You are on page 1of 161
Introdugaéo.... 7 Paul Watzlawick Prefacio.... 13 Peter Krieg Adeus a objetividade ..... 17 Ernst von Glasersfeld O mito da onisciéncia e o olhar do observador Mauro Ceruti 57 Como podemos observar estruturas latentes’ Niklas Luhmann * Cultura <> Conhecimento..... Edgar Morin 81 Para a autodesconstrugao de convencées. Jean-Pierre Dupuy Ficgaio e construgao da realidade sobre a distin¢gao entre ficcdes no direito e na literatura .... Peter M. Hejl E tudo muito simples (radionovela).... Siegfried J. Schmidt Pontos cegos e buracos negros - Meios de comunicagao como mediadores de realidades .. 125 Peter Krieg Perspectiva interna e externa — Como aplicar o pensamento sistémico ao cotidiano ... 135 Fritz B. Simon Entre ousadia e confusao verbal 147 Helm Stierlin Ciéncia e cotidiano: a ontologia das explicagoes cientificas ...... 163 Humberto R. Maturana Motivos elementares e elementos basicos para ‘uma teoria de agées construtivistas. . 199 | Karl H. Miller | Circulos viciosos criativos: Para compreensao das origens....... 239 Jean-Pierre Dupuy e Francisco Varela Os Autores Paul Watzlawick KE von Foerster se considera “filho de uma tipi- ca familia vienense, portanto, uma deliciosa mis- tura de antepassados de origem germanica, eslava e judaica, formada por artistas, artesaos, engenheiros, camponeses, ar- quitetos e advogados”. Esta descricao, no entanto, chega a ser atenuada porque aquele mundo vienense de antes e depois da Primeira Guerra Mundial era, sabidamente, um microcosmo de idéias, escolas e movimentos culturais, artisticos, cientificos e sociais, nico em sua maneira de ser, com efeitos que remanes- cem até os dias atuais. E a propria familia de Heinz von Foers- ter foi uma parte desse mundo: seu. bisavé deu a Viena sua identidade urbana, sua avé foi uma das primeiras sufragistas da Europa, um de seus tios foi Ludwig Wittgenstein, um outro Hugo von Hofmannsthal. Como se sabe, é mais facil empreender realizacdes ex- traordinarias como filho de uma ascendéncia de classe média ou até mesmo miseravel do que nas condigdes aqui esbocadas superficialmente. Em sua juventude pretendia dedicar-se as “Ciéncias Naturais”, o que para ele significava “uma mistura ro- mantica de Fridtjof Nansen e Marie Curie”. Ele proprio se des- 8 Paul Watzlawick/Peter Krieg (Orgs.) creve como um aluno péssimo que nunca fazia seus deveres; esquiar, alpinismo, a banda de Jazz-Combo fundada por ele, além de seu extraordinario sucesso como magico, nao lhe dei- xavam tempo para essa tolice. Excegao feita A matematica e A fisica; nestas matérias “eu sabia a resposta antes que me fizes- sem a pergunta; tudo era evidente e perfeitamente claro”. (Isto nos lembra o famoso matematico Gauss, que dizem ter declara- do certa vez em sentido bem semelhante: “A solucdo eu ja en- contrara — agora eu precisava descobrir somente os caminhos pelos quais havia chegado a ela.”) E justamente nessa fascinante capacidade dos que pos- suem um talento especial que para nés, seres comuns, ha algo magico. Como descreve Arthur Koestler em seu livro, A centelha divina, raramente as descobertas sao aquilo que imaginamos, isto é, algo completamente novo, mas sim bissociagées, que Koestler considerava relacdes praticas ou “so mentais” entre dois fatos, nunca antes estabelecidas, no entanto, perfeitamen- te conhecidas isoladamente. Os resultados praticos e os efeitos das bissociagées serao ainda mais surpreendentes e “magicos” quanto mais conhecidos forem seus elementos individuais até o momento isolados.! Isto n&o € senao o que ocorre com a perplexidade que o magico provoca em seus espectadores, e 0 jovem Heinz von Foerster revelou-se, como ja mencionamos, um magico de habi- lidade incomum. O ilusionista realiza algo “simplesmente im- possivel” mas que acaba de ser feito diante dos nossos olhos. Naturalmente esta perplexidade ocorre somente porque o es- pectador mantém sua visao da “realidade” e a bissociacao ora observada em sua realidade é “impossivel”. Sabemos que os contemporaneos de Galileu se recusavam a olhar através do seu telescopio porque aquilo que ele afirmava ter descoberto simplesmente nao podia ser verdade. Mas 0 ilusionista sabe algo mais: se ele cedesse as pressdes dos seus espectadores boquiabertos e mistificados e lhes explicasse a bissociacao (0 truque), o resultado provavel- mente seria uma imunidade permanente contra cair novamen- te nesse truque. O tio de Foerster, Ludwig, expressou este pro- cesso da seguinte maneira: Suponhamos que... [um] jogo seja assim: quem comeca sempre tem a possibilidade de vencer por meio de um de- O olhar do observador g terminado truque muito simples. Mas ninguém se deu conta disso, porque é um jogo. Nesse instante alguém nos alerta e — tudo deixa de ser um jogo. Na verdade isto significa...: que 0 outro nao nos alertou so- bre alguma coisa mas que nos ensinou nao o nosso, e sim um outro jogo. Mas, como o antigo se tornou obsoleto atra- vés do novo? Agora temos uma outra visdo e néo podemos continuar jogando inocentemente.” Em 1956, quando Wittgenstein publicou esta idéia, seu sobrinho ja havia comecado a aplica-la praticamente a ciéncia. A respectiva bissociacao de Heinz von Foerster é aquela entre observador e observado. Sabemos que a ciéncia classica teve por objetivo pesquisar 0 universo em sua realidade objetiva e independente do ser humano. Isto nao significa nem mais, nem menos, a necessidade de suprimir qualquer contaminacao subjetiva deste universo, inclusive 0 proprio observador, para se chegar a esse universo objetivo. Desde 0 inicio do nosso século, as duvidas quanto a exeqtiibilidade desse processo vém cres- cendo. Comegou-se entao a comprovar que um universo de onde se banisse todas as subjetividades nao seria mais obser- vavel, justamente por isso. A compreensao dessa interdependéncia de observador e universo observado é a preocupacao principal do chamado construtivismo radical que, desta forma, excede a teoria da rela- tividade de Einstein (segundo a qual as observagées sao relati- vas ao ponto de vista do observador) e o postulado da relagaéo da desfocagem (segundo o qual a observacao exerce influéncia sobre o observado). Neste contexto, vamos comparar 0 que Schrédinger jA postulava em 1958, portanto, em uma época em que a expressao construtivismo ainda era desconhecida no seu sentido atual : A concepcao do mundo sempre foi e continua sendo para todos uma construgao intelectual; sua existéncia nao pode ser comprovada de qualquer outra maneira.