluía também "misturas" para a refeição mais leve, pois, confor- das, seja para. seu uso como roupa de cama, de mesa ou para o
me já vimos, ao transcrevermos os horários diários de algumas altar: velas de cera e sebo, papel, baús, caixões para guardar
comunidades religiosas do Brasil setecentista, os nomes das roupas e mantimentos, tecido de algodão para as toalhas, cober-
refeições e seus horários divergiam dos que atualmente segui- tores, lençóis, tecido fino para amicto e purificador (usados pelo
mos. Mestre Cascudo, na sua antológica História daAlimenta- sacerdote na missa), rosários, estampas de Nossa Senhora do
• cão no Brasil, ensina que, "no Brasil velho, o café era às seis, o Parto; bocetas para se guardarem ramos de flores dos santos,
almoço às nove, jantar entre três e meia e quatro horas, ceia às "damasco, ouro e pregadora para .o altar". Algumas roupas e
• ?j 13 :
seis . • tecidos destinavam-se ao uso pessoal das recoletas: seriguilhas
Nas comunidades religiosas do Rio de Janeiro, o jantar (lã grosseira para os hábitos), toalhinhas (para servir de véu
acontecia das 11 às 12h, e a ceia, por volta das 19h. Enquanto para cobrir a cabeça), saias, camisas de linho. Tecidos grosseiros
ao meio-dia comiam-se carnes, peixes, cereais, farinha, etc., na também aparecem no rol de consumo desta casa: estamenha (a
I „,
ceia, tomava-se "merenda", composta de alimentos mais leves e L * mesma tela com que Rosa disse fazer sua roupa de dormir),
"
de digestão mais rápida. Háreferência explícita nos manuscritos aniagem, estopa para saco, além de material para trabalhos de
a "dois sacos de milho branco para fazerem canjicas para as costura: "cordões de linha para as noviças", maços de linha crua,
ceias", devendo também ser para tais refeições vespertinas os
outros alimentos constantes-no rol de despesas: chá, pão, ovos,
4.: cadarço branco para as toalhas, "cordões de esparto para as
professas", fios de linho, algodão para cordões.
carimã (massa de mandioca azeda, destinada à confecção de Tais eram os bens, produtos e géneros que em geral tinham
bolos, biscoitos e mingaus, o mesmo que "massapuba"), além da entrada no Recolhimento de Nossa Senhora do Parto, alguns
farinha de trigo, açúcar, manteiga, cravo, canela e vinho, ingre- referidos semanalmente, outros apenas em poucas ocasiões

444 445
festivas. Nos primeiros anos de fundação, sabemos que 29 embora na cidade de São Sebastião a culinária negra não tenha
pessoas aí se alimentavam, conforme já informou o capelão, se popularizado tanto como ocorreu no Recôncavo da Bahia:
ocupando-se da cozinha as irmãs Páscoa Maria de São José e salvo erro, o angu, tal qual bem o descreve Debret, parece ter

í Teresa de Jesus, a primeira, mulata fluminense, a segunda,


portuguesa natural das Ilhas do Atlântico,
A cozinha ficava no andar térreo, debaixo do coro de cima.
sido a receita afro-carioca mais popular nesta cidade, sendo
ainda hoje vendido nas ruas centrais do Rio, só que agora
apelidado de "angu à baiana", muito embora seja acepipe desco-
nhecido ixa Bahia de Todos os Santos.
"Penetremos na cozinha colonial já colocada, como hoje, Para aproximarmo-nos ainda mais da mesa do refeitório
no fundo das casas, em chãòtde terra batida. O ambiente

i
do Recolhimento do Parto, posto não terem seus fundadores
é desagradável. As paredes acaliçadas estão negras pela estipulado a qualidade e quantidade dos aumentos a serem aí
fumaça e lustrosas pela gordura. Lá está o fogão, peça consumidos, valemo-nos da portaria de Dom António do Dester-
baixa, enorme, indo quase de parede a parede, tendo ao ro, regulamentando a ração diária das freiras do vizinho Con-
lado o forno, de proporções respeitáveis. A mesa de serviço,. vento da Ajuda, fundado, aliás, na mesma década da casa pia

í
que se reduz a uma simples prancha, longa e larga, está das madalenas arrependidas. Cada religiosa tinha direito a
colocada sobre dois cavaletes, e.tão negra e tão destratada receber
como a parede ou como o chão dessa cozinha imunda... Há
sobre ela, em terrível mistura: aves mortas, peixes, carnes, "uma libra de carne de vaca cozida, um prato de hortaliça,
legumes, adubos frescos, colheres de metal e madeira, um px*ato de picado (guisado), tudo temperado com alguma '
espátulas, tenazes, tridentes. No chão e sobre a parede, carne de porco; um prato de arroz ao menos nos domingos.
tachos enormes, caldeirões, frigideiras, ralos. Ao centro o Na ceia: meia libra de carne assada ou cozida. Nos dias de
grande pilão de madeira com sua mão grande e a sua mão peixe ter á um prato de ervas oufeijões afogados ou cozidos,
pequena. O poço fica do outro lado, com a sua corda..." uma libra de peixe e arroz. À noite, uma libra de peixe,
sendo 1/4 de farinha para oito dias."
A descrição é de Luiz Edmundo, no seu já várias vezes
citado O Rio de Janeiro no T.çmpo dos Vice-Reis. Malgrado tão reforçada dieta— quase um quilo de carne
Devia predominar no recolhimento de Rosa o receituário por dia! — exatamente na mesma época em que Rosa era
sincrético luso-brasileiro, onde ao feijão preto (quem sabe, já readmitida no seu recolhimento, o bispo beneditino baixava
preparado à moda de feijoada),, à carimã, canjica, bananas -e outra portaria determinando às franciscanas da Ajuda "não
melancias, típicos da cozinha nacional, dos. séculos passados, receberem comeres de fora: almoços, jantares e ceias, feitas com
incluíam-se azeitonas, óleo de oliva, bacalhau, farinha do reino, delicadezas". Proibia, também, servirem-se de utensílios contrá-
vinho, manteiga, pastéis, cravo e canela, produtos básicos do rios à santa pobreza, como toalhas de renda, trastes de prata,
receituário português. ' .• guardanapos da melhor moda, louça da índia, etc. A tais regalias
•"A cozinha do povo do Rio de Janeiro era no fundo, a cozinha Dom António apelidou "louco e abominável costume..." A ten-
tamoia, que a colonização ia, embora aos poucos, transformando: tação do luxo, gula e luxúria foi uma constante em nossas
paçocas, pirões, farófias, canjicas, angus, beijus, peixe e caça instituições religiosas femininas dos séculos passados, e, dentre
supriam a mesa do poviléu carioca.". A presença de várias todas, destacou-se pelo excesso o Convento do Desterro daBahia,
negras e mulatas nesta casa piá, inclusive sendo uma delas cujas enclausuradas possuíam, particularmente, numeroso sé-
cozinheira, talvez levasse a certa africanização do receituário, quito de escravas, cozinheiras, quituteiras que, dentro das celas

446 447
:.'. de suas donas, mantinham fogareiros para fazer-lhes o que bem
".• lhes apetecia. 10. Câmara Cascudo, Luís. História da Alimentação no Brasil. São
No refeitório do Parto, as internas, como era costume na Paulo: Companhia Editora Nacional, 1968, p. 103; Antologia da-
época, comiam certamente "de mão", em pratos de madeira ou Alimentação no Brasil, Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos
Editora, 1977;
de cerâmica. Pouquíssimos eram os que já seguiam a novidade
11. Vide, Dom Sebastião Monteiro. Op. cit., 1707, §408, "Da. Proibição
inglesa, introduzida em Portugal pelo Marquês de Pombal, de de Comer Carne na Quaresma e Demais Dias do Ano".
usar garfo e faca em suas refeições. As freiras desobedientes e 12. Pizarro e Araújo. Op. cit., 1820, tomo V, pp. 20 e ss.
rebeldes, em vez de sentarem-se nos bancos que circundavam a 13. Câmara Cascudo. Op. cit., 1968, p. 309.
mesa coletiva, comiam de joelhos num canto do refeitório, de 14. Luiz Edmundo. Op. cit., s.d., p, 341.
olhos baixos, mendigando de prato em prato, de joelhos, um 15. Idem, ibidem, p. 327.
bocadinho pelo amor de Deus. Faustina foi uma das. que, junta- 16. Debret, J. B. Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil. São Paulo:
mente com Francisca Tomásia, teve de submeter-se, durante Livraria Martins Editora/USP, 1972, Tomo I, p. 228.
mais de um ano, a esta humilhação. 17. Arquivo da Cúria do Rio de Janeiro, Registro de Portarias, Livro
Como, porém, "nem só de pão vive o homem"... deixemos o II, fl. 22.
refeitório, cozinha, almoços e jantares, para voltarmos aos as- 18. Arquivo da Cúria do Rio de Janeiro, Registro de Portarias, Livro
II, fl. 128 (18-2-1760).
pectos espiritxiais desta comunidade, cuja fundadora e "Abelha 19. Nascimento, Ana Amélia V. Op, cit., s.d., pp. 49 e ss.
Eainha" acabava de voltar ao "sacro colégio", após sete meses
de expulsão i

; Notas

1. Santos Filho, Op. cit., 197,7, pp. 218 e ss. •


2. Rower, B, Op. cif., 1937, p. 131. .. .. . . : . .
3. Arquivo da Cúria do Rio dê Janeiro, Registro de Portarias, Livro I,
. fl, 22 (1750-1751).
4. Santos Pilho. Op. cit., 1977, p. 187.. . '
5. Agradeço novamente a Carlita Chaves a infoi-macãõ destes"versi-
nhos pastoris. •
6. Querino, Manoel, 'Bailes Pastoris da Bahia, Salvador: Câmara
" Municipal, 1957, p. 71.
7. Rower, Basílio. Contribuição Franciscaria na Formação Religiosa
dasMinas.&er.ais.~Petrópo]is:*Vozes, 1974, p. 72.
8. Soeiro, 3usaií..ABaroqueNunery, Tese de Doutoramento, 1974, p.
18. -., ..".,. . . - . ' • . . • . . • • ••• - . - - ..
9. Libânio Cristo, Maria Stella: Fogão de Lenha: Quitandas e Quitutes
de Minas Gerais, Petrópolis: Vozes, 1977,

448
449
19
Quatro Evangelistas e o Diabo

U-
' ' - ' • ' '
" i, Ò retorno da fundadora ao recolhimento ocorreu logo após
aJrustrada profecia do dilúvio, fracasso que, era vez de abalar
o u ^ e s _ - o- d . e s _ t í n a ã . o d e
•RÓsa_jy[aria>.aumentou-Ihes_a_çrenc_a_e confiança, pois atribuí-
a -suas põHerosas preces o aplacamento da ira divina,
-~~-,'"--ir- pOStergfctUlU/ y^MJ^.-^VA-^-.H^^.^a---^- , svel.
f .r^—jsd^^^^Dfi novo dentro do recolhimento, Madre Rosa, em vez de
•v---/ ''•••• moderar seus arroubos místicos e acautelar-se, par a nunca mais
: : : : , dSí;. motivo às autoridades eclesiásticas de repreendê-la, ou
^. „.r- r-^esmõ^ãstiga^Ia, com.g^3a"ocorrefa~põF5T.ias^vezes emmenos de
],.:„ uma-década, primeiro com Dom Manuel da Cruz, bispo de
.-*-:—•.:•••' Mariana, agora com Dom António do Desterro, prelado flumi-
nense, em vez disso, Rosafez exatamente o contrário. Entre 1760
_:;—_... e .1762 o Padre Xota-Diabos e sua beata atingirão o clímax de
seu delirante projeto místico de redenção da humanidade, cons-
SSr;:; . teuindo bizarra teologia e rústica liturgia não menos barroca,
1 °Jide o epicentro de tudo e de todos era a ex-meretriz africana.
,; Estamos nos finais de 1759. Faz oito anos que Rosa trans-
feriu-se para o Rio de Janeiro; dois que as primeiras noviças
receberam o véu branco. Após sete meses fora da comunidade,
Madre Egipcíaca da Vera Cruz retorna à sagrada casa. dos
Santíssimos Corações de Jesus, Maria, José, Santana e São
Joaquim.- . .
Se dermos um crédito de confiança à visionária, de que
sempre agiu honestamente, ou seja, que tanto ela, quanto o
capelão e os demais sacerdotes que se ocuparam de sua orien-
tação espiritual—sobretudo o provincial velho dos fr anciscanos
e o capuchinho italiano, Frei João Batista da Capo Fiume —
acreditavam piamente que "nesta América não havia pessoa
mais santa do que ela", não lhes restava, portanto, outro caminho
a não ser tudo fazer para homenagear e divulgar tal santidade.

451
f Afinal, o próprio Cristo, Senhor Nosso, já tinha ensinado que
oferecidos por Rosa a Deus, e então tudo irá como Ele quer."
ninguém acende uma luz para pô-la debaixo da cama, mas sim
j no alto do candeeiro, para alumiar todos os presentes: "assim €Í7á7);.
::-'";.;que Rosa lhes dê Jesus [pois] Jesus é de Rosa, e o que
.( também brilhe a vossa luz diante dos homens, para que vejam
as vossas boas obras e glorifiquem a vosso Pai que está nos céus"
• (Mateus, 5:16).
A construção dasantidadedestanegra libertatemno Padre
Iela quer, quer Jesus, e todos os que forem de Rosa, são de Jesus."
|Í758):: • •„ ' ' „
"•-Se, em cartas, o capelão era tão explícito •—• apesar de
seSíprè recomendar cautela máxima na circulação de suas rois-
Francisco Gonçalves .Lopes seu principal artífice. Caso seus gjvas—, repetindo algumas vezes não poder revelar com deta-
caminhos nunca se íivessemcruzado, talvez Rosa jamais tivesse lhes alguns "mistérios" atinentes à vida de Rosa, ou às suas
ficado na história, pois vexadas e energúmenas abundavam nas •óròfécias; certamente com medo de chegar às autoridades ecle-
Minas Gerais, e ninguém se ocuparia em registrar as palavras siásticas tais revelações, em particular, para devotos leigos ou
e acôes de uma devassa mulher do fandango, como era Rosa ao óSãtro da clausura, a publicidade laudatória que fazia de Mãe
conhecer o Xota-Diabos. Certamente teria continuado no mesmo R6Sa:èráuma verdadeira obsessão.
métier, caso seus exorcismes não tivessem revelado os sete 7r'rs'-pãrá à Irmã Ana do Coração de Jesus, mineira do arraial
demónios que a atribulavam. Fora o Padre .Francisco, portanto, !:-Padre Faria, crioula, então beirando os 30 anos, JRadre
quem descobrira esta pérola negrãj no meio airtanta"dissolução, cancisco afiançou-lhe que <fRosaerauma grande serva de Deus,
•violência é satanismo — a amálgama quê~cimentou a sociedade • pis vivia com ela h.á muitos anos e dava testemunho". Perante
mineradara^io primeiro século de sua fõfmação. Fora ele quem ^comunidade recoleta costumava dizer que
domesticara e dera trela a seu demónio familiar, rotulado pela
vidente (ou pelo próprio exorcista, quem sabe?) de "Afecto". Foi -'"oferecessem as rezas ao coração privilegiado de sua mãe
este sacerdote quem praticamente a salvara de morrer, após :Rosa, para que Nosso Senhor despachasse as suas petições
rigorosos açoites sofridos no pelourinho de Mariana, quem lhe :por intercessão dela, pois havia muitos santos que a Santa
dera a carta de alforria,- trazendo-a para o litoral, e agora, como aMadre Igreja venerava e que não tinham padecido tanto
capelão, não se cansava de afiançar perante leigos e enclausu- Èhèste mundo como ela tinha padecido, e que tudo quanto
radas que Rosa era mesmo a escolhida de Deus par a uma grande Ise pedisse a Deus e Nossa Senhora, fosse por intercessão
-missão salvífica. :
ideia". . ' .
Em. suas cartas, Padre Francisco Gonçalves Lopes não
poupa elogios à sua "Rosinha" — sobretudo depois de vê-la tão : Outra recolhida, Imã Ana do Coração de Maria, nossa
bem aceita e mesmo paparicada por ilustres religiosos, como os "conhecida Ana Bela, também crioula, trintona como apreceden-"
mais notáveis franciscanos do Convento de Santo António. Bis ãíteV-só que natural da ilha do Bom Jesus, no Recôncavo Flumi-
algumas opiniões deste clérigo minhoto, a respeito de sua ex-es- : iíense, dá o seguinte depoimento sobre quão exageradamente o
crava, colhidas em diferentes cartas que enviou aos Arvelos: padre capelão venerava sua energúmena: certa vez, a irmã Ana
"...na boca de Rosa muitas vezes fala o Espírito Santo!" , -demonstrou a intenção de presentear Rosa com uma lasquinha
(Í752) • ' - • • • ' - • ído Santo Lenho que trazia consigo num caixilho de prata—uma
"...Rosa não é desse mundo: é o Menino Jesus que domina ,das relíquias mais disputadas e prezadas pelos católicos de
ela.".(1757) . ;antanho — e que na Catedral do Rio de Janeiro se venerava uma
"...todas as orações e atos meritórios que fizerem, sejam porção maior, em rico esplendor de ouro, presenteado alguns
anos antes por Dom António de Guadalupe. A resposta do padre

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atai oferta foi a seguinte: "Mais valia uin pedacinho de qualquer Arvelos. Foi em sua chácara, nas imediações da Capela de Santa
roupa de Rosa, do que quantos lenhos havia, porque nela existia Rita, no bairro da Glória, em São João dei Rei, que Rosa se
o mesmo Deus!" E completava garantindo: "Quem beijar os hospedou por mais de una ano, quando acompanhou o Padre
cabelos de Rosa, ganhamuitas indulgências..." Francisco no Rio das Mortes. Foi este senhor que socorreu
Par a as filhas do casal ArvelosJPadre Francisco transmitiu pessoalmente a energúmena no pelourinho de Mariana, tratan-
a mesma veneração ànegraEgipcíaca: a Maria Jãcinta afiançou do-lhe as feridas e comprando-a, juntamente com o padre, do
"erârfãnQãaõra e mestra do recolhimento", título cativeiro de Dona Ana Garcês, passando-lhe carta de alforria,
que dizia Deus ter-lhe dado. Assegurou mais: enviada ao Rio de Janeiro em 1758. Foi este mesmo Sr. Arvelos
que injetará sangue novo no recolhimento, internando aí suas
"que ela não era criatura viva, que tinha morrido, ido a quatro filhas donzelas e mandando frequentes donativos para
juízo e que fora ao céu, e Deus, por piedade das criaturas, sua manutenção. Depois do Padre Francisco, era seu maior
se infundira nela e a tornava a mandar ao mundo para o devoto, e foi pelo que viu, e sobretudo pelos conselhos do Xota-
• amparo do género humano; mais ainda: que Nossa Senhora Diabos, que adotou sua ex-escrava como mãe. Tudo começou em
era mãe de justiça, e Rosa, mãe de piedade, porque Nossa 1749, na Capela de São Sebastião, arredores de São João dei
Senhora pedira a Deus que castigasse o mundo, e Rosa Rei, quando assistiu, pela primeira vez, Rosa ser possuída pelo
. oferecia seu coração de amparo". Demónio: a partir daí, jamais teve dúvidas de sua sobrenatura-
/ • • " . • . ' • '• • Kdade. O próprio sacerdote proclamava que "no corpo da negra
Irmã Faustina, por seu turno, ouviu o capelão divulgar que estavam sete espíritos malignos e que Lúcifer tinha sido man-
"Nossa Senhora concebera Jesus por obra do Espírito Santo, e dado para avisar o povo das Minas de que estavapara vir grande
Rosa o concebera sacramentado no seu peito, pois o Coração de castigo". Tais encómios eram pronunciados em público, em alto
Rosa estava no céu e o de Jesus no seu peito". A caçulinha Irmã e bom som, e, "em particular, o padre afirmava que a negra era
Francisca Arvelos, o compadre de seu pai mandou que, ao uma serva de Deus". Segredou-lhe mais o Xota-Diabos que sua
confessar-se, fosse rezar as. penitências "no altar privilegiado do beata possuía especial poder no tocante às almas do purgatório
coração de Rosa, porque somente ali Nosso Senhor aceitava [às —uma angustiante obsessão de nossos antepassados —, garan-
orações], pois a madre era uma santinha, e tudo que se obrava tindo-lhe que, pelos benefícios de Rosa Maria, um conhecido
no corpo de Rosa, eraJJeus que^õTbrava.^IrmirGelioveva, a mais comuta, o finado Coronel João Gonçalves Fraga, tivera sua alma
veTEa e menos lúcida das quatro, lembrava-se de ter ouvido julgada favoravelmente, embora tivesse mandado fazer uma
Padre Francisco dizer que "o coração de Rosa estava no céu e morte. Noutra ocasião, quando já vivia no litoral, justificou as
que Nosso Senhor vinha falar com ela; que ela era superior a raras cartas que a negra escrevia par a as Minas, afirmando que
todos os santos, até aos patriarcas, os quais lhe tinham entregue ela estava proibida de escrever, "pois cada letra que Rosa
todas as ordens religiosas, ficando mãe de todos seus filhos". E escrevia tirava uma ou mais almas do fogo do purgatório, pois
completa a simplória mineira: "O padre me afirmava pela Santís- era uma santa tão grande que, depois da Sagrada Família, não
sima Trindade que ela era santa e me mandava que a venerasse havia outra tão santa quanto ela". E concluiu tal informação, o
por santa e eu cria nela, pois assim me obrigava o confessor." Sr. Arvelos, -lembrando ter ouvido tais ensinamentos "perante
Diversos fiéis leigos igualmente revelaram ter venerado a muitas pessoas" —quer dizer, em público.
africana devido à garantia que p capelão dava de sua predesti- Também perante quem quisesse ouvir, garantia o mesmo
nação celestial. Depois do exorcista, quem mais contribuiu j) ar a sacerdote que "São Francisco, no seu dia, dera as cinco chagas
a_c.onsolidáção da ^santidade desta negra foi o Sr. Pedro Róis
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para Rosa", e Cristo, sua coroa de espinhos. Daí afirmar que


Santa Teresa d'Ávila, a grande doutora da Igreja, "ficava a inas culpas que pouco antes tinham confessado ao sacerdote,
perder de vista da negra, pois, embora Deus tenha feito muitas suspeitando que o velho capelão quebrava o sigilo da confissão,
mercês a Santa Teresa, estas não tinham comparação com as contanto para a vidente o que ouvira no confessionário. Ambas
que fez e fazia a Rosa". Noutra oportunidade, reforçou a mesma as condutas, ouvir confissão sem ser sacerdote e revelar o
opinião dizendo que a mesma Santa Teresa, a reformadora do sigredo da confissão, eram severamente punidas pelo Santo
Carmelo, não passava de "menina de recados" de Rosa... Uma Ofício, que, por bula de Bento XTV (1745), determinava até a
nobre dama de Ávila a serviço de uma africana!!! pena de morte na fogueira aos sacerdotes que não guardassem
Tanto ao Sr. Arvelos, quanto à sua mulher; o compadre olsigilo sacramental da confissão.
Xota-Diabos repetia que "Deus falava pela boca de Rosa", sendo -s, • -Irmã Ana Maria declarou que o capelão mandava às reco-
por ele tratada como "mãe espiritual". Dezenas de testemunhas Uaidas que tomassem a bênção de Rosa, de joelhos, dizendo à
arroladas neste processo confirmam ter ouvido Padre Francisco Irma. Teresa de Jesus que "ela era fonte da graça e que lhe
proclamar que "a negra Rosa tinha Nosso Senhor sacramentado òBedècessem em tudo". Incrédula, esta religiosa foi consultar
no seu peito e que era comparada à Santíssima Trindade", ou, Irmã Ana do Coração de Maria, a amiga mais íntima da mestra,
ainda, que "Rosa era coisa muito grande e havia de padecer o if-qual ratificou as palavras do confessor, "mandando-a beijar os
mesmo martírio de Nosso Senhor Jesus Cristo, porque havia de pés de Rosa para ganhar indulgências".
ser açoitada, presa, escarnecida e esbofeteada, porém, que lhe Três atitutes do capelão demonstram cabalmente^ograu
haveriam de assistir dois anjos para a consolarem"; mais ainda, de veneração que prestava à serva de Deus. Crente, como
que "Rosa abrigava um profundíssimo mistério, e, depois da dissera, que "qualquer^pedaòmhojlajaupa de Rosa" mais valia
Encarnação, não havia outro [mistério] semelhante", afirmando que a própria santa cruz de Cristo, ele^próprio dava exemplo,
que "não ocorreu o dilúvio no Rio de Janeiro porque a 'Abelha carregando em seu pescoço nada menos qulTunTaente de sua
Mestra1 não viera para ó cortiço", etc., etc. santa negra! Se era um molar oíTcariono, se perfeito ou cariado,
Se por escritos e palavras o Padre Francisco Gonçalves se estava encastoado em ouro ou prata, como o conseguira,
Lopes era tão entusiasta em proclamar a sobrenaturalidade de infelizmente não informam os documentos. O certo é que o
sua energúmena, situando-a, na corte celeste, em nível superior Xota-Diabos não se separava de tão insólitarelíquia^gx-dentes".
ao dos patriarcas e principais santos canonizados —• "Rosa é a Seguindo-jhes_p_exgmplo. as recolhidas mais devõtã^dis-
maior santa do céu!"—, dentro do recolhimento, longe dos olhos pútavam avidamente reKquias_de sua mestra e fundadora. A
dos incrédulos, o Xota-Diabos desenvolveu rica liturgia para carioca Irmã Francisca Xavier dos Serafins, então com 36 anos,
cultuar a "Flor do Rio de Janeiro"! Estimuladas pela crendice foi uma das que confirmou ter acreditado ganhar copiosas
do sacerdote, as recolhidas deram trela sóTta á~lmãginação indulgências plenárias ao beijar as mãos e pés da negra courana,
rnística)_passando a inventar tuna "serie ds~ritu'ais~e devoções indulgências "que podiam se aplicar pelas almas dos parentes
vivos e por
tendo Madre Rosa_EgÍ££iãca_c^nõ2H^õ^@B:tral. \o gravemente aos ensinamentos da teologia quem quisessem", tendo visto várias vezes o próprio
capelão prostrar-se para beijar os pés da beata. Contou mais,
dogmática, mandava o capelão às recolhidas mais rebeldes "que que certa noite, ao rezar em comunidade oMiserere (Salmo 50),
fizessem confissão pública de seus pecados aos pés de Rosa, pois "Rosa açoitou-se de tal forma, que correu muito sangue, cuidando
ela [representava] a pessoa de Jesus Cristo". Algumas professas as mais recolhidas que ela morresse por aquele exercício, aí
declararam ficar admiradas quando Rosa lhes arguia das mes- algumas recolhidas ensoparam panos no sangue e guardaram

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por reKqtiia._Tamb_éra_-dos. cabelos_de Rosa guardavam, e do - Papelinhos escritos com orações ou jaculatórias ainda hoje
Jiabita-tamhém". • • * - • - • _ - fazem parte do devocionário católico: o venerável Frei Galvão
As relíquias fascinavam os cristãos desde a Idade Média, (1739-1822), fundador do recolhimento de Nossa Senhora da
e, no Rio de Janeiro, já vimos que o governador e o bispo Luz em São Paulo, curou certa vez um rapaz, com fortes dores
disputaram, aos empurrões', com o populacho, pedacinhos do estomacais, mandando-o engolir um pedacinho de papel onde
hábito de Frei Fabiano de Cristo, do convento dos franciscanos, ' escrevera três vezes um versinho do Ofício de Nossa Senhora:
morto com "cheiro de santidade", às vésperas da chegada de Rosa
"desde então tornaram-se célebres os papelinhos do Mos-
t
nesta cidade. Dom António: do Desterro, particularmente, era
grande devoto e o maior colecionador de relíquias de todos os têiro: da Luz, que têm curado muitas pessoas, sobretudo a
tempos que jamais o Brasil possuiu. Ao descrever as igrejas de ^ favor das senhoras que estão para dar à luz. Quantas
sua diocese, em 1752, enumerou cuidadosamente quais e quan- •- - graças de cura maravilhosa são atribuídas a esses papeli-
tas relíquias cada uma venerava, destacando na Sé "a insigne ~~ nhos, invenção engenhosa e compassiva caridade do servo
relíquia do Santo Lenho; no Mosteiro de São Bento, as relíquias " de Deus! Milhares de pedidos chegam de todas as partes
de São Vitorino, São Bento, Santa Gertrudes e do Santo Lenho; dò: Brasil e exterior, e mesmo os senhores médicos e enfer-
no Colégio dos Jesuítas, os restos mortais de Santo Amaro, São meiros os têmpedido para salvarem seus clientes emperigo
Brás e dos mártires Santo António, Santa Tecla, São Fagúncio, devida"...3
São Damásio, São Paulino, São Primo, Santo Agapito, São
Teodoro, Santa Ursula e as Onze Mil Virgens, Santo Olímpio; Dente, sangue e cabelos não foram os únicos_ elementos
os Carmelitas, por seu turno, além do Santo Lenho e de outras corpóreos de Rosa, piamente venerados como relíquias e maté-
relíquias de santos mártires cujos nomes se ignoram", ostenta- ria-primaparapoçÕes milagrosas. Também sua saliva e objetos
vam grande trunfo: precioso relicário guardava nada menos que por elautflizados xnerecjrjjnj.gujJ^.ej/oção,_se^Qp_re_tendo Padre
"três cabelos de Nossa Senhora e outro de Santana!" Acredite Francisco comjj inspiradorjde seu uso e afiancador de suas
quem quiser.__~7r : " . '. ~ ' • • • virtudes curativas.
Se Maria era Mãe de Justiça, e Rosa, Mãe de Misericórdia, " ^Irrnã Ana do Coração de Maria ratificou ter o capelão
nada mais justo que também a negra, .tivesse sua carapinha mandado guardar a água da bacia onde Rosa lavava as mãos e
venerada em forma de relíquia. Além de ter seus fios de cabelo *• o rosto, misturando-a com um pouco de açúcar e um pingo de
guardados, como revelou Irmã FranciscaXavier, também eram |., ~_ _~~ vinho"pára disfarçar a cor e não saber que água era", para ser
utilizados na preparação de milagrosa poção. Conta Irmã Ana dada áòs enfermos. Disse que o próprio sacerdote fazia uso de
do Coração de Jesus que o' capelão mandou que se escrevessem tal beberagem quando tinha algum incómodo, recomendando
nuns papelinhos os santíssimos nomes de Jesus e Maria, ajun- que "todos tivessem fé nesta mezinha [pois] haviam de sarar de
tando um pouco de açúcar branco e uns cabelos de Rosa, "os enfermidades do corpo ou do espírito".
quais, quando se lhes cortavam, o padre mandava guardar"; Alsaliva)de Madre Rosa, de todos os element_Qa.da-aeu-Corpo.
queimados estes três ingredientes é.feitos, cinza, .eram mistura- foi a que mereceu maior devoção. Informa a mesma religiosa ter
dos numa calda com água benta e, toda manhã, por nove dias sido a'propTiãrbéãíã~quem a persuadiu a lavar a testa, ouvidos
seguidos, davam-se duas coffieradasjpara asjrecólhidas, funcio- e peito com sua saliva, "para que conservasse a graça de Deus".
nando como santo remédio pára dor no peito! "São Placebo", ora Irmã Faustina, de seu lado, dá.outra versão sobre este episódio:
.pronobis!' eram as recolhidas mais íntimas da visionária que tomavam a
iniciativa de guardar sua saliva, dizendo que "curava pancadas".
o - -J

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I
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Foi, contudo, apretacrioulaAnado Coraçãode Jesus quem contra os males do corpo e do espírito, conforme depoimento do
forneceu a informação mais completa referente à utilização da cronista da ordem franciscana, Frei Jaboatão.
saliva da Mãe Rosa para fins curativos. Ao ser inquirida perante Revela Irmã Jacinta que a saliva de Rosa era zelosamente
o comissário do Santo Ofício do Rio de Janeiro, jurou com as guar,dada;num pratinho de vidro ou "alguidar vidrado", sendo
mãos sobre o Evangelho que o capelão do recolhimento lhe usada para lavar a cabeça das recolhidas mais rebeldes, como
mandara, em certa ocasião,
ingre"diênte dos tais biscoitos, panaceia contra dores e ataques
do Demónio, ou à moda de unguento, curando pancadas e
"um pouco de farinha de trigo que havia de amassar com
uma coisa que lhe havia dado a Irmã Maria Teresa do aliviando dores. _ _?AAJ\M- i-H** M A/J &•
- "~ A saliva humana recebe diferentes tratamentos ou signi-
Sacramento, que foi a regente. Sabendo que era saliva de
fícado~s de cultura para cultura. Cuspir em alguém representa
Rosa, repugnou fazer a dita amassadura e bolinhos como
gr ãvelnsulto, enquanto a troca de saliva no beijo de enamorados,
lhe mandava o dito Padre Francisco, e este lhe pôs preceitos
uma manifestação de paixão. Entre nossos aborígenes, além de
dizendo que quem era filha obediente não repugnava o que
sua utilização como remédio, não era objeto de repulsa, tanto
lhe mandava fazer o seu confessor e que fizesse a amassa-
quevpara se fazer o melhor cauim, deviam as velhas da aldeia
dura e os tais bolinhos, que eram para bom fim".
mastigar o milho e cuspi-lo num recipiente para fermentar.
Obediente, a religiosa Costume, aliás, que nossos colonos assimilaram e ainda prati-
cavam em meados do século XVIII: no famoso Códice Costa
"fez os bolinhos e no forno os torrou como biscoito. Aí o Mattoso (1749), em "Notícias das Muitas Comidas que se Fazem
Padre comeu o pedaço de um e mandou guardar os outros de Milho", somos informados de que da canjica
para se darem às irmãs recolhidas quando tivessem algu- "se f az o célebre manjar 'cantimpueira', que, mascada na
ma moléstia ou dor, dando-se a cada uma porção limitada boca e lançada no caldo da mesma canjica, no dia seguinte, „
em água comum ou com água benta, com fé, que se haviam tem seu azedo e está perfeita. Para ser mais saborosa, há
de sarai" porque Nosso Senhor, pelos merecimentos de sua
"de ser mascada por alguma velha, isto para aproveitar a
serva Rosa, havia de dar saúde e virtude naquele remédio".
baba. E assim dela gostam os de bom estômago, que os
_ nojentos a levam e socam ao pilão. Nunca é tão saborosa e
E a mesma depoente confirmou que, por muitas vezes, as
medicinal como a mascada aos dentes".
recolhidas recorreram a tais biscoitos quando estavam vexadas
pelo Demónio, "sempre achando alívio". Deus seja louvado!
Aleluia! Também as religiões usaram a saliva como matéria sacra-
mental. O próprio Cristo curou um cego em Betsaida "pondo-lhe
Diga-se, en passant, que desde a instituição da Sagrada
saliva nos olhos" (Marcos, 8:23) e, segundo acaba de me informar
" Eucaristia na Santa Ceia, pelo próprio Filho de Deus, o pão
minha doméstica, Dona Carlita Chaves, quando menina, há
tornou-se símbolo dos mais queridos para os" cristãos. Ficou
_mais de 50 anos passados, no bairro da Curva Grande, em
célebre, desde a Idade Média, o "pão de Santo António" que, até
Salvador, conheceu uma curandeira, de nome Lôra, filha de
hoje, incontáveis famílias baianas conservam um bocadinho
Oxóssi, muito procurada para tratar feridas e chagas: sua
dentro da faririheira, para que nunca falte.o alimento na casa
técnica curativa consistia em lamber e cuspir nas ditas feridas,
do devoto. Igualmente famoso, na época de Rosa, no Rio de
que rapidamente desapareciam sem outro remédio além de sua
Janeiro, era o "pão de Frei José Santinho", espécie de remédio
saliva. Santa Margarida Maria, São João de Deus e São Fran-

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f •

cisco Xavier, entre outros, incluíram em seus currículos de tivessem fé que haviam de se curar". Irmã Faustina revelou que
santidade ter limpado feridas, inclusive de leprosos, com suas as recolhidas mais próximas da "Abelha Megtra" davam bocadi-
línguas. São Francisco Solano. (1549-1610), famoso por seu nhos de sua roupa e cabelo para que as demais religiosas
cuidado com os escravos negros do Peru, 'Vendo um menino com trouxessem^õmõ~prÕtiêçâo,"g5Í!í3.ados em saquinhos junto ao
as pernas cheias de chagas e de lepra, levado de grande compai- ..hábito.
xão, lhas chegou a lamber com a língua, e, aplicando-lhe conve- Para administrar a constituição da santidade de Madre
niente remédio, logo as curou". • Egipcíaca urgia institucionalizar-lhe um séquito: a Abelha Rai-
Portanto, não foi invenção do capelão do Parto utilizar a "_nha~requer suas operárias.
saliva de suabeata parafins curativos e proteção contra as forças « ^-Sempre mancomunada com seu exorcista e orientador
do mal: seguia tradição milenar e multicultural, havendo outro- espiritual, Mãe Rosa tão logo retornou ao recolhimento, teve a
ramenor asco face atai secreção do quehodiernamente. Tinham., ideia de estruturar melhor seu pequeno rebanho, distribuindo
inclusive, nossos antepassados, hábito de salivar muito mais do ritualmente alguns poderes a suas mais fiéis vassalas. Em vez
que hoje em dia, daí a presença obrigatória, nas casas de bem e de' doze apóstolos, nossa beata contentar-se-á em eleger quatro
nos lugares públicos, de escarradeiras de louça da índia, ou de "«evangelistas", sendo este um dos episódios melhor documenta-
porcelana europeia. . dos "no" seu processo e que permite-nos vislumbrar a'estrutura
A saliva de Rosa, contudo, por possuir poderes preterna- de poder e hierarquia desta comunidade crioula.
turais, merecia tratamento diferenciado: era guardada num &• . Dentro do recolhimento do Parto, o local preferido por Rosa
pratinho de vidro, recipiente de alto luxo numa sociedade em para manifestar seus poderes e graças espirituais era o coro.
que o barroca jnadeira e o cobre eram os materiais mais " Mais precisamente, o centro do 'coro, aquele espaço livre, uma
constantes no serviço de mesa dos privilegiados, pois a grande espécie de arena, que fica 110 meio da fila de cadeiras ou bancos
maioria da população comia mesmo era no chão, com os dedos, onde se assentam ou se aj oelham as recolhidas durante os ofícios
r.r> ' em gamelas e cuias de madeira ou cabaças de porongo.
litúrgicos. Era, sem dúvida, o lugar de maior visibilidade dentro
â* ' Também os objetos utilizados por Rosa foram alvo de "do* espaço comunitário, estando sempre todas as recolhidas
veneração especial por parte de seus fiéis. O Padre João Ferreira - j5f eséntes, quer em silenciosa oração mental, quer cantando ou
de Carvalho, de São João dei Rei, aquele sacerdote que por ordem rezando o Ofício de Nossa Senhora, ladainhas e demais preces
de Nossa Senhora ofertara grande soma de dinheiro para a __dévocionais. Para quem desejava ser vista e venerada, não havia
fundação do recolhimento, 'Venerava as cartas de Rosa como se e"spaço-melhor! Foi aí que Madre Rosa Maria teve diversas de
fossem relíquias e ditadas por Deus". Da mesma forma eram suas"visões e êxtases, "estando a comunidade presente", chegan-
veneradas as roupas de Mestra Egipcíaca: Irmã Francisca, a do várias vezes a cair como morta no chão ou vociferando contra
pequeninanoviça Arvelos, c'ontou que ouviu aprópriaRosa dizer - inõredulos, com voz gutural peculiar ao seu Espírito, o "Afecto".
que deixava sua saia de lã'ao Padre Francisco como relíquia, e "^"i."",*.j-.. . , . . . •
certa ocasião, quando trovejava fortemente, Irmã Ana do Cora- -" "Numa ocasião —• conta Irmã Ana do Coração de Jesus —,
ção de Maria disse que era castigo de Deus cçntr a uma recolhida —-loia-noite da Visitação de Nossa Senhora a Santa Isabel, que
incrédula, anunciando que" viria um anjo do céu para executar era o dia das sortes da congregação, estando a comunidade
o castigo "e, para evitar isso]" cobriam-se algumas recolhidas com : í rezando uma novena no coro, saiuRosa de joelhos e, cantando
uma capa de Rosa". O próprio capelão distribuíra também ~Lo,Ave Maris Stella, começou a dançar [em frente do altar],
"alguma roupa de Rosa para os de casa ou de fora, [dizendo] que fazendo muitas visagens, até cair desmaiada no chão. [Le-

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vantou-se então] e de umbalainho pequenino [tirou] quatro Tais foram as escolhidas e seus respectivos patronos:
papelinhos trazidos à maneira de sorte e deu cada um a
quatro irmãs, onde estavam escritos: São Mateus, São •' Ana do Coração de Jesus........ São Mateus
Lucas, São Marcos e São João, dizendo que elas eram - • - Ana do Coração de Maria São Lucas
evangelistas. E perguntando ela, testemunha, o que signi- Maria Rosa ......São Marcos
íicava o nome de evangelistas, Rosa disse que era para dar FranciscaXavier.... São João
conta de tudo que passasse no recolhimento a respeito dela r. —j... • ' • , . .

e das mais irmãs em todo o tempo que fossem perguntadas, Em que medida tal imposição de nomes poderia evocar
confirmando o padre o mesmo, que escrevessem tudo para ritu ais congéneres praticados nos cultos afro-brasileiros, quando
se não esquecerem e que, se fossem perguntadas um dia, asyàô saem da camarinha e têm seus nomes revelados, passando
dessem conta." a partir de então a ser identificadas com diferentes orixás? Fica
aquitão-somentelevantada a questão, deixando aos africanistas
Pelo visto, realmente b Padre Francisco confiava e tinha a última palavra.
sólida esperança de que um dia Rosa seria elevada à glória dos Entre as_ evangelistas, três negras e uma branca; três
altares. Programando, com antecedência, diversas versões da analfabetas e uma s^mj-alfabetizada. Se a missão delas era
biografia de Santa Rosa Maria Egipcíaca da Vera Cruz, com as escfèvef~õs~"mistérios da nova redenção encabeçada por Mãe
anotações das quatro evangelistas garantia material abundante Rosa, a escolha de três analfabetas, havendo várias recolhidas
e fidedigno para seu futuro processo de beatificação. que sabiam escrever, revela que a eleição baseara-se em critérios
Outras religiosas presentes nesta curiosa cerimónia, na outros que o mero conhecimento da grafia.
qual não faltaram dança, cantoria e êxtases beatíficos, dão mais As duas Anãs, a do Coração de Jesus e a do Coração de
detalhes sobre o significado desta eleição: que a missão das Maria, pertenciam ao grupo mais próximo de Rosa, e já foram
quatro eleitas "era evangelizarem tudo quanto vissem no reco- várias vezes citadas ao longo destas páginas, notadamente Ana
lhimento", ordenando p capelão "que fossem tratadas com o Bela que, no recolhimento, recebera o melífluo nome do Coração
respeito devido aos evangelistas", e chamadas de "Evangelistas de Maria. As duas outras escolhidas são pouco mencionadas na
do Novo Mistério da Rede;nção", obrigando-as a imitar os biógra- documentação, escapando-nos os motivos que influenciaram
fos de Cristo: "do mesmo modo que os evangelistas escreveram Mestra Egipcíaca a privilegiá-las. Com certeza deviam ser as
a vida de Jesus quando andou por este mundo, assim também mais crédulas e devotas incondicionais da visionária courana.
deviam escrever os prodígios que Rosa fazia". A partir de então, Das quatro evangelistas, foi sem dúvida a Irmã Ana do
a comunidade passou a chamá-las de evangelistas. Coração de Maria, agora cognominada "São Lucas", a presença
Tal nomeação ocorreu,, portanto, no dia 2 de julho de 1760, mais forte e carismática dentro, do recolhimento, depois de Rosa.
festa da Visitação, pouco tempo depois da chegada de Jacinta e Fluminense da ilha do Bom Jesus, fora batizada pelos capuchos
Genoveva ao Rio. Foi a secretária de Rosa, Maria Teresa do e talvez através destes frades tenha obtido sua prenda mais
Sacramento, quem escreveu os papelitos, acontecendo tal ceri- preciosa: a relíquia da Cruz de Cristo. Depois da mestra, foi a
mónia, como relatou uma das eleitas, no mesmo dia em que que mais teve visões celestiais, que mais profetizou, algumas
tiravam-se as "sortes da congregação"•— isto é, quando através vezes até fornecendo ela própria a inspiração para as profecias
de sorteio deviam ser preenchidos alguns cargos desta comuni- que a fundadora incorporou em suas mensagens e escritos
dade. teológicos. Logo- que transferiram-se para o novo recolhimento,

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"certa feita, quando uma recolhida confessava, se representou Maria". Como interpretou tal alegoria ou qual o significado que
a Irmã. Ana do Coração de Maria que o fazia sacrilegamente, e lhe atribuiu, infelizmente a documentação não esclarece. Talvez
levantando os olhos para ela, se lhe viu negra retinta, sendo pleiteasse, após o desaparecimento da fundadora, tornar-se ela,
branca, e, refletindo, viu que aquilo era corno espelho de suas pão cru, o pão cozido que daria continuidade à sua obra.
próprias culpas". Noutra ocasião, teve outra revelação: ao ver Outra vez, conversando com algumas recolhidas, revelou
Irmã Faustina de joelhos no confessionário, no lugar da casinha ter sido levada por Deus até o inferno "e lá vira sua cama que lá
onde fica sentado o padre, viu uma forca, onde a confessanda tivera 110 mundo, e que o Demónio lhe estava abanando, e que
iria morrer devido à sua incredulidade. Duvidando se não era a também vira as camas de alguns homens que ela.conhecia cá no
visão um embuste do Demónio, afiançou-lhe o capelão que "o mundo e que a alma de Frei Agostinho estava padecendo ao pé
Diabo quereria que a criatura encobrisse o seu pecado, para do inferno..." Por vezes as alucinações místicas desta ex-prosti-
nunca merecer a graça de Deus no sacramento que recebia", tuta fluminense prolongavam-se dias seguidos. Numa mensa-
portanto, era virtuosa e legítima sua revelação. Após tal confir- gem enviada por Rosa a Frei Agostinho, quando ainda era seu
mação por parte da autoridade eclesiástica, a ex-Ana Bela diretor espiritual, a. Ir de abril de 1756, narrou o seguinte:
passou a profetizar frequentemente, costumando adivinhar o
que as irmãs vinham lhe dizer, descobrindo se tinham escondido "Disse-me a minha filha Ana do Coração de Maria que
alguma-palavra ou acontecimento: "Dizia que Nossa Senhora andava há quinze dias, pouco mais ou menos, acompanha-
lhe dera o dom de conhecer os interiores e que no seu peito tinha da de um vulto que lhe parecia ser o Menino Jesus, [tendo]
o Coração de Nossa Senhora"— daí seu nome Coração de Maria uma cestinha na mão, descalço, sem camisa^ com uma
—, obrigando primeiro" a. Faustina, depois a Francisca Arvelos, túnica vestida, roxa. [...] Aí ouvi uma voz que me disse:
escreverem as visões que lhe ocorriam, posto não saber, ela 'DeixaiAna, não façais bulha.' Ontemparecia que ela [Ana]
própria, os segredos da escrita. . estava orando no meu coração, como de fato que assim era.
For a esta mesma religiosa que,pelaprimeíravez, em 1758, Pedi-lhe conta, depois que acabamos a oração. Já era tarde
profetizara no recolhimento, falando como se fosse o Anjo Ga- e hoje, pelamanhã, é que falou comigo e disse ela que ontem
briel, que no dia do Missup est se haveria de inundar a cidade foi o dia em que o Menino mais a perseguia. E, indo para
do Eio de Janeiro, somente escapando as pessoas que estivessem a oração, a acompanhou. E, assim que começou a oração,
na "arca dos Santíssimos Corações". Também ela própria ajudou desapareceu. E em breve tempo tornou a aparecer em cima
a consertar o. fiasco de não ter ocorrido o temido dilúvio, procla- do altar, e, querendo ela meditar no ponto que se tinha lido,
mando "que, pelas orações de Rosa, se suspendera aquele castigo". que era da Paixão, se viu posta em juízo, pedindo-lhe o
Suas visões, menos elaboradas que as da "Abelha Mestra", Senhor conta. Além do horror das suas culpas, dos grandes
eram cuidadosamente anotadas por outras recolhidas, cumprin- benefícios que lhe tinha feito principalmente em o tempo
do assim a determinação de Ro"sa, e do capelão, de que registras- em que a tinha chamado e trazido à sua santa casa, e assim,
sem tudo que envolvia a santidade da fundadora e o bom lhe dizia que em tantas horas, dias, semanas e meses, —
funcionamento de seu "sacro colégio". Eis uma de. suas visões, que era o que tinha aprendido nesta escola? — que qualquer
tal qual foi anotada por Francisquinha Arvelos: "Certa vez vi escola do mundo, havendo muda, já as mães conheciam e
dois pães, um cru e outro cozido, este com um círculo negro que cantavam aumentos, e ela não tinha tomado substância
era a figura de Rosa pelo que padecia quando lhe diziam que se nem conhecimento das letras; e que o Senhor não achava
desdissesse do que fazia, e o pão cru era eu, Ana do Coração de aumento nenhum nela nem na sua mudança, e lhe pedia

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contas, além de outros benefícios' que lhe tinha dado; que
por ele haverá de ser jardim das flores humildes e a isso fizesse no coração privilegiado de Mãe Rosa para que Nosso
lhe propunha todos os pontos da soberba, porque o que Senhor despachasse as suas petições por intercessão de Rosa".
havia de adquirir pela humildade, desperdiçava pelo pouco Também era dada a visões e 'êxtases, relatando que
conhecimento que de si tinha. E, acabada esta presença do
"no dia de Nossa Senhora do Rosário (1755?), de tarde, viu

1
Juízo, tornava a ver o Menino em o mesmo lugar, chamando
— diz ela—• que chamava por mim e que eu me alevantava com os olhos fechados, representando-se-lhe no entendi-
e ia"... mento, como um relâmpago, uma carroça em que ia Nosso
Senhor pelo ar acima das nuvens, como o andor das setas
Apesar do estilo claudicante e dobarroquismo das imagens, [da estigmatização de São Francisco]: com uma seta na
podemos constatar, através desta descrição ditada por Rosa, o mão direita, como que disparava, e duas na outra mão".
l
quanto ela e sua dileta Ana Bela se queriam, a ponto de com-
. partilharem as mesmas visões e regalos celestiais, decifrando Embora não tenha explicado o significado desta alegoria,
os enigmas das revelações recebidas, uma da outra, quando tudo nos leva a crer que teve inspiração em episódio semelhante
individualmente não conseguiam fazê-lo. Não devemos ficar ocorrido com Santa Teresa d/Ávila, ao ter seu coração trespas-
admirados com a presença do Menino Jesus, por quinze dias sado por um dardo incandescente atirado por um anjo — fenó-
seguidos, perseguindo a devota freirinha. Como todo menino, meno místico que os teólogos denominaram de "transverbera-
ção" e cuja representação majestosa, esculpida em mármore por
também o Divino Infante costumava fazer suas presepadas:
Lorenzo Bernini (1646), pode ainda hoje ser admirada na Igreja
vários foram os santos e santas, desde Santo António de Lisboa,
de Santa Maria delia Vitoria, em Roma.
agraciados com o favor divino, transferindo-se o Menino Jesus
No ano seguinte a esta visão, depois do terremoto de Lisboa,
do colo da Virgem Maria para os seus braços, entre eles, São
portanto em 1756, a evangelista São Mateus, estando em oração
Caetano, Santo Estanislau Kostka, São Benedito, Santa Rosa
de Lima, Santa Verónica Giuliani e, mais recentemente, o diante do Santíssimo Sacramento, sempre com os olhos fecha-
jesuíta Padre Jbão Batista Réus, o taumaturgo do Rio Grande dos, narra que "viu Rosa num trono, rodeada de muitas luzes,
do Sul, que, ao elevar a hóstia consagrada, nela aparecia a trazendo uma custódia na mão direita, na qual se viam os
rechonchuda imagem do Bambino Gesú. Santíssimos Corações, e no Coração de Jesus estava o Santíssi-
mo Sacramento assim como estava exposto no altar". Na icono-
Depois de Ana do Coração de Maria, foi sua xará, Irmã Ana
do Coração de Jesus, a evangelista que maior importância grafia católica, Santa Clara, a parceira de São Francisco, é
desempenhou no recolhimento, tendo recebido como guia de sua sempre representada com a custódia na mão, de modo que tanto
missão o apóstolo São Mateus. Beirava os 30 anos quando a visão anterior, representando as chagas de São Francisco,
recolheu-se aoParto: era natural de Nossa Senhora da Conceição quanto esta última, confirmam a forte influência do francisca-
do arrraial do PadreFaria, na saída da Vila Rica quando se desce nismo na representação mística e espiritualidade das recolhidas
para Mariana, e deve ter conhecido Rosa quando ainda viviam do Parto, que, embora não professassem formalmente a regra
nas Minas. Era crioula forra, certamente nascida de mãe liberta, das clarissas, pautavam suas vidas e devoções pelos estatutos
sabia ler e escrever, embora sofrivelmente. Fora ela quem, por da ordem terceira franciscana — aliás, como a maior parte dos
ordem do capelão, assara os biscoitos com a saliva da mestra, recolhimentos de Portugal, e inclusive o deMacaúbas, em Minas
recebendo do mesmo a ordem para que "oferecesse as rezas que Gerais. .
Aligação deAnado Coração de Jesus com Rosa tinha raízes
profundas, demonstrando sempre sincera gratidão à "Abelha

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Mestra"por tê-la curado de diversos achaques. Bis como a crioula Sé do Rio de Janeiro, na época, situada no morro do Castelo, na
mineira contou tais fatos: .
Igreja de São Sebastião: recebera como missão desempenhar o
papel do evangelista São João, "o discípulo que Jesus amava".
"Em tuna ocasião, estando eu doente de uma queixa que Também passava dos 30 anos quando recolheu-se ao Parto. Foi
me oprimia há anos e por várias vezes estive muito mal uma das que divulgou a crença de que sua mestra recebera os
das pedras, nesta ocasião, minha Mãe Rosa Maria Egip-
estigmas de Cristo:
cíaca fez um. unguento de azeite da lâmpada de Nossa
Senhora do Carmo, cera" do forno e sumo de poejo, e m'o "como as mais recolhidas, via no corpo, nos pés .e nas mãos
deu no caldo de galinha, Logo fiquei boa, e não me tornou de Rosa as chagas, ou se lhes representavam no interior
mais a dor até o dia presente! Seja Deus louvado para de cada uma, como a ela, testemunha, se lhe fizeram
sempre!"
representar as chagas, mas não que as visse com os olhos
corporais, e por este princípio ia ela e.as mais recolhidas
Conta mais a enferma que este mesmo unguento era limpar-lhe os pés, e outras as mãos, dizendo que se ganha-
fornecido avarias pessoas que iam buscar no recolhimento esse vam indulgências plenárias".
santo remédio e, quando acabava, ela própria o fazia, seguindo
a fórmula inventada pela fundadora, "rezando-se uma Salve- Tão influenciada ficou Irmã Francisca Xavier pela santi-
Rainha a Nossa Senhora quando se tomava o dito unguento". dade de Mãe Egipcíaca, que "não conseguia afastar estas repre-
Outra vez, continua a crédula evangelista, estando oprimida de sentações de seu pensamento", repetindo o mesmo depoimento
uma dor que lhe dava todos os meses, tomou vários remédios de da j á citada irmã cozinheira que, na oração mental, apenas Rosa
botica, sem resultado, até que Rosa, voltando certo dia da Missa, povoava-lhe o intelecto, sem poder meditar na paixão de Cristo
"pediu a Nosso Senhor, pela sua imensa bondade, tirasse a dor e noutros mistérios sacros.
ou a tornasse mais branda, e há quatro anos desapareceu. Deus Rosa dissera-lhe que "havia de substituir o lugar de São
seja por todo sempre louvado!". João para escrever o que sentisse a respeito dela". Era, contudo,
Tanto Irmã do Coração de Maria quanto Ana do Coração de Jacinta Arvelos quem copiava-lhe as revelações, nas quais,
Jesus diziam estar possuídas por um anjo quando faziam suas algumas vezes, sua mestra aparecia falando com Deus ou com
profecias: a primeira, por São Miguel, o príncipe dos anjos do céu, os anjos, noutras, via-a por sobre um altar de igreja, com toda
e a última, por São Rafael,: "a força de Deus". A primeira visão da glória dedicada aos santos canonizados. "Certa vez, se ]h.e repre-
• devoção ao "rosário de Santana", uma das inovações litúrgicas sentou interiormente estar Nosso Senhor Sacramentado no peito
t divulgadas por Rosa entre seus devotos, .tema sobre o qual trata-
remos a seu tempo, foi atribuída a Ana do Coração de Jesus.
de Rosa, assistido de muitas luzes: por isto a reverenciava."
Foi esta evangelista uma das primeiras recolhidas a fazer
Sobre as evangelistas São Marcos e São João fornecem os a confissão geral aos pés da fundadora, sendo ela quem relatou
processos poucos detalhes. Mais discretas em seus arroubos o .episódio da autoflagelação sanguinolenta e das relíquias ex
místicos e maluquices demonológicas, deviam, como as prece- sanguinis que as demais recoletas guardaram de sua mãe e
dentes, demonstrar inabalável confiança e fidelidade na "Abelha mestra, tal qual citamos anteriormente. . . ' . , -
Mestra", daí sua eleição para cargo tão importante: serem as Sobre a última evangelista, 'apaniguada por São Marcos,
evangelistas da nova redenção,onuito embora fossem analfabetas. pouco dizem os documentos, inclusive, pairando dúvida quanto
Irmã Francisca Xavier dos Serafins era a única branca à sua cor, pois ora é referida como preta, ora como "parda forra".
deste sodalício. Carioca, nascera e fora criada na freguesia da Ao receber o hábito teve seunome acrescentado paralrmãMaria

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Rosa do Coração de São José. Era" "amiga íntima da beata mais antiga parceira de Rosa, se incorporava extra-oficialmente
courana, sendo citada algumas vezes nas cartas que ela enviava neste pequeno séquito cuja função era dar respaldo tático à
para seus amigos de Minas Gerais, sobretudo por volta de 1760. "Abelha Mestra". Segundo afirmaram diversas recolhidas, as
Também Jacinta, ao escrever a seus pais, às vezes inclui o nome evangelistas eram encarregadas de castigar as incrédulas, pri-
de Irmã Maria Rosa entre as que lhes mandavam lembranças. meiro, profetizando sobre suas confissões incompletas e menti-
De onde era, sua idade e mais particularidades biográficas, rosas, depois, denunciando outras faltas de devoção e tibieza
infelizmente, nada dizem os papéis velhos: tudo faz crer que espiritual e, por fim, punindo-as corporalmente: "quem dava
também fosse oriunda das Minas Gerais. sinal de não crer na santidade de Rosa era castigada", confirmou
Nomeadas solenemente, as quatro evangelistas passaram uma de suas vítimas, Irmã Francisca Tomásia. No dia de São
não apenas a ditar às escribas tudo o que os céus lhes revelavam Miguel, as evangelistas agarraram Irmã Fàustina e bateram
sobre a santidade de Mestra Rosa, mas também a auxiliá-la na tanto com ela no chão que a deixaram quase morta. Outro
árdua tarefa de conduzir seu pequeno rebanho pelos caminhos corretivo, mais sutil e nem por isto menos violento, foi aplicado
pedregosos da perfeição cristã. No mais das vezes, parece que à Irmã Teres a de Jesus, a cozinheira, A "evangelista" São Lucas
em. vez de comportarem-se com a candura dos quatro evangelis- agarrou-apelo braço e, às dentadas, obrigou-a a confessar-se aos
tas, as eleitas agiam como se fossem os "quatro cavaleiros do pés de Madre Rosa. Todas juntas, foram as evangelistas que
Apocalipse", incluindo, na sua didática catequética, intimida- realizaram aquele asqueroso cerimonial, usando o escarro de
ções, anátemas e até violência física. Oexemplopartiadaprópria todas as recolhidas para lavar a cabeça da freirinha incrédula.
mestra deste beatério. Conta JacintaArvelos que, certamanhã, Inventivas, além destes refinados castigos, da confecção de
"entrou Rosa no coro com uma vara de marmelo dando na cabeça relíquias e poções milagrosas, e da divulgação de barrocas
das recolhidas, dizendo:
revelações celestiais, ou infernais, as evangelistas dedicaram-se
"A B C com o que ; também a encenações místicas nem sempre integralmente de
mataste o meu lapê • acordo com a ortodoxia litúrgica. Certa vez, conta Fàustina,
sempre no coro, quando a Regente Maria Teresa lia uma visão
com uma vara da dimpê... '
que a madre fundadora tivera dias antes,
explicando que lapê era Nosso Senhor e a vara de dimpê
era a contradição que as recolhidas tinham." "onde o Senhor aparecia num trono muito desonesto, di-
zendo também palavras que ela, testemunha, não pode
Infelizmente, malgrado as explicações dadas pela protago- proferir por serem torpes, começou a dançar Francisca
nista deste ritual flagelatório, estas são insuficientes para sua Xavier [São João] e com violência se despia, ficando des-
perfeita compreensão, lapê e dimpê seriam palavras da língua composta, dizendo ao mesmo tempo: 'Viva o amor de Jesus
courana? Salvo erro," só se tem notícia, na diáspora africana, de Cristo!' -— e a estas palavras, mandou Rosa a comunidade
um ritual da Costa da Mina onde se utilizam varas e bordões repetir: 'Viva o amor de Jesus Cristo!"'
como parte da liturgia: trata-se do culto aos Egun-gun da ilha
deltaparica, tal qual tivemos oportunidade de constatar através Novamente aqui, vemos outra influência do imaginário
do belo filme assinado por Juanita Helbein. Também aqui franciscano influenciando os arroubos místicos destas recolhi-
transfiro aos africanistas a interpretação de mais este ritual das, fundadas e assistidas, pelos frades menores: também o
flagelatório praticado por Rosa Egipcíaca. pobrezinho de Assis, logo no início de sua conversão, se despira
Além- das quatro evangelistas, também Leandra, a fiel e de suas vestes burguesas, em praça pública, marcando com a

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ri
nudez seu desligamento do mundo e das vaidades. Certamente colóquios espirituais. Era também para sua cela que, às vezes,
Irmã Francisca, ao ficar descomposta perante a comunidade, as evangelistas se dirigiam, comunicando-lhe as últimas visões,
arremedava o gesto simbólico do principal patrono de seu nome, ou buscando aprovação para alguma revelação ou profecia mais
conduta perdoável numaZ/o<íy Godiva, mas francamente inade- fantástica. Certa feita, ao levarem à cela de Rosa uma imagem
quada numa esposa de Cristo! Contudo, como até o Santo Eei do Menino Jesus, Mestra Egipcíaca colocou-a no chão, como se
Davi, ao conduzir a Arca da Aliança para Jerusalém, também fosse o presépio, dizendo que assim, maltratavam os pecadores
se despira para, com maior liberdade de movimentos, louvar o ao Deus Menino, em tempo que a Irmã Ana do Coração de Maria
Senhor (II Samuel, 6:20), não se poderia condenar a evangelista proclamava que as evangelistas representavam ali as figuras do
São João por tais liberdades coreográfícas. Viva o amor de Jesus presépio, sendo ela própria a mula, e as duas outras, o boi e o
Cristo! galo. Convenhamos que a irrequieta imaginação da primeira
Outra evangelista, Irmã Maria Rosa, certa noite, no coro, evangelista não tinha limites, ostentando em seu currículo pelo
fazendo-se acompanhar das Irmãs do Coração de Maria e do menos seis diferentes personalidades: primeiro, conhecida como
Coração de Jesus — que, não satisfeitas em serem equiparadas Ana Bela, no meretrício do Rio de Janeiro; depois, se traveste
a São Lucas e São Mateus, se autoproclamavam, respectivamen- em Irmã Ana do Coração de Maria; no recolhimento, se autopro-
te, São Miguel e São Rafael—, nesta ocasião, houveram por bem clama São Miguel, agindo como se fosse o "cavalo" deste arcanjo;
incorporar dois dos principais patriarcas da Ordem Carmelitana posteriormente, Rosalhe atribui o nome e função de São Mateus;
— Santo Elias e Santo Ivo —, cujas imagens existiam na Igreja às vezes, dizia-se a encarnação de Santo Elias e, agora, pretende
do Parto, segundo registram os documentos. As três evangelistas ser a mula do presépio. Nem Dorian Gray ousou tanto!
juntas, reunidas no coro, fizeram uma pequena procissão, car- A ligação entre Mãe Rosa e suas evangelistas era de franca
regando uma grande cruz às costas e bateram com um martelo camaradagem: transferindo-lhes parte de seu poder, a fundado-
no lugar dos cravos, com tanta força, que a cruz se desfez. ra recebia em troca culto, vassalagem e ajuda para quebrar a
Descravaram então a imagem de Cristo morto, levando-a para resistência das incrédulas, através de mitos, rituais e intimida-
a cela de Rosa, dizendo que seu gesto equiparava-se à conduta ção. Entre os mitos inventados pela beata e divulgados por suas
das recolhidas ímpias, "que todos os dias assim pregavam na vassalas, um dos mais curiosos foi relatado por Faustina: "di-
cruzNosso Senhor, porque não criamnelaepelosmuitospecados ziam as evangelistas que o Menino Jesus vinha pentear o cabelo
das incrédulas". • de Rosa e ela lhe dava de mamar, mas depois ela deixou crescer
Era em seu cubículo que Madre Rosa muitas vezes dava o cabelo e o amarrava, e as evangelistas o penteavam, lavavam
audiências, absolvendo suas filhas quando faziam-lhe confissão e o apolvilhavam".
geral, aconselhando ou acolhendo as mais carentes de sua No século XVIII, várias foram as servas de Deus que
orientação e proteção espiritual. Era aí também que muitas & juraram ter dado de mamar em suas tetas ao Deus Infante.
muitas vezes recebia o seu querido exorcista e capelão do reco- Dentre elas, a mais f arnosa foi Santa Verónica Giuliani, falecida
lhimento: deporta aberta, quando comiam; fechando-a, "quando em 1727, na mesma década em que a escravinha Rosa aportava
ia tratar de seu 'Afecto"'. Além da cama, mesa e algumas no Brasil. Verónica pertencia à Ordem Capuchinha e foi das
cadeiras, existia ainda na cela da fundadora um oratório com o santas mais barrocas quê a Igreja canonizou: escreveu nada
Menino Jesus e uma lâmina de Santo António na parede. Papel, menos que cinco versões de sua autobiografia — 22 mil páginas!
penas de escrever e tinta não deviam faltar na sua mesa, na —, sendo frequentemente visitada e atormentada pelo diabo,
qual, quase diariamente, escrevia ou ditava às escribas seus que deixava sempre, em sua cela, antes de voltar para o inferno,

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insuportável odor de gases intestinais. 8 Como boa franciscana, evidrilhos.10 O certo é queMãe Rosa tinha sua carapinha lavada
Santa Verónica foi muito devota ãoBambino Gesú, e ela própria e"apolvilhada"por suas evangelistas. Difícil seria besuntar com
nos conta como se tornou, numa visão, ama-de-leite do Deus polvilho (de trigo ou de amido .de mandioca) uma cabeleira
feito homem:
negróide simplesmente lavada e penteada: só cabelo alisado se
prestaria a tal cuidado, o que nos leva a suspeitar que talvez
'Vi, certa manhã, Nossa Senhora dando de mamar ao Rosa alisasse suas melenas, senão com ferro quente, ao menos
menino Jesus. Então eu disse: Meu Jesus, vinde a mim comjpente de osso ou de chifre untado em azeite de coco ou de
que também eu quero vos dar meu leite!' Aí o Menino mamona, técnica ainda utilizada nas zonas rurais mais afasta-
começou a sorrir, primeiro olhando-para mim, depois de das ^(Novamente devo à minha fiel Carlita Chaves a informação
novo se atacava na maminha de sua Mãe. Ó meu Deus! Eu
destes detalhes sobre o toucado afro-brasileiro.)
não aguentava mais! Encostei-me então na Beata Virgem A relação de Rosa com suas evangelistas incluía fortes
e lhe disse: 'Eu quero aleitar este Menino! Dê-me-o!' Aí eu
doses de diabolismo, pois várias foram as recolhidas do Parto
vi que Jesus me olhava e se movia. Eu não sabia o que fazer
que, à imitação da fundadora, também foram possuídas por
para dar Jhe de mamar. Então o Menino Jesus abaixou o Belzebu. Aliás, o número de energúmenos de ambos os sexos era
meu "bustino" e começou a mamar em meu peito. OhDeus! altíssimo no Brasil do século XVIII, posto que diversos estados
Não consigo revelar o que tal ato ocasionou em mim!
mórbidos e a quase-totalidade das doenças nervosas eram diag-
*
nosticados como causados pelo Espírito do Mal. Ainda nos finais
A imagem de Mãe Rosa, divulgada pelas evangelistas — do século passado, segundo depoimento do escritor carioca João *
dando de mamar ao Menino Jesus —, era corriqueira no Brasil
do Rio,
Antigo: uma ama-de-leite negra tendo, atracado no seu peito,
um nezinho branco. O insólito era aidentidade do bebé; o próprio "nesta cidade, mais do que qualquer outra terra, pela classe
Deus Menino escolhera, dentre todas as mulheres da América baixa, nas ruas escusas, as possessas abundam. De repente
Portuguesa, nada menos que uma ex-prostituta, a preta Rosa,
•fi
• fí para ser sua ama-de-leite. Porém, deixando a fundadora do
criaturas perfeitamente boas caem com ataques, escabu-
jam, arquejam, cusparam [sic] uma baba espessa, com os
recolhimento crescer a cabeleira, certamente os tenros braci- cabelos tesos e os olhos ardentes... Tais criaturas só tornam
nhos do Divino Infante não tinham força suficiente para desem- ávida natural quando um sacerdote as exorcisma. São sem
baraçar a maçaroca da africana, daí assumirem suas evangelis- 11
conta os casos de possessas".
tas tal função. Talvez a visionária tenha optado pela cabeleira
longa para acumular matéria-prima para a confecção das cita- Nos processos inquisitoriais abundam os casos de beatas e
das relíquias e poções curativas. Não deixa, contudo, de ser visionárias que disseram ser possuídas pelo Rabudo. Joana
curioso que uma recolhida que se vestia de burel franciscano, Maria de Jesus, terceira franciscana como Rosa, presa em 1719,
em vez de grosso véu cobrindo-lhe a cabeça, cultivasse cabelo declarou "que era perseguida constantemente por um Demónio
longo e amarrado. Se o apertava como ura rabo-de-cavalo, em arrimadisso [parasita], que a provocava para atos de polução
trancinhas à moda riagô, ou como as negras minas e congas que [masturbação], inchando-lhe os olhos e experimentando dores
Debret, numerosas, retratou pelas ruas do Rio de Janeiro, não no pescoço e braços, e, quando terminava a polução, mesmo à
informam os documentos. Segundo este artista, havia negras frente de outras pessoas, louvava a Deus".
que cobriam a cabeça com turbante de baeta,;outras armavam O diabolismo entrou no recolhimento desde sua fundação,
penteados com tiras de crina bordada, além de contas, pingentes e se generalizou sobretudo devido à influência do Padre Fran-

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cisco Gonçalves Lopes. Desde quando "nas Minas era chamado --•. -sequazes. Nosso capitão general é Jesus, e o capitão comandante,
de Xota-Diabos, e tanto além quanto aquém da Mantiqueira, São'Miguel, e os soldados, seus nove coros de anjos. Assim, quem
fazia dos exorcismes a principal arma de seu ministério sacer- poderá nos vencer, se o mesmo Senhor está desafiando todo o
dotal. Em tudo o capelão via a presença de Satanás, sendo um ": inferno e [deu] licença a todos os demónios a que nos dêem
típico paciente do que os estudiosos chamam de "demonoma- l^áialha?!"
m* a>í. 13 -;•- - £_ .«.•..>: Discípula obediente e aplicada, Madre Egipcíacaigualmen-
Foi o Xota-Diabos que-fez se manifestarem os sete demó- --ife interpretará todos os infortúnios de sua vida e fundação como
nios que tomavam, conta do corpo da escrava de Dona Ana t$'' -interferência direta do Rabudo, revoltado com a fundação do
Garcês, diagnosticando seus inchaços e dores como ação do g•Ã^èfcÓlbimento e a retirada de circulação, dos cantos das ruas,
Maligno. Foi ele quem viciou a energúmena nos exorcismos, K ''dSíJúela dezena de madalenas que, como a própria Maria Ma-
continuando por anos seguidos a "botar preceitos" para acalmar P^dSlehá dos Evangelhos, também eram cativas de sete sedutores
o espírito que infernizava a vida de sua dirigida, ritual que se IlISdemônios (Marcos, 16-9). Com o lançamento da primeira pedra
repetia quase todos os dias, "algumas ocasiões, várias vezes no fc^desta^easa pia, diz Rosa em carta de 1755: "Na porta do inferno
mesmo dia". . . fpv?sltà'~posta a. pedra na cabeça de todos os demónios, impedindo
O Demónio era uma verdadeira obsessão na vida desse •|i;- ;rãs;"õvelhas perdidas cair na rede do Diabo." Para ela eram os
velho sacerdote minhoto nascido nos últimos anos do século i;-.-;^d!èin'ônios os autores das calúnias que levantavam contra si e
XVTI: em diversas cartas enviadas aos Arvelos, refere-se à ação ;:"- :sua"pia fundação: "A casa dos sagrados corações está sempre

maléfica do Pai das Trevas, seja contra algum membro desta : :sendó atacada pelo Demónio, que tem nos homens seus alcovi-
família mineira, seja contra a obra de sua dirigida Mestra Rosa. ;£-:.-:-tèiróã e mensageiros". Como, porém, os embustes e ciladas
Eis o que ele escrevia em carta de 26 de setembro de 1758: diabólicas eram permitidos por Deus, no combate final, como
"O sentido que Genoveva [a filha mais velha] tem no corpo --- -sucedera com Jó, as forças do bem haveriam de sair vitoriosas:
não é seu, é o Demónio que tem no corpo, assim como tinha "Se Jesus é por mim — escrevia Rosa em setembro de 1758 —
§2_~ninguém é contra mim... Apesar de Lúcifer e de todos seus
ffi Faustina." Certamente repetindo o que ouvira da boca do cape-
~1~ sequazes, eu hei de lhes quebrar a castanha na boca, e hão de
í lão7Uãcihtá Arvelos, ao escrever a seus pais sobre a conversão
de sua irmã, dizia: "Faustina era rainha e esposa de Lúcifer, a :; confessar o poder de meus Santíssimos Corações, não só os
-• demónios do inferno, mas [também] os mortos."
quem ele tanto amava..." \a o Xota-Diabos, era Deus quem autorizava as investi-
S-7 Desde que o Xota-Diabos fez manifestar seus sete demó-
das dos Anjos do Mal contra a cristandade, interpretação, diga-se nios, nunca mais o Maligno deixou de vexar nossa visionária.
enposscLnt, concorde com o ensinamento oficial da Igreja Cató- l" As dores e inchaços que sentia no ventre e cabeça, além da
lica ainda em nossos dias. 'A própria demonopatia que tanto - 'sonolência que a impedia, no início de sua conversão, de assistir,
atormentava Rosa, segundo'ele, estava nos planos do Onipoten- até o fim, o santo sacrifício damissa, foramosprimeiros sintomas
te: "Lúcifer, o espírito diabólico que Rosa tinha, fora permitido da presença do Cão em sua vida. Diz o padre numa de suas
por Deus para mais a purificar." Aliás, como acontecera com o __. cartas: "Rosa padecia de muitos vexames do Demónio, que lhe
justo Jó e muitos outros servos de Deus do Antigo Testamento causavam dores e aflições." Santa Teresa d'Avila, também, em
e dos tempos depois de Cristo"; seus "Escritos Espirituais", conta que, desde sua conversão até
Numa carta deste mesmo ano, assim dizia o exorcista: "Que o fim da vida, nunca passou um único dia sem sofrer algum tipo
.Deus nos dê força para darmos batalha a todo inferno e seus de dor física ou doença corporal. Pobres santas barrocas!

