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Um grave problema que tédas as socie- dades modernas deviam procurar resolver 6 relativo ao caréter social ou anti-social do ciime. Varias tém sido as justilicagées apresentadas por filésofos e sociblogos, numa tentativa de explicar tio complexo conflito sentimental. Quase todos os argu- menos defendidos por tais cientistas se fundamentam no fato de que o ciime, qualquer que seja a sua origem, € sem divida um poderoso obstacule & emancipa- gio feminina e um empecilho as relagées Sociais entre individuos de elevado coefi ciente racional. ‘Ha uma tendéncia natural para eliminar estipido preconeeito, tendéncia essa, que se manifesta até entre elementos de aglomerados sociais, tidos como nao-civi- lizados. B conhecido de todos o fato de alguns homens de certas tribos indigenas Prostituicem as proprias espésas, sem que, por tal, sintam 0 menor ressentimento ou citime. Além do caso apresentado, ha um niimero infindavel de instituigées ou rituais, em que a mulher € oferecida a um homem que ndo € 0 seu verdadeiro marido, estando deflora a noiva, ¢ ainda os exemplos de promiscua comunhio ou _hospitalidade sexual, que permitem a troca de mulheres entre os casais, para nao falar da multipli- cidade sexual que se verifica nos matri- ménios poliéndricos. ‘Na opinio de Décartes, o citime ¢ “uma espécie de médo relacionado ao desejo de manter a posse”. Na realidade, tal sen- timento no: é mais que uma transmutago do despeito ou do amor préprio, perante @ apropriagao de uma propriedade privada, Fu BIBLIOTECA {DO UNIVERSAL DE CULTURA ESTANTE DE SOCIOLOGIA < a A SOCIEDADE 2 HUMANA B 4 2 Vo faa) Q CUIDADA SELEGAO DE OBRAS MODERNAS E CLASSICAS QUE, O° POR SEU VALOR PERMANENTE, a CONSTITUEM UM FUNDO UNI 5 VERSAL DE CULTURA 4 =) a Diregao editorial, < j MARIO DE MOURA 2 ° | B ES T AN T E ol DE a vot. 1 SOCIOLOGIA wl ee A SOCIEDADE HUMANA KINGSLEY DAVIS Primeica edigo brasifciea: Junho de 1964 PLANO DA OBRA ‘Traducida de HUMAN SOCIETY ‘The Macmillan Company, New York Vouume Pristeino Fowrtsonth Printing, 1961 Copyright, 1948 © 1949 © by ‘The Macmillan Company Contratados todos 08 direitos de publicasto em lingua portuguésa, total ou parcial, pela EDITORA FUNDO. DE CULTURA S.'A. Rio be Jawtino, Rua da Ouvidor, 86, 2° andar € Sho Pauio, Rua Agostinho Cant, 73, que se reserva a propriedade sobre esta tradupdo. Pansein Pante — NATUREZA DA SOCIEDADE HUMANA 1. © Bstudo da Sociedade Humana Sociedade Homana versus Sociedade Animal Normae Sociaie Stature Fangio Elementos da Ago Social Formas de Interasio Sccuxpa Parts ~ © INDIVIDUO E A SOCIEDADE 7. Chime © Propriedade Sexual: um exemple 81 Socializagto 9. Integragdo da Personalidade 10. Desorganizagdo da Personalidede Votume Seounvo ‘Tencema Parte — PRINCIPALS GRUPOS 11. Grupos Prindsio © Secundério 12. Comunidades Rerais e Urbanas 13, A Multidgo. © 0 Piblica 14. Casta, Classe © Estratficagto 15. © Casamento © a Familia ‘Quanta Pais — PRINCIPAIS INSTITUIGOES Giencia, Teenologia © Sociedade Tnsttugoes Beonomtcas es Politieas Tnstiuigdes: Religiosas Quivra Pare — POPULACAG. 20. A Equaeie Demogrifica 21, A Popolace Mundial em Transigao ‘Susta Paste — A 'TRANSFORMAGAO SOCIAL 22. ‘Significado da Transformasiio Social Tradugio de M. P. Moreira Fino APRESENTACAO Poucos livros tero feito uma carreira tio brilhante na Sociologia americana como o Human Society, do professor Kingsley Davis, da Universidade de Columbia. Publicado, em primeira edicéo, no ano de 1949, conseguiu vencer numa terra onde j& eram intimeros os manuais expositivos daquela ciéncia social. A razo, no entanto, é muito simples. Procurando fazer obra didatica, nfio se esqueceu 0 professor Davis dos dltimos e melhores ensinamentos da sua citncia, reela~ borando-os para uso dos seus estudantes, a par de uma exposicio clara, corrida, direta, sem exibicées initeis de erudicio nem de citacées desnecessirias. A bibliografia vem no fim de cada capitulo, aparecendo no pé de pagina o estritamente indispensével. Abandonando o primitive conceito da Sociologia como ciéncia social total, abrangendo todo 0 campo da sociedade, cing dentro do melhor critério, ao estudo dos problemas que digam respeito aos sistemas sociais tomados unitdriamente. Os assuntos expostos 0 sfio sempre em relacfo & orgenizacéo social, quer nos seus problemas de estrutura, quer nos seus aspectos de mudanca e mobilidade. Antigo discipulo de Parsons, é flagrante a influéncia do antigo mestre em sua obra, que se enquadra nas novas orien- tages da Sociologia americana, principalmente depois de Sorokin © Lynd, no sentido da constructo de uma ciéncia objetiva da sociedade, com elaboracio de uma teoria sistematica ao mesmo tempo que se tormou metodologicamente mais auto-consciente. Da mesma época e com os mesmos propésitos podem ser lem- brados os nomes de Merton, Shils, Stouffer, Lazarsfeld e Guttman, entre outros. Manual de boa qualidade ~ ordenado, informativo, atual e abrangendo toda a matéria sociolégica —,'mereceu o livro do professor Kingsley Davis a indicacio do Conselho Diretor do Instituto de Ciéncias Sociais, da Universidade do Brasil, & Editére Fundo de Cultura S/A. a fim de que f6sse vertido para 0 portugués. Fara entre més sem diivida, a mesma carreira univer- sitéria que alcancou em seu pais de origem, tais so os seus méritos didaticos e cientilicos. Rio de Janeiro, 10 de setembro de 1962. Evaristo pe Moraes Fito PREFACIO. IM Livro tintco gue pretendesse abarcar todos os aspectos da sociedade humana seria impertinente. Esta obra tem alcance mais limitado, posto que voltada apenas para certos problemas e principios teéricos: ¢ pretende ferir tio-somente as guestBes que interessam aos sistemas sociais como um todo. Quando aborda qualquer aspecto particular da sociedade, é do ponto de vista da sua relacio com os demais da organizacio social. Se fornece um exemplo conczeto, € na intengdo de aclarar_algum ponto a respeito dos mecanismos da sociedade como um todo, ou das relacées sociais como tais. Bste método de enfoque limita os objetivos déste volume, livrando-o, portanto, espera o autor, de tomar-se impertinente. Quaisquer gue sejam os méritos ou demé- ritos da exposi¢io, © enfogue propriamente dito € da maior importéncia para a Ciencia Social. As questdes levantadas situam-se em duas classes: primeiro, a das relacionadas com as caracteristicas universais de toda a sociedade humana; depois, das que dizem respeito as variagbes, registradas de uma sociedade para outra. Algumas das mais cruciais dentre as da primeira classe sao as seguintes: Como se distingue a sociedade humana da ndo-humana? Que capacita os sistemas sociais humanes a funcionar plenamente? Que, por exemplo, necessitam para garantir sua existéncia, equals as principais esteuturas que produzem para satisfazer as suas necessi- dades? Como tais estruturas se relacionam entre si na totalidade do esquema social, e de que maneita a sociedade, como sistema, se relaciona com a personalidade, também como sistema? Entre as principais questées do segundo tipo ~ as que dizem respeito as variagées sociais ~ alinham-se as seguintes: Qual 0 PREEACIO aleance total das variagées relativamente aos principals elementos da sociedade? Por que motivo ésse alcance € limitado em cada (aso — e quais os fatdres que determinam ésses limites? Quais fs tipos principais de sociedade humana e como se apresentam, Ge modo estrito, as instituicées componentes adaptadas a cada tipo particular? Como se processa no tempo, a transformacéo dos sistemas sociais? Evidentemente, perguntas como essas nfo excluem outras que poderiam ser feitas sObre sociedade e comportamento social ‘Nao requerem uma enciclopédia para respondé-las, ou nem uma combinacéo de t6das as ciéncias sociais desde a Economia até a Criminologia. Pelo contririo, representam mero objeto de analise. Sio, peecipuamente, as mais amplas com que se defrontam a Sociologia, a Antropologia e a Psicologia Socials. Fomam a base comum, porém nfo esgotam por completo os dados désses {és campos. © objetivo do livro consiste em fornecer possiveis respostas fe6rieas a essas perguntas capitais e, sobretudo, integrar tais respostas num sistema de opinides s6bre a sociedade humana. Naturalmente, é muito mais facil fazer perguntas que respondé-las. As respostas dadas nao so necessariamente originais, mas las da literatura social Os mestres da teoria ‘socio- Tégica particularmente responsaveis pelas idéias expressas sio Emile Dukheim. Max Weber, Vilfredo Pareto, Georg Simmel, Talcott Parsons, Robert K. Merton, Charles H. Cooley, Robert E, Park, e Robert M. Maclver. No tocante Antropologia Social, 9s principais autores citados sto A. R. Radcliffe-Brown, Bronislaw Malinowski, W. Lloyd Wares, Ralph Linton, E. E. Evans- Pritchard, Margaret Mead e Ruth Benedict. Na Psicologia Social George H. Mead, Ellsworth Faris. Jean Piaget. Prescott Lecky, ¢_psicanalistas como Kacen Horney ou psiquiatias como Rey R. Grinker. Outros autores de primeira plana sso W. C. Allee, Carl J. Warden ¢ William Moston Wheeler, na Sociologia Com- parada, Thorstein Veblen na Economia e Frank W. Notestein nos assuntos relacionados com os problemas de populagéo, Entretanto, ses nomes, que tanto contribuiram para © progresso da cigneia social, representam apenas uma pequena parcela do fotal daqueles com os quais 0 autor esta em débito, A principal intencéa do autor nao foi a de desenvolver novas feorias, mas sim a de sintetizar as idéias mais avancadas rela cionadas com as quest6es em causa, Conseqitentemente, a maior pretensdo de originalidade déste livro reside na tentativa de inte- gracao das diferentes escolas de pensamento, muitas das quais aparentemente chegaram 8s mesmas solucSes, embora usando uma terminologia e um conjunto de dados diversos. Na tarefa que se impés, 0 autor sente lamentivelmente conscio das imper- feigdes da obra. Se Ihe féssem dados 0 tempo e os recursos suficientes, teria preferido reunir maior nimero de proves empiricas —~ produto das inimeras investigacbes reveladas pela literatura — para as conchisies a que chegov, Procurou, em parte, suprir as deficiéncias a ésse respeito com as bibliografias anotadas ao fim de cada capitulo. Ademais, seria interessante desenvolver as implicacées tedricas mais amplamente do que foi feito, embora tal processo_pudesse redundar num livro muito mais extenso complexo, Finalmente, 0 autor da-se conta dos assuntos € pontos de vista omitidos, mas que deviam ter sido incluidos, e que espera arrolar numa futura edicéo, A elaboracdo déste livro exigiu varios anos. Nessa longa ¢ dificil tarefa, estudiosos ¢ colegas deram ao autor incalculavel estimulo e auxilio. Entre ésses, é-me particularmente grato men- cionar os nomes de Wilbert E. Moore, Robert K, Merton, Paul K. Hatt e Harry C. Bredemeier. Além disso, ha a citar o estimulo sutil e 0 excelente auxilio prestado pela espésa do autor. Jane Davis, que se encarregou de datilografar e rever 0 livro. Entretanto, € impossivel mencionar todos os que, de uma forma ou de outra, contribuiram para tornar a obra melhor do que seria. Infelizmente, a simplicidade exige do autor a confissio de nao the ter sido possivel corrigir tédas as falhas do