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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE

REITOR
Angelo Roberto Antoniolli

VICE-REITORA
Iara Maria Campelo Lima

EDITORA DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE

COORDENADOR DO PROGRAMA EDITORIAL


Péricles Morais de Andrade Júnior

COORDENADORA GRÁFICA
Germana Gonçalves de Araújo

CONSELHO EDITORIAL
Antônio Martins de Oliveira Junior
Aurélia Santos Faroni
Fabiana Oliveira da Silva
Germana Gonçalves de Araujo
Luís Américo Bonfim
Mackely Ribeiro Borges
Maria Leônia Garcia Costa Carvalho
Martha Suzana Nunes
Péricles Morais de Andrade Júnior (Presidente)
Rodrigo Dornelas do Carmo
Samuel Barros de Medeiros Albuquerque
Sueli Maria da Silva Pereira

Cidade Universitária Prof. José Aloísio de Campos


CEP 49.100 - 000 – São Cristóvão - SE.
Telefone: 3194 - 6922/6923.
E-mail: editora.ufs@gmail.com
Site:www.editora.ufs.br
Organizadores

PAULO ROBERTO FÉLIX DOS SANTOS


EVERTON MELO DA SILVA
LARYSSA GABRIELLA GONÇALVES DOS SANTOS

São Cristóvão / 2019


Este livro, ou parte dele, não pode ser reproduzido por qualquer meio sem autorização
escrita da Editora.

Este livro segue as normas do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990,


adotado no Brasil em 2009.

PROJETO GRÁFICO, CAPA E EDITORAÇÃO ELETRÔNICA


Rafael Jesus de Oliveira

IMAGEM DE CAPA
Foto por Yolanda Sun, diposnível no site da Unsplash

Ficha Catalógrafia elaborada pela Biblioteca Central -


Universidade Federal de Sergipe

Reflexões sobre a sociabilidade burguesa / Paulo Roberto Félix dos Santos, Everton Melo da
Silva, Laryssa Gabriella Gonçalves dos Santos, orgs. – São Cristóvão : Editora UFS, 2019.
R312r
220 p. ; il.

ISBN: 978-85-7822-649-7

1. Sociologia política. 2. Classe média. 3. Capitalismo. 4. Serviço social – Estudo e


ensino. I. Santos, Paulo Roberto Félix dos. II. Silva, Everton Melo da. III. Santos, Laryssa
Gabriella Gonçalves dos.

CDU: 316.275:323.3-058.13
SUMÁRIO
EDUCAÇÃO E SERVIÇO SOCIAL
7 APRESENTAÇÃO
NA CENA CONTEMPORÂNEA

ESTADO 116 reflexões


A EDUCAÇÃO ENQUANTO POLÍTICA SOCIAL NO CAPITALISMO
sobre a educação para o trabalho no contexto brasileiro
Maria Auxiliadora Silva Moreira Oliveira e Maria da Conceição Almeida Vasconcelos
E SUAS EXPRESSÕES NO CAPITALISMO
134 elementos
SERVIÇO SOCIAL E EDUCAÇÃO
para o debate sobre o exercício profissional de assistente social
13 Oanálise
FETICHE DA CIDADANIA
de seus fundamentos a partir do desenvolvimento mercantil-capitalista Ingredi Palmieri Oliveira

Paulo Roberto Félix dos Santos

150 notas
SERVIÇO SOCIAL E EXERCÍCIO PROFISSIONAL NOS ANOS 1990
sobre a noção de competência na Lei de Regulamentação da Profissão
29 PROPRIEDADE PRIVADA E ESTADO NAS SOCIEDADES DE CLASSES
Everton Melo da Silva Laryssa Gabriella Gonçalves dos Santos e Maria Lúcia Machado Aranha

48 O ESTADO MODERNO EM PERSPECTIVA


Fernando de Araújo Bizerra
169 DIVISÃO SEXUAL DO TRABALHO E CONSTRUÇÃO DAS IDENTIDADES
E ESCOLHAS PROFISSIONAIS DAS JUVENTUDES DO IFS
Ana Paula Leite Nascimento e Maria Helena Santana Cruz

66 ESTADO, REPRODUÇÃO DO CAPITAL E A CONSTRUÇÃO


DE BARRAGENS NO BRASIL
Milena Barroso e Yanne Angelim
184 OAOCAMPO DA EDUCAÇÃO AMBIENTAL E ALGUNS DESAFIOS
SERVIÇO SOCIAL BRASILEIRO
Carla Alessandra da Silva Nunes, Josiane Soares Santos e Ticiane Pereira dos Santos Vieira

83 CRISE DO CAPITAL
Estado e sindicalismo no Brasil
Albany Mendonça Silva 202 retrocessos
CRUZANDO A TRAVESSIA
no Licenciamento Ambiental em tempos de Golpe no Brasil
Maria das Graças e Silva e Iris Pontes Soares

99 ÉTICA E ONTOLOGIA
elementos introdutórios para uma interpretação ontológica
materialista oposta à ética burguesa
Débora Rodrigues Santos
APRESENTAÇÃO

Vivemos tempos difíceis, tempos de retrocessos, de desafios e de


incertezas. Tempos em que a mais aguda crise do capital incide como uma
avalanche sobre nossa sociabilidade, produzindo escombros e ruínas, que
impactam os modos de ser e reproduzir do conjunto dos indivíduos sociais.
Tempos em que a volúpia dessa forma social mercantil-burguesa parece
dragar tudo e todos/as, traduzindo-se em quadra histórica que coloca a hu-
manidade diante do dilema da sua própria existência.
Se, por um lado, o desenvolvimento sociometabólico do capital encer-
ra processo em que se manifesta de forma perversa sua lógica destrutiva, por
outro, esse processo não passa incólume pelas manifestações antagônicas
dos segmentos representativos do trabalho. Isso porque, também, conforme
nos adverte Iasi (2008) “vivemos tempos de dizer que não são tempos de
calar”1. É nessa esteira que esta coletânea, Reflexões sobre a sociabilidade
burguesa, que ora apresentamos ao público, se põe, como voz dissonante
que ousa ecoar, mesmo em tempos de barulho conservador.
A iniciativa de elaborar esta obra não poderia surgir em momento
mais oportuno. Os artigos aqui reunidos se dedicam à análise da cena con-
temporânea, cujas marcas indeléveis, via crise capitalista, nos abarcam a
todos/as, e à consolidação de proposta de construção de espaço de pensa-
mento crítico, empreendida pelo Grupo de Estudos e Pesquisas Marxistas,
vinculado à Universidade Federal de Sergipe (GEPEM/UFS). Nessa medida,
a presente coletânea congrega a articulação de rigorosa análise acadêmica
com o necessário compromisso político.
É no enfretamento da ideologia do pensamento único, que este con-
junto de artigos encontra guarida, passando em revista a falácia que tende a
conformar uma ambiência apologética de vitória inconteste da sociabilidade
mercantil-capitalista, atentos/as à dinâmica contemporânea, os/as autores/
as assumem a disposição para o debate, apresentando sólidos elementos
de contestação.
7
Como poderá ser percebido na leitura do material, os/as autores/
as não hesitam “em não se calar”. A partir de pesquisas concluídas, e em

1 IASI, M.L. MetaAmorFases – coletânea de poemas. São Paulo: Expressão Popular, 2008.
PAULO ROBERTO FÉLIX DOS SANTOS EVERTON MELO DA SILVA LARYSSA GABRIELLA GONÇALVES DOS SANTOS

andamento, traduzindo-se em universo plural de temas e sujeitos, um veio


comum costura o conjunto de artigos que compõem essa coletânea: o res-
gate da teoria social crítica. É assim que, a partir da “arma da crítica”, o/a
leitor/a terá acesso à produção de pesquisadores/as – alguns/as jovens e
outros/as com consolidada carreira acadêmica –, que representa o esforço
científico de diversas instituições do país – UFS, IFS, UFAL, UFPE, UFRB,
UFAM – em afirmar seu compromisso com uma produção do conhecimento
socialmente referenciada e acolhedora das diferenças regionais do país.
Como o título anuncia, não se trata de uma abordagem asséptica, mas
de uma que se nutre de perspectiva nítida e com alvo bem determinado e que
busca tematizar os fundamentos da sociabilidade burguesa e seus impac-
tos na cena contemporânea. Reúne, para isso, perspectivas de análise que
se preocupam com temas denotadores desse cenário, e cuja originalidade
e relevância, no trato com conceitos e categorias, se põem como bússola
necessária para a apreensão do conjunto de transformações societárias em
curso, bem como para a leitura das principais tendências recentes.
Para mais bem organizar o temário que dá corpo a essa produção,
subdividimos a coletânea em dois eixos que, apesar dessa escolha, não estão
cindidos, mas, ao contrário, elaboram uma tessitura que confere unidade ao
conjunto de artigos. Constituem, portanto, respeitadas as diferentes aborda-
gens, mosaico de problemas e temas que se articulam na crítica à sociabili-
dade burguesa, seus fundamentos, seu ethos e suas implicações, a partir da
crise do capital, nos âmbitos da Educação e do Serviço Social.
Inserimos no eixo 1, Estado e suas Expressões no capitalismo, seis
artigos que refletem sobre os fundamentos ontológicos da sociabilidade
burguesa com foco nas temáticas: propriedade privada, Estado, cidadania,
reprodução do capital e ética, propondo discussões que contribuam no des-
velamento do real das relações sociais capitalistas.
O primeiro artigo, O fetiche da cidadania: uma análise de seus funda-
mentos a partir do desenvolvimento mercantil-capitalista, de Paulo Roberto
Félix dos Santos, nos traz reflexão sobre os resultados preliminares dos seus
estudos de doutoramento em Serviço Social na UFRJ acerca dos fundamen-
tos, da estrutura e dos determinantes que consubstanciam a cidadania na
sociedade regida pelo capital, alinhando o rigor da crítica ontológica da eco-
8 nomia política proposta pela Teoria Social de Marx com os problemas postos
pela realidade social no capitalismo contemporâneo.
Com base na literatura histórico-crítica do pensamento marxiano e
da tradição marxista, o doutorando em Serviço Social/UFAL, Everton Melo
PAULO ROBERTO FÉLIX DOS SANTOS EVERTON MELO DA SILVA LARYSSA GABRIELLA GONÇALVES DOS SANTOS

da Silva, traz, em seu artigo Propriedade privada e Estado nas sociedades de


classes, reflexão sobre a gênese, o desenvolvimento e os determinantes só-
cio-históricos da propriedade privada e do Estado nos processos de produção
e reprodução social na história da humanidade. Essa reflexão é produto dos
resultados de pesquisa de mestrado desenvolvida no Programa de Pós-Gra-
duação em Serviço Social da UFAL.
Empenhado em responder, pela via da perspectiva histórico-crítica
marxiana e de pensadores da tradição marxista, a indagação “o que é o Esta-
do tal qual constituído em sua modalidade moderna?”, o teórico Fernando de
Araújo Bizerra, professor e doutorando em Serviço Social/UFAL, traz, em seu
artigo O Estado moderno em perspectiva, alguns delineamentos teóricos so-
bre os fundamentos ontológico e histórico do Estado moderno e sua relação
de complementaridade com a reprodução sócio-metabólica do capital.
No quarto artigo do primeiro eixo desta coletânea, Estado, reprodução
do capital e a construção de barragens no Brasil, de autoria de Milena Barroso
e Yanne Angelim, doutorandas em Serviço Social pela UERJ, temos o debate
sobre a apropriação capitalista da natureza, especificamente por meio da
construção de barragens, enquanto estratégia de acumulação capitalista no
âmbito do capitalismo no Brasil, com a participação vital do Estado cumprin-
do função social de garantir a reprodução do capital.
A autora Albany Mendonça Silva, professora da UFRB e doutoranda
em Serviço Social pela UFRJ, em seu artigo Crise do capital: Estado e sin-
dicalismo no Brasil, reflete sobre as mudanças estruturais, no contexto de
crise de reprodução do capital, que impactaram no processo de organização
sindical da classe trabalhadora, como o “refluxo do movimento sindical” e a
“contrarreforma sindical legitimadora do sindicalismo de Estado”.
Alinhada ao pensamento marxiano e ao filósofo húngaro György Luká-
cs, Débora Rodrigues Santos, professora da UFRB e doutoranda em Serviço
Social pela UFRJ, traz,em seu artigo Ética e ontologia: elementos introdutó-
rios para uma interpretação ontológica materialista oposta à ética burguesa,
alguns elementos introdutórios sobre o complexo da ética e a ontologia do
ser social contrapondo-se à hegemonia do pensamento burguês dominante.
No segundo eixo, Educação e Serviço Social na Cena Contemporânea,
a coletânea apresenta mais seis artigos, todos alinhados com rigor da Teoria
9 Social de Marx, sobre temáticas atuais e pertinentes, como educação, edu-
cação ambiental, questão ambiental, Serviço Social, juventude e profissões e
formação profissional.
PAULO ROBERTO FÉLIX DOS SANTOS EVERTON MELO DA SILVA LARYSSA GABRIELLA GONÇALVES DOS SANTOS

O primeiro artigo desse eixo, de autoria da egressa do Programa


de Pós-Graduação em Serviço Social/UFS, Maria Auxiliadora Silva Morei-
ra Oliveira, e da professora Dr.ª Maria da Conceição Almeida Vasconcelos
(UFS), intitulado A educação enquanto política social no capitalismo: refle-
xões sobre a educação para o trabalho no contexto brasileiro. faz análise da
educação enquanto política social que tem contribuído com a reprodução
do capital por meio da socialização e disseminação de ideias, princípios e
diretrizes geradas no interior do capitalismo.
O segundo artigo, da egressa do Programa de Pós-Graduação em
Serviço Social/UFS, Ingredi Palmieri Oliveira, intitulado Serviço Social e Edu-
cação: elementos para o debate sobre o exercício profissional de assisten-
te social, trata da necessidade do profissional do Serviço Social na esfera
da educação, uma vez que expressões da questão social, como violência,
trabalho infantil, discriminação, gravidez na adolescência, entre outros, se
apresentam no âmbito escolar, com interferência nos processos de ensino
e de aprendizagem, o que demanda a intervenção desse profissional, para
encaminhar soluções adequadas.
Ainda na perspectiva do exercício profissional do assistente social,
a egressa do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social/UFS, Laryssa
Gabriella Gonçalves dos Santos, e a professora Dr.ª Maria Lúcia Machado
Aranha (UFS) abordam em Serviço Social e exercício profissional nos anos
1990: notas sobre a noção de competência na lei de regulamentação da pro-
fissão, as transformações na formação e no exercício profissional na década
de 1990, considerando a inovação no aparato legal da profissão (Diretrizes
da ABEPSS/1996, Lei de Regulamentação/1993 e Código de Ética/1993). O
foco recai na Lei de Regulamentação da profissão, mais precisamente nas
competências profissionais consideradas a partir da noção de competência
apropriada pelo capitalismo em sua fase contemporânea.
O quarto artigo desse eixo, de autoria da doutoranda do Programa
de Pós-Graduação de Educação/UFS Ana Paula Leite Nascimento e da pro-
fessora Dr.ª Maria Helena Santana Cruz (UFS), intitulado Divisão sexual do
trabalho e construção das identidades e escolhas profissionais das juventu-
des do IFS, analisa a divisão sexual do trabalho e os seus rebatimentos na
construção das identidades e escolhas profissionais, trazendo à tona retrato
10 das escolhas profissionais das juventudes do Instituto Federal de Educação,
Ciência e Tecnologia de Sergipe (IFS).
No que refere à área da educação ambiental, o artigo O campo da
Educação Ambiental e alguns desafios ao Serviço Social brasileiro, de autoria
PAULO ROBERTO FÉLIX DOS SANTOS EVERTON MELO DA SILVA LARYSSA GABRIELLA GONÇALVES DOS SANTOS

da professora do DSS/UFS e doutorando em Serviço Social/UFRJ Ms. Carla


Alessandra da Silva Nunes, da professora Dr.ª Josiane Soares Santos (UFS)
e da egressa do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social/UFS Ticiane
Pereira dos Santos Vieira, debate as possibilidades de intervenção dos as-
sistentes sociais nas expressões da chamada “questão ambiental”, enten-
dendo-se que esta inclui elementos necessariamente relacionados ao modo
vida e de produção das relações sociais. Entre possibilidades, se encontra
o campo da educação ambiental como política pública capaz de socializar
informações e potencializar o controle social pelos sujeitos afetados em
distintos processos de apropriação da natureza, na defesa do direito cons-
titucional ao meio ambiente.
Nessa direção do debate da questão ambiental, no artigo que encerra
a coletânea, intitulado Cruzando a travessia: os retrocessos no Licenciamento
ambiental em tempos de golpe no Brasil. das autoras convidadas da Universi-
dade Federal de Pernambuco (UFPE), professora Dr.ª Maria das Graças e Silva
e da mestranda do Programa de Pós-graduação em Serviço Social/UFPE Iris
Pontes Soares, refletem sobre os rumos do licenciamento ambiental no Brasil
em tempos de crise estrutural do capital e do processo de financeirização do
meio ambiente. Pretendem as autoras apontar os impasses que enfrenta o
licenciamento ambiental no país, apontando o processo de desmonte desde
a chamada era Lula-Dilma, bem como a intensificação desse processo, na me-
dida em que o Governo Federal pós-golpe se alinha radicalmente aos ideários
neoliberais mais conservadores impostos aos países periféricos.
Esta obra, aqui brevemente apresentada, é um convite à leitura, e, sobre-
tudo, à reflexão acerca dos dilemas contemporâneos que impõem ao conjunto
da humanidade urgência na construção de estratégias de superação desse es-
tado de coisas que conformam a sociabilidade burguesa e as consequências
dela derivadas. Que os leitores desta coletânea façam muito boa leitura dos
artigos nela contidos e que desse exercício resultem reflexões, polêmicas e
debates que permitam avançar na perspectiva da emancipação humana.

São Cristóvão, julho de 2017

11 Paulo Roberto Félix dos Santos


Everton Melo da Silva
Laryssa Gabriella Gonçalves dos Santos
ESTADO
E SUAS EXPRESSÕES NO
CAPITALISMO
O FETICHE DA CIDADANIA
análise de seus fundamentos a partir
do desenvolvimento mercantil-capitalista

Paulo Roberto Félix dos Santos1

As relações econômicas são reguladas por con-


ceitos jurídicos, ou, ao contrário, são as relações
jurídicas que derivam das relações econômicas?
(Marx)

INTRODUÇÃO

O contexto hodierno, sobretudo a partir dos reflexos de profunda crise


do capital – em seu âmbito estrutural, conforme indica Mészaros (2009) –,
tem colocado desafios para pensarmos a luta por direitos e a pretensa am-
pliação da cidadania. A despeito desses desafios, parece existir ambiência
teórica e cultural, de diferentes matizes, de que a cidadania se coloca como
campo político-estratégico de garantia do que a modernidade empreendeu
de conquistas civilizatórias. Destarte, no campo político e social cria-se de-
terminado aggiornamento, do qual resultam interesses conflitantes em torno
da defesa dessas conquistas. É muito difícil alguém assumir – pelo menos
publicamente – que é contrário à ampliação da cidadania, ainda que essa
defesa seja tensionada desde a propositura de uma “cidadania de consumo”
ou de uma “cidadania social”.
Em face dessas constatações, muito antes de entendermos de qual
cidadania se fala, a questão que nos parece nodal é: a partir de quais funda-
mentos se estrutura a própria cidadania. Por isso, tentaremos apontar alguns
13
1 Professor Assistente do Curso de Serviço Social da Universidade Federal de Sergipe;
Mestre em Serviço Social pela Universidade Federal de Alagoas; Doutorando em Serviço Social
pela Universidade Federal do Rio de Janeiro; Pesquisador do Grupo de Estudos e Pesquisas
Marxistas/UFS.
PAULO ROBERTO FÉLIX DOS SANTOS EVERTON MELO DA SILVA LARYSSA GABRIELLA GONÇALVES DOS SANTOS

elementos que acreditamos delinear esses fundamentos, a partir da crítica


da economia política desenvolvida por Marx. Temos por suposto que essas
dimensões soldam a possibilidade de determinar os fundamentos que engen-
dram não só a emergência, a consolidação e o desenvolvimento da sociabili-
dade burguesa, mas a própria natureza da cidadania ligada a esse processo.
Desse modo, buscando perquirir alguns elementos indicados na crí-
tica da economia política elaborada por Marx, intentamos relacionar como
a cidadania não pode ser concebida senão como uma mediação entre as
formas jurídica e política(Estado) que, por sua vez, está embrincada com a
forma mercantil delineada pelos condicionantes do Modo de Produção Ca-
pitalista (MPC). É nessa perspectiva que buscamos, neste texto, apresentar,
em linhas gerais, quais os determinantes que consubstanciam a cidadania.
A hipótese que temos é que se a cidadania moderna é uma categoria
própria da formação social regida pela ordem do capital, portanto necessária
ao próprio movimento do capital, lutar pela sua plena realização, sem que
disso derive uma ruptura radical com seus fundamentos, é lutar pelo pleno
desenvolvimento do modo de produção capitalista e todas as consequências
dele decorrentes. Por isso, a luta pela ampliação da cidadania numa perspec-
tiva emancipatória só faz sentido se ela – a cidadania – constituir-se como
momento possível em direção à emancipação humana e não a própria eman-
cipação, através da sua realização plena. Ou seja, cidadania e emancipação
humana correspondem a processos e momentos – ainda que imbricados –
radicalmente diferentes.
No primeiro item, buscamos apontar alguns dos elementos que, a nos-
so ver, na trilha deixada por Marx, delineiam os determinantes fundamentais
acerca da constituição da forma jurídica e de sua vinculação com a forma
mercantil como momentos de uma mesma relação, sendo esse último o mo-
mento predominante do primeiro. Optamos pela análise marxiana, dado que,
concordando com Pachukanis (2017, p.119), “os pressupostos materiais da
comunicação jurídica, ou a comunicação entre os sujeitos de direitos, foram
elucidados por Marx no Livro I d’O Capital”2.
Pela crítica marxiana e marxista, pressupomos, pois, que a cidadania
moderna, sob os auspícios do capital, assume particularidade radical em re-
lação às similares formas precedentes. Com isso, buscaremos demarcar sob
14 2 Cremos que o autor tenha razão ao sustentar essa afirmação. Aliás, trata-se do primeiro autor,
a nosso ver, a realizar uma rigorosa abordagem do Direito a partir da Crítica da Economia Política
marxiana, considerando o Livro I de O Capital. Todavia, isso não implica desconsiderar os elementos
presentes nos Livros II e III, bem como outros textos, como Grundrisse, para uma análise mais ampla
do pensamento de Marx acerca da imbricação entre as relações econômicas e as relações jurídicas.
PAULO ROBERTO FÉLIX DOS SANTOS EVERTON MELO DA SILVA LARYSSA GABRIELLA GONÇALVES DOS SANTOS

quais aspectos se instaura forma societal particular, subordinada à realização


do valor que, para esse processo, exige características – fundamentalmente,
a liberdade, igualdade e propriedade – que, não por acaso, são determinantes
basilares constitutivas da cidadania.
A seguir, após termos indicado quais as particularidades da relação
entre forma mercantil e forma jurídica, problematizaremos como se constitui
a relação entre os sujeitos específicos, sem os quais seria impossível o in-
tercâmbio de mercadorias. Esse processo exige indivíduos despidos de suas
diferenças particulares, assumindo a figura jurídica de cidadãos/sujeitos de
direitos. Paradoxalmente, sua existência enquanto sujeito – de direitos – só
se efetiva na subordinação à vontade das coisas, das mercadorias que preci-
sam ser permutadas. Desse modo, vislumbramos uma relação de ambivalên-
cia,em que os sujeitos se realizam como coisa e a coisa, as diferentes mer-
cadorias, parece assumir as características dos seus proprietários, enquanto
polos regentes da relação.
Explicitaremos que a existência da forma jurídica e dos seus corres-
pondentes cidadãos/sujeitos de direitos são chancelados por determinada
figura que, assumindo uma aparência de neutralidade, exerce o controle da
organização da sociedade, fundada nos antagonismos de classes, buscando
administrá-los, a partir dos interesses da classe dominante. Referimo-nos à
esfera do Estado, enquanto forma política do capital. Portanto, defendere-
mos a ideia, – originalmente desenvolvida por Marx – de que o Estado não
pode ser colocado a serviço da classe trabalhadora, sem repor o “estado
de coisas” que dão substância à forma mercantil, do qual ele é expressão.
Dessa imbricação entre as formas jurídicas e a política, fincadas a partir do
desenvolvimento da forma mercantil, tem-se o lócus onde se situa cidadania
enquanto mediação entre os sujeitos de direitos.
Esperamos apresentar uma argumentação que permita ao leitor en-
tender que a superação desse estado de coisas, próprias da sociabilidade
do capital, não se refere à tomada do Estado e do seu uso em favor dos
trabalhadores, ou através do mero contínuo aperfeiçoamento de legislações
mais benéficas a esses sujeitos, mas a preparação para a extinção da forma
mercantil fundada no valor, bem como a sua expressão jurídica e, com eles,
a própria cidadania.
15
PAULO ROBERTO FÉLIX DOS SANTOS EVERTON MELO DA SILVA LARYSSA GABRIELLA GONÇALVES DOS SANTOS

A ESPECIFICIDADE DA CIDADANIA NO CAPITALISMO: forma


mercantil e forma jurídica como
duas “faces da mesma moeda”

Na análise da forma valor, parece-nos que, em O Capital, Marx apreen-


de não só, pela dinâmica da lógica mercantil, os nexos constitutivos da for-
ma jurídica – ou, também, se quiserem, as determinações fundamentais da
cidadania – mas os relaciona com a constituição da sociabilidade capitalis-
ta, isto é, nos apresenta uma relação indissociável entre forma mercantil e
forma jurídica. Não se trata de uma relação acidental, mas, antes de tudo, de
facetas de um mesmo processo. Sem análise que as considere como unida-
de, corre-se o risco de assumirmos na forma jurídica uma perspectiva juridi-
cista, de onde resulta certa dose de voluntarismo, ao crermos que é possível
alteração sem a necessária correspondência dos determinantes econômicos
que lhe dão sustentação. Nessa linha, entendemos que a forma jurídica não
corresponde a uma dimensão a-histórica, mas é, antes de tudo, produto de
determinadas particularidades sociais e históricas que não só lhe imprimem
marcas, mas estruturam as raízes sem as quais essa forma não existiria.
Como aponta Naves (2008):

A forma jurídica nasce somente em uma sociedade na qual impera


o princípio da divisão do trabalho, ou seja, em uma sociedade na
qual os trabalhos privados só se tornam trabalho social mediante a
intervenção de um equivalente geral. Em tal sociedade mercantil, o
circuito das trocas exige a mediação jurídica, pois o valor de troca
das mercadorias só se realiza se uma operação jurídica – o acordo
de vontades equivalentes – for introduzida. (NAVES, 2008, p.57).

Não é ocasional que a forma jurídica encontra a sua maturidade numa


dada sociabilidade em que a forma mercantil adquire a sua plenitude. É essa
forma social que, segundo Pachukanis (2017, p.75), “cria todas as condi-
ções necessárias para que o momento jurídico alcance plena determinação
nas relações sociais”. Por essa razão, o Direito, como decorrência desse ter-
minante jurídico, não é o procedimento pelo qual se regulariza essa forma
16 social. Ao contrário, ele é expressão de determinada forma mercantil que
já contém as marcas essenciais que, mais tarde3, se consubstanciarão na

3 Aqui não estamos apresentando uma temporalidade lógica, mas ontológica.


PAULO ROBERTO FÉLIX DOS SANTOS EVERTON MELO DA SILVA LARYSSA GABRIELLA GONÇALVES DOS SANTOS

forma jurídica. Desse modo, a forma jurídica vincula-se à existência de uma


sociedade que exige a mediação de um equivalente geral para que os diver-
sos trabalhos privados independentes se tornem trabalho social. É a ideia de
equivalência decorrente do processo de trocas mercantis que funda a ideia
de equivalência jurídica, ou seja, nas palavras de Naves (2008, p.58), é a rela-
ção de equivalência que “... permite que se compreenda a especificidade do
próprio direito, a sua natureza intrinsecamente burguesa”.
Ao pressupormos especificidade da cidadania, como expressão da
forma jurídica sob os auspícios do capital, estamos sinalizando para uma
determinação, diferenciada em relação às suas expressões anteriores, como
a cidadania no mundo antigo, por exemplo. Não estamos nos referindo, por-
tanto, a mero continuum de transformações graduais de uma cidadania que
evoluiu para a época moderna, mas sim de uma expressão condicionada e
condicionante de novas relações sociais de produção, cujos traços essen-
ciais só podem ser verificados a partir da especificidade do MPC. Por isso,
optamos, neste texto, por uma abordagem historiográfica não de como se
deu a evolução da cidadania, mas de como estão postas as suas particulari-
dades no capitalismo, identificando suas raízes.
Como nos adverte Kashiura Jr (2014 p.160)., “Marx logra desvelar
tais raízes porque logra captar a formação social capitalista como formação
social histórica, determinada em última instância por relações de produção
específicas”. Por isso, a partir dessa especificidade, debruçou-se sobre dada
formação social que, para o seu desenvolvimento, pressupõe “[...] a universa-
lização da personalidade jurídica e, mais ainda, mostrar que a universalização
da personalidade jurídica está vinculada ao movimento próprio da circulação
e da produção de mercadorias, nas formas historicamente determinadas que
assumem em vista do modo de produção capitalista”.(KASHIURA JR, 2014,
p.160, grifos nossos)
No desenvolvimento do MPC, diferentemente de uma relação de troca
simples, o que o capitalista precisa realizar não é só valor de uso da mer-
cadoria. Ele precisa recorrer ao mercado e dar a “sorte” de encontrar uma
mercadoria que, ao se realizar, produz num mesmo processo valor e mais
valor. Trata-se da mercadoria força de trabalho. É essa valorização do próprio
valor que permite ao capitalista, por meio do processo de exploração da força
17 de trabalho e da diferença entre tempo de trabalho socialmente necessário
(médio necessário à produção do valor) e tempo de trabalho excedente (va-
lorização do valor inicial), extrair o essencial da produção mercantil sob os
auspícios do capital: a extração do mais-valor. Como as mercadorias que
PAULO ROBERTO FÉLIX DOS SANTOS EVERTON MELO DA SILVA LARYSSA GABRIELLA GONÇALVES DOS SANTOS

são produzidas por meio da utilização da força de trabalho não se movem


no abstrato, mas antes pressupõem um conjunto de relações sociais que
possam permitir esse processo, Marx (2013) advertiu quanto à necessidade
de nos voltarmos aos sujeitos dessas relações, capitalistas e trabalhadores.
Assim diz ele:

As mercadorias não podem ir por si mesmas ao mercado e trocar-


-se umas pelas outras. Temos, portanto, de nos voltar para seus
guardiões, os possuidores de mercadorias. Elas são coisas e, por
isso, não podem impor resistência ao homem. Se não se mostram
solícitas, ele pode recorrer à violência; em outras palavras, pode to-
má-las à força. Para relacionar essas coisas umas com as outras
como mercadorias, seus guardiões têm de estabelecer relações
uns com os outros como pessoas cuja vontade reside nessas coi-
sas e que agir de modo tal que um só pode se apropriar da merca-
doria alheia e alienar a sua própria mercadoria em concordância
com a vontade do outro, portanto, por meio de um ato de vontade
comum a ambos. Eles têm, portanto, de se reconhecer mutuamen-
te como proprietários privados (MARX, 2013, p.159, grifos nossos).

Nessa passagem, o autor nos chama atenção para alguns aspectos


sem os quais não é possível ocorrer a troca. Como coisas, as mercadorias
não têm as propriedades necessárias para se intercambiarem e, por isso,
estão subordinadas às particularidades de seus guardiões, que, a rigor, se
configuram como proprietários privados. Proprietários porque são eles os
possuidores das mercadorias e é a eles que essas mercadorias parecem
subordinar-se. Privados, na medida em que essa relação de necessidade de
troca só faz sentido na existência de uma sociedade fundada na produção
e apropriação privada dos meios e produtos do trabalho, de onde surge a
necessidade de que os sujeitos possam se relacionar através do mercado,
espaço onde se defrontam como proprietários privados.
Não basta que sejam proprietários privados, eles precisam se relacionar,
e esse processo implica determinada vontade, que se realiza no ato da troca,
através das suas expressões de liberdade de troca. De forma acertada, Marx
nos adverte acerca de uma importante particularidade dessa relação. Não se
trata da vontade dos sujeitos – guardiões – que se consubstancia nas coisas,
mas sim da vontade das coisas que condiciona os sujeitos a irem ao mercado,
18
de modo a alienar sua mercadoria em razão da outra. Por outro lado, não se
trata de relação aleatória, mas de relação na qual esses sujeitos só se podem
defrontar reconhecendo-se como iguais, enquanto proprietários privados.
PAULO ROBERTO FÉLIX DOS SANTOS EVERTON MELO DA SILVA LARYSSA GABRIELLA GONÇALVES DOS SANTOS

Para que fique claro. Quando apontamos o caráter de não aleatorie-


dade da relação entre os sujeitos intercambiantes, ressaltamos que a forma
pela qual os indivíduos aparecem em condições de permutar mercadorias
não constitui momento acidental, ou mera evolução do espírito humano, mas
corresponde ao conjunto das relações sociais de produção que estrutura
esse processo e que pressupõe condição de similitude entre os proprietários
das mercadorias, em que cada um aparece como “trocador”.
Nesses termos, essa relação como trocadores só pode se constituir
numa relação entre iguais. De acordo com Marx, (2013, p.160). “[...] as pes-
soas existem umas para as outras apenas como representantes da merca-
doria e, por conseguinte, como possuidoras de mercadorias”, o mesmo autor
nos adverte de que “[...] as máscaras econômicas das pessoas não passam
de personificações das relações econômicas” (MARX, 2013, p.160), cuja
forma subsume o conteúdo concreto das determinações particulares dos
sujeitos intercambiantes.
Como sujeitos que se reconhecem como iguais/equivalentes, aparen-
temente não é possível identificar nenhuma diferença, ou mesmo relações
de antagonismos (MARX, 2011). Aqui, a igualdade dessa relação não se põe
como determinação jurídico-normativa, mas é condicionada pelas determina-
ções materiais que demandam a existência de indivíduos em condições de
igualdade. Não se trata de dispositivo legal que impõe relações de igualdade
entre esses sujeitos, mas se trata de relações sociais que, aparecendo na for-
ma de igualdade, a posteriore, são ratificadas por dispositivos legais. Trata-se
da liberdade da forma mercantil cuja expressão é legitimada na forma jurídica.
Da mesma forma que as mercadorias para serem intercambiáveis
precisam ter a equivalência da sua grandeza de valor, os possuidores das
diferentes mercadorias só podem assim se relacionar se constituírem sujei-
tos equivalentes numa relação de igualdade. Não basta, porém, que sejam
iguais, é necessário também que não haja nenhuma forma de coação, que
seja uma relação voluntária, expressão de liberdade. Como adverte o autor:
“Se, portanto, a forma econômica, a troca, põe a igualdade dos sujeitos em
todos os sentidos, o conteúdo, a matéria, tanto individual como objetiva, que
impele à troca, põe a liberdade” (MARX, 2011, p.188). Nesses termos, igual-
dade e liberdade, como valores jurídicos, não são mais que expressões nor-
19 mativas de determinantes reais da forma pelas quais os trocadores podem
dispor das diferentes mercadorias.
Trata-se de uma relação social, que expressando a condição de sujei-
tos proprietários, iguais e livres, se apresenta a partir de uma forma jurídica,
PAULO ROBERTO FÉLIX DOS SANTOS EVERTON MELO DA SILVA LARYSSA GABRIELLA GONÇALVES DOS SANTOS

de natureza “voluntária”. A forma pela qual essa relação se realiza é por meio
do contrato,o que, no plano mais imediato, aparece como determinação de
relações jurídicas é, a rigor, uma relação econômica. Portanto.“O conteúdo
dessa relação jurídica ou volitiva é dado pela própria relação econômica”
(MARX, 2013, p.159, grifos nossos). Para a existência dessas relações eco-
nômicas e para que haja a possibilidade de aquisição da mercadoria força de
trabalho é fundamental ambiente propício para que isso ocorra sem maiores
constrangimentos, a esfera da circulação/produção e de onde se derivam
relações jurídicas que possam ratificar esse processo.
Estariam, assim, dados os pressupostos para a existência de dois su-
jeitos fundamentais no processo de produção de mercadorias. De um lado,
o capitalista, como possuidor dos meios de produção e comprador da força
de trabalho; do outro, o trabalhador, a quem, desprovido desses meios, resta
a força de trabalho, única propriedade que é levado a “voluntariamente” ven-
der. É nessa medida que alguns dos pilares fundamentais dos direitos, quais
sejam a liberdade, a igualdade e a propriedade – consagrados na Declaração
dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789) e da Declaração Universal dos
Direitos Humanos (1948) e recepcionados unanimemente nos dispostos nor-
mativos modernos – não se configuram como constrangimentos à circula-
ção mercantil. São, antes, os pressupostos nos quais ela se funda.
A nosso ver, desse processo, em que a ideologia jurídica exerce pa-
pel importante, decorre apreensão fetichizada e fetichizante da cidadania,
na medida em que esta é apreendida na ausência dos seus elementos de-
terminantes. Como já sinalizamos, desprovida de análise a partir de seus
fundamentos, a cidadania é vista como meio pelo qual, a partir das lutas
das classes sociais, se podem, em maior ou menor medida, construir, am-
pliar e consolidar direitos. Trata-se de uma forma parcial de apreensão de
seus fundamentos, na medida em que se obscurece nessa análise a relação
substantiva entre a forma mercantil e a formas jurídicas e as políticas que
lhe correspondem. Relação essa que demanda a existência de sujeitos livres,
proprietários e iguais (cidadãos), de modo a possibilitar os diferentes inter-
câmbios de mercadorias.
Entendemos, por outro lado, que as particularidades impressas pela
forma mercantil à forma jurídica não só conformam determinadas caracte-
20 rísticas às relações jurídicas a ela correspondentes, mas também conferem
peculiaridades aos indivíduos que se defrontam nesse processo, na qualida-
de de cidadãos, como expressão de sujeitos jurídicos ou sujeito de direitos.
Do mesmo modo, essas relações não se operam cindidas, mas alinhavadas
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pela forma política do capital (Estado), sem a qual seria impensável a estru-
turação dessas relações jurídicas e o desenvolvimento do estatuto de cida-
dania. É essa particularidade que abordaremos a seguir.

SUJEITO DE DIREITOS E O ESTADO:


o fetiche do cidadão

Constituídos como sujeitos livres – porquanto não há força coercitiva


que os faça estabelecer relações; proprietários – uns dos meios necessários
à produção e outros da sua própria capacidade de trabalho; e iguais – na me-
dida em que, como possuidores de mercadorias, aparecem equivalentes –, a
forma pela qual eles se relacionam, como já adiantamos, é estabelecida por
contrato. A natureza contratual entre esses sujeitos os põe como equivalen-
tes, cabendo-lhes conjunto de obrigações e direitos, dos quais é necessário
zelar de cujo descumprimento é-se passível de penalidades. É na natureza
do contrato jurídico que estes se reconhecem mutuamente como sujeitos de
direitos. Como sustenta Mascaro (2009),

A descoberta fundamental de Marx, para o campo da política, é


a ligação necessária entre as formas políticas modernas e a ló-
gica do capital. O Estado moderno torna os indivíduos cidadãos.
Instituído como sujeito de direito, cada ser humano está apto a
transacionar nos mercados. Poder-se-ia reputar esse fato, da
constituição do sujeito de direito pelo Estado, como um fenôme-
no isolado, ocasional, ocorrido na época moderna. No entanto, a
grande contribuição de Marx está em demonstrar os mecanismos
estruturais desse processo (MASCARO, 2009, p.289).

A própria constituição da categoria sujeito de direitos – comumente


vista como noção positiva, reconhecimento de estatuto jurídico de indivíduos
à margem da sociedade e que agora nela se encontram “incluídos” – repre-
senta pré-condição de formas de indivíduos equivalentes que intercambiem
mercadorias equivalentes. Assim,

21 Reduzidos à forma de indivíduos, torna-se ainda necessária que


igualem na condição de sujeito de direitos, mas esta também é
uma pré-condição das relações capitalistas. Da mesma forma que
o trabalho concreto, responsável por distintos valores de uso só
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pode se ver na condição de equivalente de intercâmbio entre mer-


cadorias na equação do valor de troca por uma forma que abstraia
as diferenças através de uma substância comum, no caso trabalho
abstrato; a igualdade entre as mercadorias pressupõe a igualdade
abstrata entre os seus produtores [...] (IASI, 2011, p.179)

Não é por acaso que essas determinações são os elementos funda-


mentais – do ponto de vista, literalmente, dos fundamentos – da constitui-
ção da figura jurídica sem a qual a cidadania não faz sentido: o sujeito de
direitos. Por isso, os indivíduos, reconhecidos como trocadores só podem
aparecer nessa relação como sujeitos de direitos/cidadãos. É assim que to-
dos nós somos compelidos a ingressar numa comunidade política na qual
são abstraídas as determinações particulares e de classe de cada indivíduo,
deixando-nos reduzidos a uma abstrata expressão: “cidadão”.
Se a nossa hipótese estiver correta, nas trilhas abertas por Marx, a
existência da forma social sob as quais se confrontam os diferentes indi-
víduos, encarnados na forma sujeito de direitos, é dada pelas particularida-
des do Modo de Produção Capitalista. Trata-se de determinação em que os
indivíduos se subordinam, ou melhor, se assujeitam a uma forma social e
histórica que, tendo como conteúdo as determinações concretas desses
diferentes sujeitos, só pode existir abstraindo-os numa forma geral abstrata,
numa forma gelatinosa e fantasmagórica, que necessita anular as diferen-
ças particulares do conjunto desses indivíduos, na condição de sujeito de
direitos/cidadão:

Do mesmo modo como a forma mercadoria faz desaparecer, sob


a gelatina de trabalho indiferenciado que constitui a sua qualidade
idêntica, toda a diversidade concreta da coisa que recobre, assim
também o sujeito de direito faz desaparecer toda a diversidade
concreta dos homens que atuam como “representantes” das mer-
cadorias. Tudo que aparece na relação entre homens sob a forma
de sujeitos de direito é a própria forma idêntica dos sujeitos de
direito. Tudo que se sabe a respeito dos indivíduos que condu-
zem as suas respectivas mercadorias para a troca é que estes
indivíduos se colocam um perante o outro sob a mesma forma
social. Como puras formas destituídas de conteúdo, os sujeitos
de direito são imediatamente iguais uns aos outros. A igualda-
de é, nesse exato sentido, um dos seus atributos fundamentais.
22 (KASHIURA JR, 2014, p.168).
PAULO ROBERTO FÉLIX DOS SANTOS EVERTON MELO DA SILVA LARYSSA GABRIELLA GONÇALVES DOS SANTOS

Alinhado com o pensamento de Pachukanis e, recorrendo à analo-


gia, Kashyura Jr (2014, p.166) argumenta que: “O sujeito de direito não é,
portanto, senão o ‘outro lado’ da mercadoria”. Por essa condição, ele só
pode se apresentar na forma de “equivalência mercantil”. Mutatis mutan-
dis, de modo análogo, como a forma valor subordina o conteúdo material
do valor de uso das diferentes mercadorias, os indivíduos particulares se
equivalem na condição de sujeito de direitos, da qual o cidadão é sua ex-
pressão. Nessa mesma linha, na medida em que os diferentes trabalhos
se diluem numa objetividade fantasmagórica da forma valor, as diferentes
particularidades dos indivíduos se homogeneízam na condição de cidadão,
como sujeitos de direitos.
Nessa perspectiva, os distintos interesses dos indivíduos na socieda-
de burguesa parecem diluir-se numa genérica cidadania, na qual partilhamos
interesses comuns e, ao nos realizarmos como participantes de uma mesma
comunidade política, atendemos a uma determinada vontade geral. Contra-
riando essas determinações, entendemos que a plena vigência de relações
jurídicas, não é, senão, a forma pela qual o capital se pode desenvolver, de
onde decorre a forma mercantil pressupor determinada forma jurídica que
lhe permita garantias fundamentais.
A vigência da cidadania, como expressão de relações jurídicas, é im-
pensável sem uma forma política específica que lhe dê substância, e que,
pelo conjunto de mecanismos burocráticos, estrutura, ratifica e operaciona-
liza uma série de medidas capazes de garantir a existência e o desenvol-
vimento das relações entre os sujeitos que se encontram como cidadãos.
Referimo-nos ao Estado como entidade específica que, entre outras funções,
cumpre o fundamental papel de organização das relações entre os cidadãos.
Não há possibilidade de apreendermos as raízes da cidadania e de
como se consubstancia a figura do cidadão, sem nos remetermos ao campo
no qual se estrutura esse processo: o espaço do Estado. De acordo com
Pachukanis (2017, p.144), é na sociabilidade mercantil-capitalista que o po-
der político de classe pode adquirir a forma do poder público. Desse modo,
o Estado é a forma política do capital, soldando assim a cidadania como
mediação entre as formas jurídica e política do desenvolvimento mercan-
til-capitalista. É o Estado o afiançador jurídico-político da constituição dos
23 chamados direitos de cidadania. É por esse processo que os indivíduos, des-
pojados de suas peculiaridades de classe, se igualam numa abstrata figura
jurídica: o conjunto dos cidadãos.
PAULO ROBERTO FÉLIX DOS SANTOS EVERTON MELO DA SILVA LARYSSA GABRIELLA GONÇALVES DOS SANTOS

Não por acaso, a tutela do Estado acerca da figura do cidadão nos


acompanha do nascimento até a morte, buscando preencher todos os poros
da vida social. Só, assim, os indivíduos isolados podem se encontrar na mes-
ma comunidade jurídico-política, onde partilham normas, condutas, valores,
chancelados pelo Estado e seu aparelho burocrático.
Todavia, do mesmo modo que, a nosso ver, antes de nos perguntar-
mos de qual Estado se fala, nos parece fundamental apreendermos o que é
o Estado. Não é incomum a idílica visão que tende a apreender Estado como
árbitro neutro, responsável por intermediar conflitos e organizar a estrutura
política da sociedade. Ele seria, nessa interpretação, o espaço onde se di-
rimiriam os interesses particulares, fazendo prevalecer a vontade geral do
conjunto da sociedade. Participar da comunidade política, representada na
figura do Estado, seria um processo necessário para se evitar uma miscelâ-
nea de interesses individuais, de onde poderia resultar uma “guerra de todos
contra todos”. Abdicando de seus particularismos, os indivíduos estariam
garantindo a sua própria sobrevivência enquanto sociedade. Nessa perspec-
tiva, o Estado não seria só um elemento importante de organização, mas
seria a forma sem a qual não há possibilidade de organização social.
Ainda que seja essa a visão que se cristalizou na análise do Estado,
queremos deixar demarcado que não é essa a posição que adotamos na
nossa perspectiva, partindo da crítica marxista. O Estado não é um poder
político que está acima da sociedade, mas, antes, é produto dela; não é um
árbitro neutro responsável pela dissolução de conflitos de classe, antes, con-
flitos, são a razão de existência do próprio Estado. Como nos adverte Engels:

[...] o Estado não é pois, de modo algum, um poder que se im-


pôs à sociedade de fora para dentro; tampouco é “a realidade da
ideia moral”, nem “a imagem e a realidade da razão”, como afirma
Hegel. É antes um produto da sociedade, quando esta chega a
um determinado grau de desenvolvimento; é a confissão de que
essa sociedade se enredou numa irremediável contradição com
ela própria e está dividida por antagonismos irreconciliáveis que
não consegue conjurar. Mas para que esses antagonismos, essas
classes com interesses econômicos colidentes não se devorem e
não consumam a sociedade numa luta estéril, faz-se necessário
um poder colocado aparentemente por cima da sociedade, cha-
mado a amortecer o choque e a mantê-lo dentro dos limites da
24 “ordem”. Este poder, nascido da sociedade, mas posto acima dela
se distanciando cada vez mais, é o Estado (ENGELS, 1982, p.191).
PAULO ROBERTO FÉLIX DOS SANTOS EVERTON MELO DA SILVA LARYSSA GABRIELLA GONÇALVES DOS SANTOS

O Estado não confronta o conjunto de interesses egoístas no espaço


que Hegel e,depois, Marx denominaram sociedade civil. Ao contrário, ele só
pode ser apreendido como resultante dela, como expressão dos interesses
antagônicos dessa sociedade. Por outro lado, não é um espaço onde as
classes, em luta, disputam uma correlação de forças em equilíbrio, mas é
o espaço onde a classe dominante expressa o seu poder dominante e onde
forma societal capitalista é a expressão do poder da burguesia. Diante dis-
so, “todas as instituições coletivas são mediadas pelo Estado, adquirem por
meio dele uma forma política” (MARX; ENGELS, 2007, p.76). Independente
das particularidades que o Estado assuma historicamente, ele é sempre um
Estado-classe, que representa os interesses da classe dominante. Por isso,
ele é “o instrumento de que se serve o capital para explorar o trabalho assa-
lariado” (ENGELS, 1982, p.156).
É importante notar que como expressão dos interesses antagônicos
que permeiam a sociedade civil, o Estado é condensação dos determinantes
jurídico-políticos – forma jurídico-política –, bem como econômicos – forma
mercantil – dela decorrentes. Assim, a forma jurídica assume determinada
síntese com a forma política e delas deriva conjunto de normas que discipli-
nam a vida social. É a partir dessa síntese que os indivíduos, submetidos às
leis, se subordinam ao controle do Estado, na ilusão jurídica de se estarem
submetendo a si mesmos.
Posta nesses termos, a ilusão jurídico-política de ter no Estado im-
portante arena em disputa só tem validade como meio e não como fim em
si mesma. Como expressão jurídico-política de antagonismos de classes, o
Estado não pode ser outra coisa, senão expressão de interesses de classe.
Concebê-lo de outra maneira, é, como nos advertiu Pachukanis (2017), “uma
miragem”. Por esse motivo, nos lembra Marx (2012, p. 169) que “[...] a clas-
se operária não pode simplesmente se apossar da maquinaria estatal tal
como ela se apresenta e dela servir-se para seus próprios objetivos. O ins-
trumento político de sua escravização não pode servir como o instrumento
de sua emancipação”.
Se é na perspectiva da emancipação humana que buscamos encami-
nhar nossos esforços, a disputa em torno dos espaços do Estado só pode
ter como finalidade a preparação para a sua superação. Ora, se não há forma
25 Estado que não expresse interesse de classes, e se uma sociedade emanci-
pada implica a abolição do conjunto das classes sociais, torna-se inviável a
permanência desse poder político que, sendo produto das relações sociais
estranhadas, só pode expressar poder de classe.
PAULO ROBERTO FÉLIX DOS SANTOS EVERTON MELO DA SILVA LARYSSA GABRIELLA GONÇALVES DOS SANTOS

É nessa perspectiva que a relação forma mercantil e formas jurídica e


política (Estado) – da qual a cidadania é expressão – compõem uma tríade
indissociável. Destarte, entendemos que a cidadania, longe de ser dimensão
transistórica, assume radical particularidade sob a égide do Modo de Pro-
dução Capitalista, e que, se é essa forma social-mercantil que buscamos
superar, com esse processo deverão sucumbir juntos seu Estado correspon-
dente, bem como a forma jurídica que dela deriva, de onde a cidadania é um
componente. Isso não implica “jogar a criança com a água do banho”, ou, em
outros termos, desconsiderar as conquistas possíveis – sempre transitórias
e questionáveis, sobretudo em tempos de crise do capital – no âmbito da
cidadania, mas implica precisar seus limites históricos, o que nos põe o de-
safio de sua superação.

À GUISA DE CONSIDERAÇÕES FINAIS

Percebemos que a substância da forma jurídica e da forma política


não poderia ser encontrada em outra esfera que não fosse a forma mercan-
til. Constituem uma unidade indissolúvel. Por isso, a cidadania, na moderni-
dade, não é mais que a expressão de determinada organização que, tendo
na generalização da troca mercantil seu fundamento, expressa relações
sociais coisificadas.
É nessa perspectiva que acreditamos se constituírem o que enten-
demos ser os fundamentos da própria cidadania, o que implica apreender
os seus limites constrangidos pela sociabilidade mercantil-capitalista. Como
salientamos, essa determinada forma mercantil implica um conjunto de re-
lações jurídicas que permitem não só a produção, mas também a circula-
ção de mercadorias. Para isso, exigem-se determinadas qualidades, como
igualdade, liberdade e propriedade, pelas quais os diferentes indivíduos se
relacionam como sujeitos jurídicos e se expressam na figura de cidadãos.
Ainda que consideremos a possibilidade de avanços no campo dos
distintos conteúdos referentes à esfera da cidadania, como, por exemplo,
o atendimento a demandas históricas da classe trabalhadora, nos parece
importante precisar esses limites sempre mediados pela própria forma que
26 abarca esse conteúdo. Assim, sempre é a forma mercantil que vai determinar
a estrutura da forma jurídica e de seu correspondente político que é o Estado,
PAULO ROBERTO FÉLIX DOS SANTOS EVERTON MELO DA SILVA LARYSSA GABRIELLA GONÇALVES DOS SANTOS

de somos impelidos a rejeitar qualquer perspectiva politicista ou juridicista


que busca sobrevalorizar as possibilidades estratégicas da luta por direitos.
É importante deixar claro que não estamos desqualificando a luta por
direitos, nos limites do que Marx (2010) denominou “emancipação política”
ou, se quiserem, da luta pela cidadania. Esta, como nos lembra o autor, “de
fato representa um grande progresso”. Mas, que fique claro, se é na direção
de outra sociedade, livre do jugo do capital, que almejamos caminhar, ela – a
emancipação política – só pode ser apreendida como um momento estra-
tégico em direção à emancipação humana. Para isso, como vimos, faz-se
necessária a dissolução de todo esse estado de coisas que emperra a possi-
bilidade de viabilização de uma sociedade emancipada. Faz-se necessária a
dissolução da forma mercantil, de sua forma jurídica, do Estado, o que impli-
ca a dissolução da cidadania, cuja supressão reveste-se de uma necessidade
histórica de pôr fim à Pré-História da Humanidade.

REFERÊNCIAS

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Janeiro: Civilização Brasileira, 1982.
IASI, M.L. O Direito e a luta pela emancipação humana. In: FORTI, V; BRITES,
C. Direitos Humanos e Serviço Social: polêmicas, debates e embates. Rio de
Janeiro: Lúmen Juris, 2011.
KASHIURA JR., C.N. Sujeito de direito e capitalismo. São Paulo: Outras Ex-
pressões/Dobra, 2014.
MASCARO, A. L. Filosofia do direito. São Paulo: Atlas, 2009.
MARX, K. Contribuição à crítica da economia política. São Paulo: Expressão
Popular, 2008.
______. Sobre a questão judaica. São Paulo: Boitempo, 2010.
______. Grundrisse. Manuscritos Econômicos de 1857-1858. Esboços da
Crítica da Economia Política. São Paulo: Boitempo; Rio de Janeiro: Ed.
27 UFRJ, 2011.
______. As Lutas de Classes na França. São Paulo: Boitempo, 2012.
PAULO ROBERTO FÉLIX DOS SANTOS EVERTON MELO DA SILVA LARYSSA GABRIELLA GONÇALVES DOS SANTOS

MARX, K. O Capital: O processo de produção do capital. São Paulo: Boitem-


po, 2013. Livro 1.
MARX, K.; ENGELS, F. A Ideologia Alemã. São Paulo: Boitempo, 2007.
MESZAROS, I. Para além do Capital. Rumo a uma teoria de transição. São
Paulo, Boitempo, 2009.
NAVES, M. B. Marxismo e direito: um estudo sobre Pachukanis. São Paulo:
Boitempo, 2008.
PACHUKANIS, E. Teoria geral do direito e o marxismo. Trad. Paula Vaz de
Almeida, São Paulo: Boitempo, 2017.

28
PROPRIEDADE PRIVADA E ESTADO
NAS SOCIEDADES DE CLASSES

Everton Melo da Silva1

INTRODUÇÃO

O objetivo deste artigo é traçar breve panorama sócio-histórico so-


bre a centralidade da propriedade privada e do Estado nas sociedades de
classes. Com a dissolução da comunidade primitiva, através do surgimento
da propriedade privada e da exploração do homem pelo homem, temos a
emergência do trabalho alienado, das classes sociais fundamentais (classe
explorada x classe exploradora), do Estado (que protege a propriedade pri-
vada da classe exploradora) e da família monogâmica2 (a figura masculina
como detentora da propriedade privada). Essas são algumas das bases con-
cretas que permeiam a vida do homem em sociedade, que fazem parte da
vida do homem no curso da história da sociedade de classes. Para alcançar
o objetivo proposto, fizemos revisão de literatura baseada em pesquisas e
estudos históricos sobre cada época, romances históricos e um atlas his-
tórico mundial, que auxiliaram no processo de compreensão do desenvol-
vimento do homem, além de pesquisas sobre determinadas temáticas em
momentos específicos da história.
Diante da complexidade e do volume de dados da história da humani-
dade e considerando os limites estruturais deste artigo, em termos históricos,
nossa exposição abordará, sumariamente, da sociedade primitiva, surgimento

1 Professor Substituto do Departamento de Serviço Social/UFS, doutorando em Serviço Social pela


Universidade Federal de Alagoas e pesquisador do Grupo de Estudos e Pesquisas Marxistas/UFS.
29 2 Devido aos limites deste artigo, não será possível traçar panorama sobre constituição da família
monogâmica na sociedade de classes, nem de suas implicações nas relações sociais. Entretanto, os
leitores interessados nessa temática podem consultar LESSA, Sérgio. Abaixo a família monogâmica.
São Paulo: Instituto Lukács, 2012.
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do excedente econômico, até a Revolução Francesa, momento em que se


consolida o indivíduo burguês na sociedade capitalista. No primeiro mo-
mento, iremos argumentar que a propriedade privada se origina através da
apropriação privada do excedente econômico, isto é, da riqueza socialmen-
te construída, o que ocasiona cadeia de acontecimentos históricos que
perduraria por todas as sociedades de classes, principalmente o surgimen-
to do Estado, que, em sua essência, é da classe dominante e perpassa a
história da humanidade com configurações diferentes, como o Estado Ro-
mano, no modo de produção escravista; o Estado francês feudal, no modo
de produção feudalista; e o Estado Inglês moderno, no modo de produção
capitalista. Com o surgimento do capitalismo, a partir do processo de acu-
mulação primitiva do capital a partir do século XIV, novas relações sociais
surgem com foco na busca incessante da riqueza pela riqueza e no desen-
volvimento do individualismo burguês.
As Diretrizes Curriculares de Serviço Social, base curricular da for-
mação profissional do assistente social, têm como primeiro princípio a
“apreensão crítica do processo histórico como totalidade” (ABEPSS, 1996,
p. 07). Nesse sentido, compreender as transformações nos processos de
produção e reprodução social na história da humanidade é fundamental
para o Serviço Social brasileiro, visto que essa profissão está inscrita em
processos sócio-históricos determinados e age sobre sujeitos históricos e
sociais no cotidiano profissional.

