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Um Sertão Chamado Brasil. Lima, Nísia Trindade. O capítulo 4 contribui para a discussão em saú-
RESENHAS REVIEWS

Revan: Iuperj, Ucam, Rio de Janeiro, 1999, 232 pp. de pública, ao considerar as viagens ao interior e as
campanhas de saneamento rural. Aborda também
Helena Amaral da Fontoura a construção da imagem de ‘brasil doente’, enfati-
Faculdade de Educação da Universidade Federal Flumi-
zando a idéia de sertão como atraso associando-o à
nense.
patologia, ao abandono, ao isolamento e à essência
da vida nacional. Apresentando a perspectiva higie-
Este livro é produto da tese de doutorado de Nísia nista, que se encontra na raiz de nosso entendimen-
Trindade no Iuperj – que recebeu o prêmio de me- to sobre saúde e conseqüentemente sobre nossas
lhor tese de sociologia defendida em 1997. Dividi- propostas de prevenção e de pesquisa, a autora exa-
do em seis capítulos, tem como temas principais a mina o papel de Belisário Penna, médico sanitaris-
construção da nacionalidade e a reflexão sobre a ta e etnógrafo que contribuiu para trazer a perspec-
identidade dos intelectuais. A autora reflete sobre tiva do interior para a análise da construção social do
entrecruzamento das visões que intelectuais brasi- Brasil. Analisa ainda a importância de Edgard Ro-
leiros trazem, em seus escritos, a respeito do desen- quette Pinto, médico e antropólogo responsável pe-
volvimento da identidade cultural de nosso país, a la divulgação de uma imagem dos sertões bastante
partir de visões polares de sertão e de litoral – este influenciada pelo movimento sanitarista.
correspondendo ao desenvolvimento e aquele ao No capítulo 5, ao trazer a figura paradigmática
atraso. Faz com que vejamos, ainda, através de suas do Jeca-tatu, examina uma concepção de persona-
articulações com a produção em ciências sociais, a gem do sertão, uma das mais fortes representações
inadequação desta oposição binária e a pertinência do homem rural brasileiro, e discute sobre a capa-
de uma visão constitutiva, em que estejam incluí- cidade de generalização de tal figura. Jeca-tatu con-
dos ambos os pólos e todas as nuances. segue englobar, entre outros tipos, o sertanejo e o
No capítulo 1, a autora articula teoricamente a caipira, ambos símbolos nacionais representativos
construção do pensamento sociológico no Brasil e e muitas vezes espelhos para alguns intelectuais que
suas matrizes de interpretação, sempre referida à se querem ver retrato do Brasil, ao se identificarem
idéia de sertão/litoral como polaridades presentes como interioranos, sertanejos ou até mesmo des-
na constituição da ordem social. De acordo com sua terrados em sua própria terra, para usar a expressão
pesquisa, há um contraste entre sertão e litoral – o cunhada por Sérgio Buarque de Hollanda.
litoral associado ao moderno e o sertão ao atraso –, Finalizando, no capítulo 6, a autora reflete sobre
embora esta polaridade tenha convivido com a con- o Brasil e seus contrastes no período de institucio-
cepção oposta de superficialidade litorânea em con- nalização universitária das ciências sociais, com-
traposição à autenticidade sertaneja, presente es- preendido entre 1933 e 1964, tendo como referên-
pecialmente na literatura de intelectuais como Eu- cia os estados do Rio de Janeiro e São Paulo. Apre-
clides da Cunha, Vicente Licínio Cardoso, Roquet- senta como pano de fundo, principalmente, a análi-
te Pinto, Belisário Penna e Monteiro Lobato, entre se dos conteúdos temáticos desenvolvidos e as pers-
outros. pectivas de abordagem no que considera o período
O capítulo 2 traz a representação geográfica da (re)fundador das ciências sociais no país. Aqui fi-
identidade nacional, desenvolvendo-se as idéias de cam bem claras propostas de modernização e desen-
processo de ocupação do território e mobilidade volvimento apresentadas nos escritos de paulistas e
populacional como veículos construtores de deter- cariocas, a discussão proposta pela autora quanto
minadas representações sociais no processo de na- às representações da identidade nacional – ora mais
tion-building. Enfatiza-se a perspectiva de aproxi- para o discurso nacionalista (sertanejo), ora mais
mação entre o termo sertão e a busca de uma expe- para o discurso modernista.