> A relatividade do ponto de vista construtivista em rela- 40 ao nosso universo e a nds mesmos é expressa de maneira especialmente clara no “Calculus for self-reference” de Varela: O ponto de partida desse calculo [ ... ] € 0 estabelecimento de uma distincao. Com este ato primitive da dissociagao, 10 Paul Watzlawick/Peter Krieg (Orgs.) separamos aspectos que consideramos serem entao 0 pro- prio universo. Partindo dai insistimos na prioridade do pa- pel do observador, que faz suas distingdes nos pontos que lhe convierem. Mas estas distingdes que, por um lado criam nosso universo, por outro lado revelam justamente as distingdes que nés fazemos e que se aplicam muito mais ao ponto de vista do observador que @ real constitui- cao do universo que, em conseqiiéncia da dissociagéo de observador e observado, continua sempre incompreensivel. A partir do instante em que observamos o universo na sua esséncia especifica, esquecemos o que empreendemos para encontra-lo nessa esséncia; e se recuarmos na historia até © ponto como isto ocorreu, nao encontraremos nada além do reflexo de nos mesmos no universo e como universo. Ao contrario do que freqiientemente se supée, a analise cuida- dosa de uma observacdo revela as particularidades do ob- servador. Nés, os observadores, nos distinguimos justa- mente pelo discernimento daquilo que, pelo visto, nao so- mos, isto é, pelo universo. Coube no entanto ao trabalho cientifico de Heinz von Foerster estender esse ponto de vista construtivista a pratica- mente todos os aspectos da existéncia humana no universo — aos problemas da percepcao, da cognicéo e das demais fun- codes do sistema neurolégico, da linguagem, da inteligéncia arti- ficial, da biofisica e, sobretudo, ao conceito da auto-organizacao de sistemas (Autopoiese). Os relatos desta edi¢ao comemorativa devem fornecer uma visao global do significado deste preceito sistémico para a moderna ciéncia natural. Entretanto, estamos apenas comecando a avaliar qual a importancia do preceito construtivista sistémico delineado por Heinz von Foerster também para as ciéncias sociais e, sobretu- do, para nossa compreensao de problemas humanos totalmente concretos. Nao podemos esquecer que a psiquiatria ainda tra- balha amplamente com o conceito da adaptagdo da realidade como instrumento de graduacdo da satide ou perturbagao men- tal e que constitui uma concepgao basica do ser humano e de seu mundo circundante totalmente insustentavel para a visao construtivista. A esta mudanca de pensamento da ménada classica para a interacao sistémica devemos novas € promisso- ras estratégias de solucéo nao somente no ambito clinico, mas também social e organizacional, e até internacional. di © nosso aniversariante possa divulgar pelo menos um es- e suas contribuigdes basicas para uma nova visaéo da e, portanto, de nés proprios. Notas ler, Arthur, Der géttliche Funke, Scherz Verlag, Bern und en, 1966. stein, Ludwig, Bemerkungen tiber die Grundlagen der Ma- ik, Bkackwell, Oxford, 1956. inger, Erwin, Mind and matter, Cambridge University Press, bridge, 1958. wrela, Francisco; “A calculus for self-references”, Internat. Journal ral Systems 2:5-24, 1975. magine que vocé seja convidado em um salao vie- nense no final de qualquer século. Os anfitrides, pessoas civilizadas (polidas) e cultas, convidam regularmente cientistas e técnicos de diversas areas, que fazem um relato re- sumido sobre seus mais recentes trabalhos. Acompanhados de vinho e pequenas iguarias, conversam em seguida sobre a pa- lestra da noite e sobretudo sobre os métodos por meio dos quais os palestrantes chegaram aos seus resultados ou afirma- gdes. Esses saloes eram tradicionais na velha Viena e também entre os cientistas fora de Viena eles eram e€ as vezes ainda sao mantidos até os dias de hoje. Se vocé imaginar ainda que 0 an- fitriao nao apresenta palestra alguma mas, através das suas perguntas, As vezes desconcertantes, entremeando truques de magica ocasionais, dos quais nao se percebe mais a longa e cuidadosa elaboracao, reconduzindo a discusséo a sempre no- vos e emocionantes apogeus, ent&o vocé ja tem uma idéia da- quilo com que o livro de Heinz von Foerster tem a ver. Justa- mente ele, que forneceu o pretexto deste livro, nao esta repre- sentado por um trabalho proprio! Ou sera que esta? Todos os 14 Paul Watzlawick/Peter Krieg (Orgs.) autores deste volume foram, mesmo que nao o saibam, por um menor ou maior espaco de tempo, convidados de saldes foerste- rianos. Suas dissertagdes também devem ser lidas como tenta- tivas de respostas as perguntas de Heinz von Foerster. Nesse sentido Heinz von Foerster esta representado duas vezes neste livro: como o criador (inventor) de perguntas e como uma cria- co (invencao) dos que respondem. Para homenagea-lo em seu 80° aniversario, tentaremos neste livro esclarecer sua influéncia, sobretudo a influéncia de alguém que sempre pergunta, nas respostas dos autores e, as- sim, seguir suas pegadas, o que em algum momento poderia le- var o leitor a Heinz von Foerster como autor. O nome Heinz von Foerster aparece nas notas de rodapé da literatura cientifica das mais diversas areas. Ele é relaciona- do ora com o construtivismo radical, ora com a cibernética, com valores matematicos especificos ou com maquinas triviais ou néo-triviais. Os autores deste livro séo representativos de muitos daqueles que ele influenciou com seu pensamento e com suas perguntas. Eles parecem estar relacionados em uma seqtiéncia caética mas talvez seja possivel imprimir uma certa ordem a esse caos: Na tradigao da literatura construtivista o fim esta no comego € 0 comeco no fim (expressao da circularidade do pen- samento, que distingue o principio construtivista). Existindo um construtivismo vivenciado, antes de tudo ele seria segura- mente identificado como a biografia de Heinz von Foerster, mas ela antes ainda devera ser reconstruida... Vamos entao abrir 0 sal4o com uma cancéo de adeus que Ernst von Gla- sersfeld, outro grande construtivista austro-americano, canta em louvor 4 objetividade. Com isto estamos no meio do tema: O universo como construcao do seu observador. Inicialmente pretendemos circundar este tema historica e epistemologica- mente, talvez com o “Mito da onisciéncia e a visao do observa- dor’, de Mauro Ceruti, seguido da pergunta de Niklas Luh- mann: “Como podemos observar estruturas latentes?” Edgar Morin apresenta a questao da relacao entre cultura e conheci- mento e seu compatriota Jean-Pierre Dupuy tenta langar uma ponte entre as tradigdes do pensamento anglo-saxonico e fran- cés, mas também da epistemologia para a literatura, com seu trabalho, “Para a autodesconstrucao de convencées”. Entra- mos um pouco em terreno literario ao que se associa também O olhar do observador 15 o artigo de Peter M. Hejl sobre fungao e construc¢ao da realidade na literatura e no direito. Bem caracteristico para as perguntas de Heinz von Foerster é que as vezes elas levam os inquiridos a divagacées e tentativas surpreendentes, 0 que também deve ter ocorrido a Siegfried J. Schmidt, que apresentou suas respostas (“é tudo muito simples...”) em forma de radionovela, que tam- bém so se revela em sua plenitude ao ser ouvida. Aqui reco- menda-se um tipo de leitura de 2° ordem, onde o leitor ouve a si mesmo (ou