PROPRIEDADE PRIVADA E ESTADO NA VIDA DOS HOMENS

Pretendemos neste item apresentar o surgimento da propriedade pri-


vada através da apropriação privada do excedente econômico na sociedade
primitiva e a gênese do Estado enquanto instituição que garante a exploração
do homem pelo homem. A premissa essencial da nossa argumentação é que
com o surgimento da propriedade privada acontecem mudanças significati-
vas na vida do homem como a emergência das classes sociais fundamentais
e do Estado, além disso, a propriedade privada mudou significativamente
as relações sociais, onde a apropriação privada dos resultados do trabalho
30 determinou/determina a forma como os homens viveram/vivem na história.
Na sociedade primitiva, a caça, a coleta e a pesca eram atividades
com resultados incertos, pois os homens, ao final do dia, poderiam voltar
PAULO ROBERTO FÉLIX DOS SANTOS EVERTON MELO DA SILVA LARYSSA GABRIELLA GONÇALVES DOS SANTOS

para seus abrigos/acampamentos sem nenhum alimento. Os poucos alimen-


tos que conseguiam com essas atividades eram partilhados entre todos, e
não era permitida a apropriação privada dos resultados. Essencialmente,

a produção era [...] coletiva e o consumo se realiza, também,


sob um regime de distribuição direta dos produtos, no seio de
pequenas ou grandes coletividades comunistas. Essa produção
coletiva era levada a cabo dentro dos mais estreitos limites, mas
ao mesmo tempo os produtores eram senhores de seu processo
de produção e de seus produtos. Sabiam o que era feito do pro-
duto: consumiam-no, ele não saía de suas mãos. E, enquanto a
produção se realizou sobre essa base, não pôde sobrepor-se aos
produtores, nem fazer surgir diante deles o espectro de poderes
alienados, como sucede, regular e inevitavelmente, na civilização
(ENGELS, 2012, p. 218-219).

Esse quadro começou a mudar a partir do cultivo de plantas e da


criação de animais. Através deles, o acesso à alimentação se tornou mais
seguro e certo, contribuindo para amenizar e facilitar a vida dos homens.
Com a agricultura, o homem começou a se dedicar ao cultivo da terra e,
graças à criação de animais,voltou-se também para o pastoreio. Essas novas
atividades exigiam que o homem se fixasse na terra (sedentarismo), em um
local/território, deixando a vida nômade (nomadismo) de lado. Esse período
é conhecido como Revolução Neolítica, momento em que há mudança subs-
tancial na vida dos homens.
O desenvolvimento da tecnologia foi uma necessidade desse novo
modo de vida que surgia a partir dessas novas atividades (agricultura e cria-
ção de gado). As forças produtivas em curso exigiam instrumentos de tra-
balho aperfeiçoados que atendessem essas novas atividades econômicas
(NETTO; BRAZ, 2010). Além de surgirem os cultivadores e pastores, nasceu
também a figura dos artesãos, responsáveis por transformar a natureza em
novos objetos que contribuíssem para tornar potenciais novas forças produ-
tivas, como as ligas de metal e a roda (NETTO; BRAZ, 2010).
Potencializadas as forças produtivas, os homens puderam acumular
produtos além do necessário para a sobrevivência imediata, do que resultou
o nascimento do excedente econômico. Com o desenvolvimento das for-
31 ças produtivas, como ensinam Lessa e Tonet, (2012, p. 13), “o trabalhador
adquiriu uma capacidade de trabalho que ultrapassava suas necessidades
pessoais. Seu trabalho [...] é capaz de produzir mais do que o imprescindível
para sua sobrevivência imediata”. O excedente econômico é expressão do
PAULO ROBERTO FÉLIX DOS SANTOS EVERTON MELO DA SILVA LARYSSA GABRIELLA GONÇALVES DOS SANTOS

desenvolvimento das forças produtivas que revoluciona a vida do homem.


Ele “opera uma verdadeira revolução na vida das comunidades primitivas:
com ele, não só a penúria que as caracterizava começa a ser reduzida, mas,
sobretudo, aparece na história a possibilidade de acumular os produtos do
trabalho.” (NETTO; BRAZ, 2010, p. 57, grifos originais). Com o excedente em
mãos, o homem estabeleceu nova mediação para seus produtos através da
troca no mercado. Com essa nova possibilidade, o agricultor, o pastor e o ar-
tesão não produziam somente para a satisfação das suas necessidades, pro-
duziam também para troca. A finalidade de seu trabalho começava, então, a
mudar. A produção estava voltada para o mercado. Devido às novas relações
de troca de produtos, agora mediados pelo mercado, surgiu uma classe que
ficou responsável por essas trocas: o comerciante (ENGELS, 2012, p. 219).
A partir do momento em que o homem pôde acumular riquezas,
abriu-se a possibilidade da exploração do homem pelo homem, tornando
possível que um homem vivesse do trabalho de outro, que o homem escra-
vizasse o outro3.
A propriedade privada, por se caracterizar como relação social, não
faz parte do processo evolutivo natural do ser humano. “Ela é a relação so-
cial pela qual os produtores da riqueza social são expropriados pelas outras
classes da sociedade” (LESSA; TONET, 2012, p. 15). Ela foi necessária para
o desenvolvimento das forças produtivas, uma vez que o homem vivia em
períodos de escassez de alimentação e de crescimento populacional.
Se o trabalho da coleta originou a sociedade primitiva, sem clas-
ses sociais, foi o trabalhado alienado, criado pela propriedade privada, que
fundou a sociedade de classes. Foi esse trabalho alienado que possibilitou
o surgimento das classes fundamentais divididas entre explorador e ex-
plorado4. Nessa relação social, a propriedade privada começou a ganhar

3 Aqui há um aspecto fundamental a ser considerado: a possibilidade de exploração do homem


pelo homem não quer dizer que ela seja historicamente necessária, pois “sua necessidade [explo-
ração do homem pelo homem] decorre da carência, isto é, da situação histórica na qual a produção
não é suficiente para atender às necessidades de todos os indivíduos”. (LESSA, 2012, p. 22). Nesses
termos, Lessa (2012, p. 22-23) continua: “a articulação entre o trabalho excedente e a carência não
apenas tornou possível, mas também tornou necessária, a exploração do homem pelo homem: a
sociedade de classes desenvolve suas forças produtivas muito mais rapidamente que as primitivas
e tende a substituí-las ao longo da história”.
4 Apesar de suas particularidades históricas, os modos de produção mantiveram em sua essência
32 o binômio explorador x explorado, além de classes intermediárias, por exemplo: os comerciantes
de objetos de argila em Atenas; os procuradores em Roma, responsáveis pela administração de
alguma província; os padres, do baixo clero, que rezavam missas e davam assistência aos desam-
parados; os teóricos da cosmologia medieval; os artistas do Renascimento; e os serviçais do Rei
Luís XVI na França.
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centralidade na vida dos homens, tornando o homem escravo de si mesmo e


marcando a história da vida dos homens até os dias atuais.
O desenvolvimento crescente da propriedade privada contribuiu para
que fossem modificadas as relações sociais. Tornaram-se constantes os
conflitos, as contradições sociais, que emergiram do antagonismo de clas-
ses, entre os que produziam e os que não produziam; entre aqueles que
produziam a riqueza material e aqueles que viviam dessa riqueza sem pro-
duzi-la; entre o explorador e o explorado.
Como forma de regular e controlar os conflitos das classes antagô-
nicas, surgiu o Estado. Ele emergiu como produto da necessidade social de
defender a propriedade privada pertencente ao explorador. Esse processo de
nascimento do Estado é resumido em passagem de Friedrich Engels (2012,
p. 212, grifos originais):

Acabava de surgir [...] uma sociedade que, por força das condi-
ções econômicas gerais de sua existência, tivera que se dividir
em homens livres e escravos, em exploradores ricos e explora-
dores pobres; uma sociedade em que os referidos antagonismos
não só não podiam ser conciliados como ainda tinham que ser le-
vados a seus limites extremos. Uma sociedade desse gênero não
podia substituir senão em meio a uma luta aberta e incessante
das classes entre si, ou sob o domínio de um terceiro poder que,
situado aparentemente por cima das classes em luta, suprimisse
os conflitos abertos destas e só permitisse a luta de classes no
campo econômico, numa forma dita legal.

Continuando seu pensamento, Engels (2012, p. 215-216) afirma que:

Como o Estado nasceu da necessidade de conter o antagonismo


das classes, e como, ao mesmo tempo, nasceu em meio ao confli-
to delas, é, por regra, o Estado da classe mais poderosa, da classe
economicamente dominante, classe que, por intermédio dele, se
converte também em classe politicamente dominante e adquire
novos meios para a repressão e exploração da classe oprimida.

A partir da divisão da sociedade entre classes com interesses an-


tagônicos, foi necessária a criação de instituição social que protegesse o
33 interesse da classe dominante, que protegesse a propriedade privada. O
Estado nasceu com esse objetivo. Em sua essência, ele pertence à classe
econômica dominante, que, por deter os meios de produção e a propriedade
privada, tornou-se também a classe politicamente dominante. A razão de
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ser do Estado é esta: manter o domínio de uma classe sobre a outra através
do poder político da classe economicamente dominante. Ele surgiu a partir
da necessidade histórica de garantir a manutenção da ordem da exploração
do homem pelo homem, da manutenção da dominação de uma classe sobre
outra, garantindo as condições mínimas de produção e reprodução da socie-
dade com base na relação explorador/explorado.
Para proteger a propriedade privada das revoltas dos explorados, os ex-
ploradores criaram um exército que protegesse suas propriedades. Eles, cole-
tivamente, começaram a mantê-lo a sua disposição. Para contratar e manter
os soldados, os senhores pagavam impostos ao Estado (ENGELS, 2012). Atra-
vés dos impostos, foi criada força estatal a serviço da classe dominante para
regular e administrar os conflitos sociais em favor das classes dominantes.
Essa característica do Estado, como registra Engels (2012), perdura-
ria em todas as sociedades de classe,

o Estado antigo foi, sobretudo, o Estado dos senhores de escravos


para manter os escravos subjugados; o Estado feudal foi o órgão
de que se valeu a nobreza para manter a sujeição dos servos e
camponeses dependentes; e o moderno Estado representativo é
o instrumento de que se serve o capital para explorar o trabalho
assalariado (ENGELS, 2012, p. 216).

A partir dessa argumentação de Engels (2012), reafirmamos que


com a propriedade privada nasceu a possibilidade de o homem escravizar o
outro, fazendo com que uma classe vivesse do produto de trabalho da outra.
Essa era a base do novo modo de produção que estava nascendo na história
dos homens: o modo de produção escravista. O trabalho escravo fundou
outro patamar de sociabilidade. Nele, o trabalhador escravo representava
a degradação do trabalho e a perda total da liberdade e da individualidade.
Na hierarquia social, os escravos eram considerados instrumento de traba-
lho vocal, isto é, instrumento que falava, como podemos observar na obra
literária Espártaco, de Fast (1976, p. 35, grifos originais): “[...] o escravo é o
instrumentum vocale, distinguindo-se do animal, ou instrumentum semi, que
por sua vez se distingue do instrumento comum, a que podemos chamar
instrumentum mutum”.
34 A escravidão se desenvolveu de forma predominante5, sistemática e
absoluta na Antiguidade Clássica (Grécia e Roma). Essas civilizações são

5 As primeiras formas de trabalho escravo surgiram nas civilizações da antiguidade, como sumérios,
babilônios, assírios, egípcios, porém de forma residual e auxiliar.
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marcadas, em suas trajetórias históricas, por utilizarem o trabalho escravo


de forma generalizada. Tanto a Grécia antiga quanto a Roma antiga manti-
nham bom contingente de escravos provenientes das guerras expansionis-
tas. Essas eram verdadeiras fontes de escravos, novos territórios e impos-
tos, elementos essenciais para o desenvolvimento generalizado do modo
de produção escravista. O marxista russo Rostovtzeff (1983) afirma que,
através das guerras, os vencedores faziam dos perdedores seus escravos,
utilizavam estes em seus territórios ou até mesmo os vendiam no comércio
como mercadoria, como mão de obra para exploração. As guerras eram,
também, uma forma de os senhores aumentarem o contingente de mão de
obra escrava para aumentar sua produtividade, uma vez que a escravidão
não possibilitava o desenvolvimento tecnológico das forças produtivas.
A escravidão foi a primeira forma de exploração do homem pelo ho-
mem. A partir do modo de produção escravista, a Grécia antiga, por exem-
plo, pôde desenvolver uma economia e uma organização social complexa,
comparada com outras civilizações antigas. Os atenienses desenvolveram
alta organização social devido ao trabalho escravo, possibilitando que os ho-
mens livres não trabalhassem, assim, eles produziram arte, filosofia, política
e conhecimento (HELLER, 1983). Na polis ateniense, a propriedade privada
começou a ser prevista na constituição e os direitos e os deveres do homem
começaram a ser tratados a partir da posse da terra, inclusive os direitos
políticos. Somente os cidadãos atenienses tinham o direito à propriedade.
A crescente propriedade privada acendeu cada vez mais a exploração e a
necessidade de mão de obra escrava. Através do trabalho escravo, Atenas
conseguiu ser o centro da vida política, econômica e religiosa da Antigui-
dade Clássica, principalmente no século IV a.C. Com a propriedade privada
e o nascente Estado ateniense, a população estava dividida em três grupos
econômicos: os grandes proprietários rurais, os comerciantes e os artífices
que viviam na cidade, e os pequenos proprietários. A propriedade da polis
apoiava-se na pequena produção, cultivo da terra.
Na Antiguidade Clássica temos também o apogeu da Roma antiga,
que viveu alto nível organizativo político e social a partir do modo de pro-
dução escravista. Essa era também sustentada pelo trabalho escravo, tanto
nos campos de produção quanto na supervisão de escravos e na organiza-
ção administrativa do Império Romano (ROSTOVTZEFF, 1977). Roma uniu a
35
grande propriedade agrícola com a escravidão e teve seu modo de produção
organizado e sistemático o suficiente para Fast (1976, p. 44) afirmar que os
romanos foram os primeiros a “compreender totalmente o uso do escravo”.
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A propriedade privada, as classes fundamentais e o Estado estavam


presentes também na sociedade feudal. O feudalismo é um sistema econô-
mico, político e social baseado em modo de produção regido pela terra e
por economia natural. Esse modo de produção compreendia duas classes
fundamentais: o camponês/servo (trabalhador unido à terra, ao meio de
produção) e os senhores feudais (proprietários da terra que controlavam a
produção). O servo (vassalo) produzia os alimentos e não detinha a posse
da terra. O senhor feudal (suserano) vivia do excedente de produção dos
servos e tinha a posse da terra.
Após a constituição do feudalismo, a sociedade feudal estava or-
ganizada em três classes: os servos (camponeses e artesãos), o clero (sa-
cerdotes, abades, bispos, arcebispos e padres) e a nobreza (reis, príncipes,
condes, viscondes, duques, arquiduques e cavaleiros). O clero e a nobreza
governavam, enquanto os servos trabalhavam, principalmente, em planta-
ções e em criação de animais. Em troca, a Igreja rezava por todos e a nobreza
dava proteção militar (HUBERMAN, 2008).
A estrutura política feudal se baseava no contrato de troca de servi-
ços e fidelidades, ou seja, em troca de proteção, justiça e ordem, o camponês
devia parte da sua produção e trabalho ao seu senhor. A terra simbolizava
o selo de juramento de fidelidade do servo ao senhor, e o conjuratio era o
juramento de lealdade recíproca. Os servos, principalmente os camponeses,
estavam ligados à terra e trabalhavam nela para os senhores em troca do
direito de arrendá-las para subsistência. Diferentemente do escravo, como
observa Huberman (2008), o servo tinha família, lar e a terra para trabalhar.
Os servos eram subjugados ao senhor, já este vivia do trabalho dos servos.
Apesar dessa autonomia, Anderson (2008, p. 08) pondera que “os campo-
neses eram mais ou menos dependentes. Acreditavam os senhores que os
servos existiam para servi-los. Jamais se pensou em termos de igualdade
entre senhor e servo.”
Tuchman (1989)aponta, em Um espelho distante: o terrível século
XIV,que tanto o servo pertencia ao senhor, desde o nascimento, quanto seus
filhos; ele estava proibido de casar fora da propriedade do senhor; se o servo
morresse sem deixar filhos, seus bens ficariam para o senhor; o camponês,
além de trabalhar, pagava taxa de tudo que usava, por exemplo, moer o grão
36 no moinho do senhor, cozer pão no forno do senhor etc. Além disso, o cam-
ponês prestava serviços de reparo em estradas, pontes e fossos, e o artesão
fabricava utensílios, fiava roupa, entre outros serviços no castelo.
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Após a cristianização do antigo Império Romano, a Igreja estava


presente na vida dos homens. Essa instituição tornou-se autônoma perante
o Estado feudal e aumentou seus domínios através do dízimo (10% das ren-
das dos fiéis), tornando-se uma instituição forte, rica e poderosa, além de
proprietária de terras. O clero tinha domínio sobre as crenças e os valores
e participava das principais decisões da política.
Desse modo, compreendemos que o modo de produção feudal era
regido pela terra e por uma economia natural6: o camponês estava unido
ao meio de produção, ao solo, numa espécie de relação; os camponeses
não eram proprietários da terra, apenas a cultivavam para si próprios e seus
senhores. Os senhores feudais, por outro lado, eram proprietários da terra e
viviam do excedente de produção dos camponeses.
Como afirmamos no início da nossa argumentação, a propriedade
privada mudou radicalmente a vida dos homens. Da Antiguidade até os dias
atuais, as sociedades foram marcadas pela centralidade da propriedade
privada na vida dos homens. O trabalho alienado fundou diversos modos
de produção e fez dele emergir relações sociais baseadas na propriedade
privada, sendo os principais o Modo de Produção Escravista, o Modo de
Produção Feudal e o Modo de Produção Capitalista. A partir de cada modo
de produção, os homens constituíram relações sociais diferentes. O Estado,
por sua essência, manteve-se focado em controlar e reprimir a vida dos
produtores da riqueza material.
Veremos a seguir a constituição do Estado burguês ou Estado moderno
na sociedade capitalista.

ESTADO MODERNO E INDIVIDUALISMO BURGUÊS


NA SOCIEDADE CAPITALISTA

Vimos que os trabalhadores na sociedade feudal mantinham o clero


e a nobreza. Os produtos produzidos pelos trabalhadores (urbanos e rurais)
eram comercializados nos mercados locais e grandes feiras (HUBERMAN,
2008). Nos séculos XIV e XV, algumas cidades comerciais mediterrâneas
apresentavam sinais do nascimento do capitalismo, mas o modo de produ-
37
6 O romance de Ken Follett, escritor britânico, Pilares da Terra, traz um panorama completo da
vida feudal. A história se passa no século XII, especificamente de 1120 a 1174,e narra a história da
família de Tom Construtor (construtor de catedrais), do prior Philip, de aliena e seu irmão Richard,
que tiveram seu pai, o conde Bartholomew, morto por traição ao Rei Estevão, e do impiedoso Willian.
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ção capitalista só pode ser datado a partir do século XVI (MARX, 1996). Se
na sociedade feudal a terra refletia a riqueza do homem, com a expansão do
comércio crescia a riqueza em dinheiro. Com esse cenário surge uma nova
classe forte economicamente, classe que vivia da compra e venda de produ-
tos, que mais à frente reivindicou a direção política da vida social através da
captura do Estado moderno.
Na sociabilidade feudal, a posse de terra determinava o poder de re-
ger a sociedade. Os sacerdotes e guerreiros, proprietários de terras, eram os
grupos dominantes tanto na economia quanto na política. Com a ascensão de
uma nova classe, o poder teve que ser partilhado. Essa nova classe que surgia
com a ascensão do comércio era os burgueses, “[...] cujo interesse não mais
se relacionava com a utilidade do que ela comprava ou vendia e, sim, com a
lucratividade do que comercializava” (LESSA; TONET, 2012, p. 22).
Com o surgimento do modo de produção capitalista, a vida do ho-
mem e a sociedade sofreram mudanças substanciais, principalmente entre
os séculos XV a XVIII, como aponta este trecho:

O status foi substituído pelo contrato como alicerce jurídico da


sociedade. A uniformidade de crença religiosa deu lugar a uma
diversidade de credos em que até o ceticismo encontrou um
direito à expressão. O vago império medieval da jus divinum e
da jus naturale cedeu ao poder irresistível e concreto da sobe-
rania nacional. O controle da política por uma aristocracia cuja
autoridade assentava na propriedade da terra passou a ser com-
partilhado com homens cuja influência derivava unicamente da
propriedade de bens móveis. [...] A cidade, com a sua infatigável
paixão pela mudança, substitui o campo, com a sua aversão às
inovações, como fonte primordial de legislação. Lenta mas ir-
resistivelmente, a ciência substitui a religião como fator domi-
nante na modelação dos pensamentos dos homens. A ideia de
uma idade de ouro no passado, com a sua ideia simultânea de
pecado original, cedeu o passo à doutrina de progresso, com a
sua noção concomitante de perfectibilidade através da razão. Os
conceitos de iniciativa social e de controle individual. As novas
condições materiais, em resumo, deram origem a novas relações
sociais; e, em função destas, desenvolveu-se uma nova filosofia
para permitir uma justificação racional de novo mundo que assim
nascera (LASKI, 1973, p. 09, grifos originais).

38
Com o novo modo de produção, uma nova classe ascendeu e efetuou
transformação nas relações capitalistas. Se no feudalismo a produção era
para a subsistência, no capitalismo a produção se tornou sem limites. Se
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no feudalismo predominaram o latifundiário, o eclesiástico e o guerreiro, a


partir do modo de produção capitalista começaram a predominar nas rela-
ções econômicas o banqueiro, o mercador e o fabricante (LASKI, 1973). Se a
religião predominava na vida do homem feudal, principalmente na explicação
do mundo, a ciência começou a substituí-la e ganhar centralidade.
Os séculos XV e XVI são marcados por descobertas geográficas e
marítimas, novas invenções, mudanças na forma de pensar o homem através
da ciência, e diminuição do poder da Igreja, mudanças que impulsionaram
o florescimento do liberalismo, uma doutrina que atenderia e legitimaria as
necessidades na nova sociedade (LASKI, 1973).
A partir da forma como o homem produz, surgem novas relações so-
ciais. O modo de produção capitalista exigia uma nova ideologia de mundo
que justificasse as novas relações sociais, exigia uma doutrina baseada no
livre comércio e na defesa da liberdade individual, uma doutrina que con-
frontasse os pilares da ordem feudal. Com a nova sociedade, afirma Laski
(1973, p. 15), “eram necessárias novas concepções que legitimassem as
novas potencialidades de riqueza que os homens haviam descoberto, pouco
a pouco, nas eras precedentes. A doutrina liberal é a justificação filosófica
das novas práticas”. O liberalismo é gerado pela nova ordem econômica
que começou no final da Idade Média através da ascensão da nova classe
média, a burguesia. Essa tinha objetivos econômicos, políticos e sociais e,
para alcançá-los, tinha que efetuar “[...] uma transformação fundamental
nas relações legais entre os homens” (LASKI, 1973, p.09).
Essa doutrina filosófica foi responsável por questionar a antiga or-
dem feudal e pela desintegração de suas estruturas. Ela defendia a tole-
rância à religião, era favorável ao governo representativo, reconhecia o su-
frágio universal e autodeterminação nacional, e “[...] foi tolerante em face
das reivindicações dos grupos minoritários e do direito de livre associação”
(LASKI, 1973, p.12). Na essência dessa doutrina filosófica, a liberdade era
somente para os indivíduos detentores da propriedade privada, por isso, o
liberalismo deveria legitimar e justificar o acúmulo de propriedade, assim,
como aponta esse autor (1973, p.13), “[...] a ideia de liberalismo está his-
toricamente vinculada, de um modo inevitável, à de posse de propriedade”.
O objetivo principal do liberalismo era a reivindicação da soberania
do indivíduo (no caso, o individualismo), que esse fosse dotado de liberda-
39 de7. O individualismo é um dos principais princípios da filosofia liberal. Essa

7 Laski (1973, p. 13) afirma que o liberalismo estabelecia uma antítese entre liberdade e igualdade,
pois “viu na primeira aquela ênfase sobre a ação individual, da qual o liberalismo sempre foi zeloso
defensor; viu na segunda o fruto da intervenção autoritária, cujo resultado final é, em seu ponto de
vista, uma restrição da personalidade individual”.
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doutrina impulsionou a teorização sobre o que é o indivíduo, a sociedade,


o Estado e qual deveria ser a função do Estado na nova sociedade que nas-
cia. Teóricos ingleses desenvolveram a Teoria Política do século XVII. Temos
como figuras principais os ingleses Thomas Hobbes (1588-1679) e John
Locke (1632-1704).
Para Hobbes, segundo Macpherson (2005), o estado de natureza era
condição natural da humanidade, estado que mostra os homens como real-
mente são; o estado de natureza seria a tendência dos homens ao estado de
guerra. Por isso, se não existissem as leis e o contrato entre os indivíduos,
todos viveriam em luta incessante de todos contra todos, assim, os homens
devem sair do estado de natureza mediante pacto entre o indivíduo (socie-
dade) e um soberano, ou seja, os homens cedem seu estado natural em prol
de um soberano e do “bem comum” (MACPHERSON, 2005). Esse autor ainda
afirma que somente uma sociedade possuidora de mercado, com princípios
voltados ao indivíduo e a propriedade, satisfaz as exigências do pensamento
de Hobbes. O modelo de individualismo possessivo está associado ao mode-
lo de sociedade regida pelas relações mercantis entre indivíduos.
Locke é outro pensador político, de origem da tradição liberal, a teori-
zar sobre todas as dimensões da vida do homem. Ele atribuiu sua teoria ao
direito de propriedade, em defesa da propriedade; os homens teriam direito
natural à propriedade, um direito anterior à existência da sociedade e do
governo (MACPHERSON, 2005).
Os princípios básicos do individualismo possessivo na sociedade
capitalista são que o homem é livre e humano em virtude unicamente da
propriedade de sua pessoa e que a sociedade humana consiste essencial-
mente em uma série de relações mercantis. Essas teorias de Hobbes e
Locke foram essenciais para legitimar a nova ordem que surgia e justificar
a propriedade privada.
Sobre a propriedade privada, é necessário resgatar o pensamento de
Marx (2010) de que,no modo de produção capitalista,a massa da população
só tema força de trabalho para vender, ela não detém a posse da proprie-
dade8. Assim, somente os proprietários da propriedade privada podem ter
soberania enquanto indivíduo. Outro ponto que merece destaque é que os
anteriores modos de produção, baseados na propriedade privada (escravis-
40 ta e feudal), não tiveram uma doutrina filosófica que justificasse a posse
e o acúmulo da propriedade privada (meios de produção). Havia somente

8 Podemos compreender esse processo através do capítulo XXIV, A assim chamada acumulação
primitiva, da obra O Capital: crítica da economia política.
PAULO ROBERTO FÉLIX DOS SANTOS EVERTON MELO DA SILVA LARYSSA GABRIELLA GONÇALVES DOS SANTOS

justificativas para a posse de escravos, para o papel do Estado na sociedade


(dadas especialmente pelos filósofos gregos), para a posse de terras e para
a relação de servidão (justificação divina). Uma doutrina que justificasse a
posse e o acúmulo da propriedade privada é um dado histórico exclusivo do
modo de produção capitalista.
Os objetivos liberais foram traçados pelos detentores da propriedade
privada conforme seus interesses. Para alcançar seus objetivos, a nascente
burguesia precisou “[...] limitar o âmbito da autoridade política, confinar os
negócios do governo ao quadro dos princípios constitucionais e, portanto,
tentou sistematicamente descobrir um sistema de direitos fundamentais que
o Estado não fosse autorizado a violar.” (LASKI, 1973, p. 11). Um Estado que
legitimasse um novo poder político seria a solução para essa nova classe,
ou seja, o Estado moderno teve que ser capturado pela nova classe economi-
camente dominante que surgia para assegurar seus interesses econômicos.
Se na sociedade feudal havia um conceito social de riqueza, na socie-
dade capitalista nasce o conceito individual de riqueza, nasce o espírito bur-
guês de acumular riqueza pela riqueza, conforme aponta esse longo trecho:

Esse espírito [da antiga sociedade feudal] começou a desaparecer


com o surgimento do espírito capitalista como concepção domi-
nante. Um conceito social de riqueza deu lugar a um conceito indi-
vidualista. A ideia de sanção divina para as normas de comporta-
mento foi gradualmente substituída por uma sanção utilitária. E o
princípio de utilidade deixou de ser determinado por referência ao
bem social. O seu significado foi extraído do desejo de satisfazer
a necessidade individual: pressupunha-se agora que quanto maior
riqueza o indivíduo possuísse, maior seria o seu poder de garantir
essa satisfação. Quando tal atitude começou a assenhorar-se do
espírito dos homens desenvolveu um poder revolucionário. Subs-
tituiu a ideia de subsistência, que era a predominante na Idade
Média, com suas implicações de uma sociedade estática ou tra-
dicionalista, pela ideia moderna da produção sem limites; e esta,
por seu turno, implica a existência de uma sociedade dinâmica
e antitradicional, visto que o desejo de riqueza é interminável e,
portanto, deve procurar continuamente a novidade e a experimen-
tação de novos métodos e recursos(LASKI, 1973, p. 16-17).

A partir da sociedade burguesa, a busca de riqueza pela riqueza era a


41
principal característica do homem, busca ainda combatida pelos princípios
morais da Igreja Católica. Com o desenvolvimento das novas relações econô-
micas, a partir do modo de produção capitalista, a Igreja teve que começar a
PAULO ROBERTO FÉLIX DOS SANTOS EVERTON MELO DA SILVA LARYSSA GABRIELLA GONÇALVES DOS SANTOS

ceder aos interesses particulares da burguesia. O espírito burguês encontrou


apoio na Reforma protestante para alcançar seus objetivos, pois ambos (a
burguesia e a Reforma) queriam reduzir o poder e a centralidade da Igreja
Católica na sociedade que estava nascendo, contribuindo, assim, para a li-
berdade e emancipação do indivíduo dos princípios morais católicos. Esses
acontecimentos foram fundamentais para o liberalismo, pois a propriedade
privada, vital para o novo sistema econômico que surgia, pôde se desenvolver
sem a interferência religiosa; aliás, a religião não poderia ser um obstáculo
para a prosperidade capitalista (LASKI, 1973).
Para alcançar a produção sem limites, o capitalismo procurou transfor-
mar a sociedade, mudando hábitos e costumes, e capturar o Estado moderno,
pois somente assim, como defende Laski (1973), a classe economicamente
dominante teria poder coercitivo sobre a sociedade e capacidade para usá-lo
em seu benefício.
Com o liberalismo, o Estado passou a sancionar a “paz e a ordem”,
substituindo a Igreja nessa função, e a formular mecanismos políticos e
legais para impedir a violação dos princípios e objetivos da doutrina libe-
ral. O liberalismo exigia um Estado autossuficiente que não interviesse nos
objetivos da burguesia9.
A doutrina liberal impulsionou a sociedade ao progresso, provocando
uma série de mudanças na vida do homem e da sociedade. Houve descober-
tas geográficas impulsionadas pelo progresso marítimo; novas invenções tec-
nológicas; surgimento da imprensa; florescimento da ciência, principalmente
nas discussões sobre a natureza, o homem e a sociedade; nova forma de o
homem se relacionar com Deus, a partir da Reforma da Igreja, impulsionando
o surgimento de novas igrejas; criação de Estados nacionais; e ascensão de
países colonizadores, como Portugal, Espanha, França e Inglaterra (LASKI,
1973). Todas essas mudanças acarretaram o nascimento da centralidade
da relação do homem com o homem, substituindo a relação do homem com
Deus e fazendo ruir as relações sociais feudais.
Vimos até o momento que a burguesia provocou uma série de mu-
danças na vida do homem, a partir do modo de produção capitalista, e
teve que ajustar a sociedade aos seus próprios fins. Seus objetivos eram
a incessante busca da riqueza pela riqueza, acúmulo dos bens produzidos
42 9 O mercantilismo foi o primeiro passo do Estado secular para a plena realização do liberalismo.
Essa prática econômica foi necessária nos primeiros séculos do capitalismo, entre Reforma e a
Revolução Francesa, período consideradoEra do Mercantilismo (LASKI, 1973). O mercantilismo con-
sistia em prática econômica de comércio exterior e do acúmulo de metais preciosos, principalmente
ouro e prata (LABASTIDA, 1969).
PAULO ROBERTO FÉLIX DOS SANTOS EVERTON MELO DA SILVA LARYSSA GABRIELLA GONÇALVES DOS SANTOS

socialmente,e liberdade individual, o que deu origem à doutrina liberal. Ape-


sar dos avanços e transformações societárias, elas ainda não tinham sido
suficientes para o triunfo da burguesia. A monarquia e aristocracia eram os
principais empecilhos da classe burguesa. A burguesia e o progresso pe-
diam passagem, mas a velha estrutura do regime feudal não permitia, e isso
incomodava a nascente burguesia,que queria crescer economicamente, o
que, no seu entendimento, implicava assumir o controle do Estado.
O triunfo da burguesia veio somente no século XVIII, com a eclosão
da Revolução Francesa, caracterizada como revolução burguesa e democrá-
tica, momento em que várias classes (dentro do Terceiro Estado) se uniram
contra a ordem feudal, principalmente a aristocracia (nobreza e alto clero).
A burguesia se apoiou na filosofia dos Luminares, que criticava o ve-
lho regime e tinha seus fundamentos na crença no progresso do espírito
humano e no conhecimento científico (SOBOUL, 1981). A burguesia elaborou
sua filosofia depois do século XVII, uma filosofia que questionou, principal-
mente, a tradição da ordem feudal, isto é, a Igreja e ao Estado feudal.
A França era governada pelo regime absolutista. O absolutismo se
caracterizava pelo caráter divino do Rei, enquanto autoridade absoluta e
inquestionável. Segundo Soboul (1981) ele era representante de Deus na
Terra e possuía todos os poderes, inclusive o de justiça. Ele também era
fonte de toda legislação, autoridade administrativa, fonte de guerra e paz,
comanda o exército, e direciona a política estrangeira. O Rei era a personi-
ficação do Estado.
O processo revolucionário durou dez anos, de 1789, com a negação
do absolutismo, até 1799, com a ascensão do Consulado e de Napoleão
Bonaparte. A Revolução Francesa caracteriza-se por uma revolução com-
plexa com vários agentes e segmentos, ela não deixa de “[...] apresentar, na
sucessão cronológica, aspectos contraditórios que lhe aumentam ainda o
brilho e o alcance” (SOBOUL, 1981, p. 494).
A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão consistia no “ca-
tecismo da nova ordem” societária que nascia. Essa carta carregava os direi-
tos naturais e imprescritíveis, principalmente o direito à liberdade individual
e concebia a propriedade como direito natural. Podemos afirmar aqui que, a
Declaração do Homem e do Cidadão é carta de vitória da burguesia com sua
43
PAULO ROBERTO FÉLIX DOS SANTOS EVERTON MELO DA SILVA LARYSSA GABRIELLA GONÇALVES DOS SANTOS

doutrina filosófica10. Após longos séculos, a classe burguesa finalmente con-


seguia alcançar a liberdade individual e o direito ao acúmulo de propriedade.
Portanto, a Revolução Francesa destruiu as estruturas feudais e lutou
pela liberdade do indivíduo (o indivíduo burguês) e da economia burguesa.
Assim, com a ajuda essencial da massa urbana e rural, nasciam a sociedade
burguesa e o Estado burguês. A burguesia foi a classe que alcançou seus
objetivos, em diferentes momentos, em graus diferenciados e com apoio da
classe trabalhadora. Com a revolução houve liberdade política, assegurando
a dominação da burguesia sobre as demais classes, e liberdade econômica,
laisser faire, laisser passer, que assegurava o livre mercado, a livre produção.
A liberdade econômica e política foram os objetivos traçados pela burguesia
desde seu surgimento, esses direitos eram fundamentais para a burguesia
progredir na sociedade capitalista, isto é, para acumular propriedade privada.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Considerando o movimento concreto da história para abordar o de-


senvolvimento do homem, este artigo apresentou de forma breve a centra-
lidade da propriedade privada e do Estado na história da humanidade. Com
a Revolução Neolítica surgiu o excedente econômico, possibilitando ao ho-
mem o acúmulo de riquezas através da apropriação individual dos produtos
produzidos coletivamente. A propriedade privada nasceu dessa expressão
econômica baseada na apropriação do trabalho alheio, permitindo que o ho-
mem vivesse do trabalho de outro.
A partir da propriedade privada, a humanidade passou por uma ca-
deia de acontecimentos inter-relacionados: o surgimento das classes sociais
através do binômio explorador x explorado e do Estado, instituição social
criada para legitimar a exploração do trabalho. Com isso, nascem as socie-
dades de classes que a humanidade até aqui conheceu: a sociedade escra-
vista, a sociedade feudal e a sociedade capitalista. Essas sociedades foram

10 Soboul (1981, p. 153-154) argumentaque essa carta foi “redigida pelos Constituintes, liberais
e proprietários, ela abunda em restrições, precauções e condições, que lhe limitam singularmente
o alcance”. Ela parecia um progresso substancial na história da humanidade, mas a opressão de
44 classe e a manutenção da propriedade foram mantidas. A título de exemplo, alguns direitos negados
para todos: os direitos políticos foram garantidos a apenas uma pequena parcela da população (SO-
BOUL, 1981); a constituinte só concedeu sufrágio universal aos proprietários; e os cidadãos foram
divididos em: ativos, passivos e eleitores. Dito de um modo mais direto: “o povo [protagonista da
Revolução] era eliminado da vida política” (SOBOUL, 1981, p. 156).
PAULO ROBERTO FÉLIX DOS SANTOS EVERTON MELO DA SILVA LARYSSA GABRIELLA GONÇALVES DOS SANTOS

determinadas por um modo de produção específico: o modo de produção


escravista (trabalhador escravo e senhor de escravo), o modo de produção
feudal (trabalhador servil e senhor feudal) e o modo de produção capitalista
(trabalhador proletário e capitalista).
O modo de produção capitalista mudou completamente a vida do ho-
mem. A figura do indivíduo substituiu os laços comunitários do feudalismo,
pois o novo modo de produção exigia um homem mais ativo, livre individual-
mente, mais dinâmico na sociedade; exigia um indivíduo dotado de liberdade
para poder acumular riqueza, ou seja, para acumular a propriedade privada.
Com isso, nasceu a doutrina liberal para justificar essa busca pela riqueza,
acarretando mudanças na vida do homem, na política (Estado burguês), na
cultura (Renascimento) e na ciência (Ciência Moderna). O coroamento desse
novo indivíduo burguês veio com a Revolução Francesa, através da qual as
estruturas feudais foram destruídas e o indivíduo burguês conquistou seu
espaço, principalmente na política, no Estado burguês.
A partir da forma de produção capitalista, o homem conheceu o pro-
gresso que o levaria a patamar novo na história, possibilitando produzir para
todos. O modo de produção capitalista produz mercadorias suficientes (e
com sobras) para toda humanidade. O que ocorre, devido a sua essência de
exploração do homem pelo homem e da propriedade privada, é a apropria-
ção privada dos produtos produzidos coletivamente. Essa é a contradição
que marca toda a história da sociedade de classes, inclusive do capitalis-
mo: a socialização da produção e a apropriação privada da produção.
Percebemos, nesta breve reflexão, que, a partir da propriedade privada,
a história da humanidade conheceu a exploração do homem pelo homem. O
explorador, além de ter o domínio econômico em cada modo de produção,
instituiu o Estado para ser também a classe politicamente dominante.
No geral, este artigo abarcou somente alguns aspectos da proprie-
dade privada e do Estado no desenvolvimento do homem. A apreensão do
desenvolvimento da propriedade privada a partir da Revolução Industrial e
das configurações do Estado moderno, principalmente em tempos de crise
do capital, ficará para reflexões posteriores.

45
PAULO ROBERTO FÉLIX DOS SANTOS EVERTON MELO DA SILVA LARYSSA GABRIELLA GONÇALVES DOS SANTOS

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PAULO ROBERTO FÉLIX DOS SANTOS EVERTON MELO DA SILVA LARYSSA GABRIELLA GONÇALVES DOS SANTOS

TUCHMAN, B. W. Um espelho distante: o terrível século XIV. Rio de Janeiro:


José Olympio, 1989.

47
O ESTADO MODERNO
EM PERSPECTIVA

Fernando de Araújo Bizerra1

INTRODUÇÃO

Desde pensadores clássicos - Platão, Aristóteles, Hegel, Hobbes,


Locke, Rousseau, Engels, Marx - até autores contemporâneos, polêmicas em
torno do Estado vão sendo postas numa escala plurissecular. Dos teóricos
apologéticos da ideologia dominante àqueles que compreendem o mundo
à luz duma leitura crítica, forja-se, nos meios acadêmicos, uma miríade de
interpretações que ora indicam ser o Estado um constructo necessário para
garantir o “bem estar de todos”; ora a expressão da coletividade, vendo-o
como um agente que equilibra os interesses contrários de determinados in-
divíduos e, por conseguinte, “concilia-os” para manter a estabilidade social;
ora um poder político que, ao contrário de pairar acima da sociedade, é, por
excelência, como órgão de dominação/opressão de classe.
Malgrado não ser uma temática inexplorada, os desafios postos pela
conjuntura recessiva atual atestam que ela ainda se faz presente no nosso
tempo, inserindo na agenda dos pesquisadores a exigência de maior empe-
nho analítico que, sob o crivo da crítica, decifre como se dá seu inter-relacio-
namento com o sistema social vigente.
Em primeiro lugar, porque desde o século passado disseminam-se
vulgatas reformistas que desarticulam o Estado da propriedade privada e do

48 1 Assistente Social, Mestre e doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Serviço Social


(PPGSS) da Universidade Federal de Alagoas (UFAL). Professor Assistente e Vice Coordenador do
Curso de Serviço Social da UFAL/Campus Arapiraca/Unidade Educacional de Palmeira dos Índios.
Membro do Grupo de Pesquisa sobre Reprodução Social (Faculdade de Serviço Social-FSSO/UFAL).
E-mail: nando_epial@hotmail.com.
PAULO ROBERTO FÉLIX DOS SANTOS EVERTON MELO DA SILVA LARYSSA GABRIELLA GONÇALVES DOS SANTOS

trabalho alienado e negam seu caráter de classe, convertendo-o na mediação


decisiva que norteará o processo de superação da ordem burguesa. Disso
resulta que grande parte das lutas encabeçadas pelos movimentos sociais e
trabalhistas confinaram (e confinam) suas estratégias organizacionais e seus
fins políticos unicamente à conquista do Estado e à busca pelo exercício do
seu poder. Propalou-se (e se propala) a ideia de que por intermédio do Estado
é possível realizar, a pouco e pouco, através de mudanças políticas parciais,
a transição para outra sociabilidade sem erradicar os pressupostos materiais
que sustêm o capital. A história, não raras vezes, tem negado isso.
Em segundo lugar, e não menos decisivo, porque a luta contra a su-
bordinação hierárquica do trabalho ao capital sempre demandou de quem
nela se engaja uma análise crítica acerca das estratégias do Estado que
salvaguardam a reprodução econômica. Hoje, essa demanda não se revela
como sendo de importância menor. Ao invés disso, é ainda mais vital, pois,
como bem observa Mészáros (2015, p. 16), “os problemas do Estado tor-
nam-se, inevitavelmente, cada vez maiores”, já que ele “deveria proporcionar
a solução para os vários problemas que obscurecem nosso horizonte, mas
não consegue fazê-lo”.
Diante da importância intelectual e política que a temática assume na
contemporaneidade, tornou-se oportuno contribuir, através da participação
nesta coletânea, com algumas reflexões sobre a especificidade do Estado
atinente ao capital. A interrogação central que se coloca, e que orienta as
reflexões contidas nas linhas que se seguem, pode ser assim sumariada: o
que é o Estado tal qual constituído em sua modalidade moderna? Para respon-
dê-la neste artigo, em hipótese alguma com anseio de sermos exaustivo, va-
ler-nos-emos, de modo especial, do instrumental teórico elaborado por Marx
e atualizado por outros autores aqui referenciados sempre que necessário.

O ESTADO MODERNAMENTE CONSTITUÍDO

Comecemos por resgatar, antes de expor sobre a constituição do Es-


tado Moderno, alguns elementos de ordem mais geral, não obstante dignos
de nota, porque esclarecem aspectos e polêmicas presentes nos debates
49 travados no interior das Ciências Sociais, a saber:
PAULO ROBERTO FÉLIX DOS SANTOS EVERTON MELO DA SILVA LARYSSA GABRIELLA GONÇALVES DOS SANTOS

1. o Estado, ao contrário de outros complexos sociais, a exemplo do


trabalho, da linguagem e da sociabilidade, possui presença limitada na his-
tória da humanidade ao ter sua existência hipotecada à propriedade privada.
Assim sendo, nem sempre existiu e nem sempre existirá, caso os pressupos-
tos e corolários que ensejam sua constituição venham a ser radicalmente
suplantados. Tendo sua gênese enraizada nos antagonismos reinantes no
âmbito da sociedade de classes, e repousando sobre eles, o Estado não se
revela como uma inevitabilidade da vida social em geral. Afinal, ele só se faz
absolutamente inevitável quando entra em cena a exploração do homem pelo
homem para fins econômicos, a divisão hierárquica do trabalho e a proprie-
dade privada, com todas as inevitáveis consequências daí decorrentes;
2. o Estado não é um órgão neutro. De fato, não há na sua ação
qualquer traço de neutralidade, ainda que, aparentemente, mas só aparen-
temente, isso possa ser disseminado. Holloway (1982, p. 15) aduz que não
há “uma coluna vertebral neutra, técnica que deixe de refletir [a] natureza”
do Estado e que cada um dos aspectos da sua atividade está “impregnado
por seu caráter de classe”. Em sua essência, - quer dizer, para além das
formas imediatas de regime ou de governo - é o poder político da classe
economicamente dominante que através dele adquire os meios indispen-
sáveis para que se consolide a dominação sobre uma parcela majoritária
da sociedade. Não é de se estranhar, quanto a isso, que o Estado só existe
como órgão de dominação de classe, característica que lhe é inocultável.
Dada a inconciliabilidade dos interesses opositivos das classes, ele visa,
em períodos demarcados, proteger os interesses dos indivíduos que se
reproduzem na condição de proprietários privados, de classe dominante;
3. o Estado não é unívoco. Por ser portador de historicidade, não apa-
rece sempre e em toda sociedade da mesma maneira. Embora preservando
características comuns, sua ação, destinando-se ao atendimento de deman-
das e necessidades específicas, se modifica, se particulariza. Um olhar so-
bre a história evidencia que o Estado assume diferentes configurações no
que diz respeito à forma e aos mecanismos de intervenção, sem, contudo,
alterar sequer um átomo da sua natureza. Prova inequívoca disso é que,
resguardados os traços que o caracteriza, “o Estado antigo foi, sobretudo,
o Estado dos senhores de escravos para manter os escravos subjugados; o
50 Estado feudal foi o órgão de que se valeu a nobreza para manter a sujeição
dos servos e camponeses dependentes” e “o moderno Estado representati-
vo é o instrumento de que se serve o capital para explorar o trabalho assa-
lariado” (ENGELS, 2010, p. 216).
PAULO ROBERTO FÉLIX DOS SANTOS EVERTON MELO DA SILVA LARYSSA GABRIELLA GONÇALVES DOS SANTOS

Tendo em vista isso, fica fácil concluir que uma determinada forma
de Estado – no caso da nossa reflexão, a forma especificamente moderna,
capitalista – precisa ser qualificada historicamente e situada no bojo das
relações sociais que possibilitam sua correta apreensão.
Vale rememorar, logo à partida, que o projeto societário da burguesia
foi se gestando ainda nos interstícios do sistema feudal. É sob o feudalismo,
já no seio de sua crise, que se encontraram os elementos impulsionadores
da sociedade capitalista. Quanto mais se desmantelava a estrutura econômi-
ca da sociedade feudal, mais o capital encontrava as mediações necessárias
para sua expansão irrefreável e, ao mesmo tempo, se edificava o Estado a
ele correspondente. Desde que a acumulação primitiva do capital alcançou
certo grau de maturidade, iniciou-se a formação do Estado Moderno que se
consolidou com as revoluções burguesas ocorridas na Inglaterra e na França,
constituindo-se, doravante, cada vez mais como um “poder nacional do ca-
pital sobre o trabalho, de uma força pública organizada para a escravização
social, de uma máquina de despotismo de classe” (MARX, 1971, p. 63).
Em que pese os instrumentos utilizados pelo Estado absolutista2 te-
rem exercido papel intransferível no contexto da acumulação primitiva do
capital e sido favoráveis à classe burguesa, foram-no por período limitado.
O poder centralizado coadunou-se apenas com a fase em que se teve a pre-
dominância do capital mercantil. Quando surgiram novas forças produtivas
- a gestação das condições para a instauração do capital industrial - e novas
necessidades postas pelo capital na sua marcha à universalização, isto é, à
sua dominância totalitária, exigiu-se uma mudança corresponde na esfera
estatal de modo a dissipar por completo os entraves ainda existentes. O
absolutismo cumprira sua missão, precisava, pois, ser superado. E assim o
foi pela ação revolucionária da burguesia.
Trindade (2011, p. 41) afirma que, a certa altura, “uma palavra – que
frequentaria o vocabulário humano nos séculos seguintes – começou a pas-
sar, com insistência crescente, pela cabeça dos burgueses. Era esta a pa-
lavra: revolução!”. Tal era a situação que, concomitante às transformações
econômicas, a burguesia revolucionou também a esfera da política para
consolidar a sua dominação social em escala planetária. Além de instituir

2 O absolutismo, em essência, era “destinado a sujeitar as massas camponesas à sua posição


51 social tradicional – não obstante e contra os benefícios que elas tinham conquistado com a comu-
tação generalizada de suas obrigações” (ANDERSON, 1989, p. 18). O poder centralizado do Estado
absolutista, além de preservar as condições gerais que, ao eliminar os entraves postos às rela-
ções mercantilistas, aplainaram o caminho para o triunfo ulterior do modo de produção capitalista,
amorteceu os conflitos expressos nas revoltas camponesas.
PAULO ROBERTO FÉLIX DOS SANTOS EVERTON MELO DA SILVA LARYSSA GABRIELLA GONÇALVES DOS SANTOS

a propriedade privada moderna, foi preciso transformar o Estado e exercer


seu poder nele e por via dele. Daí, advieram as revoluções burguesas. Elas
contribuíram para destruir, de uma vez por todas, as estruturas feudais que
cerceavam o avanço dos grandes grupos mercantis.
Foi tarefa inadiável da burguesia, inicialmente, enfraquecer o poder
da proprietária de significativa parcela da base fundiária – a Igreja Católica.
Principal fortaleza do sistema feudal, a Igreja bloqueava o progresso da bur-
guesia. No segundo decênio do século XVI, a Reforma Protestante, numa luta
que assumiu notadamente uma aparência religiosa, afirmou-se como sendo
uma batalha da burguesia contra os resquícios do feudalismo. Por meio dela,
foram abolidos os privilégios políticos, judiciários e fiscais da mencionada
Igreja, o domínio dos preceitos religiosos sobre os hábitos, assim como hou-
ve a venda das suas propriedades para os arrendatários e para os moradores
das cidades especuladoras.
A primeira revolução burguesa ocorreu na Inglaterra. Iniciou-se em
1640, com a Revolução Puritana e se completou em 1688 com a Revolução
Gloriosa. Fruto de um longo processo de intensificação da contradição fun-
damental entre o desenvolvimento das forças produtivas e as formas de pro-
priedade feudais, nela foram identificados os interesses da burguesia em
exercer o domínio político de tal modo a realizar a transformação burguesa
da sociedade inglesa. Na época, a burguesia buscou, acima de tudo, romper
seu isolamento do cenário político e derrubar os representantes tradicionais
que ocupavam o poder. Para isso, criou suas próprias alternativas, manifes-
tas numa forma diferente de governo profundamente relacionada com as
estruturas de poder material do capital.
Sob o reinado de Guilherme III de Orange, a Revolução Gloriosa3 ele-
vou os fundiários extratores de mais-valia e os capitalistas ao poder. Buscan-
do fortalecer a burguesia nacional, esses novos dirigentes inauguraram uma
nova era caracterizada pelo roubo das terras pertencentes ao Estado “até
então realizado em proporções modestas, em escala colossal”. Tais terras
“foram presenteadas, vendidas a preços irrisórios ou, mediante usurpação
direta, anexadas a propriedades privadas” da burguesia. E tudo isso aconte-
ceu “sem nenhuma observância da etiqueta legal” (MARX, 1988, p. 258). É
desse modo que:
52

3 Significou o golpe de Estado que consolidou a monarquia constitucional na Inglaterra através de


um acordo entre os nobres proprietários fundiários e a burguesia.
PAULO ROBERTO FÉLIX DOS SANTOS EVERTON MELO DA SILVA LARYSSA GABRIELLA GONÇALVES DOS SANTOS

Os capitalistas burgueses favoreceram a operação visando, entre


outros motivos, transformar a base fundiária em puro artigo de
comércio, expandir a área da grande exploração agrícola, multipli-
car sua oferta de proletários livres como os pássaros, provenien-
tes do campo etc. Além disso, a nova aristocracia fundiária era
aliada natural da nova bancocracia, da alta finança que acabava
de sair da casca do ovo e dos grandes manufatureiros, que en-
tão se apoiavam sobre tarifas protecionistas. A burguesia inglesa
agiu assim, em defesa de seus interesses [...] (MARX, 1988, p. 258,
grifos nossos).

Por seu turno, suplantando o Velho Regime, surge a Revolução


Francesa de 1789. Mediante o ideário revolucionário sintetizado na tría-
de igualdade, liberdade e fraternidade, a burguesia francesa inaugura uma
tendência ideológica progressista e subordina toda a sociedade às suas
condições particulares de reprodução, escudando seu ideário societário
pelo caráter de universalidade que ele possuía. Movida pela necessidade
de controlar e de centralizar a política, essa classe reunia os pressupostos
objetivos -resultantes, conforme afirma Soboul (1981, p.9), do “coroamento
de uma longa evolução econômica e social que fez da burguesia a senhora
do mundo” - para apresentar-se como “representante universal” dos interes-
ses de todos a partir de uma proposta de projeto global para a sociedade.
Sendo a classe particular detentora da possibilidade revolucionária
naquele momento, a burguesia buscou emancipar-se politicamente. Agluti-
nou em torno de si aqueles que, sublevando-se contra a nobreza e contra a
sociedade feudal em declínio, aspiravam a uma sociedade igualitária. E isso
não foi à toa! Buscou, num primeiro momento, conquistar o poder político
para, a partir dele, representar o seu interesse como sendo o interesse geral.
Esse processo, fundamental para o exercício de sua dominação no
aparelho estatal, consistiu em

[...] empreender a emancipação geral da sociedade a partir da sua


situação singular. Essa classe liberta toda a sociedade, mas so-
mente sob a condição de que a sociedade inteira se encontre na
mesma situação dessa classe, isto é, por exemplo, que possua ou
possa adquirir livremente dinheiro e cultura (MARX, 2010, p. 49,
grifo do autor).
53
PAULO ROBERTO FÉLIX DOS SANTOS EVERTON MELO DA SILVA LARYSSA GABRIELLA GONÇALVES DOS SANTOS

Marx adverte, precisamente, que:

[...] para que a revolução de um povo e a emancipação de uma


classe particular coincidam, para que uma classe social repre-
sente a sociedade como um todo, é preciso inversamente que se
encontrem numa outra classe todos os defeitos da sociedade,
é preciso que uma determinada categoria configure a catego-
ria que materializa a ofensa, que incorpora o empecilho geral, é
preciso que um setor social singular assuma o crime notório de
toda a sociedade, de maneira que a emancipação desse setor
se manifeste como autolibertação geral (MARX, 2010, p. 50-51,
grifos do autor).