riência americana, em contraste com litoral e uma Em suas considerações finais, após abordar o
idéia mais européia de fronteira. Estas imagens ali- sertão por diferentes perspectivas, realça a tensão
cerçam as construções feitas por intelectuais brasi- permanente entre os contrastes, as desigualdades
leiros que se ocuparam da construção da imagem que tanto permeiam o discurso sobre o Brasil e que
do país desde o final do século XIX até meados do se refletem na ambivalência dos pensadores do tema
século XX. identidade nacional, até mesmo com relação à sua
Já no capítulo 3, a autora faz uma retrospecti- própria identidade. Por exemplo, a idéia de força,
va do papel desempenhado pelas expedições ao in- obstinação e coragem sertanejas aparece muito nas
terior na produção dos intelectuais das décadas ini- investigações sociológicas que se desenvolveram a-
ciais do século XX. Possibilita, assim, que localize- pós 1930, o que pode ser um indicativo de ambiva-
mos as raízes de uma imaginação sociológica nas lência no paradigma de sertão como atraso. A au-
viagens ao interior realizadas, nesse período, por tora propõe, então, que rever nossas matrizes de pen-
geólogos e engenheiros, militares e cientistas de ins- samento social parece-me, nesse contexto, um dos ca-
tituições de saúde pública, atendendo a objetivos minhos necessários, nesse esforço de compreensão da
considerados estratégicos do Estado e trazendo, a- sociedade e de nosso próprio papel (p. 209).
través de valiosos estudos etnográficos, tanto a ela- A narrativa clara, fluente, envolvente, discorre
boração de novas interpretações sobre o Brasil sobre aspectos relativos à construção da identida-
quanto a constituição de suas próprias identidades de nacional, incorporando a idéia dos muitos bra-
como atores sociais. sis, de contrastes, como é o caso da polaridade en-
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tre sertão e litoral – presente nas interpretações dos as necessidades humanas de maneira sustentável, é
intelectuais – em uma perspectiva não dual, mas essencial avançar no sentido de se utilizar mais efi-
processual. Parabenizo a autora por ter contribuído caz e eficientemente os recursos da terra. Assim, a
sobremaneira para ampliar o entendimento sobre Agenda 21 estabelece, como um dos seus objetivos,
a construção social de nosso país. melhorar e fortalecer os sistemas de planejamento,
gerenciamento e avaliação da terra e dos seus re-
cursos, até o ano 2000.
Gestão e Avaliação de Risco em Saúde Ambien-
tal induz à reflexão sobre as transformações que
vêm ocorrendo no meio ambiente e sobre as con-
Gestão e Avaliação de Risco em Saúde Ambiental. seqüências para a saúde humana e ecossistemas,
Brilhante, Ogenis M. & Caldas, Luiz Querino de A. quando analisadas de forma integrada, à luz dos fa-
(coords.). Editora Fiocruz, 1999, Rio de Janeiro, tores ambientais, sociais e econômicos. Apresenta,
155 pp. em quatro capítulos, uma abordagem integrada das
metodologias aplicadas à gestão e à avaliação do ris-
Marta Pimenta Velloso co ecológico e humano, de acordo com o objetivo
Coordenação de Saúde do Trabalhador, Diretoria de Re-
fundamental da Agenda 21 – preservar os recursos
cursos Humanos, Fundação Oswaldo Cruz.
naturais da Terra.