Kivro to amavelmente apontadas por estudiosos e colegas. Isso, porém. no significa que o autor se negasse a encara-las como tais, mas sim porque Ihe pareceu necessirio, pelo menos por enquanto, acabar de vez uma tarefa que de outra forma se tornaria inte minavel. Futuramente, talvez, sera possivel um maior aprovei- tamento das sugestées oferecidas. Enquanto isso, porém, se éste livro puder contribuir de qualquer forma para a compreenséo désse que é 0 mais espantoso e intricado de todos os fendmenos, fa sociedade humana, o autor acreditaré justificado o seu trabalho. Kinestey Davis Nova York Prmmeiza Parte g a E a z g 9 B ¢ a < N a & 5 & < Zz O ESTUDO DA SOCIEDADE HUMANA Qs sBkes HUMANS sempre se consideraram como uma espé- cie unica. Permaneceram constante e profundamente cénscios da grande separacéo existente entre éles € o restante do reino animal, separagio que nunca desapareceu no mundo pensante. E nfo somente t8m permanecido conscientes da propria singularidade como, de acérdo com as caracteristicas humanas. tém procurado explicé-la, Afirmaram que o homem possui uma alma, que falta aos animais, ou que o homem possui uma ordem diversa de inteligencia. Afirmaram, ainda. que o homem & um animal falante e, portanto, absolutamente diferente de uma bésta muda, ou que um animal social , conseqiientemente, civilizado. Tais explicasées parecem misticas, ou superficiais: pois, em gual- quer dos casos, so meras racionalizacdes de uma profunda intui- so e nao explicagées verdadeiras. Todos concordam, porém, em nao creditar a singularidade humana aos seus tracos fisicos. Como espécime fisico, o homem é claramente aparentado ao maceco, vm primata no verdadeiro sentido da palavra. De certa forma, compreendeu-se que a singularidade do homem deve ser procurada em outro nivel, Que nivel, porém? Na inteligéncia? Sim, embora isoladamente 6 homem nio passe de um animal profundamente estipido, Na palavra? Sim, embora se trate apenas de uma classe geral de tracos caracteristicos. Na sociabilidade? Sim, embora muitos animais sejam igualmente socidveis. Portanto, qual a resposta? Se existe um tinico fator capaz de explicar a singularidade do homem, € o seguinte: 0 homem, e sdmente le, possui cultura. E dai que surgem tédas as outras diferencas. Sua inteligéncia, por exemplo, multiplica-se mil vézes pela posse da cultura. Sta o MATUREEA DA SocIBDADH NUMAN Javea, por mais importante que possa ser, nada mais € que cultura, A cultura é, consegientemente, uma qualidade profunda Gue se ramifica através da vida humana e é responsavel por t8das eS Verdadeiras e dnicas qualidades humanas. Proporciona uma Gimenséo extra a existéncia, ¢ transforma o ser humano € algo Que de outra forma nio passaria de simples animal, A natureza da cultura seré discutida mais tarde, Neste ‘momento, precisamos apenas dizer que ela abrange t6das as formas do pensamento e do comportamento manifestados pela reciprocidade comunicativa — isto é, pela transmissio simbélica — fe nao pela heranca genética, Compreende tudo aquilo que apren- demos dos outros por meio da palavra, da agao ¢ do exemplo, fem contraposigio 20 que adquirimos pela hereditariedade. Assim, por exemplo, a forma pela qual as aves constroem 0 ninho é hereditariamente determinada, ao passo que o padréo das cons- ‘rtgdes humanas é determinado pela cultura, ‘A posse da cultura transmite, nfo somente ao homem, como também a sua sociedade, 0 carater da singularidade. © grupo antropéide que produziu a sociedade humana nfo € de forma alguma notavel. E uma simples variante da sociedade primata em geral e, de forma ainda mais ampla, da sociedade dos mami- feros. O gue modificou seu tipo social bésico a um grau maximo no tocante 20 amo humanéide dos primatas foi a adigéo da cultura. Isso, sdmente isso, deu a sociedade humana uma incon- fundivel e guase incomensuravel distingéo. Poxtanto, o estudo da sociedade humana envolve o estudo da cultura. Qualquer gue seja 0 aspecto ou o setor da sociedade a ser considerado, a presenga de um método cultural de comuni- cagio € de importincia capital. Se, por exemplo, estiver em causa um problema sobre a familia, a mais clara interpretacio biolégica que despreze a cultura como base da explicagio esta fadada ao fracasso. Os padrées familiares sao de natureza cultu- ral, ¢ suas variacées de tempo € espaco sfo igualmente varlacées culturais, a cultura gue faz necessatia a distinggo entre o matrimdnio ¢ concubinato, entre o Iegitimo e o ilegitimo, entre autoridade e tirania. Se a cultura é de tal importéncia relativa- mente & familia, muito mais importante deve set no que diz respeito a coisas tais como a economia, a politica, € a organizacso reli- giosa. Assim, por exempla, nenhum esforco de imaginacio ¢ capez de explicar a diferenca existente entre democracia e dita- dura como sendo uma diferenca puramente biol6gica. © ESTUDO DA SOCIEDADE HUMANA » A anilise da sociedade humana deve ser levada a efeito apenas em nivel cultural, e parte importante da Sociologia Humana € 0 estudo da natureza, origem e significacao da cultura. Mas, por outro ledo, a Sociologia ndo esta, saivo em térmos gerais, inte- ressada na totalidade da cultura. Essa totalidade € extremamente diversa, abrangendo muito mais que aquilo que 0 estudioso dos problemas sociais precisa apreender. Assim, compreende as Artes, a Misiea, a Arquitetura, a Literatura, a Ciéncia, a Tecnologia, a Filosofia, a Religido, além de inimeras outcas matérias. Tratar da cultura em todos os seus infinitos detalhes exigiria a com- pilagéo de gigantesca enciclopédia e o trabalho de um verdadeiro exéreito de especialistas. A maior parte das ciéncias humanas ~ as chamadas Ciencias Humanisticas — € constituida de principios de cultura que versam sobre os varios e numerosos ramos em que se divide a propria heranca cultural, Bsse o motivo pelo qual a cultura € empregada, fs vézes, para referir-se as belas-artes — cultura com "C” maitis- culo e um certo sentimento de respeito, Mas o intertsse cul- tural do sociélogo avanca apenas até onde a cultura se relaciona com a vida social. Em outsas palavras, encara a cultura sob um ponto de vista peculiar, selecionando apenas aquéles aspectos que fazem luz sébre a organizacio © 0 comportamento sociais. Se € um sociélogo ou um antropologista social julga extrema- mente significative © modo pelo qual a cultura aumenta a com- plexidade. a profundeza e a continuidade da sociedade humana. € a forma pela qual as novas invengées culturais registradas em tédas as esferas afetam as potencialidades da organizacko social. Julga importante o fato que faz com que essas invencoes dependam do estagio prévio do progresso cultural e cuja difusio depende igualmente de iniimeras condigées culturais. Talvez julgue mais fascinantes aquéles aspectos da cultura que delinem divetamenie vs padsdes da reciprocidade social — 0s usvs, os habitos, as leis ¢ instituig6es que governam a sua conduta, Com téda a certeza, julgara iqualmente mais extraordinérias as corres- pondentes crencas ¢ idéias que sao verdadeiramente parte inte- grante désses padrdes; porque constitui caracteristica dos homens, como animais cultos. experimentar a necessidade no sdmente de agir, como também de apresentar os motives € as justificativas das suas acées e de perseguir objetivos socialmente bem definidos. Por aeaso avancaré 0 sociélogo além da cultura? Trata-se de uma pergunta dificil de responder, porque o elemento cultucal to NATURBEA DA SOCIEDADE HUMANA & to penetrante no seio da sociedade humana que nenhuma espécie de comportamento esta livre de sua influéncia. Com toda a certeza, o pesquisador social ultrapassa os chamados aspectos formais da organizacio social. Por exemplo, 0 econo- mista que estuda 0 comportamento dindmico das relagoes de mercado nao se interessa pelas leis e usos da propriedade. Adota certo esguema institucional e dizige a atencdo para as relacdes de oferta e procura na troca de bens e servicos. Essa relagéo dina- mica € indiscutivelmente uma {orca crindora de direito préprio, que nio somente auxilia a manter a populacdo, como opera, também, de forma sutil, para modificar a fixacéo das préprias instituigdes. Conseqiientemente, mostra-se interessado no verdadeiro contato diario entre os individuos, Preocupa-se com a aco concreta, ‘com a satisfacio dos fins através da escolha diseriminatéria dos metos que prevalecem nas situagées de grupos. Interessa-se, por exemplo, néo sdmente pelas instituigdes politicas ¢ econdmicas como, também, pelas atividades politicas e econdmicas e pelas fungées que tais atividades desempenham. Todavia, dada a existéncia de elementos culturais em t6das as formas de com- portamento, dificilmente poder-se-a afirmar ser tle capaz de fugic A necessidade de levar em conta a influéncia cultural, Pode-se apenas dizer que a Sociologia nao esté precipua ou exclusivamente interessada na cultura proprianiente dita, Preo- cupa-se primeicamente com a sociedade, € com a cultura apenas quando relacionada aquela. Um ponto deve ficar perfeitamente claro. As Ciéncias Sociais destinam-se ao estudo dos fendmenos mentais, de pre- feréncia aos fendmenos fisicos. Acontece, porém, como resultado das idéias e técnicas contidas na heranca cultural, que os séres humanos criam intimeros objetos de natureza fisica: machados, sodas, veiculos, casas, ornamentos, livros, quadros, roupas, etc. Em conseqiiéncia da falacia comum — a falacia da concregéo deslocada -— tais objetos so, as vézes, encarados como parte integrante_da “cultura”, ¢ algumas cincias culturais, como a Arte ea Arqueologia, destinam-se a estudé-los. Entretanto, do ponto de vista sociolégico, esses objetos materiais so produtos que 86 se tornam possiveis pela transmisso de principios e idéias de individuo para individuo. O essencial, entdo, € a reciprocidade bem intencionada ocorrida entre diferentes individuos. Cofsas como a posigéo social, a solidariedade de grupo, as trocas econé- micas, a produgao tecnolégica, a organizacao politica € a identi- © Hervpo DA SOCIEDADE HUMANA 7 ficagéo de parentesco envolvem, tédas, a percepgio mitua, a atividade voluntérla e a comunicagio simbélica Sem 0 contato espititual, tais coisas nfio poderiam existir. Quaisquer que sejam os indices externos © os instrumentes de que ros servimos para medi-los, os fendmenos sociais so, antes de mais nada, fendmenos mentais, e como tal devem ser encarados. © ponto de vist sociolégico Como todos sabem, existe imimeras ciéncias, inteiramente diversas entre si, intensamente empenhadas no estudo da sociedade humana. Os limites entre elas séo bastante imprecisos tanto na pritica como em principios, ¢ tal situacdo, de forma idéntica & que se registra com as nacSes, tem provocado um sem-niimero de discuss6es sébre essas fronteiras. De um ponto de vista estritamente cientifico nao hé quem, de fato, se mostre preocupada com a determinacao dessas linhas divisérias, j@ que a ciéncia nfo conhece fronteiras. Entretanto, as discusses se manifestam porque a citncia € conseqiiente da necessidade que experimentain (os grupos eas agéncias organizadas, todos interessados nas respectivas atividades. Esteja ou no empenhado numa pesquisa ‘original ou na difusao do saber, eada