A partir da sua situação singular, foi a burguesia setecentista que


materializou a ofensa contra o Velho regime e edificou o Estado Moderno,
estruturado a partir do Primeiro Império4. Marx (1977a) esclarece que os
esforços dos grandes personagens da Revolução Francesa – a exemplo de
Danton, Robespierre, Saint-Just e Napoleão – assim como dos partidos e
das massas, voltaram-se para desempenhar a tarefa da sua época: “libertar e
instaurar a moderna sociedade burguesa”. Para isso, os primeiros “reduziram
a pedaços a base feudal e deceparam as cabeças feudais que sobre ela ha-
viam crescido”, possibilitando a livre expansão do capitalismo. Já Napoleão,
“por seu lado, criou na França as condições sem as quais não seria possível
desenvolver a livre concorrência, explorar a propriedade territorial dividida e
utilizar as forças produtivas industriais da nação que tinham sido libertadas”
(MARX, 1977a, p. 203); bem como aperfeiçoou a máquina estatal moderna.
À força das novas ideias, e num sentido de total libertação, a bur-
guesia aspirava à tomada de poder de modo a instaurar sua forma de vida
específica (leia-se: capitalista), pois estava cônscia de que, posteriormente,
ser-lhe-ia conferida a posição de classe econômica e politicamente domi-
nante na sociedade. Empenhou-se, iluminada teoricamente pelos mantras
liberais, em capturar o Estado porque teria em suas mãos, enfim, o supremo
poder coercitivo da sociedade. Tendo a posse desse poder, poderia usá-lo
para alcançar seus próprios fins.

54 4 O Primeiro Império foi instaurado na França, em novembro de 1799, a partir do golpe de Estado
de Napoleão. Com a meta traçada de rechaçar a ditadura revolucionária, por ter ciência do poder
que as massas possuíam, a burguesia entregou a França a Napoleão I, que ali instaurou uma dita-
dura militar. Tem-se assim o significado do golpe do 18 de Brumário, explicitando-se na subida de
Napoleão ao poder.
PAULO ROBERTO FÉLIX DOS SANTOS EVERTON MELO DA SILVA LARYSSA GABRIELLA GONÇALVES DOS SANTOS

Se é certo que as revoluções inglesa e francesa foram fundamentais


para a constituição do Estado Moderno, tal constituição foi marcada, também
e ainda, pelas ondas revolucionárias de 1848, ocorridas em território francês,
cuja missão da burguesia fora não mais revolucionar o mundo como até então
fizera, mas apenas consolidar seus interesses e conservar as condições
materiais da sua dominação de classe, “independente de quão ‘inconsciente’
e acrítica ela permaneceu com respeito às contradições inerentes de sua pró-
pria formação social – capitalista” (MÉSZÁROS, 2011, p. 82).
Marx (1977), ao fazer um resgate da revolução de fevereiro de 1848 a
dezembro de 1851 na França, destacou três períodos principais:

O período de fevereiro; de 4 de maio de 1848 a 28 de maio de 1849,


o período da Constituição da República, ou da Assembleia Nacional
Constituinte; de 28 de maio de 1849 a 2 de dezembro de 1851,
o período da República Constitucional ou da Assembleia Nacional
Legislativa (MARX, 1977, p.207, grifos do autor).

Esses períodos, que marcam o quadro de lutas de classes na França,


expressaram o antagonismo entre capital e trabalho assalariado. Tais mo-
mentos tiveram como marco administrativo o aperfeiçoamento da máquina
estatal por intermédio do Poder Executivo, cumprindo, nesse sentido, im-
portante momento na constituição do Estado Moderno ao representar, em
todos os extremos, a dominação da burguesia.Completada sua dominação,
a burguesia logo pôs às claras qual é o seu verdadeiro objetivo e como
direciona sua ação no interior da sociedade, demonstrando, desse contexto
em diante, ser incapaz de propor alternativas emancipatórias reais. Do tom
revolucionário, a burguesia decaiu para o desejo de conservação da ordem
por ela erguida com o arrimo das massas populares.
Institui-se, por parte da burguesia, uma forma de governo voltada
para seus interesses particulares, que dá cobertura às suas necessidades e
não às necessidades de toda a nação, como assim propusera revoluciona-
riamente. O que parecia estar voltado para todo o povo materializava-se nos
interesses exclusivos de dominação da burguesia. Da busca pela garantia
da sua propriedade e de seus fins decorre profundo conservadorismo: essa
classe reservara para si os valores libertários da revolução de 1789, consa-
55 grando suas conquistas de modo a excluir as massas populares da partilha
da riqueza socialmente produzida. Por via deste movimento, fica notório
que a forma de Estado por ela erguida é, como avalia Engels (1974, p. 93),
PAULO ROBERTO FÉLIX DOS SANTOS EVERTON MELO DA SILVA LARYSSA GABRIELLA GONÇALVES DOS SANTOS

“apenas a organização que a sociedade burguesa a si própria deu para man-


ter de pé as condições exteriores gerais do modo de produção capitalista”.

O ESTADO COMPLEMENTA O CAPITAL

Mészáros (2002), perscrutando a relação entre economia e política,


extrai à seguinte conclusão: a dominância do capital no âmbito da produ-
ção teve de acontecer num recíproco intercâmbio com as práticas políticas
totalizadoras que dão forma ao Estado Moderno. Estado e capital surgem
inseparável e simultaneamente; aquele é parte constituinte da base mate-
rial desse sistema orgânico – sendo, desta feita, uma exigência dele – e se
inter-relaciona com as estruturas de comando socioeconômicas por meio
de uma reciprocidade dialética. Entre Estado e capital interpõe-se uma
relação essencial de “codeterminação”, de dependência mútua, em que a
existência de um está inextrincavelmente associada à existência do outro.
Em sua obra de maior envergadura, Para além do capital, o filósofo
húngaro compreende o Estado como um complexo que possui homologia
objetiva com o capital, cuja função é não somente servi-lo, mas, também,
complementá-lo em determinados aspectos. Afiança que o Estado não é
uma entidade apartada do sistema capitalista. Muito pelo contrário. O apara-
to estatal surge da necessidade de uma dimensão coesiva compatível com
a nova reprodução econômica marcada pelos seus microcosmos produtivos
essencialmente centrífugos que, por si só, são impossibilitados de constituir
uma coordenação espontânea.
Na sinótica constatação de Mészáros (2002, p. 118),

[...] o Estado moderno altamente burocratizado, com toda a com-


plexidade do seu maquinário legal e político, surge da absoluta ne-
cessidade material da ordem sociometabólica do capital e depois,
por sua vez – na forma de uma reciprocidade dialética –, torna-se
uma precondição essencial para a subsequente articulação de
todo o conjunto.

56 Eis porque a vitalidade do referido sistema não é possível sem o Es-


tado a ele correspondente. E vice-versa, o Estado moderno, como estrutura
PAULO ROBERTO FÉLIX DOS SANTOS EVERTON MELO DA SILVA LARYSSA GABRIELLA GONÇALVES DOS SANTOS

totalizadora5 de comando político, só encontra sustentação através do contí-


nuo inter-relacionamento com o capital.
O sistema do capital, com o qual o Estado guarda uma inseparabilidade
ontológica, emerge na cena histórica varrendo do mapa culturas e populações
antiquíssimas, revolucionando as formações sociais localistas, instaurando
grandes mercados unificados em escala mundial, conferindo ao desenvolvi-
mento das forças produtivas um nível numa experimentado e expropriando6
as massas campesinas das suas condições de sobrevivência.
A produção da riqueza agrilhoada ao comando do capital pressupõe,
desde o seu nascedouro até os dias correntes, possuidores de dinheiro e de
meios de produção que compram por certo período de tempo força de traba-
lho alheia e, ávidos por mais-valia, a emprega em ramos diversificados. Daí,
entram em cena outros sujeitos: os trabalhadores livres do servilismo que
marcou o medievo e, violentamente, expropriados dos meios de subsistência
fundamentais à reprodução autônoma de suas vidas, os quais são impelidos,
por não lhes restar outra saída, a vender parte de si mesmos em troca de
um salário. Ora, apenas quando estão sem pertences e pertencimentos – e
premidos pela necessidade de sobreviver - é que os trabalhadores se inserem
nas relações mercantis, sucumbem à exploração desmedida da sua força de
trabalho e passam a estarem subsumidos ao capital.
Globalmente dominante, o sistema social sob o qual vivemos assenta-
-se na exploração da força de trabalho e na alienação do trabalhador mediante
o que é produzido, porquanto a produção não é destinada, nunca foi e nem
será, de fato, à satisfação das necessidades sociais dos indivíduos; mas, isto
sim, à produção contínua de mais-valia. O trabalhador produz através do dis-
pêndio das energias próprias à sua corporalidade objetos que têm utilidade

5 No tocante a esse aspecto, Mészáros (2002, p. 119) faz uma importante ressalva para não se
cair em visões deturpadas: “Na qualidade de estrutura totalizadora de comando político do capital
[...], o Estado não pode ser reduzido ao status de superestrutura. Ou melhor, o Estado em si, como
estrutura de comando abrangente, tem sua própria superestrutura – a que Marx se referiu apro-
priadamente como ‘superestrutura legal e política’ – exatamente como as estruturas reprodutivas
materiais diretas têm suas próprias dimensões superestruturais”. 
6 No livro I de O Capital, é-se, por parte de Marx, detalhada a expropriação dos trabalhadores que se
iniciou durante o movimento sanguinário da acumulação primitiva do capital ao serem arrancados
súbita e violentamente do seu modo costumeiro de vida. Todavia, a expropriação não se limitou a
57 terra. Escrita “nos Anais da humanidade com traços de sangue e fogo”, a expropriação do campe-
sinato europeu, que se estende do século XV ao século XVI, resultou, ainda, na separação entre os
trabalhadores e a propriedade das condições da realização do trabalho, lançando-os livremente,
por via da dissolução dos séquitos feudais, no mercado de trabalho como vendedores da única e
potencial mercadoria que dispõem: a força de trabalho.
PAULO ROBERTO FÉLIX DOS SANTOS EVERTON MELO DA SILVA LARYSSA GABRIELLA GONÇALVES DOS SANTOS

na vida de outrem que o demanda e também cria, ao ter sua força de trabalho
explorada, novo valor que é apropriado pelo dono do capital sem nenhuma
retribuição. Para chancelar a própria reprodução contínua do capitalismo, um
microscópico quadro de pessoal expropria os trabalhadores e detém a riqueza
concentradamente7 na forma de propriedade privada.
Na leitura de Mészáros (2002), o capital é uma “forma incontrolável
de controle sociometabólico” que escapa forçosamente de um grau signifi-
cativo de controle humano. Essa incontrolabilidade8, inerente a sua dinâmica
reprodutiva e expansionista, sinaliza que esse sistema “[...] é, na verdade, o
primeiro na história que se constitui como totalizador irrecusável e irresis-
tível, não importa quão repressiva tenha de ser a imposição de sua função
totalizadora em qualquer momento e em qualquer lugar em que encontre
resistência” (MÉSZÁROS, 2002, p. 97). Ter assumido essa característica de
“totalizador irrecusável e irresistível” possibilita um dinamismo ao sistema
do capital, tornando-o o “mais competente extrator de trabalho excedente”,
antes inimaginável na história quando comparado aos modos de controle
sociometabólico que lhe antecederam no movimento da reprodução social.
Em que pese o capital ser um sistema mais dinâmico, Mészáros
(2002) chama atenção para o fato de que, paradoxalmente, o “preço a ser
pago” é a inevitável “perda de controle sobre os processos de tomada de
decisão” (MÉSZÁROS, 2002, p. 97, grifos do autor).
A perda de controle é uma “deficiência fatídica” do sistema do capi-
tal; é consequência direta da separação que se consolidou entre as funções
relacionadas à produção e o controle do processo de trabalho9. Dessa per-
da, acarretando uma “ausência de unidade”, emanam os defeitos estruturais
do capital, base constitutiva da reprodução contraditória do seu modo de
controle particular. Diante da “‘falta’ de uma coesão” dos microcosmos so-

7 Marx e Engels (1998, p. 24), ao tratarem sobre a concentração da riqueza na sociabilidade


capitalista, constataram que “a propriedade privada está suprimida para nove décimos de seus
membros; ela existe precisamente pelo fato de não existir para nove décimos”. Mais recente-
mente, dados publicados na Folha de São Paulo, caderno A, em 2009, reafirmam essa tendência
apontada pelos autores no século XIX ao sinalizarem que 1% da população mundial detém, até
aquele ano, 44% do total de riqueza produzida no planeta.
8 Sobre a incontrolabilidade do capital, é relevante e indispensável, além da obra de Mészáros
citada neste item, o estudo de Paniago (2012).
58 9 No devido esclarecimento que essa separação não se aplica apenas aos trabalhadores enquanto
indivíduos particulares é preciso frisar, com base em Mészáros (2002, p. 98), que ela atinge tam-
bém os grandes capitalistas, que “têm de obedecer aos imperativos objetivos de todo o sistema,
exatamente como todos os outros, ou sofrer as consequências e perder o negócio”.
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cioeconômicos, “o Estado moderno imensamente poderoso – e igualmente


totalizador – se ergue sobre a base [do] metabolismo socioeconômico [do
capital] que a tudo engole”.
A produção da riqueza, expressa numa gigantesca coleção de merca-
dorias produzidas a cada instante por milhões de trabalhadores, demanda o
envolvimento apoiador direto ou indireto da dimensão política do sistema do
capital. Sem tal envolvimento,

[...] até mesmo as necessidades expansivas mais genuínas dos


microcosmos reprodutivos teriam de se manter como nada mais
que requisitos abstratos frustrados, em vez de serem transfor-
madas em demandas efetivas. Isso ressalta fortemente, mais
uma vez, as determinações recíprocas da dialética histórica na
verdadeira articulação tanto da base reprodutiva material do
capital como um sistema coerente quando de sua formação de
Estado (MÉSZÁROS, p. 2011, 167).

Visando contribuir com o funcionamento sustentável do modo de


controle singular do capital, o Estado age em sintonia com as exigências
das unidades produtivas materiais e se articula conjuntamente para manter
a produtividade global do sistema econômico vigente. Pode-se argumentar
que o Estado, na sua finalidade e nos seus procedimentos operativos, existe
para ser o guardião dos interesses fulcrais à reprodução do capital: é-o para,
nos dizeres de Mészáros (2015, p. 28), “proteger a ordem sociometabólica
estabelecida, defendê-la a todo custo, independentemente dos perigos para
o futuro da sobrevivência da humanidade”.
Ao Estado nessa modalidade particular é atribuída a tarefa de “retifi-
car” (sem, contudo, eliminar; já que o equilíbrio possível é sempre temporário
e ajustado até onde os limites do capital permitem) a ausência de unidade
existente na tríplice de defeitos do sistema do capital (visível na fratura entre
produção e controle, produção e consumo e produção e circulação) que, pro-
duto da sua própria estrutura, se apresenta enquanto antagonismos sociais.
No que tange à primeira fratura, ganha nitidez a seguinte ação reme-
dial do Estado:

[...] a ausente unidade é, por assim dizer, “contrabandeada” como


59 cortesia do Estado, que protege legalmente a relação de forças es-
tabelecida. Graças a esta salvaguarda, as diversas “personificações
do capital” conseguem dominar (com eficácia implacável) a força
de trabalho da sociedade, impondo-lhe ao mesmo tempo a ilusão
de um relacionamento entre iguais (MÉSZÁROS, 2002, p. 107).
PAULO ROBERTO FÉLIX DOS SANTOS EVERTON MELO DA SILVA LARYSSA GABRIELLA GONÇALVES DOS SANTOS

O Estado, atuando sobre a unidade ausente entre produção e controle,


legitima a radical separação entre produção e monopolização, funções essas
assumidas por indivíduos - pertencentes a uma determinada classe social -
que ocupam lugares distintos no processo produtivo. O Estado sanciona, de
um lado, “o material alienado e os meios de produção” e, do lado oposto,
“suas personificações, os controladores individuais (rigidamente comanda-
dos pelo capital)”. No sistema capitalista, uma maioria produz, a partir da
exploração da sua força de trabalho, a riqueza; mas, realizada tal produção,
essa maioria se vê privada do controle sobre o destino do que ela produziu.
Manifesta-se, assim, a oposição entre os que se apossam do total de mer-
cadorias produzidas, os proprietários privados, e aqueles não proprietários.
Em vista dessa realidade, e de modo a refrear os possíveis confrontos que
emanam da relação-capital, “a estrutura legal do Estado moderno é uma exi-
gência absoluta para o exercício da tirania nos locais de trabalho”. Pois, sem
esta estrutura “até os menores ‘microcosmos’ do sistema do capital [...] se-
riam rompidos internamente pelos desacordos constantes, anulando dessa
maneira sua potencial eficiência econômica” (MÉSZÁROS, 2002, p. 107-108).
Se isso é verdadeiro, não deixa de ser verídico o fato de que o Estado,
no âmbito da separação entre produção e controle, é também uma exigência
para, segundo Mészáros (2002, p. 108), “evitar as repetidas perturbações
que surgiriam na ausência de uma transmissão da propriedade compulso-
riamente regulamentada – isto é: legalmente prejulgada e santificada – de
uma geração à próxima, perpetuando também a alienação do controle pelos
produtores”. Cumprindo sua função de complementariedade, ele materializa
de maneira direta ou indireta intervenções políticas e legais, conspicuamen-
te corretivas, sobre os conflitos que se renovam de forma constante entre
as unidades socioeconômicas particulares de reprodução do capital, já que
entre elas o inter-relacionamento não se dá de maneira harmônica.
Sobre o segundo defeito pertencente às determinações mais internas
do sistema do capital, a correlação problemática entre produção e consumo,
a intervenção retificadora do Estado, com a finalidade de assegurar o funcio-
namento do sistema, mostra-se essencial ao encobrir as profundas iniquida-
des das relações estruturais manifestas naquela última esfera. De maneira a
promover a expansão além-fronteiras do capital, o Estado é requerido a ser
60 comprador/consumidor direto; e, para isso,

Ele deve sempre ajustar suas funções reguladoras em sintonia


com a dinâmica variável do processo de reprodução econômico,
PAULO ROBERTO FÉLIX DOS SANTOS EVERTON MELO DA SILVA LARYSSA GABRIELLA GONÇALVES DOS SANTOS

completando politicamente e reforçando a dominação do capital


contra as forças que poderiam desafiar as imensas desigualdades
na distribuição e no consumo (MÉSZÁROS, 2002, p.110).

Enquanto comprador/consumidor direto, cabe ao Estado o provi-


mento de algumas necessidades reais do conjunto da sociedade, sobretudo
diante das lutas organizativas protagonizadas pelos trabalhadores, a saber:
educação, saúde, segurança social, habitação e serviços de seguridade so-
cial. Mas não só. Contígua à essa providência estatal, outra também decisiva
volta-se à satisfação de “apetites em sua maioria artificiais” ao alimentar
a robusta máquina burocrática que lhe corporifica e o complexo militar-in-
dustrial, através das grandes encomendas estatais à indústria bélica10 e do
incentivo às atividades a elas correlatas, sobretudo a partir do século XX
que experimentou um clima de belicismo expresso nas duas grandes guer-
ras mundiais e nos confrontos territoriais armados. O Estado financia pes-
quisas11 que, com seu aval, se orientam para a aplicação da ciência a fins
destrutivos e mortais e “não só facilita (por meio de sua crescente selva
legislativa) como também legitima hipocritamente a mais fraudulenta – e, é
claro, imensamente lucrativa – expansão do capital na produção militarista
em nome do ‘interesse nacional’” (MÉSZÁROS, 2011, p. 154).
Igualmente expressivas são as medidas tomadas pelo Estado em
relação ao terceiro defeito estrutural do capital manifesto na ruptura entre
produção e circulação. O que está em jogo na ação do Estado é o imperativo,
absolutamente indispensável, de criar a circulação em escala global, garan-
tindo a existência do capital como um sistema ubíquo.
Tanto a eliminação de barreiras locais ou regionais postas ao cresci-
mento dos mercados como a expansão ilimitada do capital são requisitos do
metabolismo social atual. É de se notar que no desenvolvimento capitalista
a estrutura de comando político do capital se articula em Estados nacionais.

10 Essa indústria oferece fabulosos lucros. A título de ilustração, Netto e Braz (2009, p. 184)
anotam que “nos anos setenta do século passado, nos Estados Unidos, enquanto a taxa geral de
lucro na indústria de transformação era de cerca de 20%, monopólios da indústria bélica auferiam
lucros que variavam de 50 a 2.000%”. Sobre a indústria bélica estadunidense e sua relação com o
mercado no pós-11 de setembro de 2001, Cf. Klein (2008).
11 Bizerra (2016, p. 181) assevera que “o Estado, através de gigantescos recursos, financiou,
61 desde a Segunda Guerra Mundial, diversas pesquisas que contribuíram para o surgimento de um
complexo industrial militar. Não é à toa que vários centros de estudos nucleares, como o Bell
Laboratories, receberam financiamento do governo americano no tempo da [Segunda] guerra e
foram supervisionados por órgãos públicos como o Departamento de Pesquisa e Desenvolvimento
Científico, sob direção de Vannevar Bush”.
PAULO ROBERTO FÉLIX DOS SANTOS EVERTON MELO DA SILVA LARYSSA GABRIELLA GONÇALVES DOS SANTOS

Na pertinente constatação de Mészáros (2002, p. 128), isso ocorre porque


o “capital global”, tal como se constituiu historicamente sua particularidade,
é “desprovido de sua necessária formação de Estado, apesar do fato de o
sistema do capital afirmar o seu poder – em forma altamente contraditória
– como sistema global”.
A administração dessa contradição por parte do Estado se dá com
base na instituição de um “duplo padrão”. Na citação que se segue, o autor
assim o caracteriza:

[...] em casa (ou seja, nos países “metropolitanos” ou “centrais”


do sistema do capital global), um padrão de vida bem mais ele-
vado para a classe trabalhadora – associado à democracia liberal
– e, na “periferia subdesenvolvida”, um governo maximizador da
exploração, implacavelmente autoritário (e, sempre que preciso,
abertamente ditatorial), exercido diretamente ou por procuração
(MÉSZÁROS, 2002, p. 111).

Esse “duplo padrão” acima anunciado corresponde ao estabelecimen-


to de uma relação notadamente hierárquica entre os Estados nacionais e não
se destina “a permanecer como um aspecto permanente do ordenamento
global”. A depender da conjuntura, pode haver mudanças em seu interior e,
portanto, sua duração só encontra um equilíbrio temporariamente definido.
Sob esse “duplo padrão” de tratamento, nas últimas décadas manifestam-se
duas tendências complementares. Em primeiro lugar, testemunha-se uma
“certa equalização no índice diferencial de exploração que tende a se afirmar
também como espiral para baixo do trabalho nos países ‘centrais’ no futuro
previsível” (MÉSZÁROS, 2002, p. 112, grifos do autor). Isto é, um progressivo
aumento no grau de exploração da força de trabalho que afeta o rebaixamen-
to do padrão de vida dos trabalhadores também dos países “centrais”.
Já a segunda tendência, coexistindo com esta equalização, emerge
de seu “necessário corolário político” e se traduz num “crescente autori-
tarismo nos Estados ‘metropolitanos’”, “e [num] desencantamento geral,
perfeitamente compreensível, com a ‘política democrática’, que está pro-
fundamente implicada na virada autoritária do controle político nos países
capitalistas avançados” (MÉSZÁROS, 2002, p. 112, grifos do autor).
62 Tudo isso considerado, o Estado, “agente totalizador da criação da
circulação global”, encampa intervenções distintas, para cumprir sua positivi-
dade à reprodução do capital, diante do que a política interna e a política inter-
nacional requerem no que concerne à circulação: mune-se com os recursos à
PAULO ROBERTO FÉLIX DOS SANTOS EVERTON MELO DA SILVA LARYSSA GABRIELLA GONÇALVES DOS SANTOS

sua disposição para desenvolver determinadas ações corretivas no plano in-


ternacional de tal maneira a facilitar a irrestringível expansão monopolista do
capital no exterior. Outras ações, não menos significantes, são empregadas
no domínio da política interna, atuando na busca dos meios compatíveis com
a dinâmica expansionista do sistema capitalista para evitar, dentro do possí-
vel, que a tendência à concentração e à centralização do capital provoque a
eliminação prematura das pequenas unidades de produção.

ÚLTIMAS (E IGUALMENTE IMPORTANTES)


CONSIDERAÇÕES

As indagações a respeito do Estado, inclusive a que propositalmente


levantamos na introdução desse artigo, vêm de longa data. Do lapso tem-
poral que se estende da Antiguidade até os tempos hodiernos, muitos são
os esforços para conceituá-lo. O Estado pode ser tematizado (e, costumei-
ramente, é) a partir de diferentes perspectivas teóricas. Todavia, apenas
uma, por não cair nas armadilhas teóricas que apregoam a sua neutralidade,
nulificando seu conteúdo de classe, possibilita a apreensão correta do seu
ser-precisamente-assim, do lugar que ele ocupa no quadro da totalidade so-
cial e revela sua funcionalidade ao sóciometabolismo vigente: a perspectiva
histórico-ontológica inaugurada por Marx.
Não por acaso, mas em decorrência dos determinantes que coligi-
mos páginas atrás, o Estado modernamente constituído, enquanto estrutura
totalizadora de comando político, além de servir ao capital, cumpre a função
de complementá-lo. O dinamismo assumido pelo capital, em cada momento
histórico de sua reprodução, conta com a complementariedade do Estado à
medida que ela, embora não supere a centrifugalidade das unidades reprodu-
tivas materiais, garante e protege, de forma permanente, as condições gerais
de extração da mais-valia tão vitais para o seu funcionamento. O Estado tem
atuado sob todas as suas formas configuradas de modo a gerir os interesses
da burguesia e preservar, a partir de ações concretas, a estrutura social que
antagoniza capital e trabalho. O modus operandi do Estado visa fortalecer,
e não enfraquecer o capitalismo. O Estado Moderno é, afinal de contas, o
63
Estado dos capitalistas.
Adicionalmente, importa ressaltar, nessas palavras finais, que, em que
pese o fato de o Estado burguês atuar ora de forma coercitiva, ora através
PAULO ROBERTO FÉLIX DOS SANTOS EVERTON MELO DA SILVA LARYSSA GABRIELLA GONÇALVES DOS SANTOS

do consenso ou, ainda, recursando a essas duas estratégias quando for con-
veniente, o que está em jogo na sua intervenção é a defesa da propriedade
privada em sua feição genuinamente capitalista e a dominação exercida pelo
capital sobre o trabalho. Dentro do campo dos limites e possibilidades obje-
tivamente posto para que o Estado se mova e intervenha, tanto do ponto de
vista econômico quanto político e social, ele se adapta às mudanças proces-
sadas e recorre aos mecanismos mais adequados para cumprir, com êxito, a
função de ser o poder político da classe capitalista.

REFERÊNCIAS

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64 ________. Contribuição à crítica a filosofia do direito de Hegel: introdução.


Trad. de Lúcia Ehler. São Paulo: Expressão Popular, 2010.
MARX, K.; ENGELS, F. Manifesto do Partido Comunista. São Paulo: Cortez, 1998.
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____________. Estrutura social e formas de consciência II: a dialética da
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TRINDADE, J. D. de L. História social dos direitos humanos. São Paulo: Pe-
trópolis, 2011.

65
ESTADO, REPRODUÇÃO DO CAPITAL
E A CONSTRUÇÃO DE BARRAGENS
NO BRASIL 1

Milena Barroso2
Yanne Angelim3

INTRODUÇÃO

“[...] o movimento do capital é insaciável”.


(Karl Marx em O Capital, 1876).

Ao partir da afirmação de Marx quanto à insaciável capacidade do


capital de se reinventar e se expandir, interessa-nos assinalar, mais espe-
cificamente para fins deste texto, o processo de apropriação capitalista
da natureza, na sua forma particular de construção de barragens, o que,
segundo nossa hipótese de trabalho, tem figurado como importante estra-
tégia de acumulação capitalista no Brasil para a qual o Estado opera papel
fundamental na garantia das condições essenciais ao seu desenvolvimento.
É sabido que a relação entre homem e natureza é histórica e essencial
à manutenção da própria vida humana. Essa relação de interdependência
retém uma particularidade, nela o homem difere dos demais seres vivos pelo
trabalho. O trabalho é mediação essencial à apropriação e transformação

1 O presente artigo foi apresentado originalmente no IV Encontro Internacional de Política Social e XI


Encontro Nacional de Política Social, realizados entre 06 e 09 de junho de 2016 na cidade de Vitória-ES.
2 Professora do Curso de Serviço Social da Universidade Federal do Amazonas; Doutoranda em
Serviço Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro; Bolsista da Fundação de Amparo à
66 Pesquisa do Amazonas.
3 Professora do Curso de Serviço Social da Universidade Federal de Sergipe; Doutoranda do Pro-
grama de Pós-Graduação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro;Membro do Grupo de Estu-
dos e Pesquisas Marxistas da Universidade Federal de Sergipe; Bolsista da Fundação de Amparo à
Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro.
PAULO ROBERTO FÉLIX DOS SANTOS EVERTON MELO DA SILVA LARYSSA GABRIELLA GONÇALVES DOS SANTOS

dos elementos da natureza pelo homem, para satisfação das suas neces-
sidades, processo que, mesmo tempo, produz transformações no próprio
homem. Nesses termos, pode concordar com Lukács (2013) e Marx (2010)
em que o trabalho possibilita o processo de humanização. O modo de pro-
dução e reprodução da vida, que caracteriza cada momento histórico e
ordem societária, traz, portanto, determinações à relação entre homem e
natureza e, ainda, às relações dos homens entre si.
Com a emergência da sociedade capitalista, marcada essencialmen-
te pela propriedade privada dos meios de produção, compra e venda da for-
ça de trabalho e acumulação privada da riqueza socialmente produzida, o
trabalho assumiu o caráter de trabalho alienado, sendo seu produto alheio
ao seu produtor e voltado a suprir necessidades de outros homens por meio
da compra e venda de mercadorias. Nesse sentido, o trabalho na sociedade
capitalista, ao assumir a produção de mercadorias como fim, passa a pro-
duzir desumanização e efeitos deletérios sobre a natureza.
O caráter destrutivo que a relação homem-natureza assumiu a partir
da produção mercantil e que se vem enraizando, em escala planetária, na
cena contemporânea na esteira do aumento da produção e do incentivo ao
consumo exacerbado, põe em xeque a própria continuidade da vida humana
(MÉSZÁROS, 2007, 2011; SILVA, 2010). A necessidade permanente do capi-
tal de garantir acumulação alargou o âmbito a velocidade de extração dos
elementos naturais, gerando descompasso entre o ritmo dessa extração e a
possibilidade de sua recomposição pela natureza, o que tem exigido do ca-
pital, e de seus representantes, elaborar estratégias que assegurem a rotati-
vidade do sistema4. Ao mesmo tempo, aprofunda-se o processo de apropria-
ção capitalista do solo (pela via do agronegócio, da especulação imobiliária
e do turismo); despontam os novos mercados de “créditos de carbono” e de
energias eólica e solar e a mercantilização e privatização da água (forta-
lecimento do hidronegócio), como importantes estratégias de acumulação
capitalista. Esses mecanismos de acumulação, de alcance mundial, obvia-
mente têm expressões particulares nos diferentes países, considerando sua
posição na divisão internacional do trabalho e suas características naturais.
O Brasil, considerado de economia dependente em relação aos países
capitalistas centrais, 5º maior país do planeta e detentor do maior conjunto
67 4 Ressaltam-se aqui a perspectiva do “desenvolvimento sustentável” e as estratégias apresentadas
pelos organismos internacionais, como a proposta de “economia verde”, que pressupõe a valorização
do “capital natural”, composto por bens naturais (florestas, lagos e bacias fluviais). Essa proposta,
incentivada pelo Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA), refere-se essencial-
mente à conversão dos elementos naturais em mercadoria.
PAULO ROBERTO FÉLIX DOS SANTOS EVERTON MELO DA SILVA LARYSSA GABRIELLA GONÇALVES DOS SANTOS

de ecossistemas e biodiversidade do mundo, com o maior conjunto de bacias


hidrográficas (reservatório de 13,8% do total de águas doces do globo), tor-
na-se região estratégica de exploração capitalista do trabalho e de recursos
naturais. Nesse contexto, a construção de barragens, geralmente associada à
infraestrutura essencial para a viabilidade de empreendimentos extremamen-
te lucrativos ao capital, também cumpre função estratégica no processo de
acumulação capitalista, comumente travestida pelo ideário de crescimento
econômico e desenvolvimento nacional apresentado pelo Estado.

A REPRODUÇÃO DO CAPITAL E SUA CRISE ESTRUTURAL

Desde sua gênese, o sistema capitalista é marcado pela ocorrência


alternada de momentos de crise e de fases de expansão, cuja alternância se
dá em função do período histórico e do grau de desenvolvimento das forças
produtivas. Segundo Braz e Netto (2011), as crises são inerentes ao sistema
e expressão do seu caráter contraditório, além de cumprirem função impor-
tante, ao criarem as condições para a emergência de nova fase de expansão.
Assim, contrariando o que tende a nos levar a crer no senso comum,
a existência de crises não representa possibilidade de extinção do capita-
lismo. Ao contrário, conforme adverte Mészáros (2011, p.795), “crises de
intensidade e duração variadas são o modo natural de existência do capital:
são maneiras de progredir para além de suas barreiras imediatas”.
De acordo com as análises de Mandel (1985), o capitalismo se
desenvolve num movimento caracterizado por sequências de expansão
e estagnação, numa constante busca de superlucros. O autor assinala a
ocorrência de longa onda, com tonalidade de estagnação ou de recessão,
experimentada pelo capitalismo desde 1974-1975 e afirma que essa “onda
recessiva” marca o capitalismo contemporâneo. Os fundamentos dessa re-
cessão podem ser encontrados na elevação da produtividade obtida com a
mudança na base técnica da produção no período entre o final da Segunda
Guerra Mundial e o início da década de 1970, caracterizado pelo autor como
“onda longa com tonalidade expansionista”.
Mészáros (2011) afirma que a crise do capital, que vem se aprofun-
68 dando desde os anos 1970, não pode ser considerada como equivalente às
chamadas crises cíclicas inerentes ao desenvolvimento capitalista. O autor
a denomina crise estrutural do capital e evidencia seus principais aspectos:
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seu caráter universal, ou seja, não se restringe a uma determinada esfera e/


ou ramo particular de produção; o alcance global, posto que atinge vários
países, tem abrangência planetária; a escala de tempo permanente; seu modo
de se desdobrar pode ser denominado rastejante, uma vez que não há mo-
mentos específicos de ápice.
Ao considerar o objeto de nossa preocupação neste texto, vale sub-
linhar que, nesse movimento de “onda longa expansiva”, ampliou-se a ex-
ploração da força de trabalho e a necessidade de apropriação privada dos
elementos da natureza, aprofundando o caráter predatório que caracteriza a
histórica relação do capital com a natureza. No atual contexto de crise, essa
relação predatória alcança patamares até então inimagináveis e suas impli-
cações assumem ampla dimensão na vida social, pondo em risco a manuten-
ção da vida. Afinal, pela própria dinâmica produtivista (a lógica quantitativa
como elemento constitutivo da produção de mercadorias), o capitalismo é
incapaz de utilização sustentável e duradoura dos recursos naturais e de
manutenção do equilíbrio ecológico (DIERKES apud ANDRIOLI (2009, p.2).
Em O Capital, Marx já assinalara que o capital só se desenvolveria
mediante o saque das “fontes da riqueza humana, da terra e do trabalho”.
Mandel (1985), seguindo Marx, ao analisar o capitalismo tardio, destaca:

Na era do capitalismo tardio, esse saque atingiu proporções


imensuráveis. A oposição entre valor de troca e valor de uso,
que no apogeu do capitalismo só vinha à tona excepcional e re-
pentinamente em tempos de crise econômica, é sempre visível
no capitalismo tardio. Essa oposição encontrou sua forma de
expressão mais dramática na produção em massa de meios de
destruição (não só de armas militares, mas também de todos os
outros instrumentos destinados à destruição física, psicológica e
moral do homem) (MANDEL,1985, p. 403-404).

Diante de sua crise estrutural que se manifestava na rigidez crescente


das estruturas industriais, nas relações salariais fordistas, no descompasso
fiscal dos Estados e inconformidade com a extensão atingida pelas despesas
públicas e na crise da “era de ouro do keynesianismo”, o neoliberalismo e a
reestruturação produtiva foram, segundo Chesnais (1996), as opções encon-
tradas pelo capital com vista a recuperar as taxas de lucro A partir dos anos
69
1980, o capital adotou mudanças na produção no sentido tecnológico (com
a adoção da microeletrônica digital) e organizacional, combinando avanço
tecnológico e flexibilização/descentralização da produção, com a formação
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de grandes oligopólios e hipertrofia da esfera financeira nos termos de novo


padrão de acumulação. Porém, diversos indicadores macroeconômicos dos
anos 1990 apontam que a economia mundial ainda se mantém no interior
do que Mészáros destacou como sendo uma longa depressão permeada por
momentos de desaceleração, recessão e crescimento não sustentado das
economias capitalistas (um continuum depresso) (ALVES, 1999).
Este é o contexto a partir do qual Chesnais (1996) afirma que esta-
mos diante de novo regime mundial de acumulação do capital, que alterou,
de modo específico, o funcionamento do capitalismo para regime de acu-
mulação predominantemente financeira, a mundialização do capital. Nos
termos do autor,

O estilo de acumulação é dado pelas novas formas de centraliza-


ção de gigantescos capitais financeiros (fundos mútuos e fundos
de pensão), cuja função é frutificar principalmente no interior da
esfera financeira. Seus veículos são os títulos e sua obsessão, a
rentabilidade aliada a liquidez (...). Não é mais um Henry Ford ou
um Carnegie, e sim o administrador praticamente anônimo (e que
faz questão de permanecer anônimo) de um fundo de pensão com
ativos financeiros de várias dezenas de bilhões de dólares, quem
personifica o ‘novo capitalismo’ de fins do século XX (CHESNAIS,
1996, p. 14, 15).

Essas transformações empreendidas pelo capital para enfrentar sua


crise estrutural trazem graves implicações ao conjunto dos trabalhadores,
em decorrência do processo de superexploração da força de trabalho e,
sobretudo, do desemprego estrutural e da utilização sem precedentes da
natureza e dos recursos naturais como mercadorias.
De acordo com Mészáros (2011), o tempo presente é marcado pela
acentuação da produção do obsoleto sob o imperativo da produção de valor
a se realizar em benefício da reprodução do capital. O autor afirma que o
sistema do capital não se pode desenvolver sem recorrer à taxa de utiliza-
ção decrescente do valor de uso das mercadorias. Nesse sentido, busca-se
reduzir o tempo de vida útil das mercadorias e, por conseguinte, acelerar o
ciclo da reprodução. Nesses termos, evidencia-se o caráter destrutivo da
crise estrutural em curso com a tendência de o capitalismo gerar desperdí-
70 cio. Nas palavras desse autor, tem-se o “triunfo da produção generalizada
do desperdício” (2011, p. 634), pois vivemos na “sociedade dos descartá-
veis” (2011, p. 640), no ápice da subordinação do valor de uso ao valor.
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No contexto da mundialização do capital, Estado e mercado se re-


troalimenta ou, como diria Chesnais (1996, p. 23-24), “por meio de uma ar-
ticulação estreita entre o político e o econômico é que as condições para
a emergência dos mecanismos e das configurações dominantes desse re-
gime foram criadas”. É esse o fundamento que possibilita o “sucesso” de
lucros de grandes empreendimentos no Brasil, como é o caso da construção
de barragens (e seus derivados) por meio da articulação de grandes grupos
econômicos nacionais e estrangeiros com o financiamento e respaldo jurí-
dico do Estado brasileiro. Como diz Alves (1999), o triunfo do mercado não
seria possível sem as intervenções repetidas de instâncias políticas dos
Estados capitalistas5.
Nesse contexto, a contrarreforma do Estado – com a flexibilização das
legislações dos Estados nacionais e de suas possíveis barreiras para garantir
o fluxo do “capital transnacional” – revela-se tática extremamente eficaz no
processo de acumulação capitalista.
Segundo Mandel (1985), o Estado desempenha papel fundamental,
ao criar as condições gerais de produção (que não são passíveis de serem
asseguradas pelos membros da classe dominante por meio de suas ativida-
des privadas), além de assumir funções de repressão (via exército, polícia,
sistema judiciário e penitenciário) a qualquer iniciativa frente ao modo de
produção vigente e de integração das classes dominadas por meio de recur-
sos ideológicos. Essas funções, segundo ele, foram ampliadas no estágio
tardio do capitalismo monopolista.
A contribuição de Mandel (1985), ao destacar essa função do Estado
de “criar as condições gerais da produção”, nos convoca a pensar sobre o
Estado considerando não só suas funções de aparência ideo-política e de
repressão, mas reconhecendo sua incidência direta na esfera da produção,
o que pressupõe:

5 Cabe ainda destacar que a relação entre mercado e Estado também é cruzada pela chamada
“polarização geográfica”, que ocorre interna (entre as regiões e fronteiras internas) e externamente
(na relação que se estabelece com os oligopólios) em cada país. Conforme aponta Chesnais (1996),
esse processo ocorre “aprofundando brutalmente a distância entre os países situados no âmago do
oligopólio mundial e os países da periferia”, reforçando a “tendência à marginalização dos países
71 em desenvolvimento” (p. 39), inclusive nas “estratégias de mundialização dos grupos” (p.117) e nos
“fatores que modelam os sistemas de intercâmbio” (p.212, 213), em que podemos pensar o Brasil,
a partir do seu papel histórico de fornecedor de matérias-primas. Para esse autor, a formação eco-
nômica e política de cada país, como no caso brasileiro, a partir de uma dominação colonial, “ainda
está inscrita nas relações economias internacionais contemporâneas” (p. 213).
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assegurar os pré-requisitos gerais e técnicos do processo de pro-


dução efetivo (meios de transporte ou de comunicação, serviço
postal etc.); providenciar os pré-requisitos gerais e sociais do
mesmo processo de produção (como, por exemplo, sob o capita-
lismo, lei e ordem estáveis, um mercado nacional e um Estado ter-
ritorial, um sistema monetário); e a reprodução contínua daquelas
formas de trabalho intelectual que são indispensáveis a produção
econômica, embora elas mesmas não façam parte do processo
de trabalho imediato [...] (MANDEL, 1985, p. 334).

O Estado tende a financiar de forma sistemática os setores produtivos


num movimento de “socialização dos custos” dessa produção, desempenha,
enfim, funções fundamentais que assegurem o processo de valorização do
capital no capitalismo tardio.
Nessa direção, Mészáros (2011) também assinala que o Estado não
comparece apenas como auxiliar no processo de acumulação capitalista,
mas como parte do próprio sistema sociometabólico, compondo uma tríade
com capital e trabalho. Nas palavras desse autor, o Estado comparece como

patrocinador direto, que fornece generosamente, até mesmo às


mais ricas corporações multinacionais, os fundos necessários
para a “renovação” e o “desenvolvimento de instalações”, fundos
que o idealizado “espírito empresarial” da competição privada não
pode mais produzir lucrativamente. (MÉSZÁROS, 2011, p. 672).

O Estado, na sua conformação contemporânea, apresenta-se como


fundamental ao processo de acumulação capitalista. Destacam-se nesse
sentido as políticas de austeridade – inclusive em países até então consi-
derados centrais na dinâmica do capitalismo em âmbito mundial, como os
países europeus –, assegurando, por meio do seu aparato jurídico-político, a
flexibilização (ou aniquilação) de direitos dos trabalhadores, a privatização
de serviços e recursos públicos, processos de acumulação por espoliação6

6 Segundo Harvey (2013), a acumulação por espoliação indica o ressurgimento, com modificações,
no mundo contemporâneo, da acumulação primitiva tratada por Marx, cuja expansão alcança, in-
clusive, países em que o capitalismo já se consolidou, o que implica a espoliação de direitos e o
72 controle capitalista de formas de propriedade coletiva (águas, conhecimento, entre outros) e, desse
modo, potencializa sua acumulação. De acordo com esse autor, tem-se uma reatualização do roubo
para assegurar a continuidade do processo de acumulação capitalista.
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(HARVEY, 2013) e expropriações7 (FONTES, 2010), financiamentos a grandes


empresas, incentivo às instituições bancárias, bem como medidas de cará-
ter ideológico e de repressão para desarticular e/ou conter manifestações
contestatórias e de enfrentamento à ordem vigente. Evidencia-se, assim, o
caráter de classe do Estado, já apontado por Marx ainda no século XIX, quan-
do afirmou que o Estado é sempre de uma classe: daquela economicamen-
te dominante. Na sociabilidade capitalista, portanto, o Estado é burguês e,
como tal, tem respondido vivamente suas funções essenciais no circuito de
acumulação do capital, especialmente em momentos de crise.

PARTICULARIDADES DO CAPITALISMO
E DO ESTADO NO BRASIL E A ESTRATÉGIA
DE CONSTRUÇÃO DE BARRAGENS

Nesse contexto de crise estrutural do capital, que se estende ao âm-


bito mundial, a forma assumida pelo Estado assume expressões particulares
no Brasil. Apesar de não ser possível tratá-las em profundidade nos limites
deste texto, parece-nos fundamental apresentar alguns apontamentos que
favoreçam problematizar nossa hipótese de trabalho.
Cabe dizer que o Brasil não experimentou um capitalismo clássico,
nos moldes daquele dos países centrais. Enquanto nos séculos XIX e XX os
países considerados de capitalismo central saboreavam os “bônus” do pro-
gresso, com alto desenvolvimento industrial, tecnológico, científico e cultural
(em meio a intensas lutas de classes entre a burguesia e os trabalhadores
assalariados, bem como revoluções camponesas), apenas a partir dos anos
1950 o desenvolvimento industrial e tecnológico é impulsionado no Brasil,
diga-se, sem alteração das desigualdades sociais.

7 De acordo Fontes (2010), o processo de expropriação apontado por Marx ao destacar a acumulação
primitiva não se restringiu apenas ao período prévio ao pleno capitalismo, mas tem alcance atual, sua
permanência na cena contemporânea ocorre sob a forma de expropriações primárias e secundárias,
impulsionadas pela concentração de capitais sob a forma monetária. Para a autora, o capitalismo não
pode ser reduzido ao movimento de expropriação, mas as expropriações, além de permanentes, pos-
sibilitam não só a constituição da base social capitalista, mas também sua expansão. A expropriação
73 primária se vincula ao processo violento de expulsão de grandes massas campesinas ou agrárias de
suas terras e dos seus meios de produção. As expropriações secundárias têm incidência sobre os
direitos dos trabalhadores urbanizados que, em sua maioria, já não dispõem da propriedade de meios
de produção e, com seus direitos cada vez mais reduzidos, tornam-se ainda disponíveis à imposição
de novas estratégias de exploração da sua força de trabalho, de extração de mais-valor.
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Nesses termos, a inserção do Brasil, como país “emergente”, na divisão


internacional do trabalho imprime as particularidades de sua formação social
colonial. Para Fernandes (2008), a mudança do capitalismo competitivo ao
monopolista no Brasil ocorre por caminhos que fogem ao modelo universal
da democracia burguesa, pois traz uma simbiose entre valores “arcaicos” ou
interesses tradicionais conservadores e o “moderno”, valores oriundos da or-
dem social competitiva. Essa “modernização conservadora” foi marcada por
um modelo econômico “dependente” e por uma dominação burguesa “demo-
craticamente restrita” (FERNANDES, 2008). Para Iamamoto (2008, p. 132),
essa expansão “faz-se, mantendo, de um lado, a dominação imperialista e,
de outro, a desigualdade interna do desenvolvimento da sociedade nacional”.
Em todos os movimentos de expansão do capital no Brasil, do modelo
nacional-desenvolvimentista, a partir dos anos 30 do século XX, que resultou
no início das bases da industrialização brasileira; do modelo de industrializa-
ção associado ao capital transnacional, a partir dos anos 1950; e, na última
década, ao suposto neodesenvolvimentismo, é nítida a centralidade do Estado.
O Estado tem sido, nessa direção, decisivo para a viabilização do
desenvolvimento capitalista e, particularmente, para a construção de barra-
gens no Brasil desde a década de 1970 com a forte penetração do capital
internacional. Para Vainer (1997),

a história da implantação de grandes barragens parece ser a


mesma em toda a parte. Em todo o mundo a grande barragem
serve ao mesmo modelo de desenvolvimento. Nos mais diversos
países, o grande projeto hídrico busca impor um mesmo padrão
de apropriação e uso dos recursos naturais (VAINER, 1997, p.12).

Vale destacar que a partir desse período emergem no cenário nacional


grandes barragens, como Itaipu no Paraná (1975-1982); Itumbiara, localizada
entre Goiás e Minas Gerais (1974-1980); Itaparica, localizada entre Bahia e
Pernambuco (1980-1988), e Tucuruí, no Pará (1984), entre outras.
A crise que desencadeou o processo de “mundialização do capital”
e possibilitou as bases para o Estado neoliberal, e que propõe “menos Es-
tado”, “mais mercado” e a supressão das regulamentações do trabalho e de
controle do capital (MOTA, 2014), é também a mesma que irá encontrar nas
74 grandes barragens importante caminho para a reprodução e expansão do
capital no Brasil. Estado neoliberal se consolida no Brasil, nos termos de
Marilena Chauí, com a façanha de atribuir título de modernidade ao que há
de mais conservador e atrasado na sociedade brasileira: fazer do interesse
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privado a medida de todas as coisas. Em outras palavras, a “classe dominan-


te faz do Estado o seu instrumento econômico por excelência” (CHAUÍ apud
IAMAMOTO, 2008, p. 141-142).
A partir dos anos 2000, a ideia de “menos Estado” é substituída, nos
termos de Mota (2014), por outra lógica histórica na região, dessa feita, qua-
lificada pelo discurso oficial como meio de enfrentamento da crise do capital
financeiro, a revelar novo processo de restauração da ordem, o chamado neo-
desenvolvimentismo. Castelo (2013) assinala essa conjuntura como sendo
de aprofundamento do neoliberalismo do tipo “social-liberalista”, que, sob a
retórica da justiça social, pretende articular crescimento econômico com o
desenvolvimento social. Para Fontes (2010), um suposto neodesenvolvimen-
tismo, que não significaria “o novo” ou um questionamento ao capitalismo em
sua versão mundializada, apenas outra estratégia de reprodução do capital.
Nessa conjuntura, enquanto o Estado brasileiro passou a atender de-
terminadas reivindicações da classe trabalhadora no âmbito da “pequena
política”8, simultaneamente, empreendeu esforços na construção de grandes
projetos de infraestrutura, como barragens, a partir do Programa de Acele-
ração do Crescimento (PAC),9 financiando o acesso, o uso e o controle de
territórios para grupos econômicos nacionais e transnacionais e garantindo
a reprodução ampliada do capital (FONTES, 2010). Nesses termos, o Esta-
do opera diretamente na viabilidade de empreendimentos extremamente
lucrativos ao capital, cumprindo, portanto, função essencial no processo
de acumulação, com aplicação, em geral, do ideário de crescimento eco-
nômico e desenvolvimento nacional como argumentos que justifiquem
esses investimentos.
Na avaliação do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB, 2013),
o Brasil, por sua posição na divisão internacional do trabalho e pela exis-
tência de um alicerce natural vantajoso, vem tendo seu modelo energético
voltado principalmente para o fornecimento de energia de baixo custo para

8 Para Coutinho (2010, p. 32), “existe hegemonia da pequena política quando a política deixa de ser
pensada como arena de luta por diferentes propostas de sociedade e passa, portanto, a ser vista
como um terreno alheio à vida cotidiana dos indivíduos, como simples administração do existente.
A apatia torna-se assim não só um fenômeno de massa, mas é também teorizada como um fator
positivo para a conservação da ‘democracia’ pelos teóricos que condenam o ‘excesso de demandas’
75 como gerador de desequilíbrio fiscal e, consequentemente, de instabilidade social”.
9 Em 2007, o Governo Federal criou o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) com o ob-
jetivo de promover a retomada do planejamento e da execução de grandes obras de infraestrutura
social, urbana, logística e energética do País, além do estímulo ao investimento privado e à redução
das desigualdades regionais (BRASIL, 2014).
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grandes empresas transnacionais, chamadas eletrointensivas, que exploram


e exportam produtos de pequeno valor agregado, geram poucos empregos e
contribuem de forma ínfima para a dinamização da indústria nacional, sendo,
além do mais, as principais responsáveis pela degradação ambiental.
Nessa direção, Ruszczyk (1997) aponta a existência de outros inte-
resses, como os das indústrias de grandes equipamentos para a geração e
transmissão de energia elétrica e das empresas de construção civil ou as
chamadas empreiteiras, que levam Castro (2009) a alertar para concentração
e centralização cada vez maior do capital financeiro nos grandes projetos na
Amazônia. A tendência é de complexificação das fusões sob a lógica do ca-
pital financeiro, organizado em monopólios público-privados, num misto de
capital internacional e capital nacional, para permitir especulação financeira
e maiores taxas de lucro.
Grupos como Camargo Corrêa, Bradesco S.A., Mitsui, Odebrecht,
Andrade Gutierrez, Santander/Banif, Queiroz Galvão, para citar os mais pre-
sentes, têm disputado os consórcios de construção e gestão dos grandes
projetos de infraestrutura na Amazônia com o financiamento do BNDES no
âmbito do PAC. É o capital financeiro em fusão com o capital minero-meta-
lúrgico-energético e o fundo público10, marcas da mundialização do capital
(CHESNAIS, 1996). O Estado, por sua vez, envolto de contradições, via fundo
público, participa financiando e procurando garantir equilíbrio entre os dife-
rentes setores capitalistas.
É neste cenário que se aprofunda a apropriação da natureza, a ex-
ploração do trabalho e as expropriações no contexto de construção de
grandes obras, entre estas as barragens, no Brasil. Cabe-nos assinalar as
construções de Jirau, Santo Antônio e Belo Monte como emblemáticas
nesse contexto. Para Castro (2009, p. 139), esses projetos, construídos
para viabilizar ao mercado os recursos naturais, desde antes são entregues
a grandes empresas nacionais e estrangeiras, as quais via de regra se lo-
calizam em territórios ocupados, mas se impõem à população local como
prioridade nacional.
Diversas são as expressões de expropriações denunciadas no contex-
to de construção de Belo Monte e de outras barragens. Dados do MAB (2012)
apontam que, no Brasil, já foram construídas mais de duas mil barragens,
76 que expulsaram mais de um milhão de pessoas de suas casas e terras, a
maioria delas (70%) sem nenhum tipo de indenização. Para esse movimento

10 Sobre o fundo público, consultar Behring (2009).


PAULO ROBERTO FÉLIX DOS SANTOS EVERTON MELO DA SILVA LARYSSA GABRIELLA GONÇALVES DOS SANTOS

social, a barragem de Belo Monte vai atingir e desalojar mais de cinco mil fa-
mílias (mais ou menos 20 mil pessoas) moradoras dos chamados “baixões”
da cidade de Altamira, áreas alagadas onde predominam casas de palafita.
Além desses prejuízos no que refere a moradia, as populações das
regiões impactadas pelos grandes empreendimentos sofrem com as demais
consequências desse processo que envolve sua reprodução física e cultural,
o que passa pela extinção de condições essenciais de reprodução material
da vida nos termos tradicionais (pesca, agricultura familiar), desemprego,
violência, mercantilização dos corpos das mulheres, levando-os a compor a
massa de “trabalhadores disponíveis ao capital e necessitados de mercados”
(FONTES, 2010). Soma-se a isso o caráter deletério desses projetos sobre os
elementos naturais, num processo de aprofundamento sem limites, assumin-
do feições catastróficas, como recente rompimento de barragem em Mariana/
Minas Gerais, unidade sob responsabilidade da mineradora Samarco11.
Com o rompimento da barragem, populações foram soterradas12.
Além de muitos mortos, milhares de pessoas perderam suas casas e fontes
de trabalho, a lama tóxica de rejeitos de mineração atingiu ainda animais,
plantas, o Rio Doce e alcançou o litoral do Espírito Santo. Os danos consta-
tados em caráter imediato certamente assumirão proporções inimagináveis
no médio e longo prazo. Esse acontecimento assumiu visibilidade e reper-
cussão na mídia, caracterizado comumente como um “desastre ambiental”.
No entanto, é necessário se ater aos nexos entre o que ocorreu em Mariana/
MG e o próprio movimento de acumulação do capital no enfrentamento de
sua crise estrutural, quando amplia os níveis de exploração dos recursos
naturais – articulada a exploração do trabalho – de forma extremamente
destrutiva. Nesses termos, o caráter criminoso que marca o rompimento da

11 Segundo Rosa (2006), data dos anos 1970 o surgimento da mineradora Samarco no Brasil, com
a fusão entre as empresas Samitri (do grupo Belgo Mineira na época) e a Marcona Corporation (em-
presa norteamericana), cujo complexo foi inaugurado pelo então Presidente da República, General
Ernesto Geisel (ROSA, 2006). Essa empresa iniciou sua operação com a produção industrial de pe-
lotas de minério. Sua composição estruturava-se em duas unidades, uma de exploração do minério
em Mariana – MG, e uma usina de peletização e um porto em Anchieta - ES, além de dispor de um
mineroduto ligando esses dois Municípios e cortando outras 22 cidades nos dois Estados. A Samarco
aparece no cenário nacional como importante projeto no processo de industrialização local, inserida
de forma estratégia, portanto, na política econômica nacional e com a perspectiva de destacar o
77 Brasil no comércio externo com a exportação de minério de ferro. As atividades da empresa, cujas
acionistas atualmente são as empresas BHP Billiton (anglo-australiana) e Vale S.A. (brasileira), como
quando do seu surgimento, segue fundamentalmente o objetivo de produzir para exportação.
12 O distrito de Bento Rodrigues foi destruído. A lama alcançou outras localidades no Estado de MG:
Águas Claras, Ponte do Gama, Paracatu, Barra Longa.
PAULO ROBERTO FÉLIX DOS SANTOS EVERTON MELO DA SILVA LARYSSA GABRIELLA GONÇALVES DOS SANTOS

barragem é eclipsado pelo discurso do “desastre ambiental”, como se fosse


produto de um movimento autônomo da natureza. O MAB (2015) denuncia as
empresas controladoras da Samarco como responsáveis pelo rompimento
da barragem que já seria “uma tragédia anunciada”.
O que ocorre no contexto da construção de barragens, em essência, é
expressão do processo mais amplo de exploração e expropriações do capital
sobre o trabalho e a natureza que vimos destacando aqui. As populações atin-
gidas por esse movimento violento e desenfreado, como o próprio MAB, bus-
cam empreender esforços na luta por sobrevivência, na disputa por elemen-
tos naturais essenciais à vida, como terra e água; denunciam violações de que
são protagonistas as grandes empresas; têm suas organizações comumente
criminalizadas e sofrerem ameaças e assassinatos de suas lideranças, o que
acentua conflitos e embates que marcam a luta de classes no Brasil.
Esta é a conjuntura brasileira que tem, no contexto de crise estrutural
do capital, resultado em mudanças na sociabilidade contemporânea e, ao
mesmo tempo em que aprofunda o suposto do capital (a reprodução amplia-
da e a expansão do capital em todas as dimensões da vida social), garante
“um novo salto no patamar da acumulação de capital, impulsionado por um
salto escalar no processo de expropriações sociais” (FONTES, 2010, p. 145).
As expropriações, ainda segundo essa autora, constituem processo perma-
nente e são condição da constituição e expansão da base social capitalista.
E o Estado, que nunca esteve do lado de fora da economia capitalista,
assume na atualidade a posição de protagonista de importantes ações que
assegurem, portanto, a reprodução capitalista, criando o que Mandel (1989)
chamou de “condições gerais” de produção, conforme apontamos antes.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A construção de barragens no Brasil se apresenta como tema comple-


xo, cujas consequências, embora atinjam o conjunto da sociedade brasileira,
apresentam repercussões drásticas especialmente na classe trabalhadora13,

13 Importante destacar que a classe trabalhadora não é homogênea, mas, estruturada por outras
relações sociais que se consubstanciam e se estendem ao capitalismo, como o patriarcado e o
78 racismo. Isso nos leva a afirmar que mulheres, negros, indígenas, estão expostos a expropriações,
a exploração e a diversas violências sob condições particulares. Nessa direção, dados preliminares
de pesquisa doutoral realizada por Barroso (2015) e manifestações públicas do MAB, apontam a
mercantilização do corpo das mulheres como funcional a reprodução do capital por ocasião da
construção de grandes obras no Brasil, entre as quais as barragens.
PAULO ROBERTO FÉLIX DOS SANTOS EVERTON MELO DA SILVA LARYSSA GABRIELLA GONÇALVES DOS SANTOS

no que refere a suas condições de vida e trabalho. Com o caminho interpre-


tativo aqui proposto, buscamos ressaltar a impossibilidade de tratar esse
tema sem considerar seus nexos com o processo de produção e reprodução
capitalista e, consequentemente, com o suposto destrutivo (da natureza e da
vida humana) que tem marcado essa sociabilidade em escala planetária num
contexto de crise estrutural do capital.
De forma particular, sobretudo por suas características geográficas e
seu inquestionável potencial hídrico, o Brasil tem assumido historicamente
lugar determinado no movimento de mundialização do capital como impor-
tante fornecedor de commodities. Nesses termos, responde às demandas
de reconfiguração da divisão internacional do trabalho por meio da reprima-
rização da economia, cuja requisição central permeia a apropriação priva-
da dos elementos naturais. E aqui se situam os projetos de construção de
barragens para fins de geração de energia elétrica, que, além de gerar lucro
ao compor o chamado hidronegócio, subsidiam diversas atividades produ-
tivas com vistas à exportação, como o agronegócio e os empreendimentos
minerários. Nesse sentido, a construção de barragens no Brasil responde
aos interesses de grandes grupos econômicos, com fusões complexas sob
a lógica do capital financeiro, num misto de capital internacional e capital
nacional, de capital privado e fundo público. Obviamente esse lugar de ex-
portador de commodities ocupado pelo Brasil não altera sua condição de
dependência na sua relação com a economia mundial.
Aqui cabe ressaltar o caráter de classe e autoritário do Estado que
atua nesse contexto garantindo as condições gerais ao desenvolvimento ca-
pitalista, articulando incidência direta na produção – força de trabalho livre
para compra e venda, financiamento, flexibilização da legislação ambiental,
entre outros –, repressoras e violentas frente às expressões de resistência
que se colocam a esses empreendimentos, bem como alternativas de caráter
ideo-político. Nesses casos, geralmente o Estado apresenta os grandes pro-
jetos, como construção de barragens, como estratégicos para o crescimento
econômico e o desenvolvimento do país, isto é, justifica investimento em
empreendimentos de interesse privado (do capital) como se estes fossem
de interesse de público e nacional.
Nessa direção, diferentemente da promessa do Estado de desen-
79 volvimento e da soberania nacional, essas experiências têm tornadas mais
agudas as expropriações e agravado as questões social e ambiental em
diversas regiões do país. Nesse processo se destacam expressões de re-
sistência empreendidas por trabalhadores organizados via Movimento de
PAULO ROBERTO FÉLIX DOS SANTOS EVERTON MELO DA SILVA LARYSSA GABRIELLA GONÇALVES DOS SANTOS

Pescadores e Pescadoras Artesanais e Movimento dos Trabalhadores sem


Terra, entre outros. No entanto, nesse tempo histórico extremamente adver-
so para o trabalho, esses esforços empreendidos pela classe trabalhadora
ainda se mostram divididos e frágeis diante da força destrutiva do capital e
das ações do Estado burguês. Suas ações circundam muito mais o campo da
emancipação política, através da luta por direitos (indenizações/reparação
de danos, acesso à terra, água e energia para produzir, etc.) e da participação
popular na regulação dos elementos naturais como “bem público”. Nesse
contexto, ainda seguindo as pistas do próprio Marx, é igualmente relevante
assinalar que é na tensão que marca a luta de classes que se podem forjar
as condições para alteração dessa realidade, de modo a se alcançar uma
sociabilidade sem exploração e opressões em que os elementos naturais
sejam considerados bem comum e não mercadoria.