a um outro leitor) durante a leitura, observando- se portanto com os ouvidos. Com isto atingimos naturalmente a area da producao artistica e, assim, da pratica social, um cam- po que minha propria contribuicdo, “Pontos cegos e buracos negros — a midia como mediadora de realidades”, procura abordar (nao sem o estimulo da pergunta de Heinz von Foerster aos documentaristas que sempre afirmam que relatam “como era”: “Como vocé pode saber como era? Vocé somente pode sa- ber 0 que vocé acha agora, como era...”). A partir daqui é curta a distancia até os praticantes da terapia sistemica, que também foram intensamente influenciados por Heinz von Foerster e pelo trabalho de Fritz B. Simon, “Perspectivas internas e externas: como podemos aplicar 0 pensamento sistémico ao cotidiano”. Helm Stierlin, igualmente festejado neste ano, cujo 65° aniver- sario e jubilacao da Universidade de Heidelberg na primavera de 1991 foram festejados com um grande congresso em Heidel- berg, no qual encontraram-se, nao por acaso, quase todos os autores deste livro, contribuiu com “Entre ousadia e confusao da linguagem — reflexdes sobre a teoria e pratica sistémica”. Agora chegamos, por assim dizer, na Ultima curva do nosso sa- lao circular e nos movemos de encontro ao final e novamente ao comego, inicialmente com a dissertagao de Humberto Matura- na, “Ciéncia e cotidiano: a ontologia de explicagées cientificas”. Com Karl H. Miller, mais um convidado do salao vienense, anuncia a palavra com a contribuicao: “Motivos elementares e elementos basicos para uma teoria da ac&o construtivista”. Como véem, almejamos um fechamento do circulo por assim di- zer em um “nivel mais elevado” onde partindo da teoria e, atra- vés da pratica, visamos a fusao de ambas. E que melhor titulo poderiamos dar ao capitulo final de um livro construtivista se- nao este de Francisco Varela e Jean-Pierre Dupuy: “Circulos vi- ciosos criativos: para a compreensao das origens”. A intengao deste livro foi a congratulacdo e o agradeci- mento a Heinz von Foerster de alguns de seus amigos. Ele nada 16 Paul Watzlawick/Peter Krieg (Orgs.) sabia sobre esta intengao (se sabia, entéo, mais uma vez ele de- sempenhou o papel de nao suspeitoso com perfei¢ao). Agradecimento também aos autores que participaram com alegria desta “con-spiracao” (no sentido de Maturana). Fi- nalmente, o agradecimento também a Mai von Foerster que contribuiu com muitos nomes e enderegos e nao tem qualquer responsabilidade sobre a auséncia de tantos nomes que ainda nao constam deste livro. Heinz von Foerster tem tantos amigos, que eles (mesmo considerando apenas os ainda vivos) teriam facilmente conseguido publicar a homenagem em varios volu- mes Peter Krieg Maio de 1991 Ernst von Glasersfeld ce s mudancas ambientais, sociais e as transforma- des radicais dos fundamentos ideolégicos sem- pre parecem mais abrangentes e de conseqiiéncias mais graves que todas as revolugées da historia universal precedente para as geracédes que as vivenciam. Idéias que nés mesmos fomos forgados a reestruturar consumiram-nos esforcos muito maio- res que aquelas que ja recebemos reestruturadas. Todavia eu gostaria de ressaltar que nas tltimas oito décadas que Heinz von Foerster tera vivido no outono de 1991 houve mais revolu- des que em qualquer outra época. Isto se aplica sobretudo a perspectiva pela qual um pensador deve observar as experién- cias vividas e ao ideario simplesmente chamado de conheci- mento. Isto nao significa que em outros tempos, alguns, isola- damente, nao tenham tentado avangar na diregdo que agora co- mega a se impor, mas sempre foram atropelados pelo fator da tradicgdo e suas tentativas ficaram, como raridades, 4 margem da hist6ria das idéias. A revolugéo que tomou impulso no nosso século vai mais fundo que a copérnica, que baniu o homem da sonhada 18 Paul Watzlawick/Peter Krieg (Orgs.) primazia do centro do universo. Depois de Copérnico ainda po- diamos nos considerar o “rei da criagdo” e alimentar a crenga de sermos os Unicos capazes de compreender, pelo menos a grosso modo, a natureza da criacao. O século XX tornou essa crenga ilusoria. O que quer que entendamos sob “conhecimen- to”, nado pode mais ser a imagem ou a representacdo de um uni- verso independente daquele vivido. Heinz von Foerster disse isto com uma precisao exemplar: “Objetividade é a ilusdo de que as observagées podem ser feitas sem um observador.” Isto € mais que um bon mot. Como tantas outras formu- lagdes brilhantes com as quais Heinz von Foerster conduziu o ‘progresso da cibernética, que nao é so um slogan eficaz mas também a expressdo dos efeitos das “revolugées” cientificas com maior ou menor interdependéncia, ocorridos no decorrer dos Ultimos cem anos, das quais até hoje somente poucos to- maram plena consciéncia de toda sua extensao. Fala-se freqtientemente de “conhecimento” e de “teoria do conhecimento” e a tendéncia é entender a palavra como se se tra- tasse de compreender algo ja existente antes do ato de conhecer, quase como se fosse uma descoberta. Entendendo desta forma, cairemos inevitavelmente em uma forma de realismo ingénuo, que consiste na conviccao de que nés podemos “compreender” as coi- sas como elas so por si, como se essa acdo de “compreender” nao tivesse influéncia sobre a natureza do conhecido. Quem considerar que percepgdes e observacdes nao caem sobre um sujeito passivo simplesmente como flocos de neve pré-formatados mas que sao o resultado de uma atividade de um sujeito ativo devera questionar-se sobre como essas ati- vidades se desenvolvem. Que o sujeito atuante e a caracteristi- ca da sua razdo sao determinantes nessa atuacao, certamente, nao é nenhuma nova descoberta. Protagoras, quinhentos anos antes da era crista, ja dizia que o homem é a medida de todas as coisas (e determina) que elas sdo e como elas sao.' Socrates contudo, no didlogo de Platao, Teeteto, defende a idéia de que a percepcao pressupée algo perceptivel.? A principal corrente da filosofia ocidental fundamentou isto quase sempre no sentido realista e afirma que os produtos de percepcdo e observacao sempre deverao ser imagens ou representacées de coisas que, independente do individuo, ja “existem” em si e por si. Apesar disto 0 conceito de Protagoras continuou encontrando defenso- res convictos no curso da histéria. O olhar do observador 19 Se menciono alguns renitentes que nao concordavam com a concep¢ao realista convencional, tanto na filosofia como no cotidiano, nao quero demonstrar com isto que a revolucao atual basicamente reaquece antigas idéias e nao representa nada de novo. Na minha opiniao isto seria uma interpretagao incorreta. Ao contrario, considero importante comprovar que 0 aspecto relativista, descoberto na era pré-socratica, em parte intuitivamente, em parte com base em uma logica ainda nao formalizada, foi reafirmado com argumentos “ ‘empiricos” im- previsiveis da area cientifica, no decorrer do ultimo século. Ainda que a historia das idéias nunca tenha transcorri- do em uma seqiiéncia ordenada e linear, na retrospectiva pode- mos isolar determinados detalhes que, posteriormente, poderao ser classificados de desenvolvimento. Na época de Protagoras, Xendfanes ha muito havia constatado que mesmo se um homem conseguisse imaginar o universo tal como ele é, ainda assim nao poderia compreender a concordancia.? Esse paradoxo atormenta a todos que querem supor que o conhecimento pode refletir um universo independente da experiéncia. George Berkeley talvez tenha expressado isto da maneira mais clara possivel quando afirmou que idéias somente podem ser comparadas com idéias mas nao com o que elas devem representar.