grupo cientifico encontra-se fem franca competigao com os demais para a obtencio de apoio Bnanceizo, reconhecimento piblico e de pessoal. Além disso, dada a exigéncia da necesstria competéncia téeniea para o julga- mento dos problemas cientificos, cada grupo procura estabelecer seus préprios padres e resistir & invaro de Enquanto essa atitude diz respeito as questoes cientificas, nao hé objecées a fazer a tal autonomia; entretanto, as vézes. dificil separar as necessidades estritamente cientificas, dos inte- résses_ocultos. Nem 0 govémo nem a profissio médica permitem a qualquer tum apresentar-se como cirurgiéo ¢ operar aos que néle acrediter. Vin de segs, nossasinsitusGes educacionsis nfo costuman con- tcatar fisicos para ensinar Biologia, ow biélogos para ensinar Economia. Isso € siflcientemmente claro, mas quando os diversos ramos do ensino so menos distinfos entre si podem surgir recla- macées tendentes a permitir 0 progresso de um grupo de detr mento de outro. Se, por exemplo, existirem na mesma univer- sidade um departamento de Biologia e outro de Botanica, possivel que ambos pretendam o direito de dirigir 0 curso de Genetica Um departamento de Quimica e outro de Geologia podem, iguaiments, arrogar-se o direito de dirigir um curso sobre petrdleo. Da mesma forma, um departamento de Psicologia e outro de Educacdo podem pretender a direcdo de diversos cursos correlatos, Na luta travada para a obtengio de fundos destinados ao financiamento de pesquisas, cada Cientista est sempre pronto a aproveitar-se da situacdo Se 0 grupo a que pertence, como um todo, progtide a0 invés de regredie. Conseqtientemente, em aditamento a tendéncia normal de exagerar a importancia daquilo gue passa a vida a estudar, agrada-lhe dispor de um. mais amplo dominio cientifico. Assim, ao set interrogado scbre as matérias incluidas no seu “campo” cientifico, muito provavel- mente daré uma ampla definicéo a respeito que, ou abrange a maioria dos conhecimentos humanos, ou apresenta a prépria espe- cialidade como a pedra angular ou chave de tudo 0 mais. Infelizmente, os cientistas sociais tém-se mostrado culpados dessa falta. A Antropologia descreve-se modestamente como sendo ‘0 estudo do homem". A Psicologia, com a mesma reticéncia, encara-se @ si propria como “a ciéncia do comportamento". A Economia pretende estudar “os meios pelos quais 0 homem prové a sua subsisténcia", dando a entender gue tudo o mais, uma vez que nao contribui para a subsisténcia humana, € em grande parte supérfluo. A Citncia Politica pretende estudar “o fendmeno d poder"; a Sociologia, “a sociedade ¢ 0 comportamento social a Histéria, “a significagao do pasado”. Evidentemente, nem t6das podem estar certas ou, se o estiverem, existe uma lamentavel soma de excessos gue tornariam impossivel a organizacéo de um curticulo universitario ou o estabelecimento de um conjunto de associacdes profissionais. A melhor maneira de compreender a natureza das diversas Citneias Sociais consiste em observar sas verdadeiras atividades, € nao aquilo que dizem fazer. Essa atitude mostraré que a verdadeira base real de diferenciacio nfo estéi_na simples diversidade encontrada num assunto eoncreto, ja que as disciplinas sociais estudam. tédas. os mesmos fend- menos externos ~ isto é, os fatos da vida social. Trata-se, mais, de uma diferenca de ponto de vista ou de focalizacéo da atencio. Cada ciéneia formula um tipo de pergunta préprio, ¢ seleciona entre o tumultuar das manifestacées sociais os dados capazes de fomecer-Ihe a melhor resposta. Tira, necessariamente, as suas deducdes, isto €, aceita como boas as respostas dadas a outros tipos de perguntas e, pertanto, tais deducses podem ou nao ser exatas. Cada ciéncia é portanto, abstrata, ja que trata apenas de certos aspectos da realidade concreta — aspectos que nfo sdo passiveis de separacéo fisica (como um galho da arvore) mas apenas de sepacacdo analitica. Segue-se que, pelo menos no tocante & predicao dos acontecimentos reais, as diversas ciéncias sociais mantém-se miituamente interdependentes, porque sdmente pela combinacio dos seus diversos pontos de vista € possivel ebter uma completa antecipacio de ocorréncias futuras. As dedugées de uma representam perguntas ainda sem resposta para para as demais. A Economia, por exemplo, aceita comumente © procedimento racional na luta pelo interésse individual. Exige seu préprio sistema fe6rico sébre essa premissa, sem, contudo, deduzir necessariamente que tal afirmativa € absolutamente correta quando aplicada a qualquer mortal, ou a qualquer situacéo total. A Sociologia nao chega a essa suposicéo, preferindo colocar o problema, entre outros, de relacionar a racionalidade econdmica com a irracionalidade religiosa e moral. Langa sua propria teoria — a de que a racionalidade € limitada pelos controles da ética e da moral. Nao pretende que tal suposicio seja de fato absolutamente veridica, mas prefere analisar 0 com- portamento social como se ela fésse correta, Naturalmente, sem a existéncia de teorias definidas torna-se impossivel criar um sistema de pensamento, ja que as relacées de causa e efeito deve ser sempre reveladas levando-se em conta as condigdes as quais se aplicam, © que vem de ser dito sobre as Ciéncias Sociais aplica-se igualmente as Ciéncias Fisteas. Alias, aplica-se muito melhor a estas porque esto mais adiantadas e, por isso, dispdem de maior agmero de sistemas abstratos. B facilmente compreensivel, por exemplo, que 0 sso comido por um cfo & suscetivel de ser anali- sado do ponto de vista dos seus elementos quémicos (como um conjunto de elementos quimicos relacionados entre si), da sua natureza fisica (como um conjunto de atomos. moléculas, etc). do seu significado biolbgico (como tipo de ésso pestencente @ certo tipo de animal) e da sua importancia fisioldgica (como substincia digerivel ov no). isso sem mencionar seu significado econdmico, artistic, moral, ou qualquer outro (Para verificar 5 possui qualquer significado moral ou ético, basta imaginar que ésse osso & da espécie humana.) © objeto ou aconteci- mento concreto tem pouca significacdo em si mesmo, Passa 2 NATURREA DA soCTEDADR HUMANA a ter outro significado somente quando as stias ligagées com outros acontecimentos ou objetos, tanto no passado como no futuro, so trazidas a baila e tais acontecimentos ou objetos sio fomecidos apenas pela capacidade légice ou retentiva do espitito, ou, em outras palavras, por férca de um processo de abstract. Nao ha necessidade de descrever as deducées € 08 pontos de vista bésicos das diversas Ciéncias Sociais, Esta obra inte- ressa-se apends por uma dessas ciéncias e, por isso, precisamos descrever tao-somente seus pontos de vista — resumidamente, aliés, j8 que todo o livro constitui a melhor prova dessa afirma- tiva, Fundamentalmente, nosso interésse limita-se &s sociedades como sistemas (isto é, enquanto em funcionamento) @ as rela- es sociais independentemente do seu tipo. Isso, porém, nio significa uma descricéo enciclopédica que pretenda explicar todo fo contetido das demais Cigncias Sociais, mas, sim, uma ciseiplina especial devotada & forma pela gual as sociedades realizam a propria unidade e continuidade, bem como & maneica pela qual se modificam. Acontece que ésse tipo de andlise € geralmente ‘chamado Sociologia, nome aparentemente tio bom como qualquer outro, embora as vézes traduza uma idéia de preocupacio com a anormalidade social. Quais so, pois, os grandes problemas a serem discutidos neste volume?’ Os principais sio os seguintes: Primeizo, a estrutura social. De que forma os sistemas sociais podem ser ana- lisados dentro das suas partes ou elementos essenciais? Quais os elementos comuns 2 todos os sistemas sociais? Quais os seus aspectos variaveis, e quais os limites e causas dessas varla- ces? Segundo, as fungées sociais. Quais as _necessidades peculiares 20s sistemas sociais ¢ como sao enfrentadas pelas fas estrturas? Existirs wma relacdo intsinseca, entre orga~ nizagio e fungao, no sentido de gue se uma se altera a outra deve alterar-se também? De que forma as funcdes sociais relacionam aos ebjetives que o homem tem em mente? Qual 0 significado, se algum existe, da eficiéneia ow ineficiéncia sociais? Terceico, a interac%o social. Qual 0 papel que 0 conflito, a com- peticio ¢ a cooperacio desempenham na vida humana? Quais 9s aspectos dinamicos do comportamento de grupo ~ a inteces- timulacdo, os simbotos coletivos, as cerimOnias © 0 ritual? Qual a natureza do contato e da comunicagio humanos? Quarto, 0 dividuo e sua sociedade. Sob que aspectos a personalidade 0 ESTUPO DA SocIEDAME HUMANA. Pa humana & um produto social? De que forma uma sociedade produz ¢ utiliza os diferentes tipos de individuos? Quais as reagées subjetivas as diversas espécies de situacdes sociais? Quinto, as modificagses sociais, A transformagio social processa-se fem ciclos ou em linha reta? Quais os fatdres que a estimulam, © quais os que a setardam? De que forma € possivel medir a rapidez da transformacao social, ¢ qual a rapidez com que se transformam as diverses partes da sociedade relativamente as demais? ‘Trata-se_de problemas fundamentais, e a simples tenta- tiva de resolvé-los constitui empreendimento realmente fascinante. Muitas das mafores inteligéncias enfrentaram ésses problemas corajosamente ¢ apresentaram solucées de varios tipos. Neces- sdriamente, nossas solugées pessoais esto longe de ser defini- tivas. Nao sio solugdes filosdficas ou religiosas, e sim meras estimativas cientificas ~ e a Ciéncia munca é definitiva, As dificuldades da Sociologia Embora todos reconhecam a existéncla de obstaculos de natureza especial que obstruem o caminho da Sociologia, nem todos possuem uma idéia suficientemente clara da sua verdadeica natureza, Afirma-se, de vez em quando, que as Ciéneias Sociais sio ainda "jovens” e, conseqiientemente, nao tiveram o tempo suficiente pera atingir a maturidade cientifica. Tal explicacio, entietanto, expée apenas 0 problema, pois nfo revela 0 motivo pelo qual’ nascimento dessas ciéncias devia ocorrer s6 muito depois, ou a sua “adolescéacia” perdurar por mais tempo que isica, da Quimica, ou da Biologia. Ha os gue sustentam ‘que os fendmenos sociais so mais complexos que quaisquer outros 6 que os torna de mais dificil compreensio. Mas. desde que qualquer ramo do conhecimento contém fronteiras desconhecidas (como ocorre em todos os terrenos}, 0 respective grau de comple- xidade permanece infinito. Os mistérios da matéria, da vida erganica e do universo astral sdo to profundos e insoliveis como os da vida social. De fato, parecem mais complexos. Quase todos possuem uma clara nocéo dos problemas sociais, enquanto que os leigos se mostram absolutamente ignorantes sobre a natuzeza do dtomo. Na realidade, no que diz respeito aos pro- blemas socials, dispomos de uma larga estrada de conhectmentos Oe — — 2 NATURDZA DA SOCIEDADE MUSA‘ cujo acesso & negado aos cultores das citncias naturais porque sentimos as realidades sociais e psiquicas apenas subjetivamente ¢ podemos, assim, pelo simples exame dos nossos motives, co preender até certo ponto 0 porqué do comportamento individual. Entdo, quais sero as dificuldades da Cigncia Social? A