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82
CRISE DO CAPITAL
Estado e sindicalismo no Brasil1

Albany Mendonça Silva2

INTRODUÇÃO

O cenário contemporâneo, marcado por transformações societárias


que alteram significativamente o processo de produção e organização da
classe trabalhadora, impactou diretamente o processo de organização sindi-
cal de duas formas: a) determinou o refluxo do movimento sindical e b) pôs
em cena contrarreforma sindical legitimadora do sindicalismo de Estado.
Com a crise do capital e seus reais impactos no trabalho e processo
de organização da classe trabalhadora na atualidade, propõe-se discutir a
relação entre Estado e Sindicato, fazendo análise da crise e do debate da luta
de classes e seus rebatimentos nos sindicatos no contexto latino-america-
no, especialmente no Brasil. É importante salientar que no contexto de crise
registram-se impactos significativos para o sindicalismo latino-americano.
Contraditoriamente, com governos democráticos, os sindicatos passam a
negociar perdas de direitos para garantir a empregabilidade.
É nesse contexto que se observam novas e velhas formas de exploração
do capitalismo que alteram significativamente o movimento sindical no contexto
da luta de classes. A esse respeito, advertem Cardoso e Gindin (2008).

as reformas econômicas foram negociadas com o sindicalismo em


troca de manutenção da legislação trabalhista, da estrutura sindical
e do controle do CT sobre ela mesmo que o custo das perdas eco-
nômicas importantes para os trabalhadores, como, o aumento da
informalidade, da queda dos salários reais e a desindustrialização
de parte ideias do país. (CARDOSO; GINDIN 2008, p.25).
83
1 Texto revisado e apresentado no EPEN MARXCampina Grande 2015.
2 Professora da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia; Doutoranda em Serviço Social pela
Universidade Federal do Rio de Janeiro.
PAULO ROBERTO FÉLIX DOS SANTOS EVERTON MELO DA SILVA LARYSSA GABRIELLA GONÇALVES DOS SANTOS

Daí, a necessidade de analisar criticamente a dinâmica do movimento


ampliado do capital na contemporaneidade, no sentido de compreender o real
processo de reestruturação do capital e suas mudanças, tanto no sistema
produtivo quanto na regulação do Estado, que tem impactado diretamente
no mundo do trabalho, com o exponencial desemprego e precarização das
novas formas de ocupação, queda dos salários, mercantilização dos direitos
sociais, alterando significativamente o perfil da força de trabalho.
É nesse cenário que são gestadas as correlações de forças para que
se expresse processo de desconstrução do mundo do trabalho, bem como
são concebidas novas formas de resistência e negociação da organização
sindical.Para tanto, além da introdução e das considerações finais, o texto
está estruturado em três partes. Na primeira parte, recupera-se o debate
sobre Estado e Política no capitalismo; a segunda faz uma reflexão sobre o
Estado no capitalismo monopolista e a terceira parte se dedica ao debate
do sindicalismo na contemporaneidade.

EM DEBATE:
Estado e Política no Capitalismo

Para adentrar na discussão do sindicalismo na contemporaneidade,


torna-se necessário problematizar o debate sobre Estado e Política no capita-
lismo, no sentido de analisar as determinações que o Estado assume no ce-
nário capitalista pós-1970, marcado por transformações societárias recentes,
na direção de demarcar o contexto em que se constituiu a crise do movimento
sindical e, consequentemente, as novas estratégias que são gestadas pela
classe trabalhadora, para entender, assim, as contradições que permeiam o
cenário da classe trabalhadora com a crise do novo sindicalismo.
No campo político, cabe considerar que o Estado “não é um fenômeno
unívoco, isto é, igual ou idêntico em todos os momentos históricos e todos os
contextos socioculturais” (PEREIRA, 2002, p. 26). Parte-se do entendimento
do Estado enquanto ordenamento político complexo, instituído no contex-
to moderno3. Segundo Engels, o Estado nasce da dissolução da sociedade
gentílica, mais especificamente com a instituição da propriedade privada, da
84

3 Essa reflexão demarca o entendimento de que existiam formas de organização política, mas, o
entendimento do ESTADO enquanto ordenamento político tem marco histórico a idade moderna.
Isto é uma força exterior, como enunciava HEGEL.
PAULO ROBERTO FÉLIX DOS SANTOS EVERTON MELO DA SILVA LARYSSA GABRIELLA GONÇALVES DOS SANTOS

divisão do trabalho e da sociedade em classes. Portanto, há concepções e


configurações divergentes sobre Estado, a saber, Estado de Direito4 e Esta-
do Social5. É especialmente no contexto do capitalismo monopolista que o
Estado exerce papel central no processo de desenvolvimento capitalista, e a
organização sindical assume papel importante na luta pela ampliação dos
direitos trabalhistas.
Os estudos marxistas foram importantes para desconstruir a visão jus
naturalista6 do Estado, ao demarcar que ele não é concebido como algo na-
tural, mas que tem força exterior 7, marcada por relações de poder, gestando,
assim, o Estado burguês que se desenvolve e se consolida historicamente no
modo de produção capitalista. Essa dimensão da exteriorização do Estado
constitui marca importante para o desenvolvimento do pensamento marxista.
Se observarmos o pensamento dos jus naturalistas e fizermos contra-
ponto com as sociedades atuais, constatar-se-á que, em nome de suposta
democracia representativa, delega-se total poder ao Estado, delegação que,
de fato,apenas legitima o poder do capital.

4 Conhecido como ordenamento jurídico. Regido pelas leis, o que institui o princípio da legalidade,
como atributo e requisito essencial para o cumprimento do poder. Sendo regido pela ideologia do
liberalismo. “o Estado de Direito caracteriza-se por uma constituição meramente formal, rígida,
restrita à organização e funcionamento do Estado, instituída fundamentalmente por oposição ao
poder absoluto, de antagonismo da sociedade civil com o poder do Estado” (SIMÕES, 2013, p.283).
Entretanto, cabe sinalizar que a lei vai no sentido de afirmar os interesses da classe dominante.
5 Concebido como complexa organização social. É no contexto histórico do século XX, especial-
mente, com a intensificação do processo de pauperização e Revolução Industrial, que se modifica
o papel do Estado, que passa a assumir um caráter regulador e intervencionista, com o rótulo do
Estado de Bem-Estar Social, conhecido como Welfare State. “O Estado Capitalista regulador ou
claramente intervencionista que, no século XX, receberia o rótulo de Estado de Bem-Estar (Welfare
State) ou Estado Social, o qual viu-se cada vez mais envolvido com a garantia, a administração e o
financiamento do seguro social e de atividades afins [...]” (PEREIRA, 2002, p.31).
6 É importante frisar que os pensadores contratualistas-jusnaturalistas constroem a base do pen-
samento liberal, ao defenderem o direito natural da propriedade privada, concebida como direito
inalienável, o qual será mantido por meio do Estado Soberano. Dentre os contratualistas, Hobbes
adquire representatividade na sociedade moderna, ao defender o Estado Absoluto, reafirmando que,
85 por meio do contrato, a multidão confere o consentimento para representá-la e tomar as decisões.
7 Essa visão de exteriorização será mais bem desenvolvida nas análises de Marx, ao conceber
que essa força exterior tem recorte determinado de poder. Nessa direção, Hegel concebe o Estado
como sujeito real que ordena, funda e materializa a universalização dos interesses jus naturalistas
e particularistas da sociedade civil.
PAULO ROBERTO FÉLIX DOS SANTOS EVERTON MELO DA SILVA LARYSSA GABRIELLA GONÇALVES DOS SANTOS

Cabe salientar que os pensadores Weber8 e Durkheim9 concebem o


Estado de forma restrita, desconsiderando sua postura democrática e de-
nunciando o caráter repressor e legitimador do Estado na manutenção da
ordem capitalista. É importante considerar que a natureza democrática do
Estado exerce papel imprescindível na legitimação da ordem capitalista e,
consequentemente, consegue, não por meio da força, mas por meio do con-
senso, a incorporação de valores burgueses no processo de sociabilidade,
reforçando o caráter ideológico do Estado defendido por Gramsci10.
Ao longo da história, o alargamento do estilo democrático do Estado
permitiu a ampliação do seu poder de forma mais branda e dilatada, via
processo ideológico, nos marcos do Estado Social. O Estado Social teve
papel central no processo de desenvolvimento capitalista, ao garantir me-
canismos para a regulação do capital, por um lado, e a proteção ao trabalho,
por outro lado.
Portanto, o Estado, enquanto fenômeno histórico, construído e re-
construído nos processos de luta de classes, representa arena de pode-
res, tendo como o marco o cenário do capitalismo, atuando politicamente
para atender interesses contraditórios, numa lógica de assegurar a ordem
vigente. Nesse sentido, trazer à tona as reflexões marxistas sobre Estado
torna-se essencial para elucidar as contradições e as configurações que o
Estado adquire no processo de desenvolvimento capitalista e no processo
de organização e luta de classes.
Com as reflexões do pensamento marxista sobre o papel histórico e o
significado do Estado, elucida-se que “o Estado é o produto e a manifestação
do caráter inconciliável das contradições de classe”. (LENINE, 1980, p 226).
Com isso, compreende-se o peso que as lutas de classes ocupam no proces-
so de reconfiguração do Estado e, consequentemente, a dinâmica das guerras
que impulsiona a constituição do capitalismo monopolista de Estado11.

8 Weber considera o Estado como monopólio legal da violência, ou seja, Estado representa a
manifestação do direito à violência.
9 Para Durkheim, o Estado resultaria da divisão do trabalho e teria a função de estabelecer as
normas jurídicas no âmbito das relações sociais, impondo um conjunto de normas morais que
implicam diretamente a aceitação voluntária de “funções e recompensas desiguais”.

86 10 Para Gramsci, amplia o conceito de Estado, destacando a análise sobre hegemonia e a in-
fluência no processo de controle do Estado na manutenção da ordem burguesa, com os aparelhos
privados de hegemonia que garantem o consenso entre as classes, não por meio da violência, mas
pelo caráter ideológico.
11 Termo utilizado por Mandel.
PAULO ROBERTO FÉLIX DOS SANTOS EVERTON MELO DA SILVA LARYSSA GABRIELLA GONÇALVES DOS SANTOS

Quanto a esse aspecto, cabe frisar que o Estado no capitalismo tem


um recorte de classe definido, o que leva Marx conceber o Estado enquanto
“comitê da classe dominante”, isto é, ele se configura sempre como um Estado
com recorte definido, que se torna instrumento de dominação e manutenção
da estrutura de classes, o que leva esse autor a propor, no Manifesto Comunis-
ta, que a conquista do Estado seria importante para sua dissolução.
Desse modo, Marx defende a extinção do Estado burguês e a criação
de uma sociedade sem classes, conquistada via revolução12. Apesar de Marx
considerar expressivo o processo de luta na direção da legislação fabril, que
constituiu passo significativo na ação de reconhecimento dos trabalhadores
- método consciente de luta pelas melhorias das condições de vida e de traba-
lho e, consequentemente, reafirmação das reformas sociais no capitalismo,
ele enfatiza que esse seria o estágio inicial, significativo, para se construir a
luta das classes trabalhadoras na direção da destruição do Estado.
Em A Questão Judaica e Crítica à Filosofia do Direito de Hegel, Marx
elucida o princípio da luta de classes na defesa da revolução, enquanto
processo histórico, que se desenvolve de forma dialética e permeado de
contradições. Ao rever as contradições e as causas que determinam a ex-
ploração e expropriação capitalista, defende a tomada de consciência como
questão importante para mobilizar o proletariado, imerso no processo de
alienação do sistema produtivo.
É importante sinalizar que Marx, ao conceber o Estado como órgão
de dominação de classe, a serviço da burguesia, afirma que é impossível a
emancipação da classe oprimida sem revolução que extinga o Estado.
Nesse sentido, reafirma que“o que pressupõe, segundo Lênin, em
Estado e Revolução, a defesa da revolução, pois, sem revolução violen-
ta, é impossível substituir o Estado Burguês pelo Estado Proletário” (1961
p.29-30). Portanto, tem-se a defesa da destruição do aparelho do poder do
Estado, cuja dinâmica adviria do próprio desenvolvimento do capitalismo
e da luta de classes.
Os determinantes históricos do capitalismo, especialmente do capita-
lismo monopolista, com a institucionalização do Estado Social, contribuíram
para expansão do debate das lutas de classe, bem como para visão ampliada
do Estado, passando-se a colocar em debate a “autonomia relativa do Estado”
87 12 É importante sinalizar que a ideia da revolução presente na obra de Marx expressa o processo
de luta para a conquista do poder pela classe operária, reforçando assim, o princípio da luta de
classes. A defesa da ditadura do proletariado. Enquanto uma construção histórica a revolução
requer um processo amplo de organização das massas trabalhadoras e, consequentemente, o
processo de consciência.
PAULO ROBERTO FÉLIX DOS SANTOS EVERTON MELO DA SILVA LARYSSA GABRIELLA GONÇALVES DOS SANTOS

e suas contradições, o que nos remete a pensar que o Estado, mesmo com
corte de classe definido, possibilita, contraditoriamente, a abertura e a im-
plantação de medidas que possam beneficiar a classe proletária, a exemplo
do Estado Social, sem que elas interfiram na ordem estabelecida,o que tem
tensionado o processo de luta de classes e a reconfiguração do capitalismo
monopolista. Coloca-se em pauta o debate sobre a perspectiva da defesa das
reformas no próprio capitalismo, na direção de se construir a revolução.
Acontecimentos históricos podem contribuir para o entendimento, no
cenário atual de crise do capital, da crise do sindicalismo e, consequentemen-
te, de sua defesa por um sindicalismo propositivo, mais próximo da tendência
da perspectiva da social democracia13, com modificação do campo de atuação
de uma perspectiva combativa, para luta pautada em processo de negociação
sem horizonte de luta por revolução, especialmente no palco dos sindicatos.

ESTADO NO CAPITALISMO MONOPOLISTA

O debate do Estado no capitalismo monopolista é importante para


entender o processo de mudanças configurado no âmbito da regulação do
Estado, que passou a assumir, além da “fronteira de garantidor da proprie-
dade privada, a função política, através da institucionalização dos direitos e
garantias cívicas e sociais” (NETTO, 2001, p.27), o que implicou diretamente
mudança no processo organizativo dos trabalhadores, isto é, nas lutas de
classes e no papel desempenhado pelo sindicato.
O capitalismo monopolista, conhecido como período do estágio im-
perialista, teve papel decisivo, alterando significativamente o padrão de so-
ciabilidade na sociedade. Para Netto (2001), o capitalismo monopolista co-
locou em cena acontecimentos históricos, a saber, a supercapitalização14 e
a natureza parasitária da burguesia. Ademais, nesse estágio do capitalismo,
“as funções do Estado imbricam-se organicamente com as suas funções
econômicas” (NETTO, 2001, p. 25), isto é, o Estado passou assumir papel
central de regulador, no sentido de garantir os superlucros e favorecer o
processo de consumo.

88
13 Para Rosa Luxemburgo, Social Democracia atuou numa perspectiva de refutar a luta de classes,
isto é, “negou a base de sua própria existência”. Portanto, a perspectiva desses partidos é defender
a reforma e, consequentemente, a ordem vigente.
14 Termo utilizado por Mandel.
PAULO ROBERTO FÉLIX DOS SANTOS EVERTON MELO DA SILVA LARYSSA GABRIELLA GONÇALVES DOS SANTOS

Nessa direção, o Estado no capitalismo monopolista exerce o papel de


administrar as expressões da questão social, a fim de atender as requisições
da burguesia, no sentido de assegurar estratégia para atenuar as correlações
e as lutas de classes, bem como as contradições postas.
Tal cenário tende uma aparência de minimização das desigualda-
des. Tais reformas inseridas no contexto monopolista foram essências
para assegurar acumulação capitalista e administrar as suas crises, por
meio do estímulo do “arsenal de políticas governamentais anticíclicas”
(MANDEL, 1985, p. 340).
Não se pode desconsiderar a importância do capitalismo monopolista
no estágio de acumulação capitalista, nem pensar que o cenário de crise tem
provocado tensão no capitalismo monopolista de Estado, levando-o a redefinir
suas perspectivas de ação e enfrentamento. Mandel (1985, p. 410) defende
que a “crise contemporânea do Estado Nacional Burguês não pode ser separa-
da da crise da relação de produção capitalista”, o que explicaria a intrínseca re-
lação entre Estado e capitalismo, com a utilização da força estatal no processo
de regressão dos direitos e conquistas trabalhistas, fenômeno responsável,
segundo Netto (1999), por contexto contemporâneo do capitalismo brasileiro,
reatualizar processo de militarização e assistencialização da pobreza.
No contexto de crise do capital, com ocorrência do aumento do desem-
prego,da precarização das condições de vida e de trabalho e do enfraqueci-
mento do Estado Social, acentuam-se as medidas regressivas e repressivas,
como o Estado penal, em que crescem os investimentos em medidas violentas
e repressivas contra sujeitos marginalizados no sistema.
Cabe considerar que o estágio do capitalismo monopolista teve papel
significativo no cenário de lutas de classes, com introdução de melhorias
nas condições de trabalho e instauração de aparente Estado de Bem-Estar
Social por meio de reformas. As mudanças drásticas no processo de acu-
mulação, com a redução das taxas de lucro e de consumo e o aumento do
desemprego, impactaram drasticamente respostas dadas pelo Estado ao
desenvolvimento capitalista,à organização da luta de classes e, consequen-
temente, à organização sindical na América Latina15.

15 “Em alguns casos, como Brasil, Venezuela, Chile e Argentina, a reestruturação significou desindus-
trialização (o chamado ‘choque competitivo’, que internacionalizou a propriedade do capital e reduziu a
89 participação da indústria tanto no PIB quanto na criação de empregos), com aumento do desemprego
industrial, da informalidade e da precariedade dos vínculos empregatícios, com impactos importantes
sobre o poder sindical. Em outros casos, como México e Bolívia, houve mudanças da estrutura fabril ou
sua transferência para outras regiões do país, com crescimento do nível de emprego desse setor em
particular (inclusive como proporção do emprego global)” (CARDOSO; GINDIN, 2008, p.19).
PAULO ROBERTO FÉLIX DOS SANTOS EVERTON MELO DA SILVA LARYSSA GABRIELLA GONÇALVES DOS SANTOS

Coloca-se,portanto, em cena período de ofensiva do capital, marcado


pelo processo extremo de destruição da ordem do trabalho e fragmentação
das organizações trabalhistas. Esse cenário tem favorecido a ascensão da
tendência reformista no movimento sindical com a luta de classes assumin-
do mais perspectiva de afastamento da ditadura do proletariado, proposta
por Marx, para reatualizar a defesa pelo plano das reformas.
Contraditoriamente, apesar de em alguns momentos defenderem
bandeiras mais gerais que englobem o contexto social, os sindicatos aca-
bam reforçando a luta por melhorias nas condições de exploração. A esse
respeito, Rosa Luxemburgo adverte sobre as limitações da atividade sindi-
cal na luta mais ampla da sociedade e, consequentemente, na construção
da emancipação humana, e denuncia que “a atividade dos sindicatos redu-
z-se, essencialmente, a luta para aumento dos salários e para a redução
do tempo de trabalho, procura unicamente ter uma influência reguladora
sobre a exploração capitalista” (1990, p.48), o que leva a uma perspectiva
da luta pela defesa de reformas sociais, perdendo-se de vista a perspectiva
da construção da ditadura do proletariado e da busca de emancipação hu-
mana16. Essa conduta perpassa os movimentos sociais, especialmente na
contemporaneidade, com incentivo ao particularismo de lutas setoriais, em
detrimento do fortalecimento das lutas coletivas.
É nesse horizonte da luta por reformas que o capitalismo monopo-
lista se estrutura e consegue inserir mudanças significativas no proces-
so de produção capitalista, que acentuam nova forma de imperialismo e,
consequentemente, intenso processo de dependência para os países da
América Latina.
A história tem mostrado que a América Latina, apesar das resistên-
cias, tem caminhado para a reforma dentro da ordem do capital, como ocor-
reu anteriormente em cenário menos perverso para a classe trabalhadora
do que o atual, que caminho rumo à“desordem do mundo do trabalho”, que
impacta negativamente nas condições de reprodução da classe trabalhadora
e do movimento sindical.

16 A discussão sobre Emancipação Humana é uma temática complexa e central, que requer maior
aprofundamento, que não daremos conta no limite deste trabalho. Sinalizar essa discussão, torna-se
essencial, no sentido de compreender que a emancipação humana, na perspectiva marxista, vai além
90 do horizonte da emancipação política, conquistada pela burguesia, no processo de luta, na formação
do Estado, requer a superação da ordem burguesa. Como registra Mauro Iasi, “(...) podemos voltar
a afirmar que a possibilidade da emancipação humana, de restituir o mundo e as relações humanas
aos seres humanos, passa pela superação das mediações criadas por esses mesmos seres em sua
ação sobre o mundo. Passa pela superação da mercadoria, do capital e do Estado” (2011, p.73).
PAULO ROBERTO FÉLIX DOS SANTOS EVERTON MELO DA SILVA LARYSSA GABRIELLA GONÇALVES DOS SANTOS

Apesar desse cenário, acredita-se, que

é na dinâmica da luta entre as classes que se combinam ele-


mentos objetivos e subjetivos que podem levar a formação do
proletariado, ou seja, mais do que simplesmente uma classe da
sociedade do capital, uma classe contra o capital que é capaz
de anunciar um novo tipo de sociabilidade humana finalmente
emancipada (IASI, 2011, p.8).

Nesse contexto, torna-se fundamental problematizar os rumos do


sindicalismo na contemporaneidade.

SINDICALISMO NO CAPITALISMO CONTEMPORÂNEO

Para contextualizar o debate do movimento sindical na contempora-


neidade, considera-se pertinente problematizar os impactos do mundo do
trabalho no contexto neoliberal, tendo em vista a necessidade de demarcar o
contexto em que se constituiu a crise do movimento sindical e, consequen-
temente, as novas estratégias que são gestadas pela classe trabalhadora,
para, assim, entender as contradições que permeiam o cenário da classe
trabalhadora com a crise do novo sindicalismo17.
É importante salientar que a crise do sindicalismo se associa à crise
capitalista pós 197018, que traduz um intenso processo de alterações no
modo de produção (fordista-taylorista) e no modo de regulação de Estado
e introduz mudanças significativas no mundo do trabalho, que impactam

17 Novo sindicalismo significou um movimento político do movimento sindical, que teve a liderança
política do então metalúrgico, Luiz Inácio Lula da Silva, na defesa das condições de trabalho e lutas
salariais. Esse movimento teve um papel fundamental na construção do PT (1980) e da CUT (1983),
cuja proposta era a extinção dos sindicatos por classe para fortalecer a perspectiva dos sindicatos
por ramo de profissão.
18 Especialmente, considerando que a crise capitalista pós 1970 colocou em xeque “os anos
dourados do capitalismo”, isto é, a fase áurea de crescimento do capitalismo e de redistribuição
significativa de parte dos ganhos para a classe trabalhadora, momento áureo também para a orga-
nização dessa classe.. Dentre os traços mais evidentes para o quadro de crise se destacam: queda
91 da taxa de lucro; esgotamento do padrão de acumulação taylorista/fordista de produção; hiper-
trofia da esfera financeira; maior concentração de capitais associadas as fusões dos capitalistas
monopolistas e oligopolistas; incremento acentuado de privatizações, desregulamentações das
relações e dos vínculos trabalhistas. Essas questões provocaram declínio do movimento operário
e ofensiva política e econômica do capital no processo de desmonte do Estado Social.
PAULO ROBERTO FÉLIX DOS SANTOS EVERTON MELO DA SILVA LARYSSA GABRIELLA GONÇALVES DOS SANTOS

diretamente no poder aquisitivo da classe trabalhadora e na perspectiva


intervencionista do Estado.
Como resposta à crise estrutural do capital, coloca-se em cena proces-
so de reestruturação produtiva, tendo como emergência o modo de produção
neoliberal, que consiste na defesa de que a economia internacional é autorre-
gulável e deve, portanto, prescindir da intervenção do Estado.
Esse processo de acumulação capitalista tem impulsionado amplo
reordenamento do capital, ocasionando desregulamentação pelo Estado e
destruição do trabalho, resultando em consequências drásticas para a clas-
se trabalhadora, como privatização, redução do capital produtivo, desregu-
lamentação das condições de trabalho e flexibilização dos direitos sociais,
enfraquecimento e comprometimento do movimento sindical.
Segundo Netto (1999, p. 6), “[...] as exigências imediatas do grande ca-
pital, o projeto restaurador, viu-se resumido no tríplice mote da flexibilização
(da produção das relações de trabalho) desregulação (das relações comer-
cias e dos circuitos financeiros) e da privatização (do patrimônio estatal)”.
Com isso, coloca-se em cena nova funcionalidade do Estado no pro-
cesso de reprodução capitalista, que, a partir de conjunto de reformas,passa
a ter por missão liberar para o capital todas as reais condições para sua ex-
ploração, o que implica total desmonte dos direitos e do patrimônio público
e início da era do capital financeiro.
Segundo Mattoso (1996), há inversão nas relações e na contratação
da força de trabalho, através da redução dos níveis de segurança do tra-
balho, da relação salarial, do padrão de consumo e da desestruturação do
movimento sindical, além do desemprego estrutural.
Nesse cenário, as conquistas históricas dos trabalhadores são rever-
tidas, fragilizadas pelos baixos salários, bem como pelas duras condições
de trabalho, aliadas à perda do poder político dos sindicatos. Para Braga
(2012, p.187) “o aumento do desemprego e a repressão aos sindicatos fra-
gilizam ainda mais a capacidade de defesa dos trabalhadores brasileiros,
bloqueando severamente a mobilidade econômica”. Com isso, presencia-se
a tendência da eliminação dos postos de trabalho, da desfiliação sindical,
da precarização e da terceirização19.
A esse respeito, pode-se afirmar que o capitalismo tem intensifica-
92 do significativamente o processo de economia, provocando alterações sig-

19 É importante sinalizar que nesse momento histórico tramita no congresso emenda 4330, que
coloca a regulamentação da terceirização, isto é, sua expansão e ampliação em todas as esferas,
desregulamentando ainda mais o mercado de trabalho.
PAULO ROBERTO FÉLIX DOS SANTOS EVERTON MELO DA SILVA LARYSSA GABRIELLA GONÇALVES DOS SANTOS

nificativas no mercado de trabalho, marcadas por acentuado processo de


precarização da vida e das condições do trabalhador. Assim, as novas e as
velhas contradições da crise capitalista, agora no âmbito neoliberal, têm
intensificado o movimento de desconstrução e desestruturação do mundo
do trabalho e da organização sindical.
Em relação à questão da organização sindical, ressalta-se sua crise
marcada pelo processo de tensionamento dos sindicatos enquanto repre-
sentação da classe trabalhadora, pela burocratização e pela crise sindical20,
associados à ameaça do desemprego e de conquistas trabalhistas.
A esse respeito, Netto chama atenção para o processo de “dessindi-
calização e os impasses dos partidos políticos populares, ao mesmo tempo
em que emergem no seu espaço ‘novos sujeitos coletivos’, de que os novos
movimentos sociais são o sinal mais significativo” (NETTO, 1996, p.99), ou
seja, da interferência política nos sindicatos, especialmente nos governos
democráticos, por parte do Estado, levando-os a se distanciar da perspectiva
mais crítica e aproximar-se de uma perspectiva mais reformista.
A partir da reforma sindical, o sindicato muda consideravelmente sua
perspectiva, passando de combativo a cidadão-negocial, com a participação
direta de seus representantes na gestão dos fundos de pensão.
Essas questões têm afetado diretamente o processo de sociabilidade
da classe trabalhadora, ocasionando impactos efetivos em seu processo de
constituição, com desvio da perspectiva de classe trabalhadora e fortaleci-
mento das lutas particulares21, perda de seu caráter de luta pela emancipa-
ção e assunção de caráter mais conservador/reformista, especialmente a
CUT e o novo sindicalismo. É nesse cenário que a CUT, que teve protagonis-
mo histórico na construção do sindicalismo no Brasil, perde o horizonte da
perspectiva crítica construída na fase da ditadura.
Aliado a esse cenário, podem-se destacar os rebatimentos das medidas
adotadas pelo governo Lula, que têm levado a processo intenso de “rebaixar ao

20 E importante destacar, segundo Alves (2006, p.467), que “[...] as centrais sindicais (CUT, CGT e
Força Sindical) passam a apropriar-se dos recursos do fundo público–estatais, como o Fundo do
Amparo ao Trabalhador (FAT), por meio da elaboração de projetos de qualificação profissional de
acordo com a lógica do toyotismo sistêmico”. Reforçando, assim, a lógica simplista que o problema
93 da empregabilidade reside na qualificação e, portanto, o esforço deve ser na capacitação do traba-
lhador para o trabalho, distanciando-o, assim, da direção política de contestador para uma direção
“neocorporativista de participação” (LARA, 2010, p. 94).
21 Segundo Braz (2012a). esse caráter particularista tem sido marca do processo de desenvolvimento
capitalista atual.
PAULO ROBERTO FÉLIX DOS SANTOS EVERTON MELO DA SILVA LARYSSA GABRIELLA GONÇALVES DOS SANTOS

máximo patamar de sobrevida dos trabalhadores e sequestrar sua subjetivida-


de”(DIAS, 2006, p.184). Ainda a esse respeito, Petras (2004 adverte):

La estratégia de la reforma laboral de Lula está dirigida hacia la


debilataión de los sindicatos, sacavando las garantias constitu-
cionales de los derechos de los trabajadores, y bajando el costa
de la mano de obra para aumentar las ganancias de los emplea-
dores com el pretexto de hacer a los exportadores mas competi-
vos. Su legislación propone eliminar los pagos de los capitalistas
del sector privadoa los fondos del sindicato y eliminar los pagos
obligatorios de derechos de sindicación. La segunda parte de su
legislación propone permitir a los capitalistas conseguir contratos
de trabajo que hagan caso omisso delas derechos legalmente es-
tabelecidos de los trabajadores. (PETRAS, 2004, 166).

Apesar das contradições postas, pode-se afirmar que o governo do


PT não modificou o quadro e, nem de longe, se propagou uma transformação
diferente do capital. Apesar de ser governo de esquerda, a agenda política
manteve as diretrizes liberais, o que leva a deduzir que a assunção do poder
não permitiu mudança em sua orientação política.
Pode-se, portanto, concordar com Meszáros (2011, p. 764) em que
“personificações do capital podem trocar a pele, mas, não podem eliminar
os antagonismos do sistema do capital, nem remover os dilemas que con-
frontam o trabalho”.
Colocam-se em debate novas questões reivindicatórias no cenário de
lutas, como as de gênero, racial, ambiental e geracional, que tendem a refor-
çar a perspectiva das lutas setoriais, em detrimento das lutas mais amplas.
O que está posto é a perda da defesa da categoria de classe social,
como referência para entender as lutas no contexto da relação capital x tra-
balho, para defesa dos novos movimentos sociais. Com a perda de seu ca-
ráter de luta pela emancipação e assunção de caráter mais conservador/
reformista, especialmente a CUT e o novo sindicalismo,o que se presencia é
mudança drástica do sindicalismo combativo dos anos 1980 para um sindi-
calismo defensivo de conciliação nos anos 1990 e mudança significativa no
perfil dos trabalhadores, formando o que Antunes (1998) denomina classe
trabalhadora heterógena, fragmentada e complexificada.
94 O exposto nos leva a constatar que, na dinâmica do desenvolvimento
do capitalismo, tem-se intensificado processo de desenvolvimento do capita-
lismo, marcado,segundo Souza (2012, p. 437), por um lado, pela superexplo-
PAULO ROBERTO FÉLIX DOS SANTOS EVERTON MELO DA SILVA LARYSSA GABRIELLA GONÇALVES DOS SANTOS

ração do trabalho, e, por outro, pela passivização das lutas sociais que histori-
camente foram mantidas sob o controle do Estado e das classes dominantes.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Compreendendo que a história, enquanto movimento do real, se


constrói e reconstrói numa relação dialética de avanços e recuos, de con-
tinuidade e descontinuidade dos processos de luta de classes no contexto
capitalismo, em que o Estado exerce papel fundamental de reorganizar e
manter a lógica dominante, cabe salientar que o processo de reestrutura-
ção produtiva do capital provocou impactos diretos na reestruturação do
Estado, da classe trabalhadora, do movimento sindical e da esquerda na
América Latina. Como registra Mandel (1985, p.113), “[...] o esmagamento
dos sindicatos e de todas as outras organizações operárias e a resultante
atomização, intimidação e desmoralização condenaram toda uma geração
de trabalhadores a uma perda de sua capacidade de autodefesa”.
Nessa direção, as reflexões enunciadas no texto apontam que a crise
do capital impactou diretamente no processo de luta de classes, colocando
em cena o debate de seu fim e do fim da organização sindical, com o forta-
lecimento das lutas particulares das mulheres, dos negros, dos índios e de
outros segmentos. Entretanto, com os reais impactos da crise do capital na
organização sindical na contemporaneidade, observa-se que há fragmenta-
ção e refluxo considerável do movimento sindical nos anos 1990, e que há
uma retomada desse movimento dos anos 2000, com novas estratégias e
campos de disputa, fazendo soar verdadeiras as palavras de Braga (2012,
p.216) de que “[...] seria um erro interpretar o presente como uma simples
reprodução do passado, pois as circunstâncias históricas são outras, e no-
vas forças externas e diferentes processos internos promoveram efeitos
muito distintos [...]”.
Daí, a necessidade de apreender as novas determinações do capital, e
também as novas estratégias de luta das classes em disputa, na direção da
construção de estratégias essenciais para compreender os reais impactos
na sociabilidade da classe trabalhadora, isto é, a maneira como os sindicatos
95 constroem e reconstroem suas lutas, no intuito de reafirmar consciência de
classe trabalhadora, em relação aos rebatimentos das transformações so-
cietárias recentes, que possibilitem caminharem na direção de consciência
PAULO ROBERTO FÉLIX DOS SANTOS EVERTON MELO DA SILVA LARYSSA GABRIELLA GONÇALVES DOS SANTOS

ingênua que fortalece o processo de fragmentação das alianças políticas e/


ou reafirmarem as bases para manutenção do sistema atual.
E por fim, como frisa Lara (2010, p. 89), “[...] devemos buscar ininter-
ruptamente o espaço para fortalecer o debate que objetive a construção de
uma classe trabalhadora capaz e consciente das suas tarefas de construção
de uma nova sociedade”,pois o que presenciamos é um espaço amplamente
contraditório, em que grandes representações sindicais tendem mais para o
campo das reformas, enquanto segmentos progressistas, minoritários, bus-
cam alianças para consolidar um horizonte de mudanças na construção do
caminho da revolução. Espera-se que o cotidiano da luta de classes possa
apresentar alternativas nos próximos tempos.

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98
ÉTICA E ONTOLOGIA
elementos introdutórios para uma
interpretação ontológica materialista
oposta à ética burguesa

Débora Rodrigues Santos1

INTRODUÇÃO

A exposição deste artigo tem por objetivo apresentar uma discussão


teórica acerca dos fundamentos ontológicos do complexo da Ética. No con-
texto do capitalismo contemporâneo e de seus determinantes, diversas ações
são categorizadas como “éticas” ou “não éticas”. É comum haver vinculação
com comportamentos humanos em variadas esferas, deslocando a essência
da Ética para o campo da moral ou mesmo enfatizando sua articulação com a
política. É inegável que o capitalismo influencia o pensamento ético e a cons-
trução da moralidade numa direção burguesa que considera a individualidade
de forma exacerbada, colocando obstáculos à aproximação com os aspectos
éticos atinentes ao gênero humano. O comum é fomentar valores individua-
listas, egoístas e competitivos em conformidade com a lógica mercantil que
se estabelece nas relações sociais. Portanto, é um desafio compreender a
Ética sob ponto de vista que privilegia uma generalidade humana. Aqui vamos
expor algumas instigações geradas pela tradição marxiana com base no pen-
samento de Gÿorgy Lukács.
Este artigo é composto por dois itens. O primeiro, de caráter intro-
dutório, trata dos elementos da ética burguesa e dos valores da sociedade
capitalista. O segundo item versa sobre “As bases ontológico-materiais da
Ética” e expõe analiticamente os fundamentos ontológicos das objetiva-
ções éticas do ser social. Assim, abordamos a gênese ontológica da Ética
99

1 Professora Assistente da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia; Mestre em Serviço Social


pela Universidade Federal de Alagoas; Doutoranda em Serviço Social pela Universidade Federal do
Rio de Janeiro.
PAULO ROBERTO FÉLIX DOS SANTOS EVERTON MELO DA SILVA LARYSSA GABRIELLA GONÇALVES DOS SANTOS

tendo como solo os valores a partir da categoria da alternativa, conforme


exposta por Lukács em Para Uma Ontologia do Ser Social I (2012), II (2013).
Apresentamos aqui um debate que explicita peculiaridades da Ética
enquanto complexo da vida social que permite que os sujeitos éticos reali-
zem mediações do indivíduo com o gênero humano a partir de valorações
que fundamentam as escolhas éticas no cotidiano. Aqui reunimos resulta-
dos de nossos estudos sobre o tema,a que nos propomos dar continuidade,
dado à importância que assume no campo do conhecimento humano-so-
cial, na explicitação de prática para vida plena de sentido, se os homens
chegarem a produzir uma sociedade em que vigore autêntica relação entre
indivíduo e gênero.
Desse modo, o desenvolvimento da pesquisa com a introdução de
novo viés − o estudo da temática da Ética recorrendo à obra de György Lukács
− impulsionou no sentido de uma ainda incipiente Ética, de viés materialis-
ta, em contraposição à tendência de caráter filosófico idealista vigente no
processo histórico. A perspectiva aqui adotada fundamenta-se na teoria mar-
xiana a partir da contribuição lukacsiana. Embora nem Marx nem Lukács te-
nham escrito uma produção específica sobre a Ética, legaram subsídios para
compreender essa categoria, visando à ruptura com os valores vigentes na
sociedade sob o domínio do capital. Enfatizamos que o objetivo de Lukács era
elaborar uma Ética, objetivo não realizado, mas para o qual deixou inúmeros
contributos fundamentais em sua Ontologia e, mais especificamente, em seu
texto Notas Para Uma Ética (Verscuche Zu Einer Ethik).

A ÉTICA BURGUESA

A ética burguesa foi formulada por pensadores que defenderam a


constituição da sociedade burguesa. A partir das suas obras, defenderam va-
lores éticos burgueses consoantes com o desenvolvimento do capitalismo.
O advento do capitalismo trouxe no seu interior, como já sabido, clas-
ses sociais que se opõem em termos de seus interesses e de suas necessi-
dades, mas também do horizonte intelectual. Em última instância, o pensa-
mento é socialmente determinado pelos caracteres do processo produtivo.
100 Certamente não se trata de algo imposto mecanicamente aos pensadores
enquanto ideólogos de uma classe; eles incorporam o ponto de vista do ca-
pital como sendo seu, integrando os interesses fundamentais e os valores
PAULO ROBERTO FÉLIX DOS SANTOS EVERTON MELO DA SILVA LARYSSA GABRIELLA GONÇALVES DOS SANTOS

predominantes socialmente com os quais se identificam, mas não a ponto


de ignorar inteiramente a existência de confrontos e conflitos com outros re-
presentantes e defensores de valores potencialmente rivais e as alternativas
de grande alcance por eles propostas.
Esse entendimento se aplica também ao campo da Ética. Nesse sen-
tido, a Ética moderna é, também ela, portadora dos influxos gerados pela
alternativa marxiana ao pensamento dominante. Outra via de interpretação
da Ética é forjada no interior do desenvolvimento da sociabilidade capitalis-
ta, que refuta as bases essenciais da teoria da Ética do capital: a chamada
ética marxista, que veremos no próximo item.
E o que podemos entender como Ética do capital? Refere-se a um
modo de ser, portanto, a um ethos voltado para o estabelecimento dos valo-
res capitalistas em todas as relações sociais do indivíduo,que não consegue
visualizar sua dimensão coletiva,enquanto parte do gênero humano,mas,
sim, se vê como lobo do outro homem, onde um é concorrente do outro e
deve ser eliminado para garantir o lugar no mercado e na vida cotidiana.
O capitalismo promove a “sociabilidade mediada pelo mercado” por
meio do modo de ser do indivíduo burguês, pois

[...] esse ethos tem uma base objetiva de sustentação fundada na


forma de organização do modo de produção capitalista; atende
às necessidades de reprodução dessa ordem social cuja dinâmica
supõe a produção incessante e universalizante de novas mercado-
rias e sua apropriação privada (BARROCO, 2014, p. 469).

Nesse sentido, o ethos burguês cria um modo de vida marcada “pelo


consumo, a competitividade e o individualismo” que se expressam nas re-
lações humanas (BARROCO, 2014, p. 469). A vida é marcada pela ideologia
mercantil e da alienação que interfere na moralidade e na ética, uma vez que
os indivíduos só se satisfazem quando realizam desejos voltados para o mer-
cado e para a propriedade privada. Entendemos que as relações sociais são
coisificadas num contexto de alienação do trabalho e das outras esferas da
vida social em que o “valor econômico tende a influenciar todas as esferas”
e em que os valores éticos “tendem a se expressar como valores de posse,
de consumo, reproduzindo sentimentos, comportamentos e representações
101 individualistas” (BARROCO, 2005, p. 35).
Ainda segundo Barroco (2008, p. 157), o modo de ser capitalista é
regido pela lógica da mercadoria que produz “comportamentos coisificados,
expressos da posse material, na competitividade e no individualismo”. A
PAULO ROBERTO FÉLIX DOS SANTOS EVERTON MELO DA SILVA LARYSSA GABRIELLA GONÇALVES DOS SANTOS

autora ressalta que a coisificação das relações humanas traz consequên-


cias para as escolhas, valores e sentimentos de homens e mulheres, que,
escravizados nessa ideologia. Pensam que “coisas materiais se expressam
como qualidades humanas que, ao ser consumidas, passam a dar sentido à
existência” (Ibidem, p. 158).
O modo de ser capitalista se reproduz eticamente por meio de “nor-
mas, deveres e representações pertinentes às necessidades objetivas de (re)
produção da sociabilidade mercantil”, expressando a ideologia dominante e
conservadora (Ibid., p. 161).
Mais adiante, Barroco (2008, p. 174-5) analisa os valores morais
afirmando que expressam que “a moral adquire, no conservadorismo, um
sentido moralizador [...] entendendo que a questão social decorre de pro-
blemas morais” e, portanto, individuais, ou seja, não decorrem do próprio
sistema capitalista.
Diante do exposto, entendemos que o ethos burguês almeja a realiza-
ção humana de forma individualista, acrítica e conforme com os interesses
do mercado, interferindo, assim, nas relações sociais, normas, regras e na
cultura. Nesse sentido, a ética pode contribuir para a afirmação dos valores
burgueses e do capital favorecendo a ideologia dominante e não possibilitan-
do que os homens se reconheçam como sujeitos éticos (BARROCO, 2005).
A sociedade capitalista se fundamenta na alienação moral dos indi-
víduos por meio de perspectivas teóricas conservadoras que os impedem
de compreender os reais interesses do capital. Essa alienação é fortaleci-
da pelo projeto burguês. Segundo Cardoso (2013, p. 46),“trata-se de uma
sociedade que tem diferentes interesses em disputa, tendo como projeto
societário hegemônico o projeto burguês”.
Essa sociedade burguesa se vale de uma moralidade consoante com
seus objetivos de produção e reprodução. É preciso compreender que “a
moral nessa sociedade apresentará normas e regras em consonância com
os interesses burgueses hegemônicos e servirá como meio de manutenção
da ordem e desse status quo” (CARDOSO, 2013 p. 46-7, grifos originais).
Isso posto, está claro que a Ética burguesa se fundamenta na morali-
dade capitalista dominante que atende aos objetivos de uma classe social:
a burguesia. Destarte, a moral dominante em nossa sociedade visa “estabe-
102 lecer limites, controlar, reprimir toda e qualquer forma crítica de relação do
indivíduo com a sociedade” (Ibidem, p. 47).
A ética burguesa não nos permite uma reflexão sobre a moralidade pos-
ta pela classe dominante. Esta moralidade influencia diariamente as nossas
PAULO ROBERTO FÉLIX DOS SANTOS EVERTON MELO DA SILVA LARYSSA GABRIELLA GONÇALVES DOS SANTOS

ações e decisões por meio de regras e obrigações formais. A autora afirma


que “de certa maneira, seguimos e vamos reproduzindo essas regras e normas
sem questioná-las ou nos questionarmos quanto às nossas ações”.
Barroco (2005, p. 57) apresenta o argumento de que a ética pode ser
transformadora e crítica através do compromisso com valores emancipado-
res. Assim, a ética tem como potencialidade a “crítica à moral do seu tempo e
possibilidade de projeção ideal de uma sociedade em que os homens possam
se realizar livremente”.
Nessa direção, Cardoso (2013, p. 49) assevera que “embora tenhamos
uma moral dominante, esta coexiste com outros códigos morais que vão sen-
do construídos pelos diferentes grupos sociais”. Assim, temos possibilidades
históricas de mudanças do ponto de vista do modo de produção, bem como
dos seus valores e moralidade. É possível transgredir as normas morais da
ética burguesa e entender os fundamentos do capitalismo para além da alie-
nação moral. O complexo da Ética traz em seu seio essa possibilidade de
ruptura com a ética burguesa. Caminho fértil se tem na Ética marxista, que
veremos no item a seguir.

AS BASES ONTOLÓGICO-MATERIAIS DA ÉTICA

Este item aborda a interpretação da ética baseada na vertente do


pensamento social que traz uma análise crítica ontológica e concreta. É o
que chamamos aqui de Ética Marxista em sentido ontológico materialista
fundamentado na ontologia de Lukács. Essa forma de pensar a ética se
opõe à ética burguesa e inaugura uma nova forma de pensar a Ética des-
de a Grécia antiga. É importante salientar que é a base teórica da ética
do Serviço Social na atualidade, no Código de Ética de 1993; bem como é
a perspectiva teórica que embasa a formação profissional e possibilita a
apreensão crítica da realidade com rigor teórico-metodológico, conforme
as Diretrizes Curriculares Nacionais para os cursos de Serviço Social. Desse
modo, apresentamos neste item o estudo entre Ética Marxista e Ontologia
Social por meio de instigações da tradição marxiana como alternativa ao
pensamento dominante.
103 A Ética é um complexo da vida social que permite que os sujeitos
éticos realizem mediações do indivíduo com o gênero humano a partir de
valorações que fundamentam as escolhas éticas na vida cotidiana. As bases
PAULO ROBERTO FÉLIX DOS SANTOS EVERTON MELO DA SILVA LARYSSA GABRIELLA GONÇALVES DOS SANTOS

para entender a Ética nessa perspectiva se dão a partir do debate marxista


e da ontologia social. Portanto, vamos nos valer do pensamento de György
Lukács, um dos principais filósofos do século XX que se debruçou sobre a
obra de Marx. Abordando a ética lukacsiana, estamos falando do debate da
ética na tradição marxista.
A Ética moderna é portadora dos influxos gerados pela alternativa
marxiana ao pensamento dominante. A ética marxista representa outra via
de interpretação da Ética forjada no interior do desenvolvimento da sociabi-
lidade capitalista, que refuta as bases essenciais da teoria da Ética do capi-
tal. Neste item trazemos uma interpretação da gênese ontológica da Ética
a partir de uma ontologia materialista do ser social defendida por György
Lukács em Para uma Ontologia do Ser Social (2013). Ao que tudo indica,
ao escrever essa obra já em sua maturidade, o autor tinha por finalidade
originalmente produzir uma Ética de caráter materialista. Entretanto, por va-
riadas razões, essa realização não se tornou possível, mas restaram em sua
Ontologia indicações para suas bases fundantes.
Embora Lukács não tenha escrito especificamente sobre Ética – como
pretendera –, explicitou, segundo Oldrini (2009, p. 329), os “pressupostos da
via marxista à Ética e, por consequência, ao conceito marxista de pessoa”. O
autor afirma que a filosofia marxista contém os “princípios de uma teoria da
Ética”, não obstante faltar uma “completa teoria da Ética” (Ibidem, p. 330).
Assim, na visão de Oldrini, à Ética de Lukács “faltam os desenvolvimentos,
não os princípios”, dado à vasta contribuição para os princípios de uma Ética
materialista. Na realidade, a lacuna sobre esse tema permaneceu por muito
tempo na produção da doutrina marxiana, de modo que Lukács realizou o
“maior esforço para interpretar e valorizar criticamente para a ética a doutri-
na marxista” (Ibidem, p. 331), contribuindo com elementos fundamentais na
apreensão de uma Ética materialista. Portanto, a Ética ocupou lugar central
nas preocupações lukacsianas.
A Ética é uma parte da práxis humana em seu conjunto, integrando
a reprodução do ser social em suas atividades. O autor fortalece o debate
com a concepção de uma “Ética marxista” e compreende que sua premissa
é o “reconhecimento de que a liberdade consiste na necessidade tornada
consciente” (LUKÁCS, 2009, p. 72). O ser social exerce sua liberdade quando
104 tem consciência das suas necessidades e passa a se sentir “parte do gênero
humano” (Ibidem, p. 75). Destarte, a Ética possibilita que o ser social com-
preenda a si mesmo e vincule suas necessidades às necessidades do gênero
humano por meio da consciência do indivíduo.
PAULO ROBERTO FÉLIX DOS SANTOS EVERTON MELO DA SILVA LARYSSA GABRIELLA GONÇALVES DOS SANTOS

O despertar da consciência da espécie humana no indivíduo é fun-


damental para o indivíduo entender conscientemente que faz parte de um
gênero humano, instigando-lhe valores voltados para essa humanidade que
se revela como totalidade de indivíduos e não como indivíduos isolados e
individualistas. Essa consciência também possibilita que o ser social se
perceba inserido numa sociedade com determinações das relações sociais
vigentes. A Ética é uma mediação significativa para as ações realizadas
conscientemente na práxis da vida cotidiana.
A Ética é um “elemento vinculador”, enquanto dimensão constitutiva
da “práxis geral da humanidade”, com potencialidades reais de “tornar-se
um momento deste extraordinário processo de transformação, desta real
humanização da humanidade” (LUKÁCS, 2010, p. 76). Neste sentido, a Ética
representa mediação para autêntica humanização do homem.
Sem pretensão alguma de explorarmos exaustivamente as proposições
éticas de Lukács, queremos nos deter num aspecto determinado: desvelar em
sua Ontologia a base do ser social como suposto para uma Ética de caráter
materialista. A Ontologia por ele produzida significou uma aproximação esses
fundamentos, como base decisiva para a apreensão do homem como ser so-
cial, expressa em um universo categorial que comporta, na sua segunda parte,
categorias como trabalho, reprodução, ideologia e alienação.
Lukács identificou o trabalho como atividade central na constituição
do ser social, e com ele a base ontológica de toda atividade humana criada
no processo de desenvolvimento dos homens. No trabalho encontra-se o
solo ontológico do valor e, consequentemente, dos altos valores, como o
Direito, a Política, a Arte e a Ética.
Na concepção lukacsiana, o ser social torna-se cada vez mais “so-
cial” através da posição teleológica do trabalho, que altera materialmente
a natureza para atender a necessidades e promove o processo de humani-
zação do homem. Ao desenvolver nos homens novas capacidades e novas
habilidades, o trabalho impulsiona o processo de desenvolvimento humano
mediante, como vimos, “recuo das barreiras naturais” – de acordo com Marx
−, que sedimentam o processo de reprodução social. Evidencia-se, portanto,
que, se o trabalho é o fundamento do ser social e modelo da práxis social
por excelência, a sua existência efetiva, porém, se dá no processo de repro-
105 dução social. Se, em um primeiro momento de sua Ontologia, Lukács desnu-
da no capítulo do trabalho o seu universo categorial, afirma, entretanto, que
se trata de “uma abstração sui generis [...].Sua primeira dissolução come-
çará já no segundo capítulo, ao investigarmos o processo de reprodução do
PAULO ROBERTO FÉLIX DOS SANTOS EVERTON MELO DA SILVA LARYSSA GABRIELLA GONÇALVES DOS SANTOS

ser social” (Ibidem, p. 44-5). Daí se entende que o trabalho, como exposto
por Lukács, adquire concreção na reprodução enquanto desenvolvimento
humano-genérico.
Lukács também entende o trabalho como o “[...] único ponto onde
se pode demonstrar ontologicamente um pôr teleológico como momento
real da realidade material” (Ibidem, p. 51). No trabalho, o ser social realiza
o ato teleológico que promove uma transformação material e concreta da
realidade. Salientamos que a ruptura com o nível de ser anterior e puramente
natural se dá no processo contínuo de “realização de posições teleológicas”,
exclusivas do homem e, portanto, baseadas no trabalho.
O trabalho é uma posição teleológica primária, pois é através dele que
se realiza, “no âmbito do ser material, um pôr teleológico enquanto surgimen-
to de uma nova objetividade” (Ibidem, p. 47). Ao gerar novas objetivações, o
trabalho promove objetivamente nova situação social típica de nova forma
de ser. Essa posição teleológica somente se realiza mediante a interação de
duas categorias essenciais: a teleologia e a causalidade.
A partir das conexões ontológicas entre esses dois polos, surge a
causalidade ontologicamente posta (o ser social):

Nunca se deve perder de vista o fato simples de que a possibilidade


de realização ou o fracasso do pôr do fim depende absolutamente
de até qual ponto se tenha, na investigação dos meios, conseguido
transformar a causalidade natural em uma causalidade – falando
em termos ontológicos – posta. O pôr do fim nasce de uma neces-
sidade humano-social; mas, para que ela se torne um autêntico pôr
de um fim, é necessário que a investigação dos meios, isto é, o co-
nhecimento da natureza, tenha chegado a certo estágio adequado
(LUKÁCS, 2013, p. 56-7). (grifos nossos).