478 479
l . i,. Cora os exorcismas, aquele "encosto" sentido pela escrava
da ex-prostituta. Com o tempo, em vez de Lúcifer e seus sequa-
da família Durão se transforma empossessão, tornando-se Rosa
uma espiritada: quando atacada ou incorporada, fazia visagens, zes Rosa e seu capelão identificam, como autor de seus vexames
ações e gestos diabólicos, tais como caretas, contorções e movi- pretérnaturais apenas um espírito: o "Afecto".
mentos que causavam medo, terror e piedade nos circunstantes. » „ ~i Consultando vários dicionários latinos e poi-tugueses, en-
contramos os seguintes sinónimos para afeto: afeição, fraqueza,
Noutras ocasiões, o Coisa Kuim obrigava-a a fazer estripulias,
doença-, vício, amor, paixão. Quem melhor define este verbete é
como na viagem do Rio das Mortes para o Rio de Janeiro, quando
o dicionarista Morais Silva, também ele vítima do Santo Ofício
a negra realizou malabarismos arriscadíssimos em cima da
"e -coincidentemente, crismado por Dom António do Desterro,
montaria, isto bem à beira de profundos precipícios na Serra da
nosso j á. bastante conhecido bispo do Rio de Janeiro. Segundo
Mantiqueira. Em duas ocasiões, já no recolhimento, o Capeta
Morais, o substantivo "afeto" significava, no século XVIII, "co-
interferiu diretamenté em sua vida espiritual: em seu processo
Tnoçã<£,violenta da vontade, amor, propensão ou aversão em
encontramos um documento de duas folhas, sem data nem
assinatura, no qual estão descritos vários milagres e prodígios
"•razão de sensações fortes, agradáveis ou penosas". O Padre
"Vieira," nos finais do século XVII, contrapõe o afeto ao ódio. t
ocorridos com nossa beata, Entre eles, a revelação de que várias
, o travestismo do Diabo em "Afecto" fazia parte
recolhidas presenciaram a ação dos demónios "segurando a mão
de Rosapara não se dar disciplina [açoites], provocando grandes
da ideologia satânica luso-brasileira de antanho, pois também
ÈO'Biauí,~em 1760, na cidade da Mocha (Oeiras), uma mameluca
*
tormentos". Noutra ocasião, conta o mesmo Padre Francisco, em declarou ao comissário do Santo Ofício "que tinha um 'grão de
seu depoimento perante os inquisidores, que, tendo sua energú- Afecto' no corpo, e o tirara o missionário Frei Manuel da Penha,
mena uma vis ao de Jesus Cristo no altar do Ecce Homo, seguindo
-commuito custo".
a constante orientação de seus diretores espirituais, prostrou-se Segundo depoimento de um contemporâneo de Madre
no chão e começou a rezar o Credo. Antes de terminar esta' Rosa, o Padre Filipe de Sousa, morador próximo a seu recolhi-
poderosa oração, "lhe virou as costas a figura e viu que tinha um
mento, "permitia Deus que se lhe introduzisse (o Afeto) para a
l rabo muito comprido,e logo desapareceu". Que o leitor não se
•"púrificar-com os vexames que sofria". Por sua vez, o já citado
l admire com esta macaquice do Rabudo, pois dentro da ótica
judaico-cristã tal visão era perfeitamente possível, tanto que
^músico José de Souza, residente à rua da Cadeia, completava
informando que
ensina São Paulo: "o pr.óprio Santanás pode se transfigurar em
anjo de luz!" (II Cor. 11:14). .
Espírito nunca a movia ou incitava a coisas más e
Não é por menos que um dos apelidos tradicionais de •". pecaminosas, só a inclinava a zelar e defender a honra de
Santanás é "Rabudo", embora Santo Agostinho gostasse de 'iiDjeus e veneração de seus templos, porque tanto que apreta
chamá-lo de 'Macaco de Deus", não só pela cauda simiesca, como "-via-neles algumas pessoas com menos devoção, principal-
pela astúcia de às vezes querer imitar a Deus, "embora sempre . ••-mente estando o Santíssimo Sacramento exposto, se enfu-
faltando-lhe algo.'.."16
rece e entra a repreender publicamente na igreja; também
O Espírito que por mais de quinze anos seguidos vexou -guando há alguém de vida pecaminosa e desonesta: contra
Madre Egipcíaca foi alvo de várias interpretações por parte de

l seus confessores e dos muitos devotos que presenciaram sua


manifestação. Ainda nas Minas, quando têm início os exorcis-
mes, foram sete os diabos que proclamaram possuir o negro corpo
íx estas se altera o mesmo Espírito".

;.' ; Outro documento, constante no processo de Rosa, informa


que, "antes de agredir as pessoas, ela rezava a Deus pedindo por
elas" e, após expulsar do templo os irreverentes, "seu espírito

480
u 481
dizia que tinha limpado a casa de Deus de pessoas sujas". Para Éramos encontrar menção ao "afecto". De acordo com o Vocabu-
alguém, que viveratantos anos na impureza moral dos lupanares lário de Psicanálise^
e na pocilga das senzalas, a ideia de sujar a casa de Deus com o
pecado ou a irreverência possuí a uma conotação simbólica ainda .."afeto é um termo que a psicanálise foi buscar à termino-
mais forte, daí a fúria com que desejava purificar o espaço í--Jogia psicológica alemã e que exprime qualquer estado
sagrado de tais sujidades. afetivo, penoso ou agradável, vago ou qualificado, quer se
Apesar de aparentemente contraditório — um demónio i .-^apresente sob forma de uma descarga maciça, quer como
particular praticar o bem em vez do mal —, nos próprios Evan- ^-tonalidade geral. Segundo Freud, toda apulsão se exprime
gelhos há irm. espisódio semelhante, quando um endemoniado . nos dois registros do afeto e da representação. O afeto é a
de Geraza proclama à turba incrédula que "Jesus era Filho de "expressão qualitativa de energia pulsional e das suas
Deus Altíssimo" (Marcos, 5:7). Aliás, não é apenas naBíblia que variações".
aparece este curioso sincretismo, travestindo-se o espírito do
mal em anjo de luz ou mensageiro do bem: na tradição religiosa Segundo o fundador da psicanálise, "os afetos seriam re-
dos jeje da Nigéria, vizinhos próximos da região natal de Rosa ppr.oduções de acontecimentos antigos de importância vital e
Courana — encontramos um exu cujo nome e poderes muito se |eventualmente pré-individuais, comparáveis a acessos histéri-
assemelham ao "Afecto": Avrektu, um misto de mensageiro e universais, típicos e inatos". Mais ainda: "Conheço três
espírito ;protetor, preconceituosamente equiparado ao Diabo jjxcanismos do afeto: o da conversão dos afetos (histeria de
pelos mais desinformados da teogonia iorubá. Em que medida -conversão), o do deslocamento do afeto (obsessões) e o da trans-
o "Afecto" e Avrektu são um só espírito, é difícil responder, Sformação do afeto (neurose de angústia, melancolia)." Observe-
embora certamente nossa africana tivesse informação e contac- ...toMeitor a grande coincidência de certos quadros psíquicos e
to, sobretudo quando viver a nas Minas, comopanteão dos orixás P^comportamentais de nossa energúmena, quando possuída pelo
da Costa da Mina. Ambos são mensageiros do Além e funcionam seu "Afecto", com o que Freud chama de melancolia, histeria de
como espírito protetor; no caso de Rosa, protegendo o respeito e a.Tc'oíiversâo (somatização de transtornos psíquicos em paralisias,
santidade dos lugáfes:sagrados. Mais ainda, seu demónio fami- tjdores localizadas, etc.), obsessões. Um século antes do nascimen-
liar profetizava em nome do próprio Todo-Poderoso: "Por muitas tto?de Freud, nossa freirinha africana já tinha catalogado com
vezes [no início de sua conversão], quando ela estava vexada, rprecisão uma entidade comportamental que a psicanálise situa-
dizia o Espírito Maligno que o Altíssimo havia de castigar as ->rá como um sintoma histérico, e que ela própria e seus confes-
Minas e que haviam de vir sobre elas rigorosos castigos se se •sores identificaram como um "Espírito que ainçlinava a defender

l
não emendassem os seus moradores das muitas culpas que o ' a honra de Deus".
ofendiam." ' Se o espírito diabólico de Rosa induzia-a para o. bem, o
Não encontramos, contudo, na documentação, nenhum in- mesmo não ocorria com as outras recolhidas quando possuídas
dício de que a espiritada fizesse qualquer tipo de oferenda a seu IJJBt" pelo Dragão Infernal. Várias madalenas arrependidas do Parto
espírito familiar, conduta "religiosamente seguida por quantos Acostumavam igualmente ser atormentadas pelo Coisa Ruim,
• ácreditam.nos poderes de Exu ou de seus congéneres africanos.
Para tornar ainda mais complexa a análise deste espírito
aliás, fenómeno bastante comum em comunidades enclausura-
das, tal qual foi fartamente documentado no Convento das
familiar de Madre Egipcíaca, eis que também-na psicanálise Ursulinas.de Loudun, conforme referimos anteriormente.
•: V Segundo o lúcido depoimento de Irmã Francisca Tomásia,-
a quarta filha do casal Arvelos,
12
482 483
"era muito ordinário, quase todos os dias, algumas vezes, Minas, uma negra e Rosa - - "todas tinham 'Espirito"' [sic], disse
muitas vezes no mesmo dias algumas recolhidas ficarem o assustado informante.
endiabradas ou assombradas, e algumas se intitulavam "E.quando o Espírito as perseguia, ficavam sem sentido, .
Justiça comandada por Deus para castigar as incrédulas, "-e as mais [pessoas presentes] se punham de joelhos, pedin-
nas quais pegavam e apertavam a garganta para sufocar do misericórdia a Deus, dizendo o Credo e o Ato de Contri-
e lhes davam muitas pancadas, só se acalmando quando — cão e, depois que ficavam livres do Espírito, punham-se de
lhe punham uma saia velha de Rosa sobre suas cabeças,
pondo preceitos".
-, joelhos diante de algumas imagens que estavam em um O
"oratório, dando graças a Deus e fazendo novenas. Aí então
Rosa vinha tocar as cabeças de todos os que ali estavam e
Outro detalhe interessante, anotado no processo inquisi- ;~jpegaya também a bandeira de São João e mandava que
tória!: quando oEspíritobaixavana comunidade, "semprefícava todos a pegassem com as mãos. Uma noite o espírito deu
ao menos uma das espiritadas sem estar atacada", o que inibia T "pá dita mulata [Leandra?] e ela andava pela casa fazendo
-minimamente que este exército diabólico cometesse maiores ~" a mesma menção de Nosso Senhor com a cruz às costas
desatinos, como ocorrera diversas vezes, sobretudo com as evan- ~- pelas ruas da amargura"...
gelistas, que por pouco não sufocaram Irmã Faustina e a incré-
dula freirinha natural das ilhas portuguesas. Embora o recolhimento de Nossa Senhora do Parto tivesse
Também nas casas de culto afro-brasileiros institucionali- como protetores, desde o lançamento de sua pedra fundamental,
zou-se tal costume através da figura da ekédi, "mulher auxiliar
das filhas de santo em transe, amparando-as para que não
os Santíssimos Corações da Sagrada Família, uma verdadeira
legião de demónios rondava a comunidade, causando aflições,
m
caiam, enxugando-lhes o suor, &ic.A,ekédi não entra em transe,
e nos xangôs do Nordeste é chamada de iabá ou ilais.19
_ataques, doenças e discórdias entre as convertidas — todos m
..sintomas do que Freud chamou "histeria de conversão", conse-
Diz a mesma informante que o Diabo costumava ser mais -.quência, na maioria dos casos, de frustrações sensuais reprimi-
ousado em seus ataques, sobretudo quando Mestra Rosa estava •das, seja de prostitutas arrependidas, seja de donzelas tranca-
ausente, pois, sepresente, afundadorapunha-lhe logo o seguinte fiadas contra suas livres vontades.
preceito: "Por Deus, mando que cesses! e assim sucedia sem Como era do conhecimento de toda a comunidade, a porta-
falência. Quando está presente o Padre Francisco, punha pre- ria do recolhimento —- a única entrada e saída deste edifício —r-
ceitos assim: "Em nome de Rosa Maria da Vera Cruz, mando ;er a guardada oraporummedonho dragão, pronto paraperseguir
que acomodes!", e assim sucedia." . , .as que ousassem abandonar este pio colégio, ora pela alma
.if!l
Tais manifestações diabólicas ocorriam também extramu- penada de Frei Agostinho, o réprobo, certamente causando
'it ros. Um devoto de nossa santinha, Domingos Francisco Carnei- grande pavor nas freirinhas, temerosas de atravessar tão lúgu-
ro, descreve uma curiosa cerimónia, muito semelhante às ma- bre espaço que as separava do mundo imundo. Apropria funda-
nifestações mediúnicas observadas hodiernamente nos terreiros dora, além de seu inseparável demónio, o "Afecto", era frequen-
de Umbanda, onde o sincretismo se manifesta com todo vigor. temente atacada pelo Coisa Ruim, ora caindo no chão como •
Tal espisódio passou-se em casas de ManoelBarbosa, compadre
de Rosa, que morava atrás do Convento do Carmo. Lá estavam
morta, ora f alando e blasfemando como uma verdadeira posses- •
cinco mulheres — duas cunhadas do dito, uma mulata filha das
sa: "fazia gestos e movimentos queparecia o Demónio", declarou
o negociante lisboeta João Fernandes da Costa, morador na
•>
travessa da Alfândega, nas imediações do recolhimento, e co-

485
. nhecido de Rosa desde o tempo em que residiu em São João dei Maria de Jesus, porque às 9 horas da mesma noite havia
Rei. • • • -••i de estar condenada nos infernos. E acometeram logo a ela
Madre Egipcíaca da Vera Cruz tinha um curioso costume, as demais recolhidas, porém pegou Rosa em uma cruz de
verdade seja dita, pouco piedoso parauma comunidade recoleta: pau e se pôs ao pé dela como defendendo-a e ficaram então
apelidou suas mais diletas discípulas com nomes infernais: assaz sossegadas."
"chamava as recolhidas não pelos seus nomes próprios, mas por
demónios, chamando auma Satanás, a outra Casa Forte, e assim Noutra ocasião, as mesmas endiabradas — geralmente
com diferentes nomes às demais". (Acaho de perguntar à minha tendo Ana Bela e Leandra como líderes — "queriam, arrombar
velha doméstica Carlita Chaves, várias vezes citada, o que a"porta.da cela da dita irmã, dizendo que vinham fazer justiça,
significa "casa forte": me ensinou que é aquela pessoa que tem que-o. seu capitão [Lúcifer ou São Miguel?] lhes mandava".
muito poder com os "encãnEãdõs", a quemosJõrSás obedecem Tantas-ameaças e perseguições tinham um único fim: castigar
énT"íu^5~qtre^exieT)~CBTt-ãinente, aprovéitando-se deste signifi- a incrédula incapaz de fingir-se de energúmena.
cado antigo, uma:fifma de caderneta de poupança de Salvador . -Mais espertas foram as irmãs Árvelos: numa carta de
adotou exatamente este poderoso cognome: "Casa Forte", sita "autodelação logo após a prisão de Rosa, Maria Jacinta contou
não muito distante do Orixá's Center... ,que ela e Francisca tinham o costume de imitar "por zombaria"
Desde sua fundação e durante todo o tempo que nossa uma, cerimónia que era muito cara à mestra fundadora:
energúmena liderou esta irmandade, a presença perturbadora
do Malvado foi uma constante obsessão de todas que entravam "nos vestimos de defunto, uma de branco e outra de preto,
nestebuliçosobeatério. Ser molestadapeloDiabopassou mesmo e entramos a andar pelo meio do coro e o depois fomos pelo
a ser condição e sintoma de que a noviça avançava no caminho meio do refeitório, fazendo tudo como Rosa fazia, e o depois
da perfeição, tal qual sucedia entre as ursulinas de Loudun. A fomo-nos embora. E ao perguntarem as outras recolhidas
portuguesinha Irmã Ana Maria de Jesus tinha vinte e poucos por que haviam feito aquilo,.respondemos que estava no
anos quando retirou-se do mundo. Declarou perante o comissário -.nosso corpo o espírito maligno e que Deus lhes tinha
do Santo Ofício do Rio de Janeiro que, "ao entrar no recolhimen- mandado fazer aquilo para conversão delas — e eu dizia
to, a Regente Maria Teresa lhe disse que, se quisesse perseverar isto era para fazer zombaria de Rosa"...
no Parto, havia de dizer que tinha o demónio e fingir-se vexada
dele, o que ela, testemunha, nunca quis fazer, pelo que a des- Apresença, no recolhimento, de Irmã AnaMaria de Jesus,
donzela cética e resistente à possessão demoníaca, causou gran-
prezavam e maltratavam, até que foi expulsa". Por pouco não
de celeuma na comunidade, pois a regra geral implicava acredi-
foi linchada pelas mais fanáticas, devido à sua incapacidade ou
" tár-se nas manifestações do Coisa Ruim e deixar-se possuir por
resistência de, como as demais, exteriorizar conduta diabólica:
suas manhas e artimanhas. Em longa carta escrita na antevés-
"Nb dia da Exaltação da Santa Cruz, as recolhidas se pera de São Miguel —, o valoroso arcanjo que com sua espada

l

ajuntaram às 7 para 8 horas e fizeram um círculo, estando
no meio Francisca, e principiou a blasfemar dizendo: 'Mal-
dito fosse o pai que a gerou, a mãe que a pariu, e a hora
em que nasceu.' Aí o padre capelão e a regente disseram
de luz projetou Lúcifer nas profundezas infernais —, Rosa conta
para sua comadre Árvelos este diabólico episódio:

"Deus me disse: 'eu sou o capitão general de teu exército.


que aquelas palavras havia de dizer a alma dela, Irmã Ana * ~ Anda! Vamos! Eu quero ir tirar a lista daqueles que andam
a habitar debaixo da bandeira de minha cruz, combater

486 487
contra Lúcifer, porque quero corações contristados/ Suce- .
3. Sor Myriam. Op. cit., 1936, pp. 102-106.
deu, porém, que veio recolher-se no Parto uma moça ilhoa, 4. Libânio Cristo. Op. cit., 1977, p.68.
indócil ao confessor e à irmã regente e à irmã mestra, aí 5. Conceição, Frei Apolinário. Primazia Seráfica na Região da Améri-
eu ouvi uma voz que dizia: 'Não quero neste rebanho amor ca. Lisboa: Oficina António Sousa Silva, 1733, p. 344.
fidalgo, senão amor maquaniquero [sic]. Fiquei toda con- 6. Pio X, Fernando. Santa Verónica Giuliani; Implacata Insequitrice
fusa e não sabia por que se me dizia isto. Aí à noite fomos diamore e di dolore. Padova: Edizioni Messaggero, 1986.
para nossa reza e nos vimos no inferno. Era tanto o susto 7. Gobry, Ivan. Op. cit., 1959; Genelli, Frei Agostinho. O Franciscanis-
e o temor entre nós! Todos procuravam a delinquente. As mo. Petrópolis: Vozes, 1944.
pequeninas gritavam: 'Senhor Deus de Misericórdia'. Os 8. Bell, Rudòlph. Holy Anorexia, Chicago: The University of Chicago
corpos das criaturas voavam e todas se vinham ter com. o - Press, 1985, p. 73.
9. Pio X, Fernando. Op. cit., 1986, p. 62.
meu padre, porque nós é que as estávamos amparando. 10. Debret, J. B. Op. cit., 1972, p, 187.
Minha senhora, foi tal a confusão que tivemos, que por 11. Rio, João. As Religiões no Rio. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1976,
espaço de cinco dias já tínhamos medo de rezar! As criatu-
ras já não dormiam nem sossegavam, estavam sempre de _ .P-126'
12! ANTT, Inquisição de Lisboa, Processo n2 8.290 (1719).
pé, e algum bocadinho que se acostavam, estava-lhes o 13. Quevedo, Padre Oscar G. Antes que os Demónios Voltem. São Paulo:
corpo tremendo e combatendo com fúria os Demónios! Se Edições Loyola, 1982; Oliveira, Xavier, Espiritismo e Loucura. Rio
o Juízo no corpo das criaturas é tão horrendo, que fará a de Janeiro: Edições A. Coelho Branco, 1931; César, Osório. Misti- O
*
senhora no dia do Juízo Final? Aí a recolhida se retirou e cismo e Loucura. São Paulo: Oficina Gráfica Juqueri, 1939.
os demónios começaram a trabalhar fora do recolhimento 14. Dattler, Frederico. O Mistério de Satanás. São Paulo: Edições
contra mim e o capelão." Paulinas, 1977.
15. Seligman, K. História da Magia. Lisboa: Edições 70, 1976, p. 211.
Mãe Rosa tinha razão: seus inimigos mobilizavam-se para 16.ANTT, Inquisição de Lisboa, Caderno do Promotor ri,2 128. Apud
Mott, Luiz. A Inquisição no Piauí. Diário do Povo, Teresina,
conseguir sua derrota. Deixemos, porém,, que as más-línguas
-LL_29~10-1987, pp, 12-13.
trabalhem contra nossa santinha; é chegado o momento de 17,Agradeço àProf9 Yeda Castro e gentil indicação destas informações
deixarmos o Príncipe das Trevas e adentrarmo-nos em seu sobre "Avrektu".
mundo interior. A partir de agora vamos analisar as diferentes 18. Laplanche, J, & Pontalis, J. B. Vocabulário de Psicanálise, Santos:
maneiras como "a maior santa dos céus" entrava em contacto Martins Fontes, 1977, pp. 34 e ss.; Guardo, R. M. Historia General
com seu Esposo, Nosso Senhor Jesus Cristo. delPsicoanalisis. Buenos Aires: Editorial Ciordia, 1969, pp. 27 e ss.
Devo ao Prof, Welber da Silva Braga a indicação destas pistas.
19._Cacciatore, Olga G. Op. cit., 1977, p. 109.
Notas

1. Castro, D. Francisco. Regimento do Santo Ofício da Inquisição dos


Reinos de Portugal. LisTboa: Estaus do Santo Ofício, 1640. Título
XVIII "Dos Confessores Solicitantes no Sacramento da Confissão".
2. Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Lata 769, Doe. 5 (29-7-
1752).

488 489
rt>

20

Rosa Mística

s^ "Meu Menino Jesus da Porciúncula:


•5» .Amo Jesus, adoro Jesus, bendigo Jesus, reverencio Je-
-s sus, agradeço a Jesus, exalto Jesus, santifico o nome San-
j^tíssimo de Jesus por agora e sempre e no último suspiro

í
-.ilái-

i''"
^•"glorifico a Jesus no Santíssimo Sacramento da Eucaristia.
' "' ^ Peço ao céu e à terra, peço às flores do campo, e peço às
"-westrelas do céu, peço ao sol nos seus raios, peço à lua na
____sua luz, peço às aves do céu: cantai! Peço aos peixes nas.
tf „ suas conchas, peço aos rios no seu curso e belo correr, peço
ti aos anjos, peço aos santos, peço aos homens e peço às
mulheres, peço a todas as línguas e nações remotas me
*••- ajudem a daxgracas a meu Jesus Crucificado porque nos
~- criou e nos remiu com o seu p_j^J35s~õ~s~àrigue!
Peço à S~ágradlTFamí]ia, a São João Batista, a São João
_,_ Evangelista, ao meu Anjo Custódio, à Santa de meu nome,
ÉÈ ——- que louvem por mi m ao Senhor por tantos benefícios e tão
i — grandes misericórdias que de suas liberantíssimas mãos
- • tenho recebido e que me faça uma criatura tal qual ele quer
. - - que eu seja. Amém! Jesus, Maria, José, eu vos dou o meu
---- coração e minha alma. ..
Rosa."

No meio de duas dezenas de cartas que Rosa enviou do Rio


de Janeiro para as Minas, cartas reverentemente conservadas
por seus devotos e incorporadas depois ao seu processo, quando
-foi presa pela Inquisição, encontramos esta bela oração, que traz
a data de 24 de novembro de 1760, dia do místico São João da
.Cruz. Outras preces e colóquios espirituais da africana acompa-
nham esta oração, um desabafo apaixonado, muito semelhante

é 491

é
rap5?sp! ÍÍP

: "
ao último salmo da Bíblia, todo ele composto para louvar a " - - f.eo Rosário, havendo referência, na documentação, à realização
grandeza e bondade do Criador. frequente de novenas, oitavários e tríduos preparatórios das
Já se iam 12 anos desde que a meretriz do Inficcionado principais festas litúrgicas ou das de maior devoção desta comu-
trocara a vida devassa de mulher do fandango pelo caminho nidade recoleta: novenas de Santana, de São Miguel, dos Sagra-
estreito da perfeição cristã. Sendo a oração o alimento da alma, dos" Corações, do Menino Jesus, de Santa Isabel, de São Domin-
desde que se converteu, rezar passou a ser seu prato diário, gos, de São Francisco, de Santo António, do Natal, de Nossa
consagrando cada vez mais horas e horas do dia e da noite ao - - Senhora do Parto e de várias outras festas da Virgem Maria,
diálogo piedoso com o Divino Esposo. Com o correr dos anos, ãlémrdo Oitavário dos Defuntos. Para estimular a prática destas
Rosa conheceu e praticou três modalidades distintas de oração: devoções, sobretudo das novenas, conferia a Igreja cinco anos de
a oração vocal, repetitiva, com fórmulas tradicionais aprovadas *
indulgência para cada dia de oração e, no final dos nove dias,
pela Igreja; a oração vocal, com textos a ela revelados ou por ela indulgência plenária, o que valia dizer que, se o devoto morresse *
inventados e, finalmente, a oração mental,. a mais perfeita imediatamente após o término do novenário, sua alma escaparia
maneira de união da alma com a Divindade.
_1_ ilesa das chamas do purgatório, voando lépida para os braços de
Como todo católico de seu tempo, a escrava de Dona Ana, Deus Pai. Cada novena tinha suas próprias orações, sempre
mesmo antes de sua conversão e abandono do meretrício, com louvando as qualidades do santo que se venerava, implorando-
certeza devia saber de cor algumas orações elementares: o
Padre-nosso, a Ave-maria, a Salve-Rainha, o Credo, o Gloria
lhe noTfinal a proteção, seguida geralmente de ladainha e outras
orações propiciatórias. Por exemplo: &Novena da Gloriosa San- m
Patri, algumas jaculatórias, salmos e hinos. Logo que abandona
o meretrício, numa de suas primeiras visões, é-lhe inspirado que
tana, Mãe de Deus, Avó de Cristo, de autoria do Padre António
"Joséda Silva (Lisboa, 1770), devia ser iniciada no dia 17 de julho,
*
aprendesse a rezar os Ofícios de Nossa Senhora e de São José, para terminar exatamente na véspera da festa da santa, dia 25.
já sabendo por esta época cantar o hino Ave Maria Stella e Glória Todos os dias, o devoto começava a novena com um Ato de
das Virgens, entre outras canções sacras. Ainda nas Minas, _ -__Contrição, fazendo as saudações próprias à Santa Matrona:
noutra visão, são-lhe reveladas novas orações, algumas para """"Tronco Soberano, Terra Santa, Remate Eterno das Saudades
serem cantadas, como o hino j á reproduzido, "Vitória, vitória". - de Todos os Fiéis, Felicíssima Consorte, Estéril mas Fecunda,
Foi sobretudo seu "douto" orientador espiritual, Frei Agos- Casa Santa, etc., etc." Para cada um dos nove dias havia uma
tinho, quem "ensinou-lhe vários exercícios espirituais", cum- _ oração própria em que se enfatizavam as virtudes da avó de
prindo o determinado pelo livro Vida da Insigne Mestra de - Cristo: no primeiro dia, a santidade e pureza dos dois santos
Espírito a Virtuosa Madre. Maria Perpétua da Luz, Religiosa consortes, Ana e Joaquim; no segundo, a paciência de sua
Carmelita Calçada (1742), quando ensinava: "Digo que na ver- .esterilidade durante vinte anos; no terceiro dia, o gozo de sua
dade são os homens sem oração como bar cos sem remo, caminhos èscolhapara a avó de Cristo; no quarto, a alegriapelo nascimento
sem saída, corpos sem alma, almas sem vida, vidas sem. respi- de Maria Santíssima, e assim por diante.
ração."1
As novenas constituíam naquela época importante modis-
No recolhimento, Irmã-Rosa aprofunda.e-diversifica sua —mo devocional, sendo impresso então grande quantidade de

!
cultura devocional, já que as madalenas arrependidas e noviças livretes, orientando os fiéis a como oferecê-las aos diferentes
deviam passar várias horas por dia no coro da igreja em exercí- oragos da corte celeste. Citarei, apenas três amostras, para
. cios espirituais. Além de rezarem ou cantarem nos dias festivos familiarizar o leitor com a espiritualidade barroca dominante
• íl!'
o Ofício Parvo de Nossa Senhora, recitavam também diariamen- na época em que Rosa viveu: Novena de Senhora Santana com-

492 493
o seu Ofício, de autoria de Frei Francisco da Natividade, Ordem „ que parecia como quem estava metida em grandes aflições
Carmelitana (1708), Novena de Santana, Avó de Cristo, de Frei í a procurava amparo e não achava. E nisto vejo-a vindo de
António de Santa Engrácia, franciscano (1720), e do nosso já -'"rastros como pôde, para onde eu estava, como quem se
conhecido Frei Jerônimo de Belém, o primeiro autor a escrever "" vinha_amparar em mina. E, procurando meter-se debaixo
sobre o Coração de Jesus em língua portuguesa, que em 1733 "- de minha capa, dizia gritando: 'Santíssimos Corações, me
publica Excelência da Mulher Forte ou Novena de Santana. No - ^valham!' E metendo-se toda comigo, gritando pelos Santís-
livro Biblioteca Lusitana, de Diogo Barbosa Machado (1741- •^-simos- Corações, eu lhe dizia: 'Os Santíssimos Corações
1759), o leitor interessado encontrará grande variedade de - estão-no altar...' E nós todas estávamos atónitas de ver os
novenas-impressas neste período. ,-_gritos."
Numa carta datada de 17 de abril de 1760, Mestra Egip-
cíaca ensina a seus "nauito queridos filhos e comp adr es" a Novena — " j?0i durante várias destas novenas que Rosa teve muitas
de São Francisco de Paula, uma nova devoção incrementada no de suas visões e êxtases beatíficos, retirando às vezes dos
Rio de Janeiro pelos barbadinhos, que conseguiram fazer do exemplos das vidas e virtudes dos santos homenageados inspi-
próprio bispo o vice-comissário desta confraria. Diz Rosa ter r^açãõ para suas mistificações. Outras vezes inventava curiosas
recebido deste santo, quando fazia-lhe a novena, uma "coroa" encenações litúrgicas, como esta presenciada por Irmã Maria
que ensinava agora a seus compadres: "consta de cinco Padre- Jacinta: "numa novena, estando a comunidade em oração, Rosa
nossos e seis mistérios em memória dos seis anos que o santo pegou o Menino Jesus com uma tocha, estando também as
esteve no deserto, encimando a novena com a jaculatória: Bem- evangelistas com tochas acesas, e abaixando-se com a imagem
aventurado São Francisco de Paula, abrasado Serafim, rogai a de bruços, dizia: assim traziam as'recolhidas a obediência ar-
Jesus e Maria por mim, repetindo-se esta jaculatória setenta rastada..." Um lindo show pirotécnico!
vezes". No final da carta completava dizendo: "Afervorem mais A invenção de novas fórmulas devocionais tem marcado
esta devoção, sobretudo às sextas-feiras, sendo muito forte ^muitas vezes não só ávida espiritual dos 'Verdadeiros" como dos
contra o Demónio." L_íífãLs5s!i_santos. Em seu interessante livro Monjas y Beatas
Algumas novenas, contudo, parece que produziam ação ao . l&mbaucadoras, Jesus Imirizaldu (1977) relata que Juana Ia
contrário, atiçando o'furor das possessas. Numa ocasião, conta Embustera, presa pela Inquisição de Toledo em 1632, também
a madre, num manuscrito datado de 28 de junho do mesmo ano: jpjroclarnava ter recebido vários rosários das mãos de São João
Evangelista, comercializando-os acompanhados de uma memó-
"Estando nós fazendo a Novena da Visitação de Nossa ria explicativa de como rezá-lo e se beneficiar de suas excelentes
Senhora, no dia sétimo, à hora da meditação do ponto
[sobre] a rara humildade com que a Santíssima Virgem --?* "'Além das novenas e outras formas de oração vocal —
servia a Santalsabel,>tendo-se acabado anovena, entrou- rosários, estações, coroas, etc. —, geralmente compostas de certo
se a rezar às almas os versos de São Gregório. Acabou-se número variável de Padre-nossos, Ave-marias e Glória Patri,
a rezajB tqdas_e§tandg_pedindo.misericórdia,.lpgQ.rjLO pri- -Madre Rosa, seguindo o exemplo de outros santos, inventará
meiro 'Senhor Deus, 'Misericórdia!', entrou minha mãe novas modalidades de oração, notadamente o "Rosário de San-
Leandra a dar uns gritos muito sentidos, como que estava tana" e a "Devoção aos Santíssimos Corações".
metida debaixo de alguma tormenta grande e pedia mise- -ÍDísse Faustina, em seu depoimento,, que fora Irmã Ana do
ricórdia com clamores~enternecidos e chorosos, de maneira Coração de Jesus quem primeiro recebera, numa revelação, os

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detalhes desta devoção à avó do Cristo, transmitindo-a poste- tamento por verem já na sua companhia aquela que entre
riormente a Rosa. A evangelista Francisca Xavier, de seu lado, todas as mulheres foi escolhida para ser a mãe da mãe de
deu outra versão: disse que o próprio apóstolo São Tiago apare- Deus, e todos alegres por verem já perto e junto consigo a
cera à fundadora confiando-lhe esta jóia da santa matriarca. O que era cofre em que o Altíssimo depositou o tesouro da
Padre Francisco, por sua vez, explicou que o "Rosário de Santa- pureza suma, semmisturanem mácula, aVirgemlntacta."
na" devia ser começado rezando-se o Ato de Contrição, tal qual
estava estampado no livro Mestre da Vida, o mesmo que se
recitava na novena desta santa. Deixemos a própria Rosa, em . A novidade deste rosário, além de propor novos temas de
longa_carta enviada para as Minas, descrever pari passu sua reflexão espiritual, foi a substituição daAve-mariapelapequena
"invenção -— o "Rosário de Santana": prece "Santana, nobreza do amor de Deus..." que, por ser bem
ia ais curta que a Ave-maria, permitia rezar todo um rosário (três
"Principia assim: postos de joelhos, rezarão o Ato de terços) no mesmo tempo que se gastava para desfiar apenas um
Contrição e dirão: Deus in adjutorium meum intende, e o terço tradicional. Outra novidade introduzida por Rosa foi a
Gloria Patri. Logo dirão: Ana, amparai-me, eu vos dou o confecção material deste "Rosário da Fé", que, segundo instrução
meu coração, alma e vida. E farão logo a petição à santa de São Tomé, devia ter as contas das Ave-marias em cor cinzenta
por este modo: Santana, concedei-me memória viva, um e os Padre-nossos em vermelho. Rosa mandou quantidades
entendimento reto, uma vontade abrasada no amor de destes rosários e folhetos manuscritos explicativos para seus
Deus e na caridade de meu próximo. B rezarão um Padre- devotos adotarem e divulgarem nas Minas Gerais. Além da
nosso e uma Ave-maria. Em seguida, em lugar das Ave- economia de tempo, grandes vantagens eram prometidas atra-
marias dirão: Santana, nobreza do amor de Deus, soberana vés de Madre Egipcíaca para quem adotasse esta nova piedade:
avó de Jesus Cristo; socorrei os miseráveis. E em todos os
,- 15 mistérios farão a petição. E tendo rezado um terço, "Promete Santana grande adjutório a quem rezar este
M. rezarão a S_alve-Rainha e oferecerão^com o oferecimento da seu 'Rosário da Fidelidade', principalmente para a hora da
Senhora Santana, e rezarão um Padre-nosso, Ave-maria e morte. Diz a. santa que os devotos que lhe rezarem este seu
Glória Patri a São Joaquim. E o mesmo farão em cada. rosário, à hora da morte apartará deles todos os demónios
terço." • ' • • . . e 7,070brasas assumirgira [sic] debaixo da terra, deixando
o enfermo livre de tentações- e que lhe virá assistir o seu
Tal era a estrutura formal desta devoção que, como o trânsito e trará consigo Jesus Cristo, seu neto, e Maria
tradicional Rosário de Nossa Senhora, mesclava oração vocal Santíssima, sua filha, e passará desta vida em paz e livre
com a meditação de 15 mistérios relativos à biografia da avó de de seus inimigos. E, se apessoafor espiritual, lhe alcançará
Cristo. Alguns dos 15 mistérios induziam os fiéis a verdadeiros de seu neto a graça para que se aumente mais e mais na
•i
delírios da imaginação, como este segundo mistério do segundo virtude; se for mundana, alcançará de seu neto auxílios
JL ter_ço: ,, - .~. . . . —-• , •. eficacíssimos até que venha a penitência e aborrecimento
das culpas, até que alcance a contrição. Este rosário no céu
"Considerano júbilo que a Senhor a Santana teve quando prostra os anjos profundamente em adorações no Trono da
entrou no limbo.:-ao ser reconhecida dos santos padres, Santíssima Trindade e no inferno causa terror, sustos,
patriarcas e profetas por mãe da mãe de Deus! Prostrados temor e tormento fortíssimo nos demónios, de maneira que
todos por terra, adoraram-na com suma reverência e aca- no céu causanos anjos e santos veneração e na terra sustos,

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-4

e aos pecadores, socorro de seus males presentes e futuros. rência, o "Rosário da Fidelidade" garantia a salvação aos peca-
Diz mais a santa que as 7.000 [brasas] serão em louvor dos dores e, também, às almas que penavam, nas chamas do purga-
sete gozos de sua Santíssima Filha ou em vitória e venci- tório::, ..'
mento dos sete inimigos capitais, e as setenta serão em •".Ao longo da biografia de Rosa, por diversas vezes, aparece
louvor da glória do coração de São Joaquim, que viveu citad^iíliTiome d-6 Santana, representando este rosário o corolário
mortificado e penitente. Este é o efeito que faz este rosário de uma. antiga e profunda devoção. Mais que qualquer outra
pelos devotos. Chama-se "Rosário da Fidelidade'para todos épõ!5ãZõ~seculo XVIII representou, nojmundo íEerícõ, o apogeu
os que o rezarem com devoção e fé na proteção da santa. dorâtTEfTa''avódê~Cristo, talvez uma das devoções mais queridas
Ainda para os que o não rezarem com a devida reverência. edivúIgãHaspor nossos coevos antepassadõsTB por mais incrível
É socorro geral para os vivos e mortos que estão no purga- qtie~posiSff^arecSF7TíeTihiiniarvrez~rrarBíblia Sagrada é citado o
•'t. tório. Até o rezado por um moribundo que está na hora da nome- da santa matrona, cabendo, portanto, a fontes apócrifas,
morte, diz que lhe há de valer e apartar dele todos os sobretudo ao "Proto-Evangelho de São Tiago", as informações
inimigos. E diz que a invocação deste rosário causa três sobre-sua vida e milagres. É noFlos Sanctorum que encontramos
glórias no império: uma à Santíssima Trindade, outra à
sua Santíssima Filha Virgem e Senhora Nossa, outra a ela
mesma na invocação de dizerem Santana, nobreza do amor
F: ~os mais completos — e imaginativos — detalhes sobre a suposta
biografia dos avós de Jesus. Dada a importância que estes
personagens, sobretudo Santana, desempenharam no imaginá-
de Deus, soberana avó de Cristo, socorrei os miseráveis. rio de Rosa, acrescentamos mais alguns detalhes sobre o culto
Que o que causa no céu glória, causa no inferno temibili- à avó de Cristo.
dade de pena aos demónios e causa no império alegria dos v Reza atradiçao que Ana teria nascido emBelém, da estirpe
anjos. E peça o devoto à santa o que quiser: no primeiro familiar do Rei Davi, filha de Estolano' e Emerenciana — esta
terço, peçam à Senhor a Santana aprudência do seu coração última, portanto, bisavó de Cristo, podendo ser admirada era
santíssimo; no segundo terço, pecara humildade, e no ter- Joelaimagematéhojeconservadanoaltarlateral direito dalgreja
ceiro terço, peçam obediênciajpara^obedecer à_vontade -de _zdõs_Car:melitas do Rio de Janeiro. Eleita por Javé para ser a
Deus e a todos os que em nome de Deus mandarem. E - progenitora da Virgem Imaculada, Ana teve notícia infusa das
peçam à santa que estas três petições sejam como guia ou sagradas escrituras, recebendo também, como sua filha, diver-
norte das suas peregrinações e jornada desta vida. E peça sãs visitas do Anjo Gabriel. Casou-se com Joaquim, membro de
mais que lhe infanda um ódio contra os sete vícios capitais. -rica estirpe de Nazaré, a quem foi revelado, em visão num sonho,

Íé E eu peço uma Ave-maria pelo amor de Deus aos devotos.


Rosa."
i,ir que sua esposa era "prenda do céu" e destinada a grande missão:
„ ser a avó do tão esperado Messias. Viveu este santo casal por
" vinte anos sem procriar, pois Ana era estéril, até que o Arcanjo
; -:Ui • À Santa Margarida Maria Alcoque o Sagrado Coração de ' Gabriel, o "Mensageiro de Deus" — o mesmo que séculos depois
:f Jesus prometera que todos Os católicos que comungassem nas aparecerá também a Maomé —, anunciou-lhe que ia gerar uma
noveprimeiras sextas-feiras domes "não morreriam semreceber -- filha, e desta donzela nasceria o Filho de Deus. Apesar da velhice,
os sacramentos e, neste transe extremo, receberão asilo seguro Ana pariu e, privilegiada por Javé, não sentiu as dores do parto,
* no meu coração". À Rosa Egipcíaca, através de Santa Ana, encarregando-se ela própria de enfaixar sua predestinada filhi-
i* maiores vantagens espirituais são garantidas, e isto com meno- nha, a única dos mortais merecedora da graça de nascer "ima-
. rés exigências purifícatórias: até se rezado sem a devida revê- culada", isto é, sem mácula do pecado original, É aí, então, que

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São Joaquim recebe a visita de doze anjos, ratificando que Maria devoção:; sua festa foi oficialmente instituída por Gregório XIII
seria a mãe do esperado Messias. Quando Maria completou três em.l584j:encorL^rail<^0 nos franciscanos seus maiores propagaxi-
aninhos, os velhos progenitores, cumprindo um voto, entrega- distas-..Dentre os frades menores destacou-se neste mesmo
ram-na ao templo para ser criada no serviço de Javé. Morrendo sécukTFrei Inocêncio da Chiusa, siciliano, que costumava cha-
Ana aos 56 anos de idade, deixa Maria órfã ao completar 9 anos. mar-esta. santa de a "Velhinha", dando sempre o nome de Ana
Como as escrituras sagradas nada contam sobre a avó de a incontáveis recém-nascidas que batizava, instituindo-lhe al-
Cristo, muito se especulou sobre a vida da Senhora Santana. No tares encapelas por diversas cidades onde missionava, distribuin-
século IX, o escritor Estrabáo pretendeu que, morrendo São do inúmeras relíquias pelos conventos de sua ordem—relíquias,
Joaquim., Santana casou-se uma segunda vez com Cléofas e uma obviamente, de discutibilíssima autenticidade, apesar dos selos •
terceira com. Salomé, ambos citados no Novo Testamento, vindo e assinaturas dos cardeais romanos que, em troca de polpudas
a parir outros filhos e filhas, como Maria, mãe de Tiago Menor, esmolaSj-referendavam tais objetos sacros. Em 1622 Gregório
Judas Tadeu, e o próprio João Evangelista, todos seguidores de XV em agradecimento a uma cura milagrosa de que fora bene-
Jesus de Nazaré. Contesta o autor deFlos Sanctorum tal versão: ficiário, estabeleceu sua festa, 26 de julho, como dia de guarda
L- & "Não seriapudico casar-se a avó de Cristo outras vezes, portanto., ^"ê preceito, tendo São Pio V retirado do Breviário os episódios
em vez de filhos, os supracitados personagens bíblicos seriam mais pueris e inverossímeis de sua biografia apócrifa. Reza a
sobrinhos da santa matrona", asserção aliás confirmada pelo tradição que prodigiosos milagres ocorreram naquela época,
Beato Amadeu (+1482), fidalgo português reformador da Ordem graças ao patrocínio desta grande matriarca: Frei Boaventura
Franciscana, a quem foi revelado, através de visões, serem ColoneUa, OFM, disse ter curado mais de 500 mulheres estéreis
aqueles suspeitos filhos da santa matrona, de fato, seus primos por sua intercessão, entre elas a Arquiduquesa da Áustria. A
e sobrinhos. Princesa de Palermo, ao contrário, teve sorte madrasta, pois,
Conta Frei Francisco de Lizana, OFM, que, na hora da embora parindo três filhos, graças a seu patrocínio, como seu
morte de Cristo, Ana foi uma das que ressuscitou na Sexta-feira marido não cumprisse o voto de fundar-lhe uma capela, os
Santa do limbo, sendo guinada diretamente para o céu,.justifi- __mesmos"três inocentes vieram a falecer "como castigo por não
cando-se assim a inexistência de relíquias desta poderosa ma- ter acrèoitado no milagre". A SantaBrígida da Suécia apareceu
triarca. Versão que é contestada por fatos posteriores, pois "um a avó de Cristo ensinando-lhe poderosa oração para manter a
braço de Santana é guardado com grande veneração na Santa p_az entre os casados.
Casa de Misericórdia de Lisboa, trazido de Chipre, e seu corpo Também na África Portuguesa, a Senhora Santana_tgye
se tem por certo que foi transladado à Igreja de Aptense, em incontáveis devotos, entre eles destacando-se a Rainha Jinga)
França, e sua cabeça e braço são venerados em outros santuá- (século XVII) que, na pia batismal, recebeu o nõínè~aãTsanía
rios". A fonte de todas essas informações continua sendo o Fios ~ avozinha e, segundo depoimento dos capuchinhos italianos,
t Sanctorum. Na coleção de relíquias dos carmelitas cariocas, costumava prestar-lhe grandioso culto no dia de seu onomásti-
segundo informação do próprio Dom António do Desterro, além co.4 No caso dos negros e negras provenientes da Costa da Mina,
LUsl de constarem três fios de cabelo de Nossa Senhora, havia um ^L -praticantes da religião dos orixás, teriam os mesmos associado
lilr pedacinho do osso da santa matrona. ••"í-í • Senhora Santana ao culto de NanãJBorocô^ "a mãe primitiva,
Embora na velha Espanha se tenha notícia de que os godos mãe de todos os orixás e a mais velha deusa das águas"? Saliibá
venerassem Santa Ana desde o século V, foi sobretudo a partir Anamburukul
do século XVT que, de Roma, vindo do Oriente, se alastra tal Conforme dissemos^ foi sobretudo no século XVIII que o

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culto a Santana_se tornojoverdadeira coqueluche no Brasil. Só • ínclita Matrona Santa Ana, em que se Prova com Eficácia não
em Minas Gerais encontramos hoje 56 localidades com o nome Casar mais que uma Só Vez, Traduzida e Acrescentada com
da esposa de São Joaquim, a maior parte fundada no tempo em Muitos Milagres Dela e do Senhor São Joaquim, seu Único
que Rosa viveu nas comarca.s de Ouro Preto e do Rio das Mortes. Esposo;. Frei José Pereira de Santana — atente-se para seu
Dezenas de igrejas e capelas no Brasil setecentista tinham em. §bbrenome —, carmelita natural do Rio de Janeiro, nosso já
Santana seu principal orago e, segundo o Prof. Caio Boschi, 11 conhecido autor das vidas de Santo Elesbão e Santa Efigênia,
irmandades mineiras eram consagradas ao culto desta santa, escreveu a.Notícia Mística, Representação Métrica e Verdadeira
sendo costume no Brasil afora comemorar seu dia com muitas ^História dos Avós de Maria e Bisavós de Cristo (Lisboa, 1730),
festas, fogueiras e foguetóriò, tal qual se faz ainda hoje para São na qual trata dos pais de Santana, os já citados Santo Estolano
João e Santo António. Nestas ocasiões, entre bailes e entreme- ê?Santa Emerenciana. Concluo com um baiano, o Padre João
zes, podia-se ouvir o versinho registrado por Melo Moraes Filho Alyares Soares, sócio da Academia dos Esquecidos, que em 1733
nos finais de século XK: eaitqú o Sefmão da Gloriosa Santa Ana, Mãe de Maria Santís-
_ sima Senhora Nossa, na Festa que lhe Consagram os Moedeiros
"Nossa Senhora da Glória tem grande merecimentoj ~na Catedral da Cidade da Bahia.
Mas a Senhora Santana trago mais no pensamento!" 1 ', Também nosso j abem conhecido P adre Gabriel Malagrida,
SJ, "quando no cárcere, perseguido pelo Marquês de Pombal,
No Rio de Janeiro, terra onde Rosa recebeu a revelação redige um manuscrito curioso: "Heróica e Admirável Vida da
para divulgar o "Rosário de Santana", o culto a esta santa Gloriosa Santana, Mãe de Maria Santíssima, Ditada pela Mes-
também se afervora muito naquela centúria: em 1735 é ereta a ma Santa com Assistência, Aprovação e Concurso da Mesma
Igreja de Santana, património dos homens pardos, sita numa Soberaníssima Senhora e de seu Santíssimo Filho". São 120
grande praça até hoje chamada de Campo de Santana; entre folhas manuscritas em português intercalado com italiano e
1754 e 1755, Frei José de Santa Maria constrói no próprio _ latim, nas quais o injustiçado e decrépito taumaturgo dos sertões
Convento de Santo António mais uma capela, também dedicada —doBrasil—em avançado estado de demência, segundo avaliação
à Senhora Santana; próximo ao Campo de Santana, em 1758, - do-principal historiador da Companhia de Jesus —, inventa
constrói-se a Igreja de São Joaquim. Era 1759, Dom António do pitoresca e piedosa crónica sobre a avó de Cristo. Assegura, por
Desterro obtém de Clemente XIII o decreto instituindo Santana exemplo, que Ana fundou, em Jerusalém, um recolhimento para
como Padroeira principal do Rio de Janeiro, o mesmo ocorrendo " mulheres convertidas; que Deus fez com que o ventre da Virgem
em 1782, com a cidade de São Paulo — ambas as urbes dupli- Maria se tornasse translúcido como um cristal, através do qual
cando, assim, os oragos principais instituídos desde a época de Santana pôde ver e adorar seu soberano netinho; que Maria
suas fundações. Diversos escritores sacros encarregam-se por Santíssima, ainda no ventre de Santana, chorava e fazia chorar
esta época de divulgar, em português, a vida e virtudes desta os querubins que a serviam, aí mesmo fazendo seu voto de
venerável avozinha; além das três novenas citadas há pouco, eis virgindade; que a avó de Cristo, além de sua família extensa,
alguns exemplos mais: o Padre Sebastião Azevedo, "grande - possuía 20 escravos, sendo 12 machos e 8 fêmeas; que no dito
devoto de Santana, dedicava-lhe quotidianamente piedosos ob- recolhimento de Jerusalém viviam 53 religiosas, saindo algumas
séquios, pelos quais mereceu um a morte suave", tendo publicado para se casarem, uma com São Mateus, outra com São Nicode-
emLisboa, em 1725, o livro CéuMístico à Gloriosíssima Senhora mos e ainda outra com São José de Arimatéia, nascendo deste
Santa Ana; José Pereira Bayão (+1743), além da biografia de último casal, o primeiro sucessor de São Pedro, o Papa São Lino;
outros santos, é autor da Vida, Prerrogativas e Excelências da

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que Santana teve outra irmã, Batistina, sendo a senhora ma- de São José, Ana Maria do Nascimento, Ana Francisca do
trona superior em dignidade aos anjos e todos os santos do céu, Sacramento, Maria Antonia do Coração de São Joaquim, Maria
etc., etc. • . • : - . : Joaquina do Coração de Santo Agostinho, etc.
Há quem defenda terem sido os inimigos dos jesuítas os Desde as Minas, Rosa Courana já era devota da santa
autores destas pias invencionices, cavilosamente atribuídas ao avozinha: quem sabe, devoção aprendida e estimulada por sua
Padre Malagrida com o pérfido objetivo de condená-lo à fogueira proprietária, Dona Ana Garcês que, seguindo o costume da
por heresia. Convém, entretanto, recordar que a maior parte época, provavelmente comemorava o seu onomástico com nove-
destas pueris historietas pertencia à tradição oral do catolicis- na, tríduo e alguma festividade profana. Segundo informação do
mo, alguns detalhes tendo sido extraídos dos antigos breviários negociante lusitano João Fernandes da Costa, a negra, na
canónicos. ocasião em que por vários meses se refugiou na comarca do Rio
A devoção a Santana espalhava-se por todas as classes, das Mortes, em 1749, vendo um regato de água que corria ao
inclusive entre a escravaria—• sedenta de, no exílio americano, lado das casas do Padre Francisco Gonçalves Lopes, na sua
restaurar, pelo menos no Além., sua ancestralidade perdida. Eis .chácara do Rio Abaixo, batizou-o de "ribeirão de Santana, dizen-
uma bela prova desta devoção encontrada na Igreja de Santana do que seria remédio universal com as suas águas para todas as
l
íí
de Mariana: trata-se de um quadro ex-voto onde aparece a santa doenças". Damesma forma, logo após restabelecer-se dos açoites
nas nuvens, ensinando Jesus a ler. Diz o texto: "Milagre que fez sentenciados pelo bispo de Mai-iana, a visionária profetizou que
Santana a um preto, Luiz, escravo de Luiz Pereira, que, que- no Morro do Fraga seria construído "um suntuoso templo dedi-
brando uma perna pela coxa, e sendo encanada três vezes sem cado à mesma santa". Sua primeira oração recebida~num sonho
de nenhuma se soldar, lhe abriu o cirurgião a perna e, serran- místico começava assim: "Vitória, vitória, Senhora Santana..."
do-lhe as pontas dos ossos, por intercessão da milagrosa santa, No Rio de Janeiro, logo após a primeira visão dos Sagrados
se viu são em 20 de outubro de 1732 anos." Provavelmente Corações de Jesus, Maria e José, os céus lhe revelaram mais
Rosa, nas muitas vezes em que esteve em Mariana, admirou dois personagens que deveriam, igualmente ser venerados: os
este singelo ex-voto, aumentando sua-confiança na avó de Gristo. corações sagrados de Santana e de São Joaquim.
Nas casas de família que frequentava, nos oratórios típicos feitos Na correspondência que do recolhimento era enviada para
compedra-sabão, as famosas "maquinetas", podia admirar sem- os Arvelos e demais devotos, a ínclita matrona e seu venerável
pre, ao lado dos principais santos do céu, a figura autoritária e esposo são frequentemente lembrados: dois anos após sua che-
avoenga da mãe de Maria, a um tempo magistral e compassiva. gada a esta cidade, em carta de 24 de setembro de 1752, Rosa
Neste clima de supervalorização desta santa matrona, preceituava: "os incrédulos um dia [vão chorar] por não confia-
vivido por toda catolicidade, incluindo a da América Portuguesa rem no poder de Santana"; em 1756, noutra missiva, dizia: "que
e, por extensão, cultuando-se também seu virtuoso esposo. São Santana nos proteja e sua filha da Piedade, e o mesmo Santo
Joaquim—que no Rio de Janeiro possuía igrej a, rua e seminário Estolano, pai de Santana". Noutra ocasião pede que mandassem
com seu nome—, nossa Africana se transforma em grande uma lembrança- em nome de São Joaquim, "que andou muito
devota eun? i>. das principais propagandistas de seu culto e poder. esquecido este ano". Faustina Arvelos, por seu turno, também
Em seu próprio recolhimento, dedicado aos cinco corações sa- revela em suas cartas, várias vezes, quão importante era o lugar
grados, entre eles, o de Santana, vai ias religiosas traziam ou aí da avó de Cristo no imaginário dos católicos de antanho: após
receberam o nome dos avós de Jesus: Ana do Coração de Jesus, agradecer a esmola de 12 tostões que os pais mandaram para a
Ana do Coração de Maria, Ana Clara dos Anjos, Ana Joaquina festa de Santana, implora a proteção da mesma a fim de que sua

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encomenda para as Minas chegassé"a bom. termo, pois o preto poder dos avós e bisavós, para garantir o pátrio poder, a. fim de
portador estava.com o joelho molesto. Foi também como agra- bombardear essas perigosas ideias questionadoras e ameaçado-
decimento pela esmola de .farinha que os compadres Arvelos ras da manutenção do stotus quo. O autoritarismo de Rosa e do
mandaram para o recolhimento, que Rosalhes enviou "um mimo capelão do recolhimento manifesta-se sobretudo na rigidez com
de Santana", ensinando detaJhadamente como rezar seu rosário que-mantinham as noviças na condição de súditas, devendo
e novena. O padre capelão, por sua vez, costumava usar uma ~ obedecer prontamente, e sem questionar, às ordens dadas pelos
imagem da mesma matriarca para acalmar os vexados quando superiores, no caso, a negra e o padre minhoto. Supomos mesmo
urravam., presas de Satanás. que os colonos na América Portuguesa e Espanhola dedicaram
Que significado podemos atribiúr e como interpretar a maior atenção à Santana, como mantenedora da hierarquia
supervalorização do culto aos avós de Cristo no devocionário " gerontocrática, do que no Reino, pois aqui havia maior necessi-
católico de nossos antepassados? Inicialmente imaginamos que ~~ dade, por parte dos donos do poder, de serem inquestionavel-
Rosa Egipcíaca, por faltar-lhe parentes na terra dos brancos, ""* mente obedecidos, devido à constante ameaça da população
teria reconstituído com estes santos sua parentela perdida, _ escrava e de cor, sempre pronta à desobediência e rebelião.
substituindo o culto tradicional aos ancestrais —um dos pilares Também os <cbrancos da terra" aqui nascidos, vivendo em pro-
da cosmogonia na Costa da Mina — pela devoção à ancestrali- miscuidade com a escravaria e beneficiando-se da. anomia pró-
dade da sagrada família, fazendo de Maria e José seus pais, de pria das frentes_pioneiras_de-colonizaçãoj-tendiam-a não acatar
Ana e Joaquim seus avós, de Emerenciana e Estolano, seus as regrasjamiliares tradicionais de respeito absojuto aos pais,
bisavós matrilineares. avós e superiores. Dai o culto tão espalhado no Brasil Colonial
Aprofundando, porém, a pesquisa, constatamos que a ve- a SãcTJosé de Botas, representante da autoridade-d-e-^aíer
neração a estes antepassados de Jesus não era peculiaridade famílias, e a Santana Mestra, soberanamente assentada ixa sua
dos africanos desterrados de seus ancestrais, mas geral a todos cátedra, muitas vezes tendo Maria Virgem por_ejxtce_as pernas,
os católicos, daí buscarmos na ideologia da sociedade global a e o Menino Jesus no colo—ambos símbolos do poder e_au.t.oridade
tá .explicação para tal fenómeno devocional. Ao nosso ver, o culto da elite branca vis-à-vis à "gejd^lh^Jje-às-jaovas gerações.

• aoffavós"e bisavôs ae"Cfist'õrepresentouareação da Igreja contra


• as ameaças ao questionamento da tradicional autoridade dos
Já transcrevemos, alhures, alguns trechos de cartas expe-
didas do recolhimento, nos quais Padre Francisco e Madre Rosa
H mais velhos, autoridade contestada pelas novas ideologias dos
livres pensadores e iluministas, já nestes meados do "século das
defendiam a importância crucial da obediência cega, por parte
das noviças, particularmente das meninas Arvelos, face ao
t* luzes". Os protestantes haviam minado o milenar imobilismo da "instatuto" e à mestra deste pio colégio, usando-se até a palma-
hierarquia católica, negando a autoridade do Sumo Pontífice e tória para domar as noviças mais rebeldes. Nesta outra carta,
a obediência aos príncipes da Igreja, elevando todo cristão à de 1760, Rosa ratifica seu pensamento no tocante à submissão
P condição de leitor das Sagraaas Escrituras, o que vale dizer, que as novas gerações devem manifestar aos mais velhos —•
íi^^-' dispensando a tutoria das autoridades clericais. No plano social repetindo a mesma conduta de Maria e do próprio Cristo, "que
e político, começam a divulgar-se neste século novas ideias de foi obediente até à morte" (Filipenses, 2:8).
P igualdade,:fraternidade, de questionamento da autoridade dos "Quem perde o temor dos pais, também perde o temor de
pi ':i poderes constituídos, ideias que terão nos enciclopedistas seus Deus. Os que tinham coração de bronze o tornarão de aço, depois
teóricos e na Inconfidência Mineira e na Revolução Francesa emferro e cera, para o Senhor imprimir neles os seus santíssimos
•seus grandes momentos. Portanto, nada melhor que reforçar o corações." Nesta mesma carta, ao comentar a visita que um

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14
k
jovem parente da família fizera às meninas Arvelos recolhidas quão próxima estava a espiritualidade de nossa africana, for-
no Parto, temerosa e suspeitando que a mais velha tivesse mada no devocionário franciscano, da mística jesuítica do Padre
sub-repticiamente passado "escritos de casamento" ao guapo Malagrida, disputando um e outro a primazia, na América
visitante, Rosa declara: "Os filhos não podem tomar estado de Portuguesa^ na devoção e propaganda não só do culto cordícola,
sua eleição sem consentimento dos pais: só depois de 33 anos como da Senhora Santana. Tenho notícia recente de que os
para cima, porque não têmjuízo para eleger por si sós sem sair-se jesuítas da Bahia tentam resgatar a memória deste inaciano
do pátrio poder. Fazendo o contrário, são filhos da maldição!" E queimado pela Inquisição lisboeta, pleiteando a abertura de seu
lembremo-nos que não havia pior estigma antigamente, e isto processo de beatificação. Quem sabe, chegará o dia em que
desde que Noé instaurou este castigo supremo, do que ser ' também Rosa Egipcíaca há de merecer tais honrarias?
]!i; amaldiçoado pelos pais. Deus livre tal desgraça! Cam, por Já analisamos anteriormente os principais aspectos, sig-
nificado e influência do culto dos Sagrados Corações na espiri-
causa desta maldição, herdou a escravidão para todos os
seus descendentes da raça negra, os camitas. tualidade e vida mística de Rosa: o Recolhimento do Parto era
J!
.i í
Na ladainha que Madre Egipcíaca enviou a seus devotos "a casa onde estão os Sagrados Corações", e no peito da funda-
das Minas Gerais, acompanhando seu "Rosário da Fidelidade", dora, como já acontecera com Santa Margarida Maria e outras
diversos louvores à primeira das mestras enfatizam exatamente visionárias cordícolas, não mais se achava o seu, mas batia o
& as virtudes ligadas à obediência, resignação e fidelidade, valores próprio coração de Jesus,
ameaçados pelos iluministas e livres-pensadores, assim como Desde 1731 circulava em língua lusitana a Ladainha e
pelas novas gerações americanas, e que encontrariam no culto Novena do Santíssimo Coração de Jesus, de autoria de Frei
i aos antepassados de Cristo sua restauração e medicina: Jerônimo de Belém. Rosa, talvez, tenha-se inspirado neste de-
vocionário franciscano, ao inventar seu próprio exercício espiri-
Santana, espelho de obediência, ora pró nobis! tual, pois foi depois da fundação da Capela dos Santíssimos
Santana, espelho de paciência, ora pró nobis! Corações, no convento dos frades menores cariocas, que as
Santana, proteção das viúvas, ora pró nobis! recolhidas do Parto passaram também a fazer novenas dedica-
Santana, mulher forte, ora pró nobis! das a esta novel devoção. Já vimos que, em 1752, noticiava o
Santana, avó de Criàto, orapro nobis! bispo do Rio de Janeiro a existência, nesta cidade, de uma
Santana, sogra de São José, orapro nobis! confraria dedicada ao Coração de Jesus, o que comprova a
Santana, da prole dos patriarcas, orapro nobis! popularização deste culto por esta época.
Tivemos a satisfação de encontrar, no meio das cartas
Além do -"Rosário da Fidelidade, carro-chefe de seu devo- enviadas por Rosa a seus devotos mineiros, uma pequenina

k cionário, Rosa divulgou entre seus admiradores a "Devoção aos brochura manuscrita, de 8 x liem, composta de 4 folhinhas
Santíssimos Corações de Jesus, Maria, José, Ana e Joaquim". costuradas com linha, trazendo o título "Devoção aos Santíssi-
Depois do Padre Malagrida, pioneiro e principal propagandista mos Corações". Foi o único exemplar conservado, dos muitos,
do culto aos Sagrados Corações no Brasil, é a beata africana que nossa biografada enviou do Rio de Janeiro a seus numerosos
quem mais há de espalhar no nosso meio tal piedade, divulgando devotos além daMantiqueira: suas folhinhas gastas e ensebadas
mensagens cordícolas, mandando construir capela e altar em comprovam seu repetido manuseio por beatos e beatas que, de
seu louvor, incluindo nos riomes de suas filhas espirituais tal joelhos, à luz de vela, perante um oratório doméstico, pediam
denominação, enviando para as Minas e Recôncavo Fluminense proteção aos Sagrados Corações pela intercessão da maior santa
cópias de orações a ele consagrados, etc. Atente o leitor para

508 509
de todos os tempos, RosaMaria Egipcíaca da Vera Cruz. O texto família extensa de Jesus, Rosa acrescenta mais alguns persona-
desta devoção é simples, como simples eram os mineiros e gens celestiais na sua devoção:
fluminenses discípulos da negra courana:
"Ó coração de São João Batista, ovelha inocente, depois
"Ó Coração de Jesus: pelo amor que vós tendes ao Eterno tornado Bom Pastor: livrai minha alma da pena e da culpa
Pai, concedei-me a graça/ao meu coração, para com ele vos " mortal. PN, AM, GP.
amar e sei-vir com perseverança. Padre-nosso, Ave-maria, ,0 panegírico coração de São João Evangelista, por que
Glória Patri. ••• se embebeu no divino orvalho na noite da ceia, recostado
Ó Coração de Maria, pelo amor que tivestes à Santíssima *• IDO lado de Jesus, alcançai-me graça para amar a Jesus,
Trindade e à Sagrada Humanidade de meu Senhor Jesus 1 vosso divino mestre, e a Maria, vossa santíssima mãe."

Cristo, cobri o meu coração com o sagrado véu de vossa


pureza, para que as minhas obras sejam dirigidas para a - ' Encerra esta devoção uma petição em louvor da paixão e
honra e glória do Senhor e bem do meu próximo. PN, AM, morte_de Cristo:
GP.
O Coração de José, pelo amor que tivestes a Jesus e a _^_ "Por-todos os justos e pelos que estão em graçapara que
Maria, concedei-me ao meu coração tal pureza de vida que - - - dela não caiam; por todos os que estão em pecado mortal,
viva ajustado com Deus, perseverante na guarda de seus ~- -* para que Nosso Senhor os converta, e em especial pelo povo
santos mandamentos; purificai-o com a pureza de todas as .. __ eclesiástico; por todos os que padecem aflição espiritual e
faltas e defeitos. PN, AM, GP. corporal, por todos os que estão em agonia de morte e por
Ó Coração beatíssimo de Santana, pelo socorro que - ._todos os infiéis, gentios, hereges, judeus e cismáticos de
destes ao mundo na ocasião de sua esterilidade, socorrei o todo o mundo, para que Nosso Senhor os traga ao grémio
meu coração na ocasião de minha maior miséria para que da Igreja Católica; pelas necessidades espirituais e tempo-
-;™-rãis da Igreja, pelas almas do purgatório e pelos que
não perca o direito que tenho na herança do sangue de
vosso santíssimo neto, com que me remiu, e o não perca "T/5íavegam sobre as ondas do mar, para que Nosso Senhor
por minha culpa. Valei-me e socorrei-me, amada Matrona. '.. os recolha a porto seguro. Padre-nosso, Ave-maria e Glória
PN,AM, GP. •• Í . --'•Pairj..'.'
Ó Coração de São Joaquim, conselho maduro do trono
AXém do Rosário de Santana e desta devoção aos Sagrados
da Santíssima Trindade, avô da sagrada humanidade de
-Corações, a mística courana declarou perante o notário do Santo
meu Senhor Jesus Cristo, pelo amor que tivestes às virtu-
^fício,,,quando já trancafiada no Santo Ofício de Lisboa que, no
des da esperança e caridade no grau perfeito, servi de
-sábado de Aleluia de 1761, "ao dar parabéns a Nossa Senhora
oráculo à minha pobre alma, de médico e medicina na
pelaressureição de seu filho, no altar da mesma Senhora, lhe
viagem desta minha peregrinação. Amém, Amém!
falou uma voz ensinando a rezar uma coroa, todos os sábados,
Jesus, Maria, José, Joaquim e Ana, a quem dou o meu ..
ení obséquio da gloriosa maternidade da Mãe de Deus, e, em
coraçãoy alma e vida e todo o meu ser. PN, AM, GP."
l lugar do Padre-nosso, rezarás a Salve-Rainha [pois], assim
v k
Jazendo, te prometo o meu adjutório". A devoção à "coroa de
Não contente em homenagear os cinco corações da sagrada
ífossa Senhor a" foi muito divulgada pelos capuchinhos italianos
por todos os cantos onde missionavam, e, quem sabe, pode ter

510 511

p
m
sido Frei João Batista da Capo Fiume quem. ensinou à nossa logébicos com o Santo Tribunal, nuançavatal distinção ao escre-
beata tal exercício pio.
ver: "Não está a diferença, para ser ou não ser oração mental,
Se no século XVIII notamos um grande incremento de em'ter a boca fechada. Se, estando a falar, estou perfeitamente
certas práticas devocionais, como as já citadas ladainhas, nove- a entender e ver o que falo com Deus, pondo nisto mais adver-
nas, oitavários, tríduos, lausperene, etc., todas manifestações tência^do que às palavras que digo, juntas estão aqui oração
da oração vocal nesta mesma época, vai se consolidar, saindo mental e vocal." .
dos claustros e atingindo a população em geral, uma nova forma _s Para a santa doutora, por conseguinte, a oração mental
de contacto espiritual do fiel com Deus Nosso Senhor: a oração equivalia à união da alma com Deus, podendo inclusive ser
mental.
praticada quando se rezavam orações costumeiras, como oPater
Rosa, como autêntica e paradigmática beata deste período ou a saudação angélica. A maior parte dos místicos, entretanto,
barroco, encontrará na oração mental o passaporte de que e ela-própria em outros escritos, distingue claramente estes dois
precisava para penetrar nos patamares mais elevados do castelo tipos de exercício espiritual, privilegiando o segundo por repre-
interior da vida mística. Cumprirá, assim, arisca o ensinamento sentar maior união da alma e intelecto com a fonte da graça.
da reformadora do Carmelo: "As almas sem oração são seme- Tão é sem razão que as ordens religiosas contemplativas eram
lhantes a um corpo entrevado ou paralítico. A porta para se consideradas os "pára-raios do Espírito Santo", pois é por inter-
entrar no castelo é a oração, a meditação. Não chamo oração médio da contemplação dos enclausurados e enclausuradas que
mexer com os lábios sem pensar 110 que dizemos. Para ser oração a graça divina se derramava na cristandade.
é necessária a reflexão."
O Padre Manuel Bernardes (1644-1710), considerado um dos
Quid est oratio?
mais doutos e eloquentes pensadores sacros de seu tempo, no
Est elevatio mentis ad Deum, ensinam os manuais de opúsculo Pão Partido em Pequeninos para os Pequeninos da Casa
teologia.
de Deus (1694), ensinava, através de um diálogo entre um secular
"Oração vocal é um turbilhão de água que lava a terra e um religioso, como penetrar nos meandros da contemplação:
JBL.:
superficialmente, sem chegar ao coração. A oração mental é como
11 i as garoas suaves: cai até o íntimo da terra." A frase é de Frei "Secular: Parece que sem a oração mental não há salva-
Luiz de Granada, dominicano espanhol falecido em Lisboa, em iÇão? Eu tenho ouvido dizer alguns confessores que me não
1588, um dos maiores oradores de seu tempo, autor do Guia de meta com esses exercícios, pois basta para me salvar que
Pecadores, confessor de el Rei Dom João III, da Rainha Dona _ guarde a Lei de Deus.
Catarina e do cardeal Dom Henrique e que, apesar de toda
l ilustração e santidade, deixou-se engabelar por Soror Maria da
Religioso: Eu não digo que a oração mental é meio
precisamente necessário para a salvação, mas digo que é
f Visitação, do Mosteiro da Anunciada, a qual, fingindo êxtases, -de tanta importância e proveito que, sem ela, tem grandís-
falsos estigmas e levitações, foi finalmente desmascarada e sima dificuldade o conservar-se a alma na graça de Deus
i presaatéofínaldavidanumcárcereconventual. Do livro deste por muito tempo."
à. dominicano, Oração e Meditação, traduzido em nove diferentes
idiomas, tiramos esta distinção entre oração vocal e. mental. Continua, então, o neófito, indagando ao sacerdote:
Santa Teresa d'Avila, por sua vez, a grande mestra do
misticismo católico, doutora da Igreja, contemporânea do citado "Secular: Dizei-me já que coisa é esse santíssimo exer-
dominicano e, como ele, também envolvida em problemas apo- cício de que inculcais tantas excelências.

ii
512 513
Religioso: Que há de ser? Imaginais que é isto coisa nova ; nheiras e que fazia meia hora de oração mental de manhã
e nunca vista na Igreja, de Deus? ou que não é para todo e outro tanto à noite/por assim lhe ordenar o dito diretor".
fiel cristão? Hoje está tão divulgado este exercício que o
têm até os negros! Ter oração mental é resolvermos tomar AO ensinar e "ordenar" a prática da oração mental à sua
uma meia hora cada dia, em que vos ponhais quieto diante dirigida, o provincial dos franciscanos adequava-se à tendência
de Deus a cuidar no que fostes, no que sois e no que haveis geral da Igreja no Brasil que, por esta época, investia ardorosa-
de ser; e quem é Deus, e que fez e padeceu por nosso amor. mente nesta nova maneira de orar, certamente para elevar o
É abrir os olhos da alma para ver que coisa é ofender a este nível de piedade do povaréu que contentava-se em recitar me-
Senhor e quanto vos importa servi-lo. É renovar a fé que canicamente as orações costumeiras, sem concentrar-se na me-
vos infundiu no batismo. É ser cristão e racional porque o ditação do significado das palavras ou distraindo-se na hora de
homem que não costuma orar quase não se diferencia de "meditarmos, "mistérios" do rosário ou das novenas dos santos.
um gentio, de um bruto." " Prova disto é que, dois anos antes de Rosa migrar para o Rio de
Janeiro em 1748, Dom António do Desterro, em consonância
t*
m Tinha razão o douto Padre Bernardes ao dizer que, já nos
finais do seiscentos, até os negros, a camada mais abjeta do
"com a~pragmática de Bento XTV (1740-1753) e reconhecendo o
--erande-proveito inerente a esta prática contemplativa, determi-
na que todo fiel, desde que confessado e comungado, que fizesse
mundo luso-brasileiro, praticavamtal forma superior de oração.
Até esta época a oração mental era privativa do clero e das ordens oração da concórdia dos Príncipes Cristãos e da extirpação das
monásticas, sobretudo das contemplativas, havendo mesmo con- ^heresias, receberia indulgência plenária, ordenando outrossim
fessores que desaconselhavam aos cidadãos comuns a sua prá- aos de família que ensinassem seus filhos a praticá-la,
tica, para evitar alucinações e falsas visões. Na virada do século sobretudo nas horas em que tocavam os sinos das igrejas. Em
XVII, contudo, Roma incentivou ardorosamente que todo cristão 1754 é a vez do bispo de Mariana decretar uma pastoral estimu-
aprendesse e praticasse tal exercício espiritual. No caso de ladora da oração mental, obrigando sua prática em todas as
Portugal, o Papa Inocêncio XI (1676-1689) concede um breve ao matrizeSj após a missa das almas, considerando-a como "um dos

l* introdutor da Congregação do Oratório no Reino, o Padre Bar-


tolomeu de Quental, 'conferindo muitas indulgências a quantos
Tmeios mais eficazes para se conseguir a salvação eterna",
JEm que consiste exatamente a oração mental? Como teria
p- fiéis fizessem oração-mental nas igrejas desta congregação. É ensinado o provincial dos franciscanos à nossa madalena arre-

Iffm correta, por conseguinte, a afirmação de Bernardes de que até


os negros tinham sido introduzidos neste patamar elevado da
ascese mística, tanto que, em seu depoimento na Câmara Ecle-
pendida este degrau superior da espiritualidade? Deixemos a
outro franciscano, Frei Manuel da Madre de Deus, conventual
do Varatojo, explicar o que vem a ser esta "garoa suave". É ele
siástica do Rio de Janeiro', a preta Rosa declarou que, à época, autor de vários best-sellers do devocionário lusitano naquele
f*
•m quando ainda vivia nas Minas, período: Pecador Convertido ao Caminho da Verdade (1728),
com nove edições no século XVIII; Católico no Templo Exemplar
"não tinha oração mental, porque não sabia o que era, e só e Devoto (1730), oferecido ao Rei Dom João V, com 16 edições, e
rezava o seu rosário de Nossa Senhora, e vindo para esta Luz e Método Fácil para Todos os que Quiserem Ter o Importante
cidade, passando seis meses, teve por diretor Frei Agosti- Exercício da Oração Mental (1735). Algumas destas edições
_eram miniaturizadas, cabendo o livrinho dentro da palma da