sua compreensio exige a compreensio da propria sociedade. Em foutras palavras. somente por seu intermédio € possivel explicar Aquéles obstaculos; ©, na sua tentative de explica-los, a ¢léncia Gecial sente-se paradoxalmente abalada por éles. “Tem-se @ impressio de um circulo de ferro, mas tentemos, de qualquer forma, compreender que a explicacéo désse fendmeno se tornaré, mais clara no desenrolar dos posteriores capitulos, Um sistema social € sempre normativo. Sua integragio repousa sObre o fato de que seus membros trazem em mente, Como parte integrante da heranca cultural, a nosio de que devent Gu néo devem fazer certas coisas, de que certos atos so corretos ‘ou bons, enquanto outros so errados ou maus. Cada individuo julgarse asi mesmo e a0 proximo segundo © espirito dessas egras sutis € ubiquas; e qualquer violacdo das mesmas ¢ punida por uma reagio negativa, que pode ser leve o violenta. Uma dtitude avaliadora, uma atiude elogiosa e critica, de acusacdo © justificacdo, prevalece, assim, por téda sociedade humana. Diseutir tais regras, ou pior ainda, discutir os sentimentos exis- tentes por trds delas equivale a incorrer em certas penalidades, a menor das quais € a controvérsia. Todo aquéle que tenta, pelo feu proprio modo de pensar, fugir por completo aos ditames do Sistema moral a fim de estudar objetivamente © comportamento, ‘que tenta analisar as normas ¢ os valbres sociais como se féssem Emebas ou atomos, € imediatamente apontado como agnéstico, cinico, traidor. ou coisa pior. E em lugar do apoio piblico que deveria contar para seu trabalho, deve contar apenas com a hosti- lidade publica ‘Com o intuito de proteger-se, 0 sociélogo habitualmente aceita certos valéres sociais (aquéles geralmente respeitados por sua prépria sociedade). limitando-se a estudac os meios de atingi-los. ‘Assim, elimina do seu inquérito os verdadeiros problemas que do ponto de vista sociolégico representam as bases reais da vida Social. Todavia, seu malégro na adosio de uma atitude cient fica pode ir ainda mais longe. Pode ver-se envolvido, volunta- Flamente ou nao, em controvérsias — isto ¢, em discussdes de que participa o préprio piiblico — e adotar determinada sistema de val6res contra outro, Neste caso, freqiientemente se transforma © ESTUDO DA soc! DADE. INUMANA _ num Ltigante de tipo especial, num propagandista ou pensa apaixonsdo, esataneate ¢ oposto do Genin, Minguéaso ialbe mal por isso, exceto os da parte contraria, ja que 0. partidatismo no terreno dos negécios piblicos coisa corriqueira. Essa atitude driplice do sociélogo, © fato de por um lado Pertencer @ um grupo normative, enquanto que pelo outro & um observador désse mesmo grupo, explica a principal limitacéio sua atividade cientifica. Torna-se initil acusé-lo pelas suas Timitacdes, responsabiliza-lo pelas suas definigdes mal alinhavadas, pelos seus métodos inexatos, pelas conclusées inécuas, as pre- digdes errOneas ¢ © vocabulirio pomposo. Beses sho, pura € simplesmente, os meios inconscientes de que langa mio p: proteger-se. Dele se espera que envergue a toga da ciéncia, mos esta proibido de executar as suas fungSes: portanto, nada mals pode fazer sono avancar através de um dificil emaranhado de coisas para chegar a conclusses que todos, ov pelo menos aquéles que o apdiam, quesem ouvir, Se 0 acusam de ignorancia cientifica, limita-se a dizer que as ciécias sociais ainda se encon- tram na infancia © que os fendmenos sociais so extremamente complexos, ot entéo que no tocante aos problemas socials tomna-se impossivel a neutralidade, sem compreender, pelo menos aparentemente, que tal afirmativa, tomada no sentido epistemo- logico, & autocontraditéra, : Em todas as sociedades existem senti a ‘ ‘stem sentimentos que nfo devem fer discutdos. “Nem mesmo podem ser estdados desapaixona- lamente, ja que a simples mencio da sua violacao assume pro- porcdes de verdadeiro tabu. Iniimeros professores foram demi- los, das universidades norte-americenas por dessjarem eatudar a vide sextial dos solteiros, por assumirem uma atitude avan- cada para com os dogaas reliioss, por ensinarem 0 socialism ou por adotarem uma atitude impatriétiea. Taia assuntos, quando shotdados, ever ser tratales’ com a maior eltumapecio. co «professor reiterando continvamente’ sua devorso. aos. valores supremos. O objeto de estudo nio devem ser os valéres prop: mente dites, mas suas violastes, porque as violagdes exigem acto. sim, 36 0 socidlogo estuda o problema do divérco, flo presu- mivelmente com a infensio, de reduzir 0 "mal’. ‘Se estuda o govérne, € apenas com o objetivo de remover os obstaculos que Fengemadeleo fascismo, dependendo do ambiente em que vive fetanto, em qualquer sociedade suficientemente grande © com- eM Jexa, existem outros assuntos sobre os quais a opiniéo publica Ne mostra dividida, © esses Foviem ser discutids com alr mde, Mas, mesmo essas discuss6es livres nio representam Mesa ee tm discussio cbjetve. ‘da controversia poss jis lados opostos, © ambos condenam os que tentam realizar doi edpce micromente desapaizonada, Um Velho axioma afin gue quem nao eoncordar, discord, © sociélogo nao pode permi- seats luxo ce expor igualmente as deducdes, os inierésses ¢ 03 lores de ambos os lados. Pelo contrario, deve colocar-se a favor de um ou out, ou enldo ce azrisca a fornarse, universalmenie spon Te ccanto eo. conde da natlidade, a soiall Sgedo da Medicina, a igualdade dos negros, @ sindicalizagio do trabalho, 0 suirdgio feminino, a censura literdria, a legalizacdo Go jogo ou a elevagio de impostos, precisa descobrit os molivos pelos guais éoses problemas deven ou nfo exists, Esta & 9 pat Ineira pergunta formulada pelo pablico: De que lado éle est rte FP piblico possui uma habilidade excepcional para percebes Fe Gitudtes de avaliagdo contidas nas declaracées faladas ow Ceertan, Na realidad, « inguogem comun ext de ta) forma virada de tals atitudes gue € virtualmente impossivel usé-la ater gear ama acusasao de pavtidarime, Una tentative de anilise desapaixonada termina sempre com insultos dirigidos S ambos os lados, ou se no se aplica a um assunto controverso, fas epenas ao comportomento humano, assume ares de tira Grande parte daquilo que passa por andlise social nada mais € gue uma tentative de assacar ecusacées contra alguma foisa, Quem é 0 responsavel pelo crime? Quem foi o responsavel pela Segunda Guerra Mundial? Quem € o tespansavel pela eleva Gao de precos? Por mais necessirias que possam ser essas acush- SBeide responsabiidade mural para o funcionamento da sacie- Jade, ndo se comparam a uma andlise causal, € muitas vézes, na verdade, chegam a empané-la Sob costos pontos de vista, 0 socidlogo defzonta-se com wm rmimero muito maior de obstaculos que os demais cientistes socisis, exatamente porgie 20 procurar examinar a sociedade como wm todo vé-se forcado a examinar a natureza dos valdres humanos Precisa submeter os costumes ¢ as instituicoes basicas @ uma andlise objetiva. Deve tratar com a religiio ¢ a familia, por exemplo, baseado aum espirito de perquirigao secular de preferéncia fo de mado e tabu, O cientista econdmico e politico, aceitando seat © ESTUDO DA SOCIEDADE HUMANA , 2 discussdo @ estratura institucional, pode ocupar-se na maioria das vézes com a conduia racional ¢ os assuntos populares e evitar, assim, algumas das dificuldades com as quais se defronta 0 socidlogo. Entretanto, ésses especialistas correm outros riscos. A literatura da cineia politica, em particular, esté repleta de conceitas morais © metafisicos; as vézes, da a impressao de ser mais um exercicio de teoria ética que de conhecimento empirico. Tendo em vista os obstéculos com os quais se defronta a Sociologia, ha os que sustentam que tal ciéncia nfo existe, ja que, nna melhior das hipéteses, nao passa de simples "estudos sociais". Outros acceditam na sua existéncia, mas admitem, de forma potico consistente, que quem a pratica nfo pode ser neutro, pois deve inevitavelmente tomar uma posicéo qualquer. Se isso significa escolher um dos lades com referéncia ao assunto inves- tigado, entao a afirmativa equivale a um desmentido @ ciéncia. E impossivel o conhecimento sem uma anélise neutra. Téda cigncia é neutra no sentido de que as emosées do pesquisador ndo influem na observacio ¢ explicacéo dos fates. & verdade que existem intimeras controvérsias cientificas. ‘ais controvérsias, porém, constituem a verdadeita valvula de escape da ciéncia Sao, entretanto, controvérsias que dizem respcito a problemas tedricos, sem qualquer ligacio com os de natureza moral ou poli- tica; e sao resolvidas pela observacao e a légica, e nfo pela pro- paganda ¢ pelo obscuzecimente. © comportamento social no representa uma categoria especial de realidade intrinsecamente impermeavel a um estudo sistema- tico. Pode ser tao facilmente tratado pela pesquisa cientifica como qualquer outro fenémeno natural, © obstaculo surge nio do assunto em si, mas das limitagdes que a propria sociedade impSe a0 pesquisador. Conseqiientemente, podemos esperar por um maior progresso da Sociologia depois de preenchidas certas condigoes. A primeira dessas condigdes € que a sociedade seja to ampla, complexa e diversificada, que seus cidadios neces- sitem de uma grande soma de conkecimentos sociais para manté-la em bom estado de funcionamento. Numa sociedade désse tipo, as atividades encaradas como meios perfeitamente legitimos, tendo apenas wma tenue relagio com os fins colimados, sio em grande nimero ~ e desde 0 momento em gue io conside- radas como meios podem ser estudadas impunemente. Ademais, nessa mesma sociedade 2 divisio do trabalho é conduzida aos extremos, de forma a dar a impressio de ser possivel satisfazer » NATURBZA DA sOcIEDADE HUMANA ‘a necessidade de wma informacéo social correta por intermédio de um grupo especial (sempre diminuto) de pessoas profissional- frente empenhadas na pesquisa e no ensino social. A tal grupo concede-se como que tima licenca para investigar objetivamente sei sto 6, da-se-lhe certa dose de liberdade académica, de Seguranca, de isolamento conveniente aos estudiosos. Em troca, Géle se espera o respeito aos cdnones do método cientifico ¢ da Gtica inerente ao ensino imparcial, Se um membro do grupo lanca mao da sua beca de cientista para transmitir certo ar de auto- rdade A propaganda, ou se transforma a sala de aula numa tribuna politica, néo estar agindo como cientista © iio tem o direito de exigit uma imunidade especial para enfrentar as repre- Siliag por parte dos que néo concordam com as suas idéias, Um estado democratico, por exemplo, nao concorda em oferecer uma tribuna protegida Agueles que advogam a ditadura, Mas pode, entretanto, apoiar um estudo objetivo da natureza das ditaduras. Se, na aula ov na pesquisa, registrar-se uma atitude de defesa, eata deve ser, em tudo e por tudo, favoravel aos volbres esta- belecidos: entretanto, sob determinadas condicdes ¢ num sentido limitado, ndo deveria existir nenhuma defesa, mas simplesmente uma ani A moderna sociedade industrial favorece a cifncia social até certo ponto, inclusive a Sociologia, Anteriormente ao advento da eca industrial era enorme a especulagio que se registrava sobre as questées sociais, especulagio, entretanto, quase exchi- sivamente de caréter moral. Confiicio, Plato, Aristételes, Santo Tomas de Aquino, além de outros, interessaram-se mais pelo que 0 povo devia fazer que, mesmo, pelo que realmente fazia.! Nio foi senéo durante os séculos XVII e XIX que surgiu algo parecido & genuina ciéncia social. Por ésse tempo, a revolucdo industrial criara uma sociedade mais complexa, obrigando os estudiosos @ uma nova avallagdo dos fendmenos socinis, Ade- criou wma sociedade mais secularizada, permitindo extrair Ses dos fendmenos que eram menos religiosos © mora~ ‘as conquistas das Ciéncias Naturais popula rizaram ox métodos cientificos e sugeriram a possibilidade da sua aplicacéo aos dados da sociedade. Pelos motivos acima mencio- nnados, foi, porém, modesto 0 progresso efetuado pela nova ciéncia social. Seus diversos ramos experimentaram apenas um desen- volvimento lento e gradual, e até hoje se encontram limitados nos eM, Mactan, “Sacislory”, sa Encyelapeia of the Seal Sues. © EsTUDO DA SOCIEDADE 1 seus objetivos ¢ realizacdes, Entretanto, ¢ ponto pacifico que. 30 10580 tipo, stual. de sociedade, pode enistit. e existe, apesor de todos os obstéculos, certa forma de Ciéncia Social. © valor da Sociologia De que vale, pode-se perguntar, o estudo da sociedade? 