A partir das necessidades do ser social, inicia-se movimento para


respondê-las de acordo com suas finalidades. Para tanto é imprescindível
investigar os meios, a fim de se alcançar determinada finalidade e responder
a determinada necessidade, ou seja, o “pôr de um fim” de uma posição teleo-
lógica é gerado através de uma “necessidade humano-social” e para que seja
realizada materialmente requer a “investigação dos meios”.
A estrutura interna das posições teleológicas configura-se por dois
106
atos fundamentais que dão origem à relação dialética entre teleologia e cau-
salidade, quais sejam: pôr do fim (finalidade) e investigação dos meios. Logo, a
“investigação dos meios” implica o “conhecimento objetivo da gênese causal
PAULO ROBERTO FÉLIX DOS SANTOS EVERTON MELO DA SILVA LARYSSA GABRIELLA GONÇALVES DOS SANTOS

das objetividades e dos processos cujo andamento pode levar a alcançar o


fim posto” (LUKÁCS, 2013, p. 54). Ao conhecer o sistema causal necessário,
o ser social traça o percurso teleológico para realizar a finalidade pretendida.
A concepção do trabalho fornece elementos para asseverar que o
trabalho funda o ser social por ter na teleologia a sua categoria ontológica
central; essa possibilita o salto ontológico para o nível de ser e proporciona o
atendimento de necessidades humanas por meio da interação consciente do
homem com a natureza. Assim, o homem é o autor consciente de posições
teleológicas que formam síntese com a causalidade natural e geram nova
situação para o ser social, chamada causalidade posta.
A interação entre teleologia e causalidade se realiza por meio de pro-
cesso de objetivação no qual o sujeito do trabalho cria novas realidades antes
inexistentes. Esse processo é de fato processo de objetivação do objeto e de
exteriorização do sujeito humano, momento decisivo para a alternativa aqui
entendida como gênese ontológica do Valor e, consequentemente, da Ética.
Lukács não pressupõe o trabalho como único complexo realizado na
práxis, porém assegura que o ser social vai além da realização de teleologias
apenas na causalidade natural por meio do trabalho. O ser social também é
o autor consciente das posições teleológicas secundárias, que não objetivam
intervir na natureza materialmente, mas sim na transformação das relações
sociais e da consciência dos outros homens.
Os pores teleológicos secundários não implicam alterações na cau-
salidade natural diretamente, mas têm como objeto a consciência de outra
pessoa ou grupo humano. Atuam nas relações sociais com a finalidade
de “[...] suscitar nos homens determinadas decisões entre alternativas”
existentes na realidade para promover uma mudança, ou seja, para “[...]
reforçar ou enfraquecer certas tendências na consciência dos homens”
(LUKÁCS, 2013, p. 91).
A realização de posições secundárias só é possível à medida que o
trabalho se torna social e cria as condições para a existência de outros com-
plexos – como a Ética – que se objetivam no seio das relações sociais. Ao
interferir na consciência humana, essas posições secundárias geram outras
posições teleológicas concretas, ou seja, as teleologias secundárias indu-
zem subjetivamente a consciência dos homens na realização das posições
107 que devem realizar. Desse modo, promovem transformações subjetivas nos
homens, surgindo daí uma nova configuração da consciência humana que
“[...] se torna um momento essencial ativo do ser social que está nascendo”
PAULO ROBERTO FÉLIX DOS SANTOS EVERTON MELO DA SILVA LARYSSA GABRIELLA GONÇALVES DOS SANTOS

(Ibidem, p. 129). Este é o fundamento da nova função da consciência “como


portadora dos pores teleológicos da práxis” (Ibidem, p. 130).
A substância das teleologias secundárias tem como premissa “[...]
a tentativa de induzir outra pessoa (ou grupo de pessoas) a realizar pores
teleológicos concretos” (Ibidem, p. 83). Essas teleologias incidem no com-
portamento das pessoas envolvidas no processo de trabalho, tendo em vista
que o pôr do fim dessa posição teleológica é a “finalidade de outras pessoas”,
que se realiza na consciência desde indivíduos e é inserida no percurso do
trabalho. As posições teleológicas secundárias interferem no complexo do
trabalho e no comportamento do sujeito.
É notório que a constituição do ser social é composta por posições
teleológicas − primária e secundária. Aí se faz presente decisivamente a
consciência dos homens com vistas à reprodução na sociabilidade humana.
A efetividade do intercâmbio entre homem e natureza se realiza mediante
o dever-ser. O ato teleológico consciente e direcionado para induzir outras
pessoas à realização de outras posições teleológicas tem como conteúdo
um dever-ser e promove mudanças nas relações sociais e nos sujeitos.
Neste item analisamos as determinações ontológicas da estrutura do
processo de trabalho na perspectiva de que há uma interação ontológica en-
tre teleologia e causalidade que conforma a causalidade posta, o ser social.
Esse processo de trabalho é realizado a partir das escolhas entre as alterna-
tivas dadas na realidade que contribuem para valorar as possibilidades entre
certo e errado. Há uma conexão entre alternativas e valores no trabalho.
Para atender às suas necessidades, o ser social realiza a síntese entre
teleologia e causalidade e, para tanto, se depara com situações em que preci-
sa fazer escolhas entre alternativas distintas, consubstanciando as suas deci-
sões. Dessa forma, a alternativa é um “ato de consciência”, mas não somente,
tendo em vista que é “categoria mediadora com cuja ajuda o espelhamento da
realidade se torna veículo do pôr de um ente” (LUKÁCS, 2013, p. 73).
A alternativa desenvolve papel essencial na reprodução social, pois
medeia o reflexo da realidade que fundamenta o ato de pôr teleologias. O
ser social realiza diversas decisões entre alternativas novas para atender a
suas finalidades oriundas da reprodução social. Assim, existe conexão on-
tológica entre o processo de trabalho e a categoria alternativa, que pode ser
108 desvendada ao se considerar o trabalho como produtor de valores de uso.
A essência da alternativa consiste em que “não se trata apenas de
um único ato de decisão, mas de um processo, uma ininterrupta cadeia tem-
poral de alternativas sempre novas” (Ibidem, p. 71). A alternativa, enquanto
PAULO ROBERTO FÉLIX DOS SANTOS EVERTON MELO DA SILVA LARYSSA GABRIELLA GONÇALVES DOS SANTOS

categoria mediadora, ocorre de forma contínua e constante na práxis social


para atender às necessidades sociais do ser social.
A alternativa é um ato consciente dotado de concretude para fun-
damentar as escolhas e decisões operadas pelo ser social, mediante as
possibilidades do processo de trabalho e conformando-se como “categoria
decisivamente nova” (Ibidem, p. 78).
As alternativas são reais, pois ocorrem em “circunstâncias concre-
tas”, mediante “necessidade concreta”; portanto, só se pode basear em
uma “alternativa concreta”, uma vez que corresponde à decisão de “uma
pessoa concreta (ou de um grupo de pessoas) a respeito das condições
concretamente melhores para realizar uma finalidade concreta”. A cadeia
de alternativas aí presente não se refere “à realidade em geral”, mas implica
“escolha concreta entre caminhos cujo fim (em última análise, a satisfação
da necessidade) foi produzido não pelo sujeito que decide, mas pelo ser
social no qual ele vive e opera” (Ibidem, p. 76).
Essa concretude da categoria alternativa demonstra que ela se dá
no real e assim cumpre sua “função ontologicamente real”, que consiste
no “momento da decisão, da escolha realizada pela “consciência humana”
(Ibidem, p. 77). As alternativas são orientadas pela realização da finalidade
pretendida, ou seja, são categorias que medeiam as escolhas para transfor-
mar a realidade de acordo com a posição do fim.
Portanto, há uma articulação entre a categoria alternativa e o dever-ser,
já que a alternativa é motivada a partir do fim que deve ser objetivado no futuro.
O dever-ser é o momento predominante na relação com o reflexo da realidade.
É uma das “categorias que nascem do processo de separação ontológica entre
a natureza e a sociedade”, acentuando-se aí o seu “caráter especificamente
social” (Ibidem, p. 105). O autor afirma a relevância de considerar a função
do dever-ser como uma dessas categorias que proporcionam a efetividade do
intercâmbio da sociedade com a natureza.
A alternativa exerce papel mediador direcionado pelo dever-ser que
articula desde a prévia ideação de uma finalidade até os resultados de de-
terminada necessidade, diante das inúmeras possibilidades dadas concre-
tamente no real. A cadeia processual de alternativas está presente tanto na
posição teleológica primária quanto na secundária.
109 A gênese ontológica do valor está relacionada ao significado do valor
em suas conexões com a categoria da alternativa e do dever-ser. A alternativa
é a base do valor nas posições teleológicas, em especial no processo do tra-
balho, que é constituído de uma cadeia de alternativas entre as possibilidades
PAULO ROBERTO FÉLIX DOS SANTOS EVERTON MELO DA SILVA LARYSSA GABRIELLA GONÇALVES DOS SANTOS

existentes. Mediante as alternativas disponibilizadas pela vida social, torna-


-se imperioso que o ser social faça escolhas bem fundamentadas, conforme
os valores que proporcionam o que seria a “melhor” escolha ou o caminho
mais correto para a decisão do decorrer da posição teleológica aí inerente.
Assim, os valores dão o embasamento das escolhas entre as alternativas de
forma que o ser social possa avaliar qual a escolha mais acertada, mais “útil”
para determinada posição teleológica, a fim de responder às necessidades
humano-sociais. Os valores cumprem, portanto, papel objetivo na consciência
do ser social, o que implica a avaliação das alternativas possíveis para aten-
der também às necessidades historicamente determinadas.
Ademais, a avaliação conforma o processo valorativo no ato da es-
colha entre as alternativas, de forma a decidir se determinada alternativa é
“válida” ou não, “útil” ou “inútil”. Não obstante suas características especí-
ficas e distintas, a conexão entre o dever-ser e o valor é o que lhes confere
concretude na realidade.
Lukács discorre sobre a gênese ontológica do valor, considerando
o trabalho no seu sentido ontológico enquanto produtor de valores de uso.
Classificar avaliativamente o que é “válido”, “útil” e/ou “bom” nas alternativas
existentes para satisfazer as necessidades humanas é tarefa primordial para
o ser social, que, para tanto, recorre ao valor. Segundo Lukács:

Na gênese ontológica do valor, devemos partir, pois, de que no


trabalho como produção de valores de uso (bens), a alternativa do
que é útil ou inútil para a satisfação das necessidades está posta
como problema de utilidade, como elemento ativo do ser social
(LUKÁCS, 2013, p. 111).

Indubitavelmente, o valor possui caráter socialmente objetivo, uma vez


que assinala “aprovação do pôr teleológico correto” a ser realizado pelo sujei-
to e, sendo o correto, “significa a realização concreta do respectivo valor”, que
é, portanto, objetivo (Ibidem, p. 111). O valor confere subsídios, a fim de que
se saiba se as alternativas escolhidas são “corretas” e “válidas” para satisfa-
zer as necessidades inerentes e se mantêm relação com o trabalho.
Para além das alternativas econômicas, também existem as alter-
nativas não econômicas, chamadas pelo autor “humano-morais”, que são
110 operadas nas posições teleológicas secundárias. Diante dessas alternativas
humano-morais, que se dão nas posições secundárias, os valores realizam
interferência nas escolhas dos homens para realizar outras posições teleo-
lógicas cujo objeto é a consciência dos outros. A base para o ser social
PAULO ROBERTO FÉLIX DOS SANTOS EVERTON MELO DA SILVA LARYSSA GABRIELLA GONÇALVES DOS SANTOS

escolher e decidir entre as alternativas é o valor, e a alternativa versa sobre


a escolha entre valores opostos.
O ato de escolher entre alternativas depende diretamente do valor
intrínseco, por conseguinte, “do complexo respectivo das possibilidades
reais de reagir praticamente ante a problematicidade de um hic et nunc2
histórico-social” (LUKÁCS, 2013, p. 123). As alternativas são “fundamentos
insuprimíveis do tipo de práxis humano-social” que jamais “podem ser sepa-
radas da decisão individual”.
O valor permite a ação de avaliação comparativa entre as necessi-
dades e possibilidades existentes na vida cotidiana em que se realiza o
processo de reprodução social; esse é composto por “um complexo e uma
síntese de atos teleológicos que são de fato inseparáveis da aceitação ou
da rejeição de um valor” (Ibidem, p. 122). Nesse processo dialético do de-
senvolvimento social reside cadeia de alternativas concretas às quais os
homens respondem.
São esses os pressupostos para compreender a gênese da Ética a
partir da gênese ontológica do valor. Enquanto complexo valorativo e po-
sição teleológica secundária, a Ética está relacionada ontologicamente a
esse movimento de valoração mediante as alternativas existentes na vida
cotidiana, com consequências nas escolhas dos sujeitos, cujas consciên-
cias são objeto das posições teleológicas secundárias. É preciso com-
preender as especificidades do complexo da Ética, principalmente porquan-
to vinculam conscientemente às necessidades individuais do ser social às
necessidades do gênero humano. Para tanto, é fundamental a existência
de condições materiais concretas que visam sua realização na vida social.
Assim sendo, uma Ética que se vincule à vida plena de sentido se encontra
apenas esboçada como possibilidade para o gênero humano, do ponto de
vista de uma teoria que se opõe ao sistema do capital, pois os pressupos-
tos, ou seja, as condições materiais para sua existência, constituída por
homens produzindo em sociedade com vistas aos interesses da humani-
dade em seu conjunto, não estão dadas. Entretanto, são as necessidades
e possibilidades postas ao gênero humano na atualidade que impõem tam-
bém a necessidade de uma Ética que expresse valores no sentido da supe-
ração dos valores vigentes. Superação da dicotomia das individualidades
111 burguesas entre citoyen e bourgeois, como viu Marx, reduzidas à condição
de cidadania e à propriedade privada quando as tem.

2 Aqui e agora.
PAULO ROBERTO FÉLIX DOS SANTOS EVERTON MELO DA SILVA LARYSSA GABRIELLA GONÇALVES DOS SANTOS

Enfim, postos os elementos iniciais – os valores − para o entendi-


mento do solo ontológico da Ética, que, a nosso ver, constituem o momento
fundamental da proposição lukacsiana para uma Ética materialista em sua
Ontologia, consideramos fundamental à continuidade da apreensão dessa
Ética ontológico-materialista o estudo da contribuição de György Lukács em
Notas Para uma Ética (2014), com vista à consolidação do conhecimento
sobre o tema.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste artigo expusemos brevemente os fundamentos da Ética, aproxi-


mando-nos das bases históricas no processo humano e abordando sua gêne-
se ontológica em categorias da obra de Lukács Para Ontologia do Ser Social.
Com a consolidação do capitalismo, o pensamento ético mostra-se
consoante com a direção burguesa que considera o indivíduo na busca pela
afirmação de sua individualidade de forma exacerbada, impossibilitando
uma aproximação com os aspectos éticos atinentes ao gênero humano.
Nesse contexto, é um desafio compreender a Ética sob ponto de vista que
privilegie a generalidade humana. No campo do conhecimento da Ética mo-
derna também existem instigações geradas pela tradição marxiana como
alternativas ao pensamento dominante. Apresentamos, portanto, essa outra
via de interpretação por meio da gênese ontológica da Ética, fundamentados
na ontologia de Lukács para desvelar uma Ética materialista.
Na discussão das bases ontológico-materiais da Ética, apresentamos
a gênese ontológica da Ética a partir da investigação dos fundamentos on-
tológicos das objetivações éticas do ser social. Concluímos que os homens
são seres sociais com capacidade ética de realizar mediações na relação
dicotômica entre os interesses do indivíduo e da genericidade humana. Lu-
kács (2013) analisa o trabalho enquanto atividade central na constituição do
ser social, a partir do salto ontológico e tendo como categoria ontológica
primordial a teleologia, não desconsiderando sua relação de interação com a
causalidade que encerra o processo de objetivação e exteriorização do sujei-
to. Os atos do indivíduo são resultantes desse processo que vem a subsidiar
112 suas decisões entre as alternativas.
O ser social precisa realizar escolhas entre as alternativas, cuja origem
reside nas necessidades sociais concretamente, ou seja, a alternativa é um
PAULO ROBERTO FÉLIX DOS SANTOS EVERTON MELO DA SILVA LARYSSA GABRIELLA GONÇALVES DOS SANTOS

ato consciente repleto de concretude motivada pela finalidade que deve ser
objetivada. As alternativas são orientadas pelas finalidades pretendidas e me-
deiam as escolhas para transformar a realidade. Nessa perspectiva ontológica
materialista, entendemos a gênese ontológica dos valores a partir do processo
de avaliação valorativa que embasa o ser social no processo de escolha e de-
cisões mediante a cadeia de alternativas para satisfazer suas necessidades.
Assim, a base para o ser social escolher e decidir entre as alternativas é o valor,
pois a alternativa é a base da gênese ontológica do valor e, consequentemente,
da Ética. Lembramos que é no trabalho que se encontra o solo ontológico do
valor e também da Ética enquanto complexo valorativo. O ponto de partida de
nosso estudo foi o trabalho como fundamento essencial da Ética.
A Ética está relacionada a esse processo de valoração mediante as
alternativas existentes. É preciso ter condições materiais para que as obje-
tivações éticas existam, pois “ou a ética é uma ‘determinação da existência’
ou, rigorosamente, não é nada” (LESSA, 2007, p. 26). Segundo esse autor,
para a plena realização da Ética, portanto, é necessário ter condições obje-
tivas na realidade. Entendemos que existem alguns questionamentos sobre
esse aspecto no debate teórico do pensamento ético na atualidade, que
justificam a necessidade de novas pesquisas no que diz respeito à reflexão
crítica da gênese ontológica da Ética.
Concluímos que a Ética se configura como processo de reflexão que
exige decisão e escolha através do processo de valoração mediante as al-
ternativas existentes. Considerando o exercício profissional do/a assistente
social, nos deparamos com situações que exigem respostas a partir da nos-
sa reflexão e análise à luz das diretrizes, das dimensões, dos princípios e
dos valores da profissão. Não é tão fácil fazer escolhas diante dos dilemas
éticos com que nos deparamos e com as condições materiais a que somos
submetidos enquanto profissionais na sociedade burguesa. Mas é preciso
decidir e escolher entre as alternativas existentes, materializando nossos va-
lores, princípios, dimensões e diretrizes que fundamentam o Serviço Social
no contexto contemporâneo.

113
PAULO ROBERTO FÉLIX DOS SANTOS EVERTON MELO DA SILVA LARYSSA GABRIELLA GONÇALVES DOS SANTOS

REFERÊNCIAS

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Paulo: Cortez, 2005.
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Biblioteca Básica/Serviço Social). v. 4.
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n. 119. São Paulo: Cortez, 2014.
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LESSA, S. Lukács – ética e política: observações acerca dos fundamentos
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LUKÁCS, G. Problemas da ética. In: COUTINHO, C. & NETTO, J. P. (Orgs.). O
jovem Marx e outros escritos de filosofia. 2. ed. Rio de Janeiro: UFRJ, 2009.
______. Para uma ontologia do ser social I. Trad. Carlos Nelson Coutinho,
Mario Duayer e Nélio Schneider. São Paulo: Boitempo, 2012.
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Boitempo, 2013.
_______. Notas para uma ética: Versuche zu Einer Ethik. Ed. Bilíngue. Trad.
Sergio Lessa. São Paulo: Instituto Lukács. 2014.
OLDRINI, G. György Lukács e os problemas do marxismo do século XX.
Napoli: La cittá del sole, 2009.

114
EDUCAÇÃO
E SERVIÇO SOCIAL NA CENA
CONTEMPORÂNEA

115
A EDUCAÇÃO ENQUANTO
POLÍTICA SOCIAL NO CAPITALISMO
reflexões sobre a educação para o trabalho
no contexto brasileiro

Maria Auxiliadora Silva Moreira Oliveira1


Maria da Conceição Almeida Vasconcelos2

INTRODUÇÃO

Este artigo tem por objetivo contribuir para a análise da educação en-
quanto política social que tem contribuído com a reprodução do capital por
meio da socialização e disseminação de ideias, princípios e diretrizes geradas
no interior do capitalismo. Discute, também, alguns elementos da educação
no Brasil, com foco no trabalho, em consonância com os ditames do capital.

AS POLÍTICAS SOCIAIS NO CAPITALISMO

O surgimento do que se configurou política social tem ligação direta


com o capitalismo e seu processo de produção e reprodução, com a luta
de classes nele estabelecida e, ainda, com a intervenção estatal. É a partir
desse enfoque que a análise aqui será desenvolvida.
Conforme Behring e Boschetti (2011), outras compreensões permeiam
o entendimento das políticas sociais, percebendo-as apenas como iniciativa

1 Assistente Social do Instituto Federal de Sergipe; Mestre em Serviço Social pela Universidade Fe-
116 deral de Sergipe; Membro do Grupo de Estudos e Pesquisas da Educação Profissional e Tecnológica.
2 Professora associada da Universidade Federal de Sergipe; Mestre em Sociologia pela Universidade
Federal de Sergipe; Doutora em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo;
Membro do Grupo de Pesquisa Fundamentos, Formação em Serviço Social e Políticas Sociais.
PAULO ROBERTO FÉLIX DOS SANTOS EVERTON MELO DA SILVA LARYSSA GABRIELLA GONÇALVES DOS SANTOS

do Estado, sem referência aos pressupostos que explicam como essas polí-
ticas estão vinculadas a uma forma de regulação social, fundamental para a
acumulação do capital. Há ainda aqueles que as entendem como resultante,
exclusivamente, da luta de classes. Nesse sentido, o Estado aparece como
instância provida de neutralidade, quando na verdade há todo um conjunto
de relações que, por meio dele [do Estado], se estabelece, no sentido de se
promoverem formas de proteção social que contribuam com a lógica da acu-
mulação do sistema e atendam a determinadas parcelas da sociedade, de
forma a camuflar e escamotear, muitas vezes, situações de exploração e de
desigualdade social. Reforçando essa assertiva, Behring (2007) informa que

o significado da política social não pode ser apanhado nem exclu-


sivamente pela sua inserção objetiva no mundo do capital, nem
apenas pela luta de interesses dos sujeitos que se movem na defi-
nição de tal ou qual política, mas, historicamente, na relação des-
ses processos na totalidade. [...] Constata-se que a política social
[...] atende às necessidades do capital e, também, do trabalho, já
que para muitos trata-se de uma estagnação, como um terreno
importante da luta de classes. Trata-se da defesa de condições
dignas de existência, em face do recrudescimento da ofensiva
capitalista em termos do corte de recursos públicos para a repro-
dução da força de trabalho - função reiteradamente atribuída à
política social (BEHRING, 2007, p.174 - 175).

Desse modo, é fundamental compreender os aspectos econômicos


e políticos que são importantes e indissociáveis para o entendimento das
políticas sociais no contexto do capitalismo. No sentido econômico, as
políticas sociais contribuem para a lucratividade do capital e estão dire-
tamente ligadas à redução dos custos e à elevação da produtividade. Já a
questão política diz respeito à cooptação e legitimação do capital, visando
à adequação dos trabalhadores ao sistema. Mesmo que sejam elementos
importantes na compreensão do papel das políticas sociais na sociedade
capitalista, de acordo com Behring e Boschetti (2011, p.37 - 38), não são su-
ficientes para compreender outras questões que explicam as contradições
sociais. Dizem elas:

117 Esses enfoques não são, em si, equivocados, pois as políticas


sociais assumem de fato essas configurações. Mas são insufi-
cientes e unilaterais porque não exploram suficientemente as con-
tradições inerentes aos processos sociais e, em consequência,
não reconhecem que as políticas sociais podem ser centrais na
PAULO ROBERTO FÉLIX DOS SANTOS EVERTON MELO DA SILVA LARYSSA GABRIELLA GONÇALVES DOS SANTOS

agenda de lutas dos trabalhadores e no cotidiano de suas vidas,


quando conseguem garantir ganhos para os trabalhadores e impor
limites aos ganhos do capital.

Do mesmo modo, para se analisar as políticas sociais, é importan-


te uma apropriação/aproximação da teoria marxista, não aceitando apenas
aparência do fenômeno, mas analisando a sua essência. Isto se confirma
com o pensamento de Behring e Boschetti (2011, p.39), quando afirmam que

é nessa perspectiva que se situa a análise das políticas sociais.


[...] Estas não podem ser percebidas apenas em sua expressão
fenomênica. Buscamos captar seu movimento essencial na so-
ciedade burguesa, desde suas origens até os dias de hoje. Para
realizar este percurso metodológico fugindo a definições e bus-
cando determinações, é preciso apreender que o fenômeno indi-
ca a essência e, ao mesmo tempo, a esconde, pois a essência se
manifesta no fenômeno, mas só de modo parcial, ou sob certos
ângulos e aspectos.

Por meio de uma análise que tem como referência o pensamento de


Marx, é possível se obter

[...] relevantes subsídios para o debate sobre a política social [...].


A crítica da economia política marxista contemporânea é, na ver-
dade, uma referência imprescindível, embora não absoluta, para
enfrentar os desafios postos pela realidade complexa e instigante
do nosso tempo, com a sua lógica aparentemente caótica e essen-
cialmente perversa (BEHRING, 2007, p.175).

A lógica do lucro empreendida pelo modo de produção capitalista


exige que vários elementos da ordem social estejam em funcionamento de
modo a atender interesses do capital. Quando do surgimento do capitalismo,
o cenário de miséria e de pauperismo era um fenômeno observado na Europa
Ocidental, especificamente na Inglaterra, no final do século XVIII, em meio à
primeira Revolução Industrial, na fase inicial do capitalismo concorrencial.
De acordo com Netto (2001), esse [o pauperismo] foi um “fenômeno novo,
sem precedentes na história anterior conhecida”. Tinha-se um cenário que,
118

se não era inédita a desigualdade entre as várias camadas sociais,


se vinha de muito longe a polarização entre ricos e pobres, se era
antiguíssima a diferente apropriação e fruição dos bens sociais,
PAULO ROBERTO FÉLIX DOS SANTOS EVERTON MELO DA SILVA LARYSSA GABRIELLA GONÇALVES DOS SANTOS

era radicalmente nova a dinâmica da pobreza que então se gene-


ralizava. Pela primeira vez na história registrada, a pobreza crescia
na razão direta em que aumentava a capacidade social de produzir
riquezas. Tanto mais a sociedade se revelava capaz de progressi-
vamente produzir mais bens e serviços, tanto mais aumentava o
contingente de seus membros que, além de não ter acesso efetivo
a tais bens e serviços, viam-se despossuídos das condições ma-
teriais de vida de que dispunham anteriormente (NETTO, 2001, p.
42-43).

Com o desenvolvimento do capitalismo o pauperismo se alarga.


Quanto mais desenvolvidos os meios de produção, maior importância ad-
quiria a tecnologia adotada, visto que as máquinas tinham o poder de au-
mentar, consideravelmente, a produtividade, além de diminuir os custos e o
tempo de produção.
A Revolução de 1848 foi fundamental para revelar a face perversa do
capitalismo. As ideias de Karl Marx, que trouxe à tona os ideais do socialismo
e um método peculiar de investigação da sociedade burguesa, apresentaram
a possibilidade de construir um modo de produção diferente do capitalismo.
Essa Revolução, além de afetar os ideais burgueses, contribuiu para ampliar
a compreensão sobre o sistema capitalista por parte da classe trabalhadora,
conforme explicita Netto (2001, p. 44), uma vez que acabou “trazendo à luz
o caráter antagônico dos interesses sociais das classes fundamentais [...]
eversão completa da ordem burguesa, num processo do qual estaria excluída
qualquer colaboração de classes [...] a passagem, em nível histórico-univer-
sal, do proletariado da condição de classe em si a classe para si”.
Com novas percepções da realidade, parte dos trabalhadores questiona
a situação de exploração vivenciada e começa a perceber alguns elementos do
sistema capitalista de produção, suas causas, seus processos contraditórios e
suas consequências para a classe trabalhadora.
O ingresso da classe operária na arena política e as novas formas
de organização do proletariado são vistas, pelas classes dominantes, como
ameaça à ordem econômico-social estabelecida. Assim, se fez necessário,
segundo Branco (2006, p.17), que “a burguesia inglesa, conjuntamente com
outras classes dominantes, articulasse, através da máquina estatal, uma
intervenção mais eficaz [...]”. Revogam-se, por exemplo, as antigas leis tra-
119 balhistas e adotam-se algumas medidas, a fim de abrandar os efeitos da
acumulação e da exploração capitalistas.
Essa intervenção resulta em medidas de proteção social, materiali-
zadas em algumas políticas sociais, que vão dando, gradativamente, caráter
PAULO ROBERTO FÉLIX DOS SANTOS EVERTON MELO DA SILVA LARYSSA GABRIELLA GONÇALVES DOS SANTOS

mais conciliador à relação capital x trabalho, na qual o Estado vai ter papel
fundamental de regulação e intervenção.
O desemprego, a fome, as doenças, a forte desigualdade social, re-
sultantes da exploração do capital e percebidos por segmentos da classe
trabalhadora, expressas em suas manifestações, eram preocupações ima-
nentes e precisavam ser tratadas para manter a ordem na sociedade.
Era preciso enfrentar as expressões do que se denominou questão
social, que se origina justamente das contradições inerentes ao processo
de exploração estabelecido na relação capital x trabalho. Essas expressões
são indissociáveis “do processo de acumulação e dos efeitos que produz
sobre o conjunto das classes trabalhadoras, [...]. é [são] tributária[s] das
formas assumidas pelo trabalho e pelo Estado na sociedade burguesa e não
um fenômeno recente” (IAMAMOTO, 2006. p.11).
Enfrentar os efeitos e as consequências das expressões da questão
social era fundamental, sem, contudo, mexer na lógica e estrutura do capi-
talismo. Como afirma Netto (2001, p. 44), “o enfrentamento de suas mani-
festações deve ser função de um programa de reformas que preserve, antes
de tudo, a propriedade privada dos meios de produção”. Até se reconhecem
os seus agravos, mas a questão social é vista como culpa do homem e
não do sistema que se apresenta com formas desiguais. Netto (Ibidem)
prossegue, afirmando que “o cuidado com as manifestações da ‘ques-
tão social’ é expressamente desvinculado de qualquer medida tendente
a problematizar a ordem econômico-social estabelecida; trata-se de
combater as manifestações da ‘questão social’ sem tocar nos fundamentos
da sociedade burguesa”.
Atenuar as manifestações da questão social é, portanto, uma das
tarefas das políticas sociais. Fomentadas pelo Estado, essas políticas as-
sumiam papel regulador. Como destaca Pereira (2012),

para dar conta das crescentes demandas sociais - advindas, prin-


cipalmente, da “questão social”, então desencadeada - a que se viu
obrigado a responder, o Estado capitalista, até por uma questão
de sobrevivência, renunciou à sua posição equidistante de árbi-
tro social para tornar-se francamente interventor. E, nesse papel,
ele passou não só a regular com mais veemência a economia e
a sociedade, mas também a empreender ações sociais, prover
120 benefícios e serviços e exercer atividades empresariais. Dessa
feita, o Estado capitalista tornou-se, desde o final do século XIX,
parte visivelmente interessada nos conflitos entre capital e traba-
lho, agudizados pelo processo de industrialização, assumindo um
PAULO ROBERTO FÉLIX DOS SANTOS EVERTON MELO DA SILVA LARYSSA GABRIELLA GONÇALVES DOS SANTOS

forte papel regulador, dando origem ao Estado de Bem-Estar ou


Estado Social (PEREIRA, 2012, p.32-33).

A política social expressa a intervenção do Estado frente ao atendimen-


to das necessidades básicas dos cidadãos. Essa intervenção visa atenuar as
contradições geradas no interior do capitalismo. Como afirma Neves (2005),

as políticas sociais têm sua gênese e dinâmica determinadas pelas


mudanças qualitativas ocorridas na organização da produção e nas
relações de poder que impulsionaram a redefinição das estratégias
econômicas e político-sociais do Estado nas sociedades capitalis-
tas no final do século passado [séc. XIX]. No âmbito da produção,
tais mudanças se substanciaram na redefinição da natureza do
processo de acumulação de capital [...] No âmbito das relações de
poder, tais mudanças se configuraram na introdução de antagonis-
mos estruturais entre os vários capitais singulares, especialmente
entre os monopolistas e os não monopolistas (NEVES, 2005, p.12).

Em seu caráter contraditório, as políticas sociais acabam contribuin-


do com a produção e reprodução do capitalismo e, ao mesmo tempo, com
serviços sociais de atendimento à população. Em uma sociedade cuja base
é a divisão de classes distintas e antagônicas, a eliminação desses elemen-
tos contraditórios só poderá ocorrer com a eliminação das desigualdades
de classes, que sustentam as disparidades econômicas, culturais, sociais
e políticas, a favor de uma minoria detentora dos meios de produção e do
lucro. No mais, o que pode ocorrer, conforme Netto, (2001, p. 46) é que “sem
ferir de morte os dispositivos exploradores do regime do capital, toda luta
contra as suas manifestações sociopolíticas e humanas (precisamente o
que se designa por ‘questão social’) está condenada a enfrentar sintomas,
consequências e efeitos”.
Conforme Pereira (2011), para Marx, só seria possível qualquer
transformação se outro tipo de sociedade fosse construído. Em consonân-
cia com a autora,

[...] Marx não vê como se daria o bem-estar no marco das ativida-


des estatais. O Estado, para ele tem o mesmo efeito dominador
121 em qualquer regime, não importam as formas de governo que ve-
nha a apresentar: é sempre um instrumento de dominação e de
manutenção da estrutura de classes. Assim, somente quando o
Estado for superado e substituído por uma sociedade sem clas-
ses, conhecer-se-á o bem-estar (PEREIRA, 2011, p.120).
PAULO ROBERTO FÉLIX DOS SANTOS EVERTON MELO DA SILVA LARYSSA GABRIELLA GONÇALVES DOS SANTOS

Porém, como mostra Netto (2001, p.43), os ideais socialistas de


superação do modo de produção capitalista foram duramente reprimidos,
pois se apresentavam como ameaça à ordem socialmente estabelecida.
Essas iniciativas foram neutralizadas, tendo-se, nesse processo, a contri-
buição do Estado por meio das políticas sociais. “Posta em primeiro lugar,
com o caráter de urgência, a manutenção e a defesa da ordem burguesa, a
‘questão social’ perde paulatinamente sua estrutura histórica determinada
e é crescentemente naturalizada [...]”.
Nesse sentido é fundamental compreender esses elementos contra-
ditórios que envolvem as políticas sociais no capitalismo. Como afirmam
Behring e Boschetti (2011, p.46), “[...] se a política social é uma conquista
civilizatória e a luta em sua defesa permanece fundamental, [...] ela não é
a via de solução da desigualdade que é intrínseca a este mundo, baseado
na exploração do capital sobre o trabalho, no fetichismo da mercadoria, na
escassez e na miséria em meio à abundância”.
Assim, no modo de produção capitalista, diante das condições ob-
jetivas que se têm, é fundamental a capacidade de luta dos trabalhadores,
reafirmando-se o caráter coletivo e universal que as políticas sociais de-
vem ter. Isso

[...] requer, no seu enfrentamento, a prevalência das necessidades


da coletividade dos trabalhadores, o chamamento à responsa-
bilidade do Estado e a afirmação de políticas sociais de caráter
universal, voltadas aos interesses das grandes maiorias, conden-
sando um processo histórico de lutas pela democratização da
economia, da política, da cultura na construção da esfera pública
(IAMAMOTO, 2006, p. 10 - 11).

Compreender, portanto, os antagonismos entre capital e trabalho, a


luta de classe para a conquista de espaços coletivos de interesse comum,
as condições de sobrevivência por meio da garantia de políticas sociais nas
diversas esferas, é fundamental para entender essas políticas no modo de
produção capitalista. Nesse contexto está a educação, enquanto uma das
políticas sociais importantes para o seu processo de produção e reprodução,
tendo o Estado como elemento de sustentação.
122
PAULO ROBERTO FÉLIX DOS SANTOS EVERTON MELO DA SILVA LARYSSA GABRIELLA GONÇALVES DOS SANTOS

A EDUCAÇÃO ENQUANTO POLÍTICA SOCIAL:


recortes do contexto brasileiro

As políticas sociais, no cenário contemporâneo, em especial o caso


da Educação, têm acompanhado as várias mudanças econômicas, políticas
e sociais, que se processam no âmbito do capitalismo monopolista e que
dão a direção necessária para a existência de um sistema educacional que
serve tanto ao capital em seu processo de produção e reprodução quanto ao
atendimento de demandas oriundas da sociedade, numa relação de proximi-
dade com o mundo do Trabalho. Como diz Neves (2005),

situar a educação como política social do Estado capitalista


significa, antes de tudo, admitir a refuncionalização social dos
sistemas educacionais em face das mudanças qualitativas ocor-
ridas na fase monopolista do capitalismo, tanto em relação à
organização da produção quanto em relação às relações sociais
globais. Significa ainda admitir que os sistemas educacionais,
no mundo capitalista contemporâneo, respondem de modo es-
pecifico às necessidades de valorização do capital, ao mesmo
tempo em que consubstanciam numa demanda popular efetiva
de acesso ao saber socialmente produzido (NEVES, 2005, p. 16).

As determinações do capital afetam as mais distintas esferas da so-


ciedade, e aqui, em particular, se destaca a educação, por ser parte integrante
da totalidade dos processos sociais. Como afirma Mészáros (2008, p.45),

[...] a educação formal não é a força ideologicamente primária


que consolida o sistema do capital; tampouco ela é capaz de, por
si só, fornecer uma alternativa emancipadora radical. Uma das
funções principais da educação formal nas sociedades é produzir
tanta conformidade ou “consenso” quanto for capaz, a partir de
dentro e por meio dos seus próprios limites institucionalizados e
legalmente sancionados.

Esse autor destaca que, sob a ótica capitalista, cabe aos indivíduos
a responsabilidade de contribuir com a reprodução desse sistema, interna-
123 lizando como naturais as posições que ocupam na sociedade, as chances
que lhes foram concedidas para o sucesso ou insucesso de sua trajetória
pessoal e profissional. Diz ele:
PAULO ROBERTO FÉLIX DOS SANTOS EVERTON MELO DA SILVA LARYSSA GABRIELLA GONÇALVES DOS SANTOS

Aqui, a questão crucial sob o domínio do capital é assegurar que


cada indivíduo adote como suas as próprias metas de reprodução
objetivamente possíveis do sistema. Em outras palavras, no sen-
tido verdadeiramente amplo do termo educação, trata-se de uma
questão de “internalização” pelos indivíduos [...] da legitimidade
da posição que lhes foi atribuída na hierarquia social, juntamen-
te com suas expectativas “adequadas” e as formas de conduta
“certas”, mais ou menos explicitamente estipuladas nesse terreno
(MÉZÁROS, 2006, p. 44).

Essa lógica, a ser exercida pela política de educação, foi sempre


visualizada, nos diversos períodos históricos, com preocupações mais
acentuadas em alguns deles. No período pós-guerra, por exemplo, os sis-
temas educacionais contribuíram, substancialmente, para a reconstrução
dos países atingidos pelos efeitos das guerras.
Com mudanças advindas da forma de organização da produção e do
trabalho, são requeridos outros direcionamentos no que tange às atividades
político-sociais e educacionais. Assim,

[...] exige-se a organização de um sistema educacional unitário


que possa preparar, desde o pré-escolar até os níveis mais eleva-
dos da hierarquia escolar, homens capazes de difundir o conheci-
mento científico e tecnológico necessário à nova relação social de
trabalho. É inerente, pois, à organização do trabalho a socialização
progressiva da escola (NEVES, 2005, p.21).

Sobre a mesma temática, Hofling (2011, p.32) compreende que a po-


lítica de educação interfere na formação dos homens dentro de parâmetros
capitalistas de manutenção da ordem e das relações sociais estabelecidas.
Enquanto responsabilidade do Estado, “as políticas sociais - e a Educação - se
situam no interior de um tipo particular de Estado. São formas de interferên-
cia do Estado, visando à manutenção das relações sociais de determinada
formação social”.
Por meio da educação se procede à transmissão e ao entendimento
do saber produzidos historicamente. Portanto, o processo educativo não é
neutro. Nele estão arraigados elementos de diferentes naturezas, indo dos
ideológicos, pedagógicos, filosóficos, até os culturais e políticos. Trata-se de
124
processo construído historicamente, mediante a correlação de forças dos/
com os sujeitos sociais presentes na sociedade.
PAULO ROBERTO FÉLIX DOS SANTOS EVERTON MELO DA SILVA LARYSSA GABRIELLA GONÇALVES DOS SANTOS

Especificando a política de educação no Brasil, observa-se que ela se


encontra de acordo com o preconizado pelos ditames capitalistas em âm-
bito mundial. Fruto de passado colonial, a educação brasileira acompanha,
desde então, os interesses das classes burguesas, sempre em relação com
a questão da produção e trouxe consigo o surgimento de diversas “propos-
tas de reestruturação do sistema educacional que, da ótica do capital, pu-
dessem fazer face às transformações recentes da sociedade, da economia
e das relações de poder em nosso país” (NEVES, 2005, p.38).
A Educação no Brasil sempre foi permeada por medidas que traziam
em seu cerne a distinção entre os que deveriam frequentar a escola e ter
um grau superior e aqueles, geralmente de famílias mais pobres, que de-
veriam seguir carreira técnica. Essa situação é percebida desde o início da
colonização, pois

a formação do trabalhador ficou marcada [no Brasil] já no início


com o estigma da servidão, por terem sidos os índios e os escravos
os primeiros aprendizes de ofício. [...] outros fatores influenciaram
para a cristalização da mentalidade: o primeiro fator foi a entrega
do trabalho pesado e das profissões manuais aos escravos; isto
não só agravou o pensamento generalizado de que os ofícios eram
destinados aos deserdados da sorte, como também impediu, pelas
questões econômicas, que a educação eminentemente intelectual
que os jesuítas ministravam aos filhos dos colonos afastava os
“elementos socialmente mais altos” de qualquer trabalho físico ou
profissão manual (GARCIA, 2000, p. 79).

É no período colonial3 que se têm os primeiros momentos da consti-


tuição de uma educação profissional no Brasil, quando foi instituído o ensino
dos ofícios –excludente e discriminatório -, com destaque para a diferencia-
ção entre as atividades destinadas aos escravos e o trabalho exercido pelos
homens livres.
Durante os primeiros anos do Brasil República, a base da economia do
país, embora ainda com características agroexportadoras, sofria alterações
ao ter sua produção industrial ampliada. A este respeito, Canali (s/d, p. 6)
registra que

125 3 Durante o período colonial brasileiro, o modelo econômico agroexportador sustentava a econo-
mia e as ocupações de caráter manual eram desenvolvidas pelos negros escravos. Era, portanto,
necessário mantê-los na condição de escravos e sem acesso a qualquer tipo de educação que lhes
permitisse o aprendizado e o exercício de atividades diferenciadas das que, costumeiramente, exer-
ciam. Em contraponto, aos homens livres cabia o aprendizado das profissões - ensino dos ofícios.
PAULO ROBERTO FÉLIX DOS SANTOS EVERTON MELO DA SILVA LARYSSA GABRIELLA GONÇALVES DOS SANTOS

a intensificação do processo de urbanização, que tem como


causa a industrialização crescente e a deterioração das formas
de produção no campo, gerou a evolução de um modelo agrário
exportador para um modelo parcialmente urbano-industrial e fez
surgir uma nova demanda social de educação. A estreita oferta
de ensino de então não atendia mais à crescente procura; a es-
cola começa a ser demandada pelas novas e crescentes neces-
sidades de recursos humanos para ocupar funções nos setores
secundários e terciários da economia.

De acordo com Kuenzer (1999). a educação brasileira, nesse período,


antes de pretender atender as demandas de um desenvolvimento industrial
praticamente inexistente, obedecia a uma finalidade moral de repressão: edu-
car, pelo trabalho, órfãos, pobres e desvalidos da sorte, retirando-os da rua.
Após a Revolução de 1930, quando o Brasil vivencia fase de ascen-
são da indústria4, as políticas de educação tinham o objetivo de atender as
demandas que eram fruto do processo de industrialização. Convém des-
tacar, nesse período, as Reformas Capanema (1942 e 1943) que, por meio
de leis orgânicas, estruturou o ensino industrial e comercial, resultando na
criação do Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (SENAI) e do Ser-
viço Nacional de Aprendizagem Comercial (SENAC). Nesse sentido, Canali
(s/d, p.9) destaca que

no bojo da Reforma Capanema [...], foram incluídos uma série de


cursos profissionalizantes para atender diversos ramos profissio-
nais demandados pelo desenvolvimento crescente dos setores
secundário e terciário, por isso, escolas e cursos começam a se
multiplicar com essa finalidade sem que a conclusão desses cursos
habilitassem para o ingresso no ensino superior.

Durante o período da Segunda Guerra Mundial, com o desenvolvi-


mento da indústria nacional, vai-se exigir a adoção de medidas no tocante à
profissionalização da mão de obra nacional. De acordo com Garcia (2000), é
possível compreender que isso significou a exigência do ensino profissional
e o aumento do número de escolas profissionalizantes. Porém, esse nível
de ensino continuava voltado para a classe mais pobre e necessitava de
instrumentos legais e operacionais que o respaldasse.
126

4 “Neste período [...] o pensamento era a articulação econômica entre a agricultura e a indústria
para fortalecer o projeto de industrialização no Brasil com o apoio das oligarquias rurais. Tal projeto
de caráter político-econômico tem continuidade com Getúlio Vargas” (CANALI, s/d, p.8).
PAULO ROBERTO FÉLIX DOS SANTOS EVERTON MELO DA SILVA LARYSSA GABRIELLA GONÇALVES DOS SANTOS

Frigotto (2010, p.20) ressalta algumas características históricas do


processo da educação no Brasil, ratificando que

a educação no Brasil, particularmente nas décadas de 1960 e


1970, de prática social que se define pelo desenvolvimento de
conhecimentos, habilidades, atitudes, concepções e valores ar-
ticulados às necessidades e interesses das diferentes classes
e grupos sociais, foi reduzida, pelo economicismo, ao mero fa-
tor de produção – “capital humano”. Asceticamente abstraída
das relações de poder, passa a definir-se como uma técnica de
preparar recursos humanos para o processo de produção. Essa
concepção de educação como “fator econômico” vai constituir-se
numa espécie de fetiche, um poder em si que, uma vez adquirido,
independentemente das relações de força e de classe, é capaz
de operar o “milagre” da equalização social, econômica e política
entre indivíduos, grupos, classes e nações.

A ideia do homem como sujeito histórico capaz de construir a si e sua


realidade, e de realizar, objetivar, transformar a natureza e, consequentemen-
te, se transformar, não é levada em conta no capitalismo. Nesse sistema,
o objetivo, no tocante à educação, é que ela esteja voltada para o trabalho,
visando à lucratividade do capital. A referência adotada está centrada na
teoria do capital humano, cujo foco é promover a educação para o trabalho
com vista ao alcance de maior produtividade e “superar o atraso econômico
do país” (STARK, 1999, p. 66). Essas ideias estão presentes nas orientações
dos organismos internacionais, a exemplo do Banco Mundial, que

[...] ao pautar-se na Teoria do Capital Humano, [...] concebe a


educação, exclusivamente, como um instrumental possibilitador
de mobilidade social para os educandos e como um investimen-
to necessário para as nações em desenvolvimento atingirem
um novo patamar de competitividade. A preocupação com uma
formação mais integral dos educandos é totalmente desprezada
(OLIVEIRA, 2003, p.49).

Os organismos internacionais, muitas vezes, enquanto provedores


de créditos financeiros para os países em desenvolvimento, estabelecem
127
acordos que interferem diretamente na forma de condução das políticas
econômicas e sociais.
PAULO ROBERTO FÉLIX DOS SANTOS EVERTON MELO DA SILVA LARYSSA GABRIELLA GONÇALVES DOS SANTOS

De maneira crescente, o Banco Mundial, desde os anos sessenta,


tem participado de forma sistemática e direta das decisões, com
capacidade para intervir e formular políticas educacionais para a
América Latina, menos pelo montante de empréstimos aprovados
e mais pela sagacidade de manipular os benefícios retirados das
políticas sociais (MONLEVADE; SILVA, 2000, p.74 -75).

Esses organismos têm suas mais expressivas atuações junto aos


países que contraíram dívidas por meio de empréstimos e que possuem
dificuldade para o pagamento de seus credores. No Brasil, os reflexos das
ações desses organismos no âmbito da política de educação são visíveis
nas esferas federal, estadual e municipal, ao se perceber que as exigências
impostas a esses governos implicam ajustes e liberalização de mercados,
bem como contenção dos gastos públicos.
Ao se observarem, por exemplo, a Constituição de 1988 e a Lei de
Diretrizes e Bases da Educação, vê-se que elas acabam reforçando a ideia
da escola como espaço de reprodução da ordem vigente e de adaptação às
modificações que ocorrem no mundo da produção capitalista. Quanto a isso,
Paro (2006, p. 136) aponta que

[...] a qualificação para o trabalho como uma das finalidades da


educação na Constituição de 1988 e na LDB de 1996, com o propó-
sito de vincular a educação escolar ao mundo do trabalho, parece
mais restringir essa possibilidade do que propriamente concreti-
zá-la, pois o sentido da expressão “qualificar para o trabalho” está
mais associado ao fornecimento dos elementos necessários para
adentrar-se ao “mundo do emprego”, quando este existir, de acor-
do com as necessidades impostas pelo mercado capitalista, do
que ao desenvolvimento das necessidades individuais e coletivas
do homem para viver bem. [...] Nota-se uma contradição entre a
finalidade da educação, de garantir o pleno desenvolvimento do
educando – o que, stricto sensu, pode ser comparado com o de-
senvolvimento do homem omnilateral defendido por Marx – e, o
propósito de qualificar para um tipo de trabalho que precisa ser
abolido para que o pleno desenvolvimento do educando possa
ocorrer em sua dimensão individual e social.

Essas ideias se materializam tanto em termos quantitativos - con-


128 teúdos curriculares, quantidade de vagas ofertadas, níveis de ensino/
capacitação - quanto em termos qualitativos - metodologias do ensino e
áreas do conhecimento enfatizadas. Além disso, também sofrem influên-
cia diante das conjunturas. O quadro de crise do capitalismo vivenciado no
PAULO ROBERTO FÉLIX DOS SANTOS EVERTON MELO DA SILVA LARYSSA GABRIELLA GONÇALVES DOS SANTOS

pós 1970, no qual o Estado passou por reestruturação e refuncionalização,


impactou na consolidação e oferta das políticas sociais, e a educação foi
atingida diretamente.
Atualmente, com as ideias neoliberais, as políticas sociais, entre elas
a Educação, passam a ser determinadas por diretriz que entende a diminui-
ção da presença do Estado nessas políticas. Hoje, no Brasil, é possível notar
que a intervenção do Estado em áreas primordiais para o desenvolvimento
social tem sofrido várias retrações, com destaque para a área educacional,
em que se percebe tendência, cada vez maior, de incentivá-la com a presença
de instituições privadas, deixando-se de lado, muitas vezes, a educação pú-
blica. Todas essas questões acabam tendo desdobramentos sérios na políti-
ca de educação, com reflexos na qualidade do ensino. Por isso, como afirma
Oliveira (2003, p.19), “[...] é preciso averiguar as modificações correntes no
campo das políticas educacionais e, principalmente, no novo ordenamento
político e econômico do sistema capitalista”.
A este respeito, Oliveira (2003, p. 20-21) ainda destaca que

a situação do sistema educacional, na qual saltam aos olhos as


altas taxas de reprovação e evasão escolar, é explicada pelos neo-
liberais como decorrentes da incompetência por parte do poder
público de gerenciar a educação. Não será nunca redundante re-
lembrar que a deficiência por parte do poder público em investir
nas áreas sociais é consequência direta da captura do Estado por
parte dos setores empresariais, os quais, em nenhum momento,
deixaram de se aproveitar das benesses políticas e econômicas
promovidas pelo setor público que, historicamente, serviu como
ponto de apoio, principalmente para viabilizar a acumulação do
capital. [...] o projeto neoliberal se efetiva quando destrói as repre-
sentações ainda existentes no conjunto da classe trabalhadora,
segundo as quais a educação é um direito social e, como tal, deve
ser mantida e gerenciada pelo Estado.

A defesa da educação não como direito, mas como privilégio, respal-


dada em princípios neoliberais de competitividade, qualidade total e interes-
ses voltados para os ditames do capital, coadunam com a ideia de modelo
educacional dual, voltado para a dicotomia de que existe uma escola de quali-
dade para poucos privilegiados social, política e economicamente, a despeito
129 de uma escola excludente para os demais. Esse fato direciona o pensamento
de que o problema da educação está para além da questão metodológica,
alcançando patamares conceituais e políticos. Sendo assim,
PAULO ROBERTO FÉLIX DOS SANTOS EVERTON MELO DA SILVA LARYSSA GABRIELLA GONÇALVES DOS SANTOS

[...] observa-se uma mudança na forma de participação estatal no


atendimento dos chamados direitos sociais. O poder público, em
vez de atuar objetivando amenizar as consequências negativas
do processo de globalização e de transformação no mercado de
trabalho, assume um perfil totalmente contrário, no qual a ideia de
Estado mínimo e de regulação social pela liberdade do mercado
toma maior expressão. [...] ao entender que o alcance da qualidade
educacional necessita de nova racionalidade, o Estado brasileiro,
por meio de suas políticas, apropria-se apenas daquilo proposto
pelas elites empresariais e pelas agências de financiamento inter-
nacional. A qualidade na educação passa a ser definida a partir
dos interesses do capital globalizado (OLIVEIRA, 2003, p.45).

As propostas de efetivação de reformas e do papel do Estado no


sentido de diminuir sua intervenção nas políticas sociais vêm acompanha-
das de orientações e exigências dos “manuais” impostos pelos organis-
mos internacionais.
Assim, vale o destaque para o fato de que “o Banco Mundial assu-
miu um papel político decisivo na definição e indução do modelo de de-
senvolvimento econômico e político, estendendo as ações e estratégias
de disciplinamento dos investimentos para o setor educacional público”
(MONLEVADE; SILVA 2000, p.79).
As ações do Banco Mundial, com ênfase no livre mercado e no Es-
tado mínimo, junto aos países endividados, não corroboravam com o com-
bate à pobreza nem com a mudança do posicionamento desses países na
divisão internacional do trabalho. A atenção máxima estava voltada para o
fortalecimento das ações neoliberais. Na medida em que essas ações são
fomentadas, ocorre o fortalecimento da pobreza - quando não se vislum-
bram ações concretas que atendam o crescimento social, e sim, quase que
exclusivamente, aos interesses do grande capital. Apreende-se que

desde o início do movimento de redirecionamento das econo-


mias e da intervenção estatal sob a ótica neoliberal, os países
em desenvolvimento com uma alta dívida externa desenvolvem
esforços, objetivando garantir o cumprimento das suas obriga-
ções junto ao capital financeiro, acumulando a pobreza e a de-
sigualdade social. [...] De forma nitidamente ideológica e presa
ao referencial monetarista, o Banco Mundial defende maior in-
130 vestimento na área social, mas sempre vinculando-a ao proces-
so de expansão do capital. Dentre as áreas setoriais de cunho
social, uma das que recebem maior atenção é a educacional.
Estes investimentos no setor educativo têm como justificativa a
necessidade de as nações promoverem o reordenamento do seu
PAULO ROBERTO FÉLIX DOS SANTOS EVERTON MELO DA SILVA LARYSSA GABRIELLA GONÇALVES DOS SANTOS

sistema educacional de forma a criar um quadro mais qualifica-


do de trabalhadores, impulsionando, assim, o desenvolvimento
econômico (OLIVEIRA, 2003, p.48).