* Esta constatagao tornou-se o principal argumento dos céticos e continua sendo tao incontestavel quanto naquela época, exceto quando supo- mos uma capacidade mistica, que permite ao sujeito obter co- nhecimentos através de um caminho inacessivel a razdo. A quase totalidade dos céticos entrincheirou-se nessa posi¢ao intangivel e se contentou em repetir que um conheci- mento seguro do universo seria impossivel. Justamente através desta obstinada negacao eles contribuiram definitivamente pa- ra que o conceito do conhecimento ndo tenha sido contestado. Além disso, em todos os tempos confiamos em determinados ti- pos de conhecimento. Todos, sejam realistas ou cé icos, tiram conclusées proveitosas de experiéncias e aprendem muito no cotidiano, de que, por motivos praticos, nao podemos nos dar ao luxo de duvidar. Considerando que tal conhecimento nao pode ser importado do universo exterior como produto acabado, devemos supor que ele seja construido pela razdo. Mas esta consideracao levanta a questao irrefutavel, de como a raz4o é capaz de produzir algo aproveitavel. Este é 0 tema para o qual eu compilei algumas observacées. 20 Paul Watzlawick/Peter Krieg (Orgs.) O mistico irlandés John Scottus Eriugena (810-877 d.C.) j4 expressou isto em poucas linhas que atualmente podem servir de lema do construtivismo radical: Assim como o sabio artista cria sua arte de si e em sie nela prevé as coisas que criara... assim o intelecto cria sua razdo de si e em si, na qual ele pressente e predestina to- das as coisas que deseja realizar.> Eu nfo sei se Vico e Kant leram Eriugena. E improvavel — uma de suas obras constava do index — e sem importancia porque ambos os filésofos, que viveram quase um século de- pois, puderam chegar a posigdes semelhantes por suas pro- prias conclusoes. Vico resumiu o pensamento da auto-organizagéo cogni- tiva no principio de que Deus poderia (re)conhecer o universo, visto que Ele mesmo 0 criou. Mas o homem s6 (re)conhece aqui- lo que ele mesmo realiza.© O proprio Vico ja havia percebido que quando falamos de “fatos” referimos-nos, ao menos incons- cientemente, a alguma coisa realizada, porque a palavra factum deriva do latim, do verbo facere. (Mesmo que Vico nao tenha mencionado isto, surpreendentemente a palavra “fato” em ale- mao — Tatsache — fornece uma analogia por igualmente conter a raiz de fazer.) Para Vico, as coisas com as quais compomos nosso mun- do de experiéncias sao construidas por nds mesmos. Ele desen- volve esta teoria a partir da afirmacao de que 0 homem baseia seu universo nos conceitos do ponto e da unidade, criando formas a partir de pontos e produzindo ntimeros a partir de unidades.” Tudo isto seria obra da imaginacéo humana. A ciéncia humana, ele sugere, “nao seria senao 0 esforco de relacionar coisas de ma- neira harmoniosa”. Nos seus textos ele se reporta repetidamente a matematica, que denomina de scientia operatrix. Parece-me justi- ficado entender a “harmonia” das relagées tal qual os matemati- cos, isto €, como corregao, simplicidade e elegancia. Mas a dedugao desta alegacgao sé é mencionada de for- ma um tanto incoerente por Vico. Somente em Kant, que consi- dera a analise da razao a principal preocupacao, 0 conceito do conhecimento € separado logicamente daquele da descoberta de uma realidade pré-formatada. No prefacio da segunda edicao da Critica ele escreve: O olhar do observador 21 -. que a razo somente reconhece aquilo que ela mesma cria, de acordo com as suas concepgées, que seus julga- mentos devem ser precedidos de principios segundo leis estaveis, forgando a natureza a responder a suas pergun- tas, mas ndo precisa permitir que ela simplesmente a do- mine; pois neste caso as observacées casuais, nao elabora- das segundo planos previamente projetados, nao estariam relacionadas em uma lei absolutamente logica, que a razao afinal busca e necessita.® No inicio do segundo paragrafo da Critica ele expoe isto de tal maneira, que antecipa uma grande parte do construtivis- mo moderno: Téo-somente a relacdo (conjunctio),... jamais podera atingir- nos através dos sentidos,... porque ela é um ato de espon- taneidade da imaginacao e, como devemos chamé-la de ra- zao para distingui-la da sensibilidade, entao, toda relagao, consciente ou nao,... € um ato da compreensao... Ele ainda acrescenta que chama este ato do intelecto de “sinte- se” para chamar atengao para o fato de que nada podemos imaginar além do ligado ao objeto, sem antes termos nés mesmos feito a relacdo e, sob todos os aspectos a relacdo é a tinica representacao que nao é for- necida pelo objeto, podendo ser executada somente pelo préprio sujeito, por ser um ato da espontancidade.” Dois pontos so de suma importancia. Primeiro, quando Kant fala da “relagao (conjuncto)”, isto inclui relacionar tudo que o nosso raciocinio possa realizar. O que significa que relacionar nao abrange somente a reuniao de objetos de diversas caracteristicas sensoriais mas também a associacao dos objetos ja reunidos, a percepc¢ao ou imaginacdo de disposicées espaciais ou seqiiéncias temporais e a “relagaéo” de uma experiéncia com outra. Resumin- do, ela engloba todas as formas de relacdo, com ajuda das quais nosso raciocinio seja capaz de construir idéias conjunto de idéias. Portanto, tudo que podemos considerar reunido e a que podemos atribuir “estrutura” baseado em uma anilise, é produto da nossa propria e caracteristica capacidade imaginativa. A segunda exposicao refere-se a uma palavra da citacao de Kant que é extraordinariamente enganadora. Kant diz ali 22 Paul Watzlawick/Peter Krieg (Orgs.) que a relagao é a Unica representacdo que nao pode ser forneci- da por objetos. Esta formulagao induziu leitores superficiais a atribuirem ao objeto e depois 4 “coisa em si” propriedades e uma forma de existéncia que jamais poderiam ter para Kant. Kant afirma expressamente que nao podemos imaginar nada relacionado no objeto sem antes termos feito essa rela- cao. O objeto, desde que consista de mais de uma percepcao sensorial, foi composto por nosso ato de imagina¢ao, nao po- dendo, de maneira alguma, ser considerado como pré-formata- do. Isto torna a “coisa em si” uma construgao que so podera ser projetada para o universo 6ntico, isto é, para a “realidade” que supomos esteja do outro lado do nosso universo experien- cial, se a tivermos construido com auxilio dos nossos conceitos de relacao. Esse ponto de vista kantista é especialmente relevante quando lemos em Piaget “l’object se laisse faire” (o objeto € ma- nejavel), porque mesmo na epistemologia genética a hipotese fundamental é de que a crianga precisa construir mentalmente os objetos antes de poder trabalha-los no plano consciente.!