8 0 esfOrco que exige? posta parece perfeitamente clara. Nao sémente tal estudo possui um valor (qualquer que seja 0 padrio que se queira adotar) como se toma indispensével numa sociedade complexa como a atual. Em primeiro lugas, possui um valor claramente instrumental no sentido de que, uma vez aceitos certos obje- tivos, auxilia a determinar os meios mais eficientes para alcan- gé-los, Numa sociedade assim complexa, a politica social n30 pode ser posta em execugéo baseada apenas nos costumes ¢ nos sentimentos. Exige, além disso, carta dose de conhecimentos sobre a sociedade em causa: e quanto maio: e mais diversificada for a sociedade, maior a soma dos conhecimentos sociais exi- gidos. Ademais, quanto mais amplas e mais inclusivas as normas a serem adotadas, mais importante se tora a cultura sociolégica tm conteaposicio sos conhecinentos de tipo exchisivamente poll: tico ow econéntico. Suponha-se, por exemplo, que uma politica destinada a aumentar a natalidade seja considerada como perfei- tamente descjdvel pela maioria dos cidadios de um pais (como acontece atualmente na Suécia, Franca e Gri-Bretanha). Os melhores meios de conseguir tal objetivo ndo podem ser determi- nados em témos exelusivamente econdmicos ou politicos, ja que as quesives atinentes 8 organizacao da familia, a dindmica demo- grafies, aos habitos de reproduco e aos valores tradicionais Precisam sex levadas em conta, e tédas exigem uma analise do pe soaolégco m segundo lugar, a contribuigo da cigncta social penetra muito mais fundo, ainda, Numa grande sociedade ‘especlalizada estamos todos limttados pela soma da cultura ¢ da_prépria organi- Ep, come um todo de gue podemos dspor. Cada um de 6s le ter experitncia propria de uma parte infinitesimal Nida da nossa sociedade, © agreultor de Nebraska, por ceomple Pie pede ser durante a vida arquivista em Washington. negro a0 Harlem, eomerciante em Chicago, dona de casa na Gedrgia, ou *elio no Massachusetts, Alias, @Ihe muito dificil possuir um NATUREEA DA SOCIEDADE HUMANA conhecimento exato désses individuos. No entanto, pode viver Sa mesma nacho que éles e, portanto, alimentar certas idéias a Seu respeito, Possivelmente, conseguir a maior parte dos proprios Conhecimentos através de informacées ou de contos e romances fealistas, mas, de qualquer forma, éle ou aquéles de quem depende pata repeesenti-lo nos negécios pliblicos, deve possuir um conhe- Cimento mais sistematico sobre 0 gue as vidas de todos aquéles individyos. significam para éle © para os outros, entre si, e da forma pela qual o todo se mantém unido. Nossa sociedade € tao complexa que se tora preciso abrir caminhos diretos ¢ elicientes para a compreenstio das suas sees desconhecidas para _n6s. Precisamos dispor de certa dose de observacdo ¢ julgamento dos motivos que justificam a vida dos demais e das condicbes sob as fouais vivem. Por ésse meio reduz-se a intolerancia, a grande inimiga de uma sociedade integrada do tipo moderno, Dessa forma, as decisbes referentes & politica de grupo tornam-se mais simpatieas e amplas aos olhos do cidadao comum. Desa forma, ainda, consegue-se realizar a unidade na diversidade. Em terceiro lugar, ha uma certa oposigéo pessoal as van- tagens do estudo sociolégico. Ume das caracteristicas do homem educado reside na sta capacidade de perceber_¢ apreciar coisas que © homem comum aceita sem discusséo. Conseqtientemente, Compreende melhor tanto a si préprio como aos demiais, ¢ possui maior flexibilidade para adaptar-se as novas situacoes. B capaz de pensar em térmos de principios fundamentais de preferéncia @ adotac a opinigo popular estereotipada e, assim, avaliar melhor es consegiiéacias a longo prazo. Finalmente, pelo exame com- parado das sociedades e grupos diferentes dos seus, € capaz de perceber varias coisas de relevante valor para a prépria existéncia gue de outra forma escaparia 4 sua observacdo. Dessa forma, a Vida torna-se-the mais rica e mais intensa. Sem a menor sombra de diivida, 6 ésse 0 motivo pelo qual o estudo da Psicologia Social, da Antropologia Social e da prépria Sociologia conquistou atual- mente tamanha importéncia no curricalo das chamadas artes liberais. Gbvio que © tipo de conhecimentos gue importam para o caso nao é simplesmente descritivo. O momento transitério, 0 aconteci corrente no possuem qualquer signiicagdo, exceto quando relacionadas as acorréncias passadas e futuras, através da interpretaclo sistematica, Para que o conhecimento social possa ter algun valor deve abranger os principios basicos da socie~ © FSTUDO DA SOCIEDADE TIVMANA, 2 dade, em contraposicio aos simples fendmenos superficiais. As decisdes tomadas & base de informacdes superficiais facilmente oferecem resultados inteiramente contrétios aos esperados. Como ¢ natural, 0 conhecimento sistematico depende das técnicas de investigacio. Sem estas, torna-se impossivel fazer predigées acuradas ou comprovar as que tenham sido feitas. Na sociedade moderna, © vagaroso método das tentativas aplicado & politica que no oferece outra prova de sucesso que a da auséncla do caos ot da censura é, ao mesmo tempo, demasiadamente lento e custoso. De bom ou mau grado, a fim de evitar a censura ea calamidade, individuos e grupos procuram usar técnicas cientificas pata predizer 03 resultados futuras. Assim, todas as Ciéncias Sociais, inclusive a Sociologia, tornam-se cada vez mais técnicas & proporcéo que progridem. Embora o fato constitua uma van- tagem do ponto de vista do progresso cientifico, tsansforma-se cm desvantagem se encarado sob o prisma da difusio do conhe- cimento; dai 0 eslérco especial que deve ser empregado no pro cesso de divutlgacio juntamente com 0 desenvolvimento da tecno- logia_daquele campo cientifico. Seja-nos permitido fazer uma simples ilustracio do valor profético da Cigncia Social sistematica, Entre nés, a constru- Gio dos edificios escolares piiblicos representa uma grande inversio de capital. A fim de evitar um investimento muito grande ou demasiadamente pequeno, cada cidade precisa couhecer o total aproximado dos futuros alunos ¢ suas respectivas idades. Isso exige certos couhecimentos exatos sébre as tendéncias da migracao rvral-urbana e sébre as taxas de nascimentos € dbitos gue, por sua vez, dependem de consideraveis modificacses socials. cientista social (nesse caso geralmente um demografo) pode firar, relativamente a0 nimero dos futuros alunos, conclns bem’ diversas das opiniées superficiais sustentadas pela maioria dos cidadios. Entretanto, sua opiniao pessoal possivelmente representara uma economia para éles, uma vez que se a opiniio daqueles cidadios [ésse transformada na politica a sec adotada custaria um preco muito mais elevado, Por conseguiinte, os mesmos cidados mostram-se potencialmente receptivos a serem elucidados a ésse respeito, e parte do trabalho do especialista fica no apenas limitada a predizer o niimero dos futuros alunos em idade escolar da cidade, como, também, a demonstrar a Validez dos seus resultados pela exposicao da técnica empregada a NATURREA Da SOCIRDADE UUMANA Aparentemente, 0 maior resultado da Ciéncia Social é obtide com a realizacio de uma tarefa dupla — primeico, um estudo ‘sstematico das relagdes caussis por pessoas profissionalmente dedicadas & andlise social desinteressada; segundo, uma difusso do conhecinento assim obtido entre a populacio geral. A ésse respeito, a Ciéncia Social talvez nfo apresente nenhuma diferenca em confronto com qualquer outzo amo de atividades cientifica: Na Medicina, por exemplo, tornou-se cada vez mais patente que 0 médico, sdzinho, mantendo os seus conhecimentos protis- sionais como sm menopélio oculto © particular, € incapaz de garantic a sade da populacio. Ao invés disso. 0 pablico em geral deve participar em certa proporcao désses conhecimentos: deve, portanto, ser insiruido sobre as necessidades sanitatias em getal, higiene pessoal, dicta apropriada, imunizacio protetora, etc. E possivel que a tarefa de difustio désses conhecimentos seja mais importante ainda, e, a0 mesmo tempo, mais dificil no terreno social que no das Ciéncias Fisica, embora a diferenca seja uma simples questi de graduagi E jo, no nosso tipo de sociedade, 0 estudo cientifico do mecanismo social surge e vé-se difundido inevitavelmente, Em conseqiiéncia, a questo relativa ao “valor da Sociologia” no € a de saber se devemos ou no dispor de tal cigncia, mas, apenas, de saber como deve ser realmente usada. Possui, cleramente, vantagens sociais e individuais, 0 que explica a tolerdncia e 0 apoio de que desfruta, apesar dos obstaculos normativos que ra em seu cominho. Entretanto, ao estabelecer a necessidade da Ciéneia Social, € preciso ter cuidado para néo afirmar que todo conhecimento € vantajoso, ou que as crencas ¢ praticas sem base cientifica sio obrigatdriamente prejudiciais, E mister observar que a propria ordem normativa, to necessaria & sociedade ¢ to cheia de restrigdes para com a Sociologia, contém inevitavelmente elementos ilégicos © no empiticos e, assim, ndo pode basear-se exclusiva mente na ciéneia, Em outras palavras, nenhum sistema de mozal ou de ética, € muito menos um sistema social, pode provie excl- sivamente da ciéncia, embora possa constituir um objeto da citncia ¢ tirar cezto proveito ao ser considerado como tal. © Esrepo A scerpap HUMANA, 36 Perspectiva A sociedade humana, jé 0 dissemos, ¢ nica porque depende da cultura, E uma vez que esta ¢ uma questao de tradicio, expe- rimenta variagoes de um grupo ou de uma sociedade para outra. E essa eterna variacdo cultural que torna complexo 0 estudo da associactio humana, sobretudo devido ao grande valor que cada grupo empresta & sua forma peculiar de acdo e a sua ignorancia ou desprézo pelas outras formas. Em nossa grange mavotia, alimentames a comoda ilusso de pensar que © nosso niogo de agir & © mais sensato, se nao mesma o tnica Possivel. Pode haver colsa mals natural que fazer tes releipbes por Gia os dormir 2 noite? No enfanto, na Bolivia, exfsten i pensam le forma diversa: dormem somente algunas horas, levant fe para comer alguma coisa, Vollam a tm segundo sono, fevantan se sesim’ por diantes © de todas ae wise que © fulgam nceessdrio no tim o menor escripulo de dormir dorante 0 fia. Nés dirigimos 9 nosso carro pelo Indo direito da estrada: pode haver coisa mais logica para as pessoas destras] Todavia. na Gr Bretanha, Suécia e Austra, o costume € exatamente 0 contra embora 0 canhotisno nao seja mals comum por 18 que em qualque uta ate natural apontac como. dedo.indicador? Noo. Indios noyte-americanos. fazem-no esticando os Fabio se pode dizer que soja una rogra fia desmamar 4 crlanga sor nove meses: entve as tibos da Africa Orlental eo {ndios Navajos do Arison, of fihos de geatro e clnco anor ainda ‘orfem pata ster 0 slo. matern. ‘Suing, existe apemis um snelo de veriflcar ge wma idéia ow tum costume @ natural eu apenas convenclonal. ot scja a1 experienc iso signilica do a nosealimitada esperiéncia em luna, no Towa, em a dos Estados Unidos, sem mesmo a da Civiliaasio Ozienta ‘como un too, mas, sim, a exknte entre os poves to Indmeras vézes, na histéria intelectual, um comportamento de tipo particular tem sido aceito como “natural” ou inerente a0 homem, ¢ muitas conclasdes teéricas foram primoresamente elabo- radas sébre esse comportamento que, de fato, nao passava de mera prética habitual a determinado grupo. Para evitar que se sala no mesmo érro, € preciso adquitir o senso da perspectiva: ¢ isso, como afirma Lowie, sémente pode sex obtido pelo estudo das demais sociedades. A literatura existente sobre citncia social publicada nos stados Unidos refere-se sobretudo aos acontecimentos regis- ML Lows, re We Celts? (Sora Yorks Mateus, Heat Weprolioide east oregon NATURE/A DA SOCTEDADE UUMANA neste paic, A Historia pode assummir aparéneias de verda- Laos ae Pag mostiarse, tio profundamente devotnds. & He Sas farlo para fal devotamento reside no fato de ser Fueamente curopeia a nossa base cultural, Devotamos menos Peet's historia da China e da fndia, embora cada um désses arenes poses uma populagio quase tio grande quanto a da Besa Assim, quando estudamos a bistérla européia estamos ceepido, em cltina andlise, a propria América. Exeecéo ainda seeiteneina a0 etnocentrismo da ciéncia social & a Antropologia Social que estuda os povos primitives. Mas 0 grosso da inves figagio ‘social norle-anteticana Timita-se & pesquisa sobre nés mesmes. “Tal localismo no terreno da cifncia social € petfeitamente com- preensivel Mosteamo-ios natuzalmente mais. iateressados na hosea propria sociedade que em qualquer outra porque € nela que vivemos. A insularidade, porém, possut suas desvantagens. Nossoshabitos instituigbes,, nossas atitudes e. sentimentos, sho-nes por. tal forma ierentes que quase munca conseguimos Tos Nossa atengao concentra-se sémente sbbre a8. crises Cine nas solucdes, de forma que a nossa cléncia social se encontra Sobrecarregada pelo estudo dos “problemas”. Assim, a andlise @ felta apenas até o momento de encontrar a solugio de um problema pratico e. muitas vézes, ef€mero. Aceltames sem Uiscussto as mais constantes © fundamentals caracteristias da nosea osdem sovial; ¢ 20 considecé-las, fcilmente as encaramos Como de natureca, universal e inevitével, algo como paste da aturesa humana”. ‘Tal atitide toma-se particularmente preju- dicial no terreno da Sociologia, que se dedica a tarefa de com- preender as notmas e instituigSes fundamentals. A. Sociologia encontra-se na embaracada posicho de ter que explicar coisas ue a maiorla das. pessoas nfo v8 por que explicar, ja que tals Cotas “esto al, foe. na "aauntss huni. ‘Fonceds de Papel impresso ja surgizam sbbre a questo da socializacdo da Medicina, mas quase nada se publicou ainda sObre 0 problema te6rico das classes profissionais da sociedade ou sobre o servigo profissional encarado como afinidade social e humana, Muito se tem escrito sabre ilegitimidade, mas priticamente nada sobre legitimidade. Muito ja se disse sobre impostos, mas quase nada sobre a instituicio da propriedade. Chega a parecer que. 10 terreno da ciéncia social, o tratamento dado aos fenémenos esté nna azio inversa de sta importéncia © RSTUPO PA SocHEMANE HIEMANSA ” A clissica teoria econémica do século XIX aceitava impli citamente certa ordem institucional. Sem essa osdem, seus prin- cipios falhariam na pratica; mas 0s tedricos, encarregando-a inconseientemente, como se fornecida pela natureza das coisas, supunham estar deserevendo situagdes reais onde as encontrassem. A moderna florescéncia do socialismo estatal e da economia totali- taria, para no mencionar os sindicatos trabalhistas, os cartéis © outros contréles monopolisticos, mostra claramente o grau de Gependéncia de um regime de “livre iniciativa” relativamente a cextos acérdos institucionais que nao aprofundam suas raizes na natureza humana, mas, apenas, em determinada sociedade e em determinada ocasido. Em outras palavras, 0 risco de assumie implicitamente certa ordem institucional reside em que tal ordem nao é, portanto, analisada ou explicada, ¢ as _genera- lizagées nela baseadas permitem uma aplicacao muito mais ampla gue a que realmente possvem. No campo da Sociologia devem-se aplicar todos os esforgos possiveis para vencer a tendéncia 20 localismo, para apreciar © fato da relatividade cultural, De outra forma, 2 natureza da sociedade e da cultura nfo pode ser compreendida. Materiais relativos a outras sociedades que nao a nossa — sobre as antigas civilizagées, s6bre os paises estrangeitos, sobre as tribos primitivas, ‘ou até sobre as sociedades animais — devem ser devidamente utilizados. Sémente assim é possivel realizar uma Ciéncia Social geral. Sémente assim podemos criar uma perspectiva e fugit as algemas de nossa propria cultura, Sumario De uma tnica premissa ~ a que pretende que a singula- ridade do homem repousa no seu eabedal de cultura — nasce a maior parte dos problemas discutidos neste capitulo. Isso porque, embora a Ciéncia Social em si mesma constitua parte integrante da cultura, a principal limitacao imposta ao seu desen- volvimento € a exist@ncia de normas culturais que nfo devem ser diseutidas. Para que exista uma cincia geral da sociedade {como deve set a Sociologia). ela precisa estudar, entre outras coisas, exatamente esses normes, Entretanto, registra-se uma fendéncia para fugir a essa necessidade pela accitacao passiva das instituicbes basicas e pela concentragio sobre nossa propria sociedade a fim de estudar os problemas mais efémeros © pra- tices do momento. Desse,forma, sio neglcencados alguns dos roblemas hisicos da Sociologia. Ademais, e uma vez que @ fultuia € transmitida por comunicagdo em lugar de sé-o por hheranca, ela ndo € uniforme para as diversas espécies como um todo (como no caso dos padsdes sociais entre artimais), mas varia de uma sociedade para outra; dai que a concentracao de atengdo sdbre nossa propria sociedade com a exclusto das demais torna dilicil conseguir um grau suficiente de generalidade, Uma cigncia geral da sociedade nao pode ser elaborada pelo estulo de uma dniea sociedade, mas sim pelo estudo de sociedades dife~ rentes. Tal cigneia precisa ser capaz de medir os limites de varia- co dos acérdos sociais e, assim, revelar qual a caracteristica de todas as sociedades humanas e qual a de apenas algumas. Sendo 0 objetivo da presente obra apresentar os principios da Sociologia geral, da inteiro crédito aos dados comparativos, O valor dessa atitude comparativa tomar-se-é, espero, cada vez mais claro no decorrer da argumentacéo futura. Referéneias ch Bens, Baer of Caltre (Nows Ypcki_ Penguin Books, 1946] Cap i Siege of Cates Gap. 2, “Tie Dierly of Cale ‘Baudo compgratico das cults como fat newt. & verdad cits seta "to sonata . “Sociol Olgades fo the Acceance of Brising SgRiat For, Wot 36 (outs 1547). pogh 78 rile Diskin, Ti Rees of Socoiogical Afthed (Cheapo: Univer siy of Change Pres, 1536) Tradayio de wma ober close, Morne Ginsberg, Socwoay (Nova Yooks Holy 1998), Cap. 1. "Scope and ‘Mths of Sotelogy Diswstotiptamente. ete, pote inform Iago bei, , Greenwood, Experimental Socotgy (Nove York: Columbia Usiver- sy Be ay Mota 0 popresso regirado mo dewenwoeimanto das tGeicas expe corges Gulch © Wibet , Moore (edtaxes), Ponti Cetueg Scvsiopy! (Now Vers Paleapial Eiacy IS8) especialmente CAP one Cala capita ca oben descreve um emo ow axpeto do Socagtn iva. © autor & wm seid AMR © HSTUDO DA SOCIEDADE HUMANA a Robert K. Merton, “Sociological Theory”, American Journe! of Soci logy. Vel. 50 (aio, 1945), pags. 462-473. Bisse mimeco do Journal € infeiramonte dedicado & Sociologia contem: orden e seus vieios ramos, juntamente com a. narrative referent aos tltimos 30 anes. O artigo de Merton € una poya notavel sobre a nati dda teoria © da pesquisa seciolégleas, apresentada com grande tucides Gwynne Netter, “Toward a Definition of the Soclologist", American Sociological Review. Vel. 12 (out, 1947), pigs, 553-360. Uma esplicasso concisa da confusio existente sibre a nofu Individea, © soctslogo. Robert W. O'Brien, Readings in Goneeal Sociology (Palo Alto: Paciéie Books, 1947), Cap. 1, "The Scientific Method Contém virios € interessantes artigos sabre a aplieasio dos métados quantitatioce & clereia soetal Villeedo Pareto, The Mind and Society (Nova, York: Harcourt, Brace, 1935). Vol. 1, Cap. 1, “The Scientific Approach Yio vigoroso estado sibee 0 mitodo civmtfico na Cigneia Sociel Pareto expos magistralmente os processos empircas dos’ cientsfas.soelats, Talcott Parsons, The Structure of Social Action (Nova York: MeGraw- ill, 1937), Cap. A notureza do método e da teoria cientiticos aplicatos & aco social Una das melhores obras da literatura soclolsgica, = do Ewin R.A. Soligmaa, "What Are_the Social Sciences"? Eneyetoneia of the Social Sciences Val, Wy page. 3.7 ves Uma excelente expos das habluats delinigdes, das diveeses Citncias Soctais." Vide, também 08 artigos sibre.*Satislogy”, “Anteopslogy'. ie ontdos nesta alone’ encclope ivagd A. Shils Tle Broent Stato of Anerson Socilosy (Glence, Illinois: Free Press, 1948). a Breve conteibusdo erica das aides correntes no campo da Socioe fogia ‘norte-americana, da autoria de alguém eujo. porto de vista, parse sige’ emargr orem bom iformade. Lous Wirth, “Responsibility of Social Science", Annals of the Ams rican Academy of Political and Social Science, Vol, janeiro, wean dende Vel. 269" () 1947), Uma anitise da natureza da pesquisa sociel © da. cesiué E oposta. Esse rimero do Annals ¢ tateiramente dedicado a” ‘ations ‘of Modern Selence”. wie ee Forian Zoasssk, The Metied of Sucfogy (Nova Yorks Fanar & Rinchor, “I934). Cap. "The. Selection and” Deleseianing ok Sena Data’: Cap. 2, "The Principles of “Selection BAS De Poort giasnes of Selection of Ciitwal Data": Cap. Uma eseetent dos fatos, que ce que the ial Impl riba : ontbuigdo aos cernos problemas das pesqusas pessais fa novas feorlas no campo das Ciencias Sociuis. SOCIEDADE HUMANA VERSUS SOCIEDADE ANIMAL 5 sixes HUMANOS nio so as Gnieas criaturas que vivem fem sociedade. Formigas, térmitas, passaros, macacos, monos e uma infinidade de outros animais fazem o mesmo. Nesse caso, seria surpreendente se a sociedade humana nfio man- tivesse relagdes com as sociedades animais. Na verdade, o simples fato de possuir 0 homem um organismo que evolui das formas mais primitivas sugere que a sociedade humana se desenvolveu gualmente de protétipos animais. Tal conclusio, amplamente comprovada pela evidéncia cientifica, no dade humana soja idéntica a sociedad= animal ou que 0 cor mento desta altima substitua satisfatésiamente 0 conhecimento da primeira, Signifien, apenas, que a sociedade humana € wm fendmeno to natural como qualquer outro objeto de investigacdo cientifica e que, ao tentar estudé-la como um todo (como pretende fazer a presente obta), ganha-se a mais ampla perspectiva a0 observa-la, em primeiro lugar, na sua acdo evolutiva, Somente pela observacio daguilo que © homem possui de comm com as utras eriaturas pode-se descobrir 0 porqué da sia singularidade, jfica que a socie- Antes de discorrer s6bre tipos de sociedade e sdbre 0 advento do tipo bumano, tratentos primeiramente das caracteristicas basicas de qualquer sociedade. Quais sao, em outras palavras, as caracte- risticas universais da sociedade, ¢ quais as condicdes fundamen- tais a ser consideradas antes do aparecimento de tais caracte- risticast? —— i MANA VERSUS SOCIEDADE ANIMAL! As caracteristicas basicas de uma sociedade ‘Tedas as sociedades, animais ou humanas, possuem certas coisas em comum que levam a classificé-las em conjunto. Em primeico lugar, envolvem certo nivel de associacto mais préximo © mais complicado que uma simples congregacéo, porém mais amplo ¢ menos complexo que um organism. Em segundo lugar as unidades que retinem nesse mesmo nivel nao sao células ou Srgios, mas individuos. Antes de pocermos compreender as sociedades €, pois, necessario saber algo sobre as congregaco por um lado, ¢ 08 organismos, por outro. Uma congregacie consiste em individuos ligados entre si apenas devido a sua sujeicdo passiva &s mesmas condicdes extemas. Assim, uma inundagéo, por exemplo, pode reunir um grupo acidental de animais ou insetos. Da mesma forma, a tem- peratura, a umidade, a gravidade, a luz, ou qualquer outro esti- imulante extemno capaz de provocar uma reacio comum, pode dar lugar a uma concentracio de criaturas sensiveis a ésse estimulo, mas insensiveis entre si. Tais conglomerados no cém mais semelhanca com uma sociedade que a que poderia ter uma tempestade de areia, como qualquer pessoa pode ver apés observar 05 insetos que enxameiam em tro da luz A verdade & a mesma se, em lugar dos tsopismos, conside- rarmos 08 apetites como base da associacie. Ainda continuamos no nivel da congregacio se 0 apetite fr satisfeito direta © in vidualmente pelo ambiente externo, tal como ocorre aos animais que se dirigem a um bebedouro comm. Somente quando os demais organismos do grupo auxitiam na satisfac do apetite ou quando constittem por si mesmos os meios de satisfacéo ou resposta, & que se podem considerar lancadas as bases da verda- deira sociedade. Se uma aleatéia de lébos mata a caga que de outra forma nao poderia ser morta, est’, nos limites désse fato. constituindo uma sociedade. Se as larvas da vespa segregam tum liquido fino e adocicado que é sugado pelas abelhas operérias que as alimentam, essa atividade miitua, chamada "trofalaxis constitu uma relaco social. Em suma, os tropismos apetites sonstituem uma base da associaco societdria apenas quando unem os individuos entre si numa teia de estimulo cosrespon- déncia mitua. Sem essa correspondéncia mitua 96 pode existit uma reunigio meramente acidental que se dissolve com o desa- a Fe NATURKZA DA SOCIBDADE HUMANA parecimento do estimulo externo, Assim, a congregacio nso tem C poder da autoperpetuacao, no possui capacidade de resti- tuigao ou resistencia, nem qualquer fOrca de unidade interna. Naturalmente, nos casos reais, as vézes dificil tragar a linha diviséria exata entre reuniio © sociedade. Existem sociedades de nivel excessivamente baixo que mais se parecem a congre- gacoes. A tais sociedades podem faltar algumas das caracte- tisticas gue geralmente associamos & expresséo socicdade, tal come a "eonsciéncia mitua”. Ademais, convém ter em mente gue uma relagao social — isto é, uma relacio de estimulo reci- roca no’ significa sociedade. Sémente quando existe um Sistema de celagdes € que podemos usar com propriedade essa Desde que uma sociedade retine crganismos que se estimue Jom reciprocamente, pode surgir a idéia de compreendé-la pelo estudo dos individuos que a intepram. Tal idéia contém um principio de verdade, e também de falacia. A compreensio dessa Gificuldade exige um ligeiro exame da diferenca existente entre © organismo © a sociedade. © organismo um complicado sistema de relagdes entre células. "Nada mais sendo, sua existéncia depende das células: ko entanto, possti uma unidade e uma estrututa prépria que néo podem set compreendidos apenas em térmos das respectivas Células, De fato, estas vivem © mortem enquanto o organismo subsiste por um periodo de tempo muito mais longo. organismo tem uma histéria viva que persiste através dos estadios do erescimento, maturidade, decadéacia e morte. Possui duas necessidades precipuas: nutricio, para dispor da energia que a vida exige, e protecio, para que possa ter a opoctunidade de viver. Entzetanto, o objetivo final da natureza nfo consiste nna perpetuacéo do orqanismo particular em si mesmo, que deve desaparecer dentro em pouco, mas na petpetuacio da espécie Assim sendo, © organisimo tem outra necessidade fundamental que, como tal, nasceu da sua propria estrutura. E a necessidade de reproducéo. Em seguida plena realizacio da reproducio, © organismo definha e desaparece. claro que, uma vez que parte da sua mutzigdo é transmitida a deseendéncia, a necessidade nutritiva do organismo se tora parcialmente subserviente da necessidade reprodutora. Da mesma forma, desde que o sistema profetor ajuda 0 organismo no sdmente a encontrar e guardar seus préprios alimentos como, também, a realizar 0 ato da repro- a SOCIEDANE HUMANA VERSUS SocKSDADH axiatAt. a ducio, a necessidade de protegio é igualmente subserviente. Na verdade, as trés necessidades fundamentais — protegio, nutricio € reproduséo — séo interdependentes e contribuem, t6das, para a perpetuacio do que é, de fato, uma realidade decorrente, a espécie. Da mesma forma que um organismo, uma sociedade € um sistema de relacdes, mas de relacées entre os proprios organismos € nao entre células, Tal como aquéle, possui uma estrutura deter- minada; e as partes dessa estrutura, quando em funcionamento, contribuem para a existéncia do todo, dando-Ine uma continuidade independente da dos individuos que a constituem. # essa posse de uma continuidade ¢ estrutura préprias que torna impossivel reduzir o estudo da sociedade ao simples estudo dos seus mem- bros individuais. B como se se tratasse de uma casa que, embora coasteuida de tijolos, pregos, argamassa e pecas de madeira, néo pudesse ser compreendida apenas em térmos désses matesiais; ela tem uma forma especifica e funciona como uma casa completa. A vida em sociedade serve como meio de ajustamento 20 ambiente, dando a férca dos nimeros e da especializacio aos individuos que Ihe so associados e dessa forma auxillando-os no tocante & proteséo, nutricio © reprodusio. Beneficia nio somente seus préprios membros como, também, a espécie. Muitos désses membros individuais podem ser facilmente sacti- ficados a fim de permitir que a sociedade e, conseqientemente, a espécie continue a progredir. Seu valor como meio de ajus- tamento € atestado pela freqiiéncia com a qual emergiu da histéria evolutiva, Wheeler, por exemplo, verificou que um modo societério de existéncia surgiu independentemente entre certos tipos de formigas anteriormente solitarias, nada menos de trinta vézes."'Entce os mamiferos ¢ praticamente impossivel encon- ‘rar uma espécie inteitamente solitéria. Portanto, a forma socie- lila de vida parece ter consideravel valor paca a sobreviveucia, A fregiiente aparicéo da sociedade na histéria evolutiva néo devia, porém, ocultar-nos um fato: 0 organismo é, pot definicao, essencial sobrevivéncia das espécies. Por outro lado, a sociedade & ‘essencial a sobrevivencia apenas daquelas espécies que se adaptaram a um tipo de vida social. Certo tipo de abelhas soli- Gtias conseguiram sobreviver tanto quanto as abelhas de tipo social, enquanto estas afastadas de sua colmeia, nio puderam candy G atone, Wagan, Eve ia Pi beak Bisogy (Cambrges Hara a“ NATUREZA DA SocIEDADE ICN subsistir por muito tempo? Idénticamente, 0 Homo sapiens, que yer sendo tim animal social desde que se constituiu em espécie, Tendo herdado ésse traco dos seus ancestrais animais, nao poderia ewistir afastado do, eu tipo peculinr de ociedade,|E uma, vez we surgiu numa linha descendente, a sociedade, portanto, torna-se sea necessidade biolégica e afeta a direcao da modificacio organica. (© aparecimento da sociedade pode ser encatado como um dos grandes passos da evolucio — passo dado por certas espé- Ges ¢ por outras néo, Equipara-se ao aparecimento da célula, a0 dos organisms multicelulares e 20 do sistema vertebrado, como um dos progressos cruciais registrados no desenvohi- mento da vida. Da mesma forma que outros avancos, repre- genta uma sintese nova de materiais antigos, possuindo qualidades peculiares que nfo podem ser encontradas messes materiais antigos se comparados separadamente. , portanto, um verda- deizo exemplo do que se chama evolucéio emergente Para compreender que a sociedade € de fato wma resul- ante, ndo € necessdrio tragar_sua origem independente em um sem-ndmero de tipos animais, Basta perceber a diferenca existente entre ela e os organismos que a compoem. Ha algumas décadas fatras era moda comparar a sociedade a um organismo, com 0 objetivo de demonstrar que um sistema social é, afinal, um sistema. Essa analogia era interessante, porém nunca foi perfeita. As células do organismo so fixadas de forma demasiadamente Higida as respectivas relagées, completamente subordinadas 20 onganismo © por demais especializadas para serem apzesentadas como membros de uma sociedade. Nao podem ser separadas no espago, nem so independentemente méveis como aquela. Assim, (© organismo nao é, estritamente falando, uma “sociedade de eélulae", Possui gensibilidade e consciéncia (pelo menos, sob as formas mais elevadas), como nenhuma outta sociedade. Alem disso, a historia estatica do organismo nao constitwi uma earac teristica de sociedade. Indicutivelmente, existem estidios socie- tarios algo parecido com o crescimento, maturidade e decadéncia mas, como & licito esperar da menor unidade da sociedade, tais estadios aio aparecem tio bem definidos como os estidios orga- nicos. Finalmente, os diversos tipos de organismos so mais dlaros, mais mtimerosos e mais féceis de classificar que os tipes Wn, Monro QWwentea, The Soist Inte (Nova York: Morenur, Bros, 1928 rigs 61 e vegan de sociedades. Por todos ésses motives, a analogia existente entre © organismo ¢ a sociedade é, sempre, e na melhor das hip6teses, uma auslogia € ndo uma identidade. Analogia, aliés, muito mais fraca no caso das sociedades de mamiferos que no das sociedades dos insetos! razdo pela qual nao apreseata qual- quer valor particular para © estudo das primeizas. No caso da sociedade humana tal attude ¢ interamente falsa, em que pese seu fenascimento ocasional provocado por um autor tio. popular como Oswald Spengler. Entdo, se a sociedade ¢ ciferente des organismos que 2 compéem, deve ser algo a Ihes acrescentar. Deve ser uma nova resultante. Mediante o sumario, podemos afirmar que a associagéo, sob © ponto de vista da unio espacial e (emporai, ocorte em todo ‘© mundo das coisas vivas. Tal unigo foi encontrada na célula, que € uma organizacdo de moléculas complexas: no organismo, gue € uma organizacdo de células; e na sociedade, que é uma organizacio de organismos. Portanto, 0 que chamamos sociedade nada mais ¢ que um simples nivel de associacéo. Envolve um sistema mais intima © mituo de reciprocidade gue a uniio acidental, mas, ainda, um sistema mais {raco e menos bem deli- nido que o organismo. © fato de tratar-se de uma associacéo de organismos fé-la qualitativamonte diversa daquele. Acres- Genta um novo elemento a espécie: e, assim, ¢ uma verdadeira resultante, Necessidadessocietérias Como sistemas vivos e em desenvolvimento as sociedades 1em certas necessidades comuns que precisam ser satisfeitas que possam progredir. Em geral, tais necessidades independentes do tipo especifico da suciedade, € podem, assim set consideradas como necessidades elementares, Deffnem os condigies necesstrias & existéncia de qualquer sociedade, inde- pendente das espécies ou das circunst€ncias. As exigéncias societarias elementares podem ser classificadas fem quatro categozias principais, a saber: primeita, as que dizem Tapeito 20s individuas na sociedade, encarados como organismos isicos; segunda, as que se relacionam com a divisio de funcao iso efegando un brilnte edces a NaTURBZA DA soctNDADE HUMANA entre os diversos individuos: tereeira, as que interessam a coesio fmitua dos individiros dentro da sociedade; e quatta, as que inci- Gem sobre a perpetuago da sociedade através de geractes Sucessivas. Podemos caracterizar tais categorias de forma mais Sucinta apresentando-2s como necessidades de populagio, espe- Gializacao, solidariedade e continuidade. TA primeira espécie de necessidade advem do fato de ser uma sociedade composta por organismos separades. Sem tals orga- hismos ~ isto 6, sem ima populacio — ela nao poderia existir, da Inesma forma gue © organismo nfo pode viver sem as suas Células. — Consegientemente, qualquer tipo de sociedade, quer composta de insetos, de animais ou de homens, deve cuidar das tres necessidades anteriormente mencionadas como caracterizando © organismo, Preciza fazer provisdes adequadas a alimentacdo da fopulagao, explorando os recursos naturals do respective habitat Eprovidenciar a divisso dos frutos dessa exploracio. Deve for- Siecer protegao a seus membros contra os perigos naturais € seus jnimigos parasiticos ou predatérios, Deve, ainda, proporcionar a continua substituicgo da prépria populacio, facilitando o contate entre og sexos ¢ cuidanda da nova descendéncia, Sao essas as ecessidades que cada criatura precisa enfrentar no caso das especies solitrias. Tudo o que faz um sistema sociel consiste em facilitar a sua satisfacdo através de certo tipo de reciprocidade de grupo. Entretanto, a prépria introducéo dessa cooperacéo de ‘grupo eria novas exigéncias relacionadas no aos organismos indi- Yiduais, ¢ sim & manutencéo do sistema social. Tais necessidades adicionais nao se verificam nas espécies solitérias, apresen- tando-se, portm, em tédas es espécies sociats. Inicialmente, para que exista a cooperago de grupo deve haver, igualmente, uma certa divisdo de trabalho, cesta forma de expecializegio entre os membros do grupo. Q gra dessa espe- Gializacio pode ser apenas perceptivel, como se dé num rebanbo de animais, ou claramente pronunciada, como no caso de una colmeia, Bsse grav de especializacdo representa uma medida importante do inirincado sistema social; mas, de qualquer forma. para que exista uma sociedade & mister a existincia de certa divisio do trabalho, Ademais, em todas as sociedades deve existir uma forma de contate entre os respectivos membros ¢ alguma motivagdo para tanto, Sobretudo, deve haver uma tole- Hancia mitua entre as membros societatios, bem como um meio de distingio entre ésses € os estranhos. De outra forma, nio haverd a coesio essencial entre 0 grupo, Finalmente, © proprio gru ou, pelo menos, sua estitira e sex carater, devam ser perpes tuados, Deve existir um mecanismo qualquer por meio do qual © sistema de relacdes prossiga além da duracdo da vida de qualquer individuo ou gecagio. As necessidades universais so de tal f n sdo de tal forma importantes para 8 Secologia Geral, apliciveis que sio a todos. os tipos, de ociedade, dos insetos ao homem, que passamos a dar um ligeir sumério das mesmas: mus Passanos a Hse I. Manutengie da. populace, a) Proviso de alimentos b) Protege contra danas €) Repredusao de novos organisms TH. Diviséo de fongdes one 2 populagie. UII. Solidasiedace de grupo, a) Motivacto do contato entre os membres bb) Motivagao da tolerancia e resistin catranhes. a mitues para com os IV. Perpetuagie do sistema social, Convém salientar que enci . , ue as exigencias relacionadas aa Classe I So caracteristicas tanto das espécies soltaries, como das espécies sociais. O que ocorre sob as condicées sociais limita-se a que essas_mesmas necessidades — relereates a nutricéo, proteio € sepreducto Tf satisfetas com 0 aurio de um novo meca- smo, a organizacéo social, que por sia Vez possui certa dades peculiares para * Fancbes dades ‘peculares para que possa desempenhar suas funcbes Pode-se organizar uma lista ainda ma spon ia lista ainda mais ampla, referindo-se penas a uma necessidade — a da sobrevivéncia societaria —. Bemmimecendo as demais como | seux simples instramentos odes-se-ia avancar ainda mais e afirmar que a necessidade final dis respeito 8 sobrevivéncia das exptcies, fcando a sociedade Propriemente dita como simples instrumento, Entretanio, nosso ferésse reside nfio tanto no resultado final como nos mecanismos & eondigbes societavias através das quals,se faz sentir tal resul- tado. ‘Para gue a expressio “necessidade" nio dé a impzessdo de Gus nes envolvemos com a avaliacio ou a ‘Teleclosia, devemos esclarecer que toda 0 seu significado reside numa’ condicéo \ecessiria & existéncia da sociedade. Dai nao se deve conclair ue os membros de um grupo social compreendam e lutem pot fais exigencias, ou que devam proceder dessa forma, Dizeios, shenas, que as sociedades, como tudo o mais, exigem a exis- ticia de certas condicoes antes de surgirem para a vidas & jue nosso interésse se limita aos varios tipos de mecanismos que Cvoluicam o stficiente para atender a tais condigées Sistemas biossociais © fato de cestas espécies diferentes de sociedades manifes- tarem modes extremamente diversos de satisfazer as necessidades Seciais oferece-nos uma base fundamental para a classificacao dos seus varios tipos. A divisio mais ampla, indicada no capitulo anterior, leva-nos aos padrdes sociais fixados pela hereditariedade ou pela cultura. As sociedades que possuem padrées fixados pela hereditariedade podem ser chamadas biossociais, enquanto aquelas cujos padroes tenkem sido fixedos pela cultura podem ser Chemadas s6cio-culturais. Entretanto, essa divisio nao é defini- tive, porgue tédas as espécies sociais, exceto a humana, oferecem © primeizo désse tipo geral (o biossocial), enquanto apenas a fumana manifesta 0 segundo (0 s6cio-cultural). No entanto, como @ homem & encontrado por téda a parte e a cultura tio Varia que permite a existéncia das maiores diferengas dentro das tspécles, essa classificacdo nfo é tao inabalavel como pode parecer fiprimeiva vista, Em outras palavras, cada uma dessas duas Classes contém indimeros subtipos: os da classe biossocial ciam-se a diferentes espécies, enquanto os da classe sécio-cultural Tigamese a culturas diferentes, Q restante déste capitulo versa sobre os tipos biossociais e trata os sécio-culturais apenas como pertencenies a uma classe geral, em contzaste com os primeicos. © reato do livre 6 enti dedicado & sociedade sécio-cultural, ou humano, em todos os seus detalhes. No mundo subtimano todos os sistemas sociais satisfazem as suas necessidades basicas, em primeico lugar, através dos mecanismos determinados pela hereditatiedade. As reacdes sociais de cada individuo nascem de uma tendéncia hereditéria para reagir de forma fixa aos estimulos fornecidos pelos demais membros do grupo. A totalidade dessas reacdes, manifestada por todos os membros do grupo, constitu: o sistema social. Nem todos os membros reagem da mesma forma, porém, porque af caracteristicas fisicas dos varios individues ‘diferem de formas a SOCIEDADE HUMANA VERSUS SocIEDADE ANIDEAL ” predeterminadas. A divisio do trabalho & levada a efeito pela especializacio fisioldgica dos seus membros. E desde que a perpe- tuacdo do sistema social € conseguida através da transmissio genes, qualquer modificago da ordem social deve originar-se, sobretudo, de uma modificacao do plasma germinstive, Por- tanto, a sociedade & uma funcio da evolucdo organica, Possui carater fundamentalmente bioldgico, ¢ por esse motivo da-se-the © nome de biossocial.’ Como se sabe, a evolucdo organica é a causa das coastantes modilicacies da estrutura hereditatia do organismo, No caso das espécies biossociais, essa estrutura here- ditéria vem sendo modificada apenas de forma a adaptar 0 orga- nismo & vida em sociedade. Consegiientemente, a melhor maneira Ge compreender os sistemas biossociais consiste em investigar os mecanismes hereditarios construidos na estrutura de cada um dos seus membros individuais. © fato de serem tédas as sociedades ndo-humanas do tipo biossocial nao significa que sejam todas iguais. E assombrosa a variedade de padres que podem ser transmitidos pela heranca genética. A diferenca Sbviamente existente entre uma sociedade de térmitas e outra de aves, por exemplo, ¢ tao consideravel que ambas podem ser classificadas em conjunto sdmente em témos dos mais amplos principios. As térmitas possuem uma divisio de trabalho grandemente elaborada, uma rigida coesio e um ambiente socialmente construide. De sua parte, as aves posstiem apenas um minimo de cada uma dessas caracteristicas ¢ ofere- cem uma grande flexibilidade em seu comportamento individual Entretanto, em ambos os casos as reacdes sociais sfio, sobretudo, conseqiientes da hereditariedade, Muito embora os sistemas biossociais oferecam as mesmas diferencas assombrosas registradas entre a3 espécies, mostra-se mesmo dentro das mesmas espécies, perfeitamente padronizados Sendo hereditirio, eada tipo de sociedade € caracteristico das espécie, como um todo. Por outro lado, a sociedade humana néo apresenta a mesma uniformidade. Embora todos os séres humanos ‘atuais pertencam & mesma espécie, os respectivos padrdes sociais, diferem enormemente entre si no tempo e no espaco. Isso se da Rorque tais padres so determinados nfo pela heranca genética, mas pela transmissio cultural. fe (GAR Saga, Phe Bmerree of Haman Cuore (Sora Nek: Mew,

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