A globalização da economia, as ideias neoliberais e a pressão dos or-


ganismos internacionais são elementos importantes, na atualidade e na con-
figuração do capitalismo em âmbito mundial, pois influenciam, diretamente,
nas políticas sociais, particularmente na educação. A divisão internacional
do trabalho, as novas exigências oriundas da competitividade mundial e a
reestruturação e organização da produção vão repercutir nas políticas de
educação. Se desde o início do processo de industrialização os procedimen-
tos educativos tinham como foco atender as exigências das indústrias, na
atualidade, essas exigências se ampliam diante do novo cenário mundial, do
mundo globalizado, da divisão internacional do trabalho e das novas exigên-
cias do processo produtivo. Educar para o trabalho continua sendo o foco
privilegiado da educação brasileira.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A política educacional que sempre esteve voltada aos interesses do


capital provoca formação limitada e que subordina o saber aos interesses do
capitalismo (MÉSZÁROS, 2008). Historicamente esse tem sido o propósito da
política educacional nesse sistema, direcionada para atender a necessidades
de formação profissional para o mercado. No caso do Brasil, esse propósito
é perceptível principalmente no processo de industrialização e na criação de
instituições destinadas à qualificação profissional dos trabalhadores, sempre
centradas na formação mecanicista e no adestramento de mão de obra para
atender a lógica imposta pelo capital. Romper com essa forma de tratar a
educação que não se subordine, mas que emancipe é um grande desafio. Para
tanto, como afirma Mészáros (2008, p. 55), é preciso haver reordenamento
da política da educação, no sentido de “reivindicar uma educação plena para
toda a vida, para que seja possível colocar em perspectiva a sua parte formal,
a fim de instituir, também aí, uma reforma radical”. Esse reordenamento, por
131 sua vez, só se dará se as formas consolidadas do capital forem desafiadas;
superando o conformismo e questionando o status quo que ainda prevalece
nas políticas educacionais.
PAULO ROBERTO FÉLIX DOS SANTOS EVERTON MELO DA SILVA LARYSSA GABRIELLA GONÇALVES DOS SANTOS

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133
SERVIÇO SOCIAL E EDUCAÇÃO
elementos para o debate sobre o exercício
profissional de assistente social1

Ingredi Palmieri Oliveira2

INTRODUÇÃO

A educação, para além da sua relação com a esfera da reprodução


social, com repasse de concepções, valores, comportamentos, possui vin-
culação com a esfera da produção, ao qualificar a mão de obra e produzir
conhecimentos que subsidiam o desenvolvimento da ciência e da tecnolo-
gia, na condição de fatores de produção. Por isso, a educação se insere no
campo de disputas entre as classes.
Entendida como direito social, a educação é possibilidade de espaço
para atuação do assistente social. As expressões da questão social, objeto
de intervenção do Serviço Social e que se encontram também no espaço
escolar, estão cada vez mais recorrentes nas situações de violência, trabalho
infantil, discriminação, gravidez na adolescência, entre outros. Essas ques-
tões interferem nos processos de ensino e aprendizagem, e a figura do assis-
tente social se concretiza como o profissional qualificado na formulação de
respostas a essas demandas.
Além disso, como profissional que contribui na viabilização de di-
reitos, o assistente social também pode colaborar na efetivação de alguns
princípios contidos na Lei de Diretrizes e Bases da Educação de 1996 – LDB,
como a “Igualdade de condições para o acesso e permanência na escola”.

1 O presente artigo tem como base a dissertação de mestrado intitulada: “O exercício profissional
do assistente social na política de educação em Aracaju/SE: um estudo de demandas e respostas
134 socioprofissionais”, apresentada em 2014 ao Programa de Pós-Graduação em Serviço Social e
Política Social da Universidade Federal de Sergipe.
2 Assistente Social do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Sergipe – IFS (cam-
pus Aracaju); Mestre em Serviço Social pela Universidade Federal de Sergipe; Doutoranda em
Serviço Social/UFRJ.
PAULO ROBERTO FÉLIX DOS SANTOS EVERTON MELO DA SILVA LARYSSA GABRIELLA GONÇALVES DOS SANTOS

Assim, a legislação e a organização da educação em nosso país sinalizam


legitimidade ao profissional de Serviço Social nessa área. Não obstante, ou-
tros fatores da própria dinâmica cotidiana demonstram a necessidade dessa
categoria profissional na educação.

SERVIÇO SOCIAL E EDUCAÇÃO


apontamentos para o debate

O Serviço Social, que se caracteriza como especialização do trabalho


coletivo, dispõe de conjunto de técnicas para execução de políticas e servi-
ços sociais, com objetivo de intervir nas expressões da questão social que
se colocam no cotidiano das classes subalternas para, assim, colaborar no
processo de reprodução das relações capitalistas, por meio de ações que in-
cidem sobre a reprodução tanto material quanto ideológica dessas classes.
Importante pontuar que a questão social, base para as ações profis-
sionais, advém da contradição fundamental da sociedade capitalista, qual
seja, a apropriação privada do que é produzido pelo conjunto da sociedade
através da mais-valia (trabalho não pago) retirada dos trabalhadores. Em
decorrência disso tem-se a emergência de contestação e luta por parte da
classe trabalhadora, expondo o conflito entre as classes sociais e exigindo
intervenções, que serão realizadas através do Estado, principalmente atra-
vés das políticas sociais. De acordo com Iamamoto (2000, p.54), a questão
social corresponde:

Ao conjunto das expressões das desigualdades sociais engen-


dradas na sociedade capitalista madura, impensáveis sem a
intermediação do Estado. Tem sua gênese no caráter coletivo
da produção, contraposto à apropriação privada da própria ati-
vidade humana – o trabalho -, das condições necessárias à sua
realização, assim como de seus frutos. É indissociável da emer-
gência do “trabalho livre”, que depende da venda de sua força de
trabalho como meio de satisfação de suas necessidades vitais.
Esse processo é denso de conformismos e rebeldias forjados
ante as desigualdades sociais, expressando a consciência e o
exercício da cidadania dos indivíduos sociais. Historicamente a
135 questão social tem a ver com a emergência da classe operária
e seu ingresso no cenário político, por meio das lutas desenca-
deadas em prol dos direitos atinentes ao trabalho, exigido o seu
reconhecimento como classe por parte do bloco do poder, e, em
especial, do Estado e do empresariado industrial.
PAULO ROBERTO FÉLIX DOS SANTOS EVERTON MELO DA SILVA LARYSSA GABRIELLA GONÇALVES DOS SANTOS

Verifica-se que a questão social é composta por aspectos de natu-


reza objetiva (produção socializada e apropriação privada da riqueza, com
exploração de uma classe sobre outra e extração de mais-valia) e subjetiva
(emergência dos trabalhadores enquanto classe no cenário político reivindi-
cando direitos), caracterização necessária para entender as respostas a ela
propostas pelo Estado.
Contudo, o reconhecimento do Estado e o tipo de respostas que ele
dá à questão social têm relação direta com a função que este assume em
dados momentos históricos. É no marco do capitalismo monopolista3 que o
Estado aciona as políticas sociais como forma de resposta à questão social,
coadunadas com particularidades sociais, econômicas, políticas e culturais
da configuração do Estado em cada estágio do capitalismo. Nesse sentido,
Mandel (1985, p.333-334) informa que:

Podemos classificar as principais funções do Estado da seguinte


forma: 1- criar as condições gerais de produção que não podem
ser asseguradas pelas atividades privadas dos membros da classe
dominante; 2- reprimir qualquer ameaça das classes dominadas ou
de frações particulares das classes dominantes ao modo de produ-
ção corrente através do Exército, da polícia, do sistema judiciário
e penitenciário; 3- integrar as classes dominadas, garantir que a
ideologia da sociedade continue sendo a da classe dominante e,
em consequência, que as classes exploradas aceitem sua própria
exploração sem o exercício direto da repressão contra elas [...].

Assim, o Estado exerce três funções que se complementam: uma


repressiva, outra integradora e uma terceira de suporte às condições gerais
de produção, sendo esta última caracterizada por se relacionar diretamente
com a produção, articulando infra e superestrutura.
Nesse sentido, as políticas sociais acabam assumindo papel de des-
taque, pois incidem sobre a reprodução da vida em sociedade, atuando em
aspectos políticos e econômicos presentes na questão social. Assim, cola-
boram com o consenso social e a legitimação da ordem estabelecida, tentan-
do atender as reivindicações dos trabalhadores, e contribuem para minimizar
e socializar os custos de manutenção e reprodução da força de trabalho, fun-
cionando como salário indireto e liberando a renda dos trabalhadores para o
136
3 A organização monopólica no capitalismo caracteriza-se pela tentativa de manter e aumentar
os lucros através do controle de mercados. Para isso, grandes empresas se fundem e ocorre o
redimensionamento do papel dos bancos, que se associam aos grandes industriais para formar o
capitalismo financeiro, elevando-se a centralização de capitais (NETTO; BRAZ, 2006).
PAULO ROBERTO FÉLIX DOS SANTOS EVERTON MELO DA SILVA LARYSSA GABRIELLA GONÇALVES DOS SANTOS

consumo, ao tempo em que fortalece a reprodução do capital, protegendo a


acumulação e liberando parcelas de capital para a valorização.
Ainda no âmbito da função do Estado de garantir as condições de
produção, é importante sinalizar a relação que este assume diante das cri-
ses, cujas características acabam incidindo sobre as bases de recomposi-
ção e legitimação da ordem, ao se valer do conceito de cidadania através da
implementação das políticas sociais, a serem acionadas para a reconstru-
ção de estratégias de hegemonia das classes dominantes, especialmente
na ocorrência crises, como registra Mandel (1985):

[...] a “administração das crises” é uma função tão vital do Estado


na fase tardia do capitalismo quanto sua responsabilidade por um
volume enorme de “condições gerais da produção” ou quanto seus
esforços para assegurar uma valorização mais rápida do capital
excedente. Economicamente falando, essa “administração das cri-
ses” inclui todo arsenal de políticas governamentais anticíclicas,
cujo objetivo é evitar, ou pelo menos adiar tanto quanto possível o
retorno de quedas bruscas e catastróficas como a de 1929/32. So-
cialmente falando, ela envolve esforço permanente para impedir a
crise cada vez mais grave das relações de produção capitalista por
meio de um ataque sistemático à consciência de classe do pro-
letariado. Assim, o Estado desenvolve uma vasta maquinaria de
manipulação ideológica para “integrar” o trabalhador à sociedade
capitalista tardia como consumidor “parceiro social” ou “cidadão”
[...] (MANDEL, 1985, p. 340-341, grifos originais).

Com as crises, observa-se reconfiguração das bases da acumulação


e alteração na relação entre o Estado, o capital e o trabalho. Consequente-
mente, ocorrem mudanças nas políticas sociais, por conta das estratégias
políticas e econômicas que devem ser colocadas em prática para sair da cri-
se e retomar a hegemonia e a acumulação. Outra consideração importante
sobre as políticas sociais, incorporando-a ao debate de caráter mais econô-
mico e aos elementos sinalizados até então, é que elas também constituem
mediação no circuito do valor. Em síntese:

Uma dimensão fundamental e orientadora da análise é a ideia de


que a produção é o núcleo central da vida social e é inseparável
137 do processo de reprodução, no qual se insere a política social –
seja como estimuladora da realização da mais valia socialmente
produzida, seja como reprodução da força de trabalho (econômi-
ca e política). Nesse sentido a teoria do valor-trabalho, cuja ope-
ração também é histórica e permeável à ação dos sujeitos – não
PAULO ROBERTO FÉLIX DOS SANTOS EVERTON MELO DA SILVA LARYSSA GABRIELLA GONÇALVES DOS SANTOS

é, portanto, uma espécie de respiração natural do capitalismo -,


constitui uma ferramenta importante para pensar a política so-
cial, já que esta é uma mediação no circuito do valor. A condição/
possibilidade de implementar políticas sociais relaciona-se aos
movimentos da taxa de lucro e extração/realização/apropriação
da mais-valia socialmente produzida, à relação capital/trabalho,
em sentido político e econômico, e que estão na origem dos gran-
des ciclos econômicos de estagnação e expansão do capitalismo
(BEHRING; BOSCHETTI, 2006, p.43-44).

Essas elucidações sobre o Estado e as políticas sociais são importan-


tes para pensar o Serviço Social, compreendendo-o como fruto de conjunto
de relações sociais que o determinam e particularizam e que estão em cons-
tante movimento. Assim, para desvendar a prática profissional e, consequen-
temente, suas demandas e respostas, é preciso compreender a totalidade
social, considerando desde as relações produtivas, fundadas no trabalho, até
as relações entre as classes e suas frações e destas com o Estado.
Considerando que o Serviço Social é fruto das relações de reprodu-
ção da sociedade, o processo de reprodução gesta e recria as lutas entre
as classes sociais, expressando a disputa pelo poder e pela hegemonia.
Assim, apresenta-se a totalidade da vida em movimento, onde se recriam
as condições de continuidade desse modelo de sociedade, bem como seus
antagonismos, revelando o aspecto contraditório das relações em sociedade
(IAMAMOTO; CARVALHO, 2006).
Incidir na esfera da reprodução social é função que a educação tam-
bém desenvolve na sociedade, visto que constrói e dissemina – através do
ensino – cultura, valores, comportamentos e modos de vida presentes em
todo o contexto social, ou seja, molda determinada ideia de homem e de
sociedade e acaba servindo à construção de ideologia para e de hegemonia
pela classe dominante. Porém, frente à contradição inerente ao movimento
do real, a educação configura-se, no capitalismo, como arena de disputa para
a tomada da direção dos rumos da sociedade.
A educação ocupa posição estratégica nas esferas da produção e
reprodução das relações sociais, ontem e hoje. Ela mantém estreita relação
com o setor produtivo, atendendo as exigências de qualificação da força de
trabalho e contribui na produção e a difusão do conhecimento, necessário
138 ao desenvolvimento científico e tecnológico, que impacta diretamente na
produção de riquezas.
Portanto, a educação diz respeito não somente à instituição escolar,
com suas diretrizes, princípios e organização, mas também aos diferentes mo-
PAULO ROBERTO FÉLIX DOS SANTOS EVERTON MELO DA SILVA LARYSSA GABRIELLA GONÇALVES DOS SANTOS

dos de ensino e de aprendizagem presentes nos mais diversos espaços, sejam


eles produtivos, culturais, políticos, religiosos, entre outros, fazendo, assim,
referência a todo o processo de reprodução de determinada sociedade.
Com o advento da Revolução Francesa, no final do século XVIII (1789),
a educação adquire concepção de direito do cidadão, passando inclusive de
estatal para nacional e a fazer parte da declaração dos direitos do homem e
do cidadão (PEREIRA, 2008). O objetivo dessa alteração se explica pela ne-
cessidade de imprimir uma cultura relacionada aos interesses da burguesia,
que, a partir desse marco histórico, se afirmava enquanto classe política que
dirigia o Estado. A educação se afirmava enquanto

possibilidade de ascensão social em decorrência do talento in-


dividual, constituindo-se como uma necessidade de todos [...].
O Estado, portanto [...], deveria oferecer a educação ao cidadão,
com a função de criar uma consciência nacional essencialmente
burguesa (Ibidem, p. 39).

Porém, a relação da educação com as relações sociais capitalistas,


na perspectiva de subordinação da primeira diante da segunda, acontecia
com tensões. Primeiramente, ao tempo em que o acesso à educação atendia
a necessidade de distinção entre o capitalismo e as formas servis do antigo
regime, tinha que se organizar para reproduzir a força de trabalho por meio
da disciplina e da subordinação às novas formas de produção (FRIGOTTO,
2010), ou seja, ela tinha que ajudar a romper as práticas do passado, mas
não criar elementos para ruptura dessa ordem.
Diante das polêmicas inerentes à consolidação do capitalismo e à
estruturação de sistemas nacionais de ensino, a organização da educação
acaba incorporando caráter dualista, constituindo-se, então, em educação
disciplinadora e adestradora para a classe trabalhadora e formativa para as
classes dirigentes (FRIGOTTO, 2010).
Enquanto, historicamente, para as classes dominantes, a educação
dos trabalhadores deve objetivar a habilitação técnica, social e ideológica
para o trabalho, subordinando sua função social de forma controlada para
atender as necessidades do capital, a perspectiva da classe trabalhadora é
de uma educação que proporcione o desenvolvimento de potencialidades e
139 apropriação do saber historicamente produzido pela humanidade, expresso
PAULO ROBERTO FÉLIX DOS SANTOS EVERTON MELO DA SILVA LARYSSA GABRIELLA GONÇALVES DOS SANTOS

num conjunto de conhecimentos e habilidades, atitudes e valores, para buscar


a melhor compreensão da realidade4.
Diante da necessidade constante de revolução das forças produtivas,
da qual o conhecimento toma parte, a escola tem o papel de fornecer conhe-
cimento geral articulado a um saber específico, na perspectiva do treinamen-
to para a esfera produtiva, estabelecendo, assim, vínculo indireto e mediato
com ela. Nesse movimento, o acesso à escola não se constitui enquanto obs-
táculo aos interesses do capital. Pelo contrário, a universalização do acesso
à escola denota aparente democratização da ordem burguesa, imprimindo à
educação funcionalidade política, econômica e ideológica. O que é negado
pela burguesia é o controle da organização escolar pelos trabalhadores e
a qualidade das escolas voltadas para eles (PEREIRA, 2008). Diante dessa
possibilidade, gestada pelo próprio capital e cobrada pelas forças sociais
a ele contrárias, verificam-se elementos para construção de alternativa de
sociedade e educação democráticas.
Como o modo de produção capitalista se assenta na constante revo-
lução das forças produtivas que reconfiguram sua base técnica, consideran-
do, inclusive, a relação trabalho-ciência, a aplicação tecnológica da ciência
no processo de produção passa a imprimir transformações nos meios de
produção e na organização do processo produtivo. O acesso e produção do
conhecimento que possibilitam a produção científica e sua aplicação técnica
se colocam no horizonte de disputas entre as classes. Para o capital,ela se
configura fator competitivo na concorrência intercapitalista, na medida em
que aumenta o trabalho morto (máquinas) e diminui o trabalho vivo, produ-
zindo mercadoria com menor custo. Para os trabalhadores, possibilita a am-
pliação da capacidade de satisfação das necessidades humanas, liberando
tempo livre para liberdade e fruição (FRIGOTTO, 2010).
Por isso, não se podem vincular as transformações no âmbito edu-
cacional somente às necessidades de acumulação do capital. Assim como
nas demais políticas sociais, elas têm a dimensão de luta dos trabalhadores.
A educação, enquanto reprodutora das relações sociais, expressa o espaço
de luta de classes contido nessas relações, veiculando ideologias dominan-
tes e contraditórias. Portanto, com referência na concepção gramsciana, a
educação se constitui enquanto aparelho privado de hegemonia, necessário
140 para a conquista de direção da sociedade civil e inserida na dimensão da
luta de classes (NEVES, 1991, apud PEREIRA, 2008).

4 Ibidem.
PAULO ROBERTO FÉLIX DOS SANTOS EVERTON MELO DA SILVA LARYSSA GABRIELLA GONÇALVES DOS SANTOS

TRAJETÓRIA DO EXERCÍCIO PROFISSIONAL


DO ASSISTENTE SOCIAL NA EDUCAÇÃO

Verifica-se na atualidade a emergência do debate sobre o exercício


profissional do assistente social na educação, contudo tanto o debate quanto
o exercício se colocam desde o surgimento da profissão no país,em meados
dos anos de 1930. Nessa época, a demanda do setor público, no caso espe-
cífico do Estado de São Paulo, era centralizada pelo Departamento de Serviço
Social do Estado, por algumas funções de Inspetores de Trabalho de mulheres
e crianças, no departamento Estadual do Trabalho, e pelo Juízo de Menores.
Alguns cargos foram decretados como privativos do assistente social no âm-
bito do Serviço Social de Menores, quais sejam, o de subdiretor de vigilância,
o de comissário de menores e o de monitor de educação. Além disso, os
cargos de assistente técnico, assistente auxiliar, elaborador de estatística
e pesquisador do Departamento de Serviço Social eram preferencialmente
preenchidos por assistentes sociais.
Também ganha destaque o campo de ação particular, como os Cen-
tros Familiares organizados pelo CEAS – Centro de Estudos de Ação Social,
disponibilizando serviços de plantão para atendimentos, visitas domiciliares,
bibliotecas infantis, reunião educativa para adultos, curso de formação fa-
miliar, restaurante para operários. As ações de educação familiar realizadas
pelo CEAS, que objetivavam “educar” os trabalhadores, requeriam dos profis-
sionais conhecimentos e ações no âmbito da “pedagogia do ensino popular e
trabalhos domésticos” (IAMAMOTO; CARVALHO, 2006, p.177). Nesse sentido,
sinalizava-se que a educação popular, entre outras áreas, constituía campo de
atuação para os primeiros assistentes sociais.
Segundo Pinheiro (1985, apud Witiuk, 2004), o governo do Estado de
Pernambuco, através do Ato Governamental N° 1.239, de 27 de novembro
de 1928, determinou a criação de visitadoras para as escolas, evidencian-
do, assim, a demanda estatal na área de educação, ainda no período das
denominadas protoformas. Essas visitadoras tinham por função “zelar pela
saúde dos escolares e visitar as famílias dos alunos a fim de conhecer o
meio em que eles viviam, e incentivar nos pais hábitos sadios” (PINHEIRO,
141
1985, p. 46, apud WITIUK, 2004, p. 23).
Amaro (2012, p.19) indica que há registros de serviço social educa-
cional no Estado do Rio Grande do Sul, em 1946, articulado ao programa
de assistência escolar com ações de “identificação de problemas sociais
PAULO ROBERTO FÉLIX DOS SANTOS EVERTON MELO DA SILVA LARYSSA GABRIELLA GONÇALVES DOS SANTOS

emergentes que repercutissem no aproveitamento do aluno, bem como à


promoção de ações que permitissem a ‘adaptação’ dos escolares ao seu
meio e o ‘equilíbrio’ social da comunidade escolar”. Eram intervenções di-
recionadas a atuar em situações de desvio e anormalidade, centradas em
ações junto aos estudantes e sua família.
Já em meados da década de 1950, identificam-se, como instituições
que ofereciam bolsas aos estudantes de Serviço Social, órgãos de Serviço So-
cial escolar vinculados a prefeituras municipais em São Paulo (IAMAMOTO;
CARVALHO, 2006). É o período em que o Serviço Social brasileiro tem como
influência a experiência norte-americana, fruto da aproximação político-eco-
nômica entre os dois países, principalmente depois da II Guerra Mundial. A
tônica da influência estadunidense no Serviço Social deu-se principalmente
na área instrumental, com a incorporação dos métodos de caso, grupo e co-
munidade, sendo que, na atuação profissional da educação, o método dos
casos individuais teve forte destaque. De acordo com Witiuk (2004, p. 26):

por meio do atendimento individual a pais, professores e alunos,


com a aplicação de inquéritos realizados prioritariamente no do-
micílio da criança, o Serviço Social procura detectar as causas da
dificuldade de aprendizagem bem como aproximar casa/escola,
ou escola/comunidade.

A característica do Serviço Social tradicional assegurava a ação edu-


cativa como fundamental para a mudança de comportamento e de valores,
sustentando, assim, a inserção desse profissional na escola, que tinha a
preocupação de promover o equilíbrio social, numa perspectiva integradora
e de ajustamento social (WITIUK, 2004).
Analisando a trajetória do Serviço Social e sua atuação na educação,
verifica-se que o desempenho de suas ações foi marcado pelo caráter con-
servador, característico da profissão até meados da década de 1970, aliado
ao perfil ajustador e disciplinador da própria educação. Particularizando a
atuação do assistente social nas ações de assistência estudantil na déca-
da de 1960, Santos (2009, p. 78) informa que a intervenção profissional:
“possuía uma orientação conservadora e funcionalista ao regime ditatorial
dos militares, objetivando a adequação, o ajustamento dos estudantes à
142 instituição escolar”.
Além disso, considera-se a relação entre o Serviço Social e a Educação
a partir das funções que ambos podem desempenhar na sociedade, ou seja,
contribuir com a reprodução das relações sociais através da legitimação da
PAULO ROBERTO FÉLIX DOS SANTOS EVERTON MELO DA SILVA LARYSSA GABRIELLA GONÇALVES DOS SANTOS

ordem estabelecida, destacando o papel de construção e implementação de


estratégias hegemônicas.
Todavia, há que se considerar também o perfil humanista que per-
passa essas áreas, no intuito de defender princípios e realizar ações que
possibilitam o questionamento da ordem vigente e a construção de bases
para uma sociedade que não se baseie na exploração, conectando as ações
dos diferentes profissionais. Segundo Souza (2008, n/p.):

A crença em uma sociedade com equidade e justiça social e a luta


profissional de construir com os sujeitos sociais um espaço onde
a cidadania seja a mola mestre nas relações e nas condutas hu-
manas é uma idealização que perpassa o mundo dos Assistentes
Sociais. Acredita-se que esta ideia também faça parte do imaginá-
rio dos educadores/professores que têm uma visão da Educação
como propulsora do respeito, crescimento e participação social de
homens e mulheres.

De acordo com Amaro (2012), os desdobramentos críticos da Re-


conceituação5 do Serviço Social interferem, mais expressivamente, a partir
dos anos de 1980, quando se problematiza e se atribui foco aos “aspectos
econômicos, sociopolíticos e culturais e nas contradições entre a escola e
a realidade social”, incorporando o diálogo e a participação da família na
escola tanto no processo de aprendizagem do aluno e da gestão da escola
quanto na capacitação sociopolítica da comunidade escolar.
Concomitantemente a esse processo de “virada crítica” do Serviço
Social brasileiro e da constituição de seu arcabouço jurídico-normativo, ex-
presso pelas legislações pertinentes ao exercício e à formação profissio-
nais, tem-se movimento de regulamentação da política de educação, após a
Constituição Federal de 1988, materializado pela LDB de 1996.
Nesse cenário, percebe-se que as lutas e ações profissionais que
tinham foco na educação recuperam o fôlego e recebem novos direciona-
mentos. A conjuntura anterior de recessão, crescimento da miséria, suca-
teamento da coisa pública e arrocho salarial, principalmente na educação,
fizeram com que os assistentes sociais que lá trabalhavam migrassem
para outras políticas em busca de melhores condições de trabalho e de
salário (WITIUK, 2004).
143

5 O Movimento de Reconceituação aglutinou vários movimentos profissionais em diversos países


da América Latina, com a perspectiva de questionamento do conservadorismo. A esse respeito, cf.
Ditadura e Serviço Social, de José Paulo Netto.
PAULO ROBERTO FÉLIX DOS SANTOS EVERTON MELO DA SILVA LARYSSA GABRIELLA GONÇALVES DOS SANTOS

Contudo, a perspectiva que embasa o projeto profissional crítico, an-


corada no acesso e garantia aos direitos sociais, identifica que a luta pelo
acesso à educação também diz respeito ao acesso à cultura e à democra-
cia, possibilitando a elaboração de cultura própria a diversos segmentos
sociais. Assim, o reconhecimento constitucional da educação enquanto di-
reito social “aponta para a contribuição que o Serviço Social pode dar nesta
política social” (MARTINS, 2007, p. 80), considerando o princípio de luta por
direitos sociais e de consolidação da cidadania estabelecidos no projeto
ético-político profissional.
Por isso, as entidades da categoria endossam a defesa da educação
pública, gratuita, laica e de qualidade feita pelos segmentos mais críticos
da educação e seus movimentos sociais, ao tempo em que faz o debate de
ampliação do serviço social escolar para o Serviço Social na educação, no
intuito de uma visão mais total de contribuição do exercício profissional com
o processo educativo.
Quanto ao aparato jurídico que regulamenta a educação na atualidade,
que compreende a LDB e outras legislações que a regulamentaram, podem-se
identificar três eixos que mantêm estreita relação com a ação profissional do
assistente social, a saber, o processo de democratização da educação; a pres-
tação de serviços socioassistenciais e socioeducativos e a articulação da
educação com as demais políticas sociais (MARTINS, 2007). Cabe também
ressaltar que as exigências legais de outros documentos, como a LOAS, o
ECA e o SUS, reforçaram a necessidade de ações que envolvessem o espaço
escolar, numa perspectiva de atuação para o assistente social.
Todavia, não se pode desconsiderar o processo de disputa aí presen-
te, no qual o neoliberalismo lança mão de várias tentativas para deslocar a
educação tanto para o âmbito do mercado quanto para principal estratégia
de sobrevivência para indivíduos e países nas relações de competitividade da
divisão internacional do trabalho, ou seja, como possibilidade de inserção de
países pobres no mundo globalizado, passando a ser prioridade no cenário
internacional e nacional (MARTINS, 2007).

Nessa ótica, a ampliação da atuação profissional no espaço da


escola converte-se em mais um dos desafios no sentido de valo-
rizá-lo como aparelho fundamental para a organização da cultura
144 no espectro dos direitos. São espaços institucionais contraditó-
rios e dinâmicos que podem ser direcionados de forma que per-
mitam a formação de sujeitos individuais e coletivos numa pers-
pectiva de protagonismo, emancipação e autonomia (WITIUK,
2004,p.140-141).
PAULO ROBERTO FÉLIX DOS SANTOS EVERTON MELO DA SILVA LARYSSA GABRIELLA GONÇALVES DOS SANTOS

Tratando das novas e antigas demandas para o Serviço Social na edu-


cação, Santos (2009) relaciona o analfabetismo, a exploração do trabalho
infantil, os sujeitos em situação de rua, a violência, a gravidez na adolescên-
cia, a drogadição e as formas de discriminação, além da precarização das
condições de trabalho dos educadores e do sucateamento da infraestrutura
escolar. Souza (2008, n.p.), por seu turno, informa que “casos de dificuldades
de aprendizagem, agressividade, evasão escolar e maus-tratos” são deman-
das frequentes ao assistente social na escola. Essas questões se desdobram
em ações de gestão e execução, as quais se desenvolvem numa dinâmica
complexa e burocrática dentro da política educacional. No âmbito da gestão,

sua capacidade interventiva pode ser materializada através da


ação interdisciplinar, junto à equipe de gestores, coordenadores,
assessores, consultores e demais profissionais; da intersetoria-
lidade, por meio da proposição e da sua capacidade de articula-
ção entre os órgãos, setores e serviços do governo, da sociedade
civil, ou até mesmo do setor privado, se considerar necessário;
da contribuição do seu conhecimento teórico-metodológico e
técnico-operativo; e principalmente, do seu poder de convenci-
mento e argumentação [...].
Na esfera do gerenciamento, pode contribuir na mobilização de
informações, seja através do diagnóstico, de caracterizações para
subsidiar construções de ações; promoção de atividades que de-
batam as expressões da “questão social” na educação; acompa-
nhamento e monitoramento e avaliação dos programas sociais
educacionais para ter um retorno do trabalho executado; contribuir
na formulação de ações que considerem a dinâmica das relações
sociais e a realidade do usuário (SANTOS, 2009, p. 61-62).

No seio dessas contradições, a atuação do assistente social na edu-


cação contemporânea é requisitada a responder demandas de acesso e
permanência, a partir das mediações de programas governamentais, num
processo contraditório entre a democratização e a qualidade da educação,
o qual, ao mesmo tempo em que resulta da luta em defesa da universaliza-
ção do acesso, se subordina à agenda e aos diagnósticos dos organismos
multilaterais sintonizados com o capital para a formação e qualificação da
força de trabalho (CFESS, s.d.). Além da demanda por acesso e permanência,
145
também se colocam aquelas demandas vinculadas à garantia da qualidade
na educação e à consolidação da gestão democrática6.

6 Ibid.
PAULO ROBERTO FÉLIX DOS SANTOS EVERTON MELO DA SILVA LARYSSA GABRIELLA GONÇALVES DOS SANTOS

Ainda com base no documento do CFESS “Subsídios para a atuação


do assistente social na política de educação”, são expostas algumas diretri-
zes sobre os eixos de atuação expostos no parágrafo anterior. No que se re-
fere ao eixo “acesso e permanência”, reconhece-se sua posição estratégica,
mas o potencial e o alcance do trabalho profissional na educação não podem
ser por eles limitados e esgotados, ampliando, assim, a ação centrada no
público estudantil e nas abordagens individuais para a atuação com fami-
liares, professores, demais servidores, gestores, profissionais e redes das
demais políticas sociais, instâncias de controle social e movimentos sociais,
trazendo à tona o caráter administrativo e organizacional, de investigação,
articulação, formação e capacitação profissional (CFESS, 2013).
No caso da dimensão que trata da “qualidade da educação”, ocorre
a problematização de qual noção de qualidade deve ser defendida, uma vez
que a qualidade propagada deve pautar-se em uma educação que contribua
para a emancipação humana com a apropriação, pela classe trabalhadora, do
acervo cultural, científico e tecnológico produzido pela humanidade, desen-
volvendo capacidades intelectuais e manuais que subsidiem a construção
de novas formas de produção e de distribuição. Isso requer das profissionais
ações de execução, orientação, acompanhamento, investigação e socializa-
ção, além de atividades interdisciplinares, interinstitucionais e intersetoriais,
visto que a qualidade não se alcança com a ação de um profissional apenas,
mas sim por meio de construção coletiva7.
Quanto às ações para “garantia da gestão democrática na educa-
ção”, elas afirmam os pressupostos éticos e políticos de projeto profissio-
nal, que compreendem o significado da educação no bojo das lutas sociais,
ou seja, nos processos de luta pela democracia na sociedade. Para isso,
faz-se necessária intervenção coletiva junto aos movimentos sociais, com
maior expressão nas ações de educação popular do que em estabelecimen-
tos formais de educação. Além disso, é importante a inserção em espaços
democráticos de controle social e construção de estratégias de participa-
ção dos estudantes, familiares, professores e demais trabalhadores em
conferências e conselhos, com ações voltadas para a discussão e modifica-
ção da composição e funcionamento dessas instâncias.
Para a efetivação desses eixos, o profissional também deve conso-
146 lidar uma dimensão pedagógico-interpretativa e socializadora de informa-
ções e conhecimentos sobre direitos sociais e humanos, políticas sociais,

7 Ibid.
PAULO ROBERTO FÉLIX DOS SANTOS EVERTON MELO DA SILVA LARYSSA GABRIELLA GONÇALVES DOS SANTOS

redes de serviço e legislação social. Assim, a possibilidade de viabilizar


direitos no âmbito da educação pode contribuir para a formação de um su-
jeito conhecedor de seus direitos e que se reconheça no processo de socia-
lização, tornando-o cada vez mais autônomo em suas decisões e escolhas
e na busca da emancipação.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Frente ao exposto, verificou-se que as ações historicamente desen-


volvidas pelo assistente social na educação, como trabalho com as famílias
e assistência ao estudante, foram ampliadas, incorporando a complexidade
da realidade educacional e a reconfiguração das políticas sociais na atua-
lidade. Isso vem expandindo seu perfil tanto educativo e político quanto de
gestão. Segundo Souza (2008, n.p.), o assistente social na educação:

[...] deve estar habilitado para desenvolver estratégias de atuação


não apenas a determinados perfis de educandos (carentes, desas-
sistidos) e suas famílias, mas, também, contribuindo com a for-
mação social dos educadores, na elaboração e operacionalização
de ações conjuntas do Projeto Político-Pedagógico, decifrando a
realidade social onde a escola se insere [...].

Verificou-se ainda que a marca as ações da categoria para a política


educacional na atualidade, embasada no seu projeto ético-político, é a objeti-
vação de compromisso profissional com a efetivação e a qualidade das políti-
cas sociais na ótica da luta pela cidadania e efetivação de direitos, para além
de mais um espaço de inserção do assistente social no mercado de trabalho.

Um aspecto preponderante para o fortalecimento desse espaço


ocupacional foi a reconstrução do sentido teórico-prático das po-
líticas sociais, como lócus privilegiado da ação profissional. As
discussões dentro da categoria têm se dado no sentido de pen-
sar a inserção do Assistente Social nesse espaço não como uma
especulação sobre a possibilidade de ampliação do mercado de
trabalho, mas como uma a objetivação do compromisso político-
147 -profissional em relação às estratégias de luta pela construção
histórica da cidadania e da defesa e ampliação de direitos sociais
no processo de democratização das relações, tendo como subs-
trato o projeto ético-político da categoria organicamente vinculado
PAULO ROBERTO FÉLIX DOS SANTOS EVERTON MELO DA SILVA LARYSSA GABRIELLA GONÇALVES DOS SANTOS

a uma projeto societário voltado à construção de uma nova so-


ciedade em articulação com os movimentos sociais e categorias
profissionais que partilham dos mesmos princípios, capitaneados
pelo conjunto CFESS/CRESS. (WITIUK, 2004, p.143-144).

Contudo, não se pode perder de vista que a política educacional brasi-


leira acompanha a mesma lógica das demais políticas sociais: reestruturada
para responder aos interesses de ampliação da mercantilização da vida so-
cial, distante cada vez mais das demandas oriundas de seus usuários, sendo
essa a realidade de atuação para os trabalhadores da educação, entre eles
o assistente social.

REFERÊNCIAS

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Florianópolis: UFSC, 2012.
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assistentes sociais na política de educação. Série: Trabalho e projeto
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PAULO ROBERTO FÉLIX DOS SANTOS EVERTON MELO DA SILVA LARYSSA GABRIELLA GONÇALVES DOS SANTOS

MOTA, A. E. Cultura da crise e seguridade social: estudo sobre as tendências


da previdência e da assistência social brasileira nos anos 80 e 90. 3ª ed. São
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do Rio Grande do Norte, Rio Grande do Norte.
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escola. 2004. 313f. Tese. Programa de Pós-Graduação em Serviço Social,
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo.

149
SERVIÇO SOCIAL E EXERCÍCIO
PROFISSIONAL NOS ANOS 1990
notas sobre a noção de competência
na Lei de Regulamentação da Profissão

Laryssa Gabriella Gonçalves dos Santos1


Maria Lúcia Machado Aranha2

INTRODUÇÃO

O Serviço Social avançou historicamente nas suas bases teóricas


e metodológicas, consolidando-se enquanto profissão situada na divisão
sócio-técnica do trabalho. Nos 1990, a profissão foi novamente desafiada a
repensar sobre a formação e o exercício profissional, no âmbito da conjun-
tura neoliberal se alastrando no cenário brasileiro. Contrariamente a esse
palco adverso, o Serviço Social inova no seu aparato legal com o Código de
Ética de 1993; a Lei de Regulamentação da profissão nº 8.662/1993; a apro-
vação, em 1996, das Diretrizes Gerais para o curso de Serviço Social, pela
Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social (ABEPSS); e
a Política Nacional de Estágio (PNE), em 2010.
O foco aqui recai na Lei de Regulamentação da profissão, mais preci-
samente, nas competências profissionais. O objetivo é verificar como essas
competências são situadas a partir da noção de competência apropriada
pelo capitalismo em sua fase contemporânea.
O texto está estruturado em duas seções, além dessa introdução e
das considerações finais: a primeira trata da conjuntura dos anos 1990, para

1 Professora Substituta do Departamento de Serviço Social da Universidade Federal de Sergipe;


150 Mestra em Serviço Social pela Universidade Federal de Sergipe; Membro do Grupo de Pesquisa e
Estudos Marxista.
2 Professora Titular do Departamento de Serviço Social da Universidade Federal de Sergipe; Mes-
tra e Doutora em Educação pela Universidade Metodista de Piracicaba; Bolsista do Programa de
Educação Tutorial/MEC.
PAULO ROBERTO FÉLIX DOS SANTOS EVERTON MELO DA SILVA LARYSSA GABRIELLA GONÇALVES DOS SANTOS

situar a noção de competência a partir das determinações do capitalismo


pós-crise da década de 1970; a segunda aborda o desenvolvimento do Serviço
Social, sua Lei de Regulamentação e a necessidade de aprofundamento da
noção de competência no interior da profissão.

A CONJUNTURA DOS ANOS 1990


E A NOÇÃO DE COMPETÊNCIA

A década de 1990 se configura como importante marco histórico


na trajetória do Serviço Social, especialmente pelo fortalecimento do seu
projeto profissional, materializado pelas conquistas no aparato legal. Essas
conquistas foram alcançadas em virtude da luta da categoria, articulada
ao contexto sócio-histórico. Nessa perspectiva, é preciso compreender o
desenvolvimento da profissão vinculado às transformações societárias,
permeadas por interesses conflitantes das classes sociais, no quadro do
capitalismo monopolista.

Sabemos que a institucionalização do Serviço Social como profis-


são na sociedade capitalista se explica no contexto contraditório
de um conjunto de processos sociais, políticos e econômicos que
caracterizam as relações entre as classes sociais na consolida-
ção do capitalismo monopolista. Assim, a institucionalização da
profissão de uma forma geral, nos países industrializados, está
associada à progressiva intervenção do Estado nos processos de
regulação social (YAZBEK, 2009, p. 129).

Nesse processo, o assistente social foi requisitado para atuar no


enfrentamento das expressões da questão social3. A institucionalização
do Serviço Social no Brasil se particulariza como um dos instrumentos do
Estado e do empresariado, com o apoio da Igreja Católica, para operar na

151 3 “A questão social não é senão expressões do processo de formação e desenvolvimento da classe
operária e de seu ingresso no cenário político da sociedade, exigindo seu reconhecimento como
classe por parte do empresariado e do Estado. É a manifestação, no cotidiano da vida social, da
contradição entre o proletariado e a burguesia, a qual passa a exigir outros tipos de intervenção,
mais além da caridade e repressão.” (IAMAMOTO; CARVALHO, 2003, p. 74).
PAULO ROBERTO FÉLIX DOS SANTOS EVERTON MELO DA SILVA LARYSSA GABRIELLA GONÇALVES DOS SANTOS

regulação da questão social4 no cenário da década de 19305. (IAMAMOTO;


CARVALHO 2003; YAZBEK, 2009). As ações dos assistentes sociais, de
cunho assistencialista, eram orientadas pela doutrina social da Igreja Católi-
ca, fundamentada no neotomismo6.
Na década de 1940, o Estado passa a interferir nas relações sociais,
desempenhando o papel de regulador, tanto no processo de acumulação
capitalista quanto no atendimento de necessidades dos trabalhadores.

É dessa forma e objetivando sua própria legitimação que


o Estado brasileiro incorpora parte das reivindicações dos
trabalhadores, pelo reconhecimento legal de sua cidadania
através de leis sindicais, sociais e trabalhistas, o que, ao lado
das grandes instituições assistenciais, abre para o emergente
Serviço Social brasileiro um mercado de trabalho, que amplia
suas possibilidades de intervenção mais além dos trabalhos de
ação social até então implementados no âmbito privado, sob o
patrocínio do bloco católico. A profissão amplia sua área de ação,
alarga as bases sociais de seu processo de formação, assume
um lugar na execução das políticas sociais emanadas do Estado
e, a partir desse momento, tem seu desenvolvimento relacionado
com a complexidade dos aparelhos estatais na operacionalização
de Políticas Sociais (YAZBEK, 2009, p. 132).

O Estado foi ampliando o campo de atuação do assistente social,


exigindo cada vez mais novas posturas profissionais. Com o desenvolvi-
mento do Serviço Social, os assistentes sociais passaram a questionar
essas posturas frente às respostas que o Estado requisitava. No final dos
anos 1960, foram discutidas as abordagens teóricas e os procedimentos
operacionais do tradicionalismo profissional. Nesse sentido, “[...] o debate
no Serviço Social foi polarizado por um duplo e contraditório movimento: o
mais representativo foi o processo de ruptura teórica e política com o lastro
conservador de suas origens [...]” (IAMAMOTO, 2009, p. 21).

4 “Cabe ainda assinalar que, nesse momento, a ‘questão social’ é vista a partir do pensamento
social da Igreja, como questão moral, como um conjunto de problemas sob a responsabilidade
individual dos sujeitos que os vivenciam embora situados dentro de relações capitalistas. Trata‐se
de um enfoque conservador, individualista, psicologizante e moralizador da questão, que necessita
para seu enfrentamento de uma pedagogia psicossocial, que encontrará no Serviço Social efetivas
152 possibilidades de desenvolvimento.” (YAZBEK, 2009, p. 131).
5 Para adensar o debate sobre o contexto de 1930 e a institucionalização do Serviço Social, ver
Iamamoto e Carvalho (2003).
6 A filosofia neotomista tem como fundamento as leis divinas. Deus é o princípio de tudo.
PAULO ROBERTO FÉLIX DOS SANTOS EVERTON MELO DA SILVA LARYSSA GABRIELLA GONÇALVES DOS SANTOS

O questionamento das bases conservadoras da profissão estava ar-


ticulado à conjuntura internacional, caracterizada pelos baixos padrões de
lucratividade. Em decorrência da crise capitalista no final dos anos 1960 e
início de 1970 houve a desaceleração da economia. Essa situação impactou
na mobilização da classe trabalhadora por melhores condições de vida e
de trabalho. Nesse processo, ocorreram diversas manifestações dos movi-
mentos sociais, a saber, mulheres, negros, jovens etc., que lutavam por seus
direitos. (BRAZ; NETTO, 2010). Esse breve cenário político foi palco para
insatisfações com a ordem burguesa e suas instituições, proporcionando
o terreno fértil para o desenvolvimento do Movimento de Reconceituação.

A reconceptualização é, sem qualquer dúvida, parte integrante do


processo internacional de erosão do Serviço Social “tradicional” e,
portanto, nesta medida, partilha de suas causalidades e caracte-
rísticas. Como tal, ela não pode ser pensada sem a referência ao
quadro global (econômico-social, político, cultural e estritamente
profissional) em que aquele se desenvolve. [...] Com efeito, a re-
conceptualização está intimamente vinculada ao circuito sociopo-
lítico latino-americano da década de sessenta: a questão que origi-
nalmente a comanda é a funcionalidade profissional na superação
do subdesenvolvimento (NETTO, 2004, p.146).

As inquietações do Movimento de Reconceituação possibilitaram ao


Serviço Social brasileiro redirecionar suas bases e avançar no aporte teórico
e político, que ganha fôlego nos anos da década de 1980, vinculado ao pro-
cesso de redemocratização brasileira.

Foi no contexto de ascensão dos movimentos políticos das classes


sociais, das lutas em torno da elaboração e aprovação da Carta
Constitucional de 1988 e da defesa do Estado de Direito, que a
categoria de assistentes sociais foi sendo socialmente questio-
nada pela prática política de diferentes segmentos da sociedade
civil. E não ficou a reboque desses acontecimentos, impulsionando
um processo de ruptura com o tradicionalismo profissional e seu
ideário conservador. Tal processo condiciona, fundamentalmente,
o horizonte de preocupações emergentes no âmbito do Serviço
Social, exigindo novas respostas profissionais, o que derivou em
significativas alterações nos campos do ensino, da pesquisa, da
153 regulamentação da profissão e da organização político corporativa
dos assistentes sociais (IAMAMOTO, 2009, p. 18).
PAULO ROBERTO FÉLIX DOS SANTOS EVERTON MELO DA SILVA LARYSSA GABRIELLA GONÇALVES DOS SANTOS

O movimento democrático foi decisivo para que a categoria dos assis-


tentes sociais refletisse sobre o viés conservador da profissão, e assumisse
direção ético-política explicitamente favorável à classe trabalhadora, passan-
do por processo de ruptura7 teórica e política com o conservadorismo, o que
permitiu pensar o Serviço Social sob outra perspectiva.

A década de oitenta consolidou, no plano ídeo-político, a ruptura


com o histórico conservadorismo do Serviço Social. Entendamo-
-nos: essa ruptura não significa que o conservadorismo (e com
ele, o reacionarismo) foi superado no interior da categoria pro-
fissional; significa, apenas, que – graças a esforços que vinham,
pelo menos, de finais dos anos setenta, e no rebatimento do mo-
vimento da sociedade brasileira – posicionamentos ideológicos
e políticos de natureza crítica e /ou contestadora em face da
ordem burguesa conquistaram legitimidade para se expressarem
abertamente. É correto afirmar-se que, ao final dos anos oitenta,
a categoria profissional refletia o largo espectro das tendências
ídeo-políticas que tencionam e animam a vida social brasileira.
Numa palavra, democratizou-se a relação no interior da catego-
ria e legitimou-se o direito à diferença ídeo-política. Nunca será
exagerada a significação dessa conquista, num corpo profissional
em que o doutrinarismo católico inseriu, originariamente, uma re-
finada e duradora intolerância (NETTO, 2005, p. 111).

A conquista do pensamento crítico propiciou à categoria avançar


nos fundamentos teóricos e metodológicos inspirados no marxismo. Em
princípio, essa aproximação se deu por meio de análises equivocadas da
teoria social8 de Marx. Posteriormente, grande parte da interlocução com
o pensamento marxiano ocorreu a partir da leitura dos escritos originais
ou de pensadores que se basearam na obra marxiana, contribuindo para a
construção de projeto profissional “[...] com fundamentos históricos e teó-
rico-metodológicos hauridos na tradição marxista, apoiados em valores e
princípios éticos radicalmente humanistas e nas particularidades da forma-
ção histórica do país” (IAMAMOTO, 2009, p. 18).

7 Essa ruptura foi caracterizada por Netto como intenção de ruptura, “esta possui como substrato
nuclear uma crítica sistemática ao desempenho ‘tradicional’ e aos suportes teóricos, metodológicos
154 e ideológicos. Com efeito, ela se manifesta a pretensão de romper quer com a herança teórico-me-
todológica do pensamento conservador (a tradição positivista), quer com os seus paradigmas de
intervenção social (o reformismo conservador)” (NETTO, 2004, p. 159).
8 Aproximação a um marxismo sem Marx, que se deu por meio de leituras de segunda mão, em que
a fonte original, os escritos marxianos, foi ignorada (NETTO, 2004).
PAULO ROBERTO FÉLIX DOS SANTOS EVERTON MELO DA SILVA LARYSSA GABRIELLA GONÇALVES DOS SANTOS

A aproximação à teoria crítica colaborou para o Serviço Social refletir


sobre a nova concepção da profissão, obtendo ganhos importantes no seu
aparato legal, com o Código de Ética/1993, a Lei de Regulamentação da pro-
fissão nº. 8.662/1993 e as Diretrizes Gerais para o curso de Serviço Social
da ABEPSS/1996. Contraditoriamente, se verifica na década de 1990 um ce-
nário de desregulamentação e flexibilização dos direitos sociais, provocado
pela crise e reestruturação capitalistas, sustentado pelo Estado neoliberal,
com desdobramentos negativos para o mundo do trabalho, incluindo-se aí
os assistentes sociais.
As novas formas de organização da produção e a condução do proces-
so de trabalho, ancoradas na flexibilidade e na polivalência, são medidas de
controle e disciplinamento dos trabalhadores para se adequarem ao novo está-
gio de acumulação. As transformações ocorridas na produção, articuladas às
inovações na base técnica microeletrônica, trouxeram novas estratégias para
cooptar o trabalhador, estimulando a “captura” de sua subjetividade9, novo
tipo de envolvimento do sujeito, em grande medida, estimulando-o a pensar
e agir em favor do capital. Nesse processo de inovações, o perfil do trabalha-
dor também se modifica, ele sai de uma condição predominante de executor
de movimentos recorrentes, com escassa mobilidade na organização da pro-
dução, e passa a assumir perfil marcadamente individualista, desenvolvendo
dimensões como criatividade, iniciativa, autonomia10 e raciocínio lógico, para
responder imediatamente aos transtornos que possam surgir no processo de
trabalho. Ao exercer o controle sobre o trabalhador, através dos processos de
subjetivação, transferem-se os problemas da produção para os indivíduos.
As empresas investem em práticas afetivas e emocionais que moti-
vam os sujeitos a se entregarem a suas necessidades. Ao contratarem novos
funcionários, por exemplo, utilizam avaliações psicológicas para identificar
os trabalhadores com “boas” atitudes comportamentais, capacidade de tra-
balhar em equipe, perfil de liderança etc. É preciso mobilizar todos os saberes

9 Conforme Alves, G., “a ‘captura’ da subjetividade do toyotismo é ‘qualitativamente diferente’ da


‘captura’ da subjetividade adotada pelo fordismo-taylorismo. O olhar do ‘inspetor-interior’ que pers-
cruta a subjetividade do trabalho vivo é mais envolvente e mais manipulatória porque penetra no
âmago das instâncias da pré-consciência e do inconsciente” (2011, p. 117).
10 “No período recente, a autonomia como princípio político, social e econômico perdeu sua dimen-
155 são coletiva, tendo sido recuperada por uma visão individualista. Transformou-se numa questão de
mentalidade, como uma maneira de ser e não como uma forma de contrapor-se à organização elitista
do poder na sociedade. Concebida não mais como um valor e como um referencial prático na luta
contra a dominação, a opressão e as hierarquias, transformou-se numa estratégia de sobrevivência
ou de adaptação” (CATTANI, 1997, p. 33).
PAULO ROBERTO FÉLIX DOS SANTOS EVERTON MELO DA SILVA LARYSSA GABRIELLA GONÇALVES DOS SANTOS

em prol da resolução dos problemas no âmbito da produção, o trabalhador


deve articular os saberes formais, tácitos, técnicos, habilidades, qualidades
pessoais e comunicativas para o bom desempenho na empresa. Assim, a
qualidade dos produtos a serem comercializados e o pleno desenvolvimento
da empresa estão nas mãos do trabalhador (ANTUNES, 1999). Nessas con-
dições, eles são pressionados a buscar incessantemente especializações e
capacitações, pois o discurso capitalista imperante anuncia a necessidade
de o profissional ser competente, isto é, ter competência para responder
efetivamente às demandas impostas pelo mercado. De acordo com Bruno
(1996), a nova reestruturação valoriza o aspecto intelectual do trabalhador,
deslocando a predominância do aspecto físico, antes valorizado no fordis-
mo, para o culto às capacidades cognitivas, alterando as técnicas de contro-
le e disciplina do trabalhador.
Nesse cenário, emerge,em meados da década de 1980, a noção de
competência11, vinculada à empresa. Zarifian foi um dos primeiros pes-
quisadores a formular o conceito de competência relacionado à empresa,
estimulando o debate sobre essa noção. Na França foram realizadas pes-
quisas em empresas de pequeno e médio porte, detectando o surgimento
da lógica das competências enquanto modelo de gestão de recursos hu-
manos. Com isso, o termo ganha notoriedade na sociologia francesa, a
partir do interesse de empresários e industriais preocupados com as novas
transformações na produção.
Para Zarifian (2001), o surgimento da noção de competência pres-
supõe três fenômenos determinantes, a saber, os eventos, a comunicação
e o serviço. Os eventos remetem ao que ocorre de maneira inesperada no
desenrolar da produção, perturbando o seu funcionamento normal, são
panes, ausências de materiais, mudanças imprevistas na programação da
fabricação etc. É em torno desses eventos que as intervenções humanas
serão recolocadas, obrigando os trabalhadores a se mobilizarem para res-
ponder a essas situações inusitadas. A comunicação, nesse caso, consa-
gra-se enquanto momento de interação entre os operadores, reafirmando a
necessidade de compartilhar informações através de grupos, com vistas a
garantir o sucesso da empresa. Por fim, o serviço, que se refere a toda ação
realizada em qualquer setor de atividade (industrial, agricultura e terciário)
156 que carece de prestação de serviços para os clientes ou usuários.

11 Essa discussão sobre a noção de competência foi apresentada em outro artigo.


PAULO ROBERTO FÉLIX DOS SANTOS EVERTON MELO DA SILVA LARYSSA GABRIELLA GONÇALVES DOS SANTOS

A partir dessa compreensão de Zarifian, a noção de competência


se dissemina relacionada à capacidade de ação em determinada situação,
mobilizando múltiplas capacidades cognitivas (pensamento, conhecimen-
to, percepção etc.), para solucionar determinado problema (DESAULNIE-
RES, 1998; RAMOS, 2002). Ropé e Tanguy (1997) se apropriaram da noção
de competência através da definição do Dicionário Larousse Comercial
(1930), que caracteriza a ação como dimensão essencial e inseparável da
noção de competência.

Nos assuntos comerciais e industriais, a competência é o con-


junto de conhecimentos, qualidades, capacidades e aptidões que
habilitam para a discussão, a consulta, a decisão de tudo o que
concerne seu ofício [...] Ela supõe conhecimentos fundamentados
[...] geralmente, considera-se que não há competência total se os
conhecimentos teóricos não forem acompanhados das qualida-
des e da capacidade que permitem executar as decisões suge-
ridas (DICIONÁRIO LAROUSE COMERCIAL, 1930, s/p apud ROPÉ;
TANGUY, 1997, p. 16).

Para essas autoras, a competência, compreendida dessa forma, é


noção que só pode ser analisada em situação concreta, num contexto de
transformações societárias que a fortaleceram.

[...] [A] competência é uma noção oriunda do discurso empresarial


[...]. Noção ainda bastante imprecisa, se comparada ao conceito de
qualificação, um dos conceitos-chaves da sociologia do trabalho
francesa desde os seus primórdios [...]. Noção marcada política e
ideologicamente por sua origem, e da qual está totalmente ausente
a ideia de relação social, que define o conceito de qualificação para
alguns autores (HIRATA, 1994, p. 132).

Na análise de Hirata, a noção de competência corresponde ao modelo


pós-taylorista de organização da produção, que requisita do trabalhador no-
vos atributos num contexto de flexibilidade e polivalência. No modelo flexí-
vel, o trabalhador é chamado a intervir e propor soluções para os problemas
do processo de trabalho, mobilizando suas capacidades em prol da empresa.
Nesse quadro, para o assistente social, emergiram novas requisições profis-
157
sionais, que respondessem às demandas do mercado de trabalho.
PAULO ROBERTO FÉLIX DOS SANTOS EVERTON MELO DA SILVA LARYSSA GABRIELLA GONÇALVES DOS SANTOS

As ações profissionais são determinadas pelas dinâmicas do mun-


do do trabalho, do Estado e da sociedade civil que impactam sobre
as formas de regulação do mercado de trabalho profissional, já
que o Estado, além de ser seu maior empregador, tem uma função
destacada nos processos de formulação e operacionalização das
políticas públicas (ALENCAR; ALMEIDA, 2015, p.165).