íj
nho de São José, e este lhe ensinou fazer oração mental, e
depois disto se recolheu para o Parto com outras compa- mão facilitando aosbeatos trazê-lo sempre consigo, por exemplo,

b 514 515
1

dentro do bolso da vestia ou mesmo na cintura do vestido. 'Demos todos graças a Deus Nosso Senhor pelos benefícios
Provavelmente, o confessor de Rosa deve ter seguido a mesma que de sua misericórdia temos recebido, e pecamos-lhe auxí-
receita de seu irmão de hábito e ensinado assim à sua filha lios para observar seus santos mandamentos. Assim se con-
espiritual recém-chegada das Minas do Rio das Mortes: cluirá a oração, rezando a ladainha de Nossa Senhora'.«18
I.;''
"Diretório para a oração mental. Embora o coro do recolhimento fosse considerado o melhor
Postos de joelhos no lugar da oração, começará o que local para se fazer a oração mental, ensina o Padre Bernardes
houver de ler: Pelo sinal da Santa Cruz, livrai-nos Deus, que "em qualquer cantinho se acha Deus: na igreja, no campo,
Nosso Senhor,-dos nossos inimigos. Em nome do Pai, do em casa, sendo as horas da noite e da madrugada as mais
Filho e do Espírito Santo. preciosas". Por sua vez, outro mestre da oração, o jesuíta
E logo dirá em voz alta com muita pausa e devoção: Tomás de Vila Castin, considerava qus as posições mais ade-
Façamos atos de fé, crendo firmemente que estamos na quadas pára a oração mental eram: de joelhos, de pé, ou pros-
presença de Deus nosso Senhor, que aqui está com a mesma ~ trado na terra; se sentado, que o fosse com muita humildade,
majestade, grandeza e formosura com que está no Céu —pois nunca se deve esquecer que todo respeito é pouco perante
manifesto aos anjos e santos. Passado o espaço de sete o Onipotente. "Deye-se falar com Deus com palavras interiores:
Ave-marias, que se gastará fazendo os atos de fé, prosse- - gemidos, lágrimas, suspiros do coração, jamais dormindo, espre-
guirá com a mesma pausa e devoção. Prostremo-nos todos guiçando ou com distração do pensamento." As jaculatórias pias
porteira, adorando a um Senhor tão soberano, e desejemos _são aconselhadas para avivar a concentração das três potências
adorá-lo com a mesma reverência com que o adoram todos da alma: memória, entendimento e vontade, que devem ser
os santos e anjos e Maria Santíssima Nossa Senhora. explicitadas em qualquer meditação.
Prostrar-se-ao todos por terra por espaço de cinco Ave-ma- Além de toda esta preparação psicológica para a contem-
rias, adorando ao Senhor, e, levantando-se os rostos da plação — concentração, atos de fé e de arrependimento dos
terra, ficarão de joelhos com muita modéstia e compostura, ^pecados—> alguns gestos ajudavam o fiel a afervorar sua devoção
e dirá o que ler. ; ~e sentir sensivelmente a presença de Deus todo-poderoso: o
Façamos ato de* contrição, dizendo do íntimo da alma: sinal-da-cruz, sempre impregnado de águabenta; as genuflexões
Pesa-nos, Senhor, de todo o coração, de vos haver ofendido, e vénias no chão, em sinal de adoração da Majestade Divina; os
por serdes vós quem sois, sumamente bom e digno de ser fechados; o cheiro de incenso e do fumo das velas na
amado e porque vos amamos sobre todas as coisas; propomos penumbra dos templos; as pinturas dos santos e os vitrais
firmemente com vossa graça, de nunca mais vos tornar a iluminados, tudo propiciando a união da alma com o Criador. "A
ofender, e esperamos o perdão de nossas culpas pelos mere- Coração mental é um maná tão escondido que ninguém sabe o que
cimentos de Jesus Cristo Nosso Senhor. é...", dizia o citado Padre Vila Castin.
Passado o espaço conveniente, para que cada ura repita Após toda esta preparação emocional e ambiental, o gran-
esse mesmo ato de contrição, se lerá o ponto pela ordem _de momento e combustível para a união da alma com o sobrena-
que vai adiante, e não se lerá mais de um de cada vez, e, tural era a leitura do "ponto" para se fornecer a quem rezava
!l£ lido, ficarão em silêncio, meditando aquele espaço, que com . ideias eimagens destinadas a servir de reflexão durante os trinta
' ly
o antecedente baste para concluir ao menos meia hora, e minutos que geralmente dura a oração mental. Por esta época
li'
'no fim se dirá: são escritos vários manuais ou diretórios com temas ou pontos
'•i.:,

516 517

« de meditação para todos os dias do-ano — tendo como leitmotiv
m os dogmas do catolicismo, os mandamentos da lei de Deus e da
Igreja, mas sobretudo os mistérios da vida, paixão, morte e
companheira, e que estranha, que confusa e pasmada
estará a maldita alma neste ponto! Considera, considera
bem. vê que o tens merecido e chora com ânsia o haver
ressurreição de Cristo e as virtudes de sua Mãe Santíssima. , pecado! [Pausa]
Uma boa amostra de alguns títulos dos 25 pontos pode ser ^,^"11 Ponto:
encontrada no vade-mécum Missão Abreviada para Despertar < " Considera o tormento de um condenado, vendo-se na-
os Descuidados, Converter os Pecadores e Sustentar o Fruto das quele cárcere escuro, estreito, hediondo e pestilento, tendo
Missões, Hvrinho, conforme dissemos alhures, que teve grande 'por cadeira abrolhos, por cama fogo, por manjar cobras e
divulgação no Brasil de nossos antepassados. Eis alguns pontos: . todo o género de bichos, por bebida fel e chumbo derretido,
Da vocação de Deus, sobre o último juízo particular e universal, l por música blasfémias, prantos e ranger de dentes, por
sobre o pecado, sobre o último fim do homem, sobre a morte do companheiros os demónios, e condenados, todos juntos,
justo e do pecador, sobre o inferno e céu, sobre os açoites e "•todos em monte, sem cessarem de se despedaçar uns aos
espinhos de Cristo na Paixão, sobre a glória celestial, etc. " outros. Ai de quem vive vida larga, sem cuidar do que lhe
Elegemos, par abrindar o leitor, ameditação do ponto "O Inferno" ""Chá de suceder depois! Olha, pecador, para atua vida cheia
tal qual consta no citado "Diretório" de Frei Manuel de Deus, , de'pecados, e pede a Deus misericórdia! [Pausa]
certamente o mesmo texto que o provincial dos frades menores -III Ponto:
do Rio/de Janeiro entregou a Rosa para que meditasse e lesse •- Considera a voracidade do fogo infernal, em cuja com-
em voz alta no coro do Recolhimento do Parto, estando de joelhos paração é como pintado o fogo da terra. Neste hão de arder
ou prostrada no chão toda a comunidade. sem interrupção todos os condenados. Oh que pasmo será
Transporte-se, caro leitor, para a penumbra da Capela do ver tanta multidão como o ferro em brasa! Ver o negro e

m
ta
Parto, numa noite quente de verão carioca, estando as recolhidas ^
abafadas em seus hábitos de baeta grosseira, recendendo o
ambiente a fumo de vela e, eventualmente, à catinga de defuntos
escuro do fumo que sairá daquela fornalha, misturando-se
ao mesmo tempo com as chamas que entrarão aos conde-
-ÍLnádos pelas bocas, narizes e olhos e sairão pelas mesmas
recém-sepultados em cova rasa debaixo do tabuado desta igreja. „ -partes! Quem poderia ver tal sem morrer de pavor? E que
Após muitas genuflexões, vénias e orações, "crendo firmemente -"••será padecê-lo! Ai de ti, se pecaste, e não choras arrepen-
que estamos na presença de Deus nosso Senhor", lia-se compas- iv-dido, que já se está preparando a tua fogueira! Pede ao
sadamente o primeiro ponto: ^-Senhor misericórdia! [Pausa]
IVPonto:
I Ponto: , . T~~ Considera que toda aquela maldita canalha abrasada
"Considera como, acabando o pecador a vida em peca- -prpeio fogo, mordida dos cães, devorada dos leões, consumida
do mortal, é condenado para sempre ao inferno, e no " - dos raios e atormentada dos demónios, romperá em terrí-
mesmo instante entra a alma por aquela escura região, iíveis blasfémias contra o céu, contra os santos, contra os
t aonde tudo é desordem e horror sempiterno. Oh que
pavor tão desconhecido, que ânsias tão mal consideradas
_— anjos, contra Maria Santíssima, contra a humanidade de
fc.
4 i por quem passou a vida em culpas! Que disformes figuras
Nosso Senhor Jesus Cristo e contra a Santíssima Trindade.
Ai de ti, se fores um dos que blasfemam neste lugar! Ai que
lhe sairão ao encontro para recebê-la naquele cárcere:
l
H
que horríveis alaridos; quando virem entrar mais uma
_ o tens merecido! Chora com tempo, para que não vás raivar

W •518 519
sem remédio, abraça-te fortemente com os pés de Nosso
Senhor Jesus Cristo, pede-lhe que te não percas! [Pausa] do pecado, a esperançaria salvação: "Ah! como é formoso aquele
V Ponto: palácio do Bei dos Reis! do Senhor dos Senhores!"
Considera sobre toda a pena dos condenados em conhe- - Dependendo do ponto, as emoções variavam: lágrimas,
cer o que perderam, perdendo Deus por um deleite falso, gemidos, autoflagelações, penitências atrozes, quando se medi-
tava na paixão de Cristo; júbilo, dança, cantoria laudatória
tife por uma vaidade enganosa, por um barro vil, e por coisas
que passarão tão brevemente! Há de avivar-se o conheci- faziam parte da meditação dos mistérios gozosos que, se reali-
mento da perda para que seja maior a mágoa. Ai de ti, se zados em particular, podiam redundar em transes, alucinações,
dirás ainda: Maldito sou para sempre, que perdi a Deus êxtases, desmaios, raptos, rigidez total ou parcial do corpo,
por um deleite, que perdi a Deus por uma imundícia, que manifestações psicopatológicas que, naqueles tempos de fana-
perdi a Deus por um pensamento. Chora com ânsia, pede tismoi eram sintomas de união perfeita da alma com a fonte da
perdão com humildade, une a tua alma com Deus, para que " vida, Deus Nosso Senhor.
não seja pára sempre separada de Deus! [Pausa] Numa das poucas folhas manuscritas por Rosa que se
VI Ponto: : conservaram intactas — pois centenas de seus escritos foram
Considera, finalmente, que a todos os tormentos dos queimados por seu confessor Frei Agostinho de São José, pouco
condenados se ajuntará para maior dor o vivo conhecimen- antes de falecer —, datada de l8 de abril de 1756, ela revela-nos
to de que hão de ser eternos, que hão de durar não cem o^clima de emocionalismo de seu imaginário quando meditava
sobre a paixão de Cristo:
anos, não mil, não mil milhões, mas para sempre, sempre:
trevas sempre, companhia de demónios para sempre, blas-
"Considerava o Senhor Jesus orando no horto, cheio de
fémias para sempre, não ver a Deus para sempre. Estende
tristeza e agonia, suando copioso rio de sangue. Depois
os olhos da alma por esse sempre, vê quão caro compras o
recebendo o beijo fementido de Judas e abraçado com ele e
breve deleite de um pecado: chora os que tens cometido, e
propõe nunca mais pecar!" com todos os ingratos do mundo. Depois preso, afligido e
" vituperado da fúria dos homens, apresentado de juízo em
juízo, ouvindo blasfémias de uns e outros. Assim [se deve]
Confesso, caro leitor, que mesmo eu, com meus vinte anos
adorar o Senhor e acompanhá-lo nas suas penas, humilha-
de opção racional pelo; ateísmo, ao transcrever esses pontos, tive
da profundamente por terra e confundida no seu nada."
medo dqjnferno, da eternidade do castigo. Imaginemos, então,
o pânico em que deviam entrar aquelas pobres criaturas, há dois Manuais piedosos, como o do Padre Bernardes, forneciam
séculos passados, convictas de que toda estãlÍê~Scrição era real comoventes imagens da paixão de Cristo, predispondo o fiel às
e"infimã5ientg^maísBranda cíõ-que 3êvpi-"qêr a realidade do fogo
1• do inferno/ Medo, vgavor, lagrimas, pssadélos, ^punhadas de
arrependimento no peito, beijos e abraços apertadoÉ~nos pés do
lágrimas e conversão:

"Um exemplo: quereis cuidar em Cristo atado à coluna,


crucificado, angústias mil constituíam as emoções diárias dos ou qualquer outro passo da Paixão? Considerai quem
praticantes da oração mental. Felizmente, no entretanto, nem padece, que é o Filho de Deus, santíssimo, inocentíssimo,
todos os pontos eram. lúgubres. Cada tema de meditação levava nosso insigne benfeitor, etc. O que padece: açoites, castigo
o devoto a vivenciar, na memória, entendimento e vontade, além de escravos e ladrões, muitos mil e mui cruéis com azorra-
do medo do inferno, a alegria da conversão, o arrependimento gues, cadeias de ferro, varas de espinhos, etc. De quem
padece: das mãos dos homens pecadores, ingratos, algozes,

520
521

li-
vilíssimos e instigados dos demónios, etc. Como padece: danos que se podiam seguir com religiosas que tratam da oração
com grande amor, com. admirável silêncio, com invencível , i» 23
paciência e desejando padecer ainda mais. Para que pade- mental ,
Assim precavendo-se, o z eloso bispo repetia o mesmo lúcido
ce: para nosso remédio e salvação, para serem perdoadas inarnento ^a -j^stra do misticismo, Santa Teresa de Jesus,
nossas culpas, para nos dar exemplo de paciência, etc. A aue âd"já citado Castelo Interior admoestava suas carmelitas:
cada circunstância destas ide exercitando os efeitos a quê
sentirdes movido o coração, como agora: afeto de contrição ,-^."Quero precaver-vos, irmãs, de um perigo: como mulhe-

m• dos pecados ou de compaixão das penas do Senhor ou de


amor da sua bondade ou desejo de fazer penitência, ou
desengano da vaidade do mundo ou louvor de Deus, pelas
res- somos mais fracas. Estamos mais sujeitas. As religio-
sas de fraca compleição, pela muita austeridade, oração
frequente e vigílias, quando têm alguma satisfação espiri-
• mercês que vos tem feito e outros semelhantes.
»22

Introduzida por seu confessor franciscano neste patamar


*_ • tiiãT sujeita-lhes a própria natureza até desfalecerem,
" " cairído no sono espiritual — e aí imaginam que é arrouba-
'" J mento. Quanto a, mim, chamo abobamento. Não é outra
superior da vida ascética, IrmãRosa e suas companheiras, desde * T"coísa senão andar perdendo tempo e arruinando a saúde!
que se recolheram aoParto, passaram apraticar religiosamente, -l. -™ - Ficai atentas: quando sentirdes essas coisas, distraí-vos
duas vezes por dia, a oração mental. Prática, ali ás, prevista nas " coimo puderdes. Dizei-o logo à superiora: tende menos horas
regras de outras casas pias femininas fundadas à mesma época, ' - de oração, dormi e comei bem até recobrar as forças natu-
como o convento das franciscanas da Ajuda, no mesmo Rio de -~ ^- rais. Pode haver algumas tão fracas da cabeça e imagina-
W Janeiro, e o Recolhimento de Nossa Senhora da Glória de Olinda,
que assim determinavam: "às 5:30h da manhã, no coro, após o
- — cão, como tenho conhecido, que vos parece ver tudo quanto

W sinal-da-cruz e adoração do Santíssimo Sacramento, se fará a


imaginam. É grande perigo!"

Í leitura dos pontos de meditação e 1/4 de hora de oração mental".


Vários místicos e escritores sacros alertaram os fiéis para
o perigo que poderia representar esta modalidade devocional em
:___~_ Em vez de seguir os sábios conselhos da doutora da Igreja
_ ..""ftclo zeloso antístite fluminense, o confessor de Rosa, assim como
,. o-cãpelão do recolhimento, não só permitiram as visões, raptos
almas propensas à melancolia, notadamente sendo do sexo e êxtases beatíficos da fundadora e de suas evangelistas, como
frágil. O próprio Dom António do Desterro, na "Regra das Freiras estimulam ao extremo sua imaginação mística, dando-lhes cré-
da Ajuda", determinava que todos os dias houvesse uma hora - dito, papel e tinta para registrarem tudo o que viam ou ouviam
de oração mental em comunidade no coro, meia hora de manhã procedente da corte celeste. Várias vezes encontramos a indica-
e meia hora à tarde — "antes de se principiar se dirá a antífona „ cão no depoimento de Rosa, na Câmara Eclesiástica do Rio de
Veni Sancte Spiritus e a prelada lerá um ponto que possa ser ~~Janeiro e no Tribunal do Santo Ofício de Lisboa, de que fora
matéria de meditação". Ressaltava, porém, o prudente epíscopo: " "exatamente no meio da oração mental que lhe ocorreram muitas
"A oração mental, quanto mais excelente, mais é sujeita de das visões e arrebatamentos místicos. Eis um exemplo: no dia
enganos e ilusões, principalmente em mulheres." E concluía, —de Santa Isabel Rainha, "estando no coro do recolhimento assis-
determinando que nas visitas conventuais se desse notícia aos tindo à oração mental que nesse dia faziam as recolhidas,
prelados sobre "qualquer Espírito particular, revelações, visões, vindo-se o ponto do Juízo Final, para se meditar nele, caiu ela,
êxtases e arrebatamentos ou de outra maneira fora dos comuns depoente, no chão e se viu em um campo comprido... onde estava
caminhos e ordinários, para que o visitador evite os grandes Nossa Senhora da Piedade com Cristo morto nos braços..."
: Noutra ocasião Rosa conta o seguinte:

522 523
il

..
candente "ardor no coração" de que se tem. notícia na história
"Hoje de madrugada, 1a de abril de 1757, estando eu em dos santos:
oração mental, no ponto de quando Pilatos mostrou o
Senhor ao povo e o povo clamou que morresse Jesus e "Viu a presença de um anjo que parecia estar de pé, em
ficasse Barrabás, disse-me logo uma voz: 'escutai e consi- chamas, e viu nas mãos do anjo um dardo de ouro: pare-
derai que os homens na minha paixão pediram que mor- "cia-me que na ponta de ferro havia um pouco de fogo. Tive
resse a virtude e vivesse o pecado [...] e ainda hoje no __ a impressão de que me transpassava algumas vezes com o
mundo, os que me ofendem são favorecidos e os que me ; dardo o coração até o mais íntimo e, quando o tirava,
má seguem são aborrecidos, aniquilados e perseguidos'." parecia-me estar arrancando também está parte íntima do
coração- E quando me deixava, sentia-me inteiramente
Como. se nota, em ambos os "pontos" enfatizavam-se situa- inflamada de ardente amor de Deus. A dor dessa ferida era
ções trágicas, a injusta condenação do Rei dos Reis e o Juízo ~ tão intensa que me arrancava os mencionados gemidos e
Final, cuja meditação favorecia fortes emoções propiciadoras de queixas, mas também o enlevo que essa dor indizível
M í arrebatamentos e outras manifestações místico-patológicas. '^produzia era tão efusivo que não me era possível ficar livre
Também aqui não se admire o leitor de estar nossa ener- dele; riem me podia contentar com algo que não fosse menos
,,26'
gúmena fazendo sua oração mental "de madrugada". Santa
111 Teresa'tinha o costume de despachar suas cartas entre 2 e 3
_- quê Deus!'

horas da manhã, a mesma hora em que, nos conventos e mos- „ - Tal fenómeno místico, a transverberação do coração, é
teiros, religiosos de ambos os sexos se dirigiam ao coro pararezar considerado uma das experiências espirituais mais grandiosas
as Matinas. de todos os tempos, e somente experimentada por poucos
Eis como outra beata, também orientada dos franciscanos privilegiados no período barroco.
e igualmente processada pela Inquisição, Luiza de Jesus, 43 __Outra beata, também seguidora da mística fransciscana,
-a.... anos, portuguesa, um século antes de Rosa, descreve as sensa- ~Micaela de Jesus Sacramentado, 27 anos, moradora em Lisboa
ções auferidas durante estes voos místicos: .^e, igualmente encarcerada pela Santa Inquisição, quando se
dedicava aos exercícios de lausperene e oração mental sentia
"Na oração mental, usava por muitos anos dos graus de que. .
meditação e contemplação, começando por /meditar em
algum passo da paixão de Cristo. Aí me suspendia de modo "o Espírito de Cristo lhe dava um beijo e se unia a ela
que não dava pé dos sentidos, nem discursava, antes ficava coxppralmente, sentindo esta união em todas as partes do
todo o entendimento todo absorto em Deus e sem ato algum r-corpo, Outra vez, fazendo oração mental, apareceu-lhe
f ? de vontade. E outras vezes, sentia uns ardores no coração Jesus vestido de roxo, cabelo comprido e anéis na mão, e o
iii JK
como que desejava que Deus fosse muito amado de todos e sentiu em cima de si, como marido e mulher, por espaço de
também .algumas vezas ficava como fora de mim e se me __um Credo [30 segundos], sentindo que o Senhor a magoava
28
representava que era levada para.partes remotas e se me em suas partes pudendas"...
f! fí mostravam as desordens em falta de fé, martírios de
santos, etc. • . • • • . . - . Madre Egipcíaca não chegou a tamanha intimidade cora o
i ']
Divino Esposo: para a ex-prostituta, calejada na devassidão, as
Santa Teresa d'Avila foi quem sentiu o mais dolorido e uniões carnais simbolizavam o pecado e sua antiga vida mun-

524 525
dana. Daí ter optado por visões mais inocentes e até maternais: eja própria, campeã de arrebatamentos místicos, levitações,
em vez de copular com Cristo, como várias beatas disseram tê-lo transverberação, etc., diagnosticada hoje como portadora da
feito, Rosa aconchegou-o inocentemente em seu colo, dando-lhe histeria aguda —,29 "a melancolia forma e fabrica suas fantas-
de mamar em suas negras tetas. magorias na imaginação. Pode haver algumas religiosas tão
Além da fundadora, outras recolhidas do Parto declararam fracas de cabeça e imaginação, como tenho conhecido, que lhes
perante o comissário do Santo Ofício do Rio de Janeiro, no meio parece ver tudo quanto imaginam...' Era questão de repetir-
de seus depoimentos, que também alçavam voos místicos quando mos o ditado citado por Jesus no Evangelho: "Médico, cura-te a
a comunidade se reunia para a prática da oração mental. Irmã tijnesmo!" Uma histérica diagnosticando melancólicas...
Ana do Coração de Maria, a evangelista predileta de Rosa, Anos depois de suas visões, Madre Egipçíaca, ao ser insti-
contou que certo dia, nos finais de março de 1756, fazendo oração "gada pelos inquisidores para que declarasse "o fingimento de
mental, ' .sua afetada virtude e visões celestiais", repetia convicta, sem
"titubear,- que "nunca fingiu os sucessos referidos e que contou
"viu aparecer em cima do altar o Menino Jesus e, querendo toda a verdade". De fato, parafraseando a reformadora do Car-
ela meditar no ponto que se tinha lido, que era o da Paixão, ~ íriéícvriossa biografada acreditava piamente ter visto e ouvido
se viu posta em Juízo pedindo-lhe o Senhor conta do horror as revelações queimaginaraemseubarrocobestunto, damesma
de suas culpas e dos grandes benefícios que lhe tinha feito. ' "forma como as mães, filhas de santo e "cavalos" dos terreiros de
E, acabada esta presença do Juízo, tornava a ver o Menino Candomblé e Umbanda garantem e juram com toda a honesti-
em o mesmo lugar, chamando por Rosa". - dade que-não se lembram de nada que obraram quando incor-
poradas pelos orixás ou encantados. Fenómenos que a psicaná-
Também a portuguesinha, Irmã Teresa de Jesus, 25 anos, lise ou aparapsicologia explicam sem necessidade de apelarpara
nos quatro anos que viveu no Parto, praticou a oração contem- eflúvios sobrenaturais ou possessões demoníacas ou divinais.
plativa, e foi através dela que encontrou o caminho para o ,_ _ -_Não deixam de nos fazer refletir as palavras de Nina
convívio com o preternatural: L~ ^Rodrigues, um dos precursores dos estudos africanistas no
. Brasil. Ensina o mestre:
"Sobretudo quando eu fazia oração mental, comecei a --* x -* " " "••'•••
ter algumas locuçúões, sempre aparecendo vozes que me .- "Sou levado a acreditar que os oráculos fetichistas ou
diziam as virtudes de Rosa, inclusive apareceu-me Santa ~ „ - possessão de santo não são mais do que estados de sonam-
Teresa confirmando que lhe desse crédito, sem poder pen- bulismo provocado, com desdobramento e substituição de
sar noutra coisa senão na santidade de Rosa, de modo que • .personalidades. Banhos, fumigações, ingestão de substân-
na oração mental, após a leitura do ponto que se devia -""", .~cias~ dotadas de virtudes especiais, jejuns prolongados,
meditar, me esquecia deste totalmente e todo o tempo de_; " -- .abstinência sexual, mortificações diversas, etc., são meios
meditação se me representava no entendimento Rosa... de que se socorrem sempre os feiticeiros de todos os tempos.
cercada.de luzes e coroada pelos anjos." , JDas mais poderosas pode-se considerar neste particular a
influência da dança. E a música que provoca o estado de
Tinham razão os diretores espirituais mais lúcidos em .. santo."31 .
advertir sobre os perigos da oração mental nas almas melancó-
licas e nos corpos mal alimentados, sobretudo entre mulheres Tão real e íntima era a relação de nossa "espiritada" com
enclausuradas e com voto de castidade. Como dizia Santa Teresa Jesus, que não titubeia em tratá-lo como se fosse seu consorte.

526 527
•S'l
•'•f'
M'••;? i
Eis suas palavras registradas num manuscrito de 24 de novem- • '-^julgava de fato escolhi,da pelos céus para ser a nova redentora
bro de 1760:
Hb género humano.
r .^; f -«Enfim, como ela própria dizia, eu j á não posso mais dizer,
"Meu querido Esposo de minha alma: pelo vosso divino Jíiois^ò entendimento humano é fraco e não pode compreender as
decreto tenho chegado naquela era, muito certa e lembrada ; grandezas de Deus. Quem mais padece, mais merece — e antes
estou de vos ver no Santíssimo Sacramento [onde] eu vi morrer que tornar atrás!"
cantar aquele hino do Divino Esposório, que louvores vos
daremos, dia e noite, sempre. Bem conheço que para vós
não são necessárias letras de mão, mas só sim, porque é
costume entre os namorados cartear-se uns com os outros Notas
com afago de amor, e não sabendo eu como vos agradar,
acudiram-me no entendimento estes versos, mas cheia de
desconfiança acudiu-me Nossa Senhora da Penha da Fran- gi;~ Santana, Frei José Pereira.' Vida da Insigne Mestra de Espírito, a
ça, dizendo que vós viestes ao mundo buscar os pecadores ',:,:. Virtuosa Madre Maria Perpétua da Luz, Religiosa Carmelita Cal-
e dar vista aos cegos, e eu como me vejo e me conheço como :~f cada. Lisboa: Oficina de António Pedroso, 1742, p. 253. O
a maior cega do mundo—porque mais cego é quem conhece »2; ANTT, Real Mesa Censória, Documento nQ 6.455.
a razão e não a admite— agora com dor do meu coração já -3-Imirizaldu, Jesus. Op. cit., 1977, p. 108.
me volto para vós, contrita e arrependida, pois sou a maior ^4. Cavazzi de Montecuccolo, J. A. Op. cit., 1965, v, II, p. 134.
;.5.. Cacciatore, Olga G. Op. cit., 1977, p. 179.
*
de todos os pecadores do mundo..."
-;,6. Boschi, C. C. Op. cit., 1986, p. 187.
7. Morais Filho, Melo. Os Ciganos no Brasil. São Paulo: Editora da
Rosa, em seusv escritos e conduta, manifesta flagrante
Universidade de São Paulo, 1981, p. 39.
!-SJ;ã- i .U.-.
contradição: por um lado, revela imaginário ultragrandiloqúen- |s§sS^íÀM?8;-Arquivo da Cúria do Rio de Janeiro, Registro de Portarias, Livro II
;iÍJ4 w i».
te e megalomaníaco, chegando Jxãa..js.ó_a .proclamar-se, mãe, •2-i--.-(3-11-1759); Carmo, Henrique: "Recordações e Aspectos do Culto de
esposa e ama-de-leite de Jesus, mas irá além, proferindo blas- s~— Santana", Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro,
fémia máxima ao declarar: "Eu sou Deus!" De outro lado, às 1932, pp. 433-463.
vezes, a ex-escrava assume humildade total, verdadeiro aniqui- . = 9. Leite, Serafim. Op. cit,, 1943; ANTT, Inquisição de Lisboa, Processo
lamento, afirmando continuar escrava, ínfima criatura. Onde ^--n 9 8.064 (1760).
estaria a verdade: quando se pretende "a maior santa do céu" 10. Bilac, Olavo (apud). "Triunfo Eucarístico", in Crónicas e Novelas,
ou como "a maior de todos os-pecadores do mundo"? Certamente ~1. Rio de Janeiro, 1894.
Rosa não ocupa nenhum destes extremos, pois a hagiografia 111. Hoornaert, Eduardo. Op. cit., 1977, pp. 370 e ss.
registra inúmeros santos que foram muito mais virtuosos e 12. Granada, Frei Luiz. Libro da Ia OraciónyMeditaciôn. Salamanca,
1554; Guia de Pecadores, Lisboa, 1556; Castelo Branco, Camilo. A
poderosos que ela, assim como pecadores muito mais diabólicos.
aui Freira que Fazia Chagas. Lisboa: Livraria Editora, 1904; ANTT,
Mesmo que, ao declarar-se~a~i'supersanta" dos céus,-estivesse Inquisição dê Lisboa, Processo na 11.894 (1588).
sob efeito de transe místico, proferindo palavras que em estado 13. D'Avila, Teresa. Obras Completas, 1970, p. 483.
normal evitaria, por revelarem orgulho, temeridade e heresia, 14. Conceição, Frei Francisco. Diretor Instruído. Coimbra: Real Im-
podemos perfeitamente responsabilizá-lapelos devaneios de seu prensa da Universidade, 1789, Tratado II: "Da Oração e suas
inconsciente megalomaníaco, reflexo de que, no seu íntimo, ela Partes".
15. Bernardes, Padre Manoel. Pão Partido em Pequeninos para os

528 529 *

0
Pequeninos da Casa de Deus (1694), Porto: Editor Domingos Bar- 21
reira, 1940, pp. 107-113. Alguns teólogos e confessores desteperíodo
desaconselhavam a prática da oração mental fora dos conventos,
Rituais de Adoração
m
w
para evitar alucinações e falsas visões. Cf.Boxer, C.R. Op. cit., 1977,
p. 124; Silva Dias, J. S. Correntes do Sentimento Religioso em
Portugal, Séculos XVI aXVIII. Lisboa, 1960.
16. Arquivo da Cúria do Rio de Janeiro, Registro de Portarias, Livro I
(12-8-1748). Segundo depoimentos de várias testemunhas que convive-
17. Arquivo da Cúria de Mariana, Livro do Tombo de São Caetano
(S-21), (17-3-1754).
ram com a ex-meretriz do Infíccionado, sobretudo quando Lúci-
18. Couto, Padre Manoel G. Op. cit., 1884, pp. 330-335. fer,-os~sete demónios ou, simplesmente, o "Afecto" dominavam
i*
st
19. Bernardes, Padre Manoel. Op. cit. (1694), 1940, p. 110.
20. Vila Castin, Padre Tomás. Manual dos Exercícios Espirituais para
o corpo desta infeliz energúmena, suas reacões, caretas e momi-
ces, acompanhadas de respiração arquejante ou palavras caver-
Ter Oração Mental em Todo o Decurso do Ano, Lisboa: Oficina nosas, provocavam grande temor nos circunstantes, assustados
António Pedroso Gabram, 1712, p. 68. . . ~ com a presença sensível de Satanás tão perto de si. O primeiro
21. Couto, Padre Manoel G. Op. cit., 1884, pp. 330-335. sentimento, portanto, que Rosa provocou nos circunstantes foi
22. Bernardes, Padre Manoel. Op. cit. (1694) — 1940, pp. 110 e ss. de santo temor perante o poder das forças infernais, que só se
23. Arquivo da Cúria do Rio de Janeiro, Registro de Portarias, Livro I, acalmavam sob a ação dos preceitos, bênção e água benta dos
fl. 22 (1750-1751). exorcistas—notadamente de seu "xota-diabos" privativo, Padre
24. DÁvila, Teresa. Op. cit., 1981, p. 95. Francisco Gonçalves Lopes. O temor perante o mistério da
25. Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Inquisição de Lisboa, Pro- possessão diabólica cedeu lugar, em muitos fiéis, a sentimentos
cesso na 4.564 (Auto-de-Fé de 15-12-1647).
mais positivos: alguns devotos revelaram possuir pena e com-
26. Nigg, Walter. Op. cit., 1985, p. 45.
27. Lorenzatto, J. 1979: 39; Garrigou-Lagrange. Op. cit., 1938, pp. 781 paixão da pobre africana, prisioneira impotente, como Maria
•- - e ss. .• • • _ • • •_ -IMadalena, de espíritos tão cruéis, que a jogavam no chão,
28.ANTT, Inquisição de"Lisboa, Processo na 7.896 (Auto-de-Fé de . Afaziam-na sofrer tantas atribulações físicas e espirituais, enfu-
14-10-1744). '• . . recendo-se como se fosse louca furiosa ao ser possuída pelo
29. Nigg, Walter. Op. cit.-. 1985, p, 38. "Espírito Zelador dos Templos", avançando contra os fiéis irre-
30. D'Avila, Teresa. Op. cit., 1981, p. 147. -—verentes, retirando-os à força das igrejas quando supunha esta-
31. Rodrigues, Nina. Op. cit., s.d., p. 109. rem comungando em estado pecaminoso. Pena e compaixão
foram também os sentimentos dos devotos que presenciaram ou
IJ. ^fcwsssuwr "tiveram notícia dos grandes sofrimentos e dores a que a negra
:í '"! ' espiritada foi submetida nos quinze anos posteriores à sua
conversão: os cruéis açoites no pelourinho de Mariana, sua
injusta expulsão do recolhimento que recém-fundara, o trata-
t mento humilhante e os insultos recebidos por parte de quantos
julgavam-na embusteira e mistificadora. Não era à toa que seu
capelão costumava dizer que Rosa sofrera tanto quanto Nosso
Senhor Jesus Cristo em sua paixão e muito mais do que vários
santos beneficiados com a glória dos altares.

f 530 531
1
Além de temor e compaixão, outro sentimento inspirado
pela Egipcíaca em muitos que privaram de sua convivência foi hábito nas casas reli gtosas, as ladainhas faziam-parte integrante
o de respeitosa devoção: tanto seu exorcista quanto outros do devocionário das recolhidas do Parto que, apartir do regresso •
sacerdotes que conviveram com Rosa atestavam que ela era da fundadora ao "sacro colégio", após sua expulsão em 1759,
pessoa virtuosa, verdadeira "serva de Deus". Mais ainda: "uma • passaram-a incluir, no final da Ladainha de Todos os Santos, o
nome Ha africana: "Santa Rosa, ora pró nobisl"

santa tão grande, que, depois da Sagrada Família, não havia
outra tão santa quanto ela". E o máximo da louvação: "A maior
santa do céu!"
De todas as litanias, a mais conhecida e praticada, já
; Dissemos, é a dedicada a Nossa Senhora, saudada com preciosos
*
" e alguns não menos curiosos títulos, geralmente extraídos da
Abem-aventuranca excepcional de Rosa, conforme já rela-
tamos, devia-se a uma constelação de dons com que a Divina sagrada escritura, a saber: "Espelho de Justiça, Sede da Sabe-
Providência lhe agraciara, entre eles: trazer em seu peito o dõríãpVasõ Espiritual, Rosa Mística, Torre de Davi, Torre de l
próprio coração de Jesus, ter recebido as chagas de São Francisco - Marfim, Casa de Ouro, Arca da Aliança, Porta do Céu, Estrela/
e a coroa de espinhos do Crucificado, possuir o dom da profecia . da Manhã", etc.
São João Evangelista, o mais dileto discípulo de Jesus,
e de mandar para o céu as almas do purgatório, conceder
indulgências a granela quantos beijassem-lhe a carapinha, também mereceu graciosa litania retirada dos títulos que vários
curar os enfermos, etc., etc. O maior dos dons, todavia, era o de doutores da Igreja lhe atribuíram: "Boca de Deus, Língua do
Espírito Santo, Luz da Igreja, Formosura dos Anjos, Pedra Viva,
Ij ter morrido, ido a julgamento e ter ressuscitado, ganhando como
missão salvífíca tornar-se a nova redentora do género humano.
Espelho da Luz, Arquiteto do Verdadeiro Tabernáculo, Cedro do

ly Para tornar ainda mais públicas e reconhecidas virtudes


tão portentosas, além do culto que muitos fiéis lhe prestavam,
Paraíso, Coluna do Céu, Esmeralda da Pureza, Amianto no Fogo,
Raio do Céu, Secretário do Verbo Eterno", etc. O autor deste
florilégio foi nosso já conhecido Frei Jerônimo de Belém, OFM,
•M !..
beijando-lhe as mãos e pés, de joelhos, conservando respeitosa-
quem primeiro em Portugal escreveu sobre o Coração de Jesus, e
11" mente suas relíquias, etc., três elementos novos foram incorpo-
encontrando-se tal ladainha em seu livrinho, já citado, de 1731.
SfcÉ
:•''*} •;••!-;
rados pelas recolhidas e capelão à liturgia ein louvor da madre
"Santo António, o mais querido santinho de nossos ances- 0
fundadora: sua ladainha de títulos, alguns hinos laudatórios e
fí " "trais, igualmente mereceu delicada litania, cuja transcrição,
II seu quadro votivo. É sobre cada um destes itens que nos ocupa-
remos a seguir. • .
Data dos primórdios do cristianismo a prática das ladai-
assim como a de São João, tem como escopo fornecer ao leitor
-- parâmetros para aquilatar a grandiosidade dos títulos que as
recolhidas e o capelão atribuíram à "Flor do Rio de Janeiro", a
/ nhãs ou litanias, um tipo de oração constituída por uma longa
lJ
í» 'T
} série de curtas invocações recitadas ou cantadas em honra de maior santa do céu.
Ladainha de Santo António, extraída do Sermão do Glo-
Jesus, de Maria Santíssima ou dos santos. A mais famosa das
litanias, a Ladainha de Nossa Senhora, assim como a dedicada
rioso Lusitano, Pregado no seu Convento e Mesmo Dia na Cidade
ao Santíssimo Nome de Jesus, já estavam consolidadas desde o
do Rio de Janeiro, a 13 de Junho de 1674, Recitado por Frei
século XV e, para evitar a proliferação incontrolada deste mo- Agostinho da Conceição, OFM, Lente:
"Filho de Serafim, Gadelha de Portugal, Luz da Itália,
dismo devocional, em 1601 o Santo Ofício romano proibiu a
invenção de novas litanias, ratificando o interdito em 1727. Glória de Pádua, Resplendor da França, Admiração da Espa-
nha, Arca do Testamento, Martelo dos Hereges, Trono de
Rezadas diariamente pelos fiéis mais devotos e nas ceri-
Deus, Maravilha dos Anjos, Assombro do Inferno, Sol de Todo
mónias públicas, como na Bênção do Santíssimo e na tomada de
o Mundo."1 - -
m
532
*
533
Madre Rosa Egípcíaca merecem 24 títulos laudatórios —- 5"g: cofre da própria divindade. Outros encómios declaram-na
alguns inspirados em outras litanias, outros inventados por seus ••rprédileta do Divino Esposo: sua menina dos olhos, sua rosa,
devotos, vários refletindo o imaginário pueril e barroco daquelas •enfeite e colar. Alguns títulos salientam a grandiosidade de seu
negras e mulatas imitadoras de Santa Maria de Magdala. Eis, Tipoder junto aos mortos, pecadores e bem-aventurados, dado o

portanto, os títulos atribuídos a Santa Rosa Maria Egipcíaca da |ápâientesco que tinha com a Santíssima Trindade e a sagrada
Vera Cruz, "a maior santa do céu": ••ífaínília. Irmã Justina, a recolhida que lembrou-se perante o
Comissário inquisitorial do maior número destes títulos honorí-
'Menina dos olhos de Cristo 2;:f|cos/ informou ter sido divulgado por Rosa "que o Senhor lhe
m Teatro do amor divino i.vtinha dito que era sua mãe, que o tinha concebido por amor e

l*
M
Arca do Testamento Novo e Velho
Nau da divindade
Irmã consorte de Nossa Senhora
vSquè:S"eria a redentora do mundo". O sangue de Cristo, portanto,
i^ão^tinha mais força bastante para lavar os muitos pecados que
^-íse"córaetiam nas Minas e no litoral: caberia à Santa Egipcíaca,
Filha de Santana í Séomo'segunda Judith (a antiga heroína que cortara a cabeça do
Breve e arca do Pai Eterno . .• x-Seneral de Nabucodonosor), decepar agora a cabeça do dragão
Relicário do peito de Deus Filho jSjjjifernal, destruindo para sempre o mal do Reino de Deus.
Verdadeiro transauto [?] de Cristo Í3ÍCV^7 Além desta rica coleção de títulos honoríficos, alguns hinos
Arca é cofre de Santíssima Trindade 7 fòíam inventados pelas recolhidasireafirm.ando,didaticam.ente,
Judith gloriosa que haverá de cortar a cabeça do dragão infernal Syasnvirtudes superiores djLJsant.a—fundadora. Eram conhecidos
Carta de guia de todas as almas para a Santíssima Trindade r-:»t'ai;s-hinos não só no recolhimento, mas também nas Minas, pois
Chave de ouro no peito de Nosso Senhor ^ ;fórêntfê' os papéis da fãmíEã~Arvelos_que-jencontram.os esses
L Mãe de Nosso Senhor Jesus Cristo -"manuscritos^ _f
'.-iki, O primeiro hino, segundo Rosa, fora composto por Irmã
Rosa do peito do Rei Salvador
Intercessora dos pecadores __ 4j:2Éâçinta Arvelos, "que ensinou-lhe o Divino Menino Jesus da
Símbolo da obediência iSÈÕrciúncula que na ocasião desta revelação passou a chamar à
Colar no pescoço de! Jesus ', í-noviça de "Vaso da Contrição' para curar as suas irmãs mais
Jóia de seu peito \m florido das convertidas ^velhas". Eis suas estrofes, cujos pés quebrados e assimetria
ií"í • i-,v
15 ipoética sugerem ou que o Menino Jesus não era muito bom na
Paraíso dos bem-aventurados l;Í-.métrica, ou que Jacinta psicografava sofrivelmente...
Rainha dos vivos ,. „,
Juíza dos mortos . . - Cheguemos a nossa Mãe
Embargo dos descrentes'; Cheguemos com devoção
Pois nela está encerrada
E muitos outros .títulos ..que. não me lembro e que Deus e Toda a nossa salvação.
Nossa Senhora deram a Rosa por mimo...", informa Irmã Justina
Arvelos. Vitória demos a nossa boa fortuna
Vários destes títulos lembram, simbolicamente, a troca que Porque tivemos a dita
H 15:
a beata fez de seu coração, que foi para o céu, com o de Jesus, Que Rosa. fosse mãe
vivo no seu peito, daí ser referida como arca, nau, relicário, breve De tão pecadoras filhas,

534 535
lha Mestra", demonstrando a veneração que toda sua colmeia
O amor de Rosa é tão firme de convertidas deviaprestar à capita deste sodalício. Numa visão
Porque nem um só instante sucedida quase às vésperas da prisão de Rosa pelo Santo Ofício,
Dela se retira o próprio Senhor Jesus assim lhe revelara: "Tu serás a Abelha
Nem se pode retirar Mestra recolhida no cortiço do amor; fabricarás doce favo de mel
Aquele amante divino para pores na mesa dos celestiais banqueteados, para o sustento
Porque todo o seu empenho e alimento dos seus amigos e convidados."
É abrasado de contínuo. O segundo hino, encontrado entre os papeis e cartas que

i Quem seguir a minha Mãe


De todo o seu coração
Bem pode ter esperança
os Arvelos entregaram à Inquisição, quando da prisão de sua
ex-mãe espiritual, teve como autora, segundo atribuição da
- madre; a filha mais nova deste casal, Irmã Francisca Tomásia
do Sacramento, "que teve a dita de o Senhor lhe dar o título de
f T Da sua salvação.
l!; Safira da Contrição para, com o fragrante cheiro desta angélica
a &
•iffil :"K
Rosa ê flor fragrante "Sor, suavizar os entendimentos dos pecadores errados na culpa
- para que venham à contrição".
Do peito de seu amante A poesia e rima são de melhor qualidade que o hino
l Quem a amar com firmeza O
Achará a contrição. anterior, retomando algumas imagens já utilizadas na "Ladai-
-nha de Santa Rosa". Tente o leitor relembrar-se de alguma
Rosa é palma ditosa - melodia sacra, das que aprendemos na infância, e, em vez de
i
i];) De eterno Rei sem fim ler, cantarole estes versinhos da mesma forma como o faziam
Quem a seguir com veras - as recolhidas aos pés de Madre Egipcíaca.
A terá naquele último dia Minha mãe, seu coração o
•g ••;;
Por sua-grande valia. Arde em chama abrasado
Por estar sempre unido
m
Jesus ê cravo A Jesus sacramentado.
Rosa é a flor do seu amor
Cheguemos todos a ela Espírito Santo Divino
Pois que somos abelhinhas Dai-me luz para tirar
Chupemos o mel da flor. Cantigas à vossa serva
Para mais a exaltar.
Algumas imagens utilizadas nestes versos já apareceram
na "ladainha", outras, como a do mel e das abelhinhas, faziam Minha mãe, seu coração
parte _dg_imaginário católico da época: São Vicente de Paula É cofre de amor divino
'PI '.í-'
aconselhava sua filha espiritual, Santa Luiza de M.arillac, "a Secretária de Maria
ff
•iijj -í
imitar a abelha que compõe o seu mel tanto com o orvalho que
cai sobre o absinto, como com aquele que cai sobre a rosa". O
Rosa de Jesus Menino.

11
It
próprio Padre Xota-Diabos referia-se à Madre Rosa como "Abe-

536 537
Rosa, oráculo dos justos divindade, sede minha intercessão e advogada agora, sempre e
Tesouro da contrição na hora de minha morte, amém!"
Pureza é que veio ao mundo Esta outra oração, enviada por Rosa a seus amigos de São
Esta nova redenção. João dei Rei, foi recebida diretamente dos céus, no dia dos
Desponsórios de São José, e, embora se inicie louvando a Sagrada
Minha mãe tem em seu peito Família, finaliza prestando culto à ex-meretriz do Inficcionado:
A divina majestade
Porque é esposa amada "Virgem Santíssima, mãe de obediência e humildade,
Da Santíssima Trindade.. esposa castíssima de José santíssimo, vinde, senhora mi-
- nhã, muito amada, e valei-me nesta tribulação em que me
Minha mãe é céu brilhante _ - vejo, pois a vós me encosto para não cair, como fraca que

l
L, -OÍÍ*.


Da Santíssima Trindade
Cofre do amor divino
Tesouro da divindade.

Pecadores, chegai todos


«sou. Vós, Senhora, sois grande mestra da obediência e da
- humildade, infundi-me na minha alma e no meu coração
—- uma obediência cega e humildade sincera. Meu Deus, eu
„ , vos ofereço o coração, a obediência e humildade de Rosa
_- Maria Egipcíaca da Vera Cruz, por dita e valia de minha
Ao colégio de Jesus contrição;"
Que nele tereis entrada
.é Por Rosa da Vera Cruz. Com o correr dos anos, contudo, arquitetaram o capelão e
as recolhidas mais íntimas outro sacramental a fim de cultuar
Ai Deus, Deus de minha alma ainda mais a "Esposa da Santíssima Trindade": consideraram
tlesus do meu coração que não bastava proclamar verbalmente as qualidades preter-
Quero-vos amar, meu Deus, Jjiaturais da "Flor do Rio de Janeiro", pois a prece ou o canto só
Dai-me dor e contrição: ~têm a duração do momento. Urgia que um símbolo visível a todo
\ se quereis saber tempo perpetuasse nos olhos dos devotos a imagem de Rosa da
Vera Cruz. E, como os hebreus no deserto, as recolhidas não
A quem desprezais vós tanto "^resistem à tentação da idolatria do Bezerro de Ouro.
A Rosa da Vera Cruz . — Segundo depoimento das recolhidas, fora Irmã Ana do
Que vos cobre com seu manto. •Coração deMaria, adiletaAnaBela, quem teve aidéia, durante
__"a oração mental, demandar desenhar o retrato de Rosa para
Além das ladainhas e hinos laudatórios, algumas orações servir à veneração da comunidade. Não tendo capacidade para
também circularam no recolhimento e entre seus principais tanto, ordênõu~a~Irrnã~Faus'tínã que fizesse um debuxo da
devotos, sempre tendo "a maior santa do céu" como protagonista. fundadora, respondendo aj ovem freirinha que "não sabiase teria
i
5"^" Esta prece foi escrita pela Regente Maria Teresa e lida no coro,
na presença do capelão:
•habilidade para tanto, mas que, por obediência, o faria". Pelo
visto, Faustina, além de boa caligrafia e verve poética, tinha
• "Deus vos salve, Rosa Santa, esposa de Deus amada, pois dons artísticos, tanto que o capelão levou seu "desenho em tinta
l em vós está o Divino Sol sacramentado; trono dessa mesma preta" para sua casa, adjunta ao recolhimento, mostrando-o a
alguns fiéis, inclusive ao Sr. Arvelos, o qual resolveu, ou foi

538 539
levado a, não sabemos ao certo, patrocinar um quadro mais
sofisticado e caro de sua mãe espiritual. Ele próprio comprou aparecia no fundo do painel: São Miguel Arcanjo, com uma cruz
certa quantidade de cobre e 'levou à casa de um ourives para o na "mão direita e uma coroa de flores na esquerda, coroava a
polir e pôr em termos de ser pintado, mas não sabe quem foi o santa negra.
pintor que pintou o painel". Teria sido, quiçá, João de Souza, ou Como se deduz, neste quadro de Santa Rosa Egipcíaca
seu aluno, o pintor Leandro Joaquim, ou o mesmo que assinou ~ ~foram reunidos diversos símbolos identificadores de outros san-
as telas de Nossa Senhora da Boa Morte e o incêndio e restau- tos, querenlio-se'^Bam'TepTeseri±aT-a~sUp'eTiõTMMê~aT'madre
ração do Recolhimento do Parto? - fundadora vis-à-vis aos demais: sincfêtiSEõTão rico jamais fora
Lastimavelmente, quando Rosa foi pre^a^ojjuadrp pintado - vist5~êf£routra-repre"S"entação hagiológica. O hábito é o mesmo
sobrercoÍbrè, CG^^^^m~mísferio, desapareceu. Ninguém soube dos capuchos e clarissas; o cordão igual ao da ordem seráfica
explicar-lhe o paradeiro, por mais que os inquisidores insistis- franciscaha; a pena de mestra a identifica com a doutora Santa
sem em sua apreensão e envio para Lisboa. Ou foi muito bem Teresa; o rosário simboliza a ordem de São Domingos, que com
escondido, ou destruído. Talvez ainda exista, sem. identificação, e"sta devoção mariana dominou a heresia; a correia na cintura é
__ igual à usada por Santa Rita de Cássia, da ordem agostiniana;
II nalguma igreja antiga, venerado como se fosse Santa Efigênia,
ou faça parte da coleção de algum antiquário daqui ou dalém-
mar. Qualquer pista sobre seu paradeiro será eternamente
~~ õ Menino Jesus no colo, mais que imitação de Santo António,
certamente identificaria Rosa com a própria Mãe de Deus, a e
a agradecida pelo autor destas linhas.

Desapareceu o painel, mas sua lembrança conservou-se


- primeira a ter nos braços o Divino Infante; a corrente de ouro a
resgatar uma alma do purgatório talvez representasse a ordem o
indelével e com todos os detalhes na mente dos devotos. Aquela de~Nossa Senhora das Mercês, também chamada "do Resgate",
especiosa pintura era verdadeiro catecismo no qual Santa Rosa cujo carisma era libertar os cristãos das mãos dos infiéis; as *
Maria Egipcíaca da Vera Cruz era mostrada com todos os chagas podem evocar os estigmas do próprio Cristo ou de São
Francisco, e a coroa de espinhos novamente pode ser ou a de

11 atributos da santidade, cheia de símbolos e mistérios identifica-
H*1
"
l-'*-

.
dores de sua santidade. Eis^gõmõ a autõrjrdjjxrimeiro rascunho . Jesus ou a que sua patrona, Rosa de Lima, costumava usar para
—.macerar sua cabeça. Finalmente, São Miguel Arcanjo, "de quem
*
o
em-tinta~pretã, Irmã Fãústihã,'descreveu-o: ITíêtrato de Rosa
Rosa era muito devota", aparece tanto era figura, num segundo
li ;è; era7umirTâm'in'a~q^ culSrTrEJHtada'"1 "semelhante aos ex-votos
setecentistas que ainda hoje se conservam nos museus. Suspen- plano, cobrindo sua cabeça com uma "capela de flores", quanto
S *' • _jsimbolizado pelo pé estigmatizado de Madre Egipcíaca a esma-
sa no ar, Rosa tinha debaixo dos pés a boca do inferno, com dois
demónios, Lúcifer e Satanás, entre as chamas do fogo. Do braço - gar a cabeça de um hediondo diabo cercado por um turbilhão de
esquerdo de Rosa pendia uma alma presa a uma corrente chamas infernais, imagem que costuma representar o vencedor
dourada. Tinha um pé sobre a cabeça de um dos diabos e o outro deLuzbel. •
,;-í' mostrava-se preso no rosário que pendia de sua cintura, trazen- ~"~ Recebido o quadro das mãos do pintor, encarregou-se o
do do lado oposto o cordão de São Francisco e a correia de Santo capelão de entronizá-lo no altar da capela interna do recolhi-
Agostinho a cingir-lhe a cintura. Mostrava as chagas nas mãos, mento, no coro. Afinal, como ensina o Evangelho, uma candeia
pés e testa. A mão direita tinha o Menino Jesus encostado no —não deve ser escondida debaixo da cama, mas brilhar no alto
%' seu peito e, à esquerda, uma pena entre os dedos. Vestia hábito para iluminar toda a casa. Reunida a comunidade, rezaram a
*••*?• fránciscano e na testa trazia uma coroa de espinhos. -Ladainha de Nossa Senhora diante do painel e, no momento em
Além de toda estaparafernãliareligiosa, importante figura que se recitava "Santa Maria, ora pró nobis", a evangelista Ana
do Coração de Maria [a idealizadora desta nova devoção] entoou:
l •
540
541
! !*;
'"Santa Rosa Maria Egipcíaca da Vera Cruz, ora pró nobis'.—. •"- gnuelaalraaprecipitada era a dela, AnaBela, equeasmais
ao que o Padre Francisco repetiu três vezes, e Rosa neste tempo vezes que passava pelo retrato lhe inclinava a cabeça".
se voltou para a comunidade com os braços abertos, levando
depois o quadro para seu cubículo." A africana devia estar Disse ainda que, frequentemente, por ordem da própria
radiante de alegria! Tlretratada, ou do capelão, o painel era colocado no altar do coro,
Além de servir como objeto de adoração-devoção, aliás "mandando que o adorassem". Do mesmo modo, quando trove-
proibidíssima pela Igreja e perseguida pelo Santo Ofício, pois só íâva forte ou quando alguma das evangelistas ficava endemo-
os santos oficialmente canonizados por Roma eram merecedores — "-".jjfa^ia, outra evangelista corria a pegar o retrato, mais uma saia,
de ser estampados e venerados, o painel de Rosa desempenhava "relíquia de Rosa, e somente assim acalmava-se a vexação.
função didática nesta sociedade tão pobre de gravuras e símbolos líoutra ocasião, o Padre Francisco colocara o tal retrato no altar
iconográficos. Não apenas a fundadora, como também o capelão . --.-de,Santo António, do recolhimento, com o mesmo objetivo:
e até Frei João B atista, aquele capuchinho, grande devoto da ~> "afastar os diabos que ameaçavam as recolhidas.
negra e que tivera papel crucial na publicação do dilúvio que ~ " -^Certamente alguns devotos mais íntimos de Mãe Rosa
deveria inundar o Rio de Janeiro, todos utilizaram o dito retrato Kfes=:SÇíyeram. o privilégio de receber a visita deste painel em suas

para transmitir ensinamentos virtuosos às recolhidas do Parto. ~. - -próprias moradias, tal como sucedera com Dona Maria Tecla,
Certa feita o referido barbadinho italiano ordenou à Irmã Ana ~ ~*~ -aquela viúva residente àrua da Ajuda, em cuja casa a Egipcíaca
do Coração de Jesus que trouxesse a estampa, "e, pondo-a em - se alojara durante seu desterro do Parto. Conta Dona Tecla que,
• cima de um móvel no coro, mandou a todas as irmãs que
reparassemnaquelapinturae depois pôs-se a explicá-la, dizendo
— 'rnuma ocasião, levaram-lhe à sua casa "um caixão com molduras
^ ^-encarnadas, filetadas de ouro, fechado naparte anterior por uma
que a figura que estava caindo [no inferno] pela culpa de - vidraça, dentro com o retrato de Rosa com o mesmo hábito com
desobediência era uma alma [de uma recolhida] e Rosa a estava que andava vestida, [tendo] uma cadeia que representava a
suspendendo por uma corrente para a alma não cair". obediência e que este retrato fora mandado fazer por Deus para
Rosa,, por seu turno, tirava lições mais sobrenaturais da "-^altíssimos fins". Este caixão envidraçado era aformausual como,
pintura, ensinando: "a corrente significava a obediência, e por "^ií~" £nos séculos passados, se expunham à veneração gravuras e
isto segurava a alma que não caísse, pois a desobediência a registros de santos, havendo ainda nos museus e antiquários de
precipitava... e assim esteve fazendo uma prática sobre a obe- Portugal muitos exemplares desta devoção popular, O vidro,
diência e a humildade e depois disto todas beijaram o painel". além de dar um brilho misterioso à imagem, protegia a estampa

t't-f: Irmã Ana Bela confirma a mesma informação de outras


recolhidas, assegurando que o padre capelão costumava incen-
sar o dito retábulo e dissera certa feita à fundadora que
- dos muitos beijos com que os fiéis costumavam saudar tais
registros sacros, A moldura vermelha e os filetes de ouro real-
~~l"çãvãm. esta mística figuração, até então nunca vista pelos cris-

s:i*
~~ tãos: uma negra pairando nas nuvens, toda paramentada de
"o Diabo lhe haveria de armar alguma [cilada] por causa santa, com o Filho de Deus no colo e o príncipe dos anjos coroando
daquele retrato, ao que .lhe respondeu Rosa que aquilo era sua cabeça cheia de sangrentos espinhos. Louvado seja Deus!
para atormentar o Espírito que ela tinha, vendo ele que ' Vitória, vitória!

t
Rosa era sua inimiga e lhe haveria de pôr o pé no pescoço.
E que ela, testemunha, beijava os pés do dito retrato por
ato de humildade e por se lhe propor internamente que

542 543
•iíi

2 2 . . *

Notas
A Grande Viagem e Casamento
com Dom Sebastião
1. Conceição, Frei Agostinho, Sermão do Glorioso Lusitano Santo
António Pregado no seu Convento e mesmo Dia na Cidade do Rio
de Janeiro a 13 de junho de 1674, Dedicado ao Governador do Rio
de Janeiro. Lisboa: Oficina António Róis d'Abreu, 1675. •Rosa estivera expulsa do recolhimento entre fins de 1758
2. Vaessen, Padre Guilherme. Santa Luiza de Marillac, Salvador: é meados de 1759. Foi pelos finais deste ano e inícios do seguinte
Edições Mensageiro da Fé, 1949, p. 49. "que~sucederam aqueles episódios tão prenhes de significação na
3. Castro, D. Francisco. Op. cit., 1640, Título XX: "Dos que dão culto, "biografia da madre fundadora: a escolha das evangelistas e
como santos, aos que não forem canonizados, ou beatificados, e dos sobretudo a sua diviniza.cj.ornájdma.atrayegde hinos e ladainha,
livros que tratarem de seus milagres ou revelações e dos que os TSãTminãndo com a entronização e adoração de seu retrato no
li . fingirem."
1 .'altar"do coro.
- H Grandes reviravoltas ocorrem neste período no mundo
íuso-brasileiro: aos 3 de setembro de 1758, el Rei Dom José é
pi
ff alvo de preocupante atentado, redundando na identificação dos
jesuítas como mentores intelectuais da tentativa de regicídio, e
" na consequente expulsão destes religiosos de todos os domínios
Í jj 'de Portugal. Em 29 de fevereiro de 1759, Frei Santa Rita Durão,
_ enxcasa do qual nossa biografada viveu por quase duas décadas,
"Jnà-yilã do Inficcionado, prega famoso sermão tendo como tema
- a incolumidade do rei, jogando mais fogo na fogueira dos pros-
critos inacianos. A 3 de novembro deste mesmo ano, é cercado o

,_..• S-i
_Ço_légio dos Jesuítas do Rio de Janeiro, baixando Dom António
do Desterro uma portaria-pastoral proibindo ao povo qualquer
m
tef 'f;
l ít-'
comunicação com os supostos inconfidentes da Companhia de m
:tr
. Jgsus, 125 dos quais são degredados do Rio de Janeiro, a 15 de
~~março de 1760. O clima local, portanto, era dos mais agitados e
m
. contraditórios, pois jamais passaria pela imaginação de qual- m
l É; quer cristão que os poderosos jesuítas, membros de uma das
- corporações religiosas inais numerosas e importantes da cris-
tandade, cairiam do pedestal em que se encontravam, tornan-
— do-se alvo de humilhante infâmia e expulsão, acusados não
apenas de atentar contra a vicia do monarca, como de erros
ímpios e revolta contra o jugo da monarquilflusitanãT1
41
pi 544 545
•il
Em seu depoimento perante os inquisidores de Lisboa, - lugar dos Padre-nossos e das Ave-marias. E dizia ele: 'Pater
Mestra Egipcíaca situou no ano de 1760 várias de suas visões
i!

beatíficas, algumas ocorridas fora do seu claustro, revelando que
a ex-prostituta gozava de plena liberdade para sair do recolhi-
mento, privilégio que suspeitamos não beneficiasse as demais
de. coelis Deus3, e ela respondia: 'Miserere mei'. E por este
modo e com diferentes orações passaram as ditas contas,
que, acabadas de rezar, as pôs o mancebo na cabeça e,
pondo-as na salva, desapareceu com a mesma salva. E
madalenas arrependidas. Continuava Rosinha a frequentar os " considerando ela, ré, que lugar seria aquele em que se
templos e capelas de sua maior devoção: Santa Rita, Candelária achava, lhe disse uma voz que era o cenáculo do amor, e,
«: e, sobretudo, a igreja dos franciscanos, acima do Largo da - cobrindo-se a cara com .um pano branco, ela, ré, se achou
l Carioca.
A grandiloquência de seu imaginário místico nesta época
-" na dita igreja a tempo que já se queriam fechar as portas,
foi ela, ré, para casa."

t. i'j*'. reflete a exaltada veneração de que estava sendo alvo após seu
retorno ao seu "Sacro Colégio", adorada, ao vivo ou em estampa, - , Corno explicou a própria vidente — que certamente sonha-
como a nova redentora do género humano, incensada de joelhos — ra-comtõdo este quadro místico enquanto tirava uma soneca na
pelo capelão que, orgulhoso, carregava dependurada no pescoço de Santa Rita, tanto que foi acordadapara que se retirasse
portentosa relíquia: um dente de sua ex-escrava. js.doltemplo na -hora de ser fechado — , esta visão representava a
Sarfta Ceia, estando o Cristo na cabeceira da mesa, vestido com
"Estando ela, ré, na Igreja de Santa Rita ouvindo missa ' -- iodo o esplendor da realeza, com capa de asperges bordada em
no altar de Santana, lhe disse uma voz que a ouvisse no _fiosjle ouro. Quanto à franciscana partícipe deste grande mis-
altar de São Miguel, aonde não havia [celebrante] e repen- - térío -eucarístico, que trazia na ponta da língua os responsos
tinamente deu seu corpo uma volta para o dito altar, para sacros em perfeito latim, não resta dúvida de que se tratava dela

l
\m:
Í --íi
onde viu logo missa. Chegando ao ofertório, sentiu um
grande abalo no seu interior e neste tempo se achou de
joelhos às portas de uma grande sala ornada com um
própria, Santa Rosa do Rio de Janeiro que, por humildade e para
não escandalizar os inquisidores, omitiu a identificação. Não se
~"T lulmirê^õ leitor de ver a presença de uma mortal num episódio
cortinado encarnado, e, no meio~dela, uma mesa coberta '~ ~^sSc£o~dà vida de Cristo ocorrido há dezessete séculos passados:
cora um pano verde à roda da qual estavam doze pessoas sefhpTê foi muito usual, na iconografia católica, incluir os santos
vestidas de túnicas rosas e, no topo das mesmas, outra modernos nas cenas mais cruciais da história sacra. Lembro-me,
[figura] com capa de asperges de seda branca bordada de —L-enirô~rauitos outros, do célebre afresco de Fra Angélico de
ouro. E, sobre a mesa, uma salva e uma pessoa vestida de i Fiesole, representando a mesma ceia do Senhor, só que, além
!* hábito franciscano que parecia ser mulher, porque tinha
umatoalhanacabeça._Edo alto dacasadesceuiaramancebo
dos-apóstolos e da Virgem, lá estava o fundador de sua ordem
^religios;a,"São Domingos de Gusmão, santo, aliás, em cuja honra
vestido de anjo e, tirando da salva um rosário, disse, L as recolhidas do Parto tinham o costume de fazer novenas
benzendo-se: 'Deus in adjutorium meum intende', e a dita ""•- "anualmente.
mulher respondeu: 'Deus in adjutorium me festina, Gloria
Jl: Pairi' [sí'c].7E no fim do que, continuou a dizer: Santíssima ~~~~ JI * "Disse mais, que, na manhã do dia seguinte, lhe pergun-
Trindade, Deus Trino em pessoa, eu vos dou o meu coração, - Jou uma voz se cria [em] tudo o que crê e ensina a Santa
t
vos dou a minha alma. E a dita mulher com o mancebo Maore Igreja e se por ela protestava viver e morrer, e se
f foram rezando pelas contas, alternadamente, o Credo no visto e entendido o Rosário que no dia antecedente
f" ouvira rezar, e que era rogativo, e que ela o havia também
f-
i 546 547
. . . .

111!
"'*.*• ?**• j
de rezai-oferecendo o primeiro terço a Deus Padre, dizendo: gadapéla SantíssimaTrindadeparajulgar, glorificar, condenar
Rogo-vos, Senhor, em memória daqueles quarenta anos ou embargar o futuro dos vivos e mortos, ela arvora-se em ser a
1: II que trouxestes pelo deserto vosso povo amado, dando-lhe pro"tetora do clero, dos pais de família e dirigentes, preocupan-
por sustento o maná, em memória do altíssimo mistério do do-sè também com a incontável multidão de ovelhas que perma-
Santíssimo Sacramento [da Eucaristia] que havíeis de neciam fora do aprisco do Senhor. Sua lista dos infiéis repete,
instituir na lei da graça pela fonte perene de água de vossa mutatis mutandis, as mesmas categorias arroladas nas "orações
misericórdia com que acompanhastes de dia e de noite com solenes" tradicionalmente recitadas na Sexta-feira Santa, o que
a ardente coluna de fogo da vossa caridade. Rogo-vos, pernoite-nos conjecturar que a visão anterior, a da Santa Ceia,
Senhor, que desterreis [destruais?] do Egito os ídolos fal-
sos, cismas, idolatria, todos os infiéis, gentios, mouros,
- ocorrera na Quinta-feira Maior do ano de 1760, e estoutra, no
dia seguinte, na Sexta-feira da Paixão.
m
turcos, judeus, e os tragais ao vosso verdadeiro conheci-
mento. O segundo terço [será] em memória dos quarenta
— -Deve ter sido, portanto, algumas semanas após estas duas m
visões que Rosinha ditou à sua escriba, Irmã Maria Teresa, um
dias em que Deus Filho jejuou no deserto, rogando em " longo texto, de quase 100 linhas, com letra miúda, no qual
irm memória deste benefício pela conservação da piedade ca-
tólica da cristandade e pela pureza do feliz estado eclesiás-
""descreve alguns sucessos místicos que ocorriam dentro de seu
recolhimento. O estilo é sincopado e o relato pueril, permitindo-
tico. O terceiro terço [será] em memória dos quarenta dias nos chegar assim bem perto do discurso e até da gestualidade
em'que Deus Nosso Senhor, depois de sua gloriosa ressur- da'africana e de sua comunidade crioula, onde as madalenas
reição, esteve sobre a terra até a sua ascensão, que mandou arrependidas não conseguiam desvencilhar-se das constantes
o'Espírito Santo. Rogo-vos, Senhor, pelo vosso ardente ciladas dos anjos do mal — ou, melhor dizendo, persistiam em
amor e caridade, que inflameis todos os corações dos pais auto-sugestionar-se de que qualquer dor, infortúnio ou desgraça
de famílias e pastores, para que saibam dirigir as suas era obra do maligno, que castigava seus corpos possessos para
famílias na guarda dos mandamentos. E perguntando ela., purificar suas almas convertidas,
ré, a, significação das contas que vira e das pessoas que ""~~'Eis como se inicia este manuscrito, cuja transcrição faze-
estavam na sobredita mesa, lhe respondeu a dita voz que mos ipsis litteris:
eram os apóstolos e o sumo sacerdote, o Senhor da Divina'
Providência, e que a criatura que estava sobre a mesa com "Estando nos fazendo anovena davezitasaõ denoSa Snrã
figura de mulher, a seu tempo, saberia quem era. Depois - a28 dejunho de 1760 e dia sétimo eameditaSaõ hera oponto
!f Í do que, se calou a dita voz. E ela, ré, ficou confundida, daRar a humildade comq. aSnrã Servia aSantalzabel eten-
imaginando o que seria aquilo, metida no seu nada." dose aCabado anovena eemtrose a Rezar asahnas os versos
li! fii
*{*) TT~ = - deSaõ gregorio aCabouse aReza toda estando pedindo mi-
I Esta visão, ocorrida no dia seguinte à anterior, confirma o ~ zeriCordialogonoprimeiroSnr2DeosmizeriCordiaemtrou
P elevado grau de cultura religiosa de nossa africana, tanto refe-
rente ao Antigo quanto -ao Novo Testamento: todos estes três
minha May Liandra adar huns gritos munto Sentidos
Como qestavametidadebaicho dealgumatromentagrande
episódios relacionados com o número 40 coincidem perfeitamen- epedianiizeriCordiaConiQarnoresenterneSidosechorozos..."
te com a história sagrada. E também surpreendente a amplidão
das categorias sociais abrangidas pela preocupação espiritual Não faz muito, transcrevemos esta parte.inicial do relato
de Madre Rosa: imaginandò-se "mãe de misericórdia", encarre- das atribulações de Leandra pedindo misericórdia em nome dos
Santíssimos Corações. Diz Rosa que tal ocorrera no domingo,

548 549
pelas 11 horas da noite. E continua sua narração voltando a ser da sua casa clarear a lua como dia, sem ser tempo de luar,
porta-voz de um novo dilúvio, profecia que há de tornar-se uma que se prepare e disponha que a hora é chegada das
das causas próximas de,sua prisão pelas autoridades eclesiás- destruições das Minas, e que Deus o manda avisar e que
ticas da cidade de São Sebastião. Que o leitor tenha paciência fará deste aviso diante ao Padre Manuel Pinto e a seu
com o estilo claudicante. - •_ companheiro. E que Pedro Róis [Arvelos] faça ciente a José
• ti
Alves e a Dona Escolástica para que se preparem. E diga
"Na segunda-feira, oitavo dia da novena, estando esta a Dona Escolástica que a paz do Senhor há de ser com ela.
minha filha rezando o Oficio Parvo [de Nossa Senhora] -„ E que quando vir uma estrela aparecer no céu muito
junto com a que estava presa na cela [Irmã do Coração de resplandecente, deitando de si muitos raios, e desta estrela
Maria], que são companheiras, diz ela que estando consi- hão de aparecer lanças do sol afora e vir a horas mortas
derando a rara humildade como a Senhora se prostrou - - um tropel grandioso como de besta, que todo o povo das
quando o anjo anunciou a encarnação do Divino Verbo, que Minas se prepare, porque está chegado o número dez, que
logo lhe comunicaram no entendimento dizendo: 'Diz a sua - são os dez mandamentos quebrantados e que mande dizer
Mãe e Mestra que aqueles brados que ouviu ontem em ^^também a Pedro Róis que o Encoberto está para se desco-
Leandr a, que são os brados que há de dar o povo das Minas, - brir e que ele cedo há de vir, que o mundo se há de reformar
e que aquele rio de justiça que está debaixo daquele monte e que todos os maus se hão de destruir, e que este memorial
de piedade é que os há de destruir, o qual. rio está para se . o mandará dentro de uma carta fechada e que lhe mandará
soltar e há de destruir e arrasar a maior parte das Minas. — dizer que este aviso o poder á mostrar a várias pessoas, mas
Todos os montes hão de cair. E que essa é a manga de água não dizendo quem lhe mandou. E se esta Coluna da cidade
que lá viste vir das Minas, que o Senhor te mostrou dentro .se ausentar, é porque o povo a palavra de Deus não quer
dela muitos corpos, porque há de ser um dilúvio que nunca aceitar e deste aviso não hão de dizer como costumam a
se viu outro em todo o mundo, e que esta é a enchente que _ dizerem: isto verão os meus netos, por sorte que este não
r^^^i aquela criatura de palácio contou a teu padre confessor, _™.Qiyerão os pais e as mães e os filhos que dos pais são e moços
que o Senhor lhe mostrou junto com o sonho que é porque ^JTè tenra idade verão enão contarão. E que assim que ouvira
esse dilúvio há de vir dar o mar derrubando todos esses e"sta comunicação, entrara em tormenta a fazer várias
montes e unir-se ,com esse mar salgado que vês defronte _protestações dos artigos de nossa santa fé católica e quanto
do palácio e que todos os rios se hão de soltar e o mar há Tonais protestava, mais lhe comunicavam e se lhe dizia que
de sair fora dos seus limites, ficando toda a cidade dentro desse parte à sua Mãe e Mestra."
das suas entranhas. A coluna se há de ter retirado para a
fazenda a qual o Senhor tem determinado que é a fazenda -_ Data, portanto, de 28 de junho de 1760 a primeira divul-
da Sagrada Família que desta cidade está desviada. A gação, por escrito, daprofeciade queumnovo e definitivo dilúvio

: coluna é tua Mãe e Mestra. Dize-lhe que faça aviso a Pedro "que nunca se viu outro em todo o mundo" estava previsto para
Róis e lhe mande dizer que quando ele vir dentro de sua __tempo não muito distante. A ideia de que Deus iria abrir as
casa.ahoras mortas alumiar o sol como dia, que se desterre comportas do céu e fazer transbordar os rios era uma obsessão
!* : das Minas e que venha -para a seguir e fazer viagem e constante no discurso do Padre Xota-Diabos. Numa carta envia-

if fazer-lhe companhia. E que mande dizer ao Padre João


•Ferreira de Carvalho, que quando a horas mortas dentro
da a seus compadres do Rio das Mortes, em 1756, prognosticava:
"Ainda há cinco anos de prazo, se não houver reforma!" E noutra

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' •' 550 551
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missiva, de 1759, confirmava a previsão: "Rosa está muito fraca
e sem forças, porque as preocupações e lágrimas são muitas, fÕhos de Eva. As dez pragas do Egito que o digam! Eis a
porque o Senhor, os santos e as almas lhe mostram os termos horripilante visão que Rosa disse ter vislumbrado, dando pros-
em que está a cristandade e o castigo que está por vir, sobretudo seguimento à transcrição do mesmo documento ditado pela
e. principalmente pelo Reino de Portugal, e será daqui a três ou Egipcíaca no dia 28 de junho de 1760, vigília da festa de São
quatro anos, porque Deus não mente!" Noutra epístola comple- Pedro e São Paulo:
tava: "Portugal, 'Castela, Itália, América, França e Roma serão
todas castigadas como Lima" — referindo-se ao deletério terre- • "E quando lhe estavam comunicando essas coisas que
moto que em 1746 destruíra a capital do Peru e cujos tremores ~ — estava vendo com. os olhos da sua alma, um rio muitíssimo
de terra foram sentidos até na América Portuguesa. Portanto, - grande, que mais parecia mar do que rio, e que no mesmo
Li pelos cálculos e vaticínio do assustado capelão do Parto, seria tempo vira sair de dentro um bicho monstruoso e muito
por volta de 1762 a 1763 que o Justo Juiz haveria de descarregar 'disforme de grande que era e [tinha] feitio de cavalo, com
sua santa cólera contra esta parte da cristandade: "Fique na
certeza de que, se não houver reforma nas vidas, há de haver
os pés muito monstruosos de grande e que os pés eram
como de cavalo e que o casco dos pés eram da largura de
m
muitos castigos. Estejamos como quem está com a ovelha na tona gamela meã, e que a barriga dele era da largura da
mão para dar contas a Deus." maior pipa s que a cor era castanho-escuro, e que lhe não
Rosinha, ela própria, numa carta de 19 de novembro de vira- a cabeça nem o focinho porque disse que, se tal vira,
1759, fazia eco a esta profecia, dando detalhes de como ficara morreria pelo grande temor e medo que lhe causou aquele
aterrorizada com a sentença divina: ~ grande monstro, que logo ficara de tal sorte que não sabia
~ dar parte de si, de susto, temor e medo desta vista e da
comunicação."
m
"Não sabemos a hora em que Deus há de descarregar
seu furioso golpe. Só sei que a sentença está dada. Ao o
terminar o Oitavário dos Defuntos, ouvi uma voz terrível __ _J3 conclui o manuscrito dando conselho: "Veja se é tempo
—de seJfazerembanquetes ou se é tempo de fazermos penitência?"!
0
tT
que proferiu: 'Digna é de morte toda a cristandade!' Fiquei
tão submergida no meu nada e perguntei: 'Quem falava?' - - - Os dois últimos ano_s_de_Rj3S-a.e_do capelâp^antes de serem o
E ouvi: 'Nós somos os fiéis defuntos, somos professores da presospela Inquisição, sexâoJforjlieragjnj:.e.marcadQS pela obsessão
_de_c[uej3 castigo divino desta vez não falharia e que, no mais
0
li ;^ lei crista católica, zeladores da santa honra de Deus,
defensores do Santíssimo Nome de Jesus, muito observan- "tardar, no ano de 1762, cumprir-se-ia^ a profecia do dilúvio
xxnjyêlFsaT. ~

«
'M .:.;;;
tes dos mandamentos e de seus preceitos.' Fiquei, com. esta
iti! ;:;.' explicação, sem sangue, sem coração, sem tripas, sem Algumas de suas visões ocorridas neste período, clara ou
barriga, sem nada! Nem sabia de mim e não sabia donde ^alegoricamente, referem-se à tal prognóstico apocalíptico:
•m w.
•ÍSI '••:'<
me segurasse! Eram tantas as abundâncias de lágrimas
"No mesmo ano de 1760, dispondo-se com as mais reco-
que os mesmos soluços me sufocaram. Ando muito assus-
- .-i» -Ihidas do Parto a fazer a Novena do Menino Deus e sendo
tada. Comunguem e rezem o Rosário de Santa Ana!"
passados três dias depois de ela principiada, indo ela, ré,
Nossa negra espiritada tinha razão para estar tão apavo- -——aia noite do dito dia para o coro do mesmo recolhimento,
rada e lacrimosa: a. ira divina não tinha limites em sua imagi- estando a igreja às escuras, viu no altar-mor, no peito da
nação apocalíptica quando se tratava de castigar os ingratos imagem de Nossa Senhora, uma luz redonda e desmaiada,
ouvindo ao mesmo tempo um sussurro como de gente que

552
553
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t,
falava, e, perguntando ela, ré, quem era, lhe respondeu - fjlh.as espirituais e devotos leigos, do outro, obcecada com. a
uma voz: 'Eu sou o sol da meia-noite que ando visitando • - certeza de que no ano vindouro a espada da justiça entraria em
aqueles que andam no meu serviço nesta hora como és tu ação.
e tuas companheiras.' E perguntando-lhe ela, ré, de onde »' Apesar de já uma vez ter caído na desgraça do bispo do Rio
vinha, disse-lhe que do Oriente, e, tornando-lhe a pergun- ,."v de Janeiro, quando em 1758 fora expulsa do Recolhimento dos
tar donde esta era, lhe respondeu que do Império, e que ~ Santíssimos Corações, Madre Rosa não resiste à tentação de

;*•••
* ia para o Ocidente. E, perguntando-lhe donde este era, lhe
disse que no peito dela, ré, com o que estremeceu, ainda
que com o corpo, porque acudindo as recolhidas lhes disse
entrar novamente em comunicação com a autoridade máxima
" daJgrejafluminense. Sua megalomania traveste-se aquiemzelo
apostólico e, por duas vezes, em 1761, Dom António do Desterro
ela, ré, que se fossem embora porque estava com uma dor, "./ há de ser personagem principal das mensagens que dizia receber
jj sendo que na verdade não a tinha, e era só para as ditas " ~ " do Além. O primeiro depoimento foi colhido no próprio Juízo
J* -• Eclesiástico desta cidade:
se irem. Retirando-se as mesmas, continuou ela, ré, a
perguntar que significavam os raios vermelhos que saíam,
de um resplendor que cercava a dita luz. Lhe respondeu a sés* "Disse que, havendo notícia no Rio de Janeiro de que se
dita voz que eram as ofensas que lhe faziam os filhos da • ~ ausentava para Portugal o Excelentíssimo e Rever endíssi-
Igreja, e logo desapareceu a dita luz e ficou a igreja na ,"- ' mo Prelado deste bispado, pediu ela, depoente, a seu con-
mesma .escuridão em que estava. Disse mais, que no dito r - , fessor que rogasse a Deus e lhe declarasse se havia ou não
ano e véspera do Corpo de Deus em que ela, ré, lhe estava --- de ir a Portugal o mesmo prelado e que pedisse a ela,
zw fazendo a novena de joelhos, junto a uma cruz, ouviu do depoente, ao mesmo Deus não permitisse que ele se ausen-
alto da mesma uma voz que dizia: 'Dize aos filhos da Igreja -i - tasse do bispado, porque era muito útil a sua assistência
fc que, no ano de 62, o meu coração é visitador geral e há de nele. E estando ela, ré, fazendo oração diante da imagem
sair à visita por toda a província e prender os que estão _ de um Santo Cristo que tinha no seu oratório, e pedindo-lhe
soltos e soltar os que estão presos', com que ficou ela, ré, ~- ~r crque lhe recomendou seu confessor, ouviu uma voz que
muito atemorizada." ,saía do mesmo e lhe dizia perceptivelmente que não havia
. i
de ir para Portugal nem ausentar-se do seu bispado o dito
Estava, portanto, .confirmado: 1762 era a data fatídica em prelado, e que lhe embaraçaria as pretensões de sua ida, o
que o Justo Juiz viria a esta terra na qualidade de visitador-per- que assim sucedeu, porquanto ainda reside neste bispado."
sonagem dos mais temidos antigamente, pois tanto o visitador
nomeado pelo bispo diocesano, como os visitadores do Santo Podemos acrescentar: o infeliz bispo nunca mais afastou-se
Ofício, tinham amplos poderes de inquirir, sequestrar, mandar "dÕ"Rip de Janeiro, tanto que veio a falecer nesta mesma cidade,
açoitar, degredar e enviar para os cárceres, fosse o aljube do - Jui. estando sepultado no claustro do Mosteiro de São Bento, onde
bispo, fossem as enxovias secretas do Santo Ofício. Portanto, sua lápide de mármore branco pode ser admirada.
Uma "visita" feita cora fúria divina equivalia quase ao Juízo _^ _, * De fato contam os cronistas, sobretudo Monsenhor Pizarro,
Final.- •"•"• ~ ^ que Dom António, devido à sua debilitada saúde —• ataques de
Inicia-se, pois, o ano de 1761 com Madre Rosa cada-vez erisipela, perfuração do estômago e ventre, e provavelmente
mais envolvida em seus delírios místicos, estimulada de um lado _=£___inal-de-são-gui.do, dada à maneira trémula de sua assinatura,
pelas cerimónias e rituais que a ela dedicavam o capelão, suas conforme pude observai' nalguns documentos por ele firmados
—, várias vezes planejara retornar a Lisboa para melhor se

554 555


tratar. Em 1759 foi acometido de notável doença, tanto que data ífeCapítulo, anterior. Passaram-se seis anos de admoestação à
de 1760 sua última missão episcopal, no Convento da Ajuda. M: «contrição, ao arrependimento, à conversão. Já uma vez, em 1758, El
Deve ter sido após esta convalescença que espalhou-se a notícia Í; S •ÍJi&ssò;Senhor ia descarregando sua divina ira, inundando o Rio A
de que o prelado beneditino pretendia cruzar o oceano, pretensão felina Janeiro. Por intercessão de nossa santinha, segundo inter-
que, segundo Rosa, fora embargada por ela própria, pois auto- feiâietação do barbônio Frei João Batista, a misericórdia celestial 0'
P i ridade para tanto é o que não lhe faltava, na qualidade de "rainha i í%ostergara o castigo. Em vez de emenda, o povo do interior e do A
dos vivos e embargo dos crentes". st^itoralper sistia na devassid ao: agora, a sentença era irrevogável
Obtida esta primeira vitória, nossa biografada volta à .jfSgfdefinitiva. Urgia, portanto,, que a autoridade eclesiástica su- W
carga: • -S?Brémafda diocese tomasse providências. Somente através da 4B|
;},-Devoção aos Sagrados Corações o povo evitaria o inferno.

:-il
"Disse mais que no decurso de 1761, no dia em que
acabava de fazer a Novena de São Domingos (4 de agosto),
íí^Spv^Esta visão, ocorrida no Sábado de Aleluia de 1761, no altar m
S^èNôssa Senhora das Mercês, reflete a nova disposição dos céus
e se tinha confessado e comungado, estando pedindo ao iííieiip castigar a terra: "Vi um sol muito vermelho e, estando
f santo que a livrasse das bocas do mundo, lhe disse o mesmo
santo: Tíiz ao bispo do Rio de Janeio que assim como Maria
USãâínada com aquela visãos ouvi uma voz que cantava: Pecador
síífsindurecido, tu não queres temer: teme! teme! se não temeres,
Santíssima ine deu o Rosário para extinguir as heresias, e ílííaídè ti!; pois o manso cordeiro tornado leão, no fim derradeiro
a São Francisco as cinco chagas como fiador do género
:-S'?ós;.maus sentirão!"
humano, assim o Senhor vos tem dado os cinco corações ^rr^t.rí"•'--"No imaginário da beata e de seu capelão, a justiça divina m
..;:
para venera da contrição, e assim como todos os que
recorrem ao Rosário experimentam misericórdia, e os que
Cv^^è identificada frequentemente com as forças armadas, bem no
:í'-;ifespírito do Antigo Testamento: Deus é invocado como "Deus dos
m
recorrem a São Francisco alcançam apenitência, damesma
forma os que recorrerem aos Corações alcançarão a contri-
ir ^exércitos"; São Miguel Arcanjo, capitão das milícias celestes, e *
|..S Jesus Cristo, capitão general. A própria comunidade recoleta é Q1
ção e melhora de suas vidas."' Sg^ístà-como uma praça de guerra: as conversas são chamadas de g*
i;iii^Sõldádos em campanha", Rosa é a capita, e, numa carta de 1755,
A missão salvífica dos Sagrados Corações vinha sendo
^ í-àmestra fundadora assim dizia: "Já vêm em campo os Santís- Q
divulgada pela visionária e pelo capelão desde 1754, quando das
-j.r;sitnò's Corações com o estandarte do seu divino braço aberto, A
visões cordícolas da africana implantara-se, esculpida na pedra
f '/'íáfúgèntando os nossos inimigos contrários à nossa alma." Nou-
inaugural do Recolhimento do Parto, a figura dos cinco Corações
. - t r à missiva, no ano seguinte, retomava a mesma figuração W*
da Sagrada Família. Nestes seis anos posteriores a tais visões, iiS-ca;strense: "Eu bem vejo e ouço aquela trombeta divina que pelas 01
esta nova devoção achava-se já bem instituída e espalhada J^Mihas andava umas vezes tocando, outras falando. Já vai che- ^
Brasil afora, graças ao empenho de Rosa, ajusto título, merece- 2 "gando a hora de cumprir a profecia. Que Nossa Senhora da ^
dora da condição de principal mensageira dos Sagrados Corações • ; • Piedade n o s faça valorosos soldados." • 0
no Novo Mundo. Existia no Convento dos Franciseanos esplen- 4-i^^ Embora pertença à tradição judaico-cristã a associação ^
dorosa capela dos Sagrados Corações; várias recolhidas traziam i /..'.simbólica entre a JustiçaDivina e as forças armadas — a própria
como apodo a seus nomes os corações de Jesus, de Maria, de São Stó'inilícia celeste sendo imaginada como um, esquadrão composto w
• •
José, de Santana, de São Joaquim e até de Santo Agostinho, e í de diversos escalões de querubins, serafins, tronos, potestades, g|
t-
w •'?-• •••
sií -i i'." '.
muitos devotos de Rosa possuíam e multiplicavam o manuscrito
"Devoção aos Sagrados Corações", cujo texto divulgamos em
í etc., etc. —, não nos esqueçamos de que a América Portuguesa, ^

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notadamente a Capitania do Rio de Janeiro, vivia por estas sempre a ensinou: São Miguel Arcanjo, o capitão das
épocas grande movimentação militar, motivada pelas prolonga- milícias celestiais."
das campanhas do Capitão-general Gomes Freire de Andrade,
na defesa da Colónia do Sacramento contra as tentativas de ~, Não, havia mais lugar para dúvidas; 1762 era a data
usurpação por parte dos espanhóis e ibero-americanos. Portan- fatídica. Repetidas vezes os céus confirmavam o cumprimento
to, Rosa deve ter visto, com certa frequência, tropas militares da profecia. A justiça divina prometia ser exemplar!
se movimentando dentro do perímetro urbano do Rio de Janeiro,
daí a insistência em resgatar o imaginário bíblico castrense. J. K~"Ê a ré disse mais: que no dia de São Miguel — 20 de
Outra visão teve lugar no segundo semestre deste mesmo setembro de 1761 —, estando ela para comungar, ao tempo
ano do Senhor de 1761. A negra courana tinha confessado è em.que o sacerdote lhe deitava a absolvição, quando estava
comungado. Rezava de joelhos ao pé do esquife do Senhor morto, '"~ corou a hóstia na mão voltado para o povo, ouviu ela que
quando foi transportada milagrosamente para o mundo extra- " donae estava a hóstia saiu uma voz que dizia: *No ano de
sensorial, Começa seu "rapto" descrevendo tuna cena inspirada """"1.762 se havia de correr a argolinha no mundo, e a vontade
no Apocalipse de São João: do seio de um mar de águas ferventes, Tdõs homens, reunida a seu livre-arbítrio, há de ser a corda;
-j- iluminado por iim sol muito louro, "saiu um homem em um ~," o~ coração dos homens há de ser as culpas de todos os
cavalo branco, movendo-se com grande pressa para chegar a um "' mortais, e a lança há de lancear este coração.' Com o que
campo". Os movimentos do cavaleiro eram tão reais e violentos, - ficou ela tremendo e se humilhou, oferecendo a comunhão
que Rosa disse tê-los sentido como se ela própria cavalgasse. -" peías culpas de todos os mortais." .
Cai, então, desacordada no chão:
--,._. Mestra Egipcíaca utiliza aqui nesta visão as imagens de
"Neste desacordo, ouvi uma voz que dizia: 'Artilheiros, um jogo tradicional de sua época, "o jogo da argolinha", disputa
artilheiros! Ataque certo! Defendam o meu Reino, ponham s_na.,qual vários cavaleiros correm à desfilada, vencendo o que
as pessoas em cruz, quero tontear as quatr.Q_.paxtes do , Ilconsegue enfiar e levar na ponta da lança uma argolinha que
miando, porque elas me hão de render vassalagens como - pende uma corda ou arame, segundo ensina o dicionarista
Rei, e obediência como Senhor, senão, hei de destruir tudo!' Morais. Assim sendo, Deus, Justo Juiz, tr avestido em enfurecido
E, calada a dita voz, ficou outra mais submissa repetindo: cavaleiro, montado em seu corcel branco, corre com a lança na
'Artilheiros, ataque! Artilheiros, ataque!' E perguntando -- mão-a perfurar os corações empedernidos dos pecadores que,
eu quem era o cavaleiro que tinha visto, a dita voz me disse com seu livre-arbítrio, preferiram o caminho fácil dos prazeres
que era o mestre de campo general, e que os moços eram pecaminosos e da impiedade, e agora eram trespassados pela
as entranhas da Virgem Maria onde o Verbo se encarnara; - cólera divina. A ira do Justo Juiz tinha duas razões principais:
que o campo era a Igreja Católica, que nas entranhas primeiro, a falta de reforma dos colonos, preocupados tão-so-
daquele mar se tinha coberto de nuvens, e o sol era o seio mente nos prazeres terrenos, incrementados ainda mais com a
daquela alma virginal concebida sem pecado original; e os - -febre do metal precioso; segundo, punir sobretudo os habitantes
artilheiros eram os doutores da Santa Madre Igreja, capi- das Minas, culpados do sacrilégio de terem, castigado, tão cruel
' tães-de-mar-e-guerra. :E, acabado de ouvir o referido, lhe e injustamente, a maior santa do céu, a própria esposa da
perguntou ela, ré, quem era que lhe vinha dar aquela - Santíssima Trindade e receptora destas revelações. Assegura
doutrina? A dita voz lhe respondeu que era seu mestre, que uma testemunha: "o capelão pregava que Mariana, São João dei
Rei e o Rio de Janeiro iam se soverter porque haviam açoitado

558 559
Rosa Egipcíaca". (Soverter: destruir, arruinar, sumirj afundar,). Se na primeira profecia do dilúvio, em 1759, coubera ao
O castigo divino seria, portanto, pior que a chuva de enxofre aDUchinho Frei João Batista da Capo Fiume papel primordial
caída sobre Sodoma e Gomorra, pois a visionária garantia que divulgação do castigo, agora, nesta segunda catástrofe, pre-
"sobre esta terra haverá de vir um grande castigo, e não haverá vista para 1762, foi Padre Francisco quem desempenhou a
de ficar pedra sobre pedra, pelas muitas culpas de seus mora- ~ " função de orago. Além de escrever por diversas vezes a seus
dores". devotos mineiros, admoestando-os a que atentassem para os
Segundo suas profecias, as desgraças começariam por --*- sinais dos tempos e fizessem penitência, de viva voz inculcava
Minas Gerais: Irmã Ana Maria de Jesus declarou que sua mestra -íém seus ouvintes e dirigidos o temor pela próxima descarga da
e o capelão escreviam cartas para seus devotos mineiros anun- artuharia celeste. Segundo informação de Feliciano Joaquim de
ciando que um grande desastre ali ocorreria no dia de Todos os Sousa, administrador desabãojáoutrasvezescitadonestelrvro,
Santos — 1a de novembro de 1761 —• "assustando muita gente". ele próprio ouviu o velho capelão pregar, vestido ainda com os
Numa dessas cartas endereçadas à sua velha amiga Dona paramentos sacros após um exorcismo que,
Escolástica e ao Padre Carvalho, relatava os diversos sinais
meteorológicos que deviam anteceder à prometida ruína—texto ' "depois deste dilúvio, haveria no Rio de Janeiro gente mais
reproduzido há pouco. Aconselhava, outrossim, no final desta " reformada que o habitasse, e que esta reforma se havia de
epístola, que, manifestando-se os prenúncios do cataclisma — estender a todas as terras de Portugal, e que o Coração de
"um grande brilho muito medonho" —, todos se dirigissem às Jesus é que a havia de vir fazer visivelmente... E pregando
pressas para junto dela, "pois só havia de escapar o lugar onde ;~ sobre o fim do Rio de Janeiro proximamente, [disse que]
ela estivesse, porque Rosa era o patrocínio, sendo a maior - estava mui breve e, embora soubesse a data, não revelava,
valedora para com Deus e com a Virgem Maria". A inundação por temor dos homens, mas que, estando bem perto, ia
das Minas teria como epicentro o tal "regato de Santana", revelar, mesmo que fosse tido por louco e o apedrejassem".
debaixo do morro do Fraga, no distrito do Inficcionado, avolu-
mando-se as águas deste riozinho até submergir completamehte ZL".L_ Tinha razão o velho sacerdote em manter sigilo sobre a
os vales e montanhas de Minas Gerais, "derrubando todos esses data. certa deste medonho apocalipse, pois, escaldado com o
montes e unindo-se com o mar que há de sair fora dos seus fiasco do primeiro dilúvio de 1759, não queria, mais uma vez,
limites, ficando toda a cidade dentro de suas entranhas". Antes, expor-se ao descrédito dos fiéis e à perigosa censura por parte
porém, desta inundação, no Rio de Janeiro, a Justiça Divina das autoridades eclesiásticas. Mais ainda, devia temer imprevi-
repetiria o mesmo castigo deflagrado contra Lisboa: um terre- síveis reações do próprio poder real, pois, com certeza, o poderoso
moto arrasador, seguido de incontrolável incêndio, destruiria Marquês de Pombal e seus fiéis espiões não haveriam de tolerar
r-s? _ nem permitir que um decrépito cura de aldeia e uma reles
m
tudo. Segundo depoimento da Senhora Arvelos, Rosa e seu
capelão garantiam que o terremoto seria universal, "arrasando [li africana forra tivessem a ousadia de vaticinar a destruição da m
tudos só salvando-se os que tinham dado esmola ao recolhimen- principal fonte de renda da metrópole — as minas auríferas —
to". Afinal, se o Papa garantia que comprando indulgências os - . -.- ~e, de roldão, também o fim do Reino de Portugal. Mensagem por
católicos evitavam o purgatório, nada mais justo que, dando-se demais perigosa e ameaçadora da estabilidade social exatamen-
esmolas ao "Sacro Colégio dos Santíssimos Corações", os gene- - te-numa quadra em que todos os portugueses e vassalos de
rosos fiéis recebessem em paga a proteção divina quando do Portugal estavam empenhados na reconstrução do coração do
próximo dilúvio universal. Reino: Lisboa, a fénix que renascia majestosa e moderna após o
terremoto de 1755. Daí a cautela de Padre Francisco em evitar

560 561
que sua profecia chegasse aos ouvidos das autoridades consti- tão~destacado de sua autoridade — privativo dos bispos, abades
tuídas ou que o povo se inquietasse de maneira incontrolável
caso divulgasse a data certa da desgraça. r. e do sumo pontífice —, mandou confeccionar "uma muito curiosa
•cruz de jacarandá para Rosa usar quando fosse fazer a redenção
.do-múndo". Pedro Róis Arvelos, o mais fiel e generoso devoto
Os devotos filhos de Rosa, contudo, já estavam sobejamente
prevenidos; a autoridade eclesiástica máxima do Rio de Janeiro, •destes dois profetas, foi um dos que presenciou esta impressio-
Dom António do Desterro, também tinha sido bastantemente nante liturgia, quando os dois encenaram como haveriam de
admoestado. .Numa carta, o capelão — que se dizia amigo utilizar estes sacros instrumentos: "Vira na igreja do recolhi-
particular de Dom António -—• declarava: "Só alguns religiosos mento o capelão com. o cajado de prata na mão e Rosa cora uma
de Santo António e o senhor bispo, como são sábios e bons, lhes grande cruz no ombro, com sua toalha branca pendente, dizendo
fez Deus mercê de mostrar-lhes aquelas coisas"... isto é, o que haviam de assim sair para conquistar o mundo, para grande
mistério da nova redenção capitaneada pela negra forra Rosa "'confusão dos incrédulos e conversão do gentilismo".
Egipcíaca. Cumpridas tais determinações celestes, urgia agora ~Esforce-se, leitor, para reconstruir na sua imaginação esta
que o pequeno exército, chefiado pela "Abelha Rainha", ultimas- incrível encenação: o velho sacerdote septuagenário, vestido com
se os preparativos. Em vez de arcabuz, lanças e estandartes, um sua puída batina negra, tendo o báculo episcopal na mão, era
báculo e uma cruz servirão de proteção, sinal e guia deste pose de apóstolo dos gentios; ao seu lado, a imponente figura da
rebanho de penitentes. Entramos agora numa das partes mais negra Rosa, talvez mais alta do que seu velho exorcista, vestida
interessantes desta biografia, prenhe de imagens e multicolori- com o burel marrom de franciscana, carregando, nas costas,
dos simbolismos. vistosa cruz de madeira nobre, encimada com um dos símbolos
Narra Irmã Faustina Arvelos que certa ocasião, nos mea- da paixão — a toalha de linho branco. Tal quadro deve ter
dos de 1761, caindo Mestra Egipcíaca desacordada no chão do impressionado vivamente as freirinhas e os poucos eleitos que
coro, disse ao capelão, com aquela voz cavernosa típica de quando frequentavam as grades da Capela do Parto: esta mise-en-scène
se manifestava o "Afecto": "Capelão, hás de me dar um cajado tão solene e prenhe de emoção pode ter reforçado no íntimo de
de prata, feito à tua custa,.com p^dinheiro .que.ganhaste com. _J3.õ"sa e do capelão a convicção de que o Apocalipse estava prestes
tuas Ordens, sem que concorra outra alguma criatura. Ao que a acontecer. Para tanto, Deus Nosso Senhor, em sua sabedoria,
o padre respondeu que sim, para a glória de Deus." Mandou reservara prodigiosos desígnios para sua bem-amada mãe ne-
então fazer um báculoj à imitação dos que utilizam os bispos nas gra: nela e através dela realizar-se-ia a nova redenção do género
cerimónias públicas, tomando como modelo o cajado de Santo humano; por isto, um dos seus títulos encomiásticos de nraior
Eliseu, cuja imagem era venerada na mesma igreja do Recolhi- grandeza era "a Redentora".
mento do Parto. O báculo, na tradição judaico-cristã, além de Tentemos reconstruir, através do depoimento de alguns de
simbolizar a autoridade, está muito associado à imagem do Bom s'eus contemporâneos, os diferentes e complexos passos desta
Pastor, e sobretudo do santo profeta Eliseu (também chamado prodigiosa profecia. Já vimos, ao transcrever a visão na qual
de Santo Elói), que com seu cajado realizou prodigiosos mila- nossa protagonista trocou seu coração com o de Jesus, ocorrida
gres.3'.-.. ..\ '••--•". ------ -' aos 8 de julho de 1757, que a voz misteriosa que lhe antecipava
Na parte superior do báculo, na sua volta, uma inovação o futuro ordenara "que avisasse às filhas da cidade do Rio de
determinada pelos céus: lá estavam esculpidos os cinco corações Janeiro que Nosso Senhor tinha vindo fazer uma casa na sua
da Sagrada Família. Por seu turno, o Padre Francisco, certa- terra, para as recolher do dilúvio da culpa de que todas zomba-
mente em agradecimento por ter recebido da vidente um símbolo vam, mas que no dia do Juízo, havia [de] vir assentado no teatro

m
562 563
de seu amor julgá-las a elas e às filhas de outra cidade". A vinda *a~ poucos passos do local onde está o pelourinho onde nossa
do Justo Juiz, portanto, se tomarmos como base os escritos africana-espiritada foi cruelmente açoitada em 1750. Tais cenas
rosianos, haveria de suceder sob múltiplas performances e se- povoavam tão fortemente o imaginário católico, que sobrevive-
cundada por variegadas manifestações cataclísmicas: a "paru- ram ate o século atual, e nosso famigerado Padre Cícero do
sia" divina, isto é, sua manifestação gloriosa e visível, se daria Juazeiro chegou a declarar numa pregação que "o fim do mundo
sob as figuras de general, cavaleiro, visitador, comissário, ou, jaão está longe e eu sei, porque sou um dos que ajudaram a
ainda, sob a forma dos cinco sagrados corações, que "visivelmen- construir a arca de Noé". Acredite quem quiser!
te" viriam reformar a terra. Se na primeira profecia do dilúvio a "arca" do Parto não
____P^aanto ao castigo divino, como já vimos, Rosa e seu exor- chegou aflutuar, por falta de inundação, neste segundo vaticínio,
I cista profetizavam a ocorrência de terremotos, incêndios e dilú- a abertura das comportas celestes, a explosão das correntes
vio, não ficando pedra sobre pedra no Eio de Janeiro, chegando fluviais subterrâneas e os maremotos provocariam a miraculosa
ao Reino de Portugal esta medonha destruição. Mesmo anteven- metamorfose deste edifício de dois andares, em providencial
clo a deflagração de um dilúvio universal, alguns íntimos do tábua de salvação. Tudo fora revelado a Rosa, e os desígnios
capelão afirmaram tê-lo ouvido dizer que "os desertos se povoa- cêÍêatiais primavam, pela criatividade e grandiloquência.
riam por estarem isentos de culpas", repetindo o mesmo leitmo- •* - " Eis a primeira revelação:
tiu de incontáveis mitos messiânicos e milenaristas nos quais se
previa que "o mar vai virar sertão e o sertão vai virar mar". "Por se guardar no Recolhimento do Parto uma prenda
Contraditório, teria ainda este sacerdote segredado a um nego- ._- preciosíssima —- da sua mestra e fundadora -— Deus des-
ciante da Rua das Violas que, na sesmaria de terras que possuía - .tinara coisas grandes a este sacro colégio, havendo de ser
(no interior?), mandara cultivar "e queria fazer casas para se venerado e ter as mesmas indulgências que as casas santas
recolher a elas quando o Rio de Janeiro se sovertesse". Ou o sde Jerusalém e as igrejas de Roma e de Santiago de
informante reproduziu mal a conversa com o velho presbítero, Compostela, e que em breve seria venerado por reis e
ous .então, só mais tarde tomou corpo a ideia de que o- dilúvio •imperadores, nele se recolhendo pessoas muito ilustres,
previsto para. 1762 seria mesmo universal,, salvando-se apenas Jornando-se o maior e mais magnífico de todos os conventos
alguns poucos privilegiados que estivessem na "arca". do Reino de Portugal."
Mal fundado o recolhimento em 1754, já em 1756, numa
carta a seu querido Sr. Arvelos, Mestra Rosa referia-se a seu Tal profecia deve ter irritado profundamente os brios da
beatério como "arca", e, em 1759, quando do episódio do frustrado hierarquia eclesiásticlflusítana, uJ.íErãjãdâ~com a desrespeitosa
castigo da cidade de São Sebastião, seus muitos devotos ali se " ambiçãojle um pequenino, reles e insignificante beatério pre-
refugiaram exatamente por terem acreditado que, com a inun- -tênder sobrepujar os portentosos mosteiros femininos das Or-
dação desta cidade, "só escapariam os que estivessem na arca". dens Dominicanas, Carmelitas, Franciscanas7~AgòstinTãnas,
A analogia de uma casa religiosa com a arca de Noé é elementar, Ursulinas é~tantas outras riquíssimas in^títuiçoes_congêneres
e sua evocação, é frequentemente, encontrada em toda a cristan- qujshlijseculos abrigavam, intraclaustros, infantas, rainhas e a
dade, seja na iconografia, seja na^omUética., Em.diversos tem- fína(florda mocidade lusitana) algumas inclusive elevadas à
plos mineiros e cariocas, Rosa deve ter vísío, pintadas no teto,
cenas da arca de Noé, como ainda podemos contemplar, por
_glójria dos altare^_por_Roma. A ambição e a megalomania cega-
ram, o juízo deste bando de mulherezinhas, sem eira nem beira,
m
t -l: exemplo, no teto da nave da Igreja de São Francisco, emMariana, a maior parte de ex-prostitutas, recém-egressas da servidão. ii
Onde já se viu pleitear que um beatério crioulo se intitulasse

564 565
•^Império de Cristo", transformando-se no próprio trono onde o -~ g;as europeias modernas: a morte duvidada e duvidosa do jovem
, Senhor Jesus se sentaria para julgar o mundo no seu Juízo reiDom Sebastião nabatalha de Alcácer-Quibir".Nestepercurso
?!' histórico, tomaremos como guia os dois volumes da Poesia e
A segunda profecia, mais do que ofender as dignidades ~ filosofia do Mito Sebastianista, de António Quadros, obra defi-
eclesiásticas, configurava-se como heresia das mais graves, nitiva sobre o assunto.
atentatória ao dogma mais basilar do cristianismo: "Que rio Dom Sebastião (1554-1578), 16a Rei de Portugal, mal com-
próximo dilúvio, o Recolhimento de Nossa Senhora do Parto — pletara24 anos, comandou numerosa e mal-aparelhada expedi-
seria a arca de Noé onde o Verbo Divino ia se encarnar numa ção com vistas a subjugar o império do Marrocos e reconquistar
criatura e estabelecer um mundo mais perfeito que o presente." algumas praças da África perdidas por seu avô, Dom João III, o
Há duas versões sobre esta nova encarnação do Filho de instituidor do Tribunal do Santo Oficio. Aos 4 de agosto de 1578,
Deus: segundo o Padre Vicente Ferreira Noronha, morador ,nas areias marroquinas, o exército português é vencido, e mi-
próximo ao recolhimento e um dos delatores de Rosa, era pública lhares de cristãos são exterminados pelos mouros, desaparecen-
e notória a sua profecia de que após o dilúvio "iria encarnar o do nesta ocasião o "Formoso" mgnarca. Nenhum dos sobreviven-
Divino Verbo. . . numa das recolhidas, para a nova redenção"; por tes testemunhou sua morte, e seus supostos restos mortais,
seu turno, Irmã Ana Joaquina proclamava que, "se Deus hou- -" trasladados para o Mosteiro dos Jerônimos, carecem de auten-
vesse de se encarnar agora, só o faria na Rosa". Se considerarmos """ ticidade. A partir deste trágico e misterioso desaparecimento,

t a crença generalizada, entre recolhidas e devotos, de que Mestra


Egipcíaca da Vera Cruz era esposa da Santíssima Trindade,
irmã de Nossa Senhora e filha de Santana — tudo confirmado
não deixando herdeiros, em 1580, Portugal e suas-Colônias são
incorporados à coroa espanhola, sob a égide de(Filipe Ljlncon-
7 formados e desiludidos com tão acabrunhante tragéoianacional,
por ela própria, que costumava repetir: "Eu sou Deus!" —, não - -os portugueses e luso-brasileiros deixam-se fascinar por regene-
resta dúvida de que seria no próprio ventre da "maior santa do radora esperança: cristaliza-se, então, o mito de que oJDesejado
céu" que o Divino Infante escolheria para de novo tomar a forma ~~.Pom Sebastião não morrera, nem era jgrisioneirp dos xerifes
humana. Em Belém nascera do seio virginal de Maria, agora, ^5slâmicos; estava, simT"EncoBerto",j3Sj3ondidp numa ilha remota
em vez da manjedoura do presépio, o Rei dos Reis dava prova - — e-desconhecida, e brevemente retornaria ao Reino, envolto numa
ainda maior de humildade: escolhia como mãe uma mulher op_aca_jiebhna, a fim de recuperar seu trono usurpado pelos
è: negra da raça mais abjeta do universo, e mais: ia ser filho de
uma ex-mulher pública, a categoria mais desprezível das filhas
Jffab^burgos_dâ_Eap.anha^ devolvendo a Portugal sua honra
n. -l t • -i -i

vilipendiada, e aos portugueses a felicidade de viver.


i *

de Eva. Esta nova história sacra ia dar muito o que falar!


"O inconsciente cpletivo português, recusando a derrota,

m• A terceira parte da profecia é o corolário das anteriores:


"Que havia de sair Rosa com as quatro evangelistas, com o cajado
e a cruz da piedade, para conquistar o mundo e que, para a
reformação do século, já estavam feitas duas grandes naus:
~~~ criou o mito de umEncoberto que havia de regressar, havia
~ de regressar sempre, mesmo depois de passado o tempo
histórico de vida possível do próprio rei, mesmo passados
M numa grande, viria Dom Sebastião, e na outra nau, chamada
dos Cinco Corações, ia Rosa com suas acompanhantes."
- um século, dois séculos, quatro séculos. Se eternizou; deitou
raízes profundas, sofreu mil metamorfoses, renovando-se
Br: .Dada a complexidade desta profecia, para compreender- em cada geração." .
mos melhor seu significado profundo, convém abordar aqui,
sucintamente, "a mais persistente e extraordinária das mitolo- Poucos anos após este trágico desaparecimento, quatro
embusteiros arvoraram-se a ser reconhecidos como o Encoberto,

566 567
•H

que retornava d'África: desmascarados, foram exemplarmente T José de Anchieta, estando ao tempo dabatalha de Alcácer-Quibir
castigados. Mais numerosos, contudo, foram os escritores e TIO Brasil, disse na presença de seis religiosos: 'o exército per-
devotos, não só no Reino, como também no Brasil, que acredita- deu-se em África, mas o Rei pôde pôr-se a salvo, mas há de andar
ram e alimentaram o mito sebástico, seja através de prosa é ' muitos anos ausente do Reino e só tornará depois de muitos
trabalhos'".10 Em suas biografias oficiais omite-se tal profecia.11
verso, seja liderando um grupa de fanáticos, os "sebastianistas".
Diversos viajantes estrangeiros e cronistas referem-se à
Cumpre notar, outrossim, que, mesmo antes da catástrofe
de Alcácer-Quibir, circulavam em Portugal obras literárias dê presença em nossa terra de numei-oso séquito de sebastianistas:
forte cunho messiânico, cujas raízes históricas repousavam não "' entre eles, Spix e Martius, Lucock, Ferdinand Denis Debadie.12
«
p" Q jnais destacado profeta sebastianista brasileiro dos inícios do
apenas naTmtotogla judaica, fartamente divulgada na Penínsu-
la Ibérica pelos cristãos-novos, como também nas próprias tra- sé'culo XIX foi Silvestre José dos Santos, que em 1819, na serra
dições céltico-bretãs, transmitidas secularmente pelas famílias - do Rodeador, no sertão pernambucano, pregou a volta do Enco-
de cristãos-velhos. As Profecias doBandarra (1545) são o melhor "bêrto, sendo exterminado, juntamente com seus adeptos, por
exemplo desta corrente. ordem, do poder colonial. Segue-lhe o rastro místico, também, em
.Dentre os autores lusitanos que mais se destacaram pela ».. • ^-pernambuco, o mameluco João António dos Santos, morador em
divulgação do sebastianismo, convém citar Diogo de Teive, ^SiS^âiiBela da Pedra Talhada, que, por volta de 1836, previu o
Camões, ManuelBocarro Francês, Padre António Vieira, e, mais BliSítótòrnò do Formoso e de seu reino encantado. Dois anos se
recentemente, Almeida Garrett, Guerra Junqueiro; o próprio SS^ãssain, e, em 1838, inicia-se o mais importante movimento
Fernando Pessoa, além do pernambucano Ariano Suassuna. De iS^:irãaba;stianista do Império, chamado "Pedra Bonita", tendo como
todos, o maior propagandista e quem mais elaborou a apologia ;|^Í%c0rifeu o profeta João Ferreira, cujos rituais de purificação
do sebastianismo foi o jesuíta António Vieira (1608-1697), nota- ,-,.,.„ ...ÔS-iiàcluíam sacrifícios humanos e oblações com sangue. Também
damente nas seguintes obras: Esperanças de Portugal, Quinto ipíSiSa-ííLijém Canudos, nos primeiros anos da República, António Conse-
Império do Mundo,. História do Futuro e Clavis Prophetarum, ^ffiSÍS-;ifÉeiÍ0;Pregava ° retorno dei Rei Encantado: 'Visita nos vem
percebendo-se em seus escritos IHrm misto de visionarismo pro^_ ^fep^8§S|ê^;-nosso Rei Dom Sebastião, coitado daquele pobre, que
fético cristão, ardente patriotismo, imaginação mítica e um rpgS^ãflíyi^na lei do Cão!"
racionalismo demonstrativo de uma filosofia providencialista e ^Cr?iS".-"'';~Jpos que escreveram sobre este tema, no Brasil novecentis-
nurninosa da história".. Por causa destas obras tão polémicas, ^Sí/Fta^Charles Expilly, em 1860, é quem analisa o fenómeno do
o grande Vieira teve de sofrer por dois anos seguidos as amar- - Wff^b^tianismo com mais argúcia, tendo mantido longo diálogo
guras dos cárceres inquisitoriais, experiência tenebrosa que ÍÍ4KÍÍ com ura, fanático deste mito, o Capitão-mor Pedro Pacheco de
divulgou anonimamente no livrinho Notícias Recônditas, obra |;f|;:SÊ|arvalho, da vila de Ilhéus. Diz ele:
fundamental para se conhecer o funcionamento interno do Ter-
-j-i "O jovem monarca Dom Sebastião não está morto: pas-
ríbilem Tribunalem.
7,sou simplesmente ao estado de mito. Como o Rei Artur,
Diversos são os registros comprovando que, aqui no Brasil,
vive errante pelo mundo, ou, talvez, se tenha retirado para
além do Padre Vieira, também vicejou, entre colonos mazombos
- um sítio ignorado, onde os seus inimigos jamais o desco-
e crioulos, a crença sebastianista. Caberia ao nosso mais afama-
do taumaturgo, o venerável Padre José de Anchieta (1534-1597),
da Companhia de Jesus, a primazia em vaticinar a volta do
brirão. Graças ao dom da imortalidade que lhe facultam
suas virtudes, aguarda em paz o momento marcado pelos m
"Formoso" monarca. Segundo um documento de 1710, "o Padre decretos divinos para vir, de um surto, reivindicar os seus

568 569
direitos à herança de seus pais. Sempre a superstição trono 0 próprio São Sebastião e dispor, no Palácio dos Vice-
popular acreditou que o Rei Dom Sebastião está vivo, ebern Reis um belo quadro representando o Rei Encoberto.
vivo. Os jesuítas aindabordaramfantasias sobre este tema, Num documento datado de 28 de junho de 1760, véspera
jápassavelmente assombroso. Segundo eles, Deus confiou de São Pedro e São Paulo, Mestra Egipcíaca dizia claramente:
o Príncipe aos cuidados de um jovem eremita, que deve «Q Encoberto está para se descobrir, e cedo ele há de vir e o
velar por ele até que, obedecendo às ordens do alto, Dom mundo se há de reformar e todos os maus se hão de destruir..."
Sebastião possa de novo subir ao trono de seus antepassa- Tal enunciado repete, mutatis mutandis, o mesmo prognóstico
dos. A história era romanesca demais para não seguir o divulgado pelo "Sapateiro de Trancoso" em suas Profecias do
seu curso. Depois disso, os oráculos falaram. Predições , Bandarra no canto LXXV:
espalharam-se, ambíguas, obscuras, dizendo, por conse-
quência, tudo quanto se quer que elas digam, como as "Já o Leão ê esperto, mui alerto,
Centúrias de Nostradamus. As revelações que produziram Já acordou, anda caminho, tirará cedo do ninho
mais efeito foram as de um profeta anão, designado de -,. — o porco
Pretinho do Japão. Foram também as da Irmã Leonarda, ssspswyj,. E ê muito certo. Fugirá para o deserto
religiosa do Porto, que anunciava a próxima vinda do -j..- • •> - - DoLeãoeseubramido, demonstra que v ai ferido,
Monarca. A crença dos fiéis é tão viva em relação a Dom - • Desse bom Rei Encoberto..,"
Sebastião quanto a dós judeus em relação ao Messias. Seu
número eleva-se a alguns milhares tanto na Europa como t. - Nalgumas visões beatíficas, sobretudo de cunho apocalíp-
na América, embora, ao ouvi-los, agente deva contá-los por t tico, o^ imaginário utilizado por nossa beata evoca em muitos

p centenas de milhares." aspectos a mesma simbologia, secularmente associada à volta


do Rei Desejado que, por seus atributos de bondade e reforma

p:
{•tis-
It^mhwíMMM...
Se após três'séculos do desaparecimento do Rei Formoso
contavam-se aos milhares os fiéis que no Brasil acreditavam e
esperavam seuregresso, nõsmèados do século XVIII tal crendice
do género humano, confunde-se com a própria figura de Nosso
~*SênHor.- Numa visão de 1761, referida anteriormente, Rosa
""afirma ter visto sair de um mar de águas salgadas e ferventes
devia despertar ainda maior aceitação entre o populacho, cuja um"homem montado num cavalo branco. Tal cavaleiro, que à
propensão ao misticismo e às superstições encontrava neste mito primeira vista sugere a figura de Cristo, tal qual a viu primei-
porta aberta para suas especulações e profecias. Deve ter sido_ Jfrãinente São João Evangelista (Apocalipse, 19:11), poderia da
através das pregações e conversas particulares com seu exorcis- mesma forma evocar o Encoberto:
ta, o minhoto Padre Francisco, que Rosinha aprendeu a história
do Rei Encantado, não se desprezando igualmente a possível ~, _*1 _ "Este Rei, de grão primor
vertente franciscana de sua formação espiritual, pois os frades ' ~ .-. Com furor,
menores, desde que o italiano Frei Joaquim de Flora,, no século Passará o mar salgado
11 XII, escreveu sobre o futuro Império do Espírito Santo, passaram
a incluir as profecias milénaristas no ternário de suas pregações.
No Rio de Janeiro,' provavelmente, o sebastianismo devia
Em um cavalo enfreado
E não selado
Com gente de grão valor,3
ser ainda mais arraigado que alhures, posto ter esta cidade como
Também a missão purificadora de Rosa, líder do "mistério
da regeneração", pode ter encontrado na mitologia sebástica sua

'I; 570 571

11
fonte inspiradora. Segundo testemunho de Irmã Faustina Ar- ^profecia feita pelo Todo-Poderoso ao fundador do Reino Portu-
velos, Deus tirara as armas do Reino de Portugal •— as cinco calense: "Quero em ti e na tua descendência formar para miro,
chagas milagrosamente recebidas por Dom Afonso Henriques ^jjn Império!"
na batalha que marcou o início da nacionalidade lusitana, e as r,- ' Este novo Império seria mestiço, mulato, pois três das evange-
dera a Rosa, para fundar o novo Império, reinar com Dom " listas eram1 da mesma cor da ex-escravâ africana. Não contente em
Sebastião, converter todos os infiéis ("porcos") e- acabar com o autoproclamar-se "Esposa dá Santíssima Trindade", RosaEgipcíaca
gentilismo: aspír* enlaçar-se com a família real portuguesa, iniciando com suas
-evangelistas nova e reformada geração — mulata na cor, mas de
"Todos terão um amor " aJma e costumes tão alvos como a neve. Nigra sum, sed formosa... '
Gentios como pagãos A concretização final do mito sebástico, resgatado e adap-
Os judeus serão cristãos tado por Rosa, era o corolário de toda sua vida profética: seu
Sem jamais haver error..." casamento com Dom Sebastião, após o dilúvio universal, inicia-
tlaoreinadovisíveldbsSagradosCorações.EmRosacumpria-se
Aversão dada ao mito sebástico pela beata africana e suas ~ ^pío15êtido, tão ardorosamente esperado por incontáveis gera-
recolhidas comporta certas inovações sincréticas: Irmã Teresa -coes, desde Bandarra, Anchieta, Vieira e tantos outros sebastia-
de Jesus, natural das Ilhas Atlânticas — local onde expandiu-se Toistas: nenhum, contudo, ousara imaginar que o Encoberto ia
grandemente o sebastianismo —, numa Quinta-feira Santa fazer de uma africana sua esposa, a rainha do novo Império e
disse ter visto "as pajens dei Rei Dom Sebastião entrar pela -mãe de seus herdeiros. Afinal, para Deus nada é impossível, e
íl igreja do recolhimento com bandejas, cortinas de tela e galacé :o Onipotente costuma escrever certo por linhas tortas...
["galacé": espécie de tecido com bordadura de ouro, prata ou Não resta dúvida de que o terremoto de Lisboa e sobretudo
linho fino], com que prepararam, o trono em que estava Rosa com. a política secularizante do Marquês de Pombal devem ter con-
j «yí !' o Senhor Morto no seu coração". Irmã Ana do Coração de Maria, tribuído significativamente para a cristalização deste mito den-
por sua vez, divulgava ter recebido de S ao Miguel Arcanjo alista ~~tcoTdõ-Recolhimento de Nossa Senhora do Parto.
com o nome" das recolhidas que, como soldados, tinham sido
escolhidas para saírem na nova Conquista. As incrédulas esta- , "Em épocas de exceção, numa situação de catástrofe, por
vam excluídas de tão nobre missão salvífíca. exemplo, quanto é vital que homens descubram dentro de si
Era voz corrente no Beatério do Parto que naquele tene- "formas de resistência psicológica &.. adversidade, não é senão
broso dia, quando "o dilúvio das Minas vier dar ao mar salgado, natural que os mitos, de raízes porventura profundas no
derrubando todos esses montes e quando todos os mais rios se inconsciente desta coletividade ameaçada, regressem ou res-
mm
L_!Bj ; • hão de soltar e o mar há de sair fora dos seus limites, ficando surjam do. seu adormecimento. É o que explica a subida
toda a cidade do Rio de Janeiro dentro de suas entranhas...", irresistível de um mito como o sebástico. O Desejado passa a
neste momento fatídico, o Recolhimento do Parto ia se transfor- Encoberto, o jovem Rei desaparecido há de voltar das brumas
mar milagrosamente na "Arca dos Cinco Corações", começando _onde_se enconde para ser a cabeça universal de novo Império.
então a flutuar, ocorrendo aí. seu feliz encontro com a nau Ele tirará toda a erronia, ele fará a paz em todo mundo, ele
capitaneada pelo Desejado. 'Neste momento, "Rosa ia se casar
com Dom Sebastião, e suas evangelistas também se casariam
consubstanciará todas as aspirações ideais da época."
m
com seus vassalos ou criados, voltando para reformar o mundo Tudo isto graças à Rosa, tudo por intercessão e pelos
e fundar o Império de Cristo". Cumpria-se assim a tão desejada merecimentos da Egipcíaca. •
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A versão final do mito, tinindo matrimonialmente nossa - 23
demonopata com Dom Sebastião, quem sabe, teve sua inspira-
ção próxima no festejado casamento da Princesa do Brasil com. Prisão e Sumário no Auditório
o Infante Dom Pedro —• cerimónia realizada aos 3 de setembro j
de 1760 —, quando por carta régia estimulou-se todos os súditos _— ij Eclesiástico do Rio de Janeiro
"a manifestarem demonstrações de alegria".

Inicia-se o ano de 1762, ano crucial na biografia de Madre


Notas

tí 1. Caeiro, Padre José. Op, cit., 1936, pp, 181 e ss.


Rosa Maria Egipcíaca da Vera Cruz. Portugal e suas colónias
-^gózijãm-se com, o nascimento, aos 24 de janeiro, do herdeiro
=real,7o"Sereníssimo Príncipe da Beira, o Senhor Dom José.
^-Lisboa, qual fénix, reconstruía-se atoque de caixa do abominável
2. Casal, Aires: Corografia Brasílica (1817). São Paulo: Itatiaia/USP,
1976, p. 122. .terremoto de 1755, contando para tanto com polpudos auxílios
3. Bíblia Sagrada, IV Reis, 4:31. "obrigatórios enviados do Brasil, através das câmaras munici-
4. Queiroz, Maria Isaura Pereira, O Messianismo no Brasil e no pais,, acrescidos dos não menos desprezíveis cabedais advindos
Mundo. São Paulo: Dominus Editora/USP, 1965. do sequestro dos bens da extinta Companhia de Jesus. O próprio
5. Feitosa, Padre António. Op. cit,, 1983, p. 27. "bispo do Rio de Janeiro, useiro em bajular as autoridades da
6. Quadros, António. Poesia e Filosofia do Mito Sebastianista. Lisboa: Corte, irmana-se a esta corrente de solidariedade, enviando "um
Guimarães Editores, 1982, 2 v. carregamento de pau preto e outros" para a reedificação da
7. Idem, ibidem, p. 58.
è 8. Idem, ibidem, p. 149.
9. Idem, ibidem, pp. 197-198. . . .
capital do Reino.
r-; - ~ ^O Rio de Janeiro crescia e se sofisticava, consolidando sua
"condição de principal centro urbano do hemisfério sul. Lembre-

i
10. Monteiro da Fonseca, A. Sobre o Sebastianismo. Um Documento do
Começo do Século XVIIL Coimbra, s.d., 1956, p. 56. í"se õ leitor que será no ano seguinte, 1763, que esta cidade de
11. Rodrigues, Pêro. Vida do Padre José deAnchieta (1609). São Paulo: São Sebastião tornar-se-á a capital da América Portuguesa,
Edições Loyola, 1981. —desferindo na velha São Salvador da Bahia golpe tão deletério
12. Leal, Maria Teresa. El Sebastianismo em Portugal y Brasil: La 9.6 qual jamais conseguirá se recuperar.
Trajectória de un Mito. Revista de Cultura Brasilena, n. 52, novem-
bro 1981, p. 82. ^.^ "Crescera de importância política e económica a seção
13. Cunha, Euclides da. Os Sertões. Apud Queiroz, M, I. P., 1965, pp. ~^~ meridional do Estado do Brasil, enquanto se mantinha
•272 e ss. . ' ..,, • - -estacionário o desenvolvimento das capitanias do Norte, A
14. Expffly, Charles. Op. cit.', 1977, pp. 131 ejss.: frequência de conflitos com as autoridades espanholas do
15. Pessoa, Fernão. Sobre Portugal. Lisboa: Ática, 197.9, p. 221. Apud •" — Prata aconselhava que o governo da Colónia fosse situado
Quadros, A., 1982, p. 32."' 'mais próximo do teatro dessas ocorrências. Foi, porém,
16. Quadros, À., 1982, p. 105.'
sobretudo a descoberta e exploração das minas, inauguran-
"/fíT*?"" do o ciclo do ouro em substituição ao ciclo do açúcar, o que
mais pesou na resolução da Coroa de transferir para o Rio

574 575
de Janeiro a sede do governo central do Brasil, deslocando ~ de. Janeiro e do Conselho de Sua Majestade Fidelíssima, é
para as margens da Guanabara a capital da colónia com informado de que Rosa Maria Egipcíaca da Vera Cruz,
todas as repartições nela estabelecidas. A mudança foi inulher preta courana, moradora nesta cidade, tem come- m
decidida em janeiro de 1763, mas só em outubro do mesmo - tido culpas de heresia formal, as quais devem-se indagar
ano chegou o primeiro vice-rei nomeado para a nova situa- ^--para se remeterem ao Sagrado.Tribunal do Santo Ofício, a
ção: o Conde de Cunha." ,.quem pertence o castigo delas, e. considerando que as
<• nossas queixas [moléstias] nos impedem a tomarmos pes- m
A vida no Recolhimento do Parto transcorria rotineira
apesar da crença generalizada de que grandes sucessos estavam
, , soalmente conhecimento delas, pela presente portaria da-
~mçs comissão ao reverendo Padre Doutor Vigário Geral

por acontecer neste ano do Senhor de 1762. A 8 de janeiro, por
exemplo, o capelão Padre Francisco escreve à família Arvelos
quepossa proceder à denúncia de culpas de heresia e tomar
delas.cabal e legal conhecimento para se remeterem ao dito

^
tiuf
i-iú í-4 em São João dei Rei, dando notícia dos probleminhas costumei- Tribunal, e para este procedimento lhe cometemos. em
ros de sua comunidade recoleta, especialmente das filhas do -todas mesmas vezes. Dado em nosso Palácio Episcopal
casal de compadres:'diz que Irmã Faustina continuava com suas -desta cidade do Rio de Janeiro, sob o sinal e selo".
"costumadas moléstias" -— dando a entender que decorriam das
funestas influências do Maligno; que Irmã Genoveva também, Apesar de constar 110 belo selo de Dom António a insígnia
padecia com feridas pelo corpo e nas pernas, "mas com. tudo se dó Sagrado Coração de Jesus envolto em seu r esplendor, devoção
acomoda e se conforta". Manda lembranças a seus amigos mi- que teve em Rosa sua principal vidente e propagandista nesta
neiros, pedindo que respondessem logo à sua missiva. Termina -cidade,' os representantes oficiais de Cristo na terra despreza-
com uma reflexão piedosa: "Todos têm sua cruz, e sem ela vam seu currículo místico; antes, pelo contrário, questionavam
ninguém se pode salvar. Eu sou cativo de meus Senhores, os a ortodoxia de suas palavras e atos, dando início a uma acirrada
m Santíssimos Corações."
Não imaginava o capelão que, na semana subsequente,
guerra contra a vidente africana, acusada do mais grave delito
i ~&&. alçada inquisitorial: heresia formal. Dando ordem para que
m. antes-até~de esta carta che"gar s*seus destinatários,iniciar-se-ia
seu doloroso calvário, cujo Gólgota haveria de ser o Tribunal do
"Insuspeita de heresia fosse "cabal e legalmente" indagada pelo
"vigário geral do bispado, o prelado estava cumprindo os artigos
Santo Ofício da Inquisição. Suas profecias, mesmo que baralha- 866 e 867 das Constituições Primeiras do Arcebispado daBahia,
das, começavam a se cumprir: 1762 seria, de fato, data crucial : assim determinavam:
na história de sua vida, de Rosa e de dezenas de devotos dos
Sagrados Corações. Enquanto no recolhimento as madalenas ,... "Para que p crime de heresia se extinga e seja maior a
participavam de barrocas encenações paralitúrgicas comanda- ^ * glória de Deus Nosso Senhor e aumento de nossa Santa Fé
das pelo capelão, com seu cajado de prata, e pela preta Egipcíaca, Católica, e para que mais facilmente possa ser punido pelo
com a impressionante cruz de jacarandá às costas, o destino ~ Tribunal dó Santo Ofício o delinquente, ordenamos e man-
destes corifeus sebastianistas e das recolhidas que dirigiam damos a todos nossos súditos que, tendo notícia de algum m
estava seridõ secretamente decidido nos salões do Palácio Epis-
copal do Rio de Janeiro.
"Tierege, apóstata de nossa Santa Fé ou quem seguir dou-
trina contrária àquela que ensina e professa a Santa Madre
m
A.OS 22 de janeiro, Dom António dó Desterro,. Igreja Romana, o denunciem logo ao Tribunal do Santo m-
Oficio, e quando, por justa razão que o tenham, o não
"pormercê de Deus e da Santa Sé Apostólica, bispo do Rio possam fazer, serão sem embargo disso obrigados anos dar

576 577

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conta para que ordenemos o qú"e for conveniente em ordena .'.". ™ ai^ira ÍTpara estabelecer
•^TYlliTTlS. CJLX**'1'1-4-1-
um mundo mais
- . . I A T
perfeito
>•

de ser delatado o tal delito e se proceder segundo a justiça ^Sae o presente; que tais profecias tem provocado o escan-
; -falo.e descaminho de pessoas idiotas e de fácil convenção,
pedir." '•'• •
Sí'^usando perniciosas confusões e escandalizando a toda
Aportaria do bispo é datada de 22 de janeiro de 1762. Três, K??sta cidade em geral, de sorte que uns ignorantes e mate-
dias depois, aos 25, festa da Conversão de São Paulo, iniciam-se '• --;;,- .naisacreuj.uc"^,- - _ - ^
os trâmites judiciais. Coube ao promotor do Juízo Eclesiástico " ^'%;para que não fique sem emenda e satisfação o escândalo
local, o reverendo Dr. António José Correia, formalizar o auto: l^lfertorbação que ela tem causado com seus erros e culpas,
de denúncia: dirigiu-se, então, às casas do principal repre-", HÇ^le^seja feito sumário".
sentante da Inquisição no Rio de Janeiro, o Padre António José"
dos Reis Pereira de Castro, entregando-lhe a dita portaria. .'. ÉR~iQpor:este minucioso rol de denúncias, evidencia-se que as
Desde 1754 que este sacerdote fora habilitado para o cargo Sf^idades eclesiásticas cariocas estavam bem informadas so-
de comissário do Santo Ofício no Rio de Janeiro. Era natural da.: ^feéài conduta mística e demais bizarrices da recolhida africana,
i* vila do Conde, no bispado de Braga, sendo escolhido por Dona • ^^gEisiVe sobre as recentes profecias cujo cumprimento estava
António como seu secretário particular, ocupando na época os ^frÉsvasto para o corrente ano. Coloca-se, então, a indagação: se
principais postos de hierarquia eclesiástica local, asaber: cónego Sfâvários anos Rosa, o capelão e as convertidas do Parto persis-
doutoral e mestre-escola na Sé; visitador geral; juiz dos resíduos, "S iSian^em tais "desvios", por que somente agora, nos inícios de
"de gênere" e dos órfãos; comissário da bula da Santa Cruzada; ^ ^%Íj62 decidiu-se o bispo a acatar a denúncia e mandar proceder
provisor, governador e vigário geral da diocese. Depois do bispo --- S^cpntra os supostos réus? Se o prelado, por sua doença constante,
era, portanto, a principal autoridade da Igreja local. Fora ele . j ®tóed&ãrseem castigar os delinquentes, então por que os repre-
' que já no ofício de vigário geral, três anos antes, cumprira a :_• •K'sentantes da Inquisição, moradores no Rio de Janeiro, não
ordem de Dom António, expulsando Rosa Egipcíaca do recolhi- ; ^ ^Ihaviam até então procedido contra a acusada principal?
mento, como castigo por sua suposta conduta indecente. A negra- «^ iStefí Apesar de a documentação não explicitar esta dúvida,
cõúranã jaTerã" pôr conseguintèTsua velha conhecida, quando^ ercnra 3 aleumas pistas que permitem-nos detectar as cau-
& r . . _ i • r> ~\l T

recebeu a comissão do reverendo bispo. ;/ r •;


" "slspróximas que levaram àprisão de nossabiografada. Tal qual
Na petição apresentada pelo promotor, informava-se ao ;.: acontecera nas Minas, quando de suas duas prisões em São João
Í& Rei e Mariana entre 1749 e 1750, também aqui no litoral
comissário Pereira de Castro que ™=
" serão os clérigos os responsáveis pela desgraça da negra espiri-
"tivera notícia de que a negra Rosa há muitos anos é, ou tada. Mestra Egipcíaca incorreu em dois grandes pecados no seu
se finge, vexada do Demónio, è que o Espírito que fala por Í. relacionamento com o clero carioca: criticou abertamente o
ela se chama Afecto, e lhe fora dado por Deus parapurificar - indigno proceder dos "operários da vinha, do Senhor" e, mais do
e zelar pelo seu culto nos templos, agredindo às pessoas na que isso, ousou agredir fisicamente alguns destes maus presbí-
mesa da comunhão; que o Padre Francisco Gonçalves Lopes teros, ferindo o artigo 915 das mesmas Constituições, que pre-
é o. principal pregoeiro de suas fingidas virtudes, e quem viam'as penas de excomunhão, degredo ou multas pecuniárias
manda escrever em verso e trova suas profecias; que a quantos ofendessem alguma pessoa sagrada ou dedicada ao
" W-'^-
profetizou que um dilúvio inundará o Rio de Janeiro, e o culto divino. . . .
Recolhimento de Nossa Senhora do Parto flutuaria como Já vimos alhures que nossabeata alimentava, como outras
à arca de Noé; que o Verbo Divino ia se encarnar de novo

578 579
santas mulheres de seu tempo, verdadeira idolatria para com dês poderes o Altíssimo conferia à "Flor do Rio de Janeiro": além m
os sacerdotes, a tal ponto que diariamente fazia uma série de
orações, jejuns e sacrifícios dedicados à santificação do clero
de saber os pecados ocultos dos sacerdotes, tinha força para
manietá-los espiritualmente. m
regular e secular. Em suas últimas visões, relatadas no capítulo
anterior; por diversas vezes ela se refere às "ofensas que os filhos
Suspeitamos que, apesar de terem sólidas razões para a
denunciarem, não tenham sido estes clérigos ofendidos seus
m
da Igreja" faziam à glória divina, sendo encarregada de divulgar delatores junto ao bispo. Nossa principal desconfiança recai
"aos filhos da Igreja que, assim como o Cristo suou [sangue] na sobre Frei Manuel da Encarnação, mestre de Teologia e cano-
presença de sua redenção, assim haviam de suar na presença
de sua reforma". Tais reprimendas e mensagens devem ter
- " nista, eleito provincial do Convento dos Franciscanos do Rio de
Janeiro exátamente em 1761. Fora graças ao empenho deste
m
provocado indignação nos orgulhosos ministros do altar. Quem frade que, três anos antes, através de sua denúncia junto ao m
outorgara poderes a esta negra intrometida para estar propondo citado vigário geral, Rosa fora expulsa de seu recolhimento,
reformar e ameaçar o clero carioca? sendo punida por desacatar duas escorreitas senhoras da socie-
Em seu afã catequético, a ex-meretriz desrespeitou várias dade fluminense, amigas e protegidas do dito frade. Agora,
vezes os limites do cerimonioso distanciamento ordenado pelas
Constituições eclesiásticas em relação aos ministros do altar.
"~ segundo informou o capelão do Parto, Frei Manuel da Encarna-
ção, eleito para ocupar o cargo mais elevado da província fran-
m
Numa Quinta-feira Maior, provavelmente na Semana Santa de " "ciscana, e liderando "a parcialidade contrária a Frei Agostinho"
Wí'
1761, ano anterior à sua detenção, quando participava do tríduo — o finado confessor de Rosinha —, desforrou-se da negra
li; litúrgico na Catedral, "se enfureceu contra dois seminaristas do •,. inquieta, de seu capelão e, de lambuja, das demais recolhidas
Colégio de São José, que estavam conversando, fazendo gestos que porventura participassem da mesma "parcialidade" da acu-
de vexada". Nesta ocasião, tendo encontrado os Padres Gonçal- sada. Sua autoridade como provincial deve ter influído na deci-
ves Calado e António Barbosa, após celebrarem a santa missa, são de Dom António do Desterro em acatar as denúncias e Frei
em amistosa conversação, em vez de rezando os atos de agrade- Manuel demonstrava estar perfeitamente inteirado não só das
cimento normais depois da celebração da eucaristia, .entrou a -;";• supostas "heresias" e embustes da acusada, como também de
descompô-los "como costumava advertir os defeitos e irreverên- sua numerosa rede de devotos, tanto que, provavelmente, deve
cias dos fiéis". Foi nesta ocasião que tais sacerdotes reagiram " ter sido este vingativo franciscano quem ofereceu ao comissário
violentamente contratamanha ousadia, "chamando-a de cachor- do Santo Ofício uma lista de 19 nomes para serem arguidos a
iMilii'; ra, embusteira, e que seus confessores é que tinham culpa desses — respeito da vida e costumes da preta courana. Estando sujeito
;Sí i s;-! •
••*,¥!•:"• fingimentos, especialmente o Padre Francisco Gonçalves Lo- ò Recolhimento do Parto à supervisão espiritual dos francisca-
pes". Correu a notícia entre seus devotos que, nesta ocasião, por nos, o provincial desta Ordem era, portanto, quem por direito
suspeitarem estes dois clérigos serem intrujices os zelos da =?- devia estar mais bem informado sobre o funcionamento interno
beata, "ela os prendera espiritualmente com uma forçosa cor- " 'e sobre as redes de relações das recolhidas com o mundo extra-
rente". Aliás, já em outra oportunidade, a espiritada manifesta- muros. Mais ainda: entregou Frei Manuel da Encarnação ao
ra semelhantes poderes preternaturais: certo dia, no pátio da .. .comissário Pereira e Castro duas folhas manuscritas, uma de
Igreja de Santo António, duvidando um certo presbítero da autoria de Rosa, outra ditada para a ex-regente Maria Teresa,
veracidade de seu espírito maligno, 'laçou-lhe então Rosa as _ ambas tratando de revelações místicas. Tudo leva a crer que o
mãos, ficando o padre preso como numa corrente forçosa, e isto provincial obtivera tais documentos no espólio do finado Frei
lhe fizera em castigo de uma causa ilícita que cometera". Gran- Agostinho, o qual chegara a colecionar um saco cheio de manus-

m
IÍ:il 580 581
P
hk critos de sua dileta dirigida, queimados pouco antes de passar
desta vidaparaamelhor.Aguisa de ilustração, epara corroborar
há quatorze anos ela é vexada por um. espírito que lhe causa
dores e aflições, e só a inclina a zelar e defender a honra de Deus
í nossa suspeita contra Frei Manuel, descobrimos que, além de
vingativo, destacava-se pela licenciosidade dos costumes, tanto
que, três anos após estes acontecimentos, o próprio Dom António
e a veneração de seus templos, atacando as pessoas desonestas
ou mal comportadas; que desde que a conheceu "sempre a viu
era boa vida, dada à oração e favorecida com várias visões e
do Desterro oficiava à Corte denunciando o escândalo dos fran- locuções do céu". Conta, então, como prova de sua benquerença
ciscanos do Convento de Santo António do Largo da Carioca, celestial, a miraculosa fundação do Recolhimento do Parto, a
notadamente do provincial Frei Manuel da Encarnação e do prodigiosarevelação dos Santíssimos Corações, além de diversas
visitador do capítulo, Frei Francisco da Purificação, os quais outras visões e revelações que a negra vexada disse ter recebido
sustentavam uma casa de família de suas amásias, com quem. dos céus, e que j á transcrevemos ao longo deste livro. Esclarece
tinham filhos, sendo ambas, coincidentemente, irmãs carnais. inaís:o declarante que sempre aconselhou à sua energúmena
As sessões do inquérito contra Rosa têm início a 26 de que rezasse o Credo todas as vezes que fosse raptada em êxtase
janeiro, já no dia seguinte ao do auto de denúncia do promotor. Bé~atíficos, garantindo assim ser de Deus, e não do Maligno, a
A rapidez desta decisão sugere que a autoridade inquisitorial • ^procedência do fenómeno; atribuiu ao barbadinho Frei João
julgou a matéria grave, merecedora de pronta investigação. ~ Bâtistada Capo Fiume a autoria darevelação do dilúvio de 1759.
Ao todo foram ouvidos doze homens e sete mulheres, entre De'dois manuscritos apensos aos autos, reconheceu como sendo
estes, três sacerdotes, algumas recolhidas, ex-recolhidas e seus de"Rosa a letra da carta que começava com as palavras "Meu
parentes, cinco moradores vizinhos ao recolhimento, três nego- Padre, dou parte"; do outro, ignorou a autoria. Perguntado se
ciantes, dois músicos, um cirurgião e dois oficiais mecânicos. considerava-a como possuidora de "alguma enfermidade ou vício
O primeiro a ser inquirido foi o capelão do Recolhimento para que perdesse o juízo, ou se tinha alguns dilúcidos interva-
do Parto — Padre Francisco Gonçalves Lopes. Na "sala de los", respondeu que ela não possuía nenhuma "lesão no juízo".
audiências" das casas de morada do comissário do Santo Ofício, FJ mais não disse. "E, sendo-lhe lido este depoimento e por ele
lá estavam o escrivão do sumário, Padre Amador José dos JS£? ~. ^.í.- -Sw-
UjKsyid'0 e bem entendido, disse que estava na verdade e sem nada
Santos, e mais dois sacerdotes como testemunhas: os Padres a, diminuir, mudar nem emendar, jurando outra vez sobre os
António Francisco Bittencourt e José António Vitorino, todos - Santos Evangelhos." Assinou embaixo: "o Pé. Franco Giz Lopez".
"do clero secular e de reconhecida idoneidade". No decorrer do A assinatura é firme, porém trémula: além da idade avançada,
inquérito, mais dois presbíteros assistirão, em substituição aos ~ ~emoção e temor deviam ter-lhe abalado os nervos, pois não tinha
primeiros, a estas sessões: Padre Manuel do Espírito Santo, a menor ideia em quantas partes podia desdobrar-se o processo.
escrivão dos dízimos do bispado, e Padre.Francisco Pimenta de • Saindo da sala, após duas ou três horas de inquirição, os
Oliveira. • • . - , - ^quatro sacerdotes analisaram o depoimento do declarante, con-
Como de praxe, devia a testemunha identificar-se. Disse o citando que dizia a verdade, "por ser sacerdote, pessoa de boa
Xota-Diabos ser natural' do arcebispado de Braga, 67 anos, vida, e sem dúvida não seria capaz de faltar à verdade, princi-
capelão do Recolhimento do Parto. Após jurar sobre os Santos_ . palmente em matéria de tanta ponderação". Todos assinam por
Evangelhos e prometer dizer a verdade, "foi-lhe perguntado pelo extenso. O Santo Ofício primava pelo formalismo burocrático, e,
- conteúdo da denúncia. Disse então que conhece muito bem Rosa, verdade seja dita, a primeira opinião destas testemunhas, a
que foi sua escrava, à qual comproupara ele, Pedro Róis Arvelos, despeito do corporativismo clerical, é francamente favorável ao
e hoje é liberta". Narra, então, sucintamente sua história: que velho capelão.

582 583
El:
í- '*«?
m
No mesmo dia 26 de janeiro, certamente depois do almoço, Felipe de Souza, lisboeta, 57 anos, residente àrua dos Pescado-
é chamada a segunda testemunha: o Padre Vicente Ferreira res — pequena e feia artéria que ligava o Largo de Santa Rita
Noronha, com 24 anos, carioca da freguesia da Candelária, ao Cais do Mineiros, no sopé do Mosteiro de São Bento. Tal
morador à rua de São Pedro. Disse saber quem era Rosa "por sacerdote informa conhecer a delatada desde os tempos em que
u. ser bem conhecida nesta cidade, pelo diferente vestido com que --ambos ainda moravam em São João dei Rei, há 10 ou 12 anos
anda, com hábito de burel como de capucho". Não se esqueça o passados, "sendo público que ela fingia ter o Espírito Lúcifer".
leitor que as poucas freiras e recolhidas, no Brasil antigo, viviam Declarou nunca ter visto nada de extraordinário em suas vexa-
sempre enclausuradas, de modo que uma mulher vestida em _.. coes demoníacas e, para comprovar seu fingimento, contou o
hábitos de religiosa, perambulando pelas ruas, sobretudo sendo seguinte episódio: "em São João dei Rei, uma vez, estando
vâ ' da cor negra, devia chamar muita atenção dos transeuntes. atacada, um clérigo por escárnio deu a Rosa um papel escrito
Racionalista, o jovem presbítero vai logo declarando "ser público • com várias parvoíces, recomendando que o trouxesse e que se
entre as pessoas inteligentes que ela finge ter um Espírito, com havia de achar bem, e ela logo, entre soluços, acalmou-se,
o qual, estando nas igrejas, insulta as pessoas". Confirma ter " dizendo sentir-se melhorada, pensando tratar-se de um exorcis-
sido público e também notório que profetizara um dilúvio uni- r ino..." Não conheciam estes letrados, naquela época, a ação
versal "e que depois iria encarnar o Divino Verbo numa das curativa dos placebos...
recolhidas, para anovaredenção". Acrescentoumais: que ovelho Padre Filipe, conhecedor dos principais acontecimentos da
comissário do Santo Ofício, Padre Francisco Fernandes Simões, vida desta ex-mulher do fandango, posto terem sido vizinhos
tivera conhecimento desta profecia, cuja autoria, também ga- = quando, já no Rio, residia nas imediações da Igreja de Santa
rante, devia-se ao citado capuchinho italiano. Joga, então, mais Rita, discorre sobre a frustrada profecia do templo de Santana,
lenha na fogueira da africana: revela ter ouvido dizer que Rosa " no distante morro do Fraga; o exame e exorcismes públicos a
"é uma fina feiticeira, e que já por isto viera corrida das Minas, que foi submetida na Sé de Mariana; a flagelação no pelourinho
por se lhe ter achado o corpo de uma criança seco, segundo disse __daquela cidade e a intervenção do Sr. Arvelos, prestando-lhe
publicamente na sacristia da Igreja do Senhor Bom Jesus do ^assistência material, etc. Conclui afirmando que "o Padre Fran-
Calvário o Padre Gregório dos Reis". . cisco Gonçalves Lopes é nimiamente crédulo em seus embustes,
li» Os senhores clérigos presentes na sala de audiências de-
vem ter franzido a testa com esta nova revelação, pois, além de
e a respeita por pessoa de grande virtude", o que tem levado
_muitas pessoas, sobretudo mulheres, a devotar-lhe verdadeira
p s:; heresia formal, a negra tinha também fama de feiticeira, outra adoração.
Kí.S*f f
das graves condutas heterodoxas listadas no Tribunal do Santo Embora algumas das próximas testemunhas também fa-
Ofício. A inquirição começava a render! . çam pequenos comentários desairosos ou comprometedores à
Passam-se dois dias sem audiência. Aliás, ou o comissário conduta da delatada, foram estes dois sacerdotes seus principais
tiif'
Ít4
Pereira e Castro estava assaz ocupado com outras sindicâncias acusadores, pois todos os demais declarantes faziamparte direta m
e afazeres de suas muitas funções eclesiásticas, ou tais burocra-
tas de batina tinham o costume; de trabalhax mui lentamente,
'ou indireta do "pequeno rebanho" dos que tinham depositado em
• Mãe Rosa suas mais sublimes esperanças de salvação. Não deixa
m
ti pois sempre intercalavam dois ou mais dias de folga entre uma
"assentada" e outra. Rotina do ofício.
Aos 29 de janeiro são ouvidas mais três testemunhas. Inicia
de ser curioso que tais clérigos, sabedores há anos de tais
• condutas heterodoxas, não tenham até então dado parte das
mesmas às autoridades inquisitoriais, pois todos os anos, no
os depoimentos o último clérigo deste rol de acusantes, Padre primeiro domingo da Quaresma, eram lidos em. todas as igrejas

mm.
' í" tj; -'-li' 'i
3íí!-.55i:;;i:!j;
584 585

iiiiii-
do Brasil os famigerados "Editais do Santo Ofício", obrigando " Colónia. Ambas testemunhas creditaram ao frade capuchinho
todos os fiéis, e com mais razão os tonsurados, a denunciar aos a-publicação do malfadado dilúvio, confirmando os acidentes e
comissários mais próximos todas a pessoas desviantes, cujas agressividade da Mestra da Vera Cruz quando possuída pelo
faltas constavam no extenso rol de culpas. "Afecto". Pelo reduzido de seus depoimentos, assim como de
Francisco Martins Moreira foi a quarta pessoa a testemu- outra's testemunhas, somos forçados a concluir que os filhos de
nhar. Natural de Trás-os~-Montes, 39 anos casado com Isadora Mãe.' Rosa tentavam esconder o que sabiam, ou atenuar-lhe
Josefa do Sacramento, exercia a arte de cirurgião em sua casa -eventuais culpas, acreditando tratar-se de um lamentável equí-
à rua do Rosário. Provavelmente deve ter prestado seus serviços voco esta sindicância incriminatória contra a "Flor do Rio de
médicos — sangrias, sanguessugas, etc. — às recolhidas e ao Janeiro".
padre capelão, pois sua mulher esteve recolhida no Parto du- No último dia de janeiro deste fatídico ano de 1762, é a vez
rante alguns meses. Nesta época, era costume "recolher" a ideõjcarioca Feliciano Joaquim de Souza, 40 anos, dar sxia versão
esposa nestes beatérios quando o marido devia ausentar-se sem destes acontecimentos. Casado, tinha residência junto às freiras
ter onde ou a quem confiar a consorte, ou, então, algumas Jla Conceição. Aparentemente pertencia ao grupo dos incrédulos,
esposas, para escapar da violência dos maridos, refugiavam-se ernbora mantivesse estreita amizade com vários devotos da
dentro dos claustros até que os ânimos se apaziguassem. O que "negra capucha, tanto que seu depoimento é dos mais longos e
este cirurgião sabia a respeito de Rosa ouvira, portanto, de viva ricos de detalhes. Quiçá estivesse tentando astutamente eximir-
voz, não só de sua mulher, como de sua cunhada, nossa já sé de cumplicidade com a comunidade dos crentes, temendo a
conhecida Irmã Maria Teresa, a primeira regente do dito bea- ação'repressiva da Santa Inquisição. Declarou que o Padre
tério. Confirma a notícia de suas visões, a profecia do dilúvio, -Francisco costumava apregoar que "o Recolhimento do Parto era
sendo um dos devotos que, com os demais membros de sua destinado a coisas muito grandes e que nele se haviam de
crédula família, se refugiara na igreja do recolhimento, em 1759, recolher pessoas muito ilustres e seria procurado por Reis e
com o escopo de salvar-se do castigo divino, castigo, aliás, que -.Imperadores". Citou o soldado Francisco Xavier e a mulher do
nunca se concretizou. Disse mais, que Mãe Rosa ensinava que ^fazendeiro Lucas Pereira como devotos dos mais fervorosos da
"a Nova Era ia reformar também Portugal", enquanto o capelão visionária, declarando que eram "nimiamente crédulos nestas
garantia que a negra sofreria igual martírio ao do Cristo Nosso ficções e acerrimamente apaixonados pelo recolhimento". Sua
Senhor. Conclui seu depoimento com a mesma observação do _bela assinatura, com que ratificou o depoimento, sugere tratar-
anterior: "Rosa engana mais às mulheres, que são mais fáceis ""se~de pessoa bem escolarizada e culta, capaz, portanto, de
m. de dar crédito a isto e a veneram e, respeitam por grande serva
de Deus." A eterna fraqueza das filhas de Eva!
Dentre as testemunhas foram ouvidos, nos dias subsequen-
matreiramente passar-se por inocente neste ernbroglio eclesiás-
jáco.-
Joaquim Pedroso, a oitava testemunha, era o irmão mais
lilí tes, dois músicos mineiros, conhecedores da negra espiritada velho da regente Maria Teresa: solteiro, 34 anos, vivia de
desde os tempos de Mariana, e dela grandes devotos. Devem ter negócios. Era íntimo de Rosa, pois três de suas parentas convi-
abandonado as Minas, como muitos .outros profissionais e artis- veram longamente com ela no "sacro colégio". Estava presente
tas; nesta segundametadè do Setecentos, fugindo da estagnação, quando a vidente vaticinou que a alma de seu cunhado recém-
prenúncio da decadência da sociedade mineradora, atraídos falecido penara apenas três dias no purgatório, incluindo-se
pelos iiovos ares de progresso material que favoreciam agora o entre os apavorados filhos da negra courana que, ao lado de
Rio de Janeiro às vésperas de sua elevação à nova capital da outros membros de sua família, refugiaram-se na capela do

586 587
recolhimento quando do fracassado dilúvio de 1759. Ao ser-lhe 31 anos, casada com uma das testemunhas há pouco arrolada,
mostrado alguns manuscritos apensos aos autos, reconheceu as
letras de suas duas irmãs, Maria Teresa e Isadora Josefa.
o cirurgião Francisco Martins Moreira. Depõe ter conhecido a m
Narrou, então, um episódio que, pela novidade e contradição, há
de ter merecido p articular atenção do comissário do Santo Ofício:
negra vexada desde os primeiros dias de sua chegada no Rio de
Janeiro, pois o Padre Francisco, velho conhecido de seu pai, m
levara-a à sua casa, dizendo "ser grande serva de Deus e que
que sua irmã Isadora, casada com Manoel Francisco Xavier,
m dera à luz um menino, e chegando logo cedo Rosa à sua casa,
nela se ocultava um grande mistério, falando por sua boca os
anjos e santos". Durante o período que conviveu no beatério,
"de quem Isadora era muito devota, teve uma alocução interior ..afirma ter visto sempre Mãe Rosa com o Menino Jesus no regaço
j i, ,! .;,-;i i-:; que lhe disse no entendimento que esse tal menino havia de se de seu peito, "e, mesmo fechando-o no oratório, e levando a chave
chamar Joaquim José, e que seria um grande homem, uma das o' capelão, ao voltar, lá estava o Menino Jesus no seu regaço",
Í | maiores colunas da Igreja, e que se tomasse em lembrança o -Foi esta informante quem, contou todas aquelas visões da fun-
!-;-, \ Vi -.'...
nome dos pais e dele tomasse as ações que fazia". Crédulo ainda, dadora, revelando o destino das almas de sua mãe, do coronel
pi o confessor de Rosa, Frei Agostinho, foi anotando todos os Matias Coelho, de seu cunhado Manoel Francisco Xavier, da
progressos desta criança predestinada — aliás, como vários crioula encomendada na capela do Parto, etc. Em suas declara-

im; outros escritores sacros fizeram em relação a muitos beatos e


beatas da Santa Madre Igreja, cujas biografias prodigiosas têm
início à;s vezes antes mesmo do nascimento. Sucedeu, porém,
ções, comprometeu gravemente o capelão e sua dirigida, ao
informar que, nas ladainhas recitadas no beatério, ao rezarem
Regina Virginum e Regina Martirum, Rosa apontava para o
OKiii..;: . triste imprevisto: ao completar seus quatro aninhos, este futuro
m^
i-r bispo ou, quem sabe, futuro Papa, não resistiu a uma doença,
padre, e, quando diziam Regina Sanctorum Omnium, o capelão
apontava para ela, dando a entender que a considerava "rainha
vindo o pobrezinho a morrer. Matreira e escolada em remediar de todos os santos". Costumava dizer igualmente que a negra ia
profecias descumpridas, a negra deu a volta por cima: "antes, sofrer paixão e morte igual à de Nosso Senhor Jesus Cristo,
porém, que sucedesse esta morte, teve ela outra alocução [que concluindo seu depoimento com mais uma pérola — falsa — da
.•iiUli ,-«-
*M*- não revelou a ninguémll em que lhe_dizia haver Deus retratado Tpseudovidente: "que, ao noticiarem o terremoto de Lisboa, ela
o decreto sobre o tal>menino, por ter casado uma tia dele com disse que isto já sabia há muito tempo", apesar de a ninguém
III' pessoa que era do desagrado do mesmo Deus..." Oh santa e cega ter previamente revelado sua profecia! Profetisa expost-facto...
i-y
credulidade! Oh profecias e locuções arquitetadas ao sabor das Depois de ter ouvido dez testemunhas, transcorridos nove
conveniências! Rosa devia possuir realmente um carisma tão dias desde o início destes depoimentos, aos 4 de fevereiro, o
forte, uma personalidade e poder de convencimento e comoção comissário do Santo Ofício, assessorado pelos demais sacerdotes
tão extraordinários que, malgrado vários reveses e fiascos espi- que acompanharam todo o sumário, conclui que já possuía
rituais, em vez de diminuir a fé de seus devotos, mais e mais elementos sobejos para inculpar não só a primeira denunciada,
sequazes engrossavam as fileiras de seus adoradores. anegraRosa, como seuex-senhor e atual capelão. Ordena, então,
Os clérigos da audiência judicial devem ter concluído una através de um auto, "que sejam presos e estarão no aljube com
uoce.-herege,-feiticeira, falsa profetisa e fina embusteira! De uma •segurança, e se proceda logo ao sequestro dos bens do padre,
virtude ninguém podia eximi-la: era astuta como o Cão! para o que se passem as ordens necessárias e se continue a
Mais uma pausa de dois dias, e aos 3 de fevereiro é ouvida inquirir as demais testemunhas". -
uma das irmãs da citada regente, Ana Maria Joaquina do Tudo nos leva a crer que nem a acusada nem o Padre
Sacramento. Como todos de sua família, também era lisboeta, Francisco foram presos nesta data, sendo encarcerados somente

588 589
l,M "'Zr "'í'-"

IM J.
alguns dias mais tarde, primeiramente ela. Assim também, - do Menino Jesus da Porciúncula, pois curou-se da soberba, e o
embora seja do dia 5 de fevereiro a ordem do comissário Pereira Meni.no Jesus fez do meu coração arco e flecha para flechá-la..."

l
*i
e Castro para "sequestrar quaisquer bens do sacerdote, com Comenta, então, a visita que o primo das meninas Arvelos fez
apreensão fechada em todos eles, e o depositarão em mãos de ao-recolhimento, dizendo que malgrado ter sido à distância o
*T um depositário fiel, chão e abonado, para dar contas dele a todo encontro, intermediado pelas pontiagudas grades do parlatório,
tempo em que lhe forem pedidos", certas evidências permitem- causou o moço grande frísson nos corações das madalenas
nos concluir que, por razões que nos escapam, a execução do. arrependidas e donzelas recolhidas, pois o rapaz pareceu-lhes
sequestro só se deu no dia 15 de março, como veremos mais "gentil-homem e de bonito modo..." Continua a tratar de temas
adiante. Tanto é correta nossa ilação, que exatamente a 5 de familiares, dando curiós a receita à sua comadre para curar certa
fevereiro, portanto no dia seguinte à ordem de prisão, Rosa doença de seu afilhadinho:
escreve uma longa carta a seus "muito queridos senhores, filhos
e compadres Pedro Róis e Maria Teresa Arvelos". É uma das "tomem umas poucas de beldroegas brancas, com raiz e
*
úIBrlí-í
missivas mais informativas sobre o dia-a-dia de nossa biografa-
da, e que por seu tom comezinho e tranquilo jamais poderia ter
- - "tudo, lavem, muito bem em uma vasilha nova, cozam-nas,
=r~=: e todos os dias de manhã dêem-lhe um pouco a beber com

sido escrita dentro do aljube, nem teria se alongado em tantos _^--uns pós de açúcar, e também cozinhem um pouco para o
detalhes materiais, caso fosse conhecedora de que na véspera o •banharem com elas, e, no seu comer, também lhas botem,
comissário inquisitorial assinara sua ordem de prisão. Segura- 'íí^iíiii-
e deitem-lhe um pouco de vinagre, pois isto é p ar a adelgaçar
mente o leitor há de concordar conosco no interesse em trans- o fogo e temperar a natureza, porque a moléstia procede
crevermos aqui algumas passagens desta carta que, apesar de ~ . do fogo, da natureza cálida".
l quebrar um pouco o ritmo destes acontecimentos judiciais, nos
rií introduz no íntimo das preocupações e cuidados de nossa desa- Estranho este sincretismo dos princípios médicos de Gale-
ti
Jya
fortunada visionária às vésperas de sua via crucis. Surpreen- no —' a dicotomia entre a natureza cálida e fria — com o
t>^HfÀt>
JK& dentemente, embora o climamístico, emocional no. recolhimento.... 'acréscimo supersticioso -— "a vasilha nova". Na sua extrema
K sugerisse o breve cumprimento das profecias de Mestra Rosa e Adaptabilidade às variações culturais e ecológicas é que este
m
má de seu capelão — pois neste início de 1762, o Justo Juiz, com
toda sua majestade, viria castigar os pecadores, arrasando, j':'.'•. 'ji-.j^É^-i^Ú.í^f'\^
^receituário crioulo encontrava sua penetração no universo rús-
tico dos devotos desta negra socializada no mundo dos brancos,
inundando e destruindo não só as Minas Gerais e o Rio de [pompletou sua receita: "Se não há beldroegas, cozam malvas!"
Janeiro, mas inclusive o Reino de Portugal —, não obstante, ,- :r (Pergunto à minha fiel empregada Carlita, do Bogum,
nossa beata se comunica com seus compadres luso-mineiros com .várias vezes citada neste livro, e a quem mais uma vez renovo
:J:minha gratidão, que comentários teria afazer a-estas receitas:
a tranquilidade de comó;se-tudo fosse continuar na mesmice de
sempre. :
-•desconhecia o uso da beldroega como remédio, utilizando-a
Após as saudações pias iniciais, diz estar gozando de boa ^raramente, cozida, como base do "efó", uma das especialidades
i
"iy^
;
saúde, diferentemente do-Padre Francisco, que padecia de suas rdq. cardápio afro-baiano, feita também com taioba ou mesmo
fqlha de pimenteira. Quanto àmalva—malvabranca, enfatizou,
costumeiras moléstias: "â cadapasso está de cama". Compara-se
a um "pastor, sempre preocupada com suas ovelhas que estão Rara distinguir da malva roxa, brava e que não serve para nada
no curral". Noticia e pede que lhe dêem parabéns "pelo feliz ,7^-,. disse-me ter diversas aplicações curativas: analgésico nas
parto, pois j á lhe nasceu uma filha da contrição, Faustina Maria dores de dente, para desinflamar os intestinos e, em forma de
pó queimado, eficaz cicatriz ante de feridas e queimaduras.

590 591
Muito utilizada na medicina natural, encontra-se no comércio pela Mestra Egipcíaca à sua escriba Maria Teresa. As temidas
como desinfetante bucal com o nome de "m.alvatricim".) "novidades" já estavam em curso, sem que a principal interes-
Além deste receituário, em sua carta Madre Egipcíaca sada, e vítima, tivesse conhecimento. JSfo mesmo dia em que
lastima que a escrava Maria Benguela "ainda não tenha tomado escrevia esta carta, o comissário do Santo Ofício, além de sua
o caminho para sua salvação", recomendando-lhe que se emen- • prisão, ordenara o sequestro dos bens do compadre capelão.
dasse dos pecados da carne, caso queira salvar-se. Manda ainda Por que a ordem de prisão, datada de 4 de fevereiro, só foi
um recado malcriado para o avô materno das meninas Arvelos, efetivada alguns dias mais tarde, não temos condição de respon-
Sr. Manoel Pacheco da Costa Pais. Provavelmente, este velho ' der. O certo é que entre 5 e 13 de fevereiro, mais .nove testemu-
lusitano opunha-se a que suas queridas netinhas — quatro nhas são chamadas para dar continuação ao sumário de culpas.
donzelas de "sangue puro", cristãs-velhas pelos quatro costados Inicia-se esta segunda leva de depoentes, sendo citado um
— tenham sido enviadas para o recolhimento onde a mestra e -dos mais fiéis devotos da beata, o carioca Francisco Xavier, 42
guia não passava de uma negra ladina que, por mais santa que hknos, "que vive de seu trabalho na ilha de Paquetá". Disse ter
L. diziam ser, não deixava de ser uma negra, segundo a visão
racista da época, nascida de uma raça própria para o cativeiro
j recebido da própria Rosa o rosário de Santana, e que Frei
^Agostinho de São José, quando desacreditou das virtudes de sua
*
*
e jamais para dar ordens à gente branca, muito menos às netas dirigida e quis queimar mais de duas resmas de seus manuscri- *
deste inconformado ancião lusitano. Escreve Rosa: tos "de coisas profundas", só conseguiu incendiar uma parte dos
escritos, pois a outra pulava fora do fogo — milagre idêntico ao
"Digam Vossas Mercês ao Senhor Manoel que se cale praticado por São Domingos de Gusmão quando disputava com
com suas impertinências, pois não sabe o que diz. Que não : os hereges albigenses. Reproduz também o espisódio do fracas-
queira competir com o Juízo de Deus, porque foi Deus, e sado dilúvio apregoado por Frei João Batista, barbadinho, con-
*
não eu, quem. tirou suas netas daí. Sua língua é como uma cluindo com a revelação do quanto sua amada mestra era *
espada a provocar a justíssima indignação de Deus, que ^virtuosa: que numa quaresma passada, a negra se alimentara
virá com. mais fúria. Que reze, em vez de falar mal, pois Htão-somente com "40 pães de vintém!" (Infelizmente não ternos
á r* Deus não quis que.suas netas multipliquem a geração, mas . meios de identificar o tamanho destes pães, se dos pequeninos
que tomem o estado de religiosas." do tipo filão.) Tal informação será ratificada por outras
^testemunhas.
Quem estava sendo profeta, neste momento, era mesmo o Mais dois homens são inquiridos: um negociante português
velho avô reinol, pois, exatamente nesta semana em que Rosa de 62 anos, morador na travessa da Alfândega, e um paulista
escrevia-lhe passando um pito, iniciara-se no Paço Episcopal o jle Santos, sapateiro, 37 anos, com casa à rua do Carmo. O
processo que só iria terminar no Tribunal da Inquisição. Em "primeiro relata as primeiras possessões demoníacas da negra
poxico mais de um mês desta missiva, as queridas netas do Sr. courá, quando ainda ambos frequentavam a Capela de São
Manuel estariam de volta ao sítio do bairro de Nosa Senhora da Sebastião, no Rio das Mortes, e o segundo conta das investidas
r. | Glória de São João dei Rei. -da-energúmena contra padres e seminaristas, concluindo com
.'J Apenas na conclusão desta longa carta, Rosa toca no as- uma informação ainda mais comprometedora da acusada e de
sunto mais palpitante neste início da "Nova Era": "Façam carta seu protetor tonsurado: que ambos chamavam ao próximo cas-
de seguro nos Cinco Corações, pois temo que em 1762 venham tigo , do Rio de Janeiro de "Reformação do Século", e que o
muitas novidades para toda a cristandade!" Recolhimento dos Santíssimos Corações se transformaria riuma
Estas são as últimas palavras da derradeira carta ditada

592 593
. r. . _
arca flutuante, salvando-se tão-somente os poucos escolhidos morado no recolhimento: duas eram. portuguesas, e a terceira,
que ali tivessem, se refugiado. da freguesia de São Gonçalo.
As últimas seis testemunhas pertencem ao sexo feminino, ' Irmã Ana Maria de Jesus, 25 anos, citada várias vezes ao
e todas conheciam a beata em sua intimidade, coabitando com. longo destaspáginas, for auma das vítimas do "Afecto", chegando
a mesma no consistório da Capela do Parto, antes da construção aievar uma surra com o cordão de São Francisco por estar
do recolhimento, dentro dos claustros, ou, ainda, hospedando-a conversando na Igreja de Santo António. Logo ao recolher-se, a
em sxias moradas quando dê sua expulsão do Sacro Colégio. Dona «-^stf-U^i^.
1
regente aconselhara-a a fingir-se vexada como a melhor estra-
n^íC'Uvr;ci»í';
Maria Tecla de Jesus, viúva de 48 anos, estava perfeitamente 33?£ssÍ
tégia par a viver bem na comunidade; como, porém, se recusasse
inteirada da vida e sucessos da madre fundadora, tendo mere- ivCír-- ' atais encenações satânicas, foi expulsa, pois. sua incredulidade
cido o privilégio de receber em sua casa a visita do polémico e recusa em participar de tais diabruras minavam as próprias
painel com o desenho, sobre placa de cobre, de Santa RosaMaria „ estruturas de poder deste gineceu de demonopatas. Apesar de
T-1'•£.'• Egipcíaca da Vera Cruz. Confirmou o apertado jejum quaxesmal reconhecer que a "Abelha Mestra" defendeu-a das agressões
de sua hóspede "cuja ordem recebera de Deus para aplacar sua ljisicas e intimidações das demais espiritadas, fez duas acusações
ira contra esta cidade". Quando terminou seu depoimento, os ~~graves contra os réus: que o capelão mandou-a fazer confissão
sacerdotes que a ouviram anotaram assim no processo: 'TVIerece """" geral nos pés da preta e que durante seus anos intraclaustros
esta testemunha crédito, pois era pessoa de vida conhecidamen- nunca viu a beata fazer penitências ou mortificações, pois,
te perfeita, dada à oração, muito devota, e de louvável e honesto "t enquanto as demais recolhidas tomavam disciplina (flagelação),
procedimento, e não seria capaz de faltar em coisa alguma à Rosa estava em seu cubículo escrevendo, e em vez de mortificar-
verdade por ter timorata consciência." Uma beata perfeita! setodos os dias, entremeava suas refeições com sestas e recreios,
Outra também viúva e de pios costumes a ser ouvida foi não dispensando jamais seu inseparável cachimbo.
Joana Maria do Rosário, 40 anos, residente à rua da Prainha. As duas últimas a serem ouvidas eram as cozinheiras do
Conviveu com Rosa no tempo em que alojaram-se provisoria- Recolhimento do Parto. Por que foram logo elas as escolhidas,
mente no consistório da Ermida do Parto è.também.era orien- não o sabemos. Irmã Páscoa Maria de São José era viúva, 48
tanda espiritual do finado Frei Agostinho. Contou ao comissário anos è há 7 convivia com a fundadora: timorata, devia estar
certas condutas da acusada que não lhe pareciam agora muito "trémula perante os reverendos sacerdotes que anotavam tudo o
adequadas, suspeitando até conterem algo de sacrilégio: "certa ___gue ia dizendo. Falou muito pouco, procurando eximir sua
vez, rezando o terço, tendo à mão uma imagem do Santo Cristo, mestra de ações culposas, insistindo que ela nunca proclamara

i
te
de joelhos, caíra Rosa com a mesma imagem e arrastou-a à roda
da casa pelo chão, ficando a cruz para baixo e a sagrada imagem
para cima, dando.voltas no chão" — intimidade corporal que
o diluvio, e sim Frei João Batista. Disse também, que, após suas
.^visões e raptos, Rosa "dizia não se lembrar de nada", o mesmo
^^discurso ainda hoje repetido pelos adeptos das religiões afro-bra-
pareceu à depoente indevida e desrespeitosa à divindade, em- sileiras e pelos kardecistas após o transe mediúnico.
bora o padre capelão transferisse a culpa para o Demónio, A outra cozinheira a ser inquirida foi Irmã Teresa de Jesus,
dizendo que."era ele que.a deixava,naquele estado". Disse mais: —25 anos, natural da ilha do Faial. Esta freirinha declarou ter
que este sacerdote, quando exorcizava os endemoniados, "lan- comido o pão que o diabo amassou, nos quatro anos em que
çava preceitos em nome de Jesus e de Rosa Maria Egipcíaca da residiu nesta comunidade, vivendo assustada com as fantásticas

l
Vera Cruz". . . . aparições, vozes, assobios ensurdecedores e demais "acidentes"
As derradeiras testemunhas viviam ainda, .ou já tinham que diariamente lhe ocorriam, manifestações sempre interpre-

594 595
-ivSíSt^V'

tadas pelas evangelistas como procedentes do Coisa Ruim. estudar a presença e o significado do Santo Ofício nesta região,
Através de seu depoimento o comissário ficou apar dos desatinos daí ser também original esta nossa contribuição à historiografia
que o capelão permitia ou mesmo estimulava dentro dos claus-
tros, mandando que as recolhidas se confessassem com a preta,
i. carioca.
t ;- Já em 1612, encontramos um comissário do Santo Ofício
que beijassem seus negros pés a fim de lucrarem, indulgências
para si ou para as almas do purgatório, sobre os rituais de
atuando na pequenina cidade de São Sebastião: Dom João de *
adoração dirigidos a ela, as cerimónias asquerosas incluindo o
Membrise, natural e súdito de Castela, que teria permanecido
dezoito meses nesta localidade, vendo-se praticamente obrigado +
uso da cuspídeira da comunidade para purificar as incrédulas,
etc., etc. Contou sobre as estripulias dás evangelistas, os exor-
afligir devido a uma série de desatinos que aí cometeu, amoti-
nando-se o povo contra si por ser espanhol e extrapolar de sua
n
cismos feitos "em nome do Coração de Santa Rosa Maria Egip- autoridade. Ainda no século XVII localizamos o nome de dois
cíaca da Vera Cruz", o seu ré trato onde estava representada com familiares do Santo Ofício residindo no Rio de Janeiro: em 1676,
as insígnias da santidade, a profecia de que, "se Deus tivesse de o negociante António Maciel, e em 1680, António Pinto. Entre
se encarnar agora, só o faria no seio de Rosa". os anos de 1704 e 1763 temos notícia de 254 habitantes do Rio
aatfjt..-- •
ora-r:, Ao terminar a inquirição destas 19 testemunhas, aos 13 de cie. Janeiro que, por razões pessoais variadas, não querendo ou
fevereiro, o comissário do Santo Ofício dispunha de elementos não podendo ir à Lisboa para serem confirmados no cargo de
mais que suficientes para proceder judicialmente contra os dois familiares, receberam o atestado, a venera e juraram o compro-
réus, cujas suspeitas de desvios na ortodoxia católica estavam misso regimental nesta mesma cidade onde residiam. Nos doze
sobejamente confirmadas e esclarecidas pelos denunciantes. - anos em que- Rosa viveu no Rio de Janeiro, seguramente devi
Transcorre uma semana do fim do inquérito, e aos 20 de existir no seu perímetro urbano uma meia centena de familiares,
fevereiro é a vez de a própria acusada dar sua versão dos alguns, inclusive, residindo nas imediações do Recolhimento do
acontecimentos. Aprisão de Rosa deve ter-se efetivado, portanto, Parto, como o Familiar Alexandre Peixoto, morador na freguesia
entre o dia 13 e 20 de fevereiro de 1762. O padre capelão só será da Candelária, habilitado em 1758.
encarcerado a 8 de março. * • Quanto aos comissários do Santo Ofício do Rio de Janeiro,
Em cidades do porte do Rio de Janeiro, via de regra, as - além do malfadado João de Membrise, de 1612, encontramos
prisões dos réus da Inquisição deviam ser efetuadas pelos fami- referência aos seguintes sacerdotes que exerceram tal função
liares do Santo Ofício.-Já tratamos destes personagens alhures, _neste bispado: Padre Gaspar Gonçalves de Araújo, 1729; Padre
quando da primeira prisão da negra vexada na comarca do Rio Lourenço de Valadares Vieira, 1734;Padre Francisco Fernandes
das Mortes. Como se sabe, aos familiares cabia colher informa- Simões, 1745; Frei Paulo do Nascimento, 1750; Padre Inácio de
ções, investigar, confiscar e prender os réus indicados pelos _ Oliveira Vargas, 1753; Padre António José dos Reis Pereira de
comissários ou diretamente pelo Tribunal de Lisboa. Eram as "Castro, 1754; Frei Bernardo de Vasconcelos, 1754; Padre José
pontas de lança da máquina inquisitorial e, juntamente com os de Sousa Ribeiro de Araújo e Padre António Pereira da Cunha,
comissários, notários e qualificadores, constituíam a ossatura cujas datas de recebimento do comissariato ignoramos.
externa deste^Monstrum Terríbilem. Vejamos sucintamente — Não temos igualmente elementos para esclarecer quantos
alguns dados sobre a presença desses tentáculos inquisitoriais destes comissários continuavam vivos e atuantes na mesma
na cidade do Rio de Janeiro, posto que, a partir de agora, nossa -década em que Rosa viveu no Rio de Janeiro. Três deles são
biografada torna-se uma das vítimas deste monstro sagrado. citados neste processo: o Padre Francisco Fernandes Simões,
Infelizmente, nenhum historiador preocupou-se até então em habilitado em 1745, passava dos 70 anos quando recebeu denún-

596 597
- -p _

4^ - enraizamento, por anos seguidos, de inúmeras condutas des-


cias de certas irregularidades canónicas registradas no Recolhi^ r

mento do 'Parto, Talvez pelo avançado da idade e por estar muito viantes, da alçada do Santo Ofício, sem que familiar ou comis-
atarefado com. outras diligências, não deu início ao sumário, O sário algum tomasse a iniciativa de denunciá-las à Mesa Inqui-

m segundo comissário a ser referido é o nosso já bem conhecido


Cónego Pereira e Castro: surpreende-nos que tenha partido do
bispo, e não dele próprio, a iniciativa de proceder contra a negra
suspeita de heresia, pois tal crime pertencia primordialmente à
sitorial.
Voltemos, porém, ao momento em que o Comissário Pereira
e Castro, após ouvir 19 testemunhas que ratificam e acrescen-
tam ao rol de culpas outros delitos envolvendo a preta e seu
alçada inquisitória!. Pode ser que, pelo fato de ocupar diversos capelão, determina, aos 4 de fevereiro de 1762, a prisão de ambos
outros cargos e importantes funções hierárquicas no cabido no aljube. Padre Francisco, pelo que pudemos deduzir de seu
fluminense, governando o bispado de forma oficiosa, em substi- ___ i *~ processo, até então jamais fora preso em toda sua vida; Rosa
tuição ao constantemente enfermo Dom António do Desterro, •- -Egipcíaca, pelo contrário, desde menina, coitadinha, sofrera
este funcionário inquisitória! restringisse, ao mínimo possível; ""*" diferentes espécies de prisão: ao ser pilhada na Costa de Judá,
suas atribuições de comissário, tanto que, um mês após iniciar ~ ' certamente fora acorrentada junto com outros cativos até em-
o sumário contra Rosa, transferirá as diligências para o terceiro barcar para o Novo Mundo; o porão do tumbeiro deve ter sido a
"•F
comissário citado nestes autos, o carmelita Frei Bernardo de ...„ _ pior experiência na vida desta negrinha de seis anos, pelo calor
Vasconcelos, de quem trataremos mais adiante. Aliás, é este fétido e desconforto dos dois meses que geralmente demorava a
frade comissário quem nos dá a melhor pista para explicar a travessia do Atlântico Sul; já adulta, em São João dei Rei, esteve
demora è indiferença com que os representantes da Inquisição alguns dias no aljube, por ordem do vigário da vara da comarca;
nesta cidade trataram as graves heterodoxias praticadas por novamente, em Mariana, o bispo Dom Manoel da Cruz ordenou
Mestra Egipcíaca e seu supersticioso séquito. Diz o carmelita ao juiz de fora que prendesse a espiritada no calabouço, espe-
em ofício enviado à Inquisição: rando o dia de se cumprir a pena dos açoites no pelourinho.
•Portanto, ao ser trancafiada no aljube do Rio de Janeiro, Rosinha
"Há muito tempo, e com grande escândalo, permanecem ?V-~deve ter-se lembrado de todos esses infortúnios decorrentes de
110 Recolhimento do Parto as superstições, revelações e "^ "sua condição de africana escrava e endemoniada. Até o fim de
milagres que causam grandes prejuízos espirituais e es- sua vida passou por sete diferentes tipos de prisão. Sua culpa,
M
cândalos a muita gente. Deus sabe os grandes remorsos -4
uma só: ser possuída pelo "Afecto".
que combatem a minha consciência pela omissão que tenho —. L
77^
rr~~^fr.
No Rio de janeiro a esta época, duas eram as instituições
tido em expor, na presença de Vossos Ilustríssimos Senho- carcerárias mais importantes: a cadeia, situada na várzea, no
res, ao que estava obrigado, não só como comissário e -l ., local onde existe hoje o Palácio Tiradentes, próximo à Praça 15,
religioso, mas como cristão, porém o crivo do Brasil é muito 1!cuja construção foi concluída, em 1747, por Gomes Freire de
largo, e passa hão só a farinha e o farelo, mas ainda o grão Andrade, e o aljube, obra de Dom António de Guadalupe, ereto
inteiro passa..." . ~por volta de 1730, destinado aos eclesiásticos e demais presos
_da consciência. Funcionou com este fim até 1808, quando suas
Belo discurso de mea culpa e atestado de incompetência: a instalações foram ocupadas pelos acompanhantes de Dom João
nosso ver os agentes inquisitoriais em terras de Santa Cruz e da família real. Situava-se na "rua do Aljube", depois da
valorizavam muito mais o prestígio inerente à posse de seus __ Prainha. Através de ótima gravura, assinadapor Thomas Ender
cargos do que o desempenho daquelas funções investigatórias e (circa 1817), vemo-lo de corpo inteiro: um casarão de dois anda-
repressivas previstas pelos regimentos. Daí a proliferação e

598 599
*
m

rés, com sete grandes janelas gradeadas e uma porta principal preta Forra". Eis o pomposo parágrafo inicial deste documento,
"Existem descrições dantescas do que era, como horror, o aljube peça:fundamental na reconstrução da biografia da beata:
enquanto serviu de prisão civil." Como de praxe, devia existir aí
umapequena ala destinada às mulheres, certamente menor que •'•'.'.•••'• :-"Ano. do nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo de
as congéneres das cadeias dei Rei, pois apenas raramente as • PÍ762, aos 20 dias de fevereiro, no Paço do Auditório deste
filhas de Eva caíam nas redes da justiça eclesiástica. .':; Juízo Eclesiástico nesta cidade de São Sebastião do Rio de
Segundo o autor das "Antiqualhas e Memórias do Rio de x, Janeiro, onde reside o muito reverendo Senhor Doutor
Janeiro", o ilustre José Vieira Fazenda, "no aljube havia também :1L- António José dos Reis Pereira e Castro, mestre-escola na .
uma casa particular para se depositarem mulheres que houves- .i^Catedral deste bispado e em todo eleprovisor, vigário geral,
sem de casar ou divorciar-se de seus maridos". O que nos .. í^juiz dos casamentos, genere e resíduos. Aí na sua presença
-&!•<&.
LiL-^ permite imaginar que esta ala feminina devia oferecer um pouco ^•foi vinda a ré Rosa Maria Egipcíaca da Vera Cruz, preta e
mais de "conforto" do que as demais penitenciárias. Se nossa --k'forra de nação courana, e pelo mesmo muito reverendo
"espiritada" ficou junto com tais mulheres, infelizmente nada ~íb. Senhor lhe foi perguntado se tinha Espírito Maligno e a
diz a documentação. anos."
Pela gravura de Ender podemos distinguir alguns presos ">j£~ •-• ,
acorrentados com grossos grilhões às grades da enxovia, pedindo ~:".; ;,.--Este documento, cuja cópia mimeografada colocamos à
esmola na rua. 'disposição dos pesquisadores interessados no Arquivo Nacional,

"As cadeias no Rio de Janeiro viviam abarrotadas de


;~i£ Jiáta-se de nm conjunto de 16 folhas manuscritas, caligrafia do
;'tipo oficial e de excelente qualidade de leitura, tendo sido
gente. Eram dois antros infectos, verdadeiras cloacas onde escrivão o Padre Amador dos Santos, o mesmo secretário da
os criminosos apodreciam em vida, infectados pela falta de :^gí0:- -primeira inquirição. Ao longo desta sessão de perguntas — que
higiene, roídos por mazelas e verminas. No aljube os com-
partimentos eram construídos para 12 ou 15 pessoas. O
-deve ter transcorrido durante o dia todo, quiçá mais de um dia,
;d_ada a extensão dos depoimentos —, são formuladas à ré sete e
cheiro desprendido desses lugares sórdidos e tristes por jp.erguntas, cujas respostas em quase sua totalidade já transcre- •
vezes empestava a cidade. O preso, no regime colonial, não
era mantido pelo Estado, senão pelas suas famílias, seus
~vein.os ao longo destas páginas, posto descreverem pari passu
••:sua;vida e sucessos. Eis o teor das perguntas:
m
senhores, patrões ou amigos. Os que não tinham tais
esteios, que tratassem de esmolar para não morrer de 1. Tem a ré um Espírito Maligno, e há quantos anos?
fome."10 .• 2.' Teve algum favor sobrenatural de Deus?
3. Teve algumas visões sobrenaturais?
Nada informam os documentos sobre a permanência dos 4. Foram-lhe mostradas ou reveladas algumas coisas que
dois presos no aljube: com certeza ficaram em espaços distantes .haveriam de suceder no futuro?
e incomunicáveis, não só por serem de sexos opostos, como para 5. Padecia a ré de desassossego e distrações na alraa
evitar o conluio entre os cúmplices. quando teve. estas visões? .
Deve ter sido, portanto, nas antevésperas de 20 de fevereiro .6. Reconhece a autoria dos manuscritos apensos ao pro-
im que a negra foi levada para o aljube, pois é desta data o "Auto
de Perguntas Feitas à Ré Rosa Maria Egipcíaca da Vera Cruz,
cesso? . . .. .
7. Narre sua vida e costumes até agora.

600 601
*
IP
§1 A cada pergunta, Rosa ia discorrendo minuciosamente
sobre sua biografia, desenterrando, ano por ano, os principais
totalmente humilhada, considerando o nada do seu ser e
os muitos benefícios que Deus lhe tinha feito".
acontecimentos que marcaram sua existência atribulada: como,
Esta resposta da africana não podeiia ter sido mais acer-

i
há 14 anos passados, começou a ser vexada por una Espírito
tada, pois descreve com precisão o ensinamento dos teólogos e
Maligno, seu encontro com Padre Francisco Gonçalves Lopes,
místicos relativo às provas da santidade: se os toques etéreos
as primeiras sessões de exorcismo no Inficcionado, os conflitos

l
procedem do Diabo, "produzem, maus efeitos no visionário, fi-
com o clero marianense, suas visões beatíficas, a missão de ser
cando a alma inquieta, fria e desgostosa", exatamente o con-
zeladora dos templos, as revelações celestiais, as profecias e
trário do que sucedia comnossavidente após seus àrrebatamen-
antevisões de sucessos futuros, a fuga para o Rio de Janeiro, sua •tos, cuja alma se tornava quieta, incendiada'e apaixonada pelo-
fc
~3ft"
alfabetização, a milagrosa fundação do Recolhimento do Parto,
a maravilhosa manifestação dos Santíssimos Corações, a pri-
^Todo-Poderoso. Viva Jesus!
Astuta, ela omite todos os detalhes de sua rocambolesca

l meira profecia do dilúvio, o descrédito de seu confessor Frei


Agostinho, suas práticas devocionais — em particular a oração
mental, as orações que os céus lhe ensinaram, etc., etc.
biografia que poderiam comprometê-la com falsa santa, embus-
" teira, demonólatra, bruxa ou simplesmente charlatã: deixa de
.narrar suas profecias não realizadas ou que saíram ao contrário,
Rosa não omitiu detalhe algum de sua experiência mística, o ritual da escolha de suas quatro evangelistas, a veneração ao
descrevendo com todo colorido e brilho suas visões beatíficas, quadro com sua imagem aureolada, a utilização de sua saliva,
reproduzindo com precisão as palavras e preces que lhe trans- dente, cabelo e roupa como relíquias, seu propalado poder em
mitiram os mensageiros do Além. Não se acanhou em falar de decidir o destino das almas, sua missão salvífica após o próximo
suas virtudes e práticas devocionais: disse que foi o finado dilúvio universal, sua pretensão de ser a esposa da Trindade
provincial dos franciscanos quem lhe ensinou o exercício da Santíssima, de ter descido aos infernos, de ter ressuscitado, de
oração mental, a qual realizava todos os dias, meia hora de
ser Deus, etc., etc.
manhã e meia hora à noite, acrescentando que com as demais - Nesta primeira fase do inquérito, competia ao comissário
recolhidas "faziapenitências, jejuando algumas vezes e tomando ;tão-somente arrolar minuciosamente as denúncias, ouvir o de-
disciplinas às segundas, quartas e sextas-feiras, porque assim poimento dos réus, sem confrontar ou. aprofundar as contradi-
lhe ordenava o seu diretor, e nos outros dias em que não tomava ções das diferentes p artes, tarefa privativa daMesalnquisitorial
disciplina trazia o cilício com o qual seu Espírito ficava mais
brando". Ao ser perguntada ~ de Lisboa.
Terminado este auto de perguntas, "às quais assistiram
também dois escrivães do Juízo Eclesiástico, os Padres Manuel
"se, quando lhe sucediam tais visões e revelações, padecia
do Espírito Santo e Lucas António de Araújo Neiya, na presença
algum desassossego na alma e distrações dela, com falta
dos quais foram feitas e dadas pela depoente as suas respostas
de humildade, e se tinha alguma dúvida, quando lhe

í sucedia ter aquelas vis'tas e ouvir essas vozes, de que


fossem verdadeiras ou ilusões do Demónio? Respondeu
que, quando isso lhe sucedia, ficava sempre inflamada do
amor de Deus e às vezes sentia como um incêndio no seu
e de tudo, para constar, mandou o muito reverendo senhor
ministro fazer este auto e que assinaram com a depoente os ditos
escriva.es".
\ assinatura djajRosa é s_ólid^^Jdêntáca.àsjoutras com que
firmava^suãs_c_artas: Roza Maria Egciaca — letra rústica e
peito e. não padecia distrações na sua alma, antes ficava

603
602
^Èij-f*r»f*


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2L
sobretudo se compar.a_da^com as ruhrícasjultraxren-
^adas_dos_eclesiáaticos-que_assinaKam_e.ste_niesmo dosõrniento .
>K:iii.:!:! Apesar de certamente estar nervosa, considerando que
•*m\' ! , *£>^.- .-Jfct
qualquer inquérito provoca sempre incoatrolável tensão nos
1 ~_ ",j;éús — mesmo nos inocentes —, Rosa devia manter-se confiante
'*-£*£**&& t&tjf&aa,
['ipi;l!
•=Wt -il', ,:':•'•
"" -de que sairia vitoriosa deste processo: sua esperança era inaba-
_,,
^«•Klllj-..".1
lável, e a segurança demonstrada ao responder aqueles quesitos
-illríJJ!!.:*.! ™~- deve ter causado admiração nos incrédulos sacerdotes. Afinal,
«-•s, - jj^y-jk ela pensar, a Divina Providência nunca falha em socorrer
••m
seus verdadeiros filhos, e os Santíssimos Corações lhe haviam *
^_ preyenido que, antes_ da glória, teria de enfrentar, doloroso
~ —• calvário. Estes autos no Paço do Juízo Eclesiástico fluminense
---- erãmtão-somente os prolegômenos de sua ufa cruéis. A tranqúi-
H3aBe, segurança e convicção com que respondeu ao inquéritoj
repetimos, devem ter desconcertado seus juizes tonsurados, que
viram nela não uma alucinada e muito menos uma verdadeira
-*
_l. .^^^ ^ „
í —l "mística, mas uma refinada embusteira, mestrajia_arte de
V "" -i o
enganar.
Ao ser presa a "Abelha Mestra", o capelão e as evangelistas,

a um tempo assustados e precavidos, tratam de destruir ou m
ocultar todas as provas que pudessem comprovar seus desatinos
idolátricos. Mandam o báculo e a cruz da Nova Era para a casa
clo_ffel amigo Manuel Barbosa, o qual declarará mais tarde ter
tudo destruído. Todos os manuscritos das visões e demais ano-
tações que as evangelistas escreveram ou ditaram ao longo
destes vários anos de misticismo, e que eram respeitosamente
o
Aguardados como relíquias, foram de imediato queimados: para o
disfarçar o cheiro forte e característico da fumaça de papel —
quèfno século XVIII ainda era confeccionado com trapos e fibras
de tecido —, disseram algumas recolhidas que o padre capelão
~; T—misturou nesta insólita fogueira um pouco de perfume. Certa-
;€M;ÍÍ mente nestes primeiros dias de angústia e tensão, Padre Fran-
_ cisco instruiu às recolhidas, que se fossem inquiridas pelo co-
missário do Santo Ofício, omitissem aqueles detalhes que agora
o velho sacerdote percebia terem fugido aos ensinamentos tra-
dicionais da Santa Madre Igreja. Já devia ter escrito também,
com urgência, aos seus compadres em São João dei Pvei, infor-

. 604 605
mando sobre a prisão de Rosa e solicitando a presença imediata função de "Mãe da Divina Justiça". Procurando eximir-se de sua
do Sr. Arvelos no palco destes acontecimentos dramáticos. A indubitável crendice nabeata sua comadre, afirmou ter desejado
carta deve ter chegado rapidamente ao destinatário, tanto que que seu marido fosse retirar as filhas do famigerado recolhimen-
a 6 de março, a senhora Arvelos, Dona Maria Teresa, procura o to, e, como penhor de seu sincero arrependimento pelas even-
comissário do Santo Ofício de São João para denunciar-se de ter tuais culpas que tenha cometido, entregou ao dito comissário
acreditado cegamente na santidade de sua ex-escrava Rosa IUD pacote contendo 55 .cartas enviadas do Rio de Janeiro à sua
Courana. Diz que já há dois dias procurava descarregar sua casa, a saber: 26 cartas ditadas pela negra Rosa, 22 de seu
consciência perante a mesma autoridade inquisitória!, mas, í ~
compadre capelão, 4 de sua filha Maria Jacinta e 3 assinadas
sendo noite, o sacerdote não a quis atender, conforme prescrevia poFFaustina. Conclui a confissão ressaltando que as sete cartas
o direito canónico. Provavelmente o casal Arvelos decidira pre- "atribuídas a suas filhas devem ter sido ditadas pelo Padre
caver-se em todas as frentes eclesiásticas, neutralizando com Francisco e por Rosa, pois Faustina e Jacinta foram criadas na
esta primeira confissão o agente inquisitória! a cuja circunscri- ÍÍS5 roça, com falta de notícias" — declaração que somos inclinados
~w ção territorial pertencia esta assustada família, ao mesmo tempo areferendar, pois o tom laudatório e místico destas missivas não
que o chefe do clã partia, a toque de caixa, para o litoral, a fim correspondia absolutamente àincontrolável e prolongadarevol-
de recuperar as quatro filhas recolhidas no Parto e descompati- -ta e obstinação com que estas duas meninas Arvelos resistiram
l bilizar-se com as autoridades do Santo Ofício do Rio de Janeiro,
local inicial e centro de comando deste preocupante quiproquó
a curvar-se aos pés da ex-escrava de seus pais.
Junto com este monte de cartas, a Sra. Arvelos entregou
•!> relacionado ao crime de heresia formal. ao comissário sanjoanense um manuscrito de duas folhas, sem
è. Em São João dei Rei era então comissário da Inquisição o data, nem assinatura, contendo importantes e comprometedoras
é- Padre José Sobral e Sousa, português do bispado de Braga,
habilitado para este encargo em 1760. Exercia também a
matérias espirituais: a profecia de um terremoto universal no
ano de 1762; a condenação ao inferno de todos que falassem mal
vagaria da vara da comarca do Rio das Mortes, sendo portanto do Recolhimento do Parto; sobre um devoto de Rosa, pedreiro de
L»' a mais poderosa autoridade eclesiástica.da região. Ao ser pro- .profissão, que vira no peito de sua mãe e mestra
.j)?''
l T! "" curado pela" Sra. Arvelos, ouviu e anotou cuidadosamente sua
confissão espontâneas, na qual delatava seu envolvimento mís- •"uma forma de olho redondo com Nosso Senhor Sacramen-
t*
tico com a ré Egipcíaça, amizade espiritual que teve seu início " tado todo resplandecente e que todos os dias as recolhidas
antes mesmo do tempo em que seu esposo comprara a negra da ™ viam Jesus Crucificado em seu peito, salvo uma vez, que
mãe de Frei Santa Rita Durão. Conta dos transes e manifesta- -perceberam o Demónio segurar-lhe a mão para não se dar
ções diabólicas de sua comadre Rosa, da fuga do Padre Francisco -Ml' —. ~
- disciplina; que todos os santos do céu conferenciavam com
e da negra para o Rio de Janeiro. Declara que, se dependesse de ~ " Rosa e lhe davam audiências, ficando morta por 24 horas
si, suas quatro filhas não teriam descido a Mantiqueira para - -quando Nosso Senhor trocou seu coração como dela, voando
€> recolher-se no Parto, "mas, por persuasão de seu marido e boa para o céu cercada de luzes".
fama que gozavam as recolhidas", conformou-se com a decisão
jfc_ de enclausurá-las no Recolhimento dos Santíssimos Corações. Currículo maravilhoso, só equiparado ao dos mais virtuo-
Í/ Disse mais: que só começara a desconfiar das falsidades de Rosa sos santos da corte celestial.
f) quando passou a intitular-se "Mãe de Misericórdia", atribuindo Dona Maria Teresa deve ter ficado parcialmente tranquila
a Maria Santíssima tão-somente, a partir de então, o título e quando assinou toscamente sua delação, por ter descarregado
«*' sua consciência e ver-se finalmente livre daquele embrulho tão
f-
€>!'. 606 607

filt
comprometedor que ameaçava não apenas sua pessoa, mas toda !T r Capitania do Espírito Santo, vindo a professar na ordem Car-
a família. Tranquilidade apenas relativa, convém frisar, pois ' lãelitana do Rio de Janeiro — na mesma igrej a onde Rosa tivera
esta desafortunada portuguesa, beirando então os 40 anos alguma de suas visões beatíficas. Foi lente jubilado e doutor em
passou angustiantes semanas até que seu marido retornasse do - pjjosofia e Teologia no convento teresiano de São Paulo. Procedia
litoral, temendo o imprevisível e rigoroso castigo do Tribunal do L de família assaz religiosa, possuindo dois tios paternos que
Santo Ofício. Deixemo-la emaranhada em seus remorsos —. ,jeseinpenharam. a função .de provincial na sua mesma agremia-
verdadeiros ou falsamente oportunísticos — e voltemos ao Rio ~ cão religiosa. Quando estagiando nos conventos do Reino, viveu
l de Janeiro, onde, dois dias após esta confissão da matriarca =F *algum tempo no Mosteiro de Santa Marta de Lisboa, a casa-mãe
Arvelos, ocorre um novo episódio no andamento deste processo. origihou-se a província carmelitana do Brasil. Data de
•fffH1 Mal acabara o Padre Francisco de tomar suas precauções seu requerimento para ser comissário do Santo Ofício no
" :Í destruindo ou escondendo as provas mais comprometedoras do de-Janeiro, recebendo sua provisão em 1754.
$%tm culto idolátrico que dedicavam à sua ex-escrava, ei que aos 8 de . Foi, por conseguinte, no Convento do Carmo desta cidade,
.fte!;::;t; marco é sua vez de experimentar o infortúnio das justiças -cuja igreja conservavam os frades, orgulhosamente, belo
eclesiásticas: é preso e trancafiado no aljube. Quem o prendeu. - icário com alguns fios do cabelo de Nossa Senhora, que Frei
B!®
se algum familiar do Santo Ofício ou o meirinho da vara ecle- de Vasconcelos ouviu e anotou a denúncia efetuada
siástica, não informam os documentos, declarando apenas que
ambos os réus "ficaram presos e seguros sob o cuidado de José
da Fonseca Souto Maior, carcereiro do aljube". O vexame de sua
4í -"• -pelo Sr. Arvelos, em 12 de março do mesmo ano, 1762. É um
r~ documento patético, que provoca tristeza cada vez que o lemos,
*r:' JL—pois retrata a desolação de um dos mais fervorosos crentes de
prisão, encaminhado do Parto até o cárcere, exposto à malévola '•--Rosa que, pressionado pelas autoridades oficiais da Igreja, se
.í&sã-í:; apreciação dos transeuntes, deve ter causado profunda conster-
fll§; viu na contingência de arrenegar o que tinha de mais querido e
nação neste velho sacerdote, muito amado por quantos foram, L", sagrado em sua vida: Rosinha, sua mãe espiritual, que de
por ele exorcizados, e certamente desprezado pelos que o julga- Descrava tornara-se a própria imagem de Deus Nosso Senhor.
vam patrocinador das embustices de sua companheira africana. £~~?!§audepoimento é longo, e começa logo "arrenegando de tudo que
cajjyjaRtçs i.-. Passados poucos dias desta prisão, chega o Sr. Arvelos ão~ r foi; do Diabo, a tudo renuncio, detesto e abomino". Enumera, a
lÉ*- Rio de Janeiro. Deve ter ficado em polvorosa, vendo encarcera-"
ir m das as duas principais colunas do recolhimento onde viviam
enclausuradas suas quatro filhas. Talvez tenha visitado os réus —
no aljube, pois outras testemunhas disseram ter acesso aos
seguir, alguns episódios fantásticos da biografia da acusada,
: __ como que tentando justificar sua antiga crença. Há 12 anos que
IT Jl.6pnhecera, apresentadapelo Padre Francisco, e logo certa feita,
- quando ela orava em frente a um grande crucifixo, "viu-a arre-
mesmos quando prisioneiros. Quiçá, por sugestão de seu com-
padre, Pedro Róis Arvelos tomou a iniciativa de também dela-
li: " batada em êxtase", o que muito lhe impressionou; na casa de um
lufefirtlVU» J i5-a--**, —

:SsejL_conterrâneo de São João dei Rei, "faltando do oratório a


lJ3f :*,-.': • tar-se junto ao Santo Tribunal, preterindo astuciosamente o do Menino Jesus, fora encontrada no peito de Rosa",

l i i
,-Í *; -ÍT í ' " ; '

Cónego Pereira e Castro, em favor do comissário Frei Bernardo acreditar na santidade e proteção divina-desta serva
de Vasconcelos — mais transigente que o primeiro. de Deus?! Em sua confissão, o Sr. Arvelos transfere a seu
ríírp?; ••• Seguindo seu exemplo, mais uma dezena de devotos de ~* compadre Xota-Diabos, e a seu vizinho, Padre João Ferreira, a
tev
t-H^í •í.nj^TVif
Rosa testemunharão perante este mesmo comissário, cujo pro-
cesso de habilitação 'ao Santo Ofício informa alguns detalhes
responsabilidade de sua fé na negra espiritada, pois ambos
garantiram-lhe que ela "tinha em suas mãos a vida de todos os
B!:|s interessantes sobre sua pessoa. Era Frei Bernardo, natural da - filhos de Adão", estimulando-o, e à sua parentela, a reconhecê-la

608 609
m
como mãe, tanto que, "como miserável pecador, confiava na ;;cões> alcagueta seus antigos confrades de devoção: o pedreiro
santidade dela e a consultava sobre suas pendências, e, pelo •Manuel Lourenço, Manuel Barbosa Guimarães e sua mulher
respeito que tinha a Rosa; algumas vezes tomou-lhe as bênçãos Isadora, que também eram adotados pela negra como filhos de
de joelhos e quis também beijar-lhe os pés, o que ela não -.rggneoração—particularmente este pedreiro "que ainda acredita
consentiu, e, pelo conceito que dela fazia, tomara-a corno :Sââ visões, santidade e milagres de Rosa".
comadre". ;/ - Segundo informação da Irmã Francisca Xavier dos Sera-
Formais "democrático" que fosse o capixaba FreiBernardo ífins, tão logo amadre fundadora e o capelão foram encarcerados,
de Vasconcelos, deve ter-se admirado e condenado o excesso gjjhèdiatamente os franciscanos do Convento de Santo António
desta demonstração de respeito doreinol Arvelos: ondejá se viu ;i|oâíaram as rédeas do recolhimento, destituindo a regente e
um branco, cristão-velho, dobrar os joelhos e beijar os pés de íáevàssando, por conta própria, as irregularidades aí praticadas
uma negra?! De São Benedito ou Santa Efigênia, vá lá, mas de %>èios réus. Proibiram que se continuassem a realizar aquelas
uma ex-escrava africana, era demais! ¥*rÍ3icularias"—oRosário de Santana, aNovenados Santíssimos
Continuando sua confissão, incrimina mais ainda seus Corações e outras devoções instituídas por Rosa. Deve ter sido
amigos sacerdotes, pois, perguntando uma vez ao Padre João ' tíegòjnos primeiros dias após sua chegada nesta cidade que o Sr.
Ferreira, "o maior sectário da santidade da negra", se estas SArVelos retirou suas filhas deste beatério, alojando-as nas casas
matérias não deviam ser denunciadas ao Santo Ofício, disse que í'de seus amigos, enquanto aguardavam o desenrolar dos aconte-
não eram casos da Inquisição, e ele, como homem ignorante, ¥ cimentes, antes de retornarempara as minas do Rio das Mortes.
acreditava. Corno também acreditou cegamente na afirmação : ••-• Entre a autodenúncia do ex-proprietário de Rosa, de 12 de
de seu compadre Xota-Diabos, de que a imagem do Senhor Kmarço, até o dia 6 de abril, mais nove testemunhas baterão às
Morto, existente na Igreja do Parto, debaixo do altar, "parecia Aportas do comissário carmelitano ou então enviarão "cartas de
morto, mas estava vivo e queria ser embalsamado, dando ao . 'confissão" por residirem distantes desta cidade, descarregando-
padre 20$000 réis para comprar e preparar o bálsamo". (Com ^sè do que julgavam merecer a apreciação do Santo Ofício: as
esta mesma quantia compravam-se, na época, dois bois ou duas:"' ^2gUàtro meninas Arvelos, as Irmãs Francisca Xavier, Ana do
arrobas e meia de peixe seco.) Santa ignorância: acreditar que_ Xjóração de Jesus, Ana do Coração de Maria, Maria Teresa de
o Senhor Morto, feitb de madeira, estava vivo! •ijesus e mais dois devotos mineiros. Os canais de comunicação
Além desta grave acusação de charlatanismo, Arvelos Centre os suspeitos de terem culpa da alçada inquisitória! costu-
tenta agora desacreditar os poderes preternaturais de quem ~ Sinavam ser rapidamente acionados quando algum dos réus caía
tanto adorava, declarando que diversas das profecias da negra nas malhas deste terrível tribunal: tanto em Portugal, como no
courana redundaram em flagrantes fiascos, como certa vez em ÃBràsil, bastava um infeliz ser preso "em nome do Santo Ofício"

+L. que apontara uma par agem aurífera, não se encontrando aí, por; - Sque, imediatamente, diversos confrades e associados do réu
mais que cavassem, sequer uma pepita de ouro, e outra quando "procuravam se delatar, cônscios de que os arrependidos e con-
vaticinou êxito numa sua pendência judicial que, no final, saiu- ifèssantes espontâneos eram tratados com maior benignidade do
lhe desfavorável. Concluiu este sitiante sua patética confissãcu .que os recalcitrantes. Era melhor prevenir do que remediar!
com a declaração desconcertante: "Sabendo agora que tudo não r •"' Maria Jacinta Arvelos acusou perante o comissário Vas-
passara de embustes e enredos do Demónio, apresenta tudo concelos que a mestra do recolhimento gostava de auto-intitu-
como arrependimento aoreto, venerando e respeitável Juízo do :lár-se "Mãe de Deus", e, quando alguma freira duvidava, "Rosa
Santo Tribunal da Inquisição." Como reforço de tão boas inten- Arrenegava, batia os pés e ameaçava-a de denunciar ao Santo

610 611
iir~r m
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IS
li',
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Ofício, pois estavam pecando contra a fé". O Santo Tribunal era Trindade que ela era santa e mandava que a venerasse por santa
o bicho-papáo de nossos antepassados coloniais, sendo invocado
mesmo pelos que faziam da heterodoxia seu modus vivendi,
e^u cria nela, pois assim me obrigava o confessor ."Lembrava-se
ainda de alguns hinos com que em coro as recoletas costumavam m
Narra então a menina Arvelos uma prática da negra fundadora homenagear a fundadora: '
413 que certamente causou grande desaprovação por parte dos
sisudos inquiridores:
„..
"Espírito Santo, dai-me luz para tirar
l* - " Cantigas a vossa serva, para mais a exaltar! m
"na capela do Parto, ela tirava às vezes algumas imagens -
do altar, dizendo que [ela] era Deus, e metia as imagens Minha mãe tem em seu peito, dentro de seu coração m
f?-l
íi'
na mão de algumas irmãs e ia. dançando até ao pé delas, e
lá as deixava, e vinha buscar outra, e entrava a apertar a
- A.Jesus sacramentado para nossa salvação! m
ff
JH dança, arrodeando-as, e caía no colo de alguma irmã e
ficava como que estava fora de si, e, depois de muito tempo,
Nossa Senhora do Carmo tem uma prenda de ouro na mão
- Que lha deu Rosa Maria, prenda de seu coração!
se tornava a si e começava a perguntar aquilo o que era, —•
quem a tinha trazido para ali, e isto era quase sempre, e, Rosa tem no coração, altar privilegiado, m
se não críamos, levantando-se da sua passividade, roncan- Aonde está depositado o Senhor sacramentado! m
do, /se agarrava pela goela e entrava a bater pelo chão,
Nossa Senhora do Parto tem sua filha muito amada
m
K^jí
at
dando murros".
Que anda por todas as partes escarnecida e murmurada! m
Os podres da "Abelha Rainha" começavam a vir à tona.
Rosa tem no coração um altar de perfeição
m
Faustina Arvelos depõe no dia 15 de março, juntamente
com suas outras duas irmãs. Descreve o quanto sofreu nas mãos Onde está sacramentado Jesus nossa salvação!" m
das evangelistas, que lhe batiam, jogavam-nano chão, por pouco .
não esganando-a como castigo por sua incredulidade. Narra =— Enquanto transcorria esta segunda leva de depoimentos
m
alguns rituais malucos capitaneados pela negra Rosa: "às vezes ' junto ao comissário do Convento do Carmo, aos 15 de março, o
ela amarrava uma; grande cruz às costas, toda enleada de meirinho José Teixeira finalmente cumpre a ordem de seqúes-
embiras, e uma irmã carregava uma caveira e outra a campai- - __ír.ar os bens dó padre capelão: sua única propriedade então era
nhã, dizendo que Deus a mandava assim fazer, pois era a ~ "um escravo. Sua casa e sítio em São João dei Rei, suas terras no
redentora, para com isto se converterem". ., Recôncavo Fluminense, de nada disto falam os documentos; ou
Genovevá Arvelos, a menos intelectualmente dotada desta _ - já tinha se desfeito dos mesmos à época de sua prisão, ou quiçá
por tratar-se de bens imóveis, de vendagem mais problemática
m
família, ouviu Rosa declarar que Deus Nosso Senhor lhe dissera: ~
"Tu és minha mãe porque me concebeste por amor, enquanto e valor mais significativo, tenham sido poupados do sequestro m
Nossa Senhora me concebeu por obra do Espírito Santo." Mais para somente serem transacionados com ordem expressa do
• Santo Ofício, tal qual era previsto pelos regimentos.
m
ainda: "Tu és a nova redentora dos corações!" Ingénua ou mal-
dosa, quem sabe, Irmã Genoveva incrimina seu padrinho cape- O escravo sequestrado chamava-se Brás, sendo referido •
TT lão, o mesmo que em diversas cartas enviadas às Minas mostra- • 'ora como "cabra", ora como "negro". Mesmo sem ter qualquer m
va-se tão preocupado com os achaques e moléstias desta ingrata culpa, foi trancafiado na cadeia pública, onde permanece cinco
m
afilhada: "O Padre Francisco me afirmava pela Santíssima
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longos meses aguardando o desenrolar do processo de seu arno coes paxá. justificar todas as suas falhas ou contradições. Era
até ir a leilão público. Mazelas da escravidão! das tais — como diz o brocardo baiano — que prefere "morrer
Data de 4 de abril uma carta enviada pelo tio da recolhida ' tesa do que perder a pose".
Maria Antonia, Sr. José Alvares Pereira da Fonseca, ao comis- Conclui sua carta o Sr. Pereira da Fonseca — escrita com
sário Vasconcelos. Deve tê-la escrito e despachado às pressas, ótima caligrafia e estilo escorreito—protestando suafé na Igreja
temeroso por si e pela filha de seu finado irmão. Nela declara Católica Apostólica Romana: "nesta fé quero viver e morrer
ter amizade com Padre Francisco desde o ano de 1743, quando porque somente nela há salvação e não em outra". Tinha então
mineirava nas datas do Sargento-mor João Gonçalves Chaves, 62 anos de idade, continuava solteiro e residia na,freguesia do
e desde 1749, ao presenciar os vexames que o Maligno praticava Pilar, a mais central da vila de São João dei Rei.
em Rosa e Leandra, ouvindo do Padre Francisco Gonçalves Outro devoto, de Minas Gerais, que, tão logo recebeu a
:í5S;< Lopes que "na verdade eram possessas e muito boas servas de notícia do emprisionamento de Rosa, ipso facto despachou sua
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Deus", decidiu-se por fazer um pacto de oração com elas, incluin- confissão para o comissário do Rio de Janeiro, foi Caetano José

do-se reciprocamente em todas as preces que doravante fizes- Pereira, também referido como Caetano Fernandes Pereira,
sem, repartindo entre si todos os benefícios e indulgências que """natural de Portugal e morador na vila de Congonhas do Campo,
ganhassem através dos exercícios pios. Foi este denunciante um 44 anos, negociante de fazendas secas. Disse ter denunciado
dos que visitou o recolhimento logo na sua fundação, em 1757, também a mesma matéria junto ao comissário do Santo Ofício
estando sua sobrinha entre as 17 primeiras noviças a se reco- ' de São João dei Rei. Fora ele o acompanhante do padre exorcista

m lherem no Parto. Manteve correspondência regular com suamãe


espiritual, tanto que também ele fora avisado do dilúvio univer-
e de sua escrava espiritada quando, em. 1751, semiclandestina-
mente, desceram para o litoral. Conhecendo a prisão de ambos,
ii
Hf:
sal, "que devia começar por Minas em 1762". Piedoso, reunia à
noite sua família para recitar o Rosário de Santana e a devoção
dos Santíssimos Corações. É através das declarações deste fiel
"para não ter dúvidas quanto ao Santo Ofício, denunciava o que
sabia". Conta das já citadas estripulias da energúmena em cima
_da montaria quando atravessavam a serraria que separa as
devoto que somos informados com mais detalhes a respeito do __Gerais da Capitania do Rio de Janeiro; da publicidade que o
primeiro atrito de Rosa com a outra facção dos franciscanos do -Xota-Diabos fazia de sua santidade e informa sobre uma confusa
Largo da Carioca que se opunham, ao seu confessor, Frei Agos- profecia da negra a respeito do Governador Gomes Freire de
tinho de São José. Contou-lhe Mestra Egipcíaca que, em 1758, _Andrade "na guerra da Letónia, mas que tal revelação não se
II

H após o falecimento de seu orientador espiritual, Frei Caetano de


Alfama fora encarregado de ir ao recolhimento para acalmar-lhe
o Espírito: "pondo-lhe os exorcismes, o Demónio lhe não quisera
""verificara". Não consta na biografia deste ilustre militar qual-
quer ação bélica na Europa Oriental: talvez Rosa ou este inform-
ante estivessem se referindo à Colónia do Sacramento, área onde
obedecer, pelo que [concluiu] que era falso o estar possessa, " o conde de Bobadela, de fato, atuou militarmente, e que foi
porquanto o Diabo obedecia a qualquer sacerdote, pondo-lhe "retomadapelo Governo de Buenos Aires exatamente no mesmo
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para isso preceitos, e por esta causa lhe tomara ódio". Comen-
tando noutra carta tal episódio, eis como nossa energúmena,
sempre matreira, explicou tal espisódio: "Sobre o Demónio não
ano da prisão de nossa beata.
• — Mal completar a Rosa Egipcíaca três meses de detenção, eis
que de dentro de seu sombrio aljube, na noite de 7 de maio,
querer obedecer a alguns sacerdotes nascia do fato de que, posto 'ouvem-se pipocar ensurdecedores estampidos e, no céu, um
tenham poder, às vezes Deus lho tirava pelas suas vidas não sem-número de raios incandescentes, cometas e estrelas caden-
serem ajustadas." A teóloga africana tinha esdrúxulas explica- tes. "Iluminou-se toda a cidade, e, como se aterrafosse abreviado

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mapa para a descrição de tantas luzes, o mar se via oprimido de dever da caridade cristã, prestaram regular assistência aos
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embarcações e subjugado de fortalezas, se viu também coalhado desafortunados fundadores do Recolhimento dos Santíssimos
de chamas..."Dentro da enxovia, ensimesmada em seus delírios 0
místicos, a negra vidente logo deve ter imaginado que finalmente
as profecias começavam a se cumprir; e o Justo Juiz, antes dos
Corações, levando-lhes alimentos, roupas e o demais necessário
paira a subsistência. Entre estes, um abastado minerador san- m
joanénse, Domingos Francisco Carneiro, relatou que, ao chegar 0
prometidos terremoto e dilúvio, castigava esta pecadora cidade no Rio de Janeiro, soube da triste notícia de que o capelão e a
com o fogo purificador dos astros. Era o anúncio prometido e há - Mestra Egipcíaca estavam presos. Visitou-os no cárcere cinco
muito vaticinado pela "AbelhaRainha": "Quando a horas mortas . ouseis vezes, sempre dando-lhes algumas esmolas. "E, estando
alumiar o sol como dia... e a lua brilhar sem ser tempo de luar... no aljube, Rosa lhe deu dois escritos onde o nomeava por filho."
é chegada a hora das destruições." Alguns anos mais tarde, confessará este informante: "Embora
Ledo engano! Durante três noites seguidas — 7, 8 e 9 de tenha-a também nomeado por mãe, hoje minha mãe verdadeira
maio de 1762—, oRio de Janeiro comemorou com incomparáveis " e a Senhora do Carmo!" Na época, não: ainda continuava firme,
luminárias festivas o glorioso nascimento de Sereníssimo Prín- como outros devotos, na crença de que esta era apenas mais uma
cipe Dom José, iluminando-se com curiosos fogos de artifícios o "passageira tribulação na via cruas da "Flor do Rio de Janeiro". 0
Paço Episcopal, o Palácio do Conde de Bobadela, os conventos e Se estava predito que Rosa iria sofrer os mesmos martírios de
mansões das principais autoridades locais. A descrição minucio-
0
Nosso Senhor, sua prisão era apenas o começo das profecias,
sa de tais festejos — de onde retiramos o parágrafo, descrevendo cujo desfecho haveria de ser sua gloriosa ressurreição e reconhe-
o mar em chamas — mereceu nada menos que duas publicações ~cimento universal de sua santidade inigualável: "a maior santa
laudatórias: Epanáfora Festiva ou Relação Sumária das Festas do céu!" Tão certo estava da sobrenatur alidade de sua mãe preta,
com que na Cidade do Rio de Janeiro, Capital do Brasil, se que, provavelmente por solicitação dela, a fim de socorrer do
celebrou o Feliz Nascimento do Sereníssimo Príncipe da Beira, desamparo suas principais colaboradoras expulsas do recolhi-
II Nosso Senhor, de autor anónimo, e uma segunda obra, igual- mento logo após sua prisão, comprou este minerador do vigário
mente impressa em Lisboa em 1763, com o título: Relação dos dê"Cabo Frio, uma fazenda, no valor de 720$000 réis, oferecen-
lir Obsequiosos Festejos que se Fizeram nesta Cidade de São Sebas- ~
tião do Rio de Janeiro, pela Plausível Notícia do Nascimento do
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do-a como refúgio para "as mulheres atacadas pelos espíritos".
Uma espécie de casa de retiro rural, misto de beatério e "roça
Sereníssimo Senhor Dom José, no ano de 1762, Oferecida ao déT santo".
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Nobilíssimo Senado da mesma Cidade, que tão Generosamente - -Dentre os devotos que não tiveram sua fé abalada com o
Concorreu para estes Grandes Festejos, em que se Empenhou a encarceramento da "Abelha Mestra", destacavam-se o pedreiro
sua Fidelidade e Desempenhou o seu Afeto, também de autoria Manuel Lourenço, que, segundo relatou o Sr. Arvelos, "ainda
anónima. 0
acreditava nas visões, santidade e milagres de Rosa", e, sobre-
Um ano completo mofarão no aljube Padre Francisco e sua tudo, o próprio capelão. Eis suas próprias palavras: "presos no 0
ex-escrava. Como era de praxe, o comissário devia aguardar aljube, ainda crente, Rosa lhe disse que era da vontade de Deus
ordens expressas da Mesa do Santo Ofício antes de remeter que ambos fossem para Lisboa e que seriam libertados por
qualquer suspeito para os cárceres inquisitoriais, a menos que pessoas importantes, o que lhe deu grande consolo", ficando ela
fosse caso de extrema gravidade ou que o suspeito réu oferecesse muito escandalizada por ter queimado seus escritos antes de ser
perigo de fuga. Durante estes longos doze meses de prisão, preso. Nossa visionária acreditava de fato, no fundo de seu
alguns devotos mais corajosos, sob o pretexto de exercício do íntimo, que era um predestinada, e que todas as maravilhas que 0
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julgava ver e ouvir eram apura verdade, daí aguardar, tranquila JL praça pública do Auditório Eclesiástico, estando presente o
e confiante, o cumprimento de tudo quanto os céus lhe prome- 1
vigário geral, nosso já conhecido Comissário Pereira e Castro.
teram, senão na próxima chegada dos gloriosos Sagrados Cora- Perante um grupo de eventuais compradores,
ções, pelo menos na sua transferência para a capital do Reino,
feia onde pessoas doutas e iluminadas haveriam de reconhecê-la e "foi trazido em pregão de venda e arrematação o cabraBrás,
acatá-la como a nova redentora do género humano. e entre os vários lances que houve nele, foi o maior de
Entre uma visita e outra de seus fiéis amigos e devotos :51$360 réis que lançou António da Costa Ferreira, com cujo
assistindo à santa missa na capela do aljube aos domingos e dias lanço andou o porteiro da cadeia dizendo e apregoando:
de guarda, certamente sendo alvo do desdém e escárnio dos 51$360 réis me dão pelo referido mulato. Há quem mais
prisioneiros incrédulos e do pessoal da segurança, assim trans- ,dê?Senão, arremata-se, e, por não haver quem mais lançar
corriam os longos dias dos dois réus, aguardando impacientes e quisesse, apregoando de cima para baixo, debaixo para
temerosos a chegada da frota de além-mar, e com ela alguma cima, apregoou novamente e disse: dou-lhe uma, dou-lhe
ordem da Inquisição de Lisboa deliberando a respeito de seus duas, dou-lhe três e mais uma pequenina, e, por não haver
destinos. r"" .quem mais lançar quisesse, se chegou para o rematante e
Como seguramente as esmolas recebidas por nossos pri- — - lhe meteu um ramo verde na mão em sinal de lhe haver
sioneiros não eram suficientes para garantir-lhes a subsistência feito a dita rematação, e de tudo o senhor vigário geral
diária,/determinou então o governador do bispado que se proce- ~
mandou fazer auto, que assinou com o rematante, e eu,
desse a venda do único bem móvel do velho e enfermo capelão, - Padre Amador dos Santos, escrevi".
seu cabra Brás.
Nada informam, os documentos sobre este mulato, a não No dia seguinte, o rematante solicitou à autoridade ecle-
ser que era "escravo velho". Certamente morava na casa do siástica que passasse alvará de soltura do dito escravo para
Padre Francisco, ocupando-se de seus serviços domésticos de __tomar posse de sua nova propriedade.
carregar água, lenhar, despejar seujlixo e urinóis na vala ou na_ --.. Seu valor máximo, auferido no leilão, foi de 51$360 réis:
praia, etc. Talvez prestasse serviços eventuais no recolhimento, devia custar um terço do que valia um escravo jovem sem
quiçá fosse alugado bomo escravo de ganho: mil e uma possibi- defeitos, não nos esquecendo que nesta quadra, a tomarmos
lidades existiam para se tirar lucro desta mercadoria humana como referencial o "Registro de Receita e Despesa do Hospital
que as leis permitiam doar em testamento,, alugar, emprestar, ;dos Lázaros do Rio de Janeiro", sito em São Cristóvão, tais eram
hipotecar ou leiloar. os preços dos seguintes géneros alimentícios: um saco de farinha
Pesquisando inúmeras facetas da escravidão no Brasil, foi [de mandioca], $840 réis; um saco dê feijão, 1$200 réis; um saco
apenas neste processo inquisitorial onde encontrei a descrição "de sal, 1$600 réis; uma arroba de açúcar, $880 réis; um boi de
detalhada de como se procedia o leilão de um cativo. Dada a _112 arrobas, 11$520 réis; um frasco de aguardente do Reino, $640
raridade deste documento, tive por bem transcrevê-lo a seguir. réis; uma medida de vinho, $440 réis, e uma medida de vinagre,
Preso na cadeia aos 15 demarco deste ano de. 1762, só a20 .- $220 réis.14 Portanto, o velho Brás foi equiparado ao valor

i ,
de agosto foi efetuada a venda do dito escravo sequestrado. Para aproximado de 5 bois de 10 arrobas: não devia estar assim tão
não ter dúvidas quanto à lisura do negócio, incluiu-se no processo quebrado e debilitado, pois alguns velhos escravos chegavam a
dopadre capelão o "Auto de Arrematação do Mulato Sequestrado syaler menos que um bovino.
ao Padre Francisco Gonçalves Lopes". O leilão realizou-se na Enquanto mofavam no aljube à espera do despacho inqui-
sitorial, mais algumas testemunhas são ouvidas e seus depoi-

618 619
mentos incorporados ao processo: FranciscaXavier dos Serafins; t - dos, encarcerados nas terríveis "casinhas do Rocio", açoitados
nomeada "João Evangelista da Nova Redenção", j á nossa conhe- publicamente, degredados e até queimados, réus de crimes cuja
cida, e Irmã Ana do Coração de Jesus — São Mateus —, por gravidade estes ignorantes e crédulos sitiantes luso-mineiros
conselho de seus confessores, apresentaram-se em casas de não chegavam a atinar com precisão.
EJ residência do Comissário Pereira e Castro para delatar-se. Foi -, Retornando a seu sítio no bairro da Glória, logo aos 3 de
ré.: a primeira, conforme contou, que, por ordem do capelão, fizera rnaio, o Sr. Arvelos escreve de seu próprio punho uma atribulada
as tais bolachinhas com a saliva da negra courana, sua mestra, carta dirigida aos inquisidores de Lisboa, onde declara: "Eu,
descrevendo perante os clérigos do Juízo Eclesiástico diversos Pedro Róis Arvelos, me delato ao Santo Tribunal do Santo Ofício
prodígios e visões, tendo sempre Rosa como protagonista. Disse, e-aos senhores inquisitores que me delatei no.Rio de Janeiro de
contudo, que, tão logo a "Abelha Rainha" fora retirada do Sacro tudo o que tinha acreditado das embustices e diabólicas tragé-
Colégio, queimou todas as suas visões e relatos dos prodígios dias da preta Rosa..." Sucedeu, porém, diz o remetente, que, ao
&•:*.;: realizados pela beata em sua atribulada peregrinação por este ,4 TT partir para o litoral, mandou que sua esposa queimasse todos
sã,11.3; >^

: vale de lágrimas. Sua confissão é de 7 de novembro de 1762. J.. os escritos de Rosa, do Padre Francisco e os recebidos de suas
Com a prolongada ausência dos fundadores do recolhimen- "filhas quando recolhidas no Parto — tanto que declarara aos
to e acareação das testemunhas, esta comunidade religiosa entra comissários que o ouviram que tais manuscritos tinham sido
em profunda crise. É mesmo surpreendente que não tenha sido queimados —, mas, ao retornar a Minas, sua mulher Maria
extinta pela autoridade eclesiástica, pois raras eram as recolhi- Teresa informou-lhe que não os queimara, antes os tinha entre-
das que não tinham, alguma culpa formal. Das vinte religiosas gue ao comissário de São João dei Rei. Termina a missiva aflito:
que ali viviam em 1761, talvez a metade ou tenha se afastado "De tudo peço perdão a Deus, por sua bondade me perdoe e os
com licença eclesiástica, ou tenha sido expulsa pela mesma senhores inquisidores se compadeçam de mim, pois protesto que
autoridade. ; só creio e quero o que ensina e manda crer a Santa Igr ej a Católica
Temeroso de ser punido pelo Terrível Tribunal, o Sr. Romana, e nesta fé quero viver e morrer."
Arvelos, além de autodenunciar-se e pedir misericórdia por sua _ Acompanha esta confissão um recado ao 'Muito Reverendo
131
- .aí i K '; ' cegueira e ignorância,' retirou logo suas quatro filhas do Parto, - Senhor Dr. Vigário da Vara" de São João dei Rei: "Aos pés de
provavelmente nos meados de abril deste fatídico 1762. Chegan- Vossa Mercê se prostra o mais humilde de seus criados, pedin-
do em casa, a alegria dó reencontro da aflita Dona Maria Teresa do-lhe pelo amor de Deus me faça a esmola de remeter os papéis
com suas quatro filhas, há cinco anos ausentes no litoral, logo que ofereço inclusos com a sua informação caritativa, e que Vossa
eclipsou-se em tristeza. Francisca, que partira menininha de 10 Mercê faça viagem feliz. Deus guarde Vossa Mercê."
anos, voltava para as Minas agora com corpo de mulher feita. O agoniado sitiante devia estar realmente muito afli topara
III' As lágrimas de júbilo devem ter-se misturado com choro de ter-se precavido tanto, e, aproveitando a viagem do vigário da
angústia desta desafortunada família que se achava atolada até vara de sua paróquia ao Rio de Janeiro ou ao Reino, fê-lo seu
•"m.m o pescoço dentro deste pantanoso embroglio religioso. Como "caritativo" advogado junto ao Santo Tribunal. Não satisfeito

m todos os procedimentos inquisitoriais eram ultra-sigilosos, e os


comissários graves etaciturnos, esta desafortunadafamília deve
ter passado momentos de indescritível temor, pois certamente
com todas essas precauções, quem sabe orientado por algum
clérigo de sua confiança, na semana seguinte remete nova
autodelação ao Tribunal de Lisboa: "Eu, Pedro Róis Arvelos, me
já tinha ouvido contar, ou mesmo tomado conhecimento de delato que na delação que fiz no Rio de Janeiro menti só
alguns presos do Santo Ofício que tiveram seus bens seqúestra- exteriormente por me parecer, pelo conceito que fazia de minha

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mulher, que ela ia queimar os escritos enviados do Recolhimento Notas
de Nossa Senhora do Parto." Temia que os rigorosos inquisidores
oinculpassempormentiroso ou "diminuto", devido à contradição
1. Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Lata 117, na 18, "Cor-
I existente entre o que declarara e a conduta efetiva de sua
consorte. Reforça sua honestidade espiritual com a mesma respondência dos Bispos do Rio de Janeiro com o Governo da
Metrópole" (22-7-1756).
proclamação de fé: "Declaro que tudo o que for do Diabo eu
2. Coaracy, Vivaldo, Op. cit., 1965, p. 506.
arrenego, tudo renuncio, detesto e abomino." Aleluia, aleluia!
3. Eower, PreiBasflio, Op. cit., 1951, p. 120.
Não contente ainda com tantas provas de arrependimento, 4. Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Lata 117, n2 18 (Ofício
este piedoso sitiante acompanha suas autodelaçÕes com longas de 2-3-1764).
cartas de suas quatro filhas, ex-recolhidas, nas quais cada uma 5. Mendonça, J, L. D. & Moreira, A. J. História dos Principais Actos
por si repete, mutatis mutandis, as mesmas acusações que de e Procedimentos da Inquisição em Portugal. Lisboa: Imprensa Na-
viva voz já. tinham feito perante os dois comissários do Rio de cional, 1980; Siqueira, Sônia A. A Inquisição Portuguesa e a Socie-
Janeiro. A primeira carta é de Maria Jacinta dos Anjos: "Eu me dade Colonial. São Paulo: Ática, 1978; Novinsky, Anita. Algreja no
delato e denuncio que vivi três anos no recolhimento..,", decla- Brasil Colonial: Agentes da Inquisição. Anais do Museu Paulista,
rando com detalhes diversas condutas, discursos e cerimónias Tomo XXXHI, 1984, pp. 17-34.
capitaneadas por Rosa Egipcíaca que agora julgava fugirem dos 6. ANTT, Inquisição de Lisboa, Processo n212.396 (1612).
7. Mott, Luiz. A Inquisição em Sergipe, p. 60.
canônegapr ovados pela Santa Madre1gTêJã7~e cujo~con-teúdo já
8. ANTT, Inquisição de Lisboa, Habilitações do Santo Ofício: Maço
divulgamos anteriormente. Acrescenta gravíssima acusação: 65-1237; Maço 125-2119; Maço 6-100; Maço 13-491. !*!
que sua ex-mestra, quando batucava com. as imagens dos santos 9. Coaracy, Vivaldo. Op. cit., 1965: 12/461-462; Luiz Edmundo. Op.
na capela do recolhimento, costumava dizer repetidamente em cit., s.d., p. 451; Fazenda, J. V. Op. cit., 1921, v. 140, p. 422.
alta voz: "Eu sou Deus!", e outras vezes, "Sou tal ou tal dos 10. Luiz Edmundo. Op. cit., s.d., p. 451.
santos!" Blasfémia cabeluda!, devem ter ponderado as autorida- r,.:_ 11. Garrigou Lagrange. Op. cit., 1938, p. 767.
des eclesiásticas. . . . - . . _ . . .. . ET. 12. ANTT, Habilitações do Santo Ofício, Maço 85-1252.
A segunda, como as demais missivas, começa como a T; 13. ANTT, Habilitações do Santo Ofício, Maço 13-491.
precedente: "Eu, Faustina Maria de Jesus, moça donzela, de- 14. Arquivo Nacional (Rio de Janeiro), Códice 513, v. l (1763).
nuncio que...", rasgando o verbo contra sua ex-madre superiora,
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narrando como ela e o capelão embalsamaram a imagem do
Senhor Morto, naúltimaQxúnta-feira Santa, acrescentando que
as muitas cartas que escreyerapara sua família, elogiando Rosa
e o recolhimento, o fizera "com medo de ser castigada".
Tudo leva a crer que por trás destas cartas estava o Sr.
Arvelos ditando-lhes o conteúdo, pois também Francisca e Ge-
noveva repetem praticamente as mesmas acusações anteriores,
sempre afirmando que Rosa costumava declarar: "Eu sou Deus!"

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622 623
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24
Tribunal do Santo Ofício de Lisboa
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;^!;-i?
:::1i;f
Rosa foi presa em fevereiro de 1762. Seu capelão, o Padre
íÉfe í Francisco Gonçalves Lopes, é encarcerado um mês depois, aos
8 de março. Passam ambos um ano inteiro trancafiados no
aljube, enquanto os três comissários do Santo Oficio — os dois
F do Rio de Janeiro e um de São João dei Rei — acumulam
denúncias e provas contra os réus.
A l2 de março do ano seguinte, o escrivão do Juízo Ecle-
siástico do Rio de Janeiro "fez estes autos conclusos, remeten-
do-os para o Senhor Comissário despachar como lhe parecer
justiça". Nada mais havia afazer, por parte da justiça do bispo,
nesta denúncia de heresia formal.
Passa-se quase um mês completo e, aos 29 de março de
1783, o Comissário António José dos Reis Pereira e Castro
determina aremessa dos presos, acompanhados dos autos, para
o Tribunal do Santo Ofício de Lisboa, confiando sua guarda aos

m capitães dos navios que estavam prestes a zarpar para a capital


do Reino.
Causa-nos admiração o procedimento deste comissário
inquisitória! que, sem ordem expressa de Lisboa, sequestrou e
despachou para a casa do Rocio estes dois suspeitos de heresia.
O Regimento dos Comissários do Santo Ofício previa que "se
nas terras em que viverem os comissários acontecer alguma
coisa que encontre a pureza de nossa Santa Fé, ou por alguma
outra via pertença ao Santo Ofício, avisará por carta sua aos
«Si'! inquisidores para que mandem prover matéria com o remédio
que convém ao serviço de Deus". Não consta que os comissários
citados nestes processos tenham previamente comunicado à
MesaInquisitorialtais ocorrências. Quiçá, julgando através dos
autos, tratar-se de matéria grave e indubitavelmente compro-
vada por inúmeras testemunhas, o Comissário Pereira e Castro
tenha tomado tal liberdade anti-regimental, confiante em que

625
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wB-sfir"" '
m--:-.-.
iiSài- •;
contaria com o beneplácito dos juizes inquisitoriais, seus supe-
riores. Saiba, contudo, o leitor que, em mais de um milheiro de
religião escritas por Rosa, mas que continham heresias". Tal
parecer servia de intróito aos depoimentos que Frei Bernardo

6' processos por nós analisados na Torre do Tombo, raríssimas


vezes os comissários do Brasil ousaram tomar iniciativa desta
grandeza, pois os inquisidores não abriam, mão da prerrogativa
de decidirem quem mandar para os cárceres do Rocio, e de quais
infelizes convinha, "para o serviço de Deus", sequestrar os bens
Vasconcelos colhera em seu Convento de Nossa Senhora do
Carmo, documentação que acompanhava os autos dirigidos pelo
Comissário Pereira e Castro.
Além de Rosa e do capelão do Parto, outro preso de cons-
ciência, morador nesta mesma cidade, foi remetido pelo vigário
Alguns comissários do Brasil chegaram a ser severamente ad- "" _ geral do bispado aos cárceres inquisitoriais, todos.três na mesma
vertidos por tomarem tais deliberações sem, o prévio consenti- frota: trata-se do Padre António Carlos Monteiro, Era natural
mento.* de Lisboa. 1 da cidade do Porto e tinha 33 anos ao ser preso, filho adotivo do
E provável ter sido a frota que partiu do Rio de Janeiro ~_J~ "* abade da freguesia de Vila do Pinheiro. Foi denunciado e tran-
em fins de abril ou mesmo começo de maio, que levou nossos- " * *~ " cafiado no aljube na mesma quadra do encarceramento de Rosa
infelizes biografados para o Tribunal do Rocio. O comissário do- '" \-— aos 16 de janeiro de 1762 —, acusado de divulgar hediondas
Carmo, Frei Bernardo Vasconcelos, em ofício parcialmente já "";'""" heresias, gravíssimas na boca de leigos, muito mais comprome-
citado, escrito a 3 de abril de 1763, ao analisar os depoimentos 7^ -- tedoras por tratar-se de um clérigo de missas. Seus acusantes
das testemunhas, comunicava aos senhores inquisidores que juraram ter ouvido o Padre António Carlos afirmar que o céu, o
/ sol e a lua não foram criados por Deus, pois todo seu movimento
"há muito tempo, e com grande escândalo, permanecem no ff — procede da natureza. Que Deus não existia, e caso houvesse
Recolhimento do Parto as superstições, revelações e mila- -"•"- Deus, não haveria a Divina Providência, pois deixa morrer pais
gres que causam gr andes prejuízos espirituais e escândalos ~~— ' de família, ficando seus filhos no desamparo, enquanto permite
em muita gente... Há muitíssimos descuidos em matérias viver outras pessoas que se morressem não fariam falta. Que
tão importantes à religião... O Recolhimento do Parto •T"
^=___- Jesus Cristo era simplesmente um homem, que não ressuscitou,
merece mais propriamente o nome de conventículo: nele m - o mais ladino de seu. tempo, sabendo fingir muito bem"!
moram ainda, e não sei se com a mesma veneração, as -Que os evangelistas não eram senão simples mortais e que Nossa
primeiras companheiras da preta Rosa, autora com elas Senhora não era virgem!
das hipocrisias. As dez que eu tenho notícias são: as pretas Tantas e tão graves blasfémias, ditas em alto e bom som a
Ana do Santíssimo Coração de Maria, Ana do Santíssimo — quantos quisessem ouvir, constituíam matéria mais que sufi-
Coração de Jesus, Ana Clara dos Anjos, Maria Antonia do ciente para o enquadramento deste clérigo ateísta no crime de
Coração de São Joaquim, Maria Rosa do Coração de São ~*. heresia. Contra si pesavam ainda outras culpas de igual gravi-
José; a mulata Páscoa Maria de São José; e as brancas Ana ^Uádè. Proclamavaperante qualquer público que "certos estavam
Francisca do Sacramento, Ana Joaquina de São José, "os~mgleses, que deixaram a fé católica e viviam, na abastança".
Teresa Maria de Jesus e Ana Maria do Nascimento". Que hão existia céu nem inferno; que a alma era mortal, não
»-havendo qualquer diferença entre a morte de um animal e a de
Segundo seu parecer, era Padre Francisco o fomentador um ser humano; que o Papa não era infalível e, como os bispos,
destas falsas virtudes e fingimentos de santidade —, "homem só cuidava de acumular bens e casas; que os fiéis não deviam se
" t
A Hi

ignorante, material e malicioso"—; e que também tinha sua dose confessar; que a fornicação simples não era pecado, desde que a
de culpa o finado provincial dos franciscanos, "Frei Agostinho mulher consentisse em copular, etc, etc. De lambuja, algumas
de tal, que guardava com veneração muitas páginas sobre

626 627
f!

indisciplinas no exercício das ordens sacras tornavam ainda A bela letra Ao Fandango Conde da Armada, contemporâneo a
mais grave seu rol de culpas: vivia publicamente amancebado,
sendo pai de vários filhos (netos, portanto, do seu pai abade!);
este embarque, permite-nos vislumbrar o emocionalismo rei- m
não respeitava o jejum antes.de celebrar missa; comia carne em
nante no porto quando destas despedidas transoceânicas:
m
dias proibidos e não se confessava antes de celebrar. Umrefinado
libertino!
As lágrimas eram tantas
Em cima daquele cais

Bizarras as heresias e condutas heterodoxas perseguidas f
Choravam as mães pelos filhos
. pelo Santo Tribunal da Inquisição no Brasil nestes meados do Que já se iam para nunca mais.
Século das Luzes: numa mesma nau são enviados para Lisboa L
um velho sacerdote e sua filha espiritual, acusados do crime de Quando bateu meio-dia
hipermisticismo e falsa santidade, enquanto este jovem clérigo Principiaram, a largar as velas m
t*.;" '
ateu defendia abertamente o fim da liturgia, dos sacramentos e
a desmistificação da divindade de Cristo e da virgindade de sua
Uns marchando para bordo
Outros no cais a chorar m
Mãe Santíssima. No Rio de Janeiro, às vésperas de sua elevação Com saudades de deixar a terra
Choravam as mães pelos filhos
m
à capital do Brasil, apesar da existência de numeroso batalhão
.:;ij».;::

••íí^i! i
de familiares do Santo Ofício e da presença de pelo menos três As mulheres por seus maridos
.•' ..'í :
comissários inquisitoriais, havia lugar no rebanho cristão para As manas pelos maninhos
dois desvios extremos na ortodoxia cristã: o reinol Padre António As queridas pelos queridos...
Carlos Monteiro declarando publicamente "Deus não existe",
enquanto a africana Rosa Maria Egipcíaca da Vera Cruz sem Ao içar âncoras, a frota aos poucos foi desaparecendo na
meios-termos proclamava: "Eu sou Deus!" De fato, se tais here- Baía de Guanabara, deixando em terra firme os órfãos de Mãe
siarcas não fossem exemplarmente castigados e neutralizados, Rosa: alguns arrependidos da cegueira de sua crendice, outros
a barca do velho São Pedro corria o risco de afundar. A crença • ainda crédulos em que, depois de todo este sofrimento e provação,
em Deus, a devoção a seus santos e o respeito à hierarquia lb"eus Pai haveria de cobrir sua filha dileta com a. glória prome-
eclesiástica estavam em crise aguda. tida.
Voltemos, porém, 'à outra barca, àquela desconhecida su- Competia ao capitão do navio cuidar dos réus na travessia
maca que, atracada 110 porto do Rio de Janeiro, aguardava a oceânica, entregando-os com toda segurança à Inquisição, tão
entrada dos passageiros para zarpar em direção ao Reino. A logo aportassem no Reino. Tarefa de extrema responsabilidade,
notícia do embarque deve ter-se espalhado entre os conhecidos pois, além da guarda dos presos, confiava-se ao capitão o malote
de Rosa, e, quem sabe, os mais devotos e corajosos tenham devidamente lacrado, com todos os documentos produzidos nos
acompanhado este pequeno séquito de prisioneiros, conduzidos aubos e sumários. Informa o processo que as despesas desta
do aljube até o porto das naus, debaixo de varas. A vergonha do viagem foram cobertas com o valor da venda do escravo Brás, o
humilhante embarque com. mãos. atadas e aparato policial, a .único bem sequestrado ao capelão Padre Francisco: quem ima-
angústia e medo da viagem e do incógnito que lhes aguardava ginaria que o mesmo cativo, comprado pelo sacerdote, certamen-
nalnquisição—tudo isto devia estampar-se no semblante destes te com o dinheiro arrecadado de suas missas diárias, seria anos
réus, que entre lágrimas deixavam para sempre o solo do Brasil. mais tarde leiloado par a financiar-lhe o retorno forçado à pátria?
Santa escravidão!
Durante os três meses que em média duravam estas tra-

628 629
vessias, o costume era isolar-se os réus do convívio dos demais Gerais; outra, quando expulso da capelania do Recolhimento do
tripulantes e viajantes, evitando-se assim o contágio de suas Parto, conseguira demover o prelado do Rio de Janeiro de sua
perniciosas ideias e condutas. Homens de um lado, mulheres de sentença; agora, não tinha mais escapatória, nem a quem recor-
outro, quase incomunicáveis, sendo o dormitório destas cuida- rer, seu destino estava traçado: o Tribunal da Inquisição. E cada
dosamente trancado à noite para evitar desinquietações por manhã, ao acordar, sabia estar inexoravelmente mais próximo
parte da marujada e dos demais passageiros.4 de-um dos locais mais misteriosos e temidos do Reino: os cárceres
A viagem era sempre extremamente doentia, a alimenta- secretos do Rocio de Lisboa.
ção pouca e de má qualidade, as mortes frequentes. Outros O que lhe sucederia, que torturas lhe estariam reservadas,
mie sentença e castigo haveria de receber, tudo eram incógnitas
passageiros também destinados ao Santo Ofício descreveram
com riqueza de detalhes esta dolorosa via crucis marítima, onde f a angustiar a velha cabeça do Xota-Diabos.
Quanto a Rosa, somos levados a crer que manteve sua fé
não faltavam insultos, calúnias e agressões físicas por parte dos
viajantes e oficiais, atribuindo a tais prisioneiros de consciência inabalável durante as intermináveis calmarias e medonhas
os infortúnios da travessia, castigo de Deus pelos seus abomi- tempestades no meio do Atlântico. Sua apocalíptica profecia do

. náveis pecados.5
Tanto para o capelão, como para sua beata, era a segunda
vez que atravessavam o mar oceânico: ele, há três décadas
"dilúvio -universal a ocorrer em 1762, pelo visto, também tinha
-'sido "revogada" pelo Altíssimo, embora certamente interpretas-
seseu envio par a a Corte como parte dos novos desígnios celestes
passadas, na época com 36 anos, vindo do bispado do Porto era e início de uma série de auspiciosos sucessos, tanto que garantira
direcão às minas de ouro. O que teria motivado tal mudança de a seu. capelão, quando ainda no aljube do Rio de Janeiro, que em
continente: o afã da cura das almas ou a ambição do vil metal? Lisboa, "pessoas doutas" haveriam de identificar e dar valor à
Rosa, por seu turno, não passava de uma negrinha de seis sua predestinação salvífica. Como já fora dito de sua "rival"
anos^quando, no escuro porão do tumbeiro, deixou para sempre Santa Teresa, também em Rosa "sua fé era isenta de todas as
sua África natal em direcão ao cativeiro. O destino unira inde^ dúvidas. Quanto menos uma verdade dafé correspondia à ordem
levelmente suas vidas há 14 anos passados, e agora, nesta^ natural, tanto mais firme era sua fé nela!" Seus êxtases, visões
monótona e tensa caminhada ao calabouço, separados e incomu-, "ê revelações talvez tenham persistido no alto-mar, levando-se
nicáveis na mesma embarcação, com certeza seus pensamentos em conta que outros visionários, inclusive africanos e endemo-
e lembranças navegaram livres, em direções diametralmente niados como ela também a caminho do Santo Tribunal, revela-
opostas. ram aos. juizes inquisitoriais terem sido incontrolavelmente
tfr.- .- Padre Francisco, com 69 anos, carregado de doenças e atacados pelo Espírito do mal quando embarcados.
achaques, quiçá maldissesse o momento em que, na longínqua Durante estes três meses de interminável monotonia e
G: Mji. :
igreja do Inficcionado, acreditou que todas aquelas macaquices 'marêação, nossa beata deve ter se apegado ainda mais às suas
pi -
práticas devocionais: além da missa diária do capelão do navio,
3j|'; praticadas pela negra de Dona Ana Durão eram manifestações _
costumavam os viaj antes rezar todo o Rosário de Nossa Senhora,
diabólicas, consentidas e ordenadas por Deus, para exemplo e
i correção dos moradores das Minas. Ou então, a dar crédito ao -
comissário carmelitano, destacava-se o capelão por ser "material
ladainhas e novenas, imprecando aos céus a proteção contra as
tempestades, assaltos de piratas e demais acidentes comuns aos
e malicioso", daí talvez não se perdoar pela imprudência e falta que navegavam à mercê dos ventos e marés. Entre maio e agosto,
de malícia como se deixou apanhar pelas autoridades eclesiás- -. jem alto-mar, Rosa deve ter mantido seu piedoso costume de
ticas: já uma vez tivera êxito em fugir do bispado de Minas comemorar com tríduos e novenas, se não publicamente, com.

630 631

ití
m?*,

w\ certeza no recôndito de seu coração, algumas datas importantes prisioneiros manietados •—• dois padres e uma negra beata — m
do calendário litúrgico, levando-se em conta conservar na me-
mória iam sem-número de responsos, preces e litanias: 3 de maio
cujo destino eram os cárceres do Santo Ofício. Não seria de todo
infundado imaginarmos que alguns lisboetas menos compassi- m
—Invenção da Santa Cruz; 22—Santa Rita de Cássia, protetora vos insultassem estes infelizes miseráveis, profetizando-lhes
castigos, torturas, quiçá mostrando-lhes mesmo o Terreiro do
m
das causas impossíveis; 28 — Santo Agostinho; 13 de junho —
seu queridinho Santo António de Pádua; 24 — São João B atista; Paço, ou a Igreja de São Domingos, locais onde mais comumente
29 — São Pedro e São Paulo; 1a de julho—Preciosíssimo Sangue eram realizados os famigerados Autos de Fé. Envergonhados e
de Cristo; 2 — Visitação de Nossa Senhora; 8 — Santa Isabel, cabisbaixos, cambaleantes após quase cem dias sem pisar em
Rainha de Portugal; 16 — Nossa Senhora do Carmo e, 26 de í terra firme, humilhados pelos olhares curiosos e reprovadores
julho, sua predileta Santana, todos, santos de sua particular da multidão, finalmente o pequeno cortejo dos réus chega ao
devoção, e, como já vimos, que dela mereciam todos os anos |: Rocio, a principal praça do Reino, onde, imponente e aterroriza-
m\' dora, situava-se a Santa Inquisição. Apesar de também ter sido
vigílias, hinos, coroas e demais manifestações litúrgicas.
Entre calmarias e tempestades, novenas e delírios místi- afetada pelo terremoto, a Casa do Rocio logo se reaparelhara e,
cos, cada dia que passava a frota aproximava mais e mais Rosa sem solução de continuidade, persistia em sua missão tenebrosa.
liií e Padre Francisco de seu porto de destino. Deve ter sido com um Sem saber e sem se dar conta, cumpria-se neste momento,
M8Í misto de alegria e terror que finalmente os navegantes deslum- embora parcialmente, a derradeira profecia de nossa vidente
braram, rio horizonte, o impressionante perfil de Lisboa, gran- africana, pois neste mesmo edifício imponente, onde funcionava
diosae altaneira mal grado o calamitoso terremoto cujos estragos o Santo Tribunal, exatamente aí habitara, há mais de dois
eram ainda perceptíveis na capital do Reino. A Torre de Belém, séculos passados, el Rei Dom Sebastião, o Encoberto. Para
contudo, conservava-se intacta na sua posição de portão de desconsolo de Rosa Egipcíaca, o prometido diluvio de 1762 nunca
entrada do Velho Mundo. chegara a ocorrer, e sua transferência do Rio de Janeiro para o
A 2 de agosto de 1763 os dois prisioneiros arribam na Velho Mundo se fizera através de uma embarcação qualquer e
li - não em seu recolhimento metamorfoseado em "Nau dos Santís-
capital do Reino. Após serem as .embarcações vistoriadas pelos
comissários das naus, conforme determinavam os regimentos | simos Corações". Tampouco el Rei em pessoa ressurgira de seu
inquisitoriais, garantindo-se desta forma que nenhuma delas misterioso esconderijo afim de receber sua dileta esposa africa-
na, tal qual lho haviam prometido os céus. Em todo caso, um
lp trazia livros censurados pelo Santo Ofício, os réus foram enca-
premiozinho de consolação a enganada visionária podia exibir:
minhados, sob aproteção de escolta, para a Casa do Rocio. Talvez
l o próprio Santo Ofício tenha enviado ao porto o meirinho da
Inquisição, com seus dois guardas, "homens robustos", que, com
a partir de 2 de agosto de 1763, até o final de sua história, Rosa
vai viver sob o mesmo teto que abrigara o jovem Dom Sebastião
m
suas varas ex-officio, conduziam os prisioneiros até os cárceres antes de seu trágico desaparecimento nas areias do Marrocos,
do tribunal eclesiástico. Suspeitamos, contudo, quenossabiografadanunca chegou ater
Oito anos após o fatídico terremoto, Lisboa mais parecia notícia deste fato, pois já se iam por volta de dois séculos que na
um canteiro de obras do que -uma verdadeira capital: muitos El_ Casa do Rocio funcionava o Tribunal da Inquisição.
prédios ainda em ruínas, escavações por toda parte, palácios e Em vez de ser cordial e solenemente acolhida pelos pajens
mansões em obras de restauração, novas ruas e praças sendo dei Rei, os mesmos a quem profetizara casar-se com suas evan-
rasgadas. A curiosidade da multidão apinhada no porto, quando gelistas, foram os carcereiros do Santo Ofício que, carrancudos,
da chegada da frota do Brasil, devia concentrar-se naqueles três receberam os réus e, sem delongas, introduziram-nos no Cárcere

,!»H í - 632 633


.'^|.'í :
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da Custódia, encaminhando à Mesa Inquisitória! o malote com dos juizes inquisitoriais do que pela inércia ou desleixo da
os documentos explicativos de suas culpas. máquina carcerária, pois não era conveniente manter apenas

: Como os três prisioneiros -vindos do Brasil tinham sido


enviados para Lisboa por iniciativa do bispo do Rio de Janeiro
era acordo com os comissários locais, costumava o Santo Ofício
sob "custódia" os réus merecedores de isolamento e trato mais
severo.
Aos 13 de outubro, portanto 71 dias após a entrada dos réus

l manter os recém-chegados num cárcere mais brando, enquanto


aMesalnquisitorial examinava os autos. Teoricamente, caso se
na Casa do Rocio, aMesa do Santo Ofício, composto de sete juizes
inquisitoriais, redige minucioso despacho onde informa que

l
constatasse erro ou flagrante arbítrio na documentação, deste
mesmo cárcere devia o injusticado prisioneiro ser posto em "foram vistos os depoimentos das testemunhas deste su-
liberdade. Não encontramos, contudo, sequer uma evidência de mário, inquiridas e ratificadas na forma do direito, e estilo

i
í* í) que tal haja ocorrido com algum, felizardo. Quando os comissá- 'í?
do Santo Ofício pelo Ordinário do Rio de Janeiro, contra
rios enviavam algum preso, sem prévio mandado de Lisboa, via Rosa Maria Egipcíaca da Vera Cruz e o Padre Francisco
de regra os autos traziam matéria mais que suficiente para a Gonçalves Lopes e Frei João Batista da Capo Fiume. E
pareceu a todos os votos legalissimamente que Rosa, para

pI
abertura de um processo formal.
Pouquíssimo informam os documentos a respeito dos Cár- fins humanos e temporais, inculcando-se mulher santa e
ceres da Custódia, devendo basear-nos no Regimento, de 1640, virtuosa, se fingia favorecida de Deus, inventando que o
para tentarmos visualizá-los. Segundo tal ordenação, "junto aos mesmo Senhor, Maria Santíssima e muitos santos lhe
Cárceres Secretos haverá duas ou três casas em que se possam falavam e apareciam e ainda as almas de diversas pessoas,
chegando a tanto seu supersticioso embuste e insolente
i recolher as pessoas que por assento da Mesa Inquisitória! forem
mandadas pôr em custódia enquanto se faz alguma diligência
para se ver se devem ser presos nos Cárceres Secretos".
hipocrisia que ostentava o dom da profecia e conhecimento
sobrenatural dos sucessos particulares e ocultos e futuros,
Dispunham de instalações específicas e incomunicáveis, como o destino das almas, a submersão das Minas Gerais
homens emumabanda, mulheres na outra, situando-se naparte e do Rio de Janeiro, criando um novo mundo mais refor-
mais exterior do corpo deste tétrico imóvel, evitando-se assim mado, nova Encarnação e muitos erros e proposições sus-
que estes recém-chegadòs tivessem qualquer contacto ou infor- peitas de heresia formal, incompatíveis com a verdadeira
mação com os ocupantes dos Cárceres Secretos —• estes sim, virtude e favor do céu, hipocrisias continuadas por muitos
localizados no interior da Casa do Rocio. Guardas, alcaide e anos em diversas terras do Brasil, com grande perturbação
meirinho eram os únicos funcionários inquisitoriais a se comu- do povo católico cuj a religião se ofende diametr almente por
nicarem com. os novos prisioneiros, acrescendo-se a estes, even- estes perniciosos enganos próprios para introduzir erros
tualmente, o médico, o cirurgião e o barbeiro. Os réus só irão ver contra nossa Santa Fé".
os reverendos inquisidores, deputados e notários, mais tarde,
na sala de audiências. O parecer da Mesa Inquisitória! é longo e bem documenta-
.Mais de. dois meses ficarão aguardando, Rosa e o Padre do, reprovando-se igualmente o Padre Francisco e Frei João
Í!L Batista,
Francisco, no Cárcere da Custódia — obviamente, sem se verem
nem terem qualquer notícia um do outro —, até serem despa-
chados pela autoridade competente. A demorapara o andamento "confessores de Rosa e pregoeiros de suas falsas virtudes
e fingidos milagres, ambos concorrendo como sócios nestes
de suas causas deve ser explicada mais pelo excesso de afazeres
fingimentos, especialmente o Padre Francisco Gonçalves

634 635
*I1
m

Lopes, que foi senhor de Rosa, que a comprou depois de Não deixa de ser revelador que as justificativas apontadas
conhecida como embusteira nas Minas, dando motivo para pela Mesa Inquisitória! para a prisão não só de Rosa, mas
zombaria dos hereges que destas falsidades tirana funda- também do Padre Francisco e do ausente frade capuchinho
mento para a sua contumácia para o desprezo com que Tbaseiem-se não apenas na conduta herética dos acusados, mas
tratam aos verdadeiros milagres". no perigo que representavam, sobretudo a visionária, enquanto
causadora de "grande perturbação do povo católico", e mais
w
•àt\t
Com base em tais denúncias — todas do conhecimento do ainda, aos hereges, fornecendo-lhes motivo de zombaria à Santa
•áv Santo Ofício —, determinam os inquisidores que os três réus Madre Igreja. A negra foi considerada por estas autoridades
sejam presos nos Cárceres Secretos e processados na forma do eclesiásticas como uma grave ameaça à contra-reforma triden-

l regimento. Levando-se em conta, outrossim, "muitas outras


culpas extravagantes," como a troca dos corações e o fato de Rosa
dizer-se a nova redentora, sendo adorada e incensada em seu
tina, numa época em que o Protestantismo já se consolidara
- definitivamente, não só em significativa porção da Europa, mas
também nalgumas partes do Novo Mundo. Mandando que todas
recolhimento, decidem os mesmos juizes que fosse passada as pessoas.comprometidas com os embustes da visionária fossem
, ordem formal para que "todas as pessoas que com Rosa fingiram reouvidas judicialmente, os inquisidores demonstravam a inten-
rrasanh
êxtases, revelações, aparições e alocuções de espíritos humanos ção de cortar o mal pela raiz, neutralizando todos os supostos
T-
e diabólicos" fossem ouvidas judicialmente, procurando-se com •tentáculos desta erronia. Mesmo antevendo gastos com o paga-
todo afinco localizar no Rio de Janeiro a controvertida pintura mento dos comissários das longínquas terras onde residiam as
onde a negra estava retratada em forma de santa. testemunhas, os inquisidores excluem apossibilidade de seques-
;
FISI!! I-!
Assinam este despacho três inquisidores e quatro deputa-
í" ~* "*
trar os bens dos três principais réus, considerando que o crime
dos, todos sacerdotes, a saber: Jerônimo Rogado Carvalhal da pelo qual eram delatados não implicava o confisco dos mesmos.
Silva, Joaquim Jansen Moller, António Veríssimo de Larre,
Agostinho Velho da Costa, Alexandre Jansen Moller, José R.
t; Deve ter sido no mesmo dia, ou no subsequente a este
despacho, que Rosa e o Padre Francisco foram transferidos para
Pereira de Castro, João de Oliveira Leite de Barros. Por esta O
*
época"— entre 1760 e 1769" —, esteve vacante o posto de
^G os Cárceres Secretos. Eis como o Regimento inquisitória! des-
. crevia tais presídios:
le Inquisidor Geral, cabendo aos três membros do Conselho Geral
do Santo Ofício dirigir este lúgubre tribunal eclesiástico. Atente "Terão as Inquisições do Reino cárceres secretos e segu-
o leitor para um detalhe curioso: dois destes citados oficiais, ros, bem fechados e dispostos de maneira que haja neles
Joaquim JansenMoller e Alexandre JansenMoller, eram irmãos corredores separados, uns que sirvam para homens e ou-
carnais entre si e cunhados da primeira escritora nascida no tros para mulheres, e se atalhe a comunicação entre os
Brasil, Teresa Margarida da Silva e Orta (1711-1793), Nossa presos, para maior observância do segredo, pelo grande
conterrânea literata, quando enviuvou, foi morar na casa do prejuízo que do contrário se seguiria ao Santo Ofício. Cada
Inquisidor Joaquim Jansen Moller, apesar de ter em sua bio- um dos cárceres terá portas fortes e seguras, uma que se
ti grafia passagens pouco recomendáveis para constar nos anais comunique com a Casa do Alcaide, outra com a Mesa do
Itflíi da virtude, sendo primeiro raptada antes de receber b consenti- Despacho e Audiências, e outra para o Pátio da Inquisição,
mento dos pais para seu casamento e depois acusada pelos por onde entrem os presos e mais pessoas que forem
mesmos de ter-lhes roubado vultosa quantia de moedas de ouro, necessárias. E as portas estarão sempre fechadas e haverá
etc., etc.

mi 636 637
em todas campainhas pela qual o alcaide possa ser chama- guardas do Secreto e o alcaide espiavam os quatro ou cinco réus
do."10 trancafiados em cada um destes cubículos.

Através de um auto de entrega formalizou-se o encarcera- "Quando os presos vierem par a os cárceres, determinava
mento do sacerdote no dito cárcere, arrolando-se então os bens o regimento, os inquisidores terão particular cuidado e
que trouxer a consigo do Br asil. A burocracia inquisitori ai previa advertência no lugar e casa em que os mandam pôr, e na
tudo nos mínimos detalhes: companhia que lhe darão, porque qualquer erro nesta
matéria pode ser de grande prejuízo ao Santo Ofício. Pelo
"Antes que o preso entre nos cárceres, o fará buscar na que mandarão que todapessoa que vier presa de novo estej a
presença do notário por dois guardas, sendo 'homem; e, só em uma casa ao menos três ou quatro dias, e nuncaporão
sendo mulher, fará esta diligência a mulher do alcaide, e -- em uma mesma casa, nem ainda no mesmo corredor,
todo o dinheiro, peças de ouro e prata, arma, livros ou pessoas que tiverem parentesco entre si, nem pessoas
papéis que lhe forem achados, ou qualquer outra coisa 4que conhecidas, ou de uma mesma terra, nem aqueles que
não seja de seu uso, se lhe tomará e entregará ao notário "~ tiverem cometido o mesmo crime, ou presos novos com
para que faça seu depósito." antigos."

No processo do Padre Francisco, consta que foi o familiar Nada informam os processos sobre a carcer agem de nossos
Manoel Caetano de Mello quem entregou o velho sacerdote ao biografados, nem sequer em qual das casinhas e em. que corredor
alcaide António Gomes Esteve, passando este um recibo dos -ficaram trancafiados — anotação, aliás, prevista pelo regimento
seguintes bens: uma caixa de tabaco velha de prata; um breve mas negligenciada pelos notários. No cubículo em que estiveram
da marca [relicário] com seu cordão, tudo em ouro; um garfo e confinados, devem ter sofrido as mesmas agruras dos demais
colher de prata; 6$400 réis em dinheiro, e "uns lenços com um prisioneiros da Inquisição. Segundo o autor das Notícias Recôn-
embrulho de papéis, sendo tudo entregue ao tesoureiro desta "ditas do Modo de Proceder da Inquisição de Portugal com seus
Inquisição". •" _ -Presos, obra anónima mas atribuída pelos estudiosos ao Padre
Em trinta e três anos de Brasil, este desafortunado sacer- António Vieira, ele próprio prisioneiro nas masmorras inquisi-

t
dote lusitano amealhara tão pouquinho! Ou escondera outros toriais, tais "casinhas" eram extremamente úmidas e escuras,
havendo num dos cantos um porrão de barro onde se deposita-
rr
bens e jóias, antes de ser encarcerado no Rio de Janeiro, ou, de
fato, era um pobre cura de aldeia. O mais provável é que gastara vam as fezes e urinas, sendo esvaziado apenas a cada oito dias;
tudo o que tinha acumulado nas Minas com despesas do reco- noutra banda, havia um cântaro com água, a mesma que se
lhimento onde exercia a capelania, asserção que pode ser corro- usava para beber e para a higiene corporal. O mau cheiro e a

l
borada em várias de suas cartas. pouca ventilação das celas infernizavam os intermináveis dias
A 13 de outubro, por conseguinte, nossos dois réus são e noites dos prisioneiros, sendo muitos os insetos e piolhos,
transferidos, separadamente, dos Cárceres da Custódia para os _ especialmente nos meses quentes do verão. No inverno, o frio
Cárceres Secretos: atravessam o pátio da Inquisição, sempre era de doer os ossos. Ama alimentação, a angústia do isolamento,
acompanhados pelos guardas, e entram porta adentro pelo o medo do futuro desconhecido, as pancadas recebidas dos
corredor onde alinhavam-se centenas de celas, então chamadas guardas quando ousassem falar mais alto ou comunicar-se com
,de "casinhas", cada uma com sua porta trancada por fora, com os réus das outras casinhas, tudo contribuía para fazer os meses
uma pequena greta por onde entrava o ar e através da qual os

P . 638 639
m
m
*
e anos de prisão parecerem séculos." Eis as recomendações do da viagem e das más condições da carceragem anterior —• um 9
Regimento para o alcaide no tocante à disciplina dos réus: ano, inteiro no aljube do Rio de Janeiro —, exacerbaram a
debilidade física do velho capelão, então com 69 anos e portador
l í1
"O alcaide vigiará o Cárcere Secreto por si e pelos de um variegado rol de doenças crónicas. O pobre Xota-Diabos *
GA tír
guardas, de maneira que não possa nele haver coisa de que permanecerá doente, de cama, impossibilitado de ir à audiência,
M não tenha notícia. Terá particular advertência em ver se durante todo o primeiro ano de cárcere, sendo por isso Rosa quem
í
os presos comem as coisas que lhes dão, e quais deixem de primeiro há de ser ouvida. m
SI! comer e em que dias, e tudo dará conta aos inquisidores
com toda brevidade. Ordenará que haja sempre muita
Era dia de São Pedro de Alcântara, um dos místicos fran-
ciscanos mais venerados no mundo luso-brasileiro. Neste mesmo •
quietação no cárcere, e que os presos não tenham brigas
ou diferenças entre si, nem joguem jogo algum, nem usem
dia, alguns anos antes, Rosa Egipcíaca tivera uma visão com
este santo varão, conselheiro em vida de sua "rival", Santa
*
IP
nomes diferentes dos que tiverem, nem tenham livros, nem Teresa dÁvila. Provavelmente neste dia, a negra prisioneir"
se comuniquem de um cárcere para outro, batendo, falando recebeu umaporção especialde água, bacia e sabão para se lavar,
ou escrevendo, e que falem manso naquele em que estive- assim como. roupa limpa, a fim de não ofender, com o fétido do
rem. Terá grande cuidado que no comer da casinha não vá cárcere, as delicadas narinas dos reverendos inquisidores. Devia
algum aviso com que os presos possam ter notícia uns dos trazer os pés nus e "a cabeça raspada, talvez coberta com uma
j •-[' 1.1
outros, e, se alguns deles exceder em algumas destas coisas, toalha, tal qual relata o prisioneiro Delon ser o costume dos
p
13:2
o fará saber na Mesa Inquisitória! para que se lhe dê o
remédio e castigo que convém."
cárceres inquisitoriais. Cabia ao alcaide acompanhar os presos
do cárcere para a sala de audiências: sendo esta a única oportu-
nidade de os réus percorrerem o espaço de circulação do Santo
JK
::3.i;-.i
Segundo depoimento de um ex-presidiário da Inquisição, Ofício, e eventualmente localizarem as "casinhas" dos demais
nos Cárceres Secretos reinava "um silêncio perpétuo" — silêncio companheiros, ordenava o Regimento ao prefeito desta cadeia
só quebrado, de quando em vez, pelos gritos dos que enlouque- que se fizesse sempre acompanhar de ao menos um guarda, "não
ciam, ou pelos "urros dos que penavam nas câmaras de tortura. consentindo que os presos vão falando pelos corredores, nem
Logo na semana seguinte à transferência de Rosa para o falará com eles, nem os persuadirá que confessem suas culpas,
Cárcere Secreto, aos 19 de outubro de 1763, nossa africana é e, quando acerca delas lho quiserem comunicar alguma coisa,
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iiH encaminhada para a sala de audiências. A rapidez desta convo- lhes dirá que daquela matéria só na Mesa do Santo Ofício .hão
cação, prevista pelo Regimento, explica-se pela preocupação dos tf?
Jíl!-'i de tratar". . . .
inquisidores em evitar que os réus, em contacto clandestino com De sua cela, atravessando os corredores dos Cárceres
presos mais antigos e já familiarizados com os procedimentos "Secretos, Rosa podia dar-se conta, pela primeira vez, da magni-
judiciais do Santo Ofício, influenciassem os novatos, transmi- tude deste presídio, sua segurança inviolável, s.ua disciplina
tindo-lhes os macetes e artimanhas de como sair-se bem nas draconiana. Chegando à extremidade do corredor de seu cárcere,
audiências. Em dezenas de processos por nós analisados encon- o alcaide mandava que o porteiro abrisse a enorme porta cheia
tramos referência explícita, por parte dos confitentes, de que de trancas e cadeados, único acesso deste aljube para o "coração"
haviam recebido de seus companheiros de infortúnio algum tipo da Casa do Rocio. Uma ante-sala dava acesso, por outra porta,
de orientação de como deviam se acusar, orientação que às vezes também esta sempre fechada, à sala dos despachos..Ápenas as
prejudicava ainda mais o réu. sessões mais importantes eram aí realizadas, pois anexas a ela *
O frio de outubro, começo do outono, além do desconforto

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640 641

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havia mais três saletas menores, 'menos solenes: as salas de
audiências. Cada uma destas salas contava com seus guardas
estacionados do lado de fora da porta, sempre prestes a acudis
a sineta, quando os inquisidores ordenavam algum serviço
impedindo igualmente que algum, réu mais desatinado tentasse
alguma fuga desesperada. Previa o Regimento que tais instala-
ções — onde eram feitas a quase totalidade das audiências cora
os réus — deviam estar "em. lugar tão reservado que fora dele-
não se possa ouvir coisa alguma de que ali se trata, contendo
cadeiras de espaldar e rasas e um banco para os presos se
assentarem. Constará também um bufete coberto com um pano

mm íí!
de damasco, e por cima, couro negro, um missal, campainha,
tinteiro para o inquisidor e notário".
P; Aúnica gravura conhecida de uma destas salas de audiên- -
•as |tl[ '*( cia está inserida 110 livro Rélation de l'Inquisition de Goa, de.
•Si autoria do ex-prisionèiro do Santo Ofício, Mr. Delon, primeira
edição de 1688. A imponência do décor, onde se vê o inquisidor'
e seu notário sentados em nobres poltronas de espaldar, a mesa
ISi com o livro dos juramentos e os manuscritos do processo — tudo
contrasta com a figura diminuta do réu, completamente despro-
tegido e humilhado, sentado num banco ao pé do estrado onde
pontificam os reverendos juizes.
Conforme prescrevia o Regimento, deviam os inquisidores ^ k£frx^&^££^-8<£x?!^&SxS£&£Z
p'i!
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e deputados iniciar suas audiências às 8 horas da manhã (de~
l' outubro à Páscoa), e às 7 horas (da Páscoa aos fins de setembro),
encerrando-as após três horas de interrogatório. A tarde, mais
três horas de sessão: das 14 às 17 horas nos meses mais frios e~
das 15 às 18 horas quando Lisboa era mais iluminada pelo sol.
Trabalhavam seis dias por semana, reduzindo-se, contudo, em
uma hora o expediente dos sábados à tarde. Nos domingos e dias '
santos de guarda—quase um terço dos dias do calendário anual
—-não havia expediente: afinal, além de juizes, tais funcionários
eram primordialmente sacerdotes e, como tal, deviam cumprir
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rsdf as práticas devocionais inerentes a seu status eclesiástico.
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"Aos 19 dias do mês de outubro de 1763, em Lisboa, nos
Estaus e Casa Segunda de Audiências da Santa Inquisição,
estando na sessão da tarde o Sr. Inquisidor Jerônimo Rogado de Interrogatório na Sala de Audiência da Inquisição.

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642 643
Carvalhal e Silva, mandou vir per ante si uma mulher preta que Foi notário do processo de Rosa o Padre Estêvão Luiz
no dia 26 de setembro próximo passado veio para os Cárceres Mendoça, a respeito do qual nada informa o processo: cumpriu
!i Secretos desta Inquisição." corretamente sua função, anotando com bela caligrafia todos os
Assim começa o documento da primeira confissão de Rosa detalhes das audiências.
perante o Santo Ofício. O inquisidor encarregado de seu proces-
so, o Monsenhor Carvalhal e Silva, era clérigo secular do Hábito 'Terguntada pelo Reverendo Inquisidor se examinou a
f '
de São Pedro, possuindo então 43 anos — um ano a mais que sua consciência, como nesta Mesa lhe foi mandado, e se a *
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nossa energúmena africana. Era natural da cidade da Guarda quer descarregar confessando as suas culpas, por ser o que •
e, após desempenhar por alguns anos o cargo de inquisidor era lhe convém para descargo de sua consciência, salvação de
Lisboa, foi eleito em 1766 bispo de Portalegre, transferido pos- sua alma e usar-se com ela de piedade, disse que examinou *
+
teriormente para sua diocese natal. Devia ser um burocrata ; - a sua consciência e quer declarar os sucessos que na sua
carreirista de profissão, pois suas diminutas biografias encon- vida lhe aconteceram, ainda que não sabe que elas sejam
tradas nas enciclopédias lusitanas e na antológica História da ;- ou não culpas, porém é certo que tudo lhe sucedeu como *
Igreja em Portugal, de Fortunato de Almeida (1910-1922), não vai a referir..." •
III? o associam a qualquer virtude em particular, nem mesmo des-
:

ff» tacando-se no domínio das letras, sendo autor tão-somente de


duas Pastorais, publicações de praxe quando os bispos assu-
-4- Rosa tinha longa experiência em ser submetida a este tipo
...de exames eclesiásticos: no bispado de Mariana uma junta de
miam suas dioceses. Faleceu em 1797. teólogos e exorcistas perscrutaram longa e repetidamente sua
Tarimbado em inquirir réus de consciência, o inquisidor, _ -f- vida interior; seu confessor, Frei Agostinho de São José, do
sentado em sua solene poltrona, tendo à sua frente o sumário Convento dos Franciscanos do Largo da Carioca, sempre estava
de culpas recebido do Brasil e já devidamente analisado, a examinar sua consciência, sobretudo quando lhe narrava
visões e colóquios sobrenaturais; no Auditório Eclesiástico do
"sendo presente a ré, lhe foi dado juramento dos Santos 33ào de Janeiro, por ordem do bispo e sob a direção do comissário
Evangelhos em que pôs sua mão, sob cargo do quãTlhe foi Tcía Santo Ofício, Rosa passara longas horas respondendo aos
MSSIí

. mandado dizer a verdade e ter segredo, o que prometeu i?U: eclesiásticos nomeados para descobrir-lhe condutas heterodo-
cumprir. E logo dissei chamar-se Rosa Maria, preta forra, xas. Portanto, inteligente e escolada, a negra africana logo em
cativa que foi do Padre Francisco Gonçalves Lopes, solteira, :j5ua primeira resposta deve ter surpreendido o inquisidor Car-
não sabe quem são seus pais, natural da Costa de Judá, valhal ao enfatizar que estava pronta a confessar "tudo o que
moradora na cidade do Rio de Janeiro, deidade de 44 anos". ;lh'e sucedeu, ainda que não sabe se sejam ou não culpas",
ideixando destarte implícita a fé em sua inocência.
Como era de praxe, tudo o que se passava na audiência --— •-'- Esforçando-se em transmitir imagem paternal e solícita, o
devia ser fielmente anotado pelo notário. Conforme prescrevia Inquisidor atalha-a dizendo que
o Regimento, "os "notários do Santo Ofício serão clérigos de
Ordens Sacras que saibam bem escrever, de suficiência e capa- /:.;" "tomoubom conselho emfazer sinceranarração de sua vida
cidade conhecidas. Nas audiências não falarão com as partes _ ^ e lhe convinha muito trazer à memória tudo aquilo que for
coisa alguma e escreverão pontualmente todas as palavras que •.culpa, cujo conhecimento pertença a este Tribunal, reco-
o inquisidor disser à parte e o que ela responder, lançando assim •nhecendo como tais aquelas coisas que forem, e fazendo
delas pura e inteira confissão, não levantando porém a si,
31 ã as perguntas como as respostas por extenso".

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• :j.-'-;K^íV- ' ' j . '.

JòôiL::

nem a outrem, testemunho falso, por ser unicamente o que conhecimento do leitor, posto terem sido transcritos quando
lhe convém para se poder usar com ela de misericórdia — reconstituímos, ano a ano, a história da ex-meretriz do Inficcio-
ao que respondeu que só a verdade diria, a qual era que nado. Termina esta primeira sessão com a narração daquela
haverá 15 anos, estando ela, ré, na freguesia de Nossa visão, também já nossa conhecida, na qual viu "uni homem tão
Senhora de Nazaré, bispado de Mariana, em casa de Dona alto que dava com a cabeça nas nuvens, cabeça muito grande e
Ana Garcês de Moraes, de quem era escrava, principiou a alva, cara horrenda muito comprida, olhos e boca disformes,
sentir em si urna dor que a bolia e com ela caía no chão muito vermelho,braços, pernas epés extraordinariamente gran-
como morta, de quelhe originou no ventre um tumor, depois des, vestido de trapos muito sujos..." — um verdadeiro Leviatã.
do que sucedeu que, indo ela, ré, à Igreja de Nossa Senhora Neste instante o inquisidor deve ter interrompido sua
de Nazaré, da dita freguesia, e estando a exorcismar várias confissão, pois a sineta acabara de tocar, anunciando o final do
pessoas, o Padre Francisco Gonçalves Lopes, que ao depois turno da tarde: "e, por ser dada ahora, senão continuou a sessão,
foi seu senhor e então era morador no Rio das Mortes, e foi mandada a ré a seu cárcere, sendo-lhe primeiro lida e por
estando ela, ré, de joelhos, ao tempo dos ditos exorcismes, ela ouvida e entendida sua confissão, disse estar escrita na
lhe estalavam os ossos em seu corpo e caiu no chão sem •""'vi-J^
verdade, e assinou com o dito Sr. Inquisidor".
acordo..." %..iri3;S Antes de Rosa, dezenas de outras negras africanas ou
'".'::^3^ crioulas de Portugal e de suas conquistas já tinham entrado
Tal ,qual já fizera no Juízo Eclesiástico do Rio de Janeiro, nesta mesma sala de audiências, a maior parte delas compro-
Rosa Courana repetirá aqui no Santo Ofício de Lisboa, ano por metida com feitiçarias, pacto com o diabo e demais heterodoxias
ano, todos os "sucessos" sobrenaturais e principais acontecimen- do género. Talvez o próprio Inquisidor Carvalhal já tivesse
tos que marcaram sua vida tribulada, desde que em 1748, há 15 inquirido, anteriormente, outras mulheres da cor de ébano.
anos passados, começara ã ser vexadapelo Demónio e exorcizada Como Rosa, com certeza, nenhuma outra, pois, ouvindo-a nesta
pelo Padre Francisco Gonçalves Lopes. primeira audiência, notário e inquisidor devem ter-se admirado
Ao todo serão seis audiências de aproximadamente três com a inteligência e astúcia, sem falar na memória, desta negra
horas cada uma, 18 horas de narração onde nossa biografada ladina, cuja beatice e alucinações místicas não ficavam nada a
& •;:
S» descreverá, às vezes com os mínimos detalhes, todos os princi- dever às suas congéneres cristãs-velhas, algumas inclusive ele-
pais sucessos de sua vida entre.1748 e 1761. Embora seguindo vadas às glórias dos altares pela Santa Madre Igreja. A negra
praticamente o mesmo itinerário da confissão feita no Paço era o cão!
Episcopal do Rio de Janeiro, seu relato no Santo Ofício, além de Voltando a seu cárcere, já tudo às escuras, Rosa deve ter
mais volumoso, descreve com maior profundidade sua vida passado noite agitada, pois remexerá inúmeras emoções de seu
interior, não perdendo o notário Mendoça qualquer detalhe a passado sofrido e fogoso de ex-prostituta e escrava assistente
respeito de seus delírios místicos. Só nesta primeira audiência nas montanhas de Minas Gerais. A derradeira imagem de sua
encheu 20 páginas de confissão! Aí Rosa descreve suas primeiras última visão, o medonho Leviatã, quiçá se confundia, em apa-
manifestações satânicas, seu encontro com o Padre Francisco, vorante pesadelo, com o olhar aterrador do carrancudo inquisi-
o abandono do meretrício -e sua conversão em beata, suas pri- dor, pesadelo que deve ter-lhe atazanado as poucas horas de
meiras visões, o quiproquó com o bispo de Mariana e sua sono em sua fria cela no outono lisboeta.
subsequente flagelação no pelourinho, sua convalescença e re- Devolta ao cárcere, após aquelas três horas fora da casinha,
tomada das visões e profecias. Todos estes episódios já são do retornou Rosa à mesma rotina enfadonha é monótona de presi-

646 647
fH m
*
*
11 diária, ignorando, como os demais presos, quando os reverendos manuscritos que trouxera para o Reino —já tinham sido devi-
juizes se dignariam a. chamá-la para outra sessão. Embora damente aprovadas pela Mesa Censória do Santo Ofício, e que
previsse o Regimento a possibilidade de o réu solicitar audiência só faltava amealhar dinheiro para pagar sua impressão. Prova-

l quando se lembrasse de algum episódio significativo de sua vida


pertencente ao conhecimento do Santo Ofício, tudo nos leva a
crer que a iniciativa das audiências dependia do arbítrio dos
velmente tudo não passava de umamentirinha, talvez um delírio
paranóico, pois não encontramos entre os papéis da Mesa Cen- m
*
T inquisidores, tanto que o citado prisioneiro Delon, malgrado
copiosas lágrimas, só teve seu pedido de audiência atendido
sória nenhum manuscrito que pudesse ser atribuído à lavra da
Egipcíaca. Sua ida para a Itália livrou-o da prisão, pois, caso *
contrário, estaria juntamente com o Padre Francisco e com
passados vários meses após a solicitação. Madre Rosa comendo o mesmo pão que o Diabo amassou nas
A 4 de novembro, portanto poucos dias após esta primeira enxovias do Santo Ofício.
audiência de nossa demonopata, a Mesa do Conselho do Santo Voltemos, porém, à casinha onde nossa ré acabava de
Ofício determina ao comissário do Eio de Janeiro que as 11 retornar após sua primeira audiência perante o Inquisidor
testemunhas constantes no sumário de Rosa e do Padre Fran- Carvalhal.
JIS
W» * cisco fossem judicialmente reinquiridas, a fím de ratificarem Termina todo o mês de outubro; passa Finados sem novi-
- t * B* t suas confissões e denúncias. Determina-se igualmente que fos- dade; chega o Natal — que Natal melancólico! — e nada de
.Ia f sem feitas diligências para se localizar o terceiro réu deste audiência. Inicia-se o ano de 1764: o frio de janeiro deve ter
Já embroglioj místico, o capuchinho Frei João Batista da Capo injuriado sobremaneira a negra africana, pois até então só
Fiume. Aos 22 de novembro deste mesmo ano, 1763, o familiar conhecera o suave inverno tropical. Nos Cárceres Secretos o
do Santo Ofício João Lopes, residente em Lisboa, entrega àMesa inverno era ainda mais lúgubre, pois as frias celas ficavam
Inquisitória! a seguinte declaração: "Certifico e faço certo que praticamente irrespiráveis com a fumaça da lenha e do carvão
eu busquei, por ordem dos senhores inquisidores, ao Padre Frei utilizados pelos guardas e alcaide para aquecer os corredores
João Batista da Capo Fiume, religioso barbadinho, e, na diligên- 'f f
onde ficavam a postos. Os réus mais afortunados tinham o
cia que fiz, informaram-me pessoas fidedignas e conhecidas de privilégio de desfrutar de um braseiro dentro da própria casinha,
mim, todos familiares do Santo Ofício, que o frade passou oito •4 assim como mandar comprar alimentos especiais além dos
meses em Lisboa e se ausentou para seu país na Itália." recebidos da cozinha comunitária, regalias impensáveis para
A partir daí perdemos a pista deste controvertido missio- uma negra forra.
nário, cujo misticismo popularesco e espiritualidade barroca Somente após oitenta dias de angústia e expectativa é que
exerceram crucial influência na vida de nossa biografada. Foi novamente o alcaide manda avisar à pi-eta Rosa que se preparasse,
através de outro barbadinho, historiador dos capuchinhos da pois, na manhã do dia 10 de janeiro, chamavam-na os inquisidores
Bahia, Frei Pietrp Vittorinp Regni, que tive acesso à informação para sua segunda audiência. Repete-se o mesmo ritual silencioso
sobre a data de morte deste grande devoto de Rosa Egipcíaca: de sua transferência da casinha para a sala de despachos. Desta
l li!
morreu em seu convento de Bolonha em 1788, com 74 anos. Se vez o Inquisidor Carvalhal esperava-a na Casa Primeira de Au-
ainda louco ou não, ignoramos. Provavelmente manteve inaba- diências: não duvido que a mudança de uma para outra câmara
lável sua fé na "Flor do Rio de Janeiro", tanto que, pouco antes tinha finalidade terrorista, impedindo ao pobre réu familiarizar-se
da prisão da mesma, escrevera de Lisboa a seus fiéis cariocas com tais espaços macabros, aumentando-lhe a insegurança e
que as orações que a preta compusera em homenagem aos facilitando, conseqúentemente, sua autodelação.
Santíssimos Corações e a São João Evangelista e Batista —• Antes de dar início ao inquérito,

648 649
na verdade, e assinou com o dito inquisidor, e eu, Luiz Estêvão
"lhe foi dado o juramento dos Santos Evangelhos, em que Mendoça, o escrevi".
pôs sua mão sob cargo do qual lhe foi mandado dizer a Passa-se exatamente um mês, e aos 10 de fevereiro Madre
verdade e ter segredo, o que prometeu cumprir. Pergunta- Egipcíaca é submetida à terceira sessão, retornando à Casa
da se examinou sua consciência e quer descarregá-la, Segunda das Audiências, no turno da manhã. Os procedimentos
declarando o fingimento de sua afetada virtude, porque é rituais são os mesmos anteriormente já descritos. Tomando a
necessário dizer toda a verdade para bom despacho de sua palavra, o Inquisidor Carvalhal, "lhe mandou descarregar sua
causa e se poder usar com ela de misericórdia, disse que consciência declarando o fingimento com que cometeu as ditas
sim, cuidara e queria continuar com os sucessos de sua culpas e a intenção que teve".
vida, os quais eram que depois da referida visão [a do Conforme já vimos, na ordem de prisão de Rosa Egipcíaca,
Leviatã], dali a três dias, estando com uma madorna, foi do Padre Francisco e de Frei João Batista, constava como
levada a uma igreja nova, não sabe em que sítio, aonde viu principal crime por eles cometido a prática de "supersticioso
um altar e um sacerdote revestido, assentado em cima do embuste, insolente hipocrisia e fingimentos" relacionados à
mesmo, e lhe disse: 'Rosa, minha filha, tu hás de ser como pseudo-santidade da negra recolhida. Dado os excessos idolátri-
São Caetano, hás de comer o pão cotidiano espiritual a cos dos dois sacerdotes e a conivência de Rosa na divulgação de
pedido da mão de Deus.1 E dito o referido, fechou o Evan- falsas profecias, visões e demais favores preternaturais, consi-
gelho e lhe desapareceu a igreja e o sacerdote, e ela, ré, se derou a Mesa do Santo Ofício que Madre Egipcíaca devia ser
restituiu a seus sentidos. Disse mais, que, na noite seguin- enquadrada no crime de "fingimento de virtude", tal qual previa
te, estando ela, ré, rezando o Credo de joelhos, voltadapara o Regimento em seu título XX, no capítulo IV, a saber: "E por-
um Cristo Crucificado, sem luz na casa, ouviu uma voz que quanto algumas pessoas com fingimentos de virtude, procuram
saía da mesma imagem e dizia: 'Eu sou o médico, venho mostrar que têm revelações do céu e fazem milagres, e com isso
curar os enfermos, mas hei de curar os que guardarem o causam grande escândalo no povo cristão, e costumam por esta
regimento.' E, ficando ela, ré, atemorizada, a casa tornou via introduzir doutrinas falsas e grandes abusos em prejuízo de
Si H '
tií a. ficar às escuras como estava"... nossa SantaFé, ordenamos que no Santo Ofício sejam castigados
os que cometerem este crime."
Esta sessão matutina foi mais breve do que a primeira, Até prova em contrário, para a Inquisição, todo "santo",
relatando nossa santinha todas as visões havidas nas Minas "milagreiro" ou "profeta" era um eventual embusteiro ou posses-
Gerais: a ordem celestialpara que passasse a se apresentar com so do demónio, daí a insistência de Monsenhor Carvalhal em
o nome de Rosa Maria Egipcíaca da Vera Cruz; sua fuga, apertar Rosapara que declarasse "o fingimento com que cometeu
J juntamente com o Padre Francisco, então seu proprietário legal, suas culpas e a intenção que teve".
,:1 • para o litoral; sua instalação no Rio de Janeiro e a orientação Rosa, diferentemente de outras falsas santas, manter-se-á
Silí
'1 espiritual de seu novo confessor, o provincial dos frades menores; firme e inabalável na defesa de sua sobrenaturalidade, tanto
a visão onde se lhe ordenara a fundação do Recolhimento de que já nesta terceira sessão responde convicta ao inquisidor que
Nossa Senhora do Parto; a aparição dos Santíssimos Corações,
- etc, etc.'Descrevia Rosa esta última visão, quando, "por ser dada "cuidara dos sucessos de sua vida e que nada o que tem
a hora, foi mandada a seu cárcere, sendo primeiro lida esta declarado era fingido e declara da mesma sorte que sucedeu
confissão, e por ela ouvida e entendida, disse que estava escrita assim: estando em oração na primeira segunda-feira da

650 651

l
II

Quaresma do ano de 1755, ouviu uma voz de um Senhor 5. Delon. Rélation de 1'Inquisition de Goa. Paris: Ghez Daniel Hort-
Crucificado que estava em seu oratório, que lhe disse: hás hemels, 1688, p. 362.
de jejuar nesta Quaresma três dias em cada semana a pão 6. Nigg, Walter. Op. cit, 1985, p. 123.
e água: a segunda-feira pelo Rei para que Deus o faça um 7. Mott, Luiz. A Vida Mística e Erótica do Escravo José Francisco
Rei prudente e justificado no governar; a quarta-feira pela Pereira. Tempo Brasileiro, na 92-93, Jan-Jun. 1988, pp. 85-104.
religião carmelitana; a sexta-feira pela religião seráfica"... 8. Castro, D. Francisco. Op, cit., 1640, Livro I, Tomo II, §XI.
9. Ennes, Ernesto. Dois Paulistas Insignes. São Paulo: Editora Brasi-
liana, 1952.
Em seu depoimento nesta terceira sessão, a visionária 10. Castro, D. Francisco. Op. cit., Livro I, Título II, §X. •
líl- descreve os principais sucessos que lhe ocorreram entre a Qua- 11. Idem, ibidem, Livro I, Título XT7, §VII.
resma de 1755 e os finais de 1757: astuta, selecionatão-somente 12. Idem, ibidem, Livro I, Tomo III, §XXII.
aqueles aspectos que mais corroborariam suas virtudes e santi- 13. Anónimo. Notícias Recônditas do Modo de Proceder da Inquisição
dade, como os jejuns e prolongadas orações, citando por diversas de Portugal com seus Presos. Lisboa: Imprensa Nacional, 1821.
vezes a intervenção de seu confessor, o ex-provincial dos fran- 14. Castro, D. Francisco. Op. cit., Livro I, Título XTV, §§XVI-XvIL
ciscanos do Rio de Janeiro, sempre a lhe ministrar o exorcismo 15. Delon. Op. cit., 1688, pp. 100 e ss.
e afiançando-lhe que todas aquelas visões_e_revelaçÕes provi- 16. Castro, D, Francisco. Op. cit., 1640, Livro I, Título XT7, §XVHI.
nham de Deus e não do Eai-da Mentira. Ladina, a fundadora do \- 17. Idem, ibidem. Livro I, Título VII, §VII.
Recolhimento do Parto omite aqueles episódios comprometedo- 18. Eis algumas mulheres negras presas e processadas pela Inquisição
res de sua imagem dehm-admena arrependida: expurga suas de Lisboa pelo crime de feitiçaria: Crispina Perez, preta livre,
profecias frustradas, notadamente o dilúvio de 1759, omite os natural de Cacheu (1664), Processo nQ 2.079; Manuelina Maria,
escrava preta natural do Rio de Janeiro (1734), Processo n. 631;
rituais controvertidos que capitaneava em seu beatério, o culto Maria de Jesus, preta, livre, natural de Angola (1735), Processo n2
a suas relíquias, o batuque no coro, as confissões feitas pelas 2.279; Gracia Luzia, preta escrava, natural da Bahia (1736), Pro-
recolhidas ajoelhadas a seus pés, etc, etc. cesso na 433.
"E, por ser dada a hora, foi mandada a seu cárcere..." -4.

Notas

i 1. Mott, Luiz. Regimento dos Comissários e seus Escrivães, dos Qua-


l
BI* d!'•* i
lificadores e dos Familiares do Santo Ofício, Salvador: Centro de

É
Estudos Baianos, UFBa, 1989.
2. ANTT, Inquisição de Lisboa, Processo n2 9.697 (1762),
3.' Galiza, Diana Soares." O Fandango é sua Penetração na Paraíba.
Caderno de Estudos Regionais, n9 1,-UFPb, 1976, p. 43.
4. ANTT, Documentos do Brasil, Livro 8 do Registro, fi. 168 (1747):
"Regimento que sé Há de Observar no Transporte dos Casais das
Ilhas para o Brasil".

652 "653

1311 á'!!::
25
Julgamento do Padre Xota-Didbos

O processo de Rosa transcorria com relativa rapidez, en-


íííí quanto a causa do Padre Francisco Gonçalves Lopes sequer
tivera início: o agravamento de suas doenças impossibilitou-o de
responder ao inquérito. Velho de setenta anos, trinta dos quais
percorrendo as estradas poeirentas dos arraiais e vilas das

aí Minas Gerais, padecia o Xota-Diabos de ura calvário de achaques


e doenças: só em suas cartas, enviadas acTRio de Janeiro para
seus compa"3rês de São João dei Rei, queixou-se de_erisipela em
ambas as pernas, hemorróidas, feridas pelo corpo,_sarna seca,
"queixas nos pés"73èfluxo reumático e reumatismo maligno".
A travessia oTõTÃtlantico e essês~intermináveis dois anos de
prisão, acrescidos de angústia e desconforto material e emocio-
nal, agravaram de tal sorte aja debilitada saúde deste clérigo
septuagenário, que serão necessários sete meses de cuidados
médicos até apresentar condições de caminhar para a sala de
audiências.
Minucioso, o Regimento assim prescrevia o cuidado médico
aos prisioneiros enfermos:

"Quando algum preso adoecer, não havendo perigo na


tardança, o fará saber aos inquisidores para que ordenem
que o médico o visite, e lhe mandem dar e fazer tudo que
for necessário para bem de sua saúde. E, no decurso da
doença, terá particular cuidado para que os remédios que
os médicos mandarem se lhe apliquem com toda pontuali-
dade, nos tempos e horas que lhe forem assinados, enten-
dendo que, se o alcaide nestamatéria cometer algumafalta,
lhe será muito estranhada,"

As "consultas" médicas eram também minuciosamente

p;
ter
regulamentadas pela constituição inquisitorial: mesmo tendo já

655
previamente selecionado com todo rigor o médico e cirurgião clérigos, processados geralmente pelos crimes de solicitação no
antes de admiti-los no Secreto do Santo Oficio, cuidava nos confessionário, sodomia, casarem-se apesar das Ordens sacras,
mínimos detalhes que os mesmos mantivessem apenas contacto exercerem sacerdócio sem ter a qualificação exigida, feitiçaria,
estritamente profissional com ospacientes. Sempre acompa.nha- pacto cora o demónio, blasfémia, judaísmo, ou, como o Padre
dos do alcaide, o médico e o cirurgião, Francisco, por participarem da fabricação de falsos santos ou
santas. Se tomarmos como amostra a "Notícia dos Autos Cele-
"quando visitam os presos, não ter ao com eles mais práticas brados pela Inquisição de Lisboa", de J. L. Mendonça & A. J.
que as que forem necessárias por respeito de suas enfer- Moreira, entre 1750 e 1762, um total de 23 clérigos luso-brasi-
midades, e acerca delas os ouvirão com paciência e tratarão leiros foram sentenciados publicamente (sem falar nos que, por
com caridade, de modo que os presos vejam o cuidado que sua dignidade eclesial ou pela menor gravidade de seus delitos,
(li
m se tem com sua saúde. Todas as mezinhas e remédios que
forem necessários lhes mandarão fazer e aplicar no tempo
foram sentenciados na Mesa ou na Sala do Santo Ofício, intra-

que convém, e, quando algum deles tiver doença grave, logo


muros). No Auto de Fé de 1750, por exemplo, saíram quatro
padres acusados de sigilistas (desrespeito ao segredo da confis- m
no princípio darão conta à Mesa do estado em que o doente
está, maiormente se houver temor de morte, para que se
são) e três por solicitarem as penitentes no ato sacramental; em m
1752 foram penitenciados um. frade leigo por se fazer confessor
trate do remédio espiritual e se lhe dê confessor e o mais e defender os erros de Molinos, outro clérigo por tomar Ordens
que convier para sua salvação". com reverendas falsas e mais dois sacerdotes solicitantes; em
1755 outros dois frades acusados de sigilistas eumde solicitante;
Restabelecido de seus achaques, após mais de duzentos no ano seguinte, mais dois frades destemperados no confessio-
f:
dias e noites de confinam.ento no edifício da Inquisição, a 29 de
T
março de 1764,
nário e outro por não cumprir as ordens do Santo Ofício; em
1758, mais três solicitantes e um frade herege; em 1761, um •
o
solicitante e um herege, o nosso já conhecido Padre Gabriel
"nos Estaus e Casa Segunda das Audiências, estando • Malagrida, o último sacerdote a ser queimado pela Inquisição
presente o Inquisidor Luiz Pedro de Brito Caldeira, man- Portuguesa. Em 1762 é a vez do Padre Manuel da Silva de Santa *
dou vir perante si um clérigo que em 2 de agosto de 1763
Veio preso para os cárceres desta Inquisição, e sendo pre-
Teresa, sacerdote do Hábito de São Pedro, confessor, acusado •
o
"por solicitação e aç5es torpes com uma confessanda na qual
sente, por já estar convalescido das moléstias que neles supunha vexação e violência do Diabo, abusando dos exorcismes
tem padecido, e impediram de principiar a sua causa, lhe e publicando que era uma santa". Foi suspenso para sempre de
foi dado juramento e logo disse chamar-se Padre Francisco confessar e aplicar exorcismes, afastado por oito anos do uso das
Gonçalves Lopes, sacerdote secular do Hábito de São Pe- ordens sacras e interditado de entrar na Vila de Rei do bispado
dro, filho de Domingos Gonçalves, lavrador, e Dorotea da Guarda, local onde cometera seus desatinos.
Lopes, sendo seu avô materno Domingos Lopes, de Santa Pesquisando asListas dos Autos deFédeLisl>oa,etoiriQ-n.do
Marinha da Gr arij a Velha, e ele natural da Ribeira de Cima, como data inicial o ano de 1700, encontramos mais três sacer-
freguesia do Salvador, conselho daRibeira daPena, comar- dotes processados pelo Tribunal do Santo Ofício comprometidos
ca de Vila Real, arcebispado de Braga, morador no Rio de com a mesma falta do Padre Xota-Diabos, isto é, o patrocínio
li 4 i!?'
Janeiro, com 74 anos de idade". indevido de falsas santas: em 1701, FreiMateo de São Francisco,
da Ordem dos Frades Menores; em 1704, Padre António Luiz
Neste tribunal eclesiástico, cerca de 5% dos réus eram

656 657
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Coelho, clérigo secular, e em 1722, Padre José do Espírito Santo, nessa sua causa, o que respondeu que só havia de dizer a
da Ordem, de Santo Agostinho do Convento da Graça de Lisboa. verdade, a qual era que haverá 14 anos, pouco mais ou
Não era novidade, portanto, para os juizes inquisitoriais a menos, na freguesia de Nossa Senhora de Nazaré do Infic-
presença de mais de um "clérigo mistifícador", salvo o fato de cionado, na Capitania das Minas Gerais, chamou-o o Vigá-
tratar-se do primeiro "brasileiro" a estar envolvido com tais rio Luiz Jaime Magalhães para fazer exorcismes a um
falcatruas. Outra novidade era ser de cor preta a criatura enfermo que desconfiavam estar maleficiado, e na igreja
acusada de falsa santidade. estava Rosa Maria, negra courana, que caiu no chão,
Sentadinhonoseubanco, sem chápeunem capa—privação fazendo diferentes visagens e muitos trejeitos com o corpo,
que a seu tempo deixou deveras humilhado o réu Padre António levantando-se e dizendo que eraLúcifer que a vexava e lhe
Vieira, S.J. —, lá estava o alquebrado Padre Xota-Diabos, à causava as grandes inchações que tinha na cara e no ventre.
mercê de seus colegas de batina. A diferença estamental entre Disse o réu que, por zelo e caridade cristã, começou a
o alto clero e este esfarrapado cura de aldeia devia ser chocante! fazer-lhe os exorcismes, dando dela boas informações o
Os primeiros, com sotainas confeccionadas com tecidos finos capelão do Engenho de Dona Ana Rodrigues Durão, viúva,
importados da Holanda, sapatos enfeitados com fivelas de ouro de quem Rosa era escrava".
ou prata, solidéus engalanados comtirinhas de carmesim, anéis
e correntes com o crucifixo, tudo em ouro de 21 quilates. No outro Conta mais o velho sacerdote que, consultando o Padre
extremo, o infeliz representante do baixo clero, com sua batina António Lopes, na época confessor e diretor espiritual da ener-
surrada e remendos desbotados, quiçá um par de chinelas velhas gúmena, este lhe deuboas informações da vida e costumes desta
ou mesmo um par de tamancos ainda remanescentes do Brasil. escrava, capacitando-se, por esta razão, ainda mais da verdade
Como de praxe, de sua vexação, aplicando-lhe três ou quatro exorcismos, depois
dos quais, segundo ela, experimentara notável melhora nas
queixas de que padecia.
"perguntou o reverendo inquisidor se o réu examinou a sua Relata a seguir que, indispondo-se o vigário do InfLccionado
consciência como nesta Mesa lhe advertiram e se quer com a negra endemoniada, chegando a negar-lhe a confissão,
confessar as suas culpas por ser o que lhe convém para viajou Rosa para a comarca do Rio das Mortes, onde tinha
descargo de sua consciência, salvação de sua alma e bom residência fixa o réu, apresentando-a então a seu compadre, o
despacho de sua causa". Sr. Pedro Róis Arvelos, que, por piedade, consentiu em hospe-
dá-la em seu sítio a três léguas de São João dei Rei. Permaneceu
Disse que sim, cuidara e pedia muitas vezes a Deus aí por dois ou três anos, "sempre exorcismando-a, e ela'sempre
Nosso Senhor e a Senhora Santana lhe alumiassem o o enganando, dizendo que o Espírito que a vexava, Lúcifer, era
entendimento para conhecer verdadeiramente suas culpas T_ mandado por Deus para repreender as pessoas que nos templos
e as confessar, o que agora quer fazer sinceramente. assistiam cora pouca veneração, chegando a rasgar as roupas
Foi admoestado que,_apósj;omar tão bom conselho, lhe das pessoas, como sucedeu na Matriz do Pilar de São João dei
convinha muito a trazê-las todas à memória para delas Rei".
fazer uma inteira e verdadeira confissão, não levantar a Desde esta suaprimeira audiência, tenta o Padre Francisco
si, nem. a outrem, testemunhos falsos, porque o dizer eximir-se de culpa através de dois artifícios:'primeiro, alegando
somente a verdade lhe convém para descarregar a sua ter sido inocentemente enganado pela negra, sua ex-escrava. Se
consciência, salvar a sua alma e merecer bom despacho

658 659
j
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oportunisticamente, ou com sinceridade no coração, não sabe- que pertencesse ao conhecimento do Santo Ofício". Em seguida>
mos, o certo é que o principal propagandista das virtudes da o próprio comissário absolveu-a sacramentalmente, dizendo que
"maior santa do céu" assume conduta igual à de São Pedro, "o procurasse quando tivesse alguma coisa importante, mas não
quando negou Cristo ao ser acuado no momento daPaixão. Padre sempre, porque era muito ocupado".
Francisco arrenega desde sua primeira confissão qualquer cren- Testemunhando pessoalmente as virtudes e piedade da
ça nas virtudes e predestinação de sua querida Rosinha, decla- negra, seus prolongados jejuns, flagelações e graças que recebia
rando agora perceber que "tudo-nela era puro fingimento". Mais dos céus, reforçado pela opinião favorável que dela faziam as
ainda: para demonstrar sua completa conversão, diz que "graças citadas autoridades eclesiásticas, reconhece o Padre Xota-Dia-
a Deus, pela misericórdia divina, foi trazido ao Santo Ofício, bos, perante o inquisidor, ter venerado sua ex-escrava a ponto
conhecendo agora verdadeiramente seu engano; caso contrário, de, "se lhe pedisse a camisa, lha.daria de muito boa vontade",
condenaria sua alma". Exime-se de culpa, acrescentando mais declarando mais que, certa vez, quando outros sacerdotes incré-
outro argumento: reconhece-se homem "sem letras nem talento, dulos a insultavam, chegou a declarar publicamente "que acre-
í
mal conhecendo a lição de seu breviário e alguns livros espiri- ditava em Rosa como creio em um só Deus".
II-:.
tuais", citando a obra Mestre da Vida, da qual retira o Ato de Após reconstituir com detalhes vivos como se deixou iludir
: Contrição que Rosa incluiu no seu "Rosário de Santana". A pela falsa santidade da fundadora do Parto, Padre Francisco
segunda atenuante utilizada pelo velho clérigo, a fim de inocen- rasga o verbo denunciando tudo o que agora passa a considerar
tar-se, era ter-se fiado no aval de outros sacerdotes mais doutos como suspeito no comportamento de sua ex-mãe espiritual.
e credenciados do que ele próprio, inclusive nalgumas autorida- Acusando suas blasfémias, imoralidades e condutas suspeitas,
des eclesiásticas que afiançavam ser Rosa vítima de uma in- o velho sacerdote esperava comprovar aos inquisidores seu
questionávelpossessão demoníaca epredestinadaporDeuspara incontestável arrependimento e a veracidade de sua confissão. O
importante missão espiritual. Ao descrever o episódio, já nosso Certamente imaginava que, jogando lenha na fogueira de Rosa, O
bem conhecido, do exame ao qual os cónegos de Mariana sub- estaria retirando do seu próprio fogo alguns tições de brasa.
meteram a espiritada, queimando-lhe a língua com uma vela Conta, então, várias das profecias frustradas de sua ex-escrava, e
acesa, fez Padre Francisco o seguinte comentário: "depois dos descreve os dois dilúvios que nunca chegaram a acontecer, narra
exames, viram, os cónegos' e ficaram capacitados de que Rosa era as estripulias de sua negra mina no coro do recolhimento,
verdadeiramente vexada,., acreditando nela". Frei Agostinho de "dançando uma dança que chamam batuque, fazendo muitos
São José, o orientador espiritual da negra no Rio de Janeiro, é movimentos desonestos", fala da escolha e atribuições de suas
r apontado pelo réu como o principal responsável pela sua fé na quatro evangelistas, do quadro com-sua estampa gloriosa, etc.,
fr
fc.
predestinação dafundadora do Recolhimento do Parto, pois dele etc.
Após tantas palavras de arrependimento, reconhecendo
hi! ouvira a afirmação de que "Rosa Egipcíaca tinha cheiro de
santidade", venerando como relíquias e com máxima devoção humildemente sua falha humana e transferindo para eclesiás-
flL suas. páginas manuscritas onde narrava visões e revelações ticos mais graduados parte de sua culpa, certamente imaginava
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místicas. Ainda mais: vindo a falecer este velho sacerdote fran- o réu ter comovido seus colegas de b atina, todos bem mais jovens

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ciscano, disse Padre Francisco ter procurado o comissário do que ele, embora detentores do poder de julgá-lo e condená-lo a

K? Santo Ofício do Rio de Janeiro, o Cónego Simões, que, secreta-


riado pelo Padre Dr. António Pereira, do cabido fluminense,
rigorosos castigos e humilhações. "Reconhecendo que tudo em
Rosa era puro fingimento, torna a detestar tudo e protestar só
til:rri ouvira Rosa por duas horas e meia "e não acharam coisa alguma

660 661
crer no que ensina a Santa Madre Igreja e na sua santa fé casse ter concluído a confissão de suas culpas, devia ser inquirido
protesta viver e morrer." Amém. sobre sua genealogia. Informa, então, o Padre Francisco alguns
Mal acaba sua confissão, retoma a palavra o Inquisidor detalhes concernentes à sua biografia. Declara ter recebido o
Luiz Pedro de Brito Caldeira, dizendo que "fez bem em. começar crisma e as ordens menores das mãos do arcebispo de Braga,
esta confissão", ao que imediatamente contesta o ex-capelão do Dom Rodrigo de Moura Telles, ordenando-lhe presbítero Dom
Parto dizendo "não ter mais nada na lembrança", dando a Luiz Alvares de Figueiredo, na Igreja de Nossa Senhora do
entender que esgotara a confissão de suas culpas. Foi mandado, Carmo de Braga. Disse mais, que tanto que chegou aos anos do
então, de volta para o seu cárcere: sua assinatura no final, desta juízo e discrição, confessava e comungava e ia às igrejas e nelas
primeira confissão é bastante trémula, refletindo o estado de ouvia missa e pregação,'fazendo as mais obras de cristão con-
nervos em que se encontrava este desgraçado ancião. forme determina a Santa Madre Igreja. Foi mandado, então,
São decorridos quase dois meses sem que os reverendos pôr-se de joelhos e, depois de persignar-se e benzer-se, foi
inquisidores se dignem a chamar novamente este réu em au- mandado dizer as orações: Padre-nosso, Ave-maria, Salve-Rai-
diência. A vida no cárcere para um sacerdote era ainda mais nha, Credo e os Mandamentos da Lei de Deus e da Igreja. Todos
penosa, pois ficavaimpedido de celebrar missa e até de conservar os réus deviam submeter-se a esta verificação, inclusive os
consigo o inseparável breviário. Remorso, angústia e total im- sacerdotes, e, por incrível que pareça, encontramos mais de um
possibilidade de decidir sobre seu próprio futuro eram o prato padre que não soube recitar os Mandamentos!
cotidiano destes prisioneiros de consciência, acrescidos de des- Acrescenta a seguir outras informações, sobre sua vida
conforto, frio, alimentação de má qualidade, insalubridade das pregressa: que aprendera gramática na cidade de Braga, com o
"casinhas", muitos insetos e a violência dos guardas e demais mestre particular Domingos de SouzaBurlento; depois, por dois
funcionários deste tribunal da fé. A falta do rapé, que, quando anos, com os padres carmelitas, estudara os princípios de moral,
livre, trazia sempre na velhaboceta de prata, no bolso dabatina, mas, acometendo-lhe "queixas no peito", deixou de estudar
devia ser talvez ainda mais sentida que a ausência do breviário: outras ciências. Após ordenar-se sacerdote, esteve dois anos na
no século XVIII os viciados em rapé eram numerosíssimos, sendo freguesia de São Bartolomeu do Rego, transferindo-se então
inclusive reprimidos por Antonil, quando apontava como grave para a América Portuguesa, onde assistiu como coadjutor da
descompostura cheirá-lo dentro dos templos. freguesia de São Caetano, nas Minas Gerais, por nove anos
Aos 21 de maio, novamente o réu Padre Francisco Gonçal- seguidos, passando então para São João dei Rei, onde missionou
ves Lopes é encaminhado para a Segunda Sala de Audiências, mais doze anos, transferindo-se finalmente para o Rio de Ja-
onde esperavam-no os mesmos oficiais: o Inquisidor Caldeira e neiro, onde já residia há nove anos, quando foi transladado para
o Notário Manoel Francisco Neves. Como de costume, inicia o a Casa do Rocio. Aproveita, então, a ocasião para acrescentar
inquisidor a audiência, instigando o réu a descarregar sua mais uma acusação contra sua ex-escrava, em tempo que res-
_ -r- salta sua exemplar virtude: conta a tentantiva de Rosa em
consciência, continuando a confessar todas as suas culpas. O
velho capelão toma opartido de manter-se firme na confirmação seduzi-lo sexualmente na hospedaria, quando fugiam das Minas
de que nada mais tinha a dizer, ratificando que os fingimentos em direção ao Rio de Janeiro.
da negra Rosa é que foram culpados pelo seu engano, reconhe- Após tais narrativas, antes de concluir a audiência, per-
cendo agora os incomparáveis benefícios praticados pelo Santo gunta-lhe Monsenhor Caldeira: na opinião do réu, -por que
Ofício em trazê-lo a estes cárceres afim de aliviar sua alma. motivo achava-se preso? Ao que respondeu o capelão: "por causa

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Conforme prescrevia o Regimento, desde que o réu ratifi- dos embustes da negra Rosa". Deixando no ar tal acusação, o

i;f)t 662 663

ii).
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reverendo inquisidor ainda teve tempo de acrescentar que "o franciscanos do Rio de Janeiro, Frei Agostinho de São José, e no
Santo Ofício não prende ninguém senão depois de muitas dili- barbadinbo Frei João Batista da Capo Fiume e que via muitas
gências, e com muita caridade o admoestava de novo para que obras de virtude em Rosa, como orações, jejuns, esmolas e
faça inteira e verdadeira confissão de suas culpas. E por ser dada frequência aos templos.
a hora, foi mandado para seu cárcere",
P. —Não seriam tais obras malícia para encobrir seu fim
Cinquenta dias permanecerá o réu no cárcere sem qualquer de inculcar sua falsa santidade?
notícia do mundo exterior. Nada sabia sobre Eosa, não tinha a Respondeu que tinha confiança nos confessores da preta
menor ideia da opinião de seus juizes a respeito de suas confis- Rosa. ' •
sões, não dispunha de pistas para saber quanto tempo restava- P, — Não havia em Rosa certos comportamentos incompa-
lhe ainda dentro dos Cárceres Secretos. A chegada do verão, com tíveis com a santidade e sólida virtude?
seu calor pegajoso e a invasão de insetos nos cubículos dos Respondeu que sim, citando, a tentativa de sedução na
prisioneiros, aumentava ainda mais o penar desses infelizes, pousada, na estrada das Minas Gerais para o Rio de Janeiro.
notadamente daqueles, como o padre, portadores de infecções Disse então o reverendo inquisidor: como queria o réu que
crónicas da epiderme. acreditassem em suas respostas, se aindaparecia querer justifi-
Aos 12 de julho, sempre no mesmo ano do Senhor de 1764, car Rosa e acreditar ser virtuosa., agindo elatão desonestamente?
na Terceira Casa de Audiências, tem lugar outra sessão, sendo Respondeu que sua única malícia foi a ignorância, protes-
o réu submetido a capcioso inquérito doutrinário. Eis as questões tando querer viver e morrer na fé de Jesus Cristo.
formuladas pelo reverendo inquisidor: P.—Referindo o réu práticas desonestas, como a dança do
batuque no coro do. Recolhimento do Parto, como usaria Deus de m
P. — Se ao celebrar Missa, saía do ritual?
E. —Não.
meio impuro para estimular a pureza? m
•l» P.—Se não sabia que os Concílios proíbem dar publicidade
Respondeu o réu pedindo misericórdia pelas chagas de *
às revelações e outros especiais favores e espalhar papéis sobre
Nosso Senhor Jesus Cristo, protestando que tudo que Rosa fazia
lhe parecia bom. •
a vida e virtudes dos mortais sem ordem eclesiástica?
Respondeu que sabia.
Perguntou, então, o reverendo inquisidor:por que o réu não
cessava o fingimento e confessava incensar, no coro do recolhi-
*
'T. — Se não sabe\que, morrendo virtuosas, só depois de mento, àpretaRosa, considerando-a uma santa?
canonizadas é que a&pessoas podem ser objeto de culto? Respondeu que .Deus Nosso Senhor sabe a tenção com que
í»; Respondeu que sabia. fez o referido, e ao mesmo Senhor recorria e ao Santo Tribunal,
lis
P. —Se leu algum livro sobre místicos e como reconhecem,-se pedindo misericórdia de suas culpas que já todas confessou.
os verdadeiros santos ?

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i-i-
Respondeu que nunca estudou tais livros, só conhecia o
Breviário e o Livro dos Santos e de seus Milagres; portanto, não
sabe quais são os sinais dos bons e maus.
Disse então o sr. inquisidor: se era ignorante, como caiu o
P. •—• Já que reconhece os erros, tem algo mais a confessar?
Respondeu o réu renovando seu pedido de perdão a Deus
e ao Santo Ofício.
P. —Não teria o réu dito mais coisa alguma a respeito das
santidade da preta Rosa?
réu na temeridade de chamar santa à preta Rosa, sendo tal Respondeu que não se lembrava de mais nada.
conhecimento de grande dificuldade? .Disse, então, o reverendo inquisidor:
Respondeu que se fiou na sabedoria do provincial dos



664 665

diversas questões ao réu, demonstrando desta forma estar per-
'Não há caminho mais certo par a se ter o perdão da Igrej a feitamente informado de suas culpas e tentativa de escondê-las.
e do Santo Ofício do que uma sincerae verdadeira confissão. Como era de praxe do Santo Ofício, nestas perguntas omitiam-se
Deste meio o réu tem abusado tão pertinazmente, apesar os nomes das pessoas e locais onde o "crime" ocorreu, obrigando
de repetidas admoestações, e continua a encobrir a sua o delatado a incríveis malabarismos de memória para resgatar
malícia e se desculpar com insignificantes respostas, des- com fidelidade o conteúdo das acusações de que era inculpado.
culpando-se com o afetado pretexto da ignorância, tendo
para si que estas cavilações enganariam aos Ministros do "Perguntado pelo reverendo inquisidor, em que certo
Santo Oficio. Advertimos, porém, que é errado e temerário lugar se achou ele, réu, algum tempo passado, e disse que
seu pensamento, e que não é fácil o engano que pretende, o Recolhimento do Parto era destinado por Deus para
nem com as confissões satisfaz as provas da justiça, pois causas grandes, que aí se guardava uma prenda preciosís-
há provas de que adorava Rosa e obrigava muitas pessoas sima e seria venerado e teria as mesmas indulgências que
a fazê-lo, sendo ainda hoje dominado pelo mesmo espírito as Santas Casas de Jerusalém e as Igrejas de Roma e
de hipocrisia. Portanto, novamente, com muita caridade, Santiago da Galícia?
por parte de Cristo, deixe os respeitos humanos e descar- Disse que é verdade ter dito tudo isto, mas não se lembra
regue sua consciência, declarando a verdadeira intenção a quem, sendo para tanto enganado por Rosa.
que teve quando cometeu as culpas que confessou.' Perguntado onde disse que, mesmo que o chamassem de
louco, haveria de profetizai1 um grande castigo à cidade do
Respondeu o réu que foi sua ignorância e a imitação de Rio de Janeiro, que ia se soverter juntamente com São João
outros confessores mais doutos que o levaram a este engano. dei Rei e Mariana porque haviam açoitado a negra Rosa?
E, por ser dada a hora, depois de lida e ratificada sua Disse que confirma ter dito o mesmo e, mais ainda, que
confissão, foi o réu enviado a seu cárcere." os desertos se povoariam por estarem isentos de culpa, mas
tudo dissera enganado por Rosa..."
A assinatura tão trémula do Padre Francisco, no final da
confissão, atesta a insegurança eonervosjgm.o Hcrvelho sacer- Passando folha a folha os autos de denúncia recebidos do
ctõíe, lacú^a^^õlno~nuncã^aum Beco sem saída, envergonhado e Rio de Janeiro, o inquisidor ia formulando novas perguntas, às
indefeso perante asTcõntfadíções de seu depoimento e o maquia- quais o velho sacerdote confirmava humildemente sua culpa,
vélico esmiuçar de sêu^õmprõmetedor passado. assumindo ter participado dos rituais sincréticos capitaneados
Sua quarta sessão de inquérito, sempre perante o mesmo pela recoleta africana; ter publicado que o Menino Jesus vinha
inquisidor, tem lugar na Segunda Casa de Audiências, apenas falar com sua ex-escrava; que o Senhor Morto do altar do
doze dias após o anterior. A esta sessão chamava o Regimento recolhimento estava vivo e fazia revelações à visionária; que a
de in specie: "Não satisfazendo o réu inteiramente à informação alma de Frei Agostinho permanecia às portas do inferno por ter
da justiça, nem emendando as faltas que há em suas confissões, ele desacreditado de sua filha espiritual às vésperas de falecer;
depois de ratificado nelas, e de lhe ser feita sessão de crenças, que Madre Egipcíaca trocara seu coração com o de Jesus; que
se lhe fará sessão in specie, na qual será perguntado pelos ditos ameaçava com o inferno as recolhidas incrédulas ou as que
. das testemunhas em.que estiver diminuto." ousassem revelar extramuros o que sucedia no Parto, etc,, etc.
m Baseando-se, portanto, nas denúncias enviadas pelos co- Negou, porém, ter mandado às recolhidas ir-se confessar ou
m missários do Santo Ofício do Rio de Janeiro, formula o inquisidor

l 666 667
i

tomar a. bênção de joelhos aos pés dá fundadora, declarando aproveitavam este momento para apresentar as "contraditas",
outrossim não ter conhecimento daquela penitência asquerosa indicando nomes de testemunhas que podex-iam defendê-lo das
em que se despejava um prato cheio de escarro de toda a acusações, resigna-se o velho sacerdote à sua sorte e prefere
comunidade sobre a cabeça de uma noviça mais rebelde. calar-se, certamente por ter consciência de que não encontraria
Já com provas de impaciência, o Inquisidor Caldeira ad- em Lisboa conhecido algum que viesse em sua defesa, sobretudo
moesta mais uma vez ao velho presbítero que se acusasse logo levando-se em conta que as acusações de que era alvo, tudo faz
de tudo que mantinha oculto, pois esta era a última admoestação crer, tinham, fundamento na realidade. :
que lhe fazia antes de encerrar seu processo, e, dentro da lógica A 27 de setembro, dia de São Cosme e Damião, a Mesa
processual da Inquisição, era melhor confessar do que ser dimi- Inquisitorial encerra este processo, emitindo o seguinte parecer:
nuto na declaração das culpas. Animado por tal oportunidade,
temeroso, Padre Francisco declara que "tinha tal fé em Rosa que "Considerando todos os prejuízos causados pelo Padre
chegou atrazer como relíquia um dente da preta—o.queparece Francisco Gonçalves Lopes, em divulgar a falsa santidade
bastante para justificar sua credulidade". da preta Rosa, condenam o réu a cinco anos de degredo no
Difícil seria julgar se as omissões e lacunas, na confissão couto de Castro Mearim [Algarve], ficando para sempre
deste réu deviam-se à intenção expressa de ocultar e diminuir suspenso de confessar e fazer exorcismes, e que vá ao Auto
suas culpas ou,, então, simples esquecimento muito comum num Público de Fé, na forma costumada, e nele ouça sua sen-
septuagenário cheio de achaques. tença; que se confesse quatro vezes por ano e comungue ao
Conforme previa o Regimento, agora, na solene sala do
despacho, estando presentes, além do inquisidor e seu notário,
menos uma vez na Páscoa da Ressurreição; que reze um
terço por semana e mais cinco Padre-nossos e cinco Ave- *
também o promotor do Santo Ofício, o réuXota-Diabos é novamente marias todas as sextas-feiras em homenagem às cinco o
chamado —• um mês após a audiência in specie — sendo-lhe feitas
"admoestações antes do libelo". Pondera, então, o inquisidor que,
chagas de Nosso Senhor Jesus Cristo, e, para satisfação do
escândalo que causou, seja lida sua sentença em um dia
e
usando de mau conselho, o réunão confessara todas as suas culpas, festivo, à missa de terça, na Sé da cidade do Rio de Janeiro, m
: ffi tanto que a justiça o acusa de que, sendo ele cristão e sacerdote, e que pague as custas deste processo."
em vez de ser uma coluna e firmamento de virtude, foi o contrário,
demonstrando grande fé -numa certa pessoa do sexo feminino, Assinam a sentença três inquisidores e dois Deputados do
abrigada num certo recolhimento, proclamando que era criatura Santo Ofício: nossos já conhecidos Caldeira e Carvalhal, segui-
muito santa, que seu recolhimento estava destinado por Deus a dos do Inquisidor Joaquim Jansen Moller e dos deputados
grandes sucessos, que Santa Teresa dÁvila não passava de uma Agostinho Velho da Costa e Alexandre Jansen Moller, irmão do
menina de recados comparada à tal escolhida, etc., etc. A tudo o citado inquisidor.
réu devia ouvir calado, pois nestas últimas instâncias processuais Como determinava o Regimento, a sentença foi então en-
só a acusação tinha o direito da palavra. caminhada ao Conselho Geral do Santo Ofício, que a confirmou
Aos 15 de setembro, novamente na Casa de Despacho, tem aos 16 de outubro de 1764. Restava agoratão-somente aguardar
lugar a "citação das provas da justiça", onde o promotor enumera a data de sua leitura no Auto de Fé.
as acusações de dez testemunhas do sumário de culpas, perante Por motivo que nos escapa, datava de 1761 o último Auto
às quais o réu declara não ter mais nada a acrescentar, nem de Fé realizado em Lisboa: na década anterior, todos os anos
elementos para contradizer as acusações. Enquanto alguns réus celebraram-se tais espetáculos incendiários, causando-nos sur-
presa sua interrupção por quatro anos, após 1761. Durante o
l
668 669
ano e meio que Padre Francisco esteve encarcerado na Casa do infecta prisão? Medo, confiança cega em Nosso Senhor, deses-
Rocio, inúmeros réus, como ele, receberam a mesma condenação pero, automortificação? Teria arquitetado fugir dos cárceres,
de ter suas sentenças lidas publicamente nestas cerimónias, e como acontecera com sucesso com o orientador espiritual de
aguardavam ansiosos, j á julgados e sentenciados, a realização Santa Teresa d'Ávila, o místico São João da Cruz?J?obre criatu-
das mesmas, a fim de cumprir o restante da condenação. Deixe- ra, qual um passarinho, presa na gaiola. Certamente sua des-
mos, portanto, nosso velho réu mofando nos Cárceres Secretos graça era ainda maior que a dos demais réus, pois na casinha
por mais um ano completo, entre 16 de outubro de 1764 e 27 de onde estava trancafiada, provavelmente, também aí, era alvo de
outubro de 1765 — data da realização do próximo Auto de Pé discriminação racial por parte das desafortunadas brancas que
em Lisboa, e retornemos à casinha onde Madre Egipcíaca aguar- abominavam a má sorte de ter de coabitar com uma~ ex-escrava
dava suas intermináveis e cada vez mais raras audiências afric£fflã]^crml^ no período
perante o Inquisidor Carvalhal. escravista. " "
Chama a atenção do estudioso dos processos de Rosa e do
Padre Francisco que, chegando na mesma datana Casa do Rocio, "Aos 11 dias do mês de abril de 1764, em Lisboa, nos
presos pelas mesmas culpas, culpas estas sumariadas num único Estaus da Santa Inquisição, estando ali na sessão da
auto enviado pelos comissários do Rio de Janeiro, não tenham manhã o Sr. Inquisidor Jerônimo Rogado de Carvalhal e
sido os dois examinados por um único juiz e sim por inquisidores Silva, mandou vir perante si a Rosa Maria Egipcíaca, ré
distintos. Pôr uma questão de economia e eficiência judiciárias, presa conteúda nestes autos, e sendo presente lhe foi dado
se apenas um juiz tivesse se encarregado dos dois processos, o juramento dos Santos Evangelhos em que pôs sua mão
certamente as provas dajusticateriaxn.se esclarecido com. maior sob o cargo do qual foi mandado dizer a verdade e ter
acuidade e rapidez, pois haveria possibilidade de acarear as segredo, o que prometeu cumprir.
declarações contraditórias do casal, posto ambos estarem envol- Perguntada se temmais a declarar e quer fazer confissão

l
r.Lf
vidos num único crime. :
Nada disto aconteceu: o juiz de Rosa foi o Inquisidor
Carvalhal, e o do Padre Francisco, o Inquisidor Caldeira, con-
tando igualmente com dois notários distintos. Se houve comu-
nicação entre ambos e troca de informação sobre o andamento
pelo que pertence ao fingimento das suas virtudes, disse
que sim, queria continuar as suas declarações, referindo
que, na verdade, tudo lhe sucedeu, como foi que depois dos
ditos sucessos [relatados até agora], estando em oração,
viu diante de si um novelo de linha de quatro quinas, dos
dos respectivos autos, não saberemos jamais. quais saíam quatro línguas de fogo. E, querendo ela fugir
Deixáramos Rosa Egipcíaca em sua casinha, após a tercei- daquela visão, lhe disse uma voz: 'o que vês, aquele novelo
ra audiência, datada de 10 de fevereiro de 1764. Passa-se pouco de linhas, é o coração de teu padre confessor atado com
mais de um mês, e, aos 11 de abril, a ré é ouvida pela quarta aquelas linhas que são enredos, injustiças e mexericos, e o
fogo são as dúvidas, incredulidades e contradições que se

mm
vez. Fora dos cárceres, a natureza ensaiava seus primeiros
alvores primaveris, as cerejeiras e narcisos perfumando o ar de hão de levantar contra ti'.
Portugal com suas flores. Dentro do Tribunal Santo, persiste a
mesma rotina tristonha e acabrunhante, o mau cheiro das águas Rosa reconstrói, então, sua versão de como fora expulsa do
servidas, o fétido do mofo e bolor comuns a todas as prisões recolhimento que recém-fundara, em 1758, atribuindo tal epi-
daquela triste época. Com o calor os piolhos aumentavam! sódio à calúnia, depois assumida e confessada, que lhe levantou
Que sentimentos experimentaria a beata africana em sua a então regente do Parto, Irmã Maria Teresa, invejosa do

m 670 671
i
t
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carisma e prestígio da negra junto -à comunidade recoleta.
m
Segundo sua interpretação, o falso testemunho de que fora coro do recolhimento, e até nas casas de alguns devotos mais
, íntimos, quando vexada pelo "Afecto"—dança considerada pelos
m
vítima tivera como escopo fazer com que o ambicioso Frei
Caetano, do Convento de Santo António, fosse indicado como inquisidores como assaz indecente, inclusive já devidamente
novo capelão do recolhimento, nomeação somente possível me- condenada pelo bispo do Rio de Janeiro, desde 1747, ocasião em
diante a expulsão dos dois fundadores do beatério —• Padre que, através de uma portaria, "proibia os batuques por serem
Francisco e ela própria. Diz que, após alguns meses proibida de totalmente alheios ao louvor de Deus, provocando escândalo e
entrar no "santo colégio", conseguiu retornar ao mesmo, narran- culto aõsTãlsõTHeuseB [gã^Sicãl". ^
do então ao inquisidor esta curiosa visão, na qual os anjos "Ainda nesta quarta sessão, Madre Rosa Egipcíaca recons-
intercalam em seus louvores algumas expressões em língua
espanhola, recurso estilístico comum em nosso período barroco.
trói suas principais visões ocorridas entre 1759 e .1760, "omitindo
alguns sucessos por não serem marcantes". Termina contando •
do "abalo no seu interior quando os céus lhe mostraram o •)
I "Disse mais que, no ano de 59, estando na igreja do dito
recolhimento para comungar, pedindo as recolhidas ao
cenáculo do amor", onde ela própria se via sentada na santa ceia,
vestida de franciscana, ao lado dos doze apóstolos: "após aquela m
capelão que a deixasse entrar para receber com elas o visão, ficou ela, ré, confundida, imaginando o que seria aquilo,
sacramento, assim lho permitiu e, depois da comunhão, metida no seu nada. E, por ser dada a hora, foi mandada para

IÍ1
estando devotamente rezando ao pé do caixão onde estava
o Senhor Morto, viu da parte do mesmo caixão sair um
o seu cárcere, sendo-lhe primeiro lida esta confissão que, por ela
ouvida e entendida, disse que estava escrita na verdade, e *
clarão como de sol e logo um pilar da altura, de uma vara, assinou, com o dito senhor inquisidor, e eu, Estêvão Luiz de
e sobre eles uma coisa encarnada muito viva, coberta com Mendoça o escrevi".
um pano muito cândido mas tão fino que pelo mesmo se A assinatura da pobre acusada, tremula e em linha
via uma multidão de abelhas, E ao mesmo tempo ouviu descendente, reflete com clareza sua insegurança e tensão
uns cânticos que diziam: Chegai, chegai, abelhinhas todas nervosa: nossa radiante Madre Maria Egipcíaca da Vera Cruz
i aladivinidadya Ia divinidad! Ó- doce suco na-flor, Jesus
que hoje nasceu, nasceu para vós! A cujas vozes sentiu ela
estava rebaixada, no pé da página de seu processo, à reles
condiçãgjie "ROZA M~ ". Nem sequer completou seu segundo
em si uma extraordinária comoção para dançar, o qual nome, Maria, quem sabe, apressada pelo notário, ansioso em
impulso reprimiu corri, pejo das recolhidas que estavam encerrar_esta quarta sessão, já que a sineta há pouco havia
presentes." tocado.
Ao mesmo tempo que nos Estaus do Santo Ofício os dois
O notário.não deixava escapar nenhum detalhe do que a réus iam sendo julgados, novas diligências são ordenadas nos
preta ia contando. Dispondo o inquisidor, já a esta altura, de locais de residência dos mesmos, a fim de se amealhar mais
uma centena de folhas, frente e verso, contendo as denúncias, o denúncias e ratificar as já constantes em seus processos. Por-
ir sumário realizado no Rio de Janeiro e, agora, as novas confissões tanto, aos 19 de maio, sempre do mesmo ano do Senhor de 1764,
|| ;
de Rosa, tinha material mais do que suficiente para detectar tem início no Rio de Janeiro nova devassa contra ambos os réus.
ly, - suas contradições, heresias, ou-maliciosas omissões. Neste mo- Como todos os negócios do Santo Ofício, também este fora
N" mento, com certeza, Monsenhor. Carvalhal deve ter-se dado ordenado através de uma comissão assinada por três inquisido-
conta de outra mentirinha da visionária, pois diversos denun- res já nossos conhecidos: Jansen Moller, Carvalhal e Caldeira.
•í
ciantes confirmaram que ela era useira era dançar o batuque no Esta ordem de sumái-io, datada de Lisboa aos 12 de dezembro

672
673
de 1763, deve ter aportado no Rio de Janeiro nos primeiros meses background sócio-econômico de onde provinha tal funcionário
de 1764. Preocupado sempre em controlar todas as informações da elite inquisitorial do Brasil. Era natural e morador no Rio de
e documentos secretos, oMonstrumHorrendum, a Santa Inqui- Janeiro; pelo lado paterno procedia de Barcelos, no Minho,
sição, determinava que, no mesmo documento recebido de Lis- enquanto sua mãe, da família Alvarenga, era natural de Sepe-
boa, o comissário anotasse sua resposta, recambiando-o sem, tiba, na Baixada Fluminense. Corria, à boca pequena, no Rio de
delongas para a Casa do Rocio, razão pela qual toda documen- Janeiro, que, por parte de seu avô materno, o Cónego Simões
tação do Santo Oficio relativa ao Brasil encontra-se emPortugal, tinha "alguma coisa do gentio da terra da vila de Santo António
na Torre do Tombo. de Sá" (antiga Cachoeira de Macacu) — certamente ostentando
A "Comissão do Santo Ofício contra o Padre Francisco alguns traços fenotípicos de mameluco de segunda geração.
Gonçalves Lopes, Rosa Maria e outros" é um longo documento, Quando jovem, estudara em Coimbra, bacharelando-se em Câ-
através do qual nomeou-se o Comissário Francisco Fernandes nones, exercendo igualmente a advocacia civil. "Clérigo grave,
Simões e, na sua ausência, o Cónego Inácio de Oliveira Vargas, de exemplar procedimento, boa capacidade e abundante de bens
como responsáveis em conferir as denúncias de que patrimoniais, sendo nomeado, por Sua Majestade, reitor do
Seminário do Rio de Janeiro." Em seu processo de habilitação
"Rosa Maria Egipcíaca da Vera Cruz, courana, para fins consta ter património avaliado entre 18 a 25 mil cruzados.
humanos e temporais, se inculcava mulher santa e virtuo- Algumas testemunhas, entretanto, empanaram levemente suas
sa, fingindo-se favorecida de Deus, inventando que o mes- virtudes e idoneidade: um morador de Guapimirim confidenciou
mo Senhor, Maria Santíssima e muitos santos lhe falavam que o Padre Simões tinha unia filha bastarda, mulatinha, filha
e apareciam, e ainda as-almas-de diversas-pessoas,~que de uma sua escrava parda, ponderando, contudo, "que poderia
afirmava ver na hóstia quando já consagrada e elevada ser invenção de escravos, pois o clérigo vivia com muita modéstia
pelo celebrante; ostentando o dom da profecia". e ainda sob a tutela dos pais..." Outro informante lembrava-se
"de certa galanteria em seu tempo de estudante"... (Galanteria,
As acusações repetem, mutatis mutandis, p mesmo rol de segundo o dicionarista Morais, significava "obsequiar ou cortej ar
culpas j á transcrito anteriormente quando da transferência dos damas por amor") Não obstante tais pecadilhos da juventude,
réus do Cárcere da Custòdiapara o Secreto, reunindo numerosas em 1745, nosso candidato é homologado na função de comissário
evidências de que os acusados eram fortes suspeitos do crime de do Santo Ofício, de modo que seu processo, iniciado em 1733,
heresia formal. estendera-se por doze anos, tempo um pouco maior do que a
A nomeação de um novo comissário, em lugar dos nossos média dos demais habilitandos do Brasil. Passava, então, dos
já conhecidos Pereira e Castro e do carmelitano Bernardo de 60 anos de idade. Assim sendo, ao receber, em 1764, a comissão
Vasconcellos, confirma a preocupação constante do Santo Ofício para devassar contra os mistificadores do Recolhimento do
em obter informações as mais acuradas a respeito de seus réus, Parto, devia beirar os 80 anos.
pois um terceiro investigador, desconhecendo os acusados e suas No documento enviado pelos inquisidores, especificava-se,
culpas, po_deria,eoletar informações novas _e menos, distorcidas nos mínimos detalhes, como se devia proceder nesta comissão.
do que as anotadas pelos oficiais que o antecederam. Ali estavam arrolados os nomes dos onze delatores já constantes
O eleito para conferir a denúncia foi o citado Padre Fran- no sumário anterior: seis membros da família Arvelos, três
cisco Fernandes Simões. Através de seu processo de habilitação recolhidas do Parto e dois outros moradores nas Minas Gerais.
ao cargo de comissário do Santo Ofício, levantamos algumas Devia eleger um sacerdote cristão-velho, de boa vida e costumes,
informações a seu respeito que permitem-nos vislumbrar o

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para ser o escriba. E que a todos os informantes, como era de o Senhor Jesus aparecia por sobre as nuvens, numa carroça como
praxe, fosse feito o seguinte interrogatório: 1. Se suspeitava por um relâmpago, tendo um par de flechas em suas mãos; na
que era chamado perante a comissária. 2. Se conhecia alguém segunda, j á anteriormente ref erid a, a preta Ana diz ter visto sua
que dissesse alguma coisa contra nossa Santa Fé ou contra o mãe Rosa com uma custódia na mão direita onde resplandeciam
Santo Ofício. 3. Se denunciou alguém a algum comissário, quem os Santíssimos Corações da Sagrada Família.
e com quem. "E tudo que a testemunha disser se escreverá com
miudeza, distinção e clareza, devendo ser feita a inquirição fora "E, sendo-lhe lido este testemunho, disse que estava
das casas das testemunhas, não ficando nenhuma cópia da escrito como na verdade tinha deposto, e afirmava e rati-
mesma no local." A hurocrácia inquisitorial primava pelo cen- ficava que tornava a dizer o mesmo, e não tinha mais que
tralismo e rigor na construção das provas da justiça. Na maioria acrescentar, mudar, diminuir ou emendar, jurando nova-
dos casos, verdade seja dita, o procedimento judicial do Santo mente pelos Santos Evangelhos, estando presentes as se-
Tribunal era escorreito, embora possamos questionar, com car- guintes pessoas honestas e religiosas: o Padre Pedro Luiz
radas de argumentos, a legitimidade dos pressupostos éticos da Silva e o Padre Agostinho Pacheco Gago da Câmara,
relativos ao que era considerado crime, assim como as formas que tudo viram e ouviram e prometeram dizer a verdade
de punição. e guardar segredo sobre os Santos Evangelhos e assinando
Aos 19 de maio de 1764, no Recolhimento de Nossa Senhora novamente a testemunha. E ida para fora a testemunha,
do Parto, estando presente o cónego penitenciário e comissário, foram interrogados os ditos padres se lhes parecia que ela O
*
Padre Francisco Fernandes Simões, elegeu este ao Padre Pedro falara verdade e merecia crédito. Disseram que sim, e
Pereira de Moura, natural e morador no Rio de Janeiro, como assinaram de novo com o notário e o comissário."
escrivão desta diligência, dando início às inquirições.
A primeira testemunha a ser ouvida foi a ex-evangelista Como se vê, o Cónego Francisco Fernandes Simões cumpria
if São Mateus, Irmã Ana do Santíssimo Coração de Jesus, preta com absoluta exatidão a minuciosa burocracia de seu cargo de
crioula, 35 anos, "a quem o reverendo senhor comissário deu comissário do Santo Ofício, inquirindo no mesmo dia a segunda
ij& testemunha nomeada na comissão: a preta crioula Ana do
juramento dos Santos Evangelhos", Ao primeiro quesito do
l interrogatório respondeu que não sabia por que era chamada Santíssimo Coração de Maria, 35 anos, natural da Ilha do Bom
1; perante o comissário. Ao segundo, "se conheceu alguém que Jesus, no Recôncavo do Rio de Janeiro. A antiga meretriz Ana
dissesse alguma coisa contra nossa Santa Fé", destramelou a
língua e narrou com detalhes o episódio em que o Padre Xota-
Bela revelou-se mais despachada que sua companheira de claus-
tro. Ao primeiro interrogatório foi logo dizendo que suspeitava,
m
Diábos lhe mandou que fizesse os tais bolinhos usando a saliva sim, ter sido chamada a esta sessão de perguntas "pelos sucessos
de Madre Maria Rosa Egipcíaca, distribuindo tais "biscoitos de Rosa, por não haver outro princípio nem motivo para isso".
milagrosos" como medicina para todos os achaques. Ratifica, Ratifica sua obediência, mantendo segredo de tudo que anterior-
então, todas as suas denúncias anteriores sobre a maneira cega mente confessara, "pois não é capaz de dizer palavra contra a
como o capelão do recolhimento prestava verdadeiro culto ido- verdade..." Uma refinada "santinha do pau oco". Repete, então,
látrico à "Abelha Mestra"; fala da solene nomeação das evange- a grosso modo, as mesmas denúncias feitas um ano antes ao m
listas, da' estampa com a figura de Santa Rosa Egipcíaca, etc.
Narra ainda duas visões que ela própria tivera quando fazia.
Comissário Pereirae Castro, incriminando mais opadre capelão,
como afiançador das virtudes de Rosa, do que à principal acu- m
oração mental no dia de Nossa Senhora do Rosário: na primeira, sada. Ao tratar de suas próprias visões, relativiza-as com termos m
menos preternaturais, tratando-as agora de "ilusão", "repre-
m
í: 676 677
r
Jí"
sentação", ou "persuasão interior". Termina informando que,
"após a prisão de Rosa, Padre Francisco mandou que ela negasse Como era de praxe, no final do sumário, anotou o comissário
ter escrito o que se passara no recolhimento" — ela era São as despesas que tivera com as diligências, despesas que seriam
Marcos Evangelista—>, comprovando, assim, o temor e a malícia oportunamente reembolsadas pelo Santo Ofício:
do velho sacerdote em querer ocultar o que certamente sabia
ofender a ortodoxia católica, pois, como diz o brocardo popular, DESPESAS EM RÉIS
"quem não deve, não teme".
180
A terceira testemunha que devia ser ouvida era a evange- Ao Comissário Simões
lista São João, Irmã Francisca Xavier dos Serafins, 40 anos. Já 230 '
não mais assistia no Parto, tendo obtido licença para viver Ao Escrivão Moura
extraclaustros. Residia, então, em Bacaxá, no Recôncavo Flu- 180
Notificação
minense, gastando o Comissário Simões $180 réis com um Total. 590
emissário que foi pessoalmente convocá-la em. nome do Santo
Ofíciopara vir ter com esta autoridade eclesiástica. Após 11 dias Se lembrarmos que um quilo de peixe custava nesta época
de iniciada esta comissão, Francisca Xavier é ouvida em casas aproximadamente 100 réis, no Rio de Janeiro; um quilo de açúcar
de morada de Dona Maria Teresa de Jesus Gouveia: renova aí 60 réis, um quilo de carne de boi 70 réis, uma libra de tabaco
suas delações contra Rosa Egipcíaca, detalhando os rituais 320 réis, somos obrigados a concluir que o Santo Ofício pagava
idolátricos praticados pelas recolhidas, assim como as alucina-
apenas simbolicamente a seus funcionários, contando, por con-
ções coletivas em que todas diziamalisiinguir_ps__estigmas nas
seguinterpara-os-mesmos, muito mais o.prestígio^ejmunidades
mãos e pés da "Abelha Mestra", "não conseguindo ela, testemu-
inerentes ao cargo do que compensações monetárias no exercício
nha, afastar estas representações de seu pensamento". Disse
mais que, após a prisão da negra e do capelão, os franciscanos das comissões.
foram ao recolhimento, ocasião-em que declarou "estas e outras Terminadas as diligências, cabia ao comissário, com seu
ridicularias praticadas, quando Rosa estava com aqueles frene- próprio punho, dar um curto parecer no final do sumário, a fim
sis e, apartir daí, só rezado que os frades autorizam, sumindo-lhe de auxiliar os inquisidores no julgamento das ratificações. Con-
aqueles pensamentos e representações que tinha e o Espírito firma, então, que considerava verdadeiro o depoimento das
que supunha ter, pelo que sentia em si de alvoroços". declarantes e que, por mais que investigasse, não localizou o
Verdadeira ou não, a ex-evangelista São João comportava- famigerado painel com a figura de Rosa, pois todos os trastes da
acusada tinham sido levados por seu compadreManuelBarbosa,
se como o discípulo Pedro que, acuado pelos detratores, salvou
"requerente de causas", para sua casa, e que, ao ser inquirido
a pele negando conhecer o Nazareno. Logo ela que assumiu "ter
extrajudicialmente, disse que não sabia nem vira o dito retrato,
adorado o retrato de Rosa com o título de Santa Rosa".
"embora eu não sei se mentiu ou falou a verdade". Conclui dando
"E, por não ter o dito comissário mais testemunhas nesta
sua apreciação a respeito do Recolhimento do Parto: "A regente
terra para inquirir, houve por acabada esta diligência, na qual
atual é mulher de capacidade e parece de virtude, sendo por tal
se gastar am três tardes com algumas horas da noite, e vai escrita reputada, vivendo as recolhidas com bom procedimento, como
em quinze folhas e meia de papel, sem borrão, fazendo eu, Padre verdadeiras cristãs." Apartado o joio e a cizânia, o trigo crescia
Pedro J. P. Moura, este termo de encerramento, que escrevi e a olhos vistos. Registra ainda sua opinião pessoal sobre os três
assinei."
acusados: por ter conhecido particularmente o Padre Francisco,

678 r
i 679
í
"me pareceu sempre sem malícia, muito material, ignorante, paraLisboa os reclamos deumamiserável esposa oprimida, Rita
crédulo e capacitado em demasia de muito virtuosa e favorecida de Jesus, que acusava seu marido, João António Francelho,
de Deus a dita preta Rosa". Transfere para o finado Frei Agos- natural da Ilha da Madeira, "de há três anos usá-la por detrás,
tinho a maior culpa da mistificação, "homem também ignorante com muita pancada, tanto que há um ano e meio retirou-se de
e material", incluindo no mesmo balaio o barbadinho italiano sua companhia vivendo em casa de uma viúva, atrás da Cande-
Frei João Batista, "o qual andava desajuizado e entrou louco lária, denúncia que fizera sem ódio nem malícia". Um comissá-
confirmado". Quanto a Rosa, "não tenho princípios nem funda- rio humano, convenhamos!
mento parafazer juízo certo, mas, dada a materialidade dos dois Além das três evangelistas inquiridas no Rio de Janeiro,
sacerdotes, creio que era levada pela vaidade e por alguns determinou o Santo Ofício que mais oito testemunhas residentes
enganos ou figurações do Demónio, figurando-se como santa, nas Monas Geraisfossemnovamenteratificadas. Coube aoPadre
pois o Diabo trabalhava naquele recolhimento". Cruz credo! José Sobral e Sousa, vigário da vara de São João dei Rei,
Convenhamos que o octogenário Comissário Simões emitiu comandar tais diligências. Era este sacerdote natural de São
julgamento relativamente indulgente vis-à-vis aos três acusa- Lourenço de Souza, arcebispado de Braga, tendo recebido sua
dos, isentando-os de "malícia", isto ê, do "conhecimento ou provisão de comissário em 1760, coincidentemente assinadapor
inteligência para fazer e obrar o mal". Rotulando os sacerdotes nosso ^ á conhecido inquisidor Joaquim Jansen Moller.
de "materiais", isto é, "grosseiros, rudes de entendimento, igno- É em suas próprias casas de morada que o Comissário
rantes, o oposto a espiritual", e mais ainda, destacando a doidice Sobral realiza esta inquirição. Escolheu como escrivão o Padre
confirmada do capuchinho e a ilusão de Rosa pelos "enganos e Manuel da Costa de Faro, que, "apesar de sua letra ser trémula,
figurações do Demónio", no final das contas, nenhum, dos acu- e ter já falta de visão, por velho, por isto mesmo o elegi, por
sados era, segundo avaliação desta autoridade eclesiástica, conhecê-lo há mais de vinte e cinco anos, sacerdote de bom e
plenamente culpado e responsável pelos seus erros. Todos ti- exemplar procedimento, vida e costumes, também porque algu-
nham, ponderáveis atenuantes dirimentes. Tão inusitada tole- mas testemunhas eram mulheres e que em algumas ocasiões
rância,, partindo de um idoso funcionário inquisitória!, de quem me era preciso sair de sua presença, estando continuando seus
se devia esperar o máximo de rigor e intransigência, permite-nos ditos..." Através de outra fonte, encontramos uma informação 0
detectar, já nesta época, o "jeitinho brasileiro" atenuando a . pitoresca a propósito deste impoluto sacerdote: na qualidade de 0
dureza da lei e o rigor do; castigo, conduta compreensível num comissário da Ordem Terceira de São Francisco, no ano de 1755,
velho sacerdote, carioca, já de três gerações, mas certamente propôs que fosse abolido o uso da touca por parte das mulheres 0
reprovada pela elite do clero reinol, ávida de expurgar da que frequentavam a capela franciscana, argumentando que as 0
li América Portuguesa a cizânia das erronias e do sincretismo. A mesmas desagradavam aos maridos, eram de pouca duração e
0
objetividade imparcial deste ancião merece destaque, quando, de elevado preço... Que diferença entre este virtuoso donzelão
ao concluir seu parecer, enfatizou não dispor de provas suficien- e tantos outros seus colegas de sotaina nas Minas, que, como
tes para emitir "juízo certo" a respeito da acusada. De duas lobos vorazes, faziam do confessionário perigosa armadilha para
dezenas de comissários do Santo Ofício do Brasil desta época, solicitações e torpezas com as filhas de Eva!
por nós pesquisados, foi o único que nos inspirou certa empatia, Tal inquirição tem início aos 3 de junho de, 1764, sendo
l parecendo ter o coração mais aberto para os pequeninos do que primeiramente chamado o pater famílias Pedro Rodrigues Ar-
seus parceiros de ofício. Alguns anos mais tarde, j á beirando os velos, "que vive de suas fazendas de roça, de minerar e de suas
90, novamente este mesmo comissário acolherá e encaminhará criações, com idade entre 60 e 71 anos" [szc], O velho ex-senhor

680 681
de Rosa devia estar em pânico, pois já se iam dois anos que ele
calamitoso acidente de sua vida. Tudo leva a crer que, de fato,
. próprio e toda sua família tinham se autodelatado perante os
Rosa e o Padre Francisco, seus ex-compadres, eram uma página
comissários do Rio de Janeiro e de São João dei Rei, e eis que,
virada na história familiar, um pesadelo que a todo custo bus-
de repente, é novamente chamado perante a autoridade inqui- cavam encobrir, quiçá evitando até sua menção. Afinal, o Tribu-
sitorial e perguntado "se suspeitapara o que é chamado?" Astuto,
nal da Inquisição era ainda o temível monstro sagrado, com
respondeu negativamente. Só no segundo quesito — se conhecia
poderes inquestionáveis de prender, sequestrar os bens, açoitar
alguém que dissesse algo contra a santa religião — é que solta
publicamente, degredar e até executar os criminosos considera-
o verbo, repetindo, com o mesmo vigor e teatral arrependimento,
dos mais graves. Daí a estratégia assumida por esta ludibriada
seu agora odiado envolvimento com a preta Rosa. Descreve,
família, em arrenegar repetidas vezes, de viva voz e por escrito,
então, como a conheceu, no longínguo ano de 1751, acompanhan-
sua lastimada boa fé e engano. Tudo nos faz crer que o arrepen-
do seu compadre, Padre Francisco Gonçalves Lopes, que na
dimento, embora enfático demais, a esta altura dos aconteci-
vizinha Capela de São Sebastião, com todo o povo reunido,
mentos, era sincero.
apaziguava-lhe os sete espíritos malignos com os santos exor-
Após aratificação das denúncias pelo casal Arvelos, é avez
cismes. Conta também, o quanto chegou a venerá-la, acreditando
de serem novamente inquiridas as quatro filhas, ex-recolhidas
ser Rosa a maior santa do céu, crendo firmemente em suas
no "sacro colégio" da preta Rosa. Dois anos haviam-se passado
profecias e que trazia, no peito, Jesus Sacramentado. Acrescenta
desde que essas assustadas adolescentes abandonaram às pres-
que "certa manhã, já no Rio de Janeiro, encontrou Rosa muito
sas o recolhimento, onde durante anos seguidos foram subme-
enfadada com ele, por duvidar, então lhe disse: 'Vai e dize aos
Í teus doutores, que o Mistério -[querela guardava] era o~do-
tidas a cruel lavagem cerebral, obrigadas a participar de rituais
diábõlicos^é^srídolatrar a ex-eseravardo "compadre de seu par.-
Apocalipse e que o Cristo Nosso Senhor, estando para expirar Neste curto espaço de tempo, entre abril de 1762 e julho de 1764
l na Cruz, pedira licença ao Pai Eterno para tornar ao mundo a —• dois anos e três meses — a vida das meninas Arvelos mudara
sacramentar-se em seu peito"'. Aleluia, aleluia! Contou mais: da água para o vinho — ou do inferno para o céu, se preferirem.
í;
: que, dando velas-para que Rosa aph'casse_pela alma de seu pai As duas mais expeditas, Maria Jacinta e Faustina, já se encon-
e por outras pessoas, "disse que seu padrinho estava no inferno travamcasadas. Casamento rápido, quem sabe, para consolidar,
e não valiam as velas". ; • com a bênção da Santa Igreja, um novo staius antagónico e
Antes de retirar-se, perguntou o comissário se o Sr. Pedro demolidor do recente passado de recolhidas numbeatério então
tinha outro laços, além da antiga veneração, emrelação aos réus, sob a mira do Tribunal do Santo Ofício. Ou, então, casaram-se
respondendo o arrependido sitiante ser compadre do Padre tão lepidamente por desejo de seus próprios pais, preocupados
m Francisco por cinco vezes, e de Rosa, uma vez. Amizade, portan- em ter donzelas casadoiras, deslumbradas com as tentações do
mi to, profunda e sacramentada.
Logo em seguida é ouvida sua esposa, Maria Teresa de
mundo após passarem vários anos reclusas atrás das grades:
como já ensinara o apóstolo Paulo, em situações congéneres, era
Jesus, 42 anoSj "cristã-velha de limpo sangue, por graça e mercê
melhor "casar do que se abrasar", sobretudo nas Minas, onde os
de Deus". Como seu maridor também ela repete as mesmas
muitos aventureiros e viandantes eram motivo de fundadas
denúncias contra a "impostora", dizendo que costumava se
Ifi inquietações a quem tivesse moça honesta pela qual zelar.
intitular de redentora, que era ressuscitada "e muitos mais
A antiga Irmã Maria Jacinta dos Anjos, agora com 19 anos,
coisas indignas que não se lembra". , • ' • mudara o nome par a Maria Jacinta Pereira, "de presente casada

Í 'A família Arvelos esforçavà-se para esquecer e apagar tão


com António Bernardo Rocha, moradores na casa de seu pai em

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f!
São João dei Rei". Pelo visto, faltavam donzelas casadoiras, de Rosa mandou a regente ler um escrito em que vir a Nosso Senhor m
"sangue limpo", na região, pois apesar de a população local "num trono muito desonesto, dizendo também palavras que ela, •
certamente conhecer os detalhes mais dramáticos e públicos do
quiproquó do Parto, no qual a família Arvelos teve papel proe-
testemunha, não pode proferir por serem torpes..."
Francisca Tomásia do Sacramento, que fora internada no m
minente e culpa no cartório, não obstante, logo encontraram as recolhimento quando mal completara 10 anos, tinha agora 17,
meninas Arvelos quem as pretendesse para matrimoniar. Em ao ser inquirida novamente em nome do Santo Ofício. É a única
sua delação, Jacinta repete as mesmas acusações apresentadas da família Arvelos a constar na obra Efemérides de São João dei
logo que saíra do recolhimento, enfatizando que, "por obediência Rei,, pois aos 16 de maio de 1770 casou-se na Capela de Santa
a seu pai, fora levada ao Parto onde Kosa era fundadora e Rita com o Capitão Pedro Medeiros Caetano dos Reis, que foi
mestra". Recita a ladainha dos títulos honoríficos com que a juiz de órfãos e vereador dacâmaralocal, em 1767 e 1778. Mudou
negra era louvada, acrescentando a relação de suas falsas a jovem seu nome para Francisca Tomásia Pereira de Castro,
profecias, sua adoração por parte do capelão e sobretudo das curiosamente o mesmo sobrenome do comissário do Santo Ofício
evangelistas, os rudes castigos com que ela, depoente, e suas que a interrogou no Rio de Janeiro logo após a prisão de Rosa
irmãs eram penitenciadas por rebeldia e incredulidade. "Rosa -i Egipcíaca. Segundo informam as Efemérides, teve este casal dez
dizia que nós quatro seríamos as primeiras a soverter no dilúvio, l filhos, destacando-se dentre eles dois clérigos: os Padres Pedro

t, :> por causa da incredulidade, e que seríamos as mais castigadas!"


Faustina Maria de Jesus é a segunda a depor perante o
António Teodoro de Medeiros, procurador geral da Ordem Ter-
ceira de São Francisco, e António Joaquim de Medeiros Castro,
Comissário Sobral: 22 anos, recentemente casada com o Sr. João "ST ordenado em Mariana, também vereador e um dos fundadores
Moreira dos Santos. Seu depoimento é o mais detalhista, en- da Sociedade Protetora da Liberdade e Independência Nacional,
chendo dez folhas de denúncias. Foi ela que mais sofreu, dentre "sacerdote sisudo, de costumes puros e honestos, amigo dos
todas as recolhidas, pois,: sendo mais inteligente e crítica, recu- pobres, mendigos e enjeitados".11 A ordenação destes dois filhos
sava a curvar-se aos pés da ex-escrava de seu pai, por julgá-la da ex-recolhida Francisca Tomásia comprova que a infâmia de
impostora'e falsavContoutersido-obrigada^ pormais de um ano, ter sido recoleta numa instituição, cuja fundadora fora peniten-
a permanecer no refeitório, de joelhos, mendigando às demais ciada pelo Santo Ofício, não impediu-lhes o recebimento das
recolhidas um bocadinho de comida, passando fome alguns dias, ordens sacras.
quando não sobrava nada nos pratos alheios. Denunciou que a Francisca fora por anos seguidos escriba da evangelista
amiga mais dileta da fundadora, Irmã Leandra — a mesma que Ana Clara, tendo registrado inúmeras visões que remetia às
por anos seguidos morava de favor em casa de seus pais, a mãos do capelão ou de Rosa, "fazendo isto com aborrecimento,
ingrata! — se auto-intitulava São Miguel, "e, qxiando se mostra- sem crer em nada que continham, e ao depois foram queimadas
va espiritada ou endiabrada, fazia visagens e dava pancadas por ordem do Padre Francisco". Também ela sofreu o mesmo
nela, dizendo que era a alma de Dona Maria Teresa, mãe da castigo no refeitório, mendigando alimento por mais de um ano,
depoente, mesmo estando ela viva". Tanto quanto sua irmã, de joelhos, "só comendo caso houvesse sobejo". Esteve presente
Faustina denuncia que Rosa se fechava corri o padre em seu na igreja do recolhimento quando dezenas de devotos da funda-
cubículo, altas horas da noite, "dizendo que estavam dando conta dora aí se reuniram para escapar ao profetizado dilúvio de 1759
do espírito dela", sugerindo claramente, com malícia, que ambos e denunciou ao comissário que a negra costumava proclamar
mentiam, escondendo-se dentro da cela afim de cometerem atos "que as armas de Portugal e as chagas de São Francisco Deus
luxuriosos. Conclui seu depoimento relatando que, certa vez,

u
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*
*
as dera para Rosa, mas que estavam encobertas agora e se "Depois que dei meu depoimento, me lembrou mais que,
haviam de aparecer no outro mundo". em uma ocasião, estando eu doente de uma queixa que me
Aúltima das Arvelos a ratificar sua confissão foi Genoveva, oprimia há anos, e por várias vezes estive muito mal da
25 anos. Sempre taciturna, seu depoimento mal encheu duas pedra, e nesta ocasião minha mãe Rosa Ma Egipsiaca [sic]
folhas. Refere-se a alguns títulos da litania em louvor a Rosa, fez um unguento de azeite da lâmpada de Nossa Senhora
"redentor a da Santíssima Trindade", confirmando que aex-pros- do Gramo [sic], cera do forno e sumo de poejo, e mo deu no
tituta proclamava que Nosso Senhor vinha falar com ela, embora • caldo de galinha. Logo fiquei boma [sic] e não,me tronou
só ela tivesse o privilégio de vê-lo. [sic] mais a dor té o dia presente. Seja Deus louvado para
Completa esta comisaão o depoimento de duas testemu- sempre. Sua humilde serva, Anna do SS.C. Jesus."
nhas também já anteriormente ouvidas pelos comissários do Rio
de Janeiro: José Alves Pereira, 68 anos, tio da recolhida Maria De todos os antigos devotos, esta companheira de Rosa, a
Antonia do Coração de São Joaquim. Diz este senhor ter conser- crioula AnarMãríã, ex-evangeHsl^S"ã^l^Féú^Vfôi^"unica que
vado com muita devoção as cartas e orações enviadas por sua
.. ir- nl r . __ t T J . .1 l n • - ' ~ —._-JÍ i—-,__ -_*_-, -^

tevê á coragem de manter sua fidelidade à fundadora do reco-


ex-mãe Rosa, mas que, tão logo fora presa pelo Santo Ofício, Ihimento'õnl:lej2onjm^
parou imediatamente de rezá-las, entregando tais escritos ao . lá-la de~1<mlnha mãe Rosa", proclamando por escrito, de livre
comissário.,-Tudo leva a crer que também sua sobrinha retornou iniciativa, um verdadeiro milagre realizado pela então prisio-
• às Minas quando da prisão da fundadora. neira d^^anto Tribunal de Lisboa. Certamente, a ex-evangelista
Caetano Fernandes Pêrèirã744 anos, morador. em-N-ossa— continuava acreditando n^predgstinasâp da espiritada cour anã,
Senhora das Brotas, freguesia de Congonhas do Campo, nego- e na sua iminente reabilitação, pois, conhecendo-se as árvores
ciante de fazendas secas, ratifica, por seu turno, ter acompanha- por seus frutos, como ensinou o Divino Mestre, como seria
do e presenciado às estripulias diabólicas de Rosa sobre a possível condenar por herética uma santinha que obrara tantos
montaria, quando viajaram juntos a caminho do Rio de Janeiro, milagres e vivera tão virtuosamente?
e, embora "aquilo lhe"parecia-coisa-do-Demônio-,-o-padre disse
que a trabalhava o Diabo, mas que .era serva de Deus".
Terminada a comissão, aos 25 de julho de 1764, o Comis-
sário Sobral dá o parecer atestando- que todos os depoentes Notas
pareciam ter falado a verdade "por serem tementes a Deus",
especificando no final ter gasto três dias nas diligências, deven-
do, portanto,- ser reembolsado pelos cofres inquisitoriais no valor 1. Castro, D, Francisco. Op. cit., 1640. Título XIV, §XII.
de 2$480 réis — quatro vezes mais do que o estipêndio de seu 2. Idem, ibidem. Título XX, §1.
colega do Rio de Janeiro, certamente por levar em conta ser o 3. Mott, Luiz. A Maconha na História do Brasil. In Diamba Sarabam-
custo de vida muito mais alto nas Minas do que no litoral. ba, Coletânea de Textos Brasileiros Sobre a Maconha. São Paulo:
Remete, então, de São João dei Rei toda a papelada para o Ground, 1986, pp. 17-135.
comissário do Rio de Janeiro, que acrescenta ao sumário mais 4. Castro, D. Francisco. Op. cit., 1640. Título VII, §XV.
5. Arquivo da Cúria do Rio 'de Janeiro, Registro de Portarias e Editais,
uma peça: uma carta manuscrita pela recolhida Ana do Coração
Livro I (1747).
de Jesus, onde declara: 6. Mott, Luiz. Um Nome em Nome do Santo Ofício: O Cónego João

Eli
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686
*

Calmon, Comissário da Inquisição na Bahia Setecentista. Univer-


sztós,UFBa, n. 37, julho 1986, pp. 41-56.
7. ANTT, Caderno do Nefando na 20, fi. 414 (21-8-1768). Um Processo sem Conclusão
8 ANTT, HabiHtacÕes do Santo Ofício, Maço 85-1252.
9. Cintra, Sebastião O. Qp. cit., 1982, v. 2, p. 358, v. 1., p. 296.
10. Mott, Luiz, "Modelos de Santidade para um Clero Devasso . Qp.
cit., 1989.
11, Cintra, Sebastião O. Qp. cit., 1982, v. 2, pp. 329-491. Deve ter sido nos finais de 1784 que chegou aos Estaus
do Santo Ofício em Lisboa o malote enviado pelo Comissário
Simões, do Kio de Janeiro, contendo as derradeiras ratifica-
ções das testemunhas mineiras e cariocas, engrossando ainda
mais o processo contra Eosa Egipcíaca e o capelão do Recolhi-
mento do Parto. Nada de novo ou substancialmente agravante
veio acrescentar ao que já era do conhecimento dos inquisidores.
O séquito da falsa santa — suas recolhidas e devotos mais O
comprometidos com mistificações e hipocrisias — não oferecia
matéria suficiente para também ele ser enquadrado no crime de
«
heresia formal, e, pelo que se depreendia deste novo sumário,
tudo fazia crer que a erronia desta falsa beata estava completa- *
mente neutralizada. No recolhimentOj as religiosas mais suspei-
tas tinham sido expulsas; os rituais mais heterodoxos expurga-
J,s l
dos; nas Gerais, a família Arvelos dava provas perceptíveis de
reforma, abjurando e detestando qualquer simpatia antiga vis-
à-vis à ex-escrava mistificadora. Os senhores inquisidores esta-
vam tão seguros de que a ratificação das testemunhas no Brasil
era mero formalismo burocrático, que nem sequer esperaram o
li retorno dos documentos para concluir o processo do capelão do
Parto, cujo despacho final por parte do conselho geral, como
m
vimos, traz a data de 16 de outubro de 1764.
Transcorriam as diligências nà^América Portuguesa quan-
do Rosa é chamada para sua/quinta e penúltima audiência,
realizada na Casa Segunda, no-p.eríodo vespeHmõT~Serfípre
instada a "descarregar sua consciência, declarando os fingimen-
tos com que tem vivido, disse que, no exame que tem feito de sua
consciência, acha que nunca fingiu os sucessos referidos, e que
conta toda a verdade". De fato, ou a negra era excelente atriz, •
'. '$ turrona em vender sua imagem de escolhida pelos céus, ou então •
— e nos identificamos mais com esta segunda hipótese — a

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africana era mesmo uma visionária, alucinada, tendo em seus dos camponeses na Espanha, Portugal e Brasil". Mesmo reco-
delírios extra-sensoriais acreditado ver e ouvir todas as revela- lhida no Parto, tendo vendido todas as suas jóias e roupas
ções que atribuiu como procedentes de Deus e de seus santos. amealhadas no meretrício, Madre Egipcíaca não resistirá à
Nesta quinta audiência ela reconstrói as visões ocorridas tentação de dançar, no coro, tendo alguma imagem, sacra nas
entre 1760 e 1761, às vésperas, portanto, do fatídico ano de 62, mãos, o controvertido batuque, "dança africana muito desones-
quando o Coração de Jesus prometeu-lhe vir pessoalmente ta", incluindo em sua coreografia embigadas e outros trejeitos
desempenhar a função de "visitador geral e havia de sair à visita lascivos, hoje recuperados pela popular lambada. Talvez para
por toda a província a prender os que estão soltos e a soltar os inocentar-se das acusações de ter dançado no coro é que, cons-
que estão presos".
Disse mais que, no decurso do mesmo ano de 1761, *' ciente ou subconscientemente, descrevera as quatro imagens de
Nossa Senhora, dançando minuetes na corte celeste. O suor frio
que as testemunhas observaram na fronte da visionária neste
"no dia do Entrudo, indo ao pé de um altar dar graças a devaneio místico indica, certamente, seu estado, mórbido —
Deus, caiu no chão desacordada e logo viu um campo onde "&,
"fraqueza do sangue", segundo diagnóstico seguro de minha
estavam quatro figuras que pareciam mulheres: uma com. sábiapreta, Carlita Chaves. Sugere também outra analogia com
•o rosário namão, outra com o escapulário de Nossa Senhora a vida de Cristo, que suou sangue no Jardim das Oliveiras às
do Carmo, outra com uma espada muito comprida e outra vésperas de sua paixão, reforçando outra vez nossa opinião a
com uma lança e um facho de fogo. E mexendo-se umas respeito da cultura mística e inteligência da beata courana,
para as outras, por modo de_quem_dança ™nu_etes,,_j3, -assim-eomo-o-uso-adequado-das-analogias..bíblicas.
perguntando ela, ré, o que faziam e quem eram,- lhe disse Conclui Pvosa esta quinta sessão, narrando outra revelação
uma voz que eram os novíssimos do homem, fazendo as ocorrida no Sábado de Aleluia do ano do Senhor de 1761:
senhoras do rosário e do escapulário o ofício da interroga-
ção; e a senhora de quem pendiam a espada e a lança, que "Dando ela, ré, os parabéns a Nossa Senhora da Ressur-
significavam o juízo, que não destruíssem o homem; e o - reição, no altar da mesma Senhora, lhe falou uma voz e lhe
movimento que faziam era o movimento do orbe celeste da disse: 'Eu te dou o fruto do ventre sagrado da Virgem
vontade de Deus. Depois' do que ela, ré, se restituiu aos Puríssima por aleluia.' E outra vez: 'Eu te dou o meu amor
seus sentidos e, achando-se banhada em um suor frio, por brasão do teu amor.' E outra vez: 'Eu te dou os meus
logo ouviu uma voz que lhe disse que dissesse aos filhos • patrocínios por insígnia das minhas misericórdias. Rezarás
da Igreja que, assim como ele [Jesus] suou na presença uma coroa todos os sábados em obséquio da glória de
de sua redenção, assim haviam de suar na presença de maternidade da Mãe de Deus, e em lugar do Padre-noèso
sua reforma". • rezarás a Salve-Rainha e, se assim o fizeres, te prometo o
meu adjutório.'
Talvez tenha sido nalguma casa de fandango^ quando "...e, por ser dada ahora, foi arémandada ao seu cárcere,
mulher da vida, em Minas Gerais, que Rosa tenha visto, ou ela sendo-lhe primeiro lida esta sessão que, por ela foi ouvida
própria bailado, a "dança dos minuetes", muito embora, já em e entendida, e as mais declarações que tem dado nesta
finais do século XVIII, o dicionarista Morais refira-se a este mesa, e disse que estava tudo na verdade, o que nelas se
divertimento como "dança antiga de passo vagaroso". Na época afirma e ratifica e torna a dizer de novo sendo necessário,
de.Rosa Egipcíaca, a coqueluche era o fandango, "dança alegre e que nelas não tem nada a acrescentar, diminuir, mudar
e algum tanto licenciosa, muito usada nas folias e brinquedos

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-.*»-
ou emendar, nem de novo quer dizer> ao costume, sob o inquisidores, as ditas visões ou revelações eram fenómenos
encargo do juramento dos Santos Evangelhos que outra reais, passíveis, portanto, de averiguação teológica se provenien-
vez lhe foi dado, ao que estiveram, presentes por honestas tes de Deus Nosso Senhor, ou ciladas do Demónio, posto ter este
e religiosas pessoas, que tudo viram e ouviram e promete- anjo decaído poderes quase infinitos de, na qualidade de Pai da
ram dizer a verdade do que fossem perguntadas debaixo Mentira, iludir com f ais as visões e hipocrisias até os verdadeiros
do mesmo juramento dos Santos Evangelhos, que também bem-aventurados. Para eles, portanto, se é quenãopodiam ainda
lhes foi dado, os licenciados Francisco de Souza e Rodrigo detectar a presença física do Diabo nos embustes desta ré, pelo
Ferreira Nobre, notários desta Inquisição, que ex causa- menos estava, confirmada a presença indireta do Maligno em
assistiram a esta ratificação e assinaram com a ré e com o sua vida, tentando-a, através de fingimentos, a revelar visões
dito inquisidor, e eu, Estêvão Luiz Mendoça, o escrevi. E,
indo a ré para seu cárcere, foi perguntado aos ditos licen-
sobrenaturais quando tudo não passava de "fingimentos e hipo-
crisias".
e
ciados ratificantes se lhes parecia que falava a verdade e Talvez porque aguardassem a chegada, da América Portu-
I. merecia crédito, e por eles foi dito que lhes parecia ser tudo guesa, das ratificações das testemunhas, talvez para castigar
- o que diz embustes e fingimentos, mas que falava verdade mais duramente a visionária com vistas a forçá-la a confessar,
enquanto ao que diz contra algumas pessoas, e tornaram pela fadiga e desespero da solidão, que todo o fantástico de sua
a assinar com o dito inquisidor, e eu, Estêvão Luiz Mendo- vida não passara de malicioso fingimento, deixam os inquisido- m
ça, o escrevi". res nossa pobre biografada mofando nos Cárceres Secretos um •
Ti.
A presença de testemunhas extras nesta quinta sessão
ano inteiro, entre maio de 1764 e junho de 1765, ficando seu
processo completamente parado, sem dignarem-se a chamá-la
s
tinha como objetivo auxiliar e corroborar o parecer do inquisidor para audiência. Tudo faz crer que os juizes eclesiásticos queriam
no julgamento, mais uma praxe da casuística do Santo Ofício na mesmo aquebrantar as resistências da ré pelo cansaço. Afinal,
busca de fidelidade a seu ideal de justitia et misericórdia. Os não havia cristão, novo ou velho, que suportasse um ano corrido,
dois notários confirmanvo_que desde o.início estava explícito na de inverno a inverno, sem sair da casinha, sabendo que sua causa
opinião das autoridades inquisitoriais: que are não passava de estancara nalguma das prateleiras do "Secreto".
uma embusteira, sendo fingidas e hipócritas todas as suas Cumpria-se, ao menos parcialmente, outra profecra da
pretensas visões, revelações e-graças que dizia ter recebido dos nossa beata: sofreria paixão mais dolorida que a de Nosso
céus. Não passava pela imaginação destes juizes eclesiásticos a Senhor, pois o julgamento de Jesus demorara poucos dias, m
l!
possibilidade de que tanto as "verdadeiras" como as "falsas"
visões eram ambas criações mentais de homens e mulheres com
enquanto o de Rosa se alastrou por anos seguidos. m
j A sexta e última sessão de Rosa Egipcíaca realiza-se aos 4

i patentes desequilíbrios mentais, hoje cabalmente diagnostica- de junho de 1765, na Segunda Casa de Audiências, pela manhã.
f dos pelas ciências da personalidade como portadores de diferen- Desiste o Inquisidor Carvalhal de instigar à ré que declarasse
tes manifestações patológicas, e, como tais, inocentes de qual- sua impostura, parecendo estar mesmo convencido de que a 9
. quer culpa ou responsabilidade formal, posto acreditarem pia- . teimosia da preta erairremovível, daí contentar-se em dizer, no
mente — uns que são Napoleão Bonaparte, outros, "cavalos" de início desta audiência: "Perguntada se é lembrada de mais o-
frenéticos orixás, "templos do Espírito Santo" e mensageiros de alguma coisa que haja de declarar a respeito do progresso de sua
recados enviados por Jesus Cristo, Nossa Senhora e demais
desencarnados celestiais. No juízo maniqueísta dos reverendos
vida..." *
Rosa não se alquebrara com o ano inteiro de confinamento

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com que a castigara seu inquisidor. Podia perfeitamente passar disseram estar vivo e necessitando de bálsamos, "extorquindo"
a negar tudo, declarando, como fizeram várias outras falsas vultosa soma, para este fim, do progenitor das meninas Arvelos
beatas antes dela, que só agora se dava conta, como dissera o — episódio j á referido anteriormente.
padre capelão, que toda sua fé não passara de um lamentável Procure o leitor visualizar, como se.fosse um cenário de
equívoco, um erro de interpretação, arrenegando o passado e teatro, o décor surrealista desenhado aqui pelo rico imaginário
acatando com humildade e como se fosse uma verdadeira bênção desta afro-brasileira:
a chance dada pelo Santo Ofício de confessar seu desvio da grei
da Santa Madre Igreja. . . . "Estando ela rezando, viu abrir a terra e, no interior
Nada disto aconteceu. A africana tinha padecido castigos dela, uma parede, e, sobre esta, três montes: um verde,
muito mais dolorosos, anos antes -— como os açoites no pelouri- outro encarnado e outro branco.. E logo ouviu uma voz que
nho de Mariana, a vela acesa debaixo da língua —, e nem assim dizia: 'Deus te salve, irmã amantíssima!', ao que respondeu
arrenegara sua fé inabalável no que julgava ver e ouvir da parte outra voz: 'Deus te salve amime atodos os filhos dalgreja!'
E outra voz disse: 'Assim como eu, no rio Jordão, disse
l de Deus Todo-Poderoso. "Deus castiga quem Ele ama", diz o
brocardo popular, e as Sagradas Escrituras estão repletas de Agnus Dei qui tollis peccata mundi, pax nos Domine [sic];
exemplos de servos de Deus que muito sofreram e foram exem- Ágnus Dei qui tollis peccata mundi, exaudi nos Domine;
plarmente castigados antes de merecerem as palmas da vitória. assim tu no rio Jordão do amor hás de dizer aos penitentes:
Santa TefesãlTÁvila el3ãntir3'oana~d>Arc, entre ouírõs muitos, Ágnus Dei, qui tollis peccata mundi, miserere nobis!'"
são bons exemplos de que, às-vezesr-até a-própria-cúpula da
Igreja cometia equívocos, queimando a segunda por herege e Na tradição cristã, o rio Jordão, principal manancial da
Palestina, é referido quinze vezes nas sagradas escrituras e tem
chegando a condenar por certo tempo os escritos da primeira,
rico significado simbólico não só por ter sido o local onde São
mas elevando ambas, anõlílnSFtarde, à glória dos altares. A
Joãobatizou Jesus Cristo, aquemchamou^TiusDeí—Cordeiro
persistência dlTMãdre Egipcíã~cá'êm declarar-se inocente situa-a
de Deus —, como também por terem sido as margens do Jordão
ao ladoxlaqueles.gr andes-santos-e santas cuj a-féiriabalável fê-los escolhidas pela patrona de Rosa, Santa Maria Egpcíaca, para
capazes de suportar crudelíssimos martírios para não trair suas viver e terminar sua vida penitente, tendo atravessado milagro-
convicções espirituais. A africana tinha fibras de aço! samente este rio, por sobre as águas, conforme testemunho de
F Não sabemos o motivo, mas nesta última sessão o notário
m Mendoça, que, desde 1763, vinha fazendo o papel de escriba
São Zózimo.
Nesta visão, Rosa confirma sua predestinação como Mãe
neste processo, é agora substituído pelo Padre Manuel Francisco de Misericórdia, título que lhe fora outorgado por Deus, ficando
Neves que, além de apresentar caligrafia mais difícil de ser Maria Santíssima somente com a invocação de Mãe de Justiça.
" decifrada, reconstrói mal e com redação às vezes incompreensí- Tendo dúvidas sobre o local para onde fora transportada,
vel os sucessos ocorridos na biografia de nossa Rosa Negra, no
último ano que antecedeu à sua prisão pelo comissário do Rio "perguntouuma das vozes:'Onde estava?'Respondeu outra
de Janeiro. -•: • • "
voz que estava sobre o monte da caridade, e a outra, sobre
Ela inicia esta audiência reconstruindo uma: visão ocorrida o monte da fé. E, correndo um véu branco, cobriu os montes
na festa de São João Batista, aos 24 de junho de 1761 — estando e ficaram uns vales que pareciam cobertos de neve. E,
ajoelhada ao lado do caixão do Senhor Morto na Igreja do perguntando uma das vozes se era aquilo neve, lhe respon-
Recolhimento do Parto, o mesmo Santo Cristo que ela e o capelão
m
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deu a outra que era orvalho do amor e que houvera de . Astuta e oportunista, a negra ladina tenta vincular sua
orvalhar os interiores dos penitentes". transferência para a Casa Negra do Rocio com as revelações que
dizia ter recebido em seus antigos êxtases beatíficos, identifi-
Também a neve fazia parte do imaginário cristão, sobre- cando os inquisidores como "zeladores da honra do Senhor". O
txido depois que Nossa Senhora fez nevar, em pleno verão início deste diálogo místico, quando o Todo-Poderoso declara
romano, revelando o local onde queria que fosse construída a
Basílica de Santa Maria Maioiy-ohra edificada por Sisto III e
tê-la presenteado com o "talento do meu amor, para amares a m
dedicada a Nossa Senhora das Nevesyno dia 5 de agosto de 440.
mim só", evoca o mesmo estilo e temática iniciados pela esposa
no Cântico dos Cânticos, e retomado pelo discurso barroco de m
Um.avairicia3íã7~criai3âr-nos-trópicos do Brasil, introduz a Santa Margarida Alacoque e sobretudo pela Doutora de Ávila,
paisagem europeia em seus delírios místicos. Quem sabe se Santa Teresa, entre outras místicas. Eis o diálogo do Divino
nossa ré não vira alguma nevasca em Lisboa nos quatro anos Esposo com a principal vidente do Sagrado Coração:
que aí passou, ou se alguma companheira de cárcere descreveu-
lhe como eram os campos nevados das serras portuguesas? Daí "Que tens tu a recear nos braços do Todo-Poderoso?
incluir a neve em seu imaginário místico. Como podia Ele deixar-te perecer no desamparo, à mercê
Foi durante o segundo semestre deste último ano no Rio de teus inimigos, depois de se ter feito teu Pai, teu Mestre,
de Janeiro, no quinto dia da novena preparatória da festa do teu Guia, desde a tua mais tenra idade, e dando-te contí-
Arcanjo São'Miguel, portanto aos 24 de setembro de 1761, que nuas provas da amorosa ternura do meu Divino Coração,
ela recebe outra importante revelação celestial: no qual, e não noutra parte, estabeleci tua atual e perpétua
morada? E, para mais te assegurar, dize-me que maior
"Depois de comungar, percebeu de seu interior uma voz prova queres de meu amor, e eu a darei. Mas, por que lutas
que dizia: 'Escuta-me! Pede aos anjos do trono que me dêem contra mim, que sou teu puro, verdadeiro e único amigo?!"
graças por ti enquanto tu [...] rezas os mandamentos.' E . L
depois que ela, ré, os rezou, continuojo^a voz dizendo: 'Os A semelhança, embora muito empobrecida, das visões de
três primeiros [mandamentos] que pertencem à minha Rosa com as da visitandina de Paray-le-Monialmanifesta-se não
honra te dou por talento do meu amor para amares a roim só nesta espécie de casamento místico, mas na transformação
só, Todo-Poderoso, e com. estes talentos irei por todo o.~ de certas imagens e elementos da própria natureza em símbolos
mundo.' E no último dia da mesma novena, repetindo-lhe sobrenaturais. O fogo, por exemplo, desde o Antigo Testamento
a mesma voz as palavras que ficam referidas do primeiro aparece em nosso imaginário ocidental associado ora à própria
dia, na mesma ocasião e da hóstia que estava para comun- manifestação da divindade, como na sarça ardente no Sinai, ou
III! gar, acrescentou as palavras seguintes: Tu serás a abelha" com as línguas de fogo em Pentecostes, ora como a própria
mestra recolhida no cortiço do amor, fabricareis o doce favo essência do mal — o fogo do inferno. Novamente é Santa Mar-
de mel para pores na mesa do celestial banqueteado, para
sustento é aumento dos seus amigos e convidados.' E,
garida Maria quem dá o exemplo, pois, certo dia, "estando diante
do Santíssimo Sacramento, apareceu de repente diante delauma
m
perguntando ao Senhor na oração o que queria dizer isto pessoa toda em fogo, dizendo que era um religioso beneditino 3
que ouvira, lhe disse o Senhor que era a sua confissão, e
que disto mesmo devia dar conta aos zeladores da honra
que penava no purgatório", o mesmo sucedendo a Rosa, que m
do Senhor, o que ela agora entende se verificar na confissão "no dia sétimo da novena do Nascimento de Jesus, em 1781,
que faz nesta Mesa." lido o ponto da novena, desceu ela a um lugar de fogo aonde

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da.' E chegando outro tropel de gente disse que eram as
viu um grande tropel de gente e uma voz que perguntou:
mulheres perdidas de todo o mundo. E [disseram]: 'Rece-
'Quem sois vós?' E lhe respondera:' TSTós somos os sacerdotes
be-nos por filhas, já que és empenho e desempenho da
[e tu] és empenho e desempenho da caridade do amor de
caridade do amor de Deus, empenha-te pela nossa salvação
Deus. Empenha-te por amor de nossa salvação e desempe-
è desempenha a nossa dívida' — o que tudo ela, ré, perce-
nha a nossa dívida"'.
beu, estando na oração, e dando-lhe um desacordo."
Como o próprio Cristo, também Rosa Negra desceu às
profundezas: "...Jesus Cristo, depois de morto e sepultado, des- De clérigos a prostitutas, incluindo os mancebos solteiros,
ceu aos infernos..." Madre Rosa Maria Egipcíaca da Vera Cruz era nomeada por
À imitação de outras tantas santas, entre elas Catarina de Deus como advogada e intercessora, resgatando-lhes não só as
dívidas adquiridas por seus pecados, mas funcionando também
Siena e Teresa de Lisieux, Madre Egipcíaca sempre revelou,
como "empenho da caridade do amor de Deus". Mais uma vez, o
além de grande devoção aos Ministros do Altar, particular
preocupação pela santidade das ordens religiosas masculinas, Onipotente ratificava a missão salvífica desta sua filha e amante
jejuando em diferentes dias da semana com vistas a este fim. predileta, em cujo peito pulsava o próprio Sagrado Coração e em
Nessa última revelação, patenteia-se mais uma vez sua missão cujo seio haveria de reencarnar-se após novo dilúvio universal,
salvífica junto ao clero, "desempenhando", isto é, resgatando, os redimindo definitivamente o género humano de seus pecados e
maus sacerdotes de suas dívidas no purgatório, servindo-lhes tiranias. A megalomania espiritual da negra devia provocar um
igualmente de empenho ou penhor para a glória celeste. A misto de desprezo e escárnio na mente das autoridades eclesiás-
familiaridade mantida por ela-com-mais de uma dezena-de- ticas que a ouviam, pois nem os santos mais categorizados da
sacerdotes regulares e seculares, desde que de meretriz tornou- hierarquia celeste almejaram tamanhos poderes e predestina-
se beata, certamente a estimulava a privilegiar os eclesiásticos ção. Anegra delirava, sua imaginação gr andiloqúente cavalgan-
em suas orações, dada a importância dos mesmos na condição do sôfrega com a rédea solta.
Esta é a última visão declarada por Rosa em seu processo.
de porteiros do Reino dos Céus e as constantes ciladas do
Registramos aqui suas derradeiras palavras no Santo Ofício —
demónio de que eram alvo. '> -
a última vez que é referida, antes de seu misterioso silêncio até
Por sua condição de ex-prostituta, Rosinha mantivera
hoje indecifrável. Acabara de descrever a visão daquele tropel
também íntimo contacto com homens e rapazes, seus clientes,
apavorante das "mulheres perdidas de todo mundo": "No referido
quando assistia nas Minas. Embora garantisse ter excluído por
ano de 1761 lhe sucederam muito mais coisas de que ao presente
completo a sensualidade de sua vida desde 1750, continuava,
se lembra — e, por ser dada a hora, lhe não foram feitas mais
entretanto, preocupada com tais pecadores que, pela dissolução
perguntas, e ai não disse, e, sendo lida essa sessão e por ela
de costumes junto às mulheres-damas, eram todos fortes candi-
ouvida e entendida, disse estar escrita na verdade e assinou com
datos ao fogo do inferno, Eis a continuação desta última visão:
o dito inquisidor, depois do que foi mandada para seu cárcere."
"Chegando outro tropel de gente, fazendo-lhe-a voz a O último ano de Rosa no Rio de Janeiro — 1761 — de fato
mesma pergunta, respondeu o dito tropel que eram man- fora marcado por sucessos prenhes de significado para sua vida
cebos solteiros, teus inimigos [dizendo]: 'Recebe-nos por mística, sendo alguns destes episódios altamente compromete-
filhos, porque nós corporalmente não reconhecemos por dores dentro da ótica da ortodoxia católica, daí ter sido muito
mãe. Já [que] és empenho da caridade do amor de Deus, acertada sua desculpa de última hora. Declarando não mais
empenha-te pela nossa salvação e desempenha nossa dívi-

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lembrar-se de "muito mais coisas", deixou de falar daquelas conseguinte, na rarefação dos sentenciamentos públicos é in-
cerimónias asquerosas, com salivas e cusparadas, com as quais questionável.
castigava as recolhidas incrédulas; omitiu todos os derradeiros Nos primeiros dias de 1765 a máquina inquisitorial fora
preparativos de seu recolhimento para transformar-se em "nau acionada de novo para a realização de outro Auto de Fé na capital
dos Sagrados Corações" quando do iminente dilúvio da América do Reino. Os preparativos eram trabalhosos, implicando a cons-
Portuguesa, etc,, etc. A amnésia de Madre Egipcíaca sobre tais trução de tablados, tribuna e assentos—destinados a numerosos
acontecimentos reais, ao lado de uma viva lembrança de suas oficiais do Santo Ofício, à família real e nobreza — e de um
visões e colóquios místicos ocorridos na mesma quadra, devem cercado onde ficavam confinados os penitenciados como gado no
ter reforçado, ria opinião dos inquisidores, como na dó leitor, a curral. Editais eram enviados a todas as igrejas e conventos do
impressão de que, de fato, esta energúmena selecionava em sua patriarcado informando a data da próxima cerimónia inquisito-
confissão, com esperteza e malícia, somente aqueles aspectos rial, proibindo que naquele dia fossem, feitos sermões. A única
que julgavabeneficiá-la, omitindo e esquecendo deliberadamen- fala eclesiástica devia ser a pregação solene no próprio Auto de
te tudo que pudesse prejudicá-la. Lapso da memória ou medo do Fé. Lembrava-se aos fiéis que "os Sumos Pontífices têm conce-
castigo? dido muitas graças e indulgências às pessoas que assistirem a
Inexplicavelmente, interrompe-se aí, aos 4 de junho de semelhantes autos". A presença do povaréu era desejada pela
1765, o processo da preta Rosa. Certamente os inquisidores já hierarquia eclesiástica, cumprindo assim tal encenação seu
tinham recebido, desde o princípio deste mesmo ano, as ratifi- escopo didático e intimidatório.
cações das testemunhas provenientes do Brasil, estando, por- Em 1765 são realizados três Autos de Fé em Lisboa: no
tanto, seu processo perfeitamente instruído para ser concluído. primeiro, aos 16 de fevereiro, apenas dois penitenciados ouviram
O porquê de sua interrupção, sem a sentença, é um enigma. Ou suas sentenças na própria sala do Santo Ofício, evitando assim
um mistério, para continuarmos no mesmo clima visionário a humilhação pública. A 7 de outubro tem lugar o segundo Auto,
deste período barroco. Retornaremos ao tema no Epílogo. agora nos Claustros de São Domingos: são apenas quatro os
O processo do Padre Francisco Gonçalves Lopes, entretan- condenados. E só no Auto de 27 de outubro que o ex-capelão do
to, seguiu seu curso normal: recorde-se o leitor que, após o Recolhimento do Parto ouvirá sua sentença.
despacho do Conselho Geral do Santo Ofício, datado de 16 de Desde 1761, quando 57 réus ouviram suas condenações,
outubro de 1764, ficou o velho capelão aguardando no cárcere Lisboa não assistia a tamanha concentração de réus de cons-
que sua sentença fosse promulgada no Auto de Fé a fim de ir ciência: quarenta sentenciados, dos quais, oito do sexo feminino.
cumprir seu degredo. Nestas décadas finais do funcionamento Era a ducentésima quadragésima quarta vez que se realizavam
da Inquisição, os autos públicos tornavam-se mais raros e inter- tais cerimónias na capital do Reino e a última a contar com
mitentes, tanto que ficará o ex-Xota-Diabos um ano completo, número tão elevado de presos. De fato, o Santo Ofício manifes-
já com sua sentença pronta, somente à espera de quorum ou de tava, após o advento pombalino, francos sintomas de decadência.
recursos materiais para ser marcada tal cerimónia. O último O Monstrum Horríbilem estava em seus estertores, e com este
Auto de Fé realizara-se em Lisboa aos 20 de setembro de 1761, Auto certamente ficaram várias celas do Cárcere Secreto deso-
sendo então penitenciadas 57 pessoas. O populacho devia estar cupadas para sempre.
saudoso departicipar destas cerimónias macabras. Ainfluência Como a maior parte destas cerimónias, também este Auto
do Marquês de Pombal no embaçamento do Santo Ofício e, por realizou-se na Igreja de São Domingos, sita a poucos passos do
3
Tribunal Inquisitorial. Era um dia de domingo, estando presen- m
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i-
te, além dos membros do Conselho Geral e da nobreza, grande demónios — os condenados à fogueira. Depois, outros
número de espectadores. Nalista dos quarentaréus que ouviram também de tocha, carocha e samarra, mas esta sem retrato
suas sentenças neste dia, estava lá o nome de nosso biografado: e sem demónios pintados, que eram os que evitavam o fogo
'Tadre Francisco Gonçalves Lopes, 75 anos, sacerdote secular e por confessarem depois da sentença; seguiam-se os presos
confessor, natural da Ribeira da Pena, morador do Rio de pela primeira vez e arrependidos, condenados a alguns
Janeiro, condenado por acreditar e espalhar os fingimentos de anos de prisão ou a trazer sambenito. Também eram
virtude de certa pessoa sua dirigida. Suspenso para sempre de levados na procissão as efígies e os ossos dos que tinham
confessar, exorcizar e degredado por cinco anos para Castro morrido nos cárceres, ossos e efígies que eram queimados
Mearim." ali. Vinham depois frades com crucifixos, os inquisidores e
Entre seus companheiros de cárcere, também sentenciados a massa geral do povo em procissão: a grande plateia!
na mesma ocasião, destacamos o prior do Convento Carmelitano "Depois de terem tomado os seus lugares, uns no estrado
da Vidigueira, condenado "por sentir mal do procedimento do glorioso, levantado na praça, para os inquisidores, os gran-
Santo Ofício", criticando e obstaculizando sua ação repressiva; des, a corte; e outros, na arena. Dizia-se então amissa. T Tm
vários sacerdotes condenados por defenderem proposições heré- demónio (sic) subia a um púlpito, improvisado também, e
ticas, inclusive o ateísmo; outros clérigos igualmente condena- fazia uma prática de louvores à Santa Inquisição, e por fim
dos por celebrarem missa antes da ordenação sacerdotal, outros liam-se as sentenças. Primeiro as daqueles que tinham
aindapor desrespeito à Santalnquisição. Nove bígamos ouviram morrido na prisão e depois as de cada um dos condenados,
suas sentenças lado a lado com o ex-diretor de Rosa, três dos sendo todos colocados bem em evidência diante dos olhos
quais se casaram a segunda vez quando-colpnos noJBxasil;_quatro dos espectadores-.- • —
cristãos-novos abjuram seus erros mosaicos. Dentre as mulhe-
res, além de uma judia do Rio de Janeiro, outras duas mistifi- UmAuto de Fé com tantos condenados—quarenta—devia
cadoras são punidas por "fingir visões, revelações e escrever certamente desenrolar-se por mais de um dia, pois, além da
doutrinas erróneas" — o mesmo crime de Rosa Egipcíaca. As celebração da missa e das cerimónias paralitúrgicas de absolvi-
"falsas santas" estavam em voga! ção dos réus e do sermão, só a leitura de uma a uma das quarenta
Eis uma descrição impressionista de um desses Autos de Fé: sentenças devia alastrar-se por mais de vimte horas — no caso
de o notário ser bastante lépido e gastar tão-somente meia hora
"No dia fixado, e depois de se ter anunciado aos quatro em cada declamação. Só a sentença do Padre Francisco constava
ventos do Reino o grandioso espetáculo a representar pela de vinte e uma páginas com aproximadamente vinte e quatro
Igreja, no Rocio (São Domingos) ou no Terreiro do Paço, linhas por página! Há notícia de Autos que passaram de dois
marchava tudo em procissão solene, emocionante. Na fren- dias, inclusive de alguns que tiveram de ser interrompidos e
te o estandarte de São Pedro Mártir e os domínicos, mo- transferidos para outro domingo devido às más condições climá-
nopolizadores da Inquisição. Custodiando os condenados ticas. As chuvas e tempestades sempre foram inimigas das
iam.osfamiliar.es do .Santo Ofício. Os sentenciadosiam, de fogueiras... O leitor interessado em conhecer, passo apasso, hora
baraço ao pescoço, tochas na mão, carochas ou barretes de a hora, o desenrolar de um Auto de Fé encontrará tal descrição
papelão, da altura de três pés na cabeça, e vestidos de uma naobraAInquisição em Goa, na qual seu autor,MbnsieurDelon,
samarra que tinha representado por diante e por trás o . relata fielmente tal cerimónia, posto ter sido uma das vítimas
retrato dospadecentes sobre chamas que se elevavam entre

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Çt
do Monstro Sagrado e, por conseguinte, percorrido o mesmo mas de comutação das penas a que haviam sido sentenciados.
caminho que os demais réus de consciência. Muito raramente deixavam os reverendos juizes de atender, ao
Após ouvir seu sentenciarnento público, restava ainda ao menos parcialmente, a tais pedidos de clemência, cumprindo,
Padre Francisco cumprir alguns trâmites e penitências antes pelo menos no final do processo, o slogan do Santo Ofício, Justitia
de sair — após quatro anos de cadeia — dos Secretos do Santo et Misericórdia: condenavam com o rigor da justiça, mas agiam
Ofício. Dois dias após o Auto de Fé, como todos os demais com misericórdia ao diminuir a dureza do castigo.
presidiários, teve de assinar o "Termo de Segredo", comprome- Aos.-20 de dezembro de 1765 o Conselho,Geral do Santo
tendo-se a nunca divulgar por palavras ou escritos tudo que Ofício dá magnífico "presente de Natal" ao Padre Francisco:
disse, viu e ouviu dentro deste santo tribunal. Sua.assinatura autoriza que continue a celebrar a santa missa "para consolo
neste documento é quase ilegível, refletindo a emoção ou o espiritual e ter com que viver..." O realismo deste despacho não
exaltado estado de nervos em que se achava, após ter sido alvo deve chocar as almas mais elevadas, pois nos séculos passados,
de recente humilhação e escárnio públicos. Comprometeu-se como já referimos alhures, um sacerdote podia perfeitamente .
também, como faziam todos os réus, a cumprir as penitências sustentar-se apenas com as espórtulas recebidas pela celebração
espirituais — um mero formalismo piegas, uma tentativa de da santa missa: uma missa simplex diária valia $320 réis,
"espiritualizar" o castigo, sobretudo considerando o status ecle- portanto, celebrando todos os dias, no final do mês poderia dispor
siástico deste prisioneiro. Devia confessar-se e comungar ao o sacerdote de 9$600 réis, soma mais que suficiente para um
menos quatro vezes ao ano, nas principais festas litúrgicas, rezar confortável passadio. Observe-se que, em seu requerimento, o
um terço por semana, e todas as sextas-feiras recitar cinco velho capelão não pede autorização para voltar a confessar nem
Padre-nossos e cinco Ave-marias emhomenagem às cinco chagas a-exorcizar, atividades sacerdotais não remuneradas e, por isso,
de Nosso Senhor. Amém! demenorvaliaparaum velho despossuído de recursos materiais,
Teve ainda de arcar com as despesas de seu processo: 2$575 sem falar que foram tais ministérios a causa de sua atual ruína!
réis, quantia de pequena monta se lembrarmos que seu velho . Somente após cinco meses de seu Auto de Fé, aos 24 de
escravo, o cabra Brás, fora arrematado, por j51$3 60réis, e que, março de 1766, o ex-Padre Xota-Diabos vai cumprir o degredo
à época de sua prisão no- Rio de Janeiro, um saco de farinha em Castro Mearim. Inúmeros sentenciados do Santo Tribunal,
custava por volta de 1$20Ò réis, o de sal 1$600 e uma arroba de. desde o século XVII, eranxremetidos para este "couto" situado
carne bovina, com osso, mais ou menos 1$000 réis. Como trou- no extremo meridional do Algarve, inclusive alguns réus prove-
xera para os cárceres 6$400 réis em dinheiro, além de algumas nientes do Brasil, feiticeiros e mandingueiros em sua maioria.
quinquilharias em prata, certamente retiraram o que devia Coincide com a mesma época da partida do Padre Francisco
desta soma. Talvez restasse pouco'deste pecúlio, pois, tão adoen- para o degredo a chegada no Rio de Janeiro da cópia de sua
tado como era, deve ter gasto parte do dinheiro com remédios sentença. Fora enviada pelo Santo Ofício ao nosso, já conhecido
extras, ou alimentos especiais que às vezes o alcaide do Secreto Comissário Simões, encarregando-o de sua leitura "em um dia
era autorizado a comprar extramuros. festivo, à Missa de Terça, na Sé da cidade do Rio .de Janeiro,
O certo é-que, menos de dois meses após seu Auto de Fé, para satisfação do escândalo que causou".
P adre Francisco envia um ofício à Mesa Inquisitorial solicitando Não temos notícia de outro morador do Brasil que tenha
que se suspendesse aproibição de celebrar missas. Saiba o leitor merecido semelhante humilhação pública: a Inquisição queria
que mais da metade dos penitenciados por esse tribunal lançou mesmo cortar o mal pela raiz, e, se porventura ainda existissem
3
rnão deste, expediente, requerendo à Inquisição diferentes for- no Brasil alguns devotos dafalsáriaRosaEgipcíaca, certamente
l
th
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haveriam, de abjurar suas últimas resistências, atemorizados
cia. Transporte-se o leitor, se preferir, para os espaçosos claus-
pela leitura da dita sentença. Não havendo possibilidade de
tros do Convento de São Domingos de Lisboa, com toda anobreza
repetir-se o mesmo Auto de Fé de Lisboa no Ultramar, que ao
de cruz e espada reunidas, muito povo a uma só vez curioso e
menos todo o povo, que usualmente acorria para a principal sádico, tão impiedoso que naquele mesmo Edital de Convite par à
missa dominical, a das 9 horas da manhã, fosse exemplarmente o Auto de Fé, há pouco transcrito, além das muitas indulgências
admoestado com o castigo imposto ao ex-capelão do Parto.. prometidas aos "fiéis espectadores", exortava-se enfaticamente
Informa o Comissário Simões que, por estar enfermo o aos lisboetas "pertencentes a qualquer condição e estado, que
único notário do Santo Ofício residente no Eio de Janeiro, o Padre não escandalizem nem tratem mal por obras ou palavras aos
Félix José de Aquino, foi incumbido da leitura da dita sentença penitenciados que saírem do dito Auto, nem lhes chamem de
o Padre António José Vitorino de Souza, adjuntor da Sé. Informa sambenitados oxt algum nome afrontoso; antes, os encomendem
mais: que a dita sentença "foi publicada no Quarto Domingo da a Deus com muita caridade em suas orações, para que com
Quaresma — dia 9 de março de 1786 •—• no púlpito, em voz alta arrependimento e humildade cumpram suas penitências". Ob-
e inteligível, estando a Sé cheia de gente de todo estado e serve-se a similitude estilística deste documento com o recadi-
qualidade". . .. . nho que o Comissário Simões escreveu no canto da primeira
Quantos amigos do capelão do Parto e devotos de Rosa página da dita sentença, ao devolvê-la para ficar arquivada no
estariam presentes na Sé nesta ocasião? Teria o comissário Secreto do Santo Ofício, quando disse que na Sé do Rio de Janeiro
divulgado antes a sensacional novidade, a proclamação da inau- estava reunida "gente de todo estado e qualidade". Portanto,
dita sentença na missa de 9 de março? Que reação íntima e aqui e acolá, estavam presentes, para ver o Auto da Fé e ouvir
comentários teria o público manifestado-por-tão inédita-divul-
gação dos "crimes" dos fundadores do recolhimento das mada- alguns mais afoitos que lá iam cumprir um ritual clandestino,
lenas arrependidas? ; ' uma curiosa superstição que prognosticava sorte a quemlevásse
Salvo erro, insisto, foi esta a primeira e única vez que os alguma lembrancinha material do dito Auto, usando-a como
cariocas puderam.ouvir._uma_senté.nça_c.omple.ta de um réu.do ingrediente de um ritual heterodoxo e afrontoso à própria In-
Santo Ofício, muito embora certamente todo cristão devesse quisição, pois fazia dela, ou melhor, de seus pertences, matéria-
saber,, por ouvir falar, de testemunhas oculares que viveram no primapara'sortilégios diabólicos. O imaginário dos místicos não
Reino, como eram os temíveis Autos de Fé e suas respectivas tem limites!
sentenças. . . . . . . . . • -. • • Se o leitor preferir, em vez de ouvir a sentença do capelão
•Como não dispomos da sentença de Rosa Egipcíaca, posto do Parto no Auto de Fé de Lisboa, transporte-se para a Sé do
ter-se interrompido inexplicavelmente .seu processo antes do Rio de Janeiro, na época funcionando na Igrej a de Nossa Senhora
fí5ãI,'i3êâi5i5s"véJõía paxá transcrever integralmente a sentença do Rosário, situada a dez minutos de caminhada do recolhimento
do Padre Francisco, pois, além de sumariar todas as peripécias de Rosa. A igreja devia estar apinhada de gente para a missa
desta dupla de mistificadores, permite-nos outro mergulho no solene do Quarto Domingo da Quaresma.
interior do microuniverso-inquisitorial, desvendando sua lógica,
casuísmo e estilo. A verborragia, a forma e até acaligrafia desta "Na antiguidade cristã, este domingo era o dia das rosas:
sentença são praticamente as mesmas encontradas em milhares os cristãos se presenteavam mutuamente com as primeiras
f de outros processos deste tribunal que, segundo os estudiosos,
forneceu as.matrizes e apragmática de nossa atualjurisprudên-
rosas do verão.' Ainda hoje o Santo Padre benze, neste dia,
uma rosa de ouro, e a oferece a uma pessoa em sinal de

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particular atenção. Neste domingo os catecúmenos faziam cúmplices e os nomes dos locais onde se cometeram os desvios,
um juramento solene e eram recebidos no seio da Igreja, a fim de preservar o anonimato de terceiros. Embora f acihnente
representada pela Igreja da Santa Cruz em Jerusalém. os ouvintes logo identificassem aqueles cúmplices anónimos,
Mãe dedicada e amorosa, alegra-se a Santa Igreja ao pretendia o Santo Ofício, com esta pequena delicadeza, evitar a
receber os que serão lavados nas águas batismais." infâmia contra os demais figurantes, mesmo que também tives-
sem culpa comprovada. Afinal, a sentença condenava apenas
Triste coincidência: no domingo das rosas, enquanto nos um réu, e mesmo que tivessem agido em dupla, como era o caso
outros templos católicos tudo era júbilo e alegria, na Sé do Rio deste capelão, não era o momento nem o local de condenação de
de Janeiro proclamava-se à humilhante condenação do velho sua comparsa, a qual vem referida dezenas de vezes neste
sacerdote cuja culpa f ora ter propalado a falsa santidade deuma documento com o título de "confessada". Certamente que entre
Rosa Negra, que, de escrava e prostituta, pretendeu ser ámaior os presentes na Sé carioca estavam muitos vizinhos, ex-devotos,
santa dos céus. A epístola da missa deste dia parece ter sido amigos e inimigos de Rosa, todos conhecedores do capelão e da
encomendada especialmente para humilhar ainda mais a falsa fundadora do Recolhimento do Parto.
visionária iludida por seus delírios megalonianíacos: Ouçamos então a dita sentença:

"Irmãos: Está escrito que Abraão teve dois filhos: um da "ACORDAM os inquisidores, ordinários e deputados da
escrava e outro da mulher livre. O da escrava nasceu Santalnquisicão que vistos estes autos, culpas e confissões
segundo a carne, enquanto o da livre nasceu em virtude da do Padre Francisco Gonçalves Lopes, presbítero do Hábito
promessa. E o que diz a Escritura? Expulsa a escrava e seu de São Pedro, natural da freguesia do Salvador da Ribeira
filho porque o filho da escrava não será herdeiro como o da Pena, comarca da Vila Real, arcebispado de Braga, e m
filho da livre. Assim t^rabé-B^nás^3aejxsignãQs.^n,ão somos
filhos da_escraya, mas daJiy£e,,_pela-Jib.exáâde_da qual o
morador na cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, réu
preso que presente está.
e
r - .— 7)g "~~~ .
Por que demonstra que sendo cristão b atizado, sacerdote
e confessor, e como tal obrigado a ter e crer tudo o que tem,
Audácia de uma'ex-escrava africana pretender ensinar a crê e ensina a Santa Madre Igreja de Roma, e pelos
cristãós-velhos os caminhos'dá salvação! indispensáveis deveres de ;seu carãter e ministério, zelar
Tendo, portanto, como pano dê fundo tal décor, do alto do a honra de Deus, apurezadaDoutrina e o culto da Religião,
púlpito, o citado Padre António José Vitorino de Sousa vai iniciar ajustando os seus passos pela luz da Fé com a simplicidade
dentro de alguns instantes a leitura da sentença do ex-capelão e prudência indispensável de guardar a vinha do Senhor,
do Parto. Silêncio total: sua voz "alta e- inteligível" devia ser procurar com todas as suas forças dar não só saudável e sã
ouvida até na rua, onde a gentalha se acotovelava para escutar doutrina, .mas ainda provendo e examinando os espíritos,
a palavra do Santo Ofício. Nunca o Monstro Sagrado estivera reprovar a falsidade e promover a verdade deles, de modo
tãcf preséntèrno Rio de Janeiro como neste inesquecível domingo que a. ilusão e malícia não desfigurem a belíssima imagem,
— 9 de março de 1765. • da virtude, nem corrompessem a infalibilidade do dogma.
O texto da sentença é, às Vezes,-rebuscado-, exigindo mais Ele fez pelo contrário, e de tempos a esta parte, persua-
de uma leitura para sua compreensão. Seguindo a tradição dido da mais culpável desordem de sua violenta paixão,
' jurídica inquisitorial, o único nome citado na sentença era o do faltando-lhe o conhecimento e luzes necessárias para o bom m
réu, omitindo-se escrupulosamente a identificação dos demais
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LS.

exercício da grande arte da direção de espírito, tomou sobre pessoa, no qual estava também a Santíssima Trindade, que
os seus ombros o peso insuportável de dirigir a uma pessoa muitas vezes falava pela boca da referida confessada, a
sua confessada, que maliciosamente ilusa envolveu no qual vira na circunferência dapartícula, quando ia comun-
mesmo vício ao réu, o qual devendo conhecer a tenuidade gar, a alma de certa pessoa, que declarou abençoada na
das suas forças e retirar-rse do precipício a que caminhava mesma ocasião e lugar em que a. via.
voluntariamente, fabricou a sua ruína, aprovando não só Constou mais que no Oitavário dos Defuntos, estava a
os embustes, fingimentos e hipocrisias da dita pessoa, mas referida pessoa confessada fazendo vários- gestos, e ações
ainda persuadindo-os e publicando-os com bem sensível insignificantes, dizendo palavras: 'Sobe, sobe!' e'pergun-
prejuízo da seriedade que pede a vida devota, até que tando uma pessoa ao réu, que também se achava presente,
chegou ultimamente a ofender a santidade da Lei e. a que queria aquilo dizer, respondera ele que. eram as almas
' pureza da doutrina. • que a dita confessada estava mandando para o céu, porque
Porquanto, houve informação que sendo o réu confessor naquele tempo ela salvava um grande número delas. E
de certa pessoa, que tendo edificado um recolhimento e ao também disse que a referida pessoa sua confessada havia
qual presidia, a mesma pessoa espalhava revelações pre- de padecer os mesmos tormentos que Cristo Senhor Nosso
judiciais ao sossego e quietação pública, e destrutivas dos padeceu, na sua sagrada e dolorosíssima paixão, sendo
mistérios da Religião, porque assinava dia certo em que presa, esbofeteada,' escarnecida e açoitada, porém que dois
Ur
havia de haver novo dilúvio universal, do qual só escapa- anjos lhe haviam de assistir para a confortarem, cuja
riam as pessoas que se recolhessem à igreja daquele reco- crença ele procurava persuadir a certas pessoas.
]himento,' e depois o Divino Verbo-h'avia-de-encarna2x.em. -Gonstou^mais-que-ehegando-a-notícia dos estragos que -
uma das pessoas do dito recolhimento para nova redenção nesta cidade causaram o terremoto, e fazendo-se na terra
do género humano, 'cuja.sediciosa e errónea profecia não em que o réu assistia algumas procissões de penitências
s ó acreditou, m a s espalhou o réu. . • - • . - . públicas, a referida pessoa sua confessada mandara fechar
Constou mais, :que fingindo-se a referida pessoa vexada as janelas do Recolhimento e entrando com as mais reco-
de espírito mau, a que dava o nome de Lúcifer, e sendo lhidas a dizer o salmo Miserere, com disciplina, ela de
todos os excessos que obrava por causa de sua simulada quando em quando dizia as palavras: 'Ainda não está
vexação, o zelar a decência:e culto dos Templos do Sacra- perdoado!' E perguntando-se ao réu que dizia ela naquelas
mento da Eucaristia,. não consentindo ações, .naqueles palavras, ele respondera que a ira e vingança divinas ainda
lugares, quenão fossem próprias de uma religiosa devoção, não se achavam satisfeitas. ••
nem pessoas que se reputassem por pecadores públicos, o Constou mais que o réu dissera que Bestando orando a
seu fingimento a levava à imprudência de com palavras e referida sua confessada, em um altar de Nossa Senhora,
açóes descompostas, querer separar;dos referidos lugares lhe apareciam três corações, que ela conheceu serem dos
as ditas pessoas, o que o réu atribuía a.espírito do zelo de Santíssimos Jesus, Maria e José, e depois mais dois, que
Deus, veneração-e reverência das igrejas.- - •.•-••' —• se lhe revelou serem de Santana e São Joaquim, em obsé-
Constou mais que o réu dizia da referida confessada que quio de todos os cinco corações ela edificara o dito recolhi-
ela falava com o Menino Jesus, que tendo-o sempre consigo mento, obra tão agradável a Deus que o mesmo Senhor lhe
rio regaço, ele se resolvera a fechá-lo num oratório, e prometera em prémio as suas sacratíssimas cinco chagas,
levando a chave, tornara a achá-lo no regaço da referida e mandando-se em memória deste acontecimento fazer um

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ramalhete de prata, com cinco corações, selhe ajuntou mais pelo que estava fechado em ura cárcere com sete chaves,
outro, que mostrava ser da dita confessada. de que era carcereiro um Demónio e que lhe pedira man-
Constou mais que na presença e com aprovação do réu, dasse dizer pela sua alma quarenta missas. E fazendo-se
diziam a Deus algumas orações em que ofereciam ao paralelo das virtudes dela, com as de Santa Teresa, dizia
mesmo Senhor os merecimentos da referida sua confessa- que esta, em comparação daquela, era uma menina de sala.
da, para intercessora das graças que se pediam; e também Constou mais que dissera o réu que à referida sua
havia oração peculiar para a saudar quando a encontras- confessada viera do céu uma jóia e prenda preciosíssima
sem, á. qual era: Deus vos salve, Fulana santa, esposa de que lhe fora entregue pelo Arcanjo São Miguel; que ela
Deus amada, pois em vós está o Divino Sol Sacramentado, tinha trato familiaríssimo com Deus, que lhe tinha revela-
trono dessa mesma divindade, sede minha intercessora e do muitas coisas; que no seu peito estava o Senhor Sacra-
advogada agora e sempre, na hora de minha morte. mentado;, e que quem injuriasse a ela, fazia o mesmo ao
Ofereciam-lhe incenses, mandava o réu que se confes- Senhor porque tinham trocado os Corações; que Maria
sassem a ela e lhe tomassem a bênção, porque era a fonte SantíssimajásenãointitulavaMãedaDivinaMisericórdia
da graça, e em nome dela quando fazia os exorcismes, e só Mãe da Divina Justiça, por ter dado aquele título à
mandava aos Demónios que deixassem as criaturas; rezan- dita sua confessada; que ela depois da Sagrada Família era
do-se o hino Au e Afaria Stella, chegando-se às palavras a maior santa e tinha impressas no seu corpo as cinco
Monstra te ésseMatrem, aprovava o réu que se inclinassem chagas e coroa de espinhos, e que a alma de certa pessoa
a cabeça para a referida confessada, que dizia: 'Se fossem que dizia se tinha condenado, não havia de ir para o céu
boas filhas, mostraria que era boa Mãe.' E todas estas, e sem primeiro ir a da dita confessada.
outras coisas queria o réu se conservassem em o mais Constou mais, que o réu mandou fazer uma cruz de pau,
inviolável segredo, persuadindo-o com exemplos sensíveis, mais especial, e um báculo de metal prateado, e se dizia
porque mandava acender duas velas e pegando duas pes- ser a cruz para a confessada, quando saísse ànovaredenção
soas uma-em cada vela—as-viravam- acesas-para-baixo: até do mundo, e o báculo para o réu, que.estava destinado para
se apagarem, no que inculcava a condenação eterna. seu coadjutor, e que também pedira certa quantia de O
Constou mais que o réu dissera que a ré referida sua dinheiro para comprar bálsamo a fim de.embalsamar a
confessada tinha quatro filhas que eram quatro evangelis- imagem do Senhor Morto que estava em certa igreja,
tas e estavam iluminadas e viam todos os favores que do porquanto lhe dissera sua confessada que ainda que o
céu se faziam à dita confessada, e haviam de escrever um Senhor.representava estar morto, na realidade estava vivo
grande mistério. Que depois de um grande castigo, que naquela imagem. ,
havia de vir ao mundo, haviam de aparecer duas naus em Ultimamente, depois de outros mais desvarios, a que o
uma das quais viria el Rei Dom Sebastião, e na outra se réu se persuadiu, mandou fazer um retrato da dita sua
salvaria a sua confessada com as mais pessoas, e fora das confessada, que tinha-o Menino Jesus no peito, um rosário
qúé tivessem êin si ãs"ditas naus, todas"as maismorreriam. em uma mão, e na outra uma cadeia de prata que prendia
Que escrevendo ela um livro grande/ que queimou por a uma pessoa, metida e abrasada em chamas, cujo retrato m
. ordem de um s"èú confessor, falecendo este, e condenando-
. se pela dita culpa, aparecera depois a ela, dizendo-lhe tinha •
esteve por algum tempo à vista das gentes.
Pelas quais culpas, sendo o. réu preso nos cárceres do
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sido o Judas daquele mistério, que estava escrito no livro, Santo Ofício e na Mesa dele admoestado com a mais viva

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m
caridade, para que separando de si toda a consideração e Por causa desta credulidade, acompanhou o réu a refe-
respeito que se embaraçasse, a fazer uma sincera confissão rida pessoa, fazendo-lhe as despesas de urna dilatada
de sua culpa, dissesse toda a verdade dela, porque de outro jornada, procurando-lhe um diretor, que considerava douto
modo não conseguiria aquela piedade que esperava, riem e inteligente. Passados tempos, a deixou naquela terra até
a sua causa teria o bom fim que ele desejava, além de que ao depois foirogadopelo mesmo diretor, para que viesse
agravar mais a sua consciência com a mentira e engano. assistir para ela, pois assim o pedia o bem. da salvação das
Disse quê só a verdade diria, porque o desejo de désen- almas. E levado ele do espírito da caridade, desamparando
carregar a sua consciência o tinha feito recorrer a Deus, todos os seus interesses temporais, veio, e achando já a dita
para'alcançar do mesmo Senhor a graça de conseguir pessoa em um recolhimento, nele entrou a fazer as vezes
aquele fim. Confessou que achando-se ele fazendo os exor- de capelão, e soube que ele fora edificado em memória dos
cismes a uma pessoa, e estando também presente aquela Corações de Jesus, Maria e José, São Joaquim e Santana,
que ao depois foi a" causa de todo o seu engano, na mesma por haver tido uma visão deles a referida pessoa, e em seu
ação fez algumas visagens, pelo que se capacitou ele, réu, obséquio mandou fazer um ramo de prata que compreendia
de que ela estava vexada e pedindo-lhe fizesse também os os ditos corações. ,
exorcismes, ele assim o fizera e continuara por mais vezes, Confessou mais, que estando já no referido recolhimen-
vendo ainda que ela dava nome de Lúcifer ao espírito que .to, foi persuadido pela dita pessoa, :para que rezasse o
a vexava, é que fazia algumas ações violentas para zelar a Rosário de Santana, e em algumas ocasiões em que nele se
decência e respeito dos templos, fazendo que deles saíssem faziam novenas, a que o réu assistia, incensava as imagens
as pessoas que assistiam compouca~devoção e irreverênciar - —e_.entre-elas,,a uma.-que-.estaya na parede do coro, junto da
Confessou mais que continuando naquela credulidade qual estava a dita pessoa, que oferecia uma imagem de
por tempo dilatado, veio a confirmar mais nela — não Cristo Senhor Nosso que trazia ao pescoço, e ele também
obstante ter ouvido que a referida pessoa fora castigada a incensava, sendo este só o seu ânimo e não o de incensar
publicamente pelos 'seus embustes— depois que por auto- àreferidapessoa, como sepoderiam capacitar algumas das
ridade de superior legítimo, se examinara por pessoas assistentes. . - . ....
doutas a verdade ou fingimento daquela vexação, o que ele, Confessou mais, que muitas vezes lhe dizia a dita pessoa
réu, assistiu e em que viu fazer a experiência de deitar"a favores particulares que recebia do céu, o que ele acreditava
dita pessoa a língua fora da boca dois ou três dedos, è pela boa opinião que fazia dela, e em uma ocasião, vendo-a
aplicando-se-lhè debaixo dela, por ele mesmo, réu, unia dançar e fazer ações descompostas e torpes, repreenden-
vela acesa pelo espaço em que se rezou uma Ladainha de do-a, lhe disse ela que o espírito que a vexava a obrigava
Nossa Senhora, a Salve-Rainha e cinco Credos, não expe- àquelas ações, por altos juízos de Deus, a fim de mostrar
rimentou a dita pessoa estrago algum do fogo; do que às pessoas que estavam presentes, que naquelas danças
tiraram argumento da verdade de sua vexação, e neste intervinha o espírito mau.. -,. • .
conceito sé- firmou mais• ele,~réu,~não obstante-saber se . Disse mais, que referindo-lhe certa pessoa a repre-
repetiram os exames em que ela foi declarada'por embus- sentação que tivera, .estando na oração, de ver a confessada
teira e fingida, e aos quais ele não foi assistir, por lhe dizer do réu livrando dois Demónios a.uma recolhida, prenden-
a mesma pessoa, a quem eleja cegamente acreditava, que PA
do-os com o rosário e.metendo-os debaixo dos pés, ele, réu,
assim era vontade de Deus.- t"r mandara na mesma forma pintar a dita confessada, em
k

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memória daquela ação, bem que logo acautelara que não
dissera: 'Ministro, por que não tens cópula com esta cria-
fizesse pública a dita pintura. Que muitas vezes mandara
tura, pois já que muitos se metem no inferno, por dizerem
dizer missas por almas que ela lhe dizia estavam no
falsamente que andas com ela amancebado, faze os seus
purgatório e lhe tinham pedido aqueles sufrágios, como
ditos verdadeiros, para que se não condenem/ Porém,
também por ordem da.mesma mandara fazer um báculo, repetindo os mesmos esforços, ela se retirou, sem o réu ficar
o que se principiara e não se completou, não sabendo ele, desabusado dó antigo conceito.
réu, o fim para que era, posto presumir ser para a imagem Disse mais, que por causa dos mesmos errados princí-
de um bispo santo. pios, acreditava as maravilhas do recolhimento-, em que
Disse e -confessou mais que acreditando este e outros estava a sua confessada, querendo por ela lhe dizer que do
fatos da mesma -qualidade e que todos se encaminhavam iminente castigo que estava para vir àquela terra, se
ao fim de contemplar a grande justificação da dita pessoa, salvariam as pessoas que nele se refugiassem, o qualhavia
por este respeito e pelo de alcançar mais almas para o de ser buscado de muitas e grandes pessoas, por 'se lhe
serviço de Deus, os publicara, chegando algumas vezes, haverem de conceder as indulgências das Estações de
sendo contestado, a defender com maior teima e adesão, e Jerusalém, Roma, e Santiago da Galiza. Que consentia
ainda depois de preso, mandando-se, queixar a referida tomassem a bênção à dita confessada, de quem chegou a
pessoa dos trabalhos em que se achava, e a que o tinham afirmar que trazia no seu peito o Coração de Cristo, e ele,
conduzido os seus fingimentos, ela o mandara confortar réu, a trazer em grande veneração um dente dela como
com a esperança de bom livramento que havia de ter, e relíquia preciosíssima; porque enfim a sua cegueira e
conformidade ria vontade de Deus, o que produziu então credulidade não o separavam daqueles princípios.
nova credulidade nele.
Continuaram-lhe as mais sessões, e porque o réu não
Porém que hoje conhecendo a grande misericórdia com
fazia inteira e satisfatória confissão das suas culpas, fal-
que Deus o tinha favorecido, permitindo a sua prisão no
tando a declaração do ânimo com que as cometeu, veio o
Santo. .Qficio,_aonde.. já desenganado, dos fingimentos e
promotor fiscal do Santo Ofício contra ele com seu libelo
embustes daquelapessoa, detestatoda a ímpia credulidade criminal acusatório, que lhe foi recebido si et inquantum,
que lhe granjeou o seu engano, conhece a sua culpa, a que e ele o contestou pela matéria de suas confissões, 'e não
também deu causa a sua ignorância e a aprovação que vindo corn defesa, foi dela lançado e sendo citado para se
faziam daquele espírito enganador, pessoas conhecidas por lhe dar a copia da prova da justiça, não quis vir- com
doutas e virtuosas. Pedia que, atendidas todas estas con- interrogatórios, e havendo as testemunhas pós-repetidas,
siderações, se usasse com ele da piedade inseparável da de seus'ditos, se lhe fez publicação na forma do estilo do
Igreja. . - . :....,•-. . . . .. Santo Ofício, a que não veio com contraditas, e sua causa
Fizeram-se as sessões do estilo, e sendo examinadospela se processou até final conclusão.
matéria da prova da justiça e suas confissões, disse mais O que tudo-visto e o mais que dos autos consta e
que acompanhando^ a- referida pessoa .em~uma..jornada ponderações que na matéria sé tiveram, mandam que' o
dilatada, de noite, sentiu que ela estava na sua cama, réu, o Padre Francisco Gonçalves Lopes, em pena e-peni-
provocando-o para o cumprimento da sua torpeza, e resis- tência de culpas,'vá ao Auto Público da Fé na-forma
tindo-lhe ainda com as forças corporais, a lançou fora da costumada, nele ouça sua sentença, e o suspendem para
cama, pondo-lhe preceitos, e ela, fingindo a vexação, lhe sempre de confessar e fazer exorcismes, e degradam por

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tempo de cinco anos para o couto de Castro Mearim, e que, Como todos os demais episódios das biografias de Rosa
para satisfação do escândalo que causou, lhe seja lida sua e do Padre Francisco, também a leitura desta sentença não
mereceu qualquer registro documental no Rio de Janeiro, a
sentença em um dia festivo à Missa de Terça, na Sé da
não ser o encontrado no processo n2 2,901 arquivado na Torre
cidade do Eio de Janeiro. E terá penitências espirituais e
do Tombo de Lisboa, daí ter ficado até hoje completamente
pague as custas. inédita a vida rocambolesca da verdadeira fundadora do Re-
Assinado: Joaquim Jansen Moller
colhimento de Nossa Senhora do Parto. Podemos conjecturar,
Luiz Pedro de Britto Caldeira."
com bastante probabilidade de acerto, que, durante, o ano
de 1766 e nos anos seguintes, o "Escândalo do Parto", nota-
A multidão presente na Sé do Eio de Janeiro deve ter
damente o castigo de seus dois protagonistas, Rosa e o
respirado com alívio, ao ouvir, no final da sentença/a condenação
capelão, tenha sido motivo para muita conversa, fuxico e
do velho Xota-Diabos a tão-somente cinco anos de degredo lá
diz-que-diz, sobretudo levando-se em conta que lá estava, no
mesmo em Portugal. Castigo relativamente brando, dada a
local de sempre, o mesmo beatério palco de tais escândalos.
gravidade de sua culpa, pois incluía idolatria, heresia formal e
O certo, porém, é que o tempo encarregou-se de sepultar essa
práticas religiosas proibidas, sem. falar no charlatanismo e
simonia. Em termos de ameaça social, parecem-nos mais graves história tão fantástica, silenciando-se até hoje a memória oral
os delitos deste velho sacerdote e de sua beata, com consequên- de tais episódios dramáticos.
Voltemos, porém, à Santa Inquisição de Lisboa.
cias sociais funestas à Santa Madre Igreja, do que os rituais e
Poucos dias após a leitura, na Catedral do Rio de Janeiro,
crenças de alguns cristãos-novos e cripto-judeus do Brasil, ^que,
mesmo tendo praticado sua crença na lei" ^eMbTsês,"sem prose"
te, Padre Francisco Gonçalves Lopes deixa a Casa do Rocio, a
litismo aberto, sofreram contudo castigos muito mais cruéis,
caminho do couto de Castro Mearim, local onde deveria cumprir
alguns chegando mesmo à pena de morte na fogueira.
- < Mesmo que o castigo: imposto ao capelão embusteiro e o degredo de cinco anos. Após quase mil dias e noites nos cárceres
mistificadorpúdessetefsido-consideradabrandoTor-alguns-dos inquisitoriais -—• dois anos e sete meses — o simples ultrapassar
dos portões desta lúgubre prisão e rever a luz do -sol, o horizonte
ouvintes, a leitura pública de sua sentença cumpria o objetivo
hátanto perdido e o ar puro da liberdade, mesmo que condicional,
primordial dafpedagogjjijn^uisj^^ aos
mjisousâdaS-exêZãlcitrantes, para^uejQjLa^â^s^ueçesgem que deve ter provocado fortes emoções no coração e físico debilitados
o^an±aJOiíeio-Gontinu-avarativ.o_e_atuante-B-a--per.seguição aos deste ancião septuagenário.
Não informa a documentação o meio de transporte utilizado
desviantes, fossem eles- quemjpssem — um sacerdote reinol ou -.«r

í embora afogueirafossecadavezmenos pelo clérigo degredado para vencer as quase 50 léguas de dis-
tância entraLisboa e Castro Mearim. Dada sua debilitada saúde,
acesa, outros castigos humilhantes continuavam a ser aplicados:
o mais provável é que tenha sido transportado por via marítima.
o confisco dos bens, a prisão nos medonhos cárceres do Bócio, a
Uma semana após sua partida, a 1a de abril, o notário do couto
humilhação do auto público de fé, o degredo, atingind9 também
dos degredados envia à Inquisição o atestado de sua chegada.
os familiares dos réus, que ficavam inabilitados para ò exercício

t
Este couto não passava, na época, de uma fortificação
.1^ de cargos de destaque no funcionalismo público e nas varas
militar construída em derredor de um antigo castelo da época
eclesiásticas. Tudo isto persistia e devia apavorar "gente de todo
de Afonso III (século XIII), cercada por poderosas muralhas com
estado e qualidade", perpetuando o respeito e temor devidos ao
quatro imponentes torres voltadas para o mar. O clima úmido
Santo Tribunal, da Fé.

í 718
719
Gerais e de outras capitanias da América Portuguesa. Entre
da maresia, o vento constante e quiçá as más condições alimen- eles, o abastado "mineiro" Manuel José de Carvalho, mecenas
tares agravaram a frágil saúde do velho capelão, tanto que responsável pela construção do principal templo local. Observe
encontramos apenso a seu processo um atestado médico do Dr. o leitor esta coincidência: nesta mesma localidade nasceu o
António Pereira B arreto de Menezes, bacharelpela Universida- Major Domingos José Teixeira de Pena, pai do nosso Afonso
de de Coimbra, datado de 20 de julho do mesmo ano de 1766, no Pena, sexto Presidente do Brasil.
qual informa aos senhores inquisidores que, desde sua chegada,
o exilado tem andado sempre doente, "com febre, fastio, prostra-
ção e rebeldia notável da natureza". •
Apesar do quadro tão lastimável, os inquisidores fazem, Notas
ouvido moueo. Passado quase-um ano^ aos 12 de maio de 1767,
o réu encaminha novo requerimento no qual outro médico
ratifica a informação sobre'o' agravamento de seus achaques, 1. Alacoque, Margarida Maria. Op. cit., 1985, p. 58.
informando que o clérigo padece de doenças perigosas, conforme 2. Idern, ibidem, p. 70.
atestado em anexo, tendo sido preciso interná-lo na Santa Casa 3. ANTT, Inquisição de Lisboa, Manuscritos da Livraria, Pasta 42.
de Misericórdia de Castro Mearam, depois na de Tavira, vila 4. Anónimo. A.Inquisiçao: Enciclopédiapelalmagem. Porto: Lello, s.d.,
algarvina limítrofe, "encontrando-se no mais completo abando- p. 52.
no, posto faltar-lhe forças par a pedir esmolas para seu sustento". 5. Deon. Op. cit., 1688, pp. 246 e ss.
6. Mott, Luiz. Justitia et Misericórdia: A Inquisição Portuguesa e a
Triste fim de um "operário da messe de Nosso Senhor"! No final Repressão ao Nefando Pecado de Sodomia. Op. cit., 1990.
deste requerimento, o infeliz sacerdote pede, pelo amor de Deus, 7. Varnhagen, P. A. Excerptos de Várias Listas de Condenados pela
autorização para cumprir o resto de seu degredo na Beira, sua Inquisição de Lisboa, desde o ano de 1711 ao de 1767, Compreen-
região natal, desejoso de recuperar seu património familiar, dendo só os Brasileiros ou Colonos Estabelecidos no Brasil. Revista
posto que há mais de quarenta anos não usufruía lucro algum do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo 7, 1845, n. 25,
de sua herança paterna."~~" •- • ^-~ — —.-...-. pp. 54-86.
Misericordiosos, os inquisidores do Conselho .Geral do-San- 8. Keckeisen, DomBeda. Op. cit., 1954, p. 176.
to Ofício dão-lhe despacho favorável. Aos 19 de maio de 1767, 9. Epístola aos Gaiatas, 4:22-31,
dia de Santa Prudenciana, a' Inquisição perdoa o réu Padre
Francisco Gonçalves Lopes do restante de seu degredo, autori-
zando-o ã viver na parte quê melhor ]he conviesse dentro do
Reino, proibindo-lhe todavia-retornar ao Ultramar,, restrição,
aliás, imposta comumente a outros penitenciados, para impedir
o ressurgimento da erronia nos lugares onde havia medrado.
Se de fato voltou o Xota-Diabos para sua terra natal, a
Ribeira da Pena, não o sabemos. Só uma pesquisa gigantesca
nos registros de óbito daquela região poderia esclarecer a data
e.o local de seu passamento desta para'melhor..-Caso tenha, de
fato, retornado a seu torrão natalício, certamente se encontrou
com. outros" luso-brasileiros, como ele, retornados das Minas

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Epílogo

Por mais de dois séculos, Rosa Egipcíaca ficou esquecida; sua


vida fantástica e obra prodigiosa completamente desconhecidas
dos historiadores ou de quem quer que seja. Resgatamos sua
história. O fim de seus dias, contudo, continuará envolto em
mistério. " '. • "
O recolhimento de Nossa Senhora do Parto, por elafundado
em 1754, palco principal de inúmeras visões e êxtases sobrena-
turais, tem sua história registrada em diferentes fontes, todas
omissas quanto ao nome de sua verdadeira fundadora que,
envlãarã para oSanto_-Oíicio_em.__1763.^p_assou literalmente da
cõlí3içaõ~3ê"ííHbelhaMestra" à constrangedor a figura de "Ovelha
Negra", cuja memória melhor convinha esquecer.
Já em T7S7 o recolhimento estava bastante arruinado,
sendo restaurado'por ordem do Vice-Rei Dom Luiz de Vascon-
~ cellos~e-Sousa-,-"tendo-como-mestre-de-obras- o-farnoso artista_
carioca Valentim. Aos 24 de agosto de 1789, violento incêndio
destruiu p arte deste imóvel, sendo contudo rapidamente recons-
truído a poucos meses do sinistro. Em 1812 deixou de ser
beatério: algumas das poucas recolhidas que aí se alojavam
í foram, transferidas para a Santa Casa de Misericórdia, trans-
formando-se a partir de então o "Sacro Colégio", fundado por
Rosa Egipcíaca, em Hospital da Ordem do Carmo, assim funcio-
nando por mais de meio século, até 1870. Desde então o Parto
passa a sediar o Instituto Vacínico, a Junta de Higiene e a
Inspetoria dos Portos, e, a partir de 1874, a Academia de
Medicina. Em 1884 ocupa este mesmo imóvel o Arquivo Público.
Em 1906, com. o alargamento da rua da Assembleia e, posterior-
mente, com a abertura da avenida Rio Branco, o antigo Recolhi-
mento do Parto teve parte de seu edifício sacrificado, até que em
1954 a Mitra do Rio de Janeiro autorizou _sua demolição, sendo
em seu lugar erguido o moderno arranha-céu, no topo do qual
reside uma comunidade de jesuítas. O andar térreo deste^prédio
foi transformado em Igreja de Nossa Senhora do Parto, um

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grande salão com porta de ferro,, tudo tão despojado que a cronológico desconhecido fica aberto à .elucubração -do s dev.otos
maioria dos transeuntes não se da conta tratar-se de um templo mais .místicos, tal qual recentemente vem ocorrendo com a
católico. Esta igreja é a última lembrança de uma capelinha famigerada Escrava Anastácia, possuidora de incontável núme-
eretatrês séculos antes, em 1653, transformada emrecolhimen- .ro de ardorosos devotos, -com templo e federação de culto a. ela
to no ano do Senhor de 1754, arrasada pelo progressojurbano dedicados, cpmm.a^de:umjj^rojtxaxrjajxd^d^alhadamente toda
:em 1954, exatamente dois1 séculos após o lançàmôntojsolene de sua vida de princesa africana violentada por seu senhor branco
sua pedra fundamental qúé, poríevelaçãò divina transmitida a na cã^rf^ai'ã^'õTiiõ~3ê~D'anèrro, seus suplícios e morte cruel —
Rosa Maria Egipcíaca da Vera Cruz, trazia esculpidos os Sagra- tudo fruto dã~fefí'írimagíni.ç"ãõ~3e um grupo de mísfrfícadores,
dos Corações. Terão os tratores desenterrado tão devota pedra posto não haver evidência alguma de., que Anastácia tenha
fundamental? Ou ainda estará perdida, soterrada nos alicerces existido, .nem: sequer na memória oral dos cariocas: Por mais
do novo edifício? ' " ' simpatia que tenhamos à "mártir Anastácia, princesabantu que
Dentro da nova igreja podemos admirar simpática estátua cresceu livre em Abaete na Bahia,
de Nossa Senhora do Parto: embora seja antiga, não corresponde dizer que_nã,Q._era jgscjraya, supliciada, pela fazendeira com ferro
à descrição' da imagem venerada no século XVIII, posto ser á no pescoço, trazida para p Rio de JaneJJja^foi-.en.terrada na Igrej a
atual de terracota, enquanto a original era de "roca", tendo as dos Negros Forros e alforriada depois de morta..., . tudo -não
mãos levantadas para õ céu. Só o cKão, o nome e à culto passa de pueril invencionice de mistificadores nossos contempo-
continuam os mesmos. 'No "santinho" ainda hoje distribuído râneos. . • .•
nesta'igreja aos fiéis, a "oração de Nossa Senhora do Parto" Não preencherei os vazios da biografia de Rosa, como
lembra o mesmo estilo: e imaginário das rezas que dois séculos ardilosamente fizeram tantos biógrafos de santos e santas,
passados Madre Rosa divulgava entre-seus fiéis"adeptos:" inclusive os autores dos Evangelhos Apócrifos, que.descreveram
"Ó Virgem Santíssima, em cujo seio imaculado se quis mil e uma passagens da fictícia infância e adolescência do
encerrar Aquele que os mesmos céus não podem abranger, Menino Jesus. O que sabemos ao certo sobre a vida e visões de
dèfendei-nqsVde todas as..tèntações e fazei que conservemos, Madre Rosa é mais do que sufícientejpara inspirar um filme de *
sempre com a pureza de coração, a graça de vosso Divino Filho
Jesus. Ave-maria..." (Aos'leitores interessados em visitar a
lo"ngã metragem ou o enredo de uma escola de samba. Ela bem •
que "merece tais comemorações! Não arriscaremos tampouco a
Igreja do Parto, dou o endereço: Rua Rodrigo Silva, n2 7, entre fazer o "julgamento" de nossa beata africana: santa, embusteira *
as ruas da Assembleia e São José, Na sua sacristia há bela ou demente? Que teve defeitos, não há .como negar^autoritáriaJ
reprodução fotográfica, era tamanho-original, do quadro repre- :^ambiciosa,jmistificadora, e sobretudo raegalornaníacaTlmime-
sentando o incêndio do Recolhimento do' Parto, de 1789, cujo rãs~vlrl;uaes fizerain_p_arte_de_gu,a. atrihulada_exiatência: gene-
original encontra-se no Museu de Arte Sacra, na Catedral do rosiHãdej com.panheirism.a,jas.píritq de liderança, piedade. Viveu
Rio de Janeiro.). còm~intênsicrã3ê e dejorma_paradigmática o ba^rpco luso-bra-
sileifõ, fortemente marcado pela pieguice, credulidade acrítica
e fanatismo religioso. Rosa é, em muitos, aspectos de sua vida,

' Repetene, no final da história de Rosa, a mesma lacuna


umá~tTpicã~santa barroca, ultramoderna para seu tempo, posto
ter incorporado e propagandeado diversas novidades devocio- m
registrada no capítulo inicial deste livro: seus primeiros anos de nais e teológicas que após ela se tornarão apanágio da espiritua-
vida, assim c_òmo_Qg últimos, permanecem irtcógnitos, O espaço lidade católicano mundo inteiro. Muitas das devoções, sacrifícios

724 725
e até "milagres" de Madre Egipcíaca são idênticos aos encontra-
por sua própria identidade étnica, pois embora sendo africana
dos nas biografias de santos e santas reconhecidos por Roma.
nata, pelo fato de ter sido arrancada de sua tribo natal antes da
Ela poderia perfeitamente ter sido a primeira santa negra dos
idade da razão, mesmo conservando diversos africanismos em
tempos modernos, caso houvesse disciplinado mais sua buliçosa
seu modus vivendi, comporta-se muito mais como se fosse uma
imaginação e em vez de diretores espirituais fanáticos e igno-
negra'crioula típica, exemplo notável do sincretismo afro-luso-
rantes tivesse sido orientada por teólogos mais obedientes e
brasileiro. Apesar de inspirar-se mais no modelo de santidade
conhecedores dos ensinamentos da Santa Madre Igreja. Foi,
aliás, o que sucedeu com sua contemporânea, Irmã Jacinta de do mundo dos brancos, é uma profetisa e revolucionária, negra
São Joséjjundadora do Carmelo do Rio de Janeiro. Como Rosa, e feminista, pois quebrou dois fortes tabus da sociedã3ê~êscra-
ostentando em sua vida diversas manifestações preternaturais vista: desrespeitou o interdito milenar dá.tradição judaico-cristã
qulTrnãpedia as mulhé.ra§ d^fãTar em público, passando por cima
de discutível credibilidade, com frequentes ataques nervosos e
_ _ _juej5e_gregavam os negros e
dásQ5ãrreiras culturaísjblegaij
"milagres" inverossímeis, mas recebendo orientação espiritual
escravos dos postos de cõmãnío da sociedade coloníãTTPõucas
de sacerdotes mais rigorosos e prudentes, não ultrapassou os
mulheres no mundo escravista revelaram possuir carisma e
limites além dos quais poderia ser rotulada de embusteira,
determinação tão fortes como esta africana da Costa de Judá.
herética ou mistificadora, sendo hoje reconhecida oficialmente
Assim, se de um lado observamos, ao longo deste livro, vários
como "serva de Deus", primeiro passo para sua futura elevação
elementos terríveis do sistema escravista — o pelourinho, o
às glórias dos''altares.
abuso sexual da escr avaria, aLcrueÍ£liscxiinin.aç.áoj:aciaLsubj a- 1 1/1 p
/ O principal erro de Rosa Negra foi ter-se afastado diame-
cente à associação da negritude com_a.feitigar.ia-e.d-i-abolisn3.oJ.—,
tralmente da doutrina oficial daIgrej arpropondo certasjicesida-.-
^^tí:ãt)^há~conTO"TaBgar^a-real-possibilid.ade-der-nestajnesm.a socie-
dês claramente opostas aos dogmas tradicionais. Tornou-se
dade "desumana e racista, haver lugar para a inversão fetal das
herege e heresiarca ao.propalar que o Filho de Deus ia encar-
regras do jogp__d.o__p_oder:__a_escrava Rosa., é adorada de joelhos e
nar-se pela segunda vez, em seu útero, que ela era esposa da
tem seus negros pés beijados por seu ex-senhor; a escrava
Santíssima Trindade,, que tinha poder.de julgar vivos e mortos,
africana espanca e expulsa das igrejas alguns brancos ilustres
ue era Deus! Santo algum dos oficializados por Roma ousou
a quemjulgava irreverentes oumal comportados; anegraretinta
amanhas honrarias em seus devaneios místicos. Por mais
é disputada pelo alto clero colonial e saudada com. o invejjáyel
'virtuosa que fosse sua vida;e mais sangrentos seus sacrifícios,
títúlFdTcTlWtl^Rto~de~J^^ por ser negra
não havia como absolvê-la de erros teológicos tão cabeludos.
óuTex-escrava que Rosa Egipcíaca foi presa pelo Santo Ofício: o
Contra o dogma não há apelação!
humilhante tratamento dado pelos inquisidores ao capelão do
Neste sentido, embora no tempo em que nossa santinha
Recolhimento do Parto comprova que o fator racial não era
viveu o racismo constituísse ideologia dominante, aceita, aben-
levado em conta quando estavam em jogo ãlntegriHade do dogma
;• çoada e praticada por todos, inclusive pela própria Igreja Cató-
lica, não seria correto acusar o alto clero do Brasil, assim como
qs_inquisidores que julgaram Rosa, de terem, sido levados pelo
Como ocorre cora todos os mortais, a vida de Rosa Maria
racismo quando" ã7pr^BnHerain_.e desmascararam sua conduta
Egipcíaca da Vera Cruz foi marcada por altos e baixos, virtudes
heterodoxa. Pelo contrário: a história, desta africana da nação
e defeitos. Apesar de detectarmos em sua história algumas
cõurá está repleta de situações que evidenciam o quão complexas
poucas atitudes suspeitas, do tipo charlatanismo, desonestidade
eram as relações inter-raciais no Brasil escravista. A começar
e fingimento, temos de entender seu misticismo, profecias e

726
727
mesmo a grandiloqúência de sua. megalomania, como resultado falecesse fora da Casa do Rocio, anexava-se no mesmo processo
de um inevitável processo .psicológico de alienação do mundo seu atestado de óbito. Nada disto foi encontrado no processo de
real, apanágio de santos, loucos e artistas. Rosa.
Cogitamos sobre a possibilidade de as últimas folhas de
"Um .certo desequilíbrio nervoso favorece as visões e os seu processo terem se descosturado e se perdido no meio dos
- êxtases, do mesmo modo que favorece o génio do poeta. É mais de cinquenta mil processos do Arquivo Nacional de Lisboa.
também normal que o amor apaixonado por Deus, animado Tal hipótese, porém, deve ser descartada, pois, caso Santa Rosa
.por revelações e efusões ultrapassando as forças naturais,. Egipcíaca tivesse suas culpas julgadas até o final e recebido
• produza efeitos violentos nos temperamentos delicados e sentença, seu nome e castigo constariam obrigatoriamente na
. sensíveis. E bem difícil de distinguir nestes casos comple- "Lista de Pessoas que saíram nos Autos de Fé" —• coisa que não
xos o natural do sobrenatural e saber se a doença foi uma ocorreu, pois consultamos minuciosamente todas as listas dis-
das causas destes estados ou se ela é simplesmente a poníveis nos arquivos lusitanos, sem encontrar referência algu-
consequência dos dons extraordinários." • ma à fundadora do Recolhimento do Parto.
; ' ' . - ;' •• v - • . . . -•' • . - .... Qual então teria sido o destino de Rosa Egipcíaca após sua
Aúltima.referênciafeita a Rosa Egipcíaca em seu processo última audiência em 1765? Ahipótese de ter fugido dos Cárceres
traz a data de 4 de junho de 1765, quando pela sexta vez foi Secretos do Rocio parece-nos muito improvável, pois, além de O
interrogada, pelo Inquisidor Carvalhal na. Segunda Sala de
Audiências. Mandada de volta para seu cárcere, no final desta
serem r aríssimos tais fugitivos, parauma mulher negra tal fuga
revelava-se praticamente impossível, pois seria facilmente no-
m
manhã, nada mais., informam os documentos sobre o que acon- tada e recapturadâ,<^aado~o exotísrnyaé^suã" copi. Tê-la-iam
teceu com a ré do Processo na .9.065 da Inquisição de Lisboa. transferido para algum hospital para ser tratada de doença
Enquanto a causa do Padre Francisco Gonçalves Lopes segue grave ou demência, vindo a falecer sem que o Santo Ofício fosse
seu curso normal, incluindo a leitura de sua sentença, no Auto comunicado? Também considero remota esta saída, pois há
daJEÍé deJLjisboa. e_n.a_S.éjIo:JRip de^aneixpj. sua.partida para p outros réus doentes, inclusive um mulato de Minas Gerais,
degredo e a comutação do tempo restante em 1767, o processo contemporâneo de nossa biografada que, vindo a falecer, num
de Rosa inexplicavelmente se interr.ompe.seia conclusão. . • hospital lisboeta, louco e indigente, nem por isto deixou de
"Saiba o leitor que, de mais.de um milheirõ3.e processos merecer a atenção das autoridades, que comunicaram seu óbito
inquisitoriais por nós pesquisados naTorre do Tombo, não temos à Inquisição, constando em seu processo a data e causa mortis.
lembrança de ter encantoado outro que ficasse inconcluso sem Teria Rosa sido transferida de sua cela para a cozinha da
que na última folha viesse anotado o motivo de sua interrupção, S anta Inquisição, ou empregada em serviços subalternos, como
considerando que os notários e demais burocratas do Santo temos evidência de que ocorria com presidiárias mais humildes,
Ofício eramminuciosíssimos em terminar todos os processos que e, com o tempo, esquecida pelos inquisidores, coniventes com a
haviam iniciado, posto seus salários dependerem do andamento exploração da ex-escrava como mão-de-obra gratuita, teria,
destas mesmas ..peças processuais.. Caso algum acidente de muitos anos depois, morrido de morte natural, sem que o seu
percurso obrigasse a interrupção do processo, registravam os óbito fosse registrado em seu processo?
notários, .por ordem dos inquisidores, .a causa interruptioriis, Mistério! .
podendo ser, por exemplo, a morte do réu por doença, sua fuga Embora tudo nos leve a crer que nossa beata não chegou a
ou suicídio. A transferência de réus para hospital ou manicômio receber sua sentença final, está absolutamente fora de cogitação
era anotada nas páginas finais do processo, e caso, algum deles

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a possibilidade de ter sido queimada na fogueira. Foi mártir era
vida, não na hora da morte. De acordo com o Regimento do Santo em sinal de agradecimento e amor filial, transportou-a para o
Ofício, "os réus que fingirem milagres e revelações do céu, em céu. .Amém. Aleluia.
sendo pessoas de ordinária condição, sejam condenadas empena
de açoites e degredo de galés". Consultando uma relação de
trinta beatas e embusteiras processadas pela Inquisição de
Lisboapelo mesmo crime, entre os anos de 1574 e 1767, algumas Notas
com culpas muito semelhantes às de nossa biografada, outras
com maior grau de embustes e heresia, de todas, as que recebe- 1. Dunlop, O, J. Rio Antigo. Rio de Janeiro: Editora Rio Antigo Ltda.,
ram maior castigo foram duas freiras — a dominicana Madre 1958; Fazenda, J. F. Op. cit., 1921; Augusto, Maurício. Templos
Maria da Visitação (1588) e a franciscana Soror Mariana Inácia Históricos ao Rio 'de Janeiro. Rio de Janeiro: Biblioteca Militar, s, d. ;
de São Miguel (1761) —, ambas sentenciadas com a prisão Senna, Ernesto. Notas de um Repórter. Rio de Janeiro: Tipografia
perpétua, em uma cela apertada de seus respectivos conventos. Jornal do Comércio, 1895; Macedo, Roberto. Efemérides Cariocas.
A maior parte das demais falsarias recebeu como castigo, além Rio de Janeiro, s.ed., 1942.
dos açoites, o degredo de um a dez anos [posto que só os homens 2. Teixeira Neto, António A. Anastácia: Escrava e Mártir Negra. Rio
podiam ser condenados às galés], tendo como local de exílio de Janeiro: Editora Eco, s.d.
geralmente as; fronteiras de Portugal, quatro das quais foram 3. Douillet, Jacques. Qu'est-cè qu'un Saint? Paris: Librairie Arthème
expulsas para o Brasil e três para a ilha de São Tomé. Portanto, Fayard, 1975, p. 64.
pelo conhecimento que possuímos da-casuística-e • dos-procedi- 4. Castro, D. Francisco. Op. cit., 1640, Título XX, §IV.
mentos inquisitoriais, acreditamos que Rosa Egipcíaca seria
castigada com apena dos açoites citra sanguinis effusionem [isto
é, flagelada pelas ruas públicas de Lisboa até que seu sangue
ameaçasse_comecar a escorrer], tj^ia_sjua_sentença_ Hda num
Auto de Fé e, em seguida, degredada para alguma das fronteiras
do Reino pelo espaço de cinco a dez anos, tempo este que, para
muitas beatas e seus confessores, foi encurtado, como sucedeu
com o Xota-Diabos de Rosa.
A última hipótese sobre a inconclusão deste mirabolante
processo certamente é a que mais agradaria aos muitos devotos
e filhos que Madre Rosa Maria Egipcíaca da Vera Cruz deixou
nas terras do Brasil:
...após retornar à sua cela, depois da sexta audiência com
o Inquisidor Carvalhal,, eis. que o Menino Jesus apareceu à sua
querida mãe-de-leite, Rosa Egipcíaca, e, repetindo o mesmo
ritual que costumava praticar quando a negra assistia no Reco-
lhimento do Parto, penteou com esmero sua carapinha, mamou
•gostosamente, o quanto quis nos peitos de sua mãe africana e,

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