No primeiro capítulo – Gestão e avaliação da
Nas últimas décadas a situação do meio ambiente poluição, impacto e risco na saúde ambiental –,
tem preocupado as autoridades governamentais e Ogenis Magno Brilhante comenta a evolução dos
os cidadãos em geral, tanto nos países industriali- conceitos de saúde pública e ambiente, considerados
zados quanto nos de economia periférica. O cres- isoladamente desde o final do século passado até a
cente processo de industrialização, que vem ocor- década de 1990, quando a saúde passou a ser vista de
rendo desde o século passado, somado ao desenvol- forma integrada e interdependente dos fatores am-
vimento de novas tecnologias de produção e à gran- bientais, estabelecendo então o conceito de saúde
de quantidade de produtos lançados no mercado, ambiental. Até o final do século XIX, a política re-
tem causado danos à saúde do homem e aos ecos- lativa ao meio ambiente se restringia à saúde pú-
sistemas. Estes produtos são denominados conta- blica, estando seu campo de atuação limitado à pre-
minantes ambientais e constituem o principal fa- venção e ao controle das doenças infecciosas. Em
tor de risco tecnológico, abrangendo o meio am- 1993, Hancock formulou um modelo de gestão eco-
biente em um sentido irrestrito, podendo levar a nomicamente sustentável, baseado na idéia de que
conseqüências desastrosas para a população do pla- a atividade econômica não deveria utilizar os re-
neta. Entretanto, tais fatores são passíveis de inter- cursos renováveis (plantas, animais e solo), além
venção tanto em suas ocorrências quanto em suas dos seus limites de sustentabilidade. Além disso, tal
conseqüências. Por outro lado, os fatores de risco atividade não deveria poluir o ar e os ecossistemas
naturais, ocasionados pelos distúrbios da nature- aquáticos a ponto de perderem a capacidade de re-
za, só podem ser controlados após terem ocorrido, composição. Nesse modelo a economia deveria ser
isto é, em suas conseqüências. não só ambiental, como também socialmente sus-
Os riscos tecnológicos têm causado muitas tentável, conceito esse que incluía o princípio da
transformações em nosso planeta: no nível local, eqüidade, isto é, a saúde não dependeria apenas da
nos grandes centros urbanos – pela contaminação geração e distribuição eqüitativa de riquezas, mas
por radiação, produtos químicos e névoa ácida – e também de um meio ambiente viável.
no nível global – pela destruição da camada de ozô- O autor descreve o modelo de controle da po-
nio e pelo efeito estufa. Considerando o risco tec- luição proposto por Gilard (1979), que tem como
nológico sob o qual se encontra a população do pla- princípios o reaproveitamento dos resíduos não as-
neta, torna-se patente a necessidade de implemen- similados naturalmente pelo meio ambiente, a mo-
tar políticas públicas globais visando a um meio dificação do processo de produção de produtos não
ambiente saudável, como pressuposto de vidas sau- reutilizáveis e a participação do público. Os resí-
dáveis. A criação de uma associação mundial em duos, quando não assimilados ou reaproveitados,
prol do desenvolvimento sustentável, baseada na transformam-se em lixo, provocando o tipo de po-
Resolução no 44/228, adotada pela Conferência das luição que desperta reação na população, que, por
Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvi- sua vez, pode contribuir, reivindicando uma legis-
mento (1989), é enfatizada na Agenda 21. A terra e lação específica. A mobilização do público também
os seus recursos naturais – os solos, os minérios, a pode influenciar no sentido de modificar o proces-
água e a biota – estão organizados em ecossistemas so de produção de resíduos não assimiláveis pelo
que oferecem uma grande variedade de condições ambiente, reduzindo a quantidade de lixo e, conse-
essenciais para a manutenção da integridade dos qüentemente, a poluição ambiental.
sistemas que preservam a vida e sustentam a capa- A poluição de um determinado local, quando
cidade produtiva do meio ambiente. A expansão das não evitada ou controlada, pode transformar-se em
atividades econômicas, por não obedecer aos pa- um problema global – risco tecnológico. O proces-
drões de um desenvolvimento sustentável, vem des- so de avaliação de impacto ambiental (AIA), inte-
truindo os recursos naturais. Porém, para atender grado ao estudo de impacto ambiental (EIA), evi-
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dencia os efeitos negativos da poluição sobre a qua- “avaliação de risco e gestão em poluição ambiental”,
lidade do solo e da água (perda da biodiversidade, é desenvolvida através de metodologia baseada nos
erosão), a qualidade do ar (smog, diminuição da ca- princípios de gestão ambiental, na elaboração de
mada de ozônio, efeito estufa), a paisagem, a saúde cenários e modelos conceituais, na avaliação de ris-
e o bem-estar humano, mostrando a necessidade co para à saúde humana e ecossistemas e nos instru-
de um gerenciamento ambiental em escala plane- mentos de gestão alternativa/avaliação de custo.
tária. No terceiro capítulo – Risco potencial em toxi-
O processo de avaliação de risco (AR) é expos- cologia ambiental –, Luiz Querino de A. Caldas ex-
to como um importante instrumento de política plica os objetivos da toxicologia ambiental. Esta
ambiental. Entretanto, os procedimentos adotados ciência, abrangendo um estudo inter e multidiscipli-
nos estudos da avaliação de risco devem conside- nar, analisa o efeito causado pelas interações tóxicas
rar o meio ambiente como um sistema integrado, de substâncias químicas nos ecossistemas e sua ca-
e não como uma fragmentada coleção de riscos in- pacidade de afetar a fisiologia normal de organis-
dividuais. Com o intuito de alcançar a integração mos vivos. O risco potencial é definido como o es-
efetiva da avaliação de risco ao gerenciamento am- tudo das probabilidades de fontes perigosas para a
biental, o congresso norte-americano, em 1990, no- saúde e o meio ambiente capazes de ocasionar da-
meou uma comissão encarregada de consolidar os nos, doenças ou morte aos seres vivos, quando em
diversos procedimentos existentes de ‘avaliação de concentrações superiores àquelas não assimiláveis
risco’ e de propor uma nova estrutura de ‘gestão de por eles. Já a avaliação de risco, considerada como
risco’. Entre as principais conquistas de tal comis- os primeiros passos no desencadeamento dos pro-
são ressalta-se a de ter formulado um procedimen- cessos decisórios, advém do conhecimento da rela-
to de gerenciamento integrado de risco, incluindo ção causa/efeito e dos possíveis danos causados pe-
mecanismos capazes de propiciar um desenvolvi- la exposição a determinado agente químico. As eta-
mento sustentável, ou seja, o reconhecimento das pas que constituem o processo da avaliação de ris-
interações existentes na saúde ambiental, na quali- co (identificação do perigo, avaliação de exposição,
dade de vida e na compreensão dos processos pe- estimativa de risco, dose de exposição, caracteriza-
los quais nossa sociedade cria mudanças (benéficas ção do risco e gerenciamento do risco) são descritas,
ou adversas) a longo prazo. O autor, então, apre- em detalhes, sinalizando para os limites do seu pro-
senta e comenta as etapas (problema/contexto, ris- cessamento.
cos, opções, decisão, ações e avaliação) relaciona- O autor lembra a importância da percepção de
das ao procedimento do gerenciamento integrado risco pela população como aspecto relevante para
de risco, proposto pela referida comissão. o estudo de risco. Esta percepção tem sido manifes-
No segundo capítulo – Procedimentos integra- tada pelas organizações não-governamentais con-
dos de risco e gerenciamento ambiental: processos tra os danos ecológicos e humanos causados pela
e modelos –, Horst Monken Fernandes e Lene Ho- exposição de agentes nocivos à saúde. Ressalta que
landa Sadler Veiga chamam a atenção para os ris- os acidentes ecológicos – como a contaminação por
cos que o meio ambiente vem sofrendo ao longo dioxina em Seveso (Itália), por mercúrio na baía de
dos últimos anos. As mudanças climáticas e a redu- Minamata (Japão), por metais pesados (mercúrio,
ção do nível de ozônio na atmosfera ocuparam es- cádmio e chumbo) nos rios amazônicos (Brasil), por
paço considerável nos meios de comunicação, mos- bifenilas poli-halogenadas em Michigan (EUA) –
trando que a vinculação do homem ao meio am- têm alertado o interesse público para a proteção das
biente é mais complexa do que a sua simples expo- comunidades.
sição aos produtos tóxicos. Ressaltam que as inter- No quarto capítulo – Avaliação de risco para a
venções antropogênicas no meio ambiente devem saúde humana e ecossistemas –, Lene Holanda S.
abranger a saúde humana e a ecologia. Veiga e Horst Monken Fernandes apresentam a pro-
Durante o processo de avaliação de risco, na re- posta preconizada pela Agência de Proteção Am-
lação específica risco/benefício, geralmente o fator biental Americana (U.S. EPA, 1989) utilizada para
econômico é mais considerado do que a saúde do avaliar o risco da poluição do meio ambiente. A me-
homem. E no caso ecológico, o risco é quase des- todologia, que instrumentaliza a referida propos-
considerado. Apesar de não estar diretamente rela- ta, incorpora o conceito de dose para poluentes não-
cionado à saúde humana, seu impacto ocasiona uma radioativos, já aplicado na área de radioproteção.