As novas configurações do mercado coadunaram com as estratégias


do neoliberalismo e implicaram mudanças nas formas de organização produ-
tiva e nas relações trabalhistas, dando lugar a informalização, precarização,
terceirização etc., processos que atingem a maioria da classe trabalhadora,
na qual se insere o assistente social. O neoliberalismo não se restringe a ques-
tões de natureza econômica, é “parte de uma redefinição global do campo
político-institucional e das relações sociais” (SOARES, 2002, p.12). A análise
dessa autora ainda destaca que o receituário neoliberal implica a segregação
entre público/privado, valorizando este último em convergência com a ótica
mercantil, de onde decorre a defesa da redução do papel do Estado, espe-
cialmente no que refere à garantia dos direitos sociais. “O neoliberalismo se
caracteriza por sustentar que não existe solução fora do modelo que propõe:
uma confiança cega na dinâmica do mercado. Os liberais sustentam que uma
crise é sempre consequência de comportamentos viciados derivados de um
Estado onipresente” (SALAMA, 1995, p. 178).
O neoliberalismo se disseminou por vários países, no entanto, é pre-
ciso considerar as particularidades de cada nação que o adotou. A lógica
neoliberal não se limitou aos países capitalistas centrais, chegou também
a países periféricos, em que foram estabelecidas medidas do Consenso de
Washington12. Esse pacto constitui conjunto de regras condicionadas e pa-
dronizadas, que foram aplicadas em alguns países. Assim, foram projetadas
reformas de cunho neoliberal orquestradas pelo capital com ênfase na ideia
de que o mercado deve ser livre, sem maiores interferências (CARINHATO,
2008; LAURELL, 1995). A ação do neoliberalismo na América Latina teve
como resultado a intensificação da pobreza, das desigualdades sociais, do
desemprego etc. As mazelas sociais são reflexo dessa política destrutiva
do capital. “A pobreza e os sofrimentos da massa têm um significado pro-
missor: na realidade significa que ‘as forças de mercado’ estão se movendo
158 sem interferências [...]” (BORÓN, 1995, p. 103). A questão do desemprego é

12 “Trata-se de uma reunião sem caráter deliberativo, realizada no ano de 1989, entre acadêmicos
e políticos norte-americanos e latino-americanos para buscar soluções que findassem com a estag-
nação reinante por mais de vinte anos na América Latina” (CARINHATO, 2008, p. 40).
PAULO ROBERTO FÉLIX DOS SANTOS EVERTON MELO DA SILVA LARYSSA GABRIELLA GONÇALVES DOS SANTOS

visível nesses países, o que significa estar o neoliberalismo colhendo seus


frutos, tornando a sociedade mais competitiva e excludente.
No Brasil, o neoliberalismo teve inserção retardatária, as primeiras
medidas foram registradas nos anos 1990.

Acerca desse “atraso”, é possível aduzir um fator de suma impor-


tância como forma de retardar o advento neoliberal em nosso
país. A ampliação da frente política de oposição ao regime mi-
litar no momento final da crise desse regime – acordos para a
eleição direta de Tancredo Neves e José Sarney. Tal estratégia
estreitava as possibilidades de política econômica. Além deste,
temos a crescente mobilização social durante os anos 70 e 80
representada no Novo Sindicalismo, no MST e posteriormente no
PT [...] (CARINHATO, 2008, p. 39).

No país, os primeiros sinais do neoliberalismo foram identificados


no governo Collor, posteriormente, intensificados na gestão de Fernando
Henrique Cardoso (FHC). Como ministro, FHC criou o Plano Real13, garan-
tindo saldo positivo que o fez vencer as eleições presidenciais, em 1994.
Na sua gestão, deu prosseguimento ao projeto de estabilização da econo-
mia. O governo adotou a proposta de desregulamentação da economia,
defendendo a tese da abolição da regulação estatal sobre os preços, as
relações nesse novo contexto foram mediadas pelo livre jogo do mercado.
O Estado, enquanto interlocutor econômico e produtivo, ocasionou
outra estratégia forte na gestão FHC, a privatização das empresas estatais.
Ideologicamente, esse mecanismo funcionou, pois se apoiou na ideia de
que o setor público era inútil e ineficiente, em contraposição ao privado,
que alavancava o crescimento econômico (SOARES, 2002). As estratégias
traçadas coadunaram com os ditames dos organismos internacionais e se
caracterizaram como contrarreforma do Estado, por estimular a competitivi-
dade e reduzir o papel do Estado em gastos sociais (BEHRING, 2008).
Nesse período, houve ataques à política social, especialmente a se-
guridade social (saúde, previdência e assistência), legitimada pela Cons-

13 “O Plano Real descende mais ou menos diretamente do Plano Cruzado. Os seus principais
teóricos – André Lara Rezende e Pérsio Arida – tiveram papel de destaque na formulação de
159 ambos. O modelo formulado por eles era o duma estabilização obtida mediante a indexação geral
e uniforme de todos os valores de modo a neutralizar os efeitos distributivos da inflação. Eles
supunham que, quando a inflação deixasse de beneficiar e de prejudicar uns ou outros, seria fácil
e indolor eliminá-la mediante a substituição do padrão de valor, ou seja, através duma simples
reforma monetária” (SINGER, 1999, p. 25).
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tituição Cidadã de 1988. A seguridade foi marco na garantia dos direitos


sociais, ao apresentar novo modelo de proteção social, calcado na ótica
universalista dos direitos. A partir de FHC, a seguridade não foi assegurada
nos termos constitucionais.

Assim, a tendência geral tem sido a de restrição e redução de di-


reitos, sob o argumento da crise fiscal do Estado, transformando
as políticas sociais – a depender da correlação de forças entre
as classes sociais e segmentos de classes e do grau de consoli-
dação da democracia e da política social nos países – em ações
pontuais e compensatórias direcionadas para os efeitos mais
perversos da crise. As possibilidades preventivas e até eventual-
mente redistributivas tornam-se mais limitadas, prevalecendo o já
referido trinômio articulado do ideário neoliberal para as políticas
sociais, qual seja: a privatização, a focalização e a descentra-
lização. (BEHRING; BOSCHETTI, 2010, p. 156, grifos originais).

Nesse cenário de contrarreforma se configura o estabelecimento de


Estado mínimo que cumpra algumas funções básicas, com destaque para
programas de renda mínima. “É claro, portanto, que objetivo real do capital
monopolista não é a ‘diminuição’ do Estado, mas a diminuição das funções
estatais coesivas, precisamente aquelas que respondem à satisfação dos
direitos sociais” (BRAZ; NETTO, 2010, p. 227). O receituário neoliberal proje-
tado por FHC atingiu todas as esferas da sociedade brasileira, sobretudo no
que refere ao social. “Para dizer de forma sintética: a ofensiva neoliberal tem
sido, no plano social, simétrica à barbarização da vida societária” (NETTO,
1995, p. 32). Com as orientações de cunho neoliberal, há intenso agrava-
mento das expressões da questão social, demandando novas atribuições do
assistente social, que, muitas vezes submetido a processos de terceirização
e precarização do trabalho, trabalha por contratos temporários, por projeto
ou por tarefa, com mais de um vínculo, em diferentes espaços ocupacionais
que operacionalizam políticas sociais (RAICHELIS, 2009).

A LEI DE REGULAMENTAÇÃO DA PROFISSÃO


E A INCORPORAÇÃO DA NOÇÃO DE COMPETÊNCIA
160

No que diz respeito à demanda, verifica-se que, no cenário brasileiro, o


Serviço Social consolidou sua intervenção junto às camadas subalternas da
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sociedade, interferindo em processos sociais complexos e de extrema vulne-


rabilidade. Dessa forma, o profissional atua nas políticas sociais, conforme
as determinações da sociedade capitalista, caracterizadas pelas relações
sociais contraditórias.
Na linha de análise de Iamamoto (2004), ao compreender a profissão
no conjunto das relações sociais e das condições históricas, o Serviço Social
se situa na divisão social e técnica do trabalho, como trabalhador assalaria-
do. Essa inserção, pela via do Estado e por instituições de cunho privado,so-
fre contradições de classe inerentes à sociedade capitalista, determinando a
condição de assalariamento do assistente social, como qualquer outro tra-
balhador, vendedor de sua força de trabalho. O vínculo com as instituições
estatais e privadas indica relação não liberal com o exercício profissional,
apesar de o Serviço Social ser reconhecido legalmente como profissão liberal
pelo Ministério do Trabalho, Portaria Nº 35 de 19/04/49.

Assim sendo, embora o Serviço Social tenha sido regulamentado


como profissão liberal no Brasil, o assistente social não tem se
configurado como profissional autônomo no exercício de suas
atividades, não dispondo do controle das condições materiais, or-
ganizacionais e técnicas para o desempenho de seu trabalho. No
entanto, isso não significa que a profissão não disponha de relativa
autonomia e de algumas características que estão presentes nas
profissões liberais como: a singularidade que se pode estabelecer
na relação com seus usuários; a presença de um Código de Ética,
orientando suas ações; o caráter não rotineiro de seu trabalho; a
possibilidade de apresentar propostas de intervenção a partir de
seus conhecimentos técnicos; e finalmente a Regulamentação
legal da profissão (Lei n. 8662 de 07/06/93, que dispõe sobre o
exercício profissional, suas competências, atribuições privativas e
fóruns que objetivam disciplinar e defender o exercício da profis-
são – o Conselho Federal de Serviço Social/CFESS e os Conselhos
Regionais de Serviço Social/CRESS). (YAZBEK, 2009, p. 11).

Com o desenvolvimento da categoria, foram fortalecidas as entidades


representativas do Serviço Social, a saber, Conselho Federal de Serviço Social
(CFESS), o Conselho Regional de Serviço Social (CRESS), Associação Brasilei-
ra de Ensino e Pesquisa em Serviço Social (ABEPSS) e a Executiva Nacional
161
dos Estudantes de Serviço Social (ENESSO). É com esse conjunto de entida-
des que a profissão tem reafirmado seu projeto. No âmbito do exercício pro-
fissional, consolidou-se a Lei de Regulamentação nº 8.662/1993, legitimando
a intervenção profissional. Com a Lei nº 8.662/1993, o assistente social tem
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subsídio legal para enfrentar as múltiplas tarefas que lhe são demandadas no
cotidiano institucional de trabalho, protegendo-o de possíveis desvios de fun-
ção. Anteriormente à Lei nº 8.662/1993, vigorava a Lei nº 3.252/57, que so-
freu mudanças, em razão das transformações societárias que influenciaram
no processo de renovação do Serviço Social, através da atualização da lei.

No caso da Lei de Regulamentação da Profissão, a deflagração


das discussões e iniciativas legais remontam ao ano de 1966,
por ocasião do I Encontro Nacional CFAS-CRAS14, que debruçou
sobre a normatização de exercício profissional. Constatou-se,
naquela época, a incompatibilidade entre a função fiscalizadora
dos Conselhos e a ausência do necessário respaldo jurídico na
Lei 3252/57 que regulamentou a profissão. (PARRA, 1996, p. 180).

A Lei de Regulamentação da profissão, nº 8662/1993, aborda em seu


texto novas questões relativas ao exercício profissional, reforçando o papel
dos órgãos fiscalizadores, CFESS e CRESS, “constituem em seu conjunto,
uma entidade com personalidade jurídica e forma federativa, com o objeti-
vo básico de disciplinar e defender o exercício da profissão de Assistente
Social em todo território nacional” (BRASIL, 1993, p. 35). Essa lei dispõe
sobre requisitos para o exercício da profissão, a saber, diploma em curso de
graduação em Serviço Social, oferecido por Instituição de Ensino Superior
(IES) existente no país; diploma de curso superior em Serviço Social, oferta-
do por instituição de ensino sediado em países estrangeiros; registro prévio
em Conselho Regional etc.
A Lei nº 8662/1993 inova no que diz respeito ao acréscimo de com-
petências e habilidades privativas. O Art. 4º enumera as competências pro-
fissionais que o assistente social deve aplicar em seu exercício profissional:

I- elaborar, implementar, executar e avaliar políticas sociais junto


a órgãos da administração pública direta ou indireta, empresas,
entidades e organizações populares; II- elaborar, coordenar, exe-
cutar e avaliar planos, programas e projetos que sejam do âmbito
de atuação do Serviço Social com participação da sociedade civil;
III- encaminhar providências, e prestar orientação social a indiví-
duos, grupos e população; IV- (VETADO); V- orientar indivíduos e
grupos de diferentes segmentos sociais no sentido de identificar
162
14 Com a aprovação da Lei 8662/93, as denominações Conselho Federal de Assistentes Sociais
(CFAS) e Conselho Regional de Assistentes Sociais (CRAS), foram substituídas por Conselho Federal
de Serviço Social (CFESS) e Conselho Regional de Serviço Social (CRESS).
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recursos e de fazer uso dos mesmos no atendimento e na defesa


de seus direitos; VI- planejar, organizar e administrar benefícios e
Serviços Sociais; VII- planejar, executar e avaliar pesquisas que
possam contribuir para a análise da realidade social e para sub-
sidiar ações profissionais; VIII- prestar assessoria e consultoria a
órgãos da administração pública direta e indireta, empresas pri-
vadas e outras entidades, com relação ás matérias relacionadas
no inciso II deste artigo; IX- prestar assessoria e apoio aos movi-
mentos sociais em matéria relacionada às políticas sociais, no
exercício e na defesa dos direitos civis, políticos e sociais da co-
letividade; X- planejamento organização e administração de Ser-
viços Sociais e de Unidade de Serviço Social; XI- realizar estudos
sócio-econômicos com os usuários para fins de benefícios e ser-
viços sociais junto a órgãos da administração pública e indireta,
empresas privadas e outras entidades. (BRASIL, 1993, p. 33-34).

Conforme Iamamoto (2009, p. 21), “as competências expressam ca-


pacidade para apreciar ou dar resolutividade a determinado assunto, não
sendo exclusivas de uma única especialidade profissional, pois são a ela
concernentes em função da capacitação dos sujeitos profissionais”. Essas
competências, estabelecidas na Lei de Regulamentação da profissão nº
8.662/1993, constituem objetivo a ser alcançado pelos assistentes sociais
em suas intervenções profissionais. A incorporação da noção de compe-
tência nessa Lei nº 8.662/199315 possibilitou que ela se disseminasse pela
categoria. A competência se tornou termo constantemente utilizado pelos

15 Além das competências, a Lei 8,662 dispõe sobre as atribuições privativas: “Art. 5º. Constituem
atribuições privativas do Assistente Social: I - coordenar, elaborar, executar, supervisionar e avaliar
estudos, pesquisas, planos, programas e projetos na área de Serviço Social; II - planejar, organizar
e administrar programas e projetos em Unidade de Serviço Social; III - assessoria e consultoria a
órgãos da administração pública direta e indireta, empresas privadas e outras entidades, em matéria
de Serviço Social; IV - realizar vistorias, perícias técnicas, laudos periciais, informações e pareceres
sobre matéria de Serviço Social; V- assumir no magistério de Serviço Social tanto ao nível de gradua-
ção como pós-graduação, disciplinas e funções que exijam conhecimentos próprios e adquiridos
em curso de formação regular; VI - treinamento, avaliação e supervisão direta de estagiários de
Serviço Social; VII - dirigir e coordenar Unidades de Ensino e Cursos de Serviço Social de graduação
e pós-graduação; VIII - dirigir e coordenar associações, núcleos, centros de estudos e de pesquisa
em Serviço Social; IX - elaborar provas, presidir e compor bancas de exames e comissões julgadoras
de concursos ou outras formas de seleção para Assistentes Sociais, ou onde sejam aferidos conhe-
cimentos inerentes ao Serviço Social; X -coordenar seminários, encontros, congressos e eventos
assemelhados sobre assuntos de Serviço Social; XI - fiscalizar o exercício profissional através dos
163 Conselhos Federal e Regionais; XII - dirigir serviços técnicos de Serviço Social em entidades públi-
cas ou privadas. XIII - ocupar cargos ou funções de direção e fiscalização da gestão financeira em
órgãos e entidades representativas da categoria profissional” (BRASIL, 1993, p. 34-35).
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profissionais de campo e pelos teóricos do Serviço Social, mesmo sem


adensamento teórico sobre ela. Na perspectiva de Iamamoto (2009), as
competências profissionais referidas na formação e no exercício profissio-
nal não constituem competências exigidas pela burocracia administrativa
das instituições. Nas palavras da autora:

Não é, pois, dessa competência que se trata, mas do seu reverso:


a competência crítica capaz de desvendar os fundamentos con-
servantistas e tecnocráticos do discurso da competência burocrá-
tica. O discurso competente é crítico quando vai à raiz e desvenda
a trama submersa dos conhecimentos que explica as estratégias
de ação. Essa crítica não é apenas mera recusa ou mera denúncia
do instituído, do dado. Supõe um diálogo íntimo com as fontes ins-
piradoras do conhecimento e com os pontos de vista das classes
por meio dos quais são construídos os discursos: suas bases his-
tóricas, a maneira de pensar e interpretar a vida social das classes
(ou segmentos de classe) que apresentam esse discurso como
dotado de universalidade, identificando novas lacunas e omissões
(IAMAMOTO, 2009, p. 17, grifos originais).

A importância dos argumentos de Iamamoto (2009) é inquestionável,


mas o que está em questão é o aprofundamento teórico dessa noção no
debate acadêmico-profissional do Serviço Social diante da incorporação ca-
pitalista dessa noção na contemporaneidade. A autora avança, ao explicitar
o que a competência crítica supõe:

[...] a) um diálogo crítico com a herança intelectual incorporada


pelo Serviço Social e nas autorrepresentações do profissional, cuja
porta de entrada para a profissão passa pela história da sociedade
e pela história do pensamento social na modernidade, construin-
do um diálogo fértil e rigoroso entre teoria e história; b) um re-
dimensionamento dos critérios da objetividade do conhecimento,
para além daqueles promulgados pela racionalidade da burocracia
e da organização, que privilegia sua conformidade com o movi-
mento da história e da cultura. A teoria afirma-se como expres-
são, no campo do pensamento, da processualidade do ser social,
apreendido nas suas mútuas relações e determinações, isto é,
como “concreto pensado” (MARX, 1974). Esse conhecimento se
constrói no contraponto permanente com a produção intelectual
164 herdada, incorporando-a criticamente e ultrapassando o conheci-
mento acumulado. Exige um profissional culturalmente versado
e politicamente atento ao tempo histórico; atento para decifrar
o não dito, os dilemas implícitos no ordenamento epidérmico do
discurso autorizado pelo poder; c) uma competência estratégica e
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técnica (ou técnico-política) que não reifica o saber fazer, subordi-


nando-o à direção do fazer. Os rumos e estratégias de ação são
estabelecidos a partir da elucidação das tendências presentes no
movimento da própria realidade, decifrando suas manifestações
particulares no campo sobre o qual incide a ação profissional.
Uma vez decifradas, essas tendências podem ser acionadas pela
vontade política dos sujeitos, de modo a extrair estratégias de
ação reconciliadas com a realidade objetiva, de maneira a preser-
var sua viabilidade, reduzindo assim a distância entre o desejável
e o possível (IAMAMOTO, 2009, p. 17, grifos originais).

A reflexão de Iamamoto (2009) é chave para o debate dos fundamen-


tos da noção de competência, haja vista a ausência e/ou insuficiência de
tratamento dessa noção no interior da profissão. É preciso entender os fun-
damentos que envolvem a noção de competência, hiperdimensionada com o
processo de reestruturação produtiva, e que exige dos profissionais capaci-
dades técnicas, cognitivas, emocionais, perceptivas etc. para corresponder
às demandas do mercado de trabalho. O assistente social, como trabalhador
assalariado, também é demandado quanto às “competências” exigidas pelo
mercado, razão pela qual se considera que esse debate tem relevância e
deve ser aprofundado. O fato de a Lei de Regulamentação nº 8.662/1993 es-
tabelecer as atribuições e competências profissionais pode não se traduzir
automaticamente em limitação a muitas imposições institucionais, face à
precariedade de muitos vínculos trabalhistas e à ameaça de desemprego. É
preciso considerar também o ângulo do usuário, que sofre constantemente
as pressões do mercado de trabalho para se enquadrar na lógica das com-
petências. Ao trabalhar com o público usuário, supõe-se que o profissional
tenha conhecimento qualificado a respeito da discussão das competências,
para intervir criticamente diante dessas demandas que lhe são imputadas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A apropriação dos fundamentos do debate das competências por


parte dos assistentes sociais, a partir das determinações do capitalismo
contemporâneo, se mostra relevante. O discurso competente, disseminado
165
pelo capital, invadiu diferentes esferas da sociedade, e foi incorporado majo-
ritariamente com caráter positivo.
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Embora a Lei de Regulamentação traduza avanço inquestionável


para a profissão, não pode, por si só, assegurar a apropriação crítica a res-
peito da noção de competência. A questão, portanto, não pode ser negli-
genciada ou subvalorizada. Ao contrário, precisa ser enfrentada em seus
próprios fundamentos e razão de ser no capitalismo atual. É em virtude da
linha de argumentação aqui desenvolvida, que se defende posicionamento
mais aprofundado do Serviço Social sobre a temática.

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ZARIFIAN, P. Objetivo Competência, por uma nova lógica. São Paulo:
Atlas, 2001.

168
DIVISÃO SEXUAL DO TRABALHO E
CONSTRUÇÃO DAS IDENTIDADES
E ESCOLHAS PROFISSIONAIS
DAS JUVENTUDES DO IFS 1

Ana Paula Leite Nascimento2


Maria Helena Santana Cruz3

INTRODUÇÃO

O artigo em tela se propõe realizar análise sobre a divisão sexual


do trabalho e seus rebatimentos na construção das identidades e escolhas
profissionais, trazendo à tona retrato das escolhas profissionais das juven-
tudes do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Sergipe
(IFS). Para tanto, trouxemos inicialmente discussão das implicações da

1 Esse artigo foi elaborado a partir de resultado de pesquisa bibliográfica e coleta de dados parciais
no âmbito do doutorado em Educação, vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Educação da
Universidade Federal de Sergipe, Brasil, como parte da fundamentação teórica e análise preliminar
da tese de doutoramento em fase de elaboração, sob a orientação da Professora Drª. Maria Helena
Santana Cruz. A versão do texto da tese, avaliada e aprovada no Exame de Qualificação, em 22 de
março de 2017, foi intitulada: “JUVENTUDES EM CENA: EDUCAÇÃO, TRABALHO E RELAÇÕES DE GÊ-
NERO NO COTIDIANO DO INSTITUTO FEDERAL DE EDUCAÇÃO, CIÊNCIA E TECNOLOGIA DE SERGIPE”.
Cabe assinalar que o aprofundamento da pesquisa e sistematização final da tese se dará ao longo
do processo de doutoramento, cujo prazo de defesa é março de 2019.
2 Assistente Social do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Sergipe; Mestra em
Serviço Social pela Universidade Federal de Sergipe; Doutoranda em Educação pela Universidade
Federal de Sergipe; Participa do Grupo de Pesquisa: “Educação, Formação, Processo de Trabalho e
Relações de Gênero” (UFS).
169 3 Professora Emérita da Universidade Federal de Sergipe; Professora dos Programas de Pós-
-Graduação em Educação e Serviço Social da Universidade Federal de Sergipe; Mestra e Doutora
em Educação pela Universidade Federal da Bahia; Pós-Doutora em Sociologia da Educação pela
Universidade Federal de Sergipe; Coordenadora do Grupo de Pesquisa do CNPq: “Educação, For-
mação, Processo de Trabalho e Relações de Gênero” (UFS).
PAULO ROBERTO FÉLIX DOS SANTOS EVERTON MELO DA SILVA LARYSSA GABRIELLA GONÇALVES DOS SANTOS

divisão sexual do trabalho no processo de construção das identidades e


escolhas profissionais. Em seguida, abordamos os papéis sociais sexua-
dos que perpassam as escolhas profissionais das juventudes do IFS, quan-
do apresentamos dados relativos ao quadro de ocupação das vagas dos
cursos técnicos do IFS nos níveis do Ensino Médio Integrado e do Ensino
Técnico Subsequente, com base no quantitativo de estudantes matricula-
dos/as no ano letivo 2015, cursado no ano de 2016.
Quanto aos aspectos metodológicos deste estudo, registramos que
o trabalho se caracteriza como pesquisa quali-quantitativa, do tipo estudo
de caso. Destacamos como predominante a dimensão qualitativa, embora
tenhamos a pretensão de contemplar, também, algumas das dimensões
quantitativas do objeto, visto que “o conjunto de dados quantitativos e quali-
tativos [...] não se opõem. Ao contrário, se complementam, pois a realidade
abrangida por eles interage dinamicamente, excluindo qualquer dicotomia”
(MINAYO, 1994, p. 22). Assim, o estudo se norteia pela combinação de ele-
mentos descritivos e explicativos.
Realizamos levantamento bibliográfico para fundamentar a discussão
teórica e coleta de dados relacionados ao quantitativo de estudantes ma-
triculados/as nos cursos do Ensino Médio Integrado e do Ensino Técnico
Subsequente do IFS, no ano letivo 2015, desagregados por sexo, com o fito
de subsidiar a análise a que nos propomos. A análise e a interpretação dos
dados foram realizadas a partir de categorias definidas durante o estudo, à
luz do referencial teórico construído no decorrer da investigação.
A pesquisa valeu-se do materialismo histórico dialético, que procura
captar as mediações que explicam as relações dos complexos com a tota-
lidade, para desvendar as contradições e determinações do real a partir de
fenômenos aparentes e através de processo de abstração, buscando chegar à
sua essência e reproduzindo a realidade pesquisada no plano do pensamento,
enquanto real pensado (KOSIK, 1976).

IMPLICAÇÕES DA DIVISÃO SEXUAL DO TRABALHO


NO PROCESSO DE CONSTRUÇÃO DAS IDENTIDADES
E ESCOLHAS PROFISSIONAIS
170

Considerando que, em muitas culturas ocidentais, os indivíduos come-


çam desde cedo a aprender alguns aspectos atinentes à questão de gênero,
PAULO ROBERTO FÉLIX DOS SANTOS EVERTON MELO DA SILVA LARYSSA GABRIELLA GONÇALVES DOS SANTOS

como o de que a feminilidade se relaciona à responsabilidade pelo lar e a pro-


le e que a masculinidade está relacionada à responsabilidade pelo sustento
do lar, é importante pontuarmos que, balizados por construções como essas,
emergem e se erguem estereótipos e preconceitos relativos a vários aspectos
da vida cotidiana, entre os quais merecem destaque neste estudo aqueles re-
lacionados ao trabalho, mais especificamente quanto ao tipo de trabalho que
deve ser realizado por homens e qual tipo de trabalho deve ser executado por
mulheres (FERREIRA, 2000; FEITOSA et al, 2013).
Construções sociais dessa natureza, ligadas aos tipos de trabalho
a serem desenvolvidos por homens e mulheres, estão situadas no bojo da
discussão dos papéis sociais sexuados que dão escopo à divisão sexual do
trabalho, culminando, por sua vez, em classificações de práticas mais valo-
rizadas daquilo que os homens realizam, cujo patamar é de “superioridade”,
e de práticas de menor valor ou sem nenhum valor daquilo que é realizado
pelas mulheres, buscando naturalizar a inferioridade que lhe é atribuída. A
respeito disso, Cruz (2014, p.19-20) alerta que no imaginário ocidental “as
práticas masculinas são mais valorizadas e hierarquizadas em relação às
femininas, o mundo privado vem sendo considerado de menor importância
frente à esfera pública [...]”.
Isso implica a necessidade de tratarmos aqui da divisão sexual do tra-
balho, que se estabelece como “[...] uma categoria de análise marxista que
procura explicitar as relações sociais de gênero e a divisão sexual presentes
nas relações de trabalho” (CRUZ, 2005, p.40). Em razão dos fundamentos
teórico-metodológicos que embasam este estudo, partimos da prerrogativa
de que o trabalho é o dado ontológico primário para compreender as dimen-
sões do ser social e da vida social, uma vez que é a partir da forma como o
homem intervém na natureza que se revelam as formas de sociabilidade, isto
é, as relações sociais (MARX; ENGELS, 2007; LUKÁCS, 1972; NETTO; BRAZ,
2006). Nesse sentido, o trabalho é concebido como

uma condição de existência do homem, independente de todas as


formas de sociedade; é uma necessidade natural eterna, que tem
a função de mediatizar o intercâmbio orgânico entre o homem e a
natureza, ou seja, a vida dos homens (LUKÁCS, 1972, p. 16).

171
Apesar de a divisão sexual do trabalho ter sido objeto de trabalhos
precursores em vários países, tem-se a França em destaque, como país em
que, no início dos anos 1970, surgiu onda de trabalhos que ligeiramente
PAULO ROBERTO FÉLIX DOS SANTOS EVERTON MELO DA SILVA LARYSSA GABRIELLA GONÇALVES DOS SANTOS

conformaram as bases teóricas do conceito de divisão sexual do trabalho,


fenômeno que se dá sob o impulso do movimento feminista, no âmbito da
tomada de consciência de que “opressão” específica incide na gênese do
movimento das mulheres. Com isso, torna-se coletivamente “evidente” o
entendimento de que grande massa de trabalho é efetuada gratuitamente
pelas mulheres, trabalho cuja dimensão é invisível e que é realizado não
para elas mesmas, mas para outros, e que é realizado sucessivamente em
nome da natureza, do amor e do dever materno (HIRATA; KERGOAT, 2007).
O movimento feminista traz à tona uma denúncia que se desdobra
numa dupla dimensão, a saber, as mulheres “estavam cheias” de fazer aqui-
lo que deveria ser chamado de “trabalho”, de deixar que tudo se passasse
como se a atribuição de determinadas tarefas às mulheres - somente a elas-
, fosse natural; e a questão do trabalho doméstico, que não era visto nem
mesmo reconhecido. Tem-se que em pouco tempo ocorrem as primeiras
análises desse tipo de trabalho no âmbito das ciências sociais, passando a
abordar o trabalho doméstico como atividade de trabalho assim como qual-
quer trabalho profissional. Logo, permitiu-se considerar “simultaneamente”
as atividades realizadas na esfera doméstica e na profissional, abrindo, por
sua vez, caminho para se pensar em termos de “divisão sexual do trabalho”.
Dessa feita, num primeiro momento a divisão sexual do trabalho apresen-
tava o estatuto de articulação dessas duas esferas; entretanto, essa noção
de articulação logo se mostrou insuficiente, levando a um segundo nível de
análise que consistia na conceitualização dessa relação social recorrente
entre o grupo dos homens e o das mulheres, o que na França foi chamado
de “relações sociais de sexo” (HIRATA; KERGOAT, 2007).
Registre-se que essa nova maneira de pensar o trabalho trouxe mui-
tas consequências. Destaque deve ser dado ao fato de que depois que “a
família”, em sua forma de entidade natural, biológica, se esfacelou tendo seu
ressurgimento prioritário como lugar de exercício de trabalho, implodiu então
a esfera do trabalho assalariado, pensado até aquela ocasião apenas em
torno do trabalho produtivo e da figura do trabalhador masculino, qualificado,
branco. Cabe salientar que esse duplo movimento impulsionou, na França e
em diversos países, floração de trabalhos que recorreram à abordagem da
divisão sexual do trabalho para repensar o trabalho e suas categorias, bem
172 como suas formas históricas e geográficas, e, ainda, a inter-relação de múl-
tiplas divisões do trabalho socialmente produzido (HIRATA; KERGOAT, 2007).
Neste estudo nos referenciamos no conceito de divisão sexual do tra-
balho como sendo “[...] a forma de divisão do trabalho social decorrente das
PAULO ROBERTO FÉLIX DOS SANTOS EVERTON MELO DA SILVA LARYSSA GABRIELLA GONÇALVES DOS SANTOS

relações sociais entre os sexos; mais do que isso, é um fator prioritário para
a sobrevivência da relação social entre os sexos” (HIRATA; KERGOAT, 2007,
p.599). Enfatizamos que “essa forma é modulada histórica e socialmente”4,
tendo como traços característicos a “designação prioritária dos homens à
esfera produtiva e das mulheres à esfera reprodutiva e, simultaneamente, a
apropriação pelos homens das funções com maior valor social adicionado
(políticos, religiosos, militares etc.)”5.
Hirata e Kergoat (2007) referem que praticamente todo mundo ou
quase todo mundo está de acordo com a definição conceitual que apresen-
tam sobre divisão sexual do trabalho; todavia, ponderam que, na perspectiva
de análise delas, era necessário ir mais longe no plano conceitual. Foi justa-
mente em virtude disso que propuseram distinguir claramente os princípios
da divisão sexual do trabalho e suas modalidades.

Essa forma particular da divisão social do trabalho tem dois prin-


cípios organizadores: o princípio de separação (existem trabalhos
de homens e trabalhos de mulheres) e o princípio hierárquico (um
trabalho de homem “vale” mais que um trabalho de mulher). Es-
ses princípios são válidos para todas as sociedades conhecidas,
no tempo e no espaço. Podem ser aplicados mediante um proces-
so específico de legitimação, a ideologia naturalista. Esta rebaixa
o gênero ao sexo biológico, reduz as práticas sociais a “papéis
sociais” sexuados que remetem ao destino natural da espécie. Se
os dois princípios (de separação e hierárquico) encontram-se em
todas as sociedades conhecidas e são legitimados pela ideologia
naturalista, isto não significa, no entanto, que a divisão sexual do
trabalho seja um dado imutável. Ao contrário, ela tem inclusive
uma incrível plasticidade: suas modalidades concretas variam
grandemente no tempo e no espaço, como demonstraram farta-
mente antropólogos e historiadores(as). O que é estável não são
as situações (que evoluem sempre), e sim a distância entre os
grupos de sexo (HIRATA; KERGOAT, 2007, p.599-600).

Cumpre salientar, portanto, que a divisão sexual do trabalho assume


formas conjunturais e históricas, além de particularidades territoriais, e que
se constrói como prática social, ora conservando tradições que ordenam ta-
refas masculinas e tarefas femininas na indústria, ora criando modalidades
da divisão sexual das tarefas (LOBO, 1991).
173

4 Ibid., p. 599.
5 Ibid., p. 599.
PAULO ROBERTO FÉLIX DOS SANTOS EVERTON MELO DA SILVA LARYSSA GABRIELLA GONÇALVES DOS SANTOS

Ressaltamos, ainda, que a subordinação de gênero, a assimetria nas


relações de trabalho masculinas e femininas tem reflexos de suas manifes-
tações não apenas na divisão de tarefas, mas nos critérios que determinam
a qualificação das tarefas, nos salários e na disciplina do trabalho. Dessa
forma, a divisão sexual do trabalho não se apresenta somente como conse-
quência da distribuição do trabalho por ramos ou setores de atividade, mas
também como princípio organizador da desigualdade no trabalho. (LOBO,
1991). Isso nos mostra que a segregação do feminino do mundo masculi-
no nas relações cotidianas da vida social é transposta para as relações no
ambiente de trabalho.
A segregação feminina do universo masculino está presente nas dife-
rentes especialidades e profissões, como pondera Chies (2010), e se acentua
por meio da divisão sexual do trabalho nas relações sociais estabelecidas
nos espaços ocupacionais para além da indicação do lugar de homens e mu-
lheres. Acerca desses elementos, referendamos os argumentos elencados
por Cruz (2005, p. 41):

o caráter da diferença atribuído às mulheres se situa especial-


mente no campo representacional e, por conseguinte, a divisão
sexual do trabalho é um processo que não se limita a indicar o
lugar de homens e mulheres nas estruturas ocupacionais, perfis
de qualificação e tipos de postos de trabalho. A qualificação é
uma construção social fortemente sexuada e o sistema de sexo/
gênero é uma dimensão fundamental do processo de construção
de categorias que estruturam a definição de postos de trabalho e
de perfis de qualificação e de competências a eles associados.

É importante pontuarmos que as escolhas profissionais perpassam


questões relacionadas às identidades profissionais, atravessadas pelas iden-
tidades de gênero. Chies (2010) chama a atenção para o fato de que, num
mesmo campo profissional, as identidades são diferentes entre os gêneros.
Ressalta ainda que essa realidade leva

a ‘abertura de outras portas’: se as identidades profissionais são


diferentes entre os gêneros, até mesmo em uma mesma profissão,
então poderíamos inferir que homens e mulheres apresentam pa-
174 péis sociais amplos, determinados e, de certa maneira, universais
na sociedade que, independente de qual campo de ação social ob-
servemos essa questão, esses serão os pontos de referência para
as relações de poder. Se a subordinação da mulher ao homem é
um ponto fixo na mentalidade de uma sociedade, independente
PAULO ROBERTO FÉLIX DOS SANTOS EVERTON MELO DA SILVA LARYSSA GABRIELLA GONÇALVES DOS SANTOS

de qual profissão que esses venham a se confrontar no campo


do trabalho, de médicos a funcionários de limpeza, a mulher, por
via de regra social, será menos valorizada nesse quadro, o que
inevitavelmente indica que homens e mulheres não podem ter a
mesma identidade mesmo que atuantes em uma mesma profis-
são. Pontos em comum nessa relação surgem, pois falamos de
uma mesma profissão, mas existem diferenciais marcados pela
questão de gênero (CHIES, 2010, p.509-510).

Precisamos assinalar que os papéis atribuídos aos indivíduos são


definidos de acordo com as expectativas relacionadas às qualidades e aos
comportamentos a eles apropriados em função de seu sexo. Isso implica
o fato de homens e mulheres serem avaliados cotidianamente através de
parâmetros oriundos de diversas naturezas. Aqui destacamos que os argu-
mentos utilizados na definição dos papéis, bem como nos parâmetros de
avaliação das escolhas profissionais, supõem justificativas para as diversas
atribuições consideradas socialmente adequadas a cada um dos sexos, a
exemplo dos perfis que são estabelecidos como necessários e específicos
ao desenvolvimento de atividades profissionais classificadas como mascu-
linas ou femininas (BELO, 2010; NOGUEIRA, 2001).

PAPÉIS SOCIAIS SEXUADOS


PERPASSANDO AS ESCOLHAS PROFISSIONAIS
DAS JUVENTUDES DO IFS

Como neste estudo damos ênfase às escolhas profissionais das juven-


tudes particularizadas no âmbito do IFS, é imperioso afirmar que o cotidiano
das juventudes é marcado pelas escolhas profissionais, por conseguinte, pe-
las relações e sentidos que os/as jovens estabelecem, constroem e atribuem
com/ao trabalho.
Na esteira da discussão das escolhas profissionais, vale ressaltar que
a escolha da área da qualificação e/ou da profissão tem influências que cer-
tamente perpassam questão de gênero, contexto que as juventudes do IFS
também vivenciam, já que a inserção nesse espaço educacional demanda
175 das juventudes escolha profissional, na medida em que fazem opção pelas
áreas dos cursos ofertados pelo IFS no âmbito da educação profissional.
Nesse ponto, corroboramos o pensamento de Santos, Canever e Frotta
(2011, p.348, grifos nossos):
PAULO ROBERTO FÉLIX DOS SANTOS EVERTON MELO DA SILVA LARYSSA GABRIELLA GONÇALVES DOS SANTOS

dentre os fatores que podem ser considerados influenciadores


dessa escolha [profissional], podemos citar o ambiente familiar, os
amigos, a situação social, a empregabilidade, a experiência pro-
fissional (se tiver) e a questão de gênero. Este último fator parece
bastante pertinente nas escolhas, visto que apesar de os cursos
de graduação [e de qualificação profissional] não apresentarem
mais exigências quanto ao gênero de seus futuros acadêmicos,
as mulheres ainda tendem a escolher profissões consideradas
femininas e os homens a escolher profissões que atendem à co-
munidade masculina.

Dada a premissa de que o trabalho é relação social que se impõe


como categoria fundante do ser social, concordamos com Sposito (2005,
p.226),quando assevera que “o trabalho também faz [as] juventude[s]”. Nos-
sa concordância se dá em virtude de partirmos do pressuposto de que o
trabalho se estabelece como elemento central na constituição identitária
dos indivíduos. Nessa direção, é imprescindível detalhar no presente estudo
as escolhas profissionais das juventudes através dos cursos ofertados pelo
IFS, levando em consideração a inserção de homens e mulheres nos cursos
em análise, de acordo com os dados que foram repassados.
Na Área de Controle e Processos Industriais, os homens têm repre-
sentação massiva com 85,53%, enquanto as mulheres totalizam apenas o
percentual de 14,47%. No curso de Eletrônica, 91,94% de homens, 342 (tre-
zentos e quarenta e dois) estudantes, contra 8,06% de mulheres, apenas 30
(trinta) estudantes; em Eletromecânica, 82,5% de homens, 576 (quinhentos
e setenta e seis) jovens, contra 17,5% de mulheres, apenas 122 (cento e
vinte e duas) jovens matriculadas; e em Eletrotécnica, 85,17% de homens,
643 (seiscentos e quarenta e três) estudantes, contra 14,83% de mulheres,
somente 112 (cento e doze) estudantes.
A Área de Gestão e negócios apresentou exclusivamente o curso de
Comércio com 50 estudantes matriculados/as, ocupado da seguinte forma:
42% de homens, com 21 (vinte e um) jovens, e, 58% de mulheres, com 29
(vinte e nove) jovens.
Na Área de Informação e Comunicação observamos que predomina a
presença de homens com o percentual de 63,41%, somando as mulheres de
36,59%. A ocupação nos cursos se deu da seguinte forma: Informática, 66,75
176 % de homens, 265 (duzentos e sessenta e cinco) matriculados, contra 33,25%
de mulheres, 132 (cento e trinta e duas) matriculadas; Manutenção e Suporte
em Informática, 56,91% de homens, 350 (trezentos e cinquenta) jovens, con-
tra 43,09% de mulheres, 265 (duzentas e sessenta e cinco) jovens; Rede de
PAULO ROBERTO FÉLIX DOS SANTOS EVERTON MELO DA SILVA LARYSSA GABRIELLA GONÇALVES DOS SANTOS

Computadores, 68,42% de homens, 364 (trezentos e sessenta e quatro) estu-


dantes, contra 31,58% de mulheres, 168 (cento e sessenta e oito) estudantes.
A Área de Infraestrutura foi ocupada com percentuais próximos, sen-
do os homens 48,92% e as mulheres 51,08%. O curso, dessa área, que apre-
sentou mais mulheres foi Edificações com 51,81% de mulheres, perfazendo
832 (oitocentas e trinta e duas) matriculadas, contra 48,19% de homens,
totalizando 774 (setecentos e setenta e quatro) matriculados; já o curso
de Agrimensura contabilizou maior percentual de homens, com 68,97%, 40
(quarenta) estudantes, contra 31,03% de mulheres, 18 (dezoito) estudantes.
A Área de Produção Alimentícia foi ocupada majoritariamente por
mulheres, perfazendo o total de 76,65%, contra 23,35% dos homens. A ocu-
pação ocorreu da seguinte forma: Agroindústria, 33,63% de homens, 75
(setenta e cinco) jovens, contra 66,37% de mulheres, 148 (cento e quarenta
e oito) jovens; Alimentos, 17,12% de homens, 63 (sessenta e três) matricu-
lados, contra 82,88% de mulheres, 305 (trezentas e cinco) matriculadas.
A Área de Produção Industrial expressa maior percentual de homens,
com 55,95%, contra 44,05% das mulheres. Observamos a seguinte ocupação
nos cursos: Petróleo e Gás, 69,46% de homens, 207 (duzentos e sete) matricu-
lados, contra 30,54% de mulheres, 91 (noventa e uma) matriculadas; Química,
45,43% de homens, 174 (cento e setenta e quatro) estudantes, contra 54,57%
de mulheres, 209 (duzentas e nove) estudantes.
Identificamos que na Área de Recursos Naturais a ocupação foi pro-
porcional com 50,37% de homens e 49,63% de mulheres. A distribuição nos
cursos se deu da seguinte forma: Agroecologia, 18,42% de homens, 7 (sete)
jovens, contra 81,58% de mulheres, 31 (trinta e uma) jovens; Agronegócio,
40,07% de homens, cujo total foi de (cento e quinze) matriculados, contra
59,93% de mulheres, perfazendo (cento e setenta e duas) matriculadas;
Agropecuária, 62,01% de homens, equivalente a 222 (duzentos e vinte e
dois) estudantes, contra 37,99% de mulheres, correspondente a (cento e
trinta e seis) estudantes.
A Área de Segurança teve apenas o curso Segurança do Trabalho.
Essa área concentrou maior percentual de mulheres, com 55,78%, somando
o total de (quatrocentas e vinte) matriculadas, contra 44,22% dos homens,
perfazendo (trezentos e trinta e três) matriculados.
177 A ocupação majoritária na Área de Turismo, Hospitalidade e Lazer foi
de mulheres, com percentual de 71,98%, contra somente 28,02% de homens.
Os cursos tiveram a seguinte ocupação: Guia de Turismo, 29,67% de homens,
(sessenta e dois) estudantes, contra 70,33% de mulheres, (cento e quarenta
PAULO ROBERTO FÉLIX DOS SANTOS EVERTON MELO DA SILVA LARYSSA GABRIELLA GONÇALVES DOS SANTOS

e sete) estudantes; Hospedagem, 25,38% de homens, 33 (trinta e três) matri-


culados, contra 74, 62% de mulheres, (noventa e sete) matriculadas.
Assim, notamos, a partir dos dados desagregados por sexo, que das
áreas6 que abrangem os cursos técnicos de nível Médio Integrado e Subse-
quente do IFS, as que mais concentram mulheres são Produção Alimentí-
cia, com 77%, somando 453 (quatrocentas e cinquenta e três) estudantes,
enquanto os homens contabilizam 23%, com o total de 138 (cento e trinta
e oito) estudantes; e Turismo, Hospitalidade e Lazer, com 72%, perfazendo
o total de 244 (duzentas e quarenta e quatro) mulheres, contra 28% de ho-
mens, correspondentes a 95 (noventa e cinco) estudantes. Salientamos que
essas áreas, em que as mulheres concentraram maiores percentuais que os
homens, refletem atividades do âmbito doméstico das relações sociais e de
acolhimento e cuidado tidas como próprias de mulheres, o que se propaga
na divisão sexual do trabalho.
Os homens predominam nas áreas de Controle e Processos Indus-
triais, com 85,5% (mil, quinhentos e sessenta e um) estudantes, contra 14,5%
de mulheres, equivalentes a 264 (duzentas e sessenta e quatro) estudantes;
e Informação e Comunicação, com 62,4% (novecentos e sessenta e quatro)
homens, contra 37,6% de mulheres, perfazendo a soma de (quinhentas e
sessenta e cinco) estudantes. Destacamos que as áreas cujos percentuais
maiores foram contabilizados nas ocupações por parte dos homens estão
relacionadas a atividades tidas como masculinos na divisão sexual do tra-
balho e que historicamente são espaços que vinham sendo ocupados he-
gemonicamente pelos homens, mas que vem contando com participação
crescente de mulheres, contribuindo assim para romper com a lógica sexista
no interior das atividades de trabalho e nas profissões.
Frente a esse retrato das escolhas profissionais das juventudes do IFS,
avaliamos ser relevante problematizarmos o processo de interiorização dos
papéis sociais sexuados nessas escolhas profissionais dos/as estudantes
que se inserem nas diferentes áreas dos cursos técnicos ofertados no IFS.
Nota-se que a mulher, nos arquétipos de identidade feminina, defini-
dos pela estrutura social, como filha, mãe e dona de casa, assume papéis
que a colocam no patamar de subordinação. Na casa dos pais subordina-se
ao pai; no casamento é subordinada ao marido; quando está na posição de
178 trabalhadora assalariada acumula duas ou mesmo três jornadas de trabalho,

6 Os cursos que o IFS oferta em sua estrutura curricular foram distribuídos por áreas de acordo
com a divisão estabelecida no Catálogo Nacional de Cursos Técnicos de 2016, disponibilizado pelo
Ministério da Educação (MEC). (BRASIL, 2016).
PAULO ROBERTO FÉLIX DOS SANTOS EVERTON MELO DA SILVA LARYSSA GABRIELLA GONÇALVES DOS SANTOS

pois, além das atividades profissionais, permanece como a principal res-


ponsável pelas atividades domésticas e cuidados com os filhos e demais
familiares (para as mulheres a vivência do trabalho no âmbito público im-
plica sempre a combinação das esferas atinentes ao espaço produtivo e a
família - ou espaço reprodutivo -, seja pela articulação ou pela superposição,
realidade que se dá tanto no meio urbano quanto no rural); recebe salário
menor ao do homem para a realização das mesmas tarefas; e dispõe de pou-
cas oportunidades para assumir cargos de chefia e/ou posição de comando
(CHIES, 2010; SAFFIOTI, 1987; HIRATA; KERGOAT, 2007; FEITOSA et al, 2013;
BRUSCHINI, 2007). Aqui devemos registrar que homens e mulheres podem
ser subordinados no âmbito do campo econômico pela exploração de sua
força de trabalho, contudo, não podemos deixar de enfatizar que a mulher é
subordinada nas duas dimensões: no “sistema de exploração” e também no
“sistema de dominação” (CHIES, 2010).
Chies (2010, p.510) demarca que “as profissões construídas histo-
ricamente como masculinas são mais valorizadas em comparação com o
resquício da gama de profissões consideradas femininas”. Isso se apresenta
como reflexo dos dois princípios organizadores do trabalho - princípio de se-
paração e princípio hierárquico - próprios da divisão sexual do trabalho, como
destacam Hirata e Kergoat (2007) em seus estudos, conforme já expusemos.
A interiorização da ideia do enquadramento a respeito das profissões tidas
como mais adequadas aos homens e às mulheres é um processo que “[...] se
dá desde a infância, inclusive no ambiente escolar, local onde é construída
uma diferenciação dos sexos calcada sobre um atributo de valor relacionado
à capacidade” (BELO, 2010, p.52), em que a capacidade do homem é tida
como superior à capacidade da mulher, reforçando a prerrogativa de que o
trabalho do homem vale mais que o trabalho da mulher (princípio hierárquico
do trabalho), além de também reforçar a classificação dos tipos de trabalho
específicos de homens e de mulheres (princípio de separação do trabalho).
Não obstante a interiorização dos papéis sociais sexuados ocorrer
de forma por vezes sutil no âmbito da escola e em outras esferas da vida
cotidiana, ainda assim acaba contribuindo “desde a infância para a elabora-
ção das profissões e atividades de trabalho em função do gênero”7. No caso
da escola, demarcamos que considerando “[...] um de seus objetivos [que
179 consiste em] trabalhar com a criança questões relativas ao universo social

7 Ibid., p.53.
PAULO ROBERTO FÉLIX DOS SANTOS EVERTON MELO DA SILVA LARYSSA GABRIELLA GONÇALVES DOS SANTOS

no qual ela vive”8, a escola então desenvolve através de seu trabalho peda-
gógico uma representação que culmina na interiorização de papéis sociais
sexuados na medida em que transmite ensinamentos e aprendizados acer-
ca “[...] dos brinquedos mais apropriados aos meninos e às meninas, das
profissões mais apropriadas para ambos os gêneros, e dos papéis sociais
vistos como adequados para homens e mulheres”9, constituindo-se aí o pro-
cesso de construção social dos papéis de gênero que repercute também
na construção das identidades profissionais como espécie de doutrinação.
É indispensável assinalar que “a posição de subordinação da mulher na
família é refletida na posição de inferioridade feminina também no mercado de
trabalho” (CHIES, 2010, p.513), pois mesmo quando “[...] ocupam um espaço
em profissões tidas como masculinas, não apenas pela sua construção
histórica”10, mas, sobretudo, “[...] pela demarcação de pré-requisitos tidos
como masculinos (força, resistência e liderança), a força de trabalho dessas
mulheres é concebida como inferior”11. Sobre essa discussão, Sorj (2004,
p.144) elucida que “[...] a posição diferencial de homens e mulheres no espaço
doméstico é um elemento central da determinação das chances de cada um no
mercado das carreiras, dos postos de trabalho e dos salários”.
Assim, salientamos que a situação diferencial de homens e mulheres

na sociedade, e em particular no campo do trabalho, parece


ser justificada pela ideia de que o trabalho da mulher é algo ‘se-
cundário’ frente ao trabalho masculino. E não somente existem
profissões que historicamente foram concebidas como mascu-
linas, mas a própria menção ao trabalho era algo em essência
pertencente ao mundo masculino. Portanto, as mulheres tiveram
que enfrentar um espaço na sociedade que, à primeira vista, já se
concebia como um mundo masculino, e muitas profissões foram
relutantes, e algumas são até hoje, à ideia de mulheres atuando
junto aos homens (CHIES, 2010, p.514).

A realidade cotidiana evidencia que, dado ao papel secundário do


trabalho da mulher frente ao trabalho masculino, foi, e ainda é, alvo de
muitas relutâncias a inserção de mulheres nos espaços majoritariamente

180 8 Ibid., p. 53.


9 Ibid., p.53-54.
10 Ibid., p.510-511.
11 Ibid., p.511.
PAULO ROBERTO FÉLIX DOS SANTOS EVERTON MELO DA SILVA LARYSSA GABRIELLA GONÇALVES DOS SANTOS

ditos masculinos, que, por sua vez, são ocupações de hegemonia masculi-
na. Convém ressaltar que há também o processo reverso, ocupações ditas
femininas apresentam-se como espaço profissional em que há relutância na
ocupação por parte daqueles que constituem o universo masculino, devido
às construções sociais de gênero que estão presentes nas mentalidades e
práticas sociais cotidianas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como notas conclusivas deste estudo, demarcamos que as profissões


caracterizadas como femininas têm em seu cerne o caráter do ‘cuidar de’, en-
quanto que as profissões idealizadas como masculinas possuem como mote
o ‘cuidado com’, sendo a estas emprestado prestígio na sociedade. Como
papéis sociais sexuados acerca dessas concepções de cuidados, o que se
vislumbra é que os homens se preocupam com o dinheiro, carreira, ideias e
progresso; as mulheres cuidam de suas famílias, vizinhos, amigos etc. Logo,
nessa perspectiva ancorada nos pressupostos do sexismo, sustenta-se que
os homens se preocupam com aspectos mais valorizados na sociedade ao
tempo em que se alimenta a imagem de que as mulheres se preocupam com
coisas de menor importância (CHIES, 2010). Isso posto, depreendemos que
o sexismo se estabelece como base nas relações sociais para além do âmbi-
to familiar, estendendo-se ao mercado de trabalho.
Convém destacarmos que os estereótipos acerca das profissões são
gerados por questões básicas como ‘o que se espera de uma mulher’ e ‘o
que se espera de um homem’. Assim, a diferenciação que impera entre ho-
mens e mulheres no trabalho pode ter como explicação a construção social
dos papéis de gênero, cujo resultado historicamente é a diferenciação de
ocupações entre os sexos, sustentada na separação rotulada das ocupa-
ções femininas e masculinas como próprias para cada sexo, o que se fun-
damenta, por sua vez, entre outras, na ideia de habilidades que delimitam
as responsabilidades e cuidados domésticos (espaço privado) como ativi-
dades reservadas às mulheres por necessitarem da aptidão para o cuidado
com outras pessoas, característica tida como feminina; e o provimento da
181 família (espaço público) como masculino, com atividades que exigem maior
força física por serem vistos como os mais capacitados para o desempenho
dessas tarefas(CHIES, 2010; LOBO, 1991; BELO, 2010).
PAULO ROBERTO FÉLIX DOS SANTOS EVERTON MELO DA SILVA LARYSSA GABRIELLA GONÇALVES DOS SANTOS

Por fim, registramos que, ao nos depararmos com os dados das ocu-
pações dos cursos do IFS relacionados às escolhas profissionais das juven-
tudes, percebemos que a análise dos papéis sociais sexuados atribuídos às
mulheres e aos homens nas diversas instâncias da sociedade capitalista
implica a necessidade de atentarmos para as ocupações sexuadas e nos
darmos conta de relações marcadas por subordinação e dominação. As-
sim, avaliamos que as escolhas profissionais apresentam relações com a
interiorização dos papéis sociais sexuados, ou seja, estão associadas às
construções sociais de gênero, o que pôde ser evidenciado pela empiria dos
dados coletados, analisados e expostos neste trabalho.

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182
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183
O CAMPO DA EDUCAÇÃO AMBIENTAL
E ALGUNS DESAFIOS AO
SERVIÇO SOCIAL BRASILEIRO

Carla Alessandra da Silva Nunes1


Josiane Soares Santos2
Ticiane Pereira dos Santos Vieira3

“Porque a cabeça da gente é uma só, e as coisas


que há e que estão para haver são demais de mui-
tas, muito maiores diferentes, e a gente tem de
necessitar de aumentar a cabeça, apara o total”. 
(Guimarães Rosa)

INTRODUÇÃO

Desenvolver uma reflexão que aponte caminhos para a intervenção


profissional do assistente social num campo novo, como é o da Educação
Ambiental, para dar conta de velhas e novas expressões da “questão social”
nos leva, necessariamente, a apreender o movimento da realidade que nos
trouxe a este lugar de modo que, em conformidade com o materialismo his-
tórico-dialético, possamos, preliminarmente, entender suas determinações.

1 Professora do Departamento de Serviço Social da Universidade Federal de Sergipe; Doutoranda


em Serviço Social na Universidade Federal do Rio de Janeiro; Pesquisadora do Grupo de Estudos e
Pesquisas Marxistas/UFS.