° Enquanto a filosofia académica continuava empenhada em adotar, se nado uma conduta, ao menos a necessaria assimi- lagao do conhecimento ao universo éntico, independente de ex- periéncias, alguns dos maiores cientistas abandonaram essa ambigao por considerarem-na descabida. Hermann von Helm- holtz, por exemplo, que nas suas vastas analises cientificas considerava 0 pensamento de Kant como 0 unico aceitavel, res- pondeu um século mais tarde (1881) a questao das leis da na- tureza e sua objetividade baseado em sua propria pratica: “O principio da causalidade nao é na realidade senao a condigao de normalidade de todas as ocorréncias naturais.”"! E no seu legado encontrava-se a exposicao: Em comparacao com outras hipoteses referentes a diver- sas leis da natureza, a lei causal somente constitui uma excecéo nas seguintes relagdes: 1. Quando é a condic&o para a aplicabilidade de todas as outras. 2. Nos oferece a unica possibilidade de conhecer algo que ainda nao foi observado. 3. E a base necessaria para um procedimen- to direcionado para um objetivo. 4. Somos levados pela mecanica natural das relagdes da nossa imaginacao O olhar-do observador 23 Desta forma os motivos mais fortes impelem-nos a desejar que a lei causal esteja correta; ela é a base de todo racioci- nio e comportamento. '? Estes quatro itens séo um resumo sucinto de pensa- mentos que David Hume publicou no século XVIII em seu En- quiry concerning human understanding e que despertaram Kant, como ele mesmo afirmou, do seu devaneio dogmatico. Muitos cientistas do século XIX permaneciam imperturbaveis no seu devaneio. Helmholtz no entanto levou o despertar a sério. Em sua palestra, “Os fatos na percep¢ao”,!3 ele assume nado so a opinido de Kant, de que a singularidade dos nossos orgaos sen- soriais determina a qualidade das nossas percepgdes, como também a dificil idéia de conseqiiéncias mais sérias de que tempo e espaco devem ser considerados estrutura conceitual inevitavel da nossa razdo e nao como circunstancia do universo objetivo. Admitida essa idéia, ela trara uma mudanga radical no conceito do conhecimento, nao somente no sentido do conheci- mento genérico e pratico mas também em tudo que considera- mos cientifico e, portanto, particularmente confidvel. Quando tempo e espaco sao coordenadas ou principios ordenadores da nossa experiéncia, jamais poderemos imaginar coisas além do universo experiencial porque a forma, a estrutura e a ocorrén- cia dos fendmenos e disposigées de qualquer natureza sao im- pensdveis sem este sistema de coordenadas no préprio sentido da palavra. O que denominamos de conhecimento portanto ja- mais podera ser a imagem ou representacdo de uma “realidade” intocada pela experiéncia. A busca do conhecimento que so- mente podera ser “real” no sentido convencional quando corres- ponder fielmente a objetos existentes “em si” sera entao ilusd- ria. Neste aspecto 0 conhecimento de maneira alguma perde sua importancia fundamental. Seu significado e seu valor sao no entanto outros. O importante nao é a coincidéncia com uma realidade insondavel mas o servigo que o conhecimento nos presta. Maturana afirma que “conhecimento é a capacidade de agir adequadamente”.!4 Ao que eu acrescento que “o conheci- mento € a capacidade de compreender”, porque o raciocinio muitas vezes nos € mais importante que a agao. Em ambos os setores estamos ativamente empenhados em construir uma se- ' | 24 Paul Watzlawick/Peter Krieg (Orgs.) qiiéncia de elementos que nos permita reconquistar ou obter o equilibrio. No primeiro caso a seqiiéncia consiste de elementos sensérios-motores, no segundo, de conceitos (e como os concei- tos geralmente estao ancorados no sensério-motor, experimen- tamos os dois setores quase sempre de maneira conjunta). Na cibernética a palavra “modelo” tem um significado especial. Enquanto na linguagem cotidiana geralmente define um ideal segundo o qual alguma coisa deve ser construida ou uma imagem de alguma outra coisa modificada em alguma di- mensao, na cibernética 0 modelo muitas vezes € uma constru- cao da qual espera-se que ela possa exercer a fungdo pelo me- nos aproximada de um objeto concreto cuja estrutura dinamica nao pode ser diretamente analisada ou reproduzida. Este final- mente é o sentido exato de que necessitamos quando deseja- mos dizer que o conhecimento abstrato consiste de modelos que permitem a nossa orienta¢ao no universo experiencial, pre- ver situagées e as vezes até determinar experiéncias. Deste principio provém a afirmacao contraditoria da teoria do conhecimento de que o papel do conhecimento nao consiste em refletir a realidade objetiva mas sim em capacitar- nos a agir em nosso universo experiencial e atingir objetivos. Dai vem o fundamento criado pelo construtivismo radical de que o conhecimento deve condizer mas nao precisa coincidir. A primeira vista pode parecer que esta mudanca no conceito de conhecimento pode exigir uma ou outra adaptagao do nosso raciocinio mas, no geral, nao modifica muito a ima- gem habitual do universo. Poderiamos supor que, por exemplo, uma teoria, da qual pode-se dizer que ela condiz com 0 universo objetivo, nao precisa ser uma imagem exata mas, por condizer, reflete, em certo sentido, a estrutura desse universo. Isto no en- tanto é paralogismo porque a conclusao de que uma teoria con- diz baseia-se, na pratica, tnica e exclusivamente no fato de nao ter fracassado até o momento.!® O paralogismo parecera plausi- vel enquanto considerarmos somente a associacao tedrica como construcao cognitiva, mas tacitamente continuamos acreditan- do que os elementos que a compdem deverdo estar adequados ao universo objetivo. Que isto nao precisa ser necessariamente assim, Kant ja viu e afirmou no primeiro paragrafo da citagao acima: “Que a razdo sé admite o que ela cria segundo suas pro- prias concepcées.” O olhar do observador 25 Do ponto de vista construtivista, a adaptagao nunca é uma equiparagao e sim 0 desenvolvimento de estruturas, seja de acao ou raciocinio, que presta o servico esperado no univer- so experiencial. E 0 universo experiencial € sempre ¢ exclusiva- mente um universo estruturado por conceitos que nés mesmos criamos “segundo concepgao da nossa razao”. Para ciéncia e filosofia da ciéncia 0 aspecto construtivis- ta representa uma mudanca drastica que mal seria estudada seriamente se a propria ciéncia nao tivesse aberto perspectivas e revelado fatos nao mais compativeis com a teoria convencio- nal do conhecimento. Nos anos trinta varios fisicos afirmaram categoricamen- te que a teoria da relatividade e a mecanica quantica provoca- ram contradicées na busca do conhecimento objetivo, entretan- to, demorou muito até que esse reconhecimento comecasse a influenciar a imagem universal genérica. Gotthard Giinther for- neceu uma brilhante sinopse no seu ensaio, “A realidade parti- da”, redigida em 1958: Até agora a filosofia moderna praticamente nao se dispds a prestar contas sobre as conseqiiéncias simplesmente ca- tastroficas da atual situacdo cientifica.'° Essa morosidade na integragaéo e no processamento de novos resultados cientificos nao é lamentada somente pela filo- sofia. Uma area respeitavel e muito atuante da psicologia é 0 estudo da percepgao. Esta area foi inicialmente dividida em segmentos separados, cada um tratando respectivamente de um tipo de sentido. O estudo do universo experiencial visual ra- ramente se preocupa, quando o faz, com a pesquisa na area da audicado. Assim, por exemplo, a psicologia da audicdo produziu uma respeitavel literatura sobre um fendmeno classificado de efeito Cocktail Party, enquanto a psicologia da visao a cita mas nunca se aprofundou no seu estudo. Para experimentar esse efeito ndo precisamos de nenhum laboratério. Podemos produ- zi-lo quando, como o proprio nome sugere, somos forgados a ouvir uma histéria macante em uma festa, sendo que, atras de nds, esta em andamento uma conversa que nos interessa muito mais. Poderemos notar entao que a maior parte da nossa aten- cao estara voltada para tras e ao chato, que tenta nos persua- dir, dedicamos somente aquele minimo suficiente para emitir, de vez em quando, um som cordial em uma de suas pausas. O 26 Paul Watzlawick/Peter Krieg (Orgs.) que surpreende os psicélogos nessa situacdo € 0 fato de que o ouvinte € capaz de desviar sua atencdo no campo auditivo de um “estimulo” para outro, sem que esses estimulos se modifi- cassem de alguma maneira. Isto contraria a teoria ingénua do estimulo, segundo a qual a percepcao é conduzida pelas cir- cunstancias do meio. O mesmo vale para o campo visual, como deixei amplamente comprovado.'? Nao é tao evidente porque normalmente dirigimos o olhar imediatamente para onde dese- jamos ver alguma coisa. Mas com um pouco de paciéncia pode- mos nos assegurar de que somos perfeitamente capazes de diri gir a atencdo, por exemplo, para a porta a margem do campo vi- sual, sem desviar os olhos do livro que temos 4 nossa frente. Portanto, nao se trata somente de ligar uma atividade da imaginacao, como afirmou Kant baseado em reflexées logi- cas, mas também a propria percepcao sensorial demonstra ser conduzida pelo sujeito, baseado em constatagdes empiricas. A auto-organizacao da percepcdo encontra, entretanto, uma comprovacao muito mais concludente em uma constata- cao de Heinz von Foerster, formulada ha muitos anos no seu “Principio da codificagaéo nao-diferenciada”: A reagao de uma célula nervosa nao informa o carater fisi- co das coisas que provocaram a reacdo. E informado so- mente “quanto” de estimulacéo ocorreu nesse ponto do meu corpo, mas nao “o que”.!® Assim como o movimento auténomo da atengao no cam- po visual, que eu tenha conhecimento, ainda nenhum livro di- datico de ciéncia da percepcao se referiu ao Principio de Foers- ter. Isto é lamentavel por diversos motivos, mas quero mencio- nar aqui somente aquele de fundamental importancia para as consideragGées epistemologicas. A meu ver, um modelo atual de cognic&o nao pode se basear em representagdes comprovada- mente insustentaveis pela ciéncia. Também na pesquisa especializada, uma das principais atividades consiste em conciliar os modelos construidos para a “explicacao” de diversos fendmenos. Este é 0 motivo pelo qual os fisicos ha anos perdem noites de sono para formularem uma teoria que supere as discrepancias entre imaginagao de ondula- cao e imaginagao corpuscular no tratamento de luz e matéria. A proposta de Bohr de atenuar tais discrepancias considerando O olhar do observador 27 representacées incompativeis como “complementares” € um ar- tificio sutil que, do ponto de vista epistemoldgico, se revela como confirmacao de que a razao humana nao é capaz de pro- duzir uma representacdo coerente da natureza do universo 6n- tico. Para os trabalhos praticos dos fisicos que se ocupam com experimentos, isto é, com vivéncias limitadas e controladas, isto nao chega a ser impressionante. Abstratamente seria mais sim- ples e econémico trabalhar em todos os experimentos com as mesmas representagdes mas, para a construcao de modelos isolados que deverao ser aplicados em situac6es com delimita- ¢ées exatas, isto nado é imprescindivel. (Enquanto eu tiver so- mente que solucionar problemas oriundos da lavoura da minha fazenda, posso supor confiantemente que a terra é uma placa mais ou menos plana.) Para os filosofos da ciéncia as incoeréncias de conceitos entre disciplinas de estudos sempre sao algo inquietante. Quan- do entao se trata de um resultado, como aquele que Heinz von Foerster resumiu no principio mencionado, gostariamos que houvesse um motim, porque esse resultado derruba, por assim dizer, o fundamento no qual devem se basear todas as teorias realistas do conhecimento. A suposicao de que os nossos senti- dos podem transmitir-nos qualquer coisa objetiva do universo 6ntico caduca quando é verdade que os sinais de nossas facul- dades de percepcao sequer distinguem algo visto de algo ouvido ou algo percebido através do tato. Pelo meu conhecimento, esse resultado cientifico ainda nao provocou o menor eco. Mesmo que algum dia cheguemos a conclusao de que as informagées do sentido visual apresentam variagdes neurofisiologicas em relagao as da audic¢ao e do senti- do do tato, que nao se baseia somente, como dito por Foerster, na fonte topografica dentro do organismo da percepg¢ao, todos aqueles que desejarem falar da representacao do universo exte- rior ou conhecimento objetivo, deverao, inicialmente, desenvol- ver um modelo que esclareca como a “objetividade” poderia ser preservada ou criada nessas circunstancias. Do ponto de vista construtivista a nao-diferenciacdo da codificagao do sistema nervoso é uma oportuna confirma¢ao da afirmagao que, todo o conhecimento no universo experiencial deve ser construido, se relacionar exclusivamente nesse univer- so experiencial e nao pode ter qualquer pretensao ontoldgica em relacao 4 objetividade. Por outro lado, desejo salientar mais 28 Paul Watzlawick/Peter Krieg (Orgs.) uma vez que, tanto na ciéncia como na teoria do conhecimento construtivista, as confirmacées empiricas jamais poderado ser apresentadas como prova porque, tanto la como ca, construi- mos modelos que deverao comprovar sua eficiéncia no presente vivido e em situacdes de opcao propria. Tendo em vista a filosofia convencional que sempre se dedicou as “verdades” eternas, independentes do sujeito pen- sante, é, finalmente, necessario enfatizar mais uma vez que o construtivismo radical nao pretende nem pode ser outra coisa senao a maneira de pensar sobre 0 unico universo a que temos acesso e este € 0 universo dos fenémenos que experimentamos. Por isso a pratica da nossa vida também é a conexao na qual esse pensamento deve se confirmar. Notas Hermann Diels, Die Fragmente der Vorsokratiker, Rowohlt, Ham- burgo, 1957, p.122. Platao, Teeteto, p. 160. Hermann Diels, op.cit., p. 20. * George Berkeley, A treatise concerning the principles of human knowledge, I, § 8. Periphyseon, vol. 2, 577a-b, citado em Dermot Moran, “Nature, Man and God in the Philosophy of John Scottus Eriugena”, in Richard Kearney (ed.), The irish mind, Wolfhound Press, Dublin, 1985. Giambattista Vico, De antiquissima Italorum sapientia (1710), Stamperia de’Classici Latini, Napoles, 1858. Loc. cit, cap. 1, § 1°. Immanuel Kant, Kritik der reinen Vernunft, 1787, Raymund Schmidt (ed.), Felix Meiner Verlag, Hamburgo, 1956, B XIII. Loc. cit., B 129-130. o & Jean Piaget, La construction du reel chez Venfant, Delachaux et Niestle, Neuchatel, 1937. No complemento ao seu ensaio “Uber die Erhaltung der Kraft” (1862/63), in Populdre wissenschajtliche Vortrige, Braunschweig, 5* edicdo ampliada, 1903. O olhar do observador 29 12 Koenigsberger, Leo, Hermann von Helmholtz, vol. 1, Braunschweig, 1902/03, p. 247. (Por no ter tido acesso a versao original em ale- mao, extrai essa citagao da tradugdo de Malcolm Lowes para o in- glés do volume Schriften zur Erkenntnistheorie, editado por Moritz Schlick ¢ Paul Hertz — Berlim, 1921 — e traduzi novamente para o alemao.) 13 Hermann von Helmholtz, “Die Tatsachen in der Wahrnehmung’, stra na Universidade Friedrich Wilhelm, 1878, in Vortrdige und Braunschweig, 1884, vol. II, pp. 387-406. jumberto Maturana, “Biology of cognition”, in Maturana & Varela, Autopoiesis and cognition, Reidel, Dordrecht/Boston,1980, p. 53. também é a implicacdo mais profunda, muitas vezes omitida, idéia de Popper, colocando falsificacio no lugar da verieagao porque esta ultima nunca pode ser executada em um sentido obje- tivo. O Construtivismo, entretanto, nao coincide com a teoria de Popper, de que a seqiiéncia continua de falsificacdo € nova hipéte- se representam uma aproximac4o ao universo éntico. Vd. Conjec- tures and refutations, Kegan Paul, Londres, 1962. Veja Augenblick, 3° ano, revista 3, 1958, p. 9. Im modelo de consciéncia da construcao abstrata de unidades e _ nimeros’, in Ernst von Glasersfeld, Wissen, Sprache und Wirklich- keit, Vieweg Verlag, Braunschweig/Wiesbaden, 1987. ' Heinz von Foerster, “On constructing a reality”, in F. E. Preiser (ed.), Environmental design research, vol. 2, Dowden, Hutchinson & Ross, Stroudsburg, 1973, p. 38. Mauro Ceruti “Paradoxo = aquilo que corréi a legitimidade do ortodoxo” “Verdade = a descoberta de um mentiroso” “Conhecimento = acontece quando a ignorancia é ignorada” “Aprender = aprender a aprender” “Ciéncia = a arte do discernimento” “Observador = aquele que cria um universo, que faz um dis- cernimento” “Objetividade nao interferem nas descricdes de suas observagées” acreditar que as caracteristicas do observador “Construtivismo = quando 0 conceito-descoberta é substituido pelo conceito-invencao” “Realidade = um apoio confortavel mas supérfluo decorrente do dialogo, quando a manifestacao (denotativa) da linguagem é confundida com sua funcao (conotativa)” “Didlogo “Etica = como falar; nao podemos falar de ética sem sermos ao mesmo tempo moralistas” ver-se com os olhos de outrem” Heinz von Foerster a2 Paul Waizlawick/Peter Krieg (Orgs.) Heinz von Foerster é um dos pensadores mais influen- tes, radicais e sérios da segunda metade do nosso século. Disto eu tenho profunda conviccao. E no entanto tenho dificuldades em relacionar a razao da sua influéncia com uma atribuicao es- pecifica, mesmo que seja a cibernética. Isto também se aplica, e especialmente, quando eu procuro imaginar onde e de que for- ma 0 seu pensamento afetou a minha maneira de aproximacao dos problemas da Filosofia, da Epistemologia e da Psicologia. A grandeza de Heinz von Foerster consiste em ser uma espécie de novo Socrates do pensamento cibernético. Ainda genérica mas fundamentalmente, o Sdécrates de uma nova relacéo com o co- nhecimento. Foi pouco, mas fundamental, o que Heinz von Foerster escreveu com relacgao a sua obra de inestimavel impor- tancia, como articulador de novas idéias para a reformulacdo de problemas classicos bem como de novos tipos de problemas e perguntas. Com efeito Heinz von Foerster nao € somente um grande cientista e epistemdlogo mas também um terapeuta lin- gilistico (no mesmo sentido em que o foi Wittgenstein), sim, vou ainda mais além e 0 classifico de mestre. As paginas seguintes sao algumas anotacées dispersas,! encontradas no inicio de um estudo filoséfico, para o qual o en- contro com Heinz von Foerster foi um marco decisivo. 1. A tradi¢ao cientifica moderna comega com o desapa- recimento, podemos até mesmo dizer, com a exploséo de um cosmo finito, cujos limites fisico e simbélico assumiram sua for- ma concreta na figura das esferas celestes, que pareciam de- marcar os limites intransponiveis do universo imaginavel. O ob- servador desse universo acreditava portanto ser perfeitamente viavel conceber 0 universo discursivo do conhecimento como universo natural isomorfo. Deste ultimo resultariam os limites conhecidos e discerniveis. O cosmo, tal qual se origina das re- volugdes césmicas e fisicas que marcam o surgimento da era moderna, nao oferece mais limites evidentes e se apresenta ili- mitado no tempo e no espago, devendo, por motivos concluden- tes, ser considerado infinito. Com isto surge o problema de defi- nigao de um novo universo discursivo do conhecimento. A idéia basica que envolveu a descoberta desse universo discursivo consiste na convicgao de poder encontrar um nucleo limitado de leis, condigdes, metodologias etc., As quais as multiplas dimen- sdes daquele cosmo pudessem ser reduzidas. Tentou-se redefi- nir essa idéia inimeras vezes por meio de uma série de estraté- Oolhar do observador 33 gias. Eu recomendo definir o seu nucleo imutavel de estratégia da exploracdo. Para caracterizacéo dessa estratégia podemos listar uma série de suposigdes: cada aumento do conhecimento causa uma diminui¢éo do desconhecimento; uma vez que de- terminados setores e zonas problematicas tenham ficado defini- tivamente acessiveis ao “método cientifico”, eles sairao definiti- vamente do universo daqueles discursos e métodos considera- dos nao-cientificos; 0 curso do conhecimento se desenvolve em um sentido claro. Retrocessos e desvios permanecem sempre subordinados ao sentido basico; a missao das pesquisas cienti- ficas e da filosofia consiste na distincao dos problemas “reais” dos pseudoproblemas, resolvendo estes e dissolvendo os ou- tros.. Definida nesse sentido a estratégia da exploracao, ela passara a ser a expressao explicita de uma série de procedi- mentos e estratégias operacionais, em obra no desenvolvimento io pensamento cientifico moderno. A substituigao dos concei- tos altamente diferenciados de tempo e espaco, dentro do cos- lo medieval, que pela sua importancia marcaram aquela épo- ca, pela idéia newtoniana de tempo e espaco que consideravam 9 cosmo completamente isotropo e homogéneo, foi talvez o pon- to mais marcante no qual estas estratégias se concretizaram. Baseado na invariancia das leis da mecanica em relagao as va- tiagdes de tempo e espago, deu lugar a conviccao de que as operacoes cognitivas da extrapolacdo sao onipotentes. Como condicao decisiva para o universo discursivo das ciéncias foi ativado um principio de continuidade da realidade, conseqien- temente, 0 reconhecimento de um nticleo finito de leis naturais Nos permitiria 0 acesso aquele plano de tempo e espaco, inde- pendente da distancia até 0 observador. Este principio de conti- nuidade da realidade envolve um tipo de principio de continui- dade de tempo e histéria do conhecimento, devido ao qual os fu- turos desenvolvimentos parecem poder ser esbocados e previsi- veis. A famosa lei dos trés estagios de Auguste Comte é uma es- pecificacdo desse principio ou, generalizando ainda mais, de tudo aquilo que anteriormente denominamos de estratégia e ex- loracao. Segundo essa lei, que para Comte era uma lei efetiva da evolucao da histéria, uma vez superado 0 estagio teolégico e metafisico e ingressado no cientifico, um campo do conheci- nto torna-se definitivamente parte integrante desse Ultimo universo discursivo. Os demais planos discursivos tornam-se ineficazes. E mais: do universo discursivo da ciéncia pressu- 34 Paul Watzlawick/Peter Krieg (Orgs.) pée-se que pode ser definido como exaustivo e tendencial em definitivo. Supostamente ele seria meramente isomorfo ao uni- verso. Nesses fundamentos é criada uma topologia do sistema das ciéncias que, por sua vez, também é linear e direcionada somente a frente. Os campos do conhecimento cientifico sao classificados como exaustivos e a-histéricos. Sua ordem consti- — tutiva é considerada isomorfa a uma ordem ontolégica de cres- _ cente complexidade. Sobretudo supée-se o status contingente do contexto cientifico, tal como se apresenta por determinado momento, como norma diretriz de futuros desenvolvimentos. A construgao do universo discursivo da ciéncia em tor- no desses principios de continuidade encontra expressividade nas famosas imagens de deménios de P. S. Laplace. Nessa me- tafora esses principios desempenham a fungao de nucleo ne- cessario e suficiente ao desenvolvimento de qualquer conheci- mento para a reconstru¢ao exata e exaustiva de toda a historia do universo. De fato considera-se essa reconstrucao como irrea- lizavel e, no entanto, ela continua sendo a idéia reguladora de influéncia fundamental, determinante na direcao do desenvolvi- mento cientifico através da idéia de uma aproximacaéo (assinté- tica) aos seus limites. Admite-se a possibilidade de converter 0 universo em um universo de discursos finitos e o rumo do co- nhecimento parece dirigido a um objetivo (que também seria um ponto final): a grande possibilidade de aproximacdo ao cri- tério absoluto simbolizado pela figura do deménio. 2. Essas conjecturas, opostas a teorias filos6ficas espe- cificas (muitas vezes contraditérias), nas quais assumem forma, expressao da onipresenca do problema metodolégico em toda a tradi¢ao cientifica e filoséfica. A formulacdo desse problema se enraiza na convicgao de que a busca de um critério fundamental de observagao faz sentido para o conhecimento e tudo precede; € precisamente com a sua ajuda que as suas formulacdes con- cretas deverao ser avaliadas e 0 seu desenvolvimento dirigido. Com isto O METODO representaria algo como um instrumento de purificacdo para a atividade espiritual, que permitiria uma inciséo entre um “anterior” e um “posterior” na evolucao do co- nhecimento. Esta teoria esta estreitamente relacionada a viabi- lidade de se encontrar 0 ponto arquimediano, a partir do qual, justamente por ser o principio absoluto, se pode erigir a cons- trugao coerente e compacta do conhecimento. O ideal gnosiolé- gico a ser observado sera o de uma transparéncia imediata e olhar do observador 35 nosiologica, através da qual se pode atingir o objetivo da plena idequatio rei et intellectus. No inicio da tradi¢ao moderna o pro- lema da metodologia se apresentou em toda sua extensdo e icalidade na obra de René Descartes. A filosofia cartesiana plica de maneira paradigmatica toda uma série de conjectu- que atravessam toda a historia do pensamento moderno ocidental, abrangendo: a separacao entre corpo e mente e a ne- cessidade da busca de um elo de ligacgao entre ambos, concebi- dos como realidades separadas; o ideal de uma purificagao través do esforco espiritual e o da transparéncia gnosiologica; a imputagdo de um ponto arquimediano que garanta a linha de demarcacao definitiva e que assegure a construcdo das cién- cias; uma concep¢ao a-historica da razdo e uma oposicaéo mais ou menos explicita de natureza e hist6éria... O que fundamenta afirmagées filosdficas e determina a sua conformagao é a }otese sobre a natureza do conhecimento humano. Sobretudo efende-se a finidade do conhecimento humano e essa finidade é definida em relacdo a infinidade da onisciéncia da ciéncia di- ina. Esta Ultima passa a ser o ideal normativo para o progres- 30 da ciéncia humana. Assim, encontramos na raiz da ciéncia almente essa idéia passara a ser um dos esquemas mais indamente consolidados, nao somente na filosofia mas nbém no intelecto humano “sadio”. Por outro lado, o conhe- nento humano ja nao é imperfeito por ser limitado. Ao con- io. O intelecto humano tem parte na perfeig¢ado do conheci- ito divino; portanto, é mal uso do mesmo quando o empre- 0s para introduzir imperfeicdes, como ocorre cada vez que mos ao dominio das nossas tendéncias e paixdes limitadas. nasce um dos maiores mitos do conhecimento moderno: paracao, na natureza humana, daquilo que é primordial e \dario, e as modalidades da razaéo e sua constituicao. O individualmente é tinico e em sentido mais amplo é histori- nente condicionado, é considerado insignificante. Sim, deve- ser até mesmo neutralizado para permitir um funcionamento ibalho correto da nossa razao. Aqui esta a origem da obses- e repetida busca do METODO na historia da ciéncia mo- rma. Portanto, procura-se uma série de critérios para a distin- entre natureza e historia, entre racionalidade e irracionali- de, entre sapiéncia e deméncia, entre normal e patologico, en- e problemas reais e pseudoproblemas, entre ciéncia e metafisi-

You might also like