série de problemas que pode deteriorar a qualidade De forma genérica, a dose é definida como a quan-
de vida do homem, como extermínio de uma co- tidade de substância incorporada ou absorvida pe-
munidade de predadores por pesticidas, extinção lo organismo e por ele metabolizada (WHO, 1978),
local de espécies animais e vegetais, substituição de ou, no caso da radiação, como a energia média da
peixes de alto valor comercial por populações me- radiação depositada pela radiação ionizante no ele-
nos valiosas, alteração na capacidade de um ecos- mento de matéria m Icru (1980). Assim, na avalia-
sistema em depurar certo tipo de rejeito e mudan- ção da dose, é fundamental a quantificação da ex-
ça nas composições físico-químicas do ambiente. posição a um contaminante ou radiação. Mas, lem-
Segundo os autores, a abordagem das conse- bram os autores, o uso de valores genéricos de li-
qüências das intervenções antropogênicas no am- mites de concentração como unidade de controle
biente deve agregar diferentes aspectos do conhe- para contaminantes, às vezes, apresenta-se inefi-
cimento. Esta visão integrada, reconhecida como ciente – por exemplo, quando vários contaminantes
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estão presentes em concentrações próximas aos va- antropólogos que coordenam o número. Os auto-
lores-limites, o efeito combinado pode ser substan- res discutem as dificuldades inerentes à definição
cialmente pior do que quando apenas um contami- do conceito de qualidade de vida e ressaltam sua
nante excede esse valor. Destacam a diferença en- ampla utilização tanto pelos mais diversos especia-
tre os riscos produzidos pelos poluentes sistêmi- listas quanto pela população geral e pela imprensa.
cos – causadores de efeitos tóxicos (método de ava- Situado na interface entre o biológico, o social e o
liação baseado no conceito de dose) – e poluentes cultural, o conceito de qualidade de vida seria mul-
carcinogênicos – causadores de câncer. Finalizan- tidimensional e exigiria uma abordagem multidis-
do o capítulo, os autores expõem o processo de ava- ciplinar. Afirmam os autores que a apreensão do
liação de risco para a saúde humana, distinto às duas conceito em sua globalidade implicará esforços das
categorias de efeitos adversos – sistêmico e carci- ciências médicas e ambientais para transcender li-
nogênico – e ainda explicam a estimativa e aplica- mites disciplinares e focalizar a articulação entre a
ção da metodologia para efeito da avaliação de ris- saúde e o ambiente.
co ecológico. A segunda seção reúne sete textos em torno de
questões conceituais e metodológicas relativas ao
conceito de qualidade de vida. No primeiro artigo,
a antropóloga Annie Hubert discute a possibilida-
de de se avaliar em termos quantitativos um con-
ceito intrinsecamente subjetivo como o é o de qua-
Revue Prevenir 33 – Qualité de Vie: santé, ecolo- lidade de vida. Referindo-se ao campo da alimen-
gie, environnement. Bley, Daniel & Vernazza-Licht, tação e da imagem do corpo, a autora discute o re-
Nicole (orgs.). Coopérative d’édition de la vie mu- ducionismo dos modelos que identificam o ideal,
tualiste (CVM), Marseille, 1997, 224 pp. objetivamente definido por parâmetros médicos, e
o vivido, subjetivamente construído. Segundo Hu-
Elizabeth Uchôa bert, os problemas decorrentes das medidas de qua-
Laboratório de Epidemiologia e Antropologia Médica,
lidade de vida seriam uma conseqüência direta das
Centro de Pesquisas René Rachou, Fundação Oswaldo
Cruz. dificuldades de definir o conceito. A autora sugere
que a contribuição da antropologia seria, nesse con-
texto, de grande valor. No artigo seguinte, o ecolo-
O número 33 da Revue Prevenir reúne vinte e três gista Bernand Brun discute o fundamento biológi-
textos sobre questões relativas ao conceito de qua- co do conceito de qualidade de vida. Segundo o au-
lidade de vida, apresentando uma reflexão teórica e tor, mesmo sob a ótica da biologia evolucionista, a
metodológica de grande importância. Como definir questão da qualidade de vida não se limitaria à ofer-
o conceito de qualidade de vida? Quais são seus ele- ta de condições materiais definidas de maneira ob-
mentos constitutivos? Quais os critérios utilizados jetiva, ela é necessariamente marcada pela subjeti-
para a construção de um modelo de avaliação e para vidade. No terceiro artigo, Henri Picheral analisa
a definição de indicadores? Essas questões norteiam as relações entre espaço e qualidade de vida. Consi-
grande parte dos artigos que constituem o volume. derando que a satisfação de necessidades e de aspi-
O encontro entre contribuições de médicos, en- rações constituem a base da qualidade de vida, o
fermeiros, advogados, geógrafos, historiadores, eco- autor enfatiza a necessidade de se desenvolver um
logistas, filósofos, sociólogos e antropólogos refle- modelo de análise espacial que leve em conta a ar-
te a complexidade do tema, garante a riqueza da obra ticulação entre o objetivo (bens, serviços, ambien-
e torna difícil a tarefa de apresentá-la de forma re- te, geofísico) e o subjetivo (representações). No tex-
sumida. Considerando a grande diversidade de pon- to seguinte, Pascale Steinchen, advogada, focaliza a
tos de vista, de focos de interesse e de abordagens evolução das relações entre o direito ao ambiente e
disciplinares – característica fundamental do con- a qualidade de vida. De acordo com a autora, con-
junto de textos deste número da Revue Prevenir – cebido inicialmente como simples componente da
comentarei brevemente cada um dos textos que o qualidade de vida, o ambiente progressivamente ad-
compõem. quiriu a autonomia. Entretanto, de forma parado-
O editorial, escrito por Dominique Durand, Da- xal, o reconhecimento do direito ao ambiente não
niel Blay e Nicole Vernazza-Licht, destaca a distor- foi acompanhado do desenvolvimento de instru-
ção criada por um modelo de qualidade de vida en- mentos jurídicos para garantir a sua defesa. No
raizado no mundo ocidental – urbanizado, rico e quinto artigo, Philippe Mioche, historiador, anali-
polarizado sobre alguns valores significativos nes- sa, com base em três grandes períodos cronológi-
te contexto – e sua pretensa aplicabilidade univer- cos, a relação entre trabalho real e as representa-
sal. Os autores propõem uma linha de reflexão que ções do trabalho. Para ele, as transformações das
se prolonga através das quatro seções que compõem condições reais de trabalho não são acompanhadas
este número da revista. A dialética entre o universal de uma transformação imediata de suas represen-
e o particular bem como a articulação entre o ob- tações, podendo estas últimas afetar a qualidade de
jetivo e o subjetivo apresentam-se como os elemen- vida de forma não negligenciável. O texto seguinte
tos essenciais dessa reflexão. reúne definições e significados atribuídos ao termo
A primeira seção contém apenas um artigo, as- qualidade de vida por pesquisadores e professores da
sinado por Daniel Bley e Nicole Vernazza-Licht, dois área de ecologia (Bookony, Greppin, Vicari, Paccag-
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nela, Devust, Hens e Lefrèvre-Witier). O último tex- à limitação, à interrupção ou à abstenção de trata-
to da seção é a uma entrevista com Isabelle Grimaud mento; planejar a distribuição de recursos e a or-
e Claude Monleau sobre a criação e os objetivos do ganização dos sistemas de saúde) e conclui que mes-
curso Ambiente, Ecologia e Sociedade em Marseille. mo se justificado e necessário, o emprego deste ins-
A terceira seção contém nove textos focalizan- trumento cria alguns dilemas éticos, exigindo por-
do mais particularmente a relação entre qualidade tanto, uma vigilância severa no nível individual e po-
de vida e saúde. Alain Leplège e Anne Marciniak, lítico. O artigo de Catherine Déchamp-Le Roux de-
no primeiro artigo, afirmam que, mesmo havendo nuncia a tendência atual em confundir tecnologia
consenso entre os pesquisadores sobre a necessida- médica e qualidade de vida. A autora afirma que o
de de levar-se em conta a qualidade de vida na ava- conceito de qualidade de vida está longe de ser pa-
liação dos serviços de saúde, alguns problemas con- dronizado e não corresponde a nada objetivável.
ceituais continuam a permear a abordagem das re- Ela é extremamente crítica em relação ao QALY,
lações entre qualidade de vida e saúde. A primeira instrumento que mede os anos ganhos ponderados
delas seria a ausência de fundamentos teóricos das pela qualidade de vida. Segundo Déchamp-Le Roux,
medidas de qualidade de vida, e a segunda seria re- a aritmética dos QALY favoreceria aqueles que já
lativa aos limites dos modelos atualmente disponí- são favorecidos, hierarquizando a vida e podendo
veis quando se trata de apreender a percepção dos acentuar as desigualdades naturais e sociais.
pacientes. O modelo médico, na opinião dos auto- Os dois textos seguintes referem-se a duas en-
res, atribui um peso excessivo ao aspecto funcional, trevistas, uma com Jean Marc La Piana, outra com
ignorando a diversidade de valores atribuídos pe- Cristian Brunet. La Piana é médico e responsável
los indivíduos ao exercício de determinadas tare- por La Maison, unidade independente, não hospi-
fas, as variações interculturais e os ajustamentos talar, que acolhe pacientes com Aids, cujo objetivo
que podem intervir para preservar uma certa qua- principal é a qualidade de vida no fim da vida. Ele
lidade de vida. Leplège e Marciniak chamam a aten- ressalta que, nesse contexto, qualidade de vida tem
ção para o fato de que o modelo médico postula um muito pouco a ver com escalas de medida, é mais
nível ótimo de funcionamento humano ao qual as- uma questão de relação com o outro e de respeito ao
pirariam todos os homens, mas que, muitas vezes, outro. Cristian Brunet, professor de anatomia e ci-
sob o pretexto de recolher percepções dos pacien- rurgião, é entrevistado sobre suas atividades de pes-
tes, as pesquisas construídas a partir deste modelo quisa. Brunet explica que seus trabalhos de inves-
continuariam apenas a refletir julgamentos profis- tigação buscam aumentar a segurança dos veículos
sionais. Para que os pacientes possam verdadeira- e, em particular, aumentar o conforto dos indiví-
mente expressar suas opiniões, nos lembram os au- duos que devem permanecer assentados enquanto
tores, é preciso que as perguntas dos questionários dirigem visto que o ser humano não foi feito para per-
reflitam suas reais preocupações. Leplège e Marci- manecer assentado durante muito tempo.
niak sugerem a substituição do conceito de quali- O artigo seguinte, escrito por Marie-Odile Car-
dade de vida pela noção de saúde subjetiva, que lhes rère, Gérard Duru, Béatrice Fervers e Hans-Martin
parece mais adequada. Späth, focaliza aspectos práticos e teóricos relacio-
Pasqual Auquier, Marie-Claude Simeoni e Hé- nados à avaliação econômica em saúde. A avaliação
lène Mendizabal, autoras do seguinte artigo, discu- econômica, segundo os autores, tem por objetivo
tem os fundamentos teóricos das medidas de qua- fundamentar decisões relativas à distribuição de re-
lidade de vida ligada à saúde, seus objetivos e suas cursos; se ela é indispensável na área da saúde, é
aplicações. Expõem também as grande linhas de também nesta área que ela é mais problemática. Na
construção e validação de uma medida de qualida- primeira parte do trabalho são examinados os mé-
de de vida. As autoras ainda se interrogam sobre a todos mais utilizados na avaliação econômica e, em
adequação do emprego em saúde da terminologia particular, os métodos de avaliação de qualidade de
qualidade de vida. Suzanne Rameix desenvolve o seu vida em saúde. Na segunda, os autores se interro-
artigo em torno de três questões principais: por que gam sobre as teorias subjacentes a esses métodos.
construir este instrumento de medida que é a qua- Concluem afirmando que, apesar de inúmeras di-
lidade de vida? Em que situações pode ser utiliza- ficuldades tanto no plano teórico quanto no práti-
do? Quais as dificuldades éticas que surgem nestas co, a avaliação econômica é indispensável. Entre-
situações? A autora lembra que, com a quantificação tanto, é preciso ser consciente dos limites de certos
da ciência no século XVII, houve uma ruptura en- conceitos e lembrar que os resultados da avaliação
tre os fatos e os valores, tal abordagem teria reve- econômica não devem ser utilizados de forma me-
lado seus limites e favorecido o surgimento, no sé- cânica; eles ajudam orientar as decisões, mas não
culo XX, de uma tendência a reintroduzir a dimen- devem substituí-la.
são qualitativa em um mundo quantificado. A me- O artigo de Bernard Barraqué focaliza a ques-
dida de qualidade de vida teria surgido, nesse con- tão do barulho e a necessidade de abordá-lo a par-
texto, como uma possibilidade de quantificação da tir de uma perspectiva qualitativa. Para o autor, as
qualidade. A autora discute as diversas situações em abordagens quantitativas e objetivas desenvolvidas
que as medidas de qualidade de vida têm sido utili- no contexto da saúde pública não resolvem os novos
zadas (para avaliar e otimizar um tratamento; es- problemas surgidos em conseqüência do aumento
colher um entre vários tratamentos; avaliar a qua- do barulho do trânsito e da vizinhança; neste caso,
lidade de vida futura para tomar decisões relativas o barulho não se refere à saúde, como no caso da
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surdez conseqüente ao trabalho, mas à qualidade var o que lhes parece essencial de acordo com o seu
de vida. O artigo de Claude Lallemand discute a modo de viver. Baseado em entrevistas com idosos
complexidade do problema de saturnismo infantil e com pessoas ao seu redor, o autor conclui que as
em Lyon. Segundo o autor, a persistência de aloja- pessoas desenvolvem suas próprias referências do
mentos antigos com muros recobertos com tinta à que constitui o envelhecer bem; são diversas as tra-
base de chumbo, sua utilização por famílias vulne- jetórias possíveis. Quatro tipos ideais de envelhe-
ráveis sócio e economicamente e as gravíssimas con- cer são apresentados.
seqüências sobre a saúde das crianças acarretam um Jean Marie Marconot reflete sobre as conse-
problema multidimensional que exige intervenções qüências econômicas, sociais e simbólicas da inun-
também multidimensionais (médicas, sociais e am- dação de Nimes de 1988 e sobre suas relações com
bientais). o passado e com o futuro. Visando ao alcance e à pre-
A quarta seção reúne seis textos. O primeiro, servação da qualidade de vida da população, o au-
escrito por Jean Pierre Besancenot, discute as rela- tor aponta como essencial o estabelecimento de um
ções entre clima, saúde e qualidade de vida. Segun- debate entre a ecologia e a economia.
do o autor, o clima é um elemento determinante da Os dois últimos artigos da seção focalizam o
saúde e da qualidade de vida, ressaltando, entretan- impacto de transformações econômicas sobre as re-
to, que o impacto de determinado clima sobre o or- lações sociais e a qualidade de vida de populações
ganismo não corresponde de maneira exata à per- africanas. O trabalho de Séverin Cécile Abega foca-
cepção do prazer e conforto que ele proporciona; liza as relações entre qualidade de vida e alimenta-
em alguns casos a distância entre um e outro pode ção. A partir da confrontação entre três tipos de so-
ser enorme. O autor discute ainda o impacto do ciedades e de suas características sociais e econô-
avanço da tecnologia, do progresso da medicina e micas, analisam-se o valor cultural dos alimentos e
das transformações surgidas com o passar dos anos as conseqüências da introdução de uma nova esca-
sobre relação clima/saúde. Gérard Bourgeat explo- la de valores. Hélène Pagezy discute, em seu artigo,
ra, em seu artigo, a noção de conforto térmico. Ele a evolução na África central de dois indicadores de
emprega a teoria das representações sociais e o mé- bem-estar (número de filhos e prestígio social) em
todo de análise de semelhanças, com o objetivo de conseqüência das importantes transformações que
explicitar idéias, opiniões e atitudes que compõem caracterizam o continente africano.
esta representação. Como ponto de partida, distin- A leitura global do número, algumas vezes, nos
gue a noção de conforto térmico da de temperatu- frustra. Algumas colocações são repetitivas, alguns
ra ambiente, enfatizando que, em muitos casos, os textos, muito específicos e outros, demasiado ge-
parâmetros físicos têm papel mínimo sobre o sen- rais. Entretanto, a pluralidade e heterogeneidade de
timento de sentir-se bem. contribuições constituem a riqueza do conjunto de
Serge Clément se interessa pela percepção que as textos. A diversidade de especialistas e abordagens
pessoas idosas têm de seu envelhecer. O autor de- convergindo em torno do tema é um convite para
nuncia a existência de uma tendência contemporâ- repensarmos os fundamentos teóricos da definição,
nea de associar, muito facilmente, envelhecimento a operacionalização e as implicações sociais, éticas
a invalidez. Tal tendência negligenciaria a atitude e políticas da utilização do conceito de qualidade
de ‘desengajamento’ que permite à pessoas idosas de vida. Sua leitura é obrigatória para aqueles que se
recentralizarem seus interesses, de modo a preser- interessam pelo tema.

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