184 2 Professora Adjunta do Departamento de Serviço Social da Universidade Federal de Sergipe;


Mestra em Serviço Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro; Doutora em Serviço Social
também pela Universidade Federal do Rio de Janeiro; Pesquisadora do Grupo de Estudos e Pes-
quisas Marxistas/UFS.
3 Mestra em Serviço Social pela Universidade Federal de Sergipe.
PAULO ROBERTO FÉLIX DOS SANTOS EVERTON MELO DA SILVA LARYSSA GABRIELLA GONÇALVES DOS SANTOS

A educação ambiental, enquanto campo substantivamente educa-


cional se apresenta, ainda que tardiamente, como nova demanda historica-
mente determinada ao exercício profissional do assistente social, já que as
primeiras iniciativas de educação ambiental no Brasil e no mundo datam da
década de 1970, enquanto o Serviço Social até a década de 1990 não havia
ainda tomado a temática ambiental como objeto de sua reflexão, conforme
atestam Loureiro (2010) e Santos e Araújo (2012). Além disso, o pioneirismo
das ciências biológicas na prática da educação ambiental e o consequente
reducionismo biologizante que marcou sua trajetória possivelmente tenham
contribuído para esse retardo, uma vez que se constatou a resistência de pro-
fissionais das demais áreas, principalmente das ciências sociais, em assumir
a educação ambiental como objeto de estudo, inicialmente confundida com
educação ecológica (LAYRARGUES, 2003).
Outra possibilidade de afastamento dessa demanda em relação ao
que os assistentes sociais foram sendo chamados a consolidar no mercado
de trabalho talvez se relacione com a identificação imediata entre educação
ambiental e o ambiente da escola. Importante, entretanto, é compreender
que o processo educativo não se restringe ou se inicia com o surgimento da
instituição escolar e seu caráter formal. O “encarceramento” da educação é
um processo histórico. Contudo, a institucionalização formal do “complexo
social” que é a educação não conseguiu extinguir os processos mais amplos
da educação em geral, pelos quais, com ou sem acesso à escola, o homem
continua seu processo formativo. Nas palavras de Mészáros:

Nunca é demais salientar a importância estratégica da concepção


mais ampla da educação, expressa na frase ‘a aprendizagem é a
nossa própria vida’. Pois muito do nosso processo contínuo de
aprendizagem, se situa felizmente, fora das institucionais educa-
cionais formais. Felizmente, esses processos não podem ser ma-
nipulados e controlados de imediato pela estrutura educacional
formal legalmente salvaguardada e sancionada. Eles comportam
tudo, desde o surgimento de nossas respostas críticas em relação
ao ambiente material mais ou menos carente em nossa primeira
infância, do nosso primeiro encontro com a poesia e a arte, pas-
sando por nossas diversas experiências de trabalho, sujeitas a um
escrutínio racional, feito por nós mesmos e pelas pessoas com
quem as partilhamos e, claro, até o nosso envolvimento, de muitas
185 diferentes maneiras e ao longo da vida, em conflitos e confrontos,
inclusive as disputas morais, políticas e sociais dos nossos dias.
Apenas uma pequena parte disso tudo está diretamente ligada à
educação formal [...] (MÉSZÁROS, 2008, p.53).
PAULO ROBERTO FÉLIX DOS SANTOS EVERTON MELO DA SILVA LARYSSA GABRIELLA GONÇALVES DOS SANTOS

Chegamos, então, a um nível de desenvolvimento do ser social capaz


de nos colocar diante de amplas possibilidades de aprendizagem, formais,
informais e não formais. Esta última, embora não seja espontânea, como a
informal, e não obedeça aos mesmos critérios de organização e certifica-
ção da educação formal, tem-se expandido nas últimas décadas como novo
campo de práticas educativas4.
Contudo, se a educação tem a tarefa de “permitir aos indivíduos a
apropriação dos conhecimentos, habilidades e valores necessários para se
tornarem membros do gênero humano” (TONET, 2006, p.7), ela é negada pelos
limites objetivos da sociedade burguesa, razão por que o autor adverte:

É, pois inútil dar voltas à inteligência para – tanto do ponto de vista


teórico quanto do ponto de vista prático – querer conceituar e levar
à efetivação uma educação que contribua para a formação humana
integral no interior desta forma de sociabilidade. O que, segundo
nos parece, se pode e deve pensar, são atividades educativas –
portanto, não a educação no seu conjunto – que estejam inseridas
na luta pela transformação radical da sociedade [...]5.

As “atividades educativas emancipadoras” a que se refere Tonet (2013,


s/p) podem ser desenvolvidas na escola ou fora dela e devem perseguir a
emancipação humana, ou seja,

[...] uma forma de sociabilidade, situada para além do capital, na


qual os homens serão plenamente livres, isto é, na qual eles con-
trolarão, de maneira livre, consciente, coletiva e universal o pro-
cesso de produção da riqueza material (o processo de trabalho
sob a forma de trabalho associado) e, a partir disso, o conjunto
da vida social [...].

Nessa direção, defendemos que as intervenções do assistente social


em processos educativos não formais, voltados para a educação ambiental
crítica, podem vir a se configurar como “atividades educativas emancipa-
doras”. As razões para essa pretensão devem-se, por um lado, à direção
ético-política da profissão na atualidade, à diversidade de espaços que po-
demos ocupar e práticas educativas que podemos desenvolver, e, por outro,
186

4 Sobre o assunto, conferir Gonh (2010)


5 Idem, p. 09
PAULO ROBERTO FÉLIX DOS SANTOS EVERTON MELO DA SILVA LARYSSA GABRIELLA GONÇALVES DOS SANTOS

ao potencial “transformador” que o conteúdo da educação ambiental ten-


dencialmente pode provocar.
Obviamente que o controle do capital sobre a educação não se res-
tringe ao espaço escolar. Portanto, longe de advogar uma espécie de “imu-
nidade ideológica” dos processos não formais e ambientais de educação,
preferimos apostar na tese de Mészáros (2008, p. 45), segundo a qual, para
“[...] romper com a lógica do capital no interesse da sobrevivência humana
[...] as soluções ‘não podem ser formais; elas devem ser essenciais’, em
outras palavras, elas devem abarcar a totalidade das práticas educacionais
da sociedade estabelecida. A perspectiva é “[...] modificar de uma forma
duradoura, o modo de internalização historicamente prevalecente [...]”6
Nesses termos, façamos o exercício marxiano do método e preste-
mos atenção aos processos sociais reais – o que, nos termos de Guimarães
Rosa (2001, p.327), significa “[...] necessitar de aumentar a cabeça, para
o total”. Não há como negar a existência de uma crise ambiental e de um
movimento em torno da formação de uma “consciência ambiental” para o
qual se vem lançando a Educação Ambiental. Se conseguirmos ir além das
aparências desses processos, compreenderemos porque o Serviço Social
deve acolher a Educação Ambiental, no conjunto das práticas educacionais
estabelecidas e, enquanto objetivação social, trabalhar na perspectiva de
sua apropriação pelas classes historicamente alienadas da riqueza material
e ideal produzidas pelo ser social.
Tendo enfatizado esses supostos, o texto incursiona no campo da
educação ambiental e sua institucionalização no Brasil, para apreender pos-
sibilidades de se efetivar enquanto importante mecanismo de enfrentamen-
to da “questão ambiental” e, por sua vez, importante espaço de atuação do
Serviço Social.

“QUESTÃO AMBIENTAL” E EDUCAÇÃO AMBIENTAL

É inegável que a propriedade privada dos recursos ambientais se põe


no centro da “questão ambiental” na contemporaneidade, visto que é através
daquela que a interconexão do homem com a natureza, mediatizada pelo
187 trabalho, se realiza. Especificamente, no modo de produção capitalista, a
apropriação privada da natureza e do trabalho busca atender as crescentes

6 Idem,p52.
PAULO ROBERTO FÉLIX DOS SANTOS EVERTON MELO DA SILVA LARYSSA GABRIELLA GONÇALVES DOS SANTOS

necessidades de aumento da produtividade e circulação de mercadorias, ou


seja, do processo de valorização do capital (MARX,2001), evidenciando que
a dilapidação da natureza é constitutiva desse sistema.
O sistema capitalista tem na propriedade privada dos meios fun-
damentais de produção (e, substancialmente, dos recursos da natureza e
na força de trabalho), seu pilar de sustentação. Na medida em que se de-
senvolveu e se metamorfoseou, ao longo dos séculos, foi fincando novas
e perdulárias formas de se apropriar da natureza. Como resultado disso, a
produção de mercadorias converteu-se, crescentemente, em produção da
poluição, reprodução de produtos descartáveis, deterioração do meio natu-
ral, dilapidação humana e social em diversos contextos sociais. Nas pala-
vras de Mészáros (2008, p.73):

Vivemos numa ordem social na qual mesmo os requisitos mí-


nimos para a satisfação humana são insensivelmente negados
à esmagadora maioria da humanidade, enquanto os índices de
desperdício assumiram proporções escandalosas, em conformi-
dade com a mudança da reivindicada destruição produtiva, do
capitalismo no passado, para a realidade, hoje predominante, da
produção destrutiva.

A crise de superprodução, superacumulação e subconsumo que se ini-


cia nos anos 1970, a partir do esgotamento do modelo fordista keynesiano,
evidencia o caráter destrutivo de um sistema que tem, entre suas estratégias
de recomposição do lucro, a obsolescência programada das mercadorias.
Esta, por um lado, consegue reconduzir, em menor tempo ou com maior velo-
cidade, o consumidor de volta ao mercado e, pelo mesmo processo, dá visibi-
lidade à finitude de alguns dos recursos naturais não renováveis que estão na
base da produção de mercadorias, como o petróleo, por exemplo. Por essas
razões, ligadas aos processos de recomposição da taxa de lucros e busca de
valorização crescente, os conflitos pelo acesso e uso dos recursos naturais
assumem caráter beligerante, e a crise já não pode ser reconhecida como
conjuntural. Seu alcance é global, afetando todos os setores da produção e se
caracterizando por “uma onda longa recessiva” (MANDEL, 1985), com fortes
impactos sobre a classe trabalhadora e sobre a natureza. Assim,
188
[...] diante da magnitude hoje alcançada por estes problemas - e
expressa em três ordens de fenômenos: ‘o crescente alargamento
da distância entre o mundo rico e o mundo pobre [...], a ascensão
do racismo e da xenofobia;e a crise ecológica, que nos afetará
PAULO ROBERTO FÉLIX DOS SANTOS EVERTON MELO DA SILVA LARYSSA GABRIELLA GONÇALVES DOS SANTOS

a todos’(Hobsbawm) - todas as indicações sugerem que o tar-


do-capitalismo oferecerá respostas dominantemente regressivas
operando na direção de um novo barbarismo de que as formas
contemporâneas de apartheid social são já suficientemente níti-
das.(NETTO, 2012, p. 424, itálicos do autor)

Como parte das estratégias para enfrentamento aos problemas am-


bientais, inúmeros mecanismos regulatórios derivados do ideário da sus-
tentabilidade são forjados, por parte do capital. Bastante conhecida nesse
sentido é a formulação que se popularizou sob o conceito de “desenvolvi-
mento sustentável” (Cf. SILVA, 2008). No interior desse discurso, emergem
estratégias que, se, por um lado, possibilitam certo nível de racionamento
e regulação pública do acesso aos recursos ambientais, reivindicada pelos
movimentos ambientalistas, por outro, não impedem a expansão capitalista
e sua apropriação da natureza em prol da rentabilidade e do lucro, impon-
do-lhe, no máximo, algumas condicionalidades para mitigar e compensar
impactos socioambientais.
Obviamente que o recurso à educação como estratégia para enfrentar
a “questão ambiental” não escapa às investidas do capital e tem sido alvo de
disputas ideológicas e políticas, caracterizadas, por sua vez, pelos distintos
níveis de expressão da “questão ambiental” nos países, conforme sua inser-
ção na divisão internacional do trabalho capitalista. Desse modo, é importan-
te conhecer a conformação do campo da chamada Educação Ambiental, até
porque, dentro do vasto contíguo da legislação ambiental no Brasil, constitui
direito constitucional e campo emergente de atuação para o Serviço Social.
A incorporação da educação ambiental como direito constitucional
(BRASIL, 1988) e sua implementação através da lei nº 9.795/99, que dis-
põe sobre a Política Nacional de Educação Ambiental (PNEA), consolidaram
campo cuja capilaridade se estende dos organismos estatais aos privados e
público não estatais e da educação formal à não formal. Apesar da conquis-
ta, Layrargues7 afirma que a instituição da PNEA foi precoce, pois não havia,
no momento do seu surgimento, condições políticas e acadêmicas maduras
o suficiente para o apontamento crítico dos seus rumos frente às demandas
sociais advindas do capital.
Trata-se, para esse autor, da carência, naquele contexto, de catego-
189 ria profissional de educadores ambientais, organizada politicamente para
a construção de pressupostos que ultrapassassem a visão imediatista e

7 Idem, Ibidem.
PAULO ROBERTO FÉLIX DOS SANTOS EVERTON MELO DA SILVA LARYSSA GABRIELLA GONÇALVES DOS SANTOS

acrítica, baseada na dicotomia homem versus natureza e no estímulo de


aspectos comportamentais que contribuem para a reprodução do capital,
ideias que perpassam vários trechos da PNEA.
Não obstante, reconhecendo que existem perspectivas ideo-teóricas
diferentes em disputa, a atuação de segmentos profissionais comprometidos
com a educação ambiental expressa avanços que podem ressignificar os
princípios da PNEA, potencializando suas contradições à luz de perspectiva
crítica e emancipatória.
Em Layrargues8, essa tensão ideológica se expressa no caráter conser-
vador ou crítico da educação ambiental. Nessa mesma direção, Silva (2008)
também aponta que há duas vertentes ideo-políticas da prática de educação
ambiental. A vertente conservadora apresenta postura acrítica no que diz
respeito aos fundamentos políticos e estruturais da “questão ambiental”.
Em função disso, a compreende reduzida a aspectos gestionários e compor-
tamentais, impedindo que a ação pedagógica aponte para o fortalecimento
da democracia na sociedade e para a condução de nova forma de relação
entre esta e a natureza, baseada na igualdade social no que diz respeito à
apropriação e uso dos recursos ambientais (SILVA, 2008). Dado a sua fun-
cionalidade e respeito aos limites impostos pela reprodução do capitalismo,
cabe destacar que essa vertente se constitui como perspectiva hegemônica,
tendendo, assim, a deslocar a “questão ambiental” da esfera político-ideoló-
gica e concentrá-la no âmbito individual e a remeter a responsabilidade pelas
mudanças no quadro ambiental aos indivíduos em seu cotidiano, pela adoção
de posturas “ambientalmente corretas”.
A outra vertente, denominada crítica, apresenta-se com dupla função: a
primeira, direcionada a posicionamento que visa desmistificar os determinan-
tes de produção e reprodução da “questão ambiental”, a partir da compreen-
são e questionamento da ordem societária vigente. Nas palavras de Silva,

Trata-se de localizar a ação pedagógica no interior das múltiplas di-


mensões que compõem a temática do meio ambiente – dimensão
econômica, social, geopolítica, cultural e ecológica – questionando
os pilares da organização da sociedade capitalista e sua natureza
predatória do meio ambiente9.

190

8 Idem, Ibidem
9 Idem, Ibidem, p. 109.
PAULO ROBERTO FÉLIX DOS SANTOS EVERTON MELO DA SILVA LARYSSA GABRIELLA GONÇALVES DOS SANTOS

A educação ambiental nessa perspectiva também tem a função de


estimular o senso crítico acerca da temática ambiental, alcançando a con-
tradição das relações sociais no capitalismo e combatendo as estratégias
de sua manutenção – colocadas sob a lógica distorcida e ilusória de “desen-
volvimento sustentável”. Essa vertente não é hegemônica nos debates em
torno da educação ambiental, mas apresenta direcionamento condizente com
a necessidade de superação da “questão ambiental” a partir de suas raízes,
fincadas capitalismo. Nessa vertente, identificamos fecundas possibilidades
de atuação do Serviço Social em diferentes espaços sócio-ocupacionais que
tenham a “questão ambiental” como objeto de intervenção relacionada às
refrações da “questão social”. Referimo-nos das consequências do usufru-
to desigual dos recursos ambientais (privatização da riqueza) até a desigual
distribuição dos custos da problemática ambiental (socialização do prejuízo)
(LAYRARGUES, 2003)–esta última expressa, por exemplo, na relação entre
meio ambiente poluído e doenças ocasionadas pela intoxicação/poluição do
ar e das águas, sofridas por populações sem acesso a serviços de saúde e
saneamento ambiental.
Não obstante o registro da aproximação da categoria em relação à
temática ambiental, presente nos anais dos congressos nacionais de as-
sistentes sociais e outros encontros de pesquisadores, parece claro ser
ainda embrionário seu teor, tanto no meio acadêmico quanto nos espaços
sócio-ocupacionais.

EDUCAÇÃO AMBIENTAL NÃO FORMAL:


demandas para o Serviço Social

Sabemos que o Serviço Social está historicamente vinculado à execu-


ção de políticas sociais – majoritária, mas não exclusivamente – de caráter
público, enquanto respostas do capital e do Estado ao agravamento das ex-
pressões da “questão social”, cujo fundamento se encontra na premissa mar-
xiana da lei geral da acumulação capitalista (NETTO e BRAZ, 2008, p.137). Na
fase monopólica do capital, o Estado se reconfigura, assumindo estratégico
papel na reprodução das relações sociais capitalistas, ampliando sua inter-
191
venção econômica e política e buscando “conciliar” os interesses do capital
e do trabalho. Behring e Boschetti (2008) entendem que as políticas sociais
traduzem bem esse intento quando, ao atender parte das necessidades e de-
PAULO ROBERTO FÉLIX DOS SANTOS EVERTON MELO DA SILVA LARYSSA GABRIELLA GONÇALVES DOS SANTOS

mandas da classe trabalhadora, ainda que de forma precária, expostas nos


conflitos capital/trabalho, viabilizam, pelo mesmo processo, a reprodução da
força de trabalho e o controle ideológico formador de consenso.
No Brasil, esse tipo de intervenção do Estado, desde seu surgimento
no contexto dos anos 1940 até os dias de hoje, requer do assistente social
pedagogia que explicite, para além da dimensão material das políticas so-
ciais, dimensão educativa, formadora de “conformismo mecanicista”, ainda
que para isso enfrente resistências da categoria profissional articulada às
lutas da classe trabalhadora organizada. Por meio dessa direção pedagógi-
ca, o assistente social atendeu de forma hegemônica, até um determinado
momento, aos interesses do capital e do Estado, ocultando as determinações
econômicas da desigualdade social e, consequentemente, contribuindo para
a reprodução da subalternidade. Segundo Abreu (2002), essa tendência se
expressou através da “pedagogia da ajuda” e da “pedagogia da participação”.
Em contraposição a essa tendência conservadora, Abreu (idem)
acrescenta que o Serviço Social participou da construção de uma “peda-
gogia emancipatória”, respaldada nas bases sócio-históricas dos anos
1970/1980, que produziram experiências de contestação, de luta, de or-
ganização das classes trabalhadoras, algumas delas inspiradas na teoria
marxista, outras na Teologia da Libertação, mescladas pelo ecletismo entre
marxismo e cristianismo, mas todas – mesmo com suas limitações teóri-
co-históricas– conduzindo a práticas de politização das relações sociais.
Esse processo se traduziu na vertente da “intenção de ruptura”, conforme já
bem elucidada em Netto (2011).
Trata-se de conjuntura em que se gestaram as condições para a
construção do projeto ético-político profissional – que teve seus elementos
básicos consolidados na década de 1990, marcada pela contestação do con-
servadorismo em que estava imersa a categoria profissional e que ampliou,
como assevera Netto (2009), seu campo de demandas e de intervenção.
Esse movimento, por sua vez, nos leva a observar que se situam nesse rol as
demandas inerentes à educação ambiental.
Feito esse necessário reconhecimento do caráter educativo do traba-
lho do assistente social em qualquer espaço de implementação da política
social, constatamos, na trajetória histórica do Serviço Social, seus laços com
192 as práticas educativas não formais – especificamente, as políticas, progra-
mas, atividades, movimentos de educação não formal, nos quais o assistente
social teve significativa intervenção. Entre esses espaços, consideramos os
programas de Desenvolvimento de Comunidade (DC), promovidos na década
PAULO ROBERTO FÉLIX DOS SANTOS EVERTON MELO DA SILVA LARYSSA GABRIELLA GONÇALVES DOS SANTOS

de 1950 e atualizados na ditadura militar (AMMANN,1980); os movimentos


de cultura e educação popular deflagrados nos anos 1960, e os processos de
organização, mobilização e educação popular que emergiram nas décadas
1970/1980 (ABREU, 2002).
Consideramos que essas indicações sumárias ilustram a vinculação
da profissão com as demandas sócio-históricas explicitamente voltadas à
organização da cultura, na fecunda expressão gramsciana, o que nos aproxi-
ma dos atuais processos de educação ambiental crítica. Também no campo
da política de educação ambiental, o assistente social encontra elementos
que coadunam com suas reconhecidas, embora não privativas, atribuições
profissionais, notadamente os processos de educação não formal, na linha
do que estabelece a legislação: “art.13. Entendem-se por educação ambien-
tal não formal as ações e práticas educativas voltadas à sensibilização da
coletividade sobre as questões ambientais e à sua organização e participa-
ção na defesa da qualidade do meio ambiente” (BRASIL, 1999).
Embora técnica e operativamente possamos traduzir o impreciso
termo “sensibilização” como processos de mobilização e organização de-
senvolvidos pela categoria em diferentes contextos históricos, o conteúdo
mobilizador – “questões ambientais” e “defesa da qualidade do meio am-
biente” – exige da profissão constante atualização do seu arsenal teórico-
-metodológico, na perspectiva de compreender os determinantes, o desen-
volvimento e as refrações da “questão ambiental” nos diversos segmentos
da classe trabalhadora.
Aqui queremos remeter à perspectiva marxista que orienta frações
significativas da intervenção e produção do conhecimento nessa profissão
e que encontra acolhida na vertente crítica do debate socioambiental. Para
essa perspectiva, as razões da “questão ambiental” são debitadas ao modo
de produção capitalista, cabendo-nos, portanto, alargar o horizonte e “des-
cortinar o véu” que oculta a dimensão ambiental no interior das refrações da
“questão social”.
A esse desafio teórico se soma o desafio ético-político. Nesse sen-
tido, as ações, procedimentos, instrumentos e técnicas utilizados pelo as-
sistente social no campo ambiental também são portadores das mesmas
contradições que desafiam a efetivação do conjunto das políticas sociais
193 onde o mercado de trabalho já se encontra relativamente consolidado, ou
seja, podem potencializar a conformação de consenso propício à repro-
dução das relações destrutivas do capital na natureza e nos homens ou a
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contestação dessa forma de sociabilidade. Essa contradição se deve ao


fato de que

[...] a “questão ambiental” é um dos temas mais medulares da crise


capitalista atual tanto sob a ótica do grande capital, preocupado
coma dita “sustentabilidade” da contínua exploração exercida sob
os recursos naturais, quanto sob a ótica dos trabalhadores que
podem utilizá-la na maximização de suas críticas e lutas contra o
modo de produção e suas consequências para a humanidade [...]
(SANTOS; ARAUJO, 2012, p.76-77).

Dessa forma, abre-se demanda ímpar para o Serviço Social que, se-
gundo Netto (2009, p.16, grifos do autor), tem na dimensão política do seu
projeto profissional direcionamento

a favor da justiça e da equidade social, na perspectiva na univer-


salização dos serviços relativos às políticas e programas sociais
[e] a ampliação/consolidação da cidadania [...] explicitamente
postas como garantia dos direitos civis, políticos e sociais das
classes trabalhadoras. Correspondentemente, o projeto se declara
radicalmente democrático – considerada a democratização como
socialização da participação política e socialização da riqueza so-
cialmente produzida.

Conscientes desses desafios, pensamos que a “participação” prevista


na PNEA, associada a processos educativos não formais, se orientada por
enfoque da vertente crítica da educação ambiental e do projeto ético-político
do Serviço Social, abre leque de possibilidades reais para a profissão desen-
volver estratégias coletivas de organização e participação das classes su-
balternas na luta pelos direitos socioambientais. Destacamos, nessa linha, a
revitalização dos processos de educação popular e a assessoria aos usuários
nos espaços institucionalizados de controle social e nos movimentos sociais.
Reconhecemos que essas possibilidades se confrontam com dinâmi-
ca social nada favorável à ampliação de processos participativos efetivamen-
te democráticos, em razão do cenário regressivo provocado pelas respostas
do capital à crise estrutural em que mergulhou desde os anos de 1970 e cujos
194 impactos na sociedade brasileira foram mais explicitamente percebidos a
partir da década de 1990. Contudo, pensamos que a intervenção do assis-
tente social no campo da educação ambiental encontra canais propícios para
desenvolver processos formativos de educação popular, para um coletivo de
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sujeitos determinados: as classes cuja situação de expropriação se agrava


com a manifestação ambiental da crise social, de modo a fortalecer seus
processos organizativos e autônomos.
Para ilustrar de forma mais direta e concreta essa perspectiva, é
importante citar que a educação ambiental passou a ser introduzida nos
processos de gestão ambiental no contexto brasileiro junto às unidades de
conservação e no licenciamento ambiental. Sua importância, nesse âmbito,
segundo Loureiro (2009, p.51), deu-se por ser vista como via estratégica para
“a socialização de informações e conhecimentos, a autonomia dos grupos
sociais, a participação popular e a democratização das decisões”. Nesse
sentido, podemos citar o documento orientador dos programas de educação
ambiental realizados como exigência legal do licenciamento de atividades
de exploração e produção de petróleo e gás no mar que, entre suas linhas de
ação, definiu como prioritária a “organização comunitária para a participação
na gestão ambiental” (IBAMA/CGEPEG,2010, p. 4),
É importante frisar quem são esses grupos com os quais o traba-
lho de Educação Ambiental crítica pode-se realizar potencializando confli-
tos organizados pelo uso e apropriação dos recursos naturais. Trata-se de
trabalhadores extrativistas (pescadores artesanais, artesãos, seringueiros),
populações tradicionais (quilombolas, indígenas), trabalhadores rurais que
vivem da agricultura familiar, populações urbanas ou rurais expulsas de
suas áreas de moradia por licenciamentos de obras de natureza produtiva
ou turística, entre outros.
Assim como nos demais espaços ocupacionais onde temos protago-
nizado o trabalho de organização popular para o controle social numa pers-
pectiva democrática, esta é também tarefa para o assistente social que lida
com a “questão ambiental”. Cabe salientar que, nesse caso, os desafios são
ainda maiores, (SANTOS; ARAÚJO, 2012), pois as políticas ambientais não
têm garantidas as instâncias de controle social que, bem ou mal, já foram
implementadas pelas demais políticas sociais, a exemplo dos conselhos
e conferências. Na PNEA, especificamente, registra-se apenas instância
consultiva, o Comitê Assessor, o qual, garantindo entre as representações
da sociedade civil um lugar para as ONGs, explicita quem é o interlocutor
principal do Estado em contraposição ao vazio da representatividade dos
195 movimentos sociais.
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Além de não ter sido prevista em lei nenhuma instância colegiada


com poder deliberativo sobre a execução da PNEA10, não existe definição
de percentual orçamentário que garanta o desenvolvimento dos objetivos e
linhas de ação estabelecidas, o que só reforça o já reconhecido processo de
desfinanciamento das políticas públicas em curso11. Ora, como garantir que
programas de educação ambiental estejam, de fato, integrados às ativida-
des de conservação da biodiversidade, de zoneamento ambiental, de licen-
ciamento e revisão de atividades efetivas ou potencialmente poluidoras, de
gerenciamento de resíduos, entre tantas outras contempladas na legislação
vigente, sem determinar o percentual mínimo necessário para a execução
desses programas? Ou mesmo sem assegurar processo democrático, par-
ticipativo e transparente na gestão dos programas, na definição do volume
de recursos orçamentários a serem aplicados e/ou transferidos (levando em
conta o aumento das parcerias público-privado)? Como assegurar o princípio
da pluralidade de concepções pedagógicas, negando a representatividade
dos diversos segmentos ligados aos movimentos sociais, considerando que
no espaço de disputas ideológicas a concepção conservadora da educação
ambiental é a hegemônica?
Por essas razões insistimos em que há muito por fazer na política de
educação ambiental, especialmente no âmbito da democratização de seu
acesso e de sua gestão, constituindo-se em instigante campo a ser desbra-
vado pelo assistente social. A peculiaridade da sua formação, a reconhecida
atuação nas políticas sociais, o contato direto com usuários e suas organiza-
ções coletivas podem propiciar a socialização de informações, a coletiviza-
ção de interesses que, potencialmente, podem fortalecer a luta pelo controle
social dessa política. Obviamente que, sem a participação organizada e autô-
noma das classes subalternas, esses processos podem perder fôlego muito
rapidamente. Aqui defendemos que a participação em instâncias coletivas
do poder público não substitui a ação organizada dos movimentos sociais.
Melhor dizendo, a luta pela garantia da institucionalização de espaços de con-
trole social nas políticas ambientais deve estar apoiada no fortalecimento
das organizações autônomas e de base das classes trabalhadoras – onde se

196 10 No caso dos programas de educação ambiental realizados no âmbito do licenciamento, a norma-
tização instituiu o espaço consultivo das audiências públicas (SERRÃO, 2012).
11 Ilustra bem essa dificuldade, a extinção da Coordenação Geral de Educação Ambiental-CGEAM
da estrutura organizacional do IBAMA, implementada pela Medida Provisória nº 366/07 e da lacuna
mantida até hoje na estrutura administrativa desse órgão (SERRÃO, 2012).
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encontram os sujeitos ambientalmente afetados pelos impactos negativos da


forma mercantil de apropriação da natureza.
Desse modo, também apontamos a ação de assessoria aos movi-
mentos sociais como mais uma possibilidade do assistente social realizar
educação ambiental; como mediação importante, cujo conteúdo pode con-
tribuir na luta pelo acesso aos recursos naturais, na resistência ao avanço
do capital sobre territórios ainda não explorados, privatizando-os, ou mesmo
na luta pelos direitos socioambientais, desde o acesso a água, ao sanea-
mento e esgotamento sanitário, ao destino correto dos resíduos sólidos, à
saúde, à condição de moradia que não submeta a população aos riscos de
deslizamentos e enchentes, ao trabalho, incluindo o trabalho das populações
tradicionais na terra, no mangue ou no mar.
No percurso aqui apontado, de possibilidades de intervenção do as-
sistente social no campo da educação ambiental, questão de não menos
importância precisa ainda ser dita. O trabalho dos assistentes sociais é
constituído, em qualquer de suas áreas de atuação, por duas dimensões
indissociáveis, comportando unidade muitas vezes contraditória, qual seja:

A realidade vivida e representada na e pela consciência de seus


agentes profissionais, expressa pelo discurso teórico-ideológico
sobre o exercício profissional; [e] a atuação profissional como ati-
vidade socialmente determinada pelas circunstâncias sociais ob-
jetivas que conferem uma direção social à prática profissional, o
que condiciona e mesmo ultrapassa a vontade e/ou consciência de
seus agentes individuais (IAMAMOTO e CARVALHO, 1995, p. 73).

Essas dimensões não se conformam a partir de opção programada


pelos profissionais, mas por sua inserção nos processos de trabalho que
são portadores dessa contradição entre interesses distintos e em disputa.
Evidentemente isto se materializa no trabalho que os assistentes sociais
operam nas políticas sociais e não seria diferente com a política da edu-
cação ambiental. Além disso, a inserção dos assistentes sociais no campo
da educação ambiental, assim como nas demais políticas, ocorre pela via
do trabalho assalariado, sendo condição a ser levada em conta quando da
análise dos limites e possibilidades de efetivação do projeto profissional.
197 Iamamoto (2008, p.415-416) esclarece a questão:

O dilema condensado na inter-relação entre projeto profissional e


estatuto assalariado significa, por um lado, a afirmação da rela-
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tiva autonomia do assistente social na condução de suas ações


profissionais socialmente legitimadas pela formação acadêmica
de nível universitário e pelo aparto legal e organizativo que regu-
lam o exercício de uma ‘profissão liberal’ na sociedade. Aquela
autonomia é condicionada pelas lutas hegemônicas presen-
tes na sociedade que alargam ou retraem as bases sociais que
sustentam a direção social projetada pelo assistente social [...]
Por outro lado [...], a mercantilização da força de trabalho do assis-
tente social, pressuposto do estatuto assalariado, subordina esse
trabalho de qualidade particular aos ditames do trabalho abstrato
e o impregna dos dilemas da alienação impondo condicionantes
socialmente objetivos à autonomia do assistente social na condu-
ção do trabalho e à integral implementação do projeto profissional.

Ainda que sem explorar o aspecto do “trabalho abstrato” do assisten-


te social nas instituições públicas ou privadas nas quais esse profissional
trabalha com a “questão ambiental” – posto que nos limites deste artigo
nos propusemos a apresentar atribuições profissionais desse campo, em
termos do “trabalho concreto” –, o que foi dito até aqui nos distancia de
análise unilateral, fatalista ou messiânica quanto à leitura das possibili-
dades interventivas da profissão. Consideramos, ainda, que, sendo a edu-
cação ambiental saber, prática ou política interdisciplinar, transversal, na
modalidade formal e não formal, pode ser mediação a ser trabalhada pelo
assistente social em diversos espaços ocupacionais, o que complexifica a
análise sob o enfoque dos processos de trabalho12, tarefa em aberto para
outros estudos e publicações.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Começamos esta reflexão defendendo que a educação ambiental


pode fecundar processo importante de “atividades educativas emancipa-
doras” com as quais o projeto ético-político hegemônico do Serviço Social
tem estreita articulação. O percurso apontou possibilidades de intervenção
do assistente social, reafirmando a importância de práticas já consolidadas
na profissão, a exemplo dos processos de mobilização, organização e edu-
198 cação popular, assessoria aos processos participativos institucionalizados

12 “[...] o exercício profissional sob a órbita do Estado, das empresas capitalistas e de entidades
privadas não lucrativas tem efeitos e significados distintos no processo de reprodução das relações
sociais, porque o trabalho se realiza na relação com sujeitos específicos” (IAMAMOTO, 2008, p.425).
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de controle social e aos movimentos sociais, ao tempo em que advertiu a


necessidade de adensar essas práticas com novos conteúdos, a partir da
compreensão da “questão ambiental” e de sua interface com a “questão so-
cial”. A perspectiva é alargar o espaço de disputas de projeto profissional
comprometido com nova ordem social sem exploração de classes e pautado
nos princípios da liberdade e da democracia, o qual converge para prática
educativa cujo fim seja a emancipação humana.
Dessa forma, observa-se que é demandado ao Serviço Social não
apenas aproximar-se das possibilidades de atuação através da educação
ambiental. Para além disso, é imperativo que essa aproximação tenha suas
bases na opção por educação ambiental de viés crítico, que se contrapo-
nha às concepções limitadas que abordam a problemática ambiental so-
mente pelo viés das mudanças comportamentais, para dar conta apenas
das consequências da “questão ambiental”, desconsiderando a reflexão
acerca de suas raízes.
Esse é um intento que deve ser perpassado no resgate das práticas
de educação popular que carregam, em si, grande potencial para intensificar
as forças democráticas da nossa sociedade, em especial no que tange ao
reforço à participação via Conselhos e movimentos sociais. Nessa direção
abre-se horizonte que não só amplia as possibilidades de atuação do assis-
tente social, mas também o insere nas lutas pela democratização da riqueza,
afinal “o meio ambiente equilibrado [...] para presentes e futuras gerações”
(BRASIL, 1988) é um direito constitucional no Brasil (art.225º). Esse direito
não poderá ser adequadamente assegurado enquanto a natureza for apropria-
da privadamente pelo capital como “recurso” em seu processo de valorização,
pois implica que dele permanecerão apartados segmentos populacionais que
têm seu trabalho, modo de vida e cultura profundamente impactados pela
lógica da “produção destrutiva”.

REFERÊNCIAS

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da prática profissional. São Paulo: Cortez, 2002.
199
AMMANN, S. B. Ideologia do desenvolvimento de comunidade no Brasil.
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201
CRUZANDO A TRAVESSIA
retrocessos no Licenciamento Ambiental
em tempos de Golpe no Brasil

Maria das Graças e Silva1


Iris Pontes Soares2

INTRODUÇÃO

A realidade brasileira, em tempos de crise econômica, social e po-


lítica, surpreende a cada dia, chegando mesmo a provocar estarrecimento,
tamanha é a voracidade do capital – personificado em distintos segmentos
da burocracia estatal, representantes das camadas superiores dos poderes
executivo, legislativo e judiciário – no desmonte da proteção social brasilei-
ra, ainda que esta não passe de imagem edulcorada dos preceitos fundamen-
tais instituídos na Constituição Federal de 1988. Em conjuntura notadamente
regressiva, de retomada e aprofundamento da reação neoliberal, o ataque
aos direitos e conquistas, obtidas pela via das lutas sociais nas três últimas
décadas, parece não ter limite.
No bojo deste movimento de contrarreformas, verifica-se larga ofen-
siva em torno do esvaziamento de diversos mecanismos de gestão pública
do meio ambiente, destaque para o licenciamento ambiental, o qual vem
sendo alvo de duras investidas, especialmente do agronegócio e dos seto-
res da construção civil, desde os governos Lula-Dilma, sendo que, na con-
juntura atual, intensifica-se a pressão no parlamento brasileiro, com vistas
a promover alterações no texto legal, mudanças de caráter notadamente

1 Professora Associada do Departamento de Serviço Social da Universidade Federal de Pernambuco;


202 Membro do Programa de Pós-graduação em Serviço Social da Universidade Federal de Pernambuco
e líder do NEPASS – Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Questão Ambiental e Serviço Social.
2 Mestranda do Programa de Pós-graduação em Serviço Social da Universidade Federal de Per-
nambuco; Membro do NEPASS – Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Questão Ambiental e
Serviço Social.
PAULO ROBERTO FÉLIX DOS SANTOS EVERTON MELO DA SILVA LARYSSA GABRIELLA GONÇALVES DOS SANTOS

conservador3. O objetivo essencial é conferir maior liberdade ao capital, reti-


rando todos os obstáculos à acumulação privada, independente dos custos
ambientais que lhe correspondam.
Decerto que o licenciamento ambiental é um dos mais destacados ins-
trumentos de regulação ambiental. Sua origem, no Brasil, remonta à década
de 1980, a despeito dos debates sobre o meio ambiente ganharem relevância
nos países periféricos desde os anos 1970. Repercutindo as orientações da
primeira Conferência da Organização das Nações Unidas para o Meio Am-
biente (Estocolmo/1972), organismos internacionais passaram a exigir a apli-
cação de procedimentos relativos à avaliação de impactos ambientais como
condição para a liberação de empréstimos (MENDONÇA, 2015).
O licenciamento ambiental, preconizado na Política Nacional do
Meio Ambiente – PNMA4, tem por finalidade “promover o controle prévio
à construção, instalação, ampliação e funcionamento de estabelecimentos
e atividades utilizadoras de recursos ambientais, considerados efetiva e
potencialmente poluidores, bem como os capazes, sob qualquer forma, de
causar degradação ambiental” (BRASIL, 2009, p. 9). A exigência do licen-
ciamento ambiental busca estabelecer mecanismos mínimos de controle
das intervenções setoriais que possam comprometer a qualidade do meio
ambiente e a vida das populações atingidas direta ou indiretamente pelas
obras (BRASIL, 2009).
Apesar de o licenciamento anteceder a Constituição Federal de 1988,
esta reafirmou e estabeleceu “a competência ambiental comum dos entes fe-
derativos, e elevou à condição de preceito constitucional a proteção e defesa
do Meio Ambiente, bem como a necessidade de Estudo Prévio de Impacto
Ambiental para a instalação de obra ou atividade potencialmente causadora
de significativa degradação do meio ambiente” (BRASIL, 2009, p. 21).
Como elemento do aparato estatal, o licenciamento, assim, é autori-
zação para que determinado empreendimento possa causar algum grau de
impacto ao ambiente natural e às populações residentes de um território.

3 Objeto de discussão do item 2 deste trabalho.


4 Ainda no Governo Figueiredo, durante o período de abertura política, é sancionada a Lei 6.938,
de 1981, que institui a Política Nacional do Meio Ambiente (PNMA). Essa política visa nortear as-
pectos da gestão ambiental pública nacional e se constitui em um tripé formado pelas seguintes
203 bases: (i) primazia do crescimento econômico; (ii)consideração dos problemas ambientais con-
forme os preceitos de soberania e segurança nacional; (iii) operacionalização dos instrumentos
da política por meio de ferramentas técnico-burocráticas, com visão integrada dos elementos do
ambiente e possibilidade de participação da sociedade nas decisões de gestão ambiental pública
(MENDONÇA, 2015, p. 99).
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Para tanto, o projeto do empreendimento é avaliado pelo órgão licenciador


e são propostas ações para monitorar, mitigar ou compensar os danos do
investimento no local. Daí a importância de defendê-lo, exigir a sua efetiva-
ção, especialmente no que se refere aos seus aspectos mais democráticos
e universalizantes.
Durante os Governos Collor e FHC a gestão ambiental pública, em li-
nhas gerais e o licenciamento, em particular, foi tratada como moeda de troca
nas relações internacionais, vista como questão pertinente ao crescimento
econômico nacional. A criação do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente –
IBAMA, em 1989, e a publicação da Resolução 237, do Conselho Nacional
do Meio Ambiente (CONAMA)5, em 1997 – juntamente com as Resoluções
de número 1 e 9, “forneceram as diretrizes legais para que o licenciamento
ambiental passasse a ser aplicado nacionalmente segundo um padrão único
de procedimentos, de tipos de documentos a serem apresentados pelas em-
presas e de tipos de licenças ambientais a serem concedidas pelos órgãos
públicos” (MENDONÇA, 2015, p. 113).
Nesses termos é que se constituiu um dos poucos mecanismos de
controle sobre as instalações de grandes empresas e obras, tendo como
base de reflexão os impactos no ambiente físico-natural e nas populações
nativas das localidades afetadas6. Através do licenciamento, a legislação
ambiental se desenvolveu, ainda que travejada pelo ideário neoliberal, sabi-
damente adverso à atuação e regulação estatais.
Durante o chamado neodesenvolvimentismo, já no primeiro governo
de Luís Inácio Lula da Silva, a aplicabilidade do licenciamento tornou- se ob-
jeto de discussão em todo o país, dado à intensificação das disputas por
territórios, em decorrência das grandes obras e empreendimentos na área de
infraestrutura. O Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) foi um dos
principais estopins da exponenciação desses conflitos, levando o governo a

5 De acordo com a Resolução 237, as licenças são concedidas de acordo com a etapa do empreendi-
mento. Assim, existe a Licença Prévia (LP) que é a autorização de que é possível a existência daquele
empreendimento, no entanto, ela não aprova o início das obras, função essa pertencente à Licença
de Instalação (LI) que garante a execução de todas as instalações do projeto e por último é garantida
a Licença de Operação (LO) para que o empreendimento possa começar a funcionar. No entanto, é
necessário que exista a Renovação da Licença de Operação (RLO), que ocorre sempre entre 4 a 10
anos de funcionamento do empreendimento, para garantir o cumprimento das recomendações feitas
204 durante todo o processo do licenciamento.
6 No atual padrão institucional, a sociedade tem assegurado o acesso à discussão sobre a con-
cessão ou não de dada licença, bem como sobre os condicionantes do licenciamento – exigências
feitas pelo órgão ambiental ao empreendimento - através de audiências públicas, realizadas antes
da primeira licença ser concedida e durante a operacionalização da obra (BRASIL, 2009).
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flexibilizar a aplicação da legislação ambiental e urbana para a realização do


calendário de obras de infraestrutura. Muitas foram as manifestações contra
a realização dessas obras, tendo em vista os impactos negativos em relação
ao ambiente natural e às populações residentes nas áreas, como ocorreu nas
usinas hidrelétricas do Rio Madeira – Santo Antônio e Jirau; em Belo Monte;
em Suape/PE e, ainda. nas obras de transposição do São Francisco7.
No fim do governo Dilma Rousseff, com o agravamento da crise eco-
nômica e política, decorrente da ruptura na base de sustentação do governo e
dos escândalos envolvendo a denúncia de diversas empreiteiras na Operação
Lava Jato, o Governo Federal investiu em medidas de incentivo às grandes
empresas, na área tributária e fiscal, com vistas a criar possibilidades de reto-
mada do crescimento econômico do país. Moto contínuo, buscou acelerar os
processos de licenciamento para que obras de infraestrutura pudessem ser
desenvolvidas de maneira rápida, porém sem assegurar as condicionalidades
previstas em lei, fato tornado objeto de intensas manifestações políticas, tan-
to nas cidades quanto nos canteiros de obras do setor elétrico.
Na conjuntura pós-golpe de 2016, a ofensiva do capital sobre os re-
cursos naturais se intensifica, com as negociações em torno da privatização
das águas, da venda de terras para os grandes conglomerados internacionais,
da expulsão de indígenas e quilombolas e expropriação de seus territórios e
da entrega da biodiversidade da Amazônia ao capital, entre outras medidas,
de forma que os conflitos socioambientais tendem ao acirramento. No inte-
rior dessa dinâmica irracional e voraz do capital, constatam-se retrocessos
legais e efetivos, com repercussões para as atuais e futuras gerações.
O objetivo deste artigo é refletir sobre os rumos do licenciamento
ambiental no Brasil, no contexto de crise estrutural do capital e do processo
de financeirização do meio ambiente. Pretende-se apontar os impasses que
enfrenta o licenciamento ambiental no país, com destaque para a conjuntura
pós-golpe jurídico-midiático.
Parte-se do suposto que os avanços de ordem jurídico-formais, vol-
tados para a regulação do acesso aos recursos ambientais no país, obtidos
desde a década de 1980, entram em rota de colisão com as necessidades do

7 Do período citado, constata-se movimento de desconstrução da legislação ambiental, através


da flexibilização de normativas legais, como Inserção do 13º instrumento da PNMA (inciso XIII do
205 Artigo 9º da Lei), que permitiu o avanço, na política ambiental, dos mecanismos de mercado, como o
ecoturismo e o PSA7 além de abrir a possibilidade de haver concessões privadas e Parcerias Público
Privadas (PPPs) em Unidades de Conservação (UCs). A flexibilização do Código Florestal de 1965
permitiu a expansão da atividade produtiva em áreas protegidas e anistiou os proprietários rurais de
suas multas por desmatamento lavradas até 2008. (MENDONÇA, 2015, p. 266).
PAULO ROBERTO FÉLIX DOS SANTOS EVERTON MELO DA SILVA LARYSSA GABRIELLA GONÇALVES DOS SANTOS

processo de acumulação do capital em tempos de mundialização financeira,


dado ao aprofundamento da condição de país dependente e associado ao ca-
pital dos países imperialistas, traço estrutural da formação social brasileira.

A CONJUNTURA DE CRISE E A OFENSIVA DO CAPITAL


SOBRE OS BENS AMBIENTAIS

Historicamente, para assegurar sua reprodução, o capital opera um


movimento que, a um só tempo, explora e intensifica a alienação do trabalho
humano, promove desemprego, reduz direitos sociais e intensifica a des-
trutividade ambiental. As saídas burguesas para o enfrentamento da crise
estrutural do capital (MÉSZÁROS, 2002) tendem a exacerbar o processo de
barbarização da vida no planeta, com repercussões em todas as dimensões
da existência, quer diretamente no âmbito das relações sociais, quer nas
relações sociedade – natureza.
A lógica que preside a administração das crises é a concentração da
riqueza socialmente produzida, a custas da miséria de parte significativa da
população mundial8. Em nome de promover a “inclusão social”, na realida-
de, o capital, na era das finanças, promove contínua e sistematicamente a
expropriação, a separação do trabalhador dos seus meios e condições de
trabalho e do acesso à terra e aos recursos naturais, disponibilizando força
de trabalho para o mercado, intensificando a condição de penúria dos que
vivem para o trabalho.
Sob a hegemonia da finança, o capital busca driblar a crise de su-
perprodução, através da desregulamentação (mais liberdade para o sistema
financeiro), recessão, aumento dos juros, mais impostos, congelamento de
salários, corte de gastos sociais etc., além do deslocamento de parte da
mais-valia para a especulação financeira, contando para tanto com o apoio
dos bancos centrais, legítimos fiadores da acumulação.
Como contratendência à crise, o capital opera manobra de fortes re-
percussões ambientais e sociais, dentre essas a redução do tempo de vida
útil das mercadorias ou sua obsolescência programada (e cognitiva) como
estratégia de expansão da produção e do consumo. Esse movimento impul-
206

8 Conforme nos lembra Harvey “Em toda parte os ricos estão cada vez mais ricos. Os cem maiores
bilionários do mundo juntaram US$ 240 bilhões a mais em seus cofres só em 2012 (o suficiente
calcula a Oxfam, para acabar com a pobreza mundial da noite para o dia” (2016, p. 11).
PAULO ROBERTO FÉLIX DOS SANTOS EVERTON MELO DA SILVA LARYSSA GABRIELLA GONÇALVES DOS SANTOS

siona efetiva vampirização dos recursos do planeta, além da transformação


de diversos ecossistemas em verdadeiros depósitos de lixo. Trata-se de ver-
dadeiro saque dos recursos naturais do planeta, com fortes repercussões,
especialmente na periferia do sistema9.
Por outro lado, utilizando-se do princípio da sustentabilidade como
ferramenta ideológica, o sistema do capital desenvolve o paradigma da Eco-
nomia Verde10, que supõe serem os problemas ambientais contornados ou
superados pela via de sua incorporação no processo de acumulação, através
da privatização e mercantilização da natureza, inclusive dos bens de uso
comum, como a água. Daí a introdução dos conceitos de Pagamento pelos
Serviços Ecossistêmicos – PSE e de Pagamento pelos Serviços Ambientais
– PSA, sendo os créditos de carbono o mais regulamentado destes.
Se a mercantilização da natureza acompanha toda a história do ca-
pitalismo, o que de novo se apresenta nesta etapa de sua evolução é a su-
bordinação da natureza à lógica da financeirização, ou seja, a criação de
sistema que pode se apropriar de diversos setores e territórios inteiros: a
transformação de atividades relacionadas ao manejo de processos naturais
em commodities no mercado financeiro; a precificação de importantes di-
nâmicas ecossistêmicas; a criação do mercado de carbono; seguros contra
catástrofes, especialmente os desastres climáticos, entre outros. Nesse
caso, o Estado contrai dívidas, a juros altos para “se proteger” de eventos
raros. É a transformação dos efeitos mais gravosos da destrutividade am-
biental em objeto de transação mercantil.
Contraditória e dialeticamente, o que se verifica é que em nome da
sustentabilidade ambiental, desenvolve-se um conjunto de práticas portado-
ras de insustentabilidade social, posto que mediadas pelo mercado, o que
implica, em última análise, que bens naturais antes considerados de livre
acesso agora se destinam a quem possa pagar. Fontes (2015, apud JSB,
2016, p. 56) afirma,

9 O relatório “Global Material Flows And Resource Productivity” (PNUMA, julho de 2016) aponta
que, enquanto a população mundial duplicou de tamanho, a extração de recursos naturais globais
aumentou três vezes nos últimos 40 anos. A quantidade de matérias-primas arrancadas do seio da
207 natureza triplicou, com os países mais ricos consumindo duas vezes mais do que a média mundial.
Só os EUA representam 30% do consumo mundial, enquanto a África consome 5% com 3 vezes mais
a população norteamericana.
10 Assentada em três pilares: redução das emissões de carbono, uso eficiente dos recursos naturais
e inclusão social.
PAULO ROBERTO FÉLIX DOS SANTOS EVERTON MELO DA SILVA LARYSSA GABRIELLA GONÇALVES DOS SANTOS

O que ocorre, portanto, é um aprofundamento das relações de


expropriações que nos tornam mais disponíveis, desejosos e ne-
cessitados do capital e do mercado. Tornam as pessoas ainda
mais dependentes da lógica mercantil, pois ocorre um distancia-
mento do ser humano da sua capacidade de reprodução natural.

Ao fim e ao cabo, sob o argumento do esverdeamento da economia,


trata-se de “enfrentar” os efeitos mais gravosos da destrutividade ambiental,
através de mais mercado, seja criando empresas e mecanismos que explo-
rem o meio ambiente e as populações locais, seja através da supressão ou
retirada dos meios de vida e de trabalho de que dispunham e colocando-as
a serviço do capital.
No contexto de mundialização financeira, aprofundam-se as desigual-
dades entre centro e periferia, entre nações que ocupam posições hierarquica-
mente pautadas pela dominação e dependência. Nesses termos, os Estados
nacionais devem abrir mão de seu poder de regulação ou utilizá-lo tão somente
quando tratar-se de impulsionar a expansão do capital a qualquer custo.

LICENCIAMENTO AMBIENTAL
NA CONJUNTURA NEODESENVOLVIMENTISTA

O processo de desindustrialização que impactou a América Latina e


o Brasil tem seu impulso decisivo nos anos de 1990, na esteira do avanço
neoliberalismo no continente, aliado ao processo de reestruturação pro-
dutiva, de inspiração toyotista. Por meio dessa combinação estratégica,
o centro do capitalismo, comandado pelos EUA, impõe ao país programa
de desregulamentação e flexibilização dos mercados, de precarização do
trabalho, de ampla privatização das empresas estatais, promovendo recuo
nas economias de toda a região. Os custos econômicos e sociais dessa
investida – crescimento exacerbado da pobreza e da miséria, do desem-
prego, e a crise econômica, com o país chegando a índices baixíssimos de
crescimento – impuseram um reordenamento das estratégias burguesas
após uma década de ortodoxia neoliberal11.
208 11 Segundo Castelo (2011, p. 1), “Diante da crise conjuntural, que ameaçava parcialmente a he-
gemonia neoliberal em regiões do planeta, ideólogos de diversas instituições ligadas às classes
dominantes iniciaram um processo de revisão dos principais pontos do projeto neoliberal, sinteti-
zados no Consenso de Washington”. Surgiu com essa revisão ideológica do neoliberalismo o que
pode ser chamado de social-liberalismo [...]”.
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A Ascensão ao poder, na primeira década do século XXI, de coalizão


de forças comandada pelo Partido dos Trabalhadores - PT manifestou adesão
inequívoca deste ao ideário burguês, tornando-o instrumento de sua legiti-
mação e sustentação político-ideológica, dando continuidade a um processo
de adaptação à ordem que se iniciara em meados da década de 1980. Com
o Governo Lula-PT, a burguesia se vale da prática do transformismo, modali-
dade atrelada aos processos de “revolução passiva”, para, em ambiente de
contrarreforma, recompor sua hegemonia e avançar no domínio ideológico da
sociedade (SILVA; ARAÚJO, 2013).
O assim denominado neodesenvolvimentismo fundamenta-se na arti-
culação entre a exportação de produtos primários (agrário-extrativistas) e na
realização de grandes obras de infraestrutura, além do fomento ao mercado
interno, baseado em bens de consumo duráveis, produzidos em larga medida
pelos monopólios. Para sua legitimidade conta com a estabilidade econô-
mica, obtida no período anterior, ao mesmo tempo em que formula crítica à
radicalidade neoliberal – especialmente a seus efeitos mais gravosos. Por
outro lado, impulsiona alguns avanços na área social, como recomposição
do poder de compra do salário mínimo, expansão da oferta de crédito (o que
permitiu a expansão do consumo para segmentos importantes da classe tra-
balhadora, embora às custas do endividamento das famílias) e expansão dos
programas sociais (Bolsa-Família, PRONAF, etc.).
Para Alves (2016, p. 118), a política neodesenvolvimentista opera no
Brasil contradições vivas do desenvolvimento capitalista na periferia do sis-
tema, na medida em que assume a tarefa de combater a pobreza e inserir
o subproletariado no mercado formal, ao tempo que mantém intocados os
fundamentos do capitalismo, incentivando a centralização e concentração
do capital oligopólico em sua fase senil: é o “amesquinhamento irremediável
do desenvolvimento histórico que caracterizou a ideologia socialdemocrata
na era de ascensão histórica do capital”.
Sob o signo neodesenvolvimentista o Brasil passa por intensas
transformações. Em face do mercado mundial marcado pela concorrência
mercantil, que se intensificou com a exacerbação da crise mundial de 2008,
o país redefine a sua inserção na divisão internacional do trabalho, com o
aprofundamento de sua condição de fornecedor de commodities.
209 O incremento na exportação de commodities – grãos, carnes, celulose,
etanol, minérios diversos, com peso crescente na economia do país, impulsio-
na a ocupação de áreas protegidas, acelera o desmatamento na Amazônia,
embora não exclusivamente, a qual se torna objeto de cobiça para a criação
PAULO ROBERTO FÉLIX DOS SANTOS EVERTON MELO DA SILVA LARYSSA GABRIELLA GONÇALVES DOS SANTOS

de gado, construção de grandes usinas hidrelétricas e pela mineração, entre


outros. Segundo Maricato (2013), esse processo produziu verdadeiro tsu-
nami de capitais globais e nacionais, subordinando terras indígenas ou de
quilombolas, florestas que foram amplamente derrubadas e criminalizando o
Movimento dos Trabalhadores Rurais na luta pela terra e em defesa de seus
territórios12. A ofensiva do capital no campo, comandada pelo agronegócio13,
se assenta em estrutura de classes arcaica e conservadora, erguida sobre o
latifúndio - e a histórica concentração de riqueza e de poder que lhe é imanen-
te - e a ultrapassa, reafirmando o amálgama entre o moderno e o arcaico, que
acompanha a produção do espaço agrícola no Brasil.
Por sua vez, as grandes obras de infraestrutura - outro pilar importante
do pacto neodesenvolvimentista, tendo o Programa de Aceleração do Cres-
cimento (PACs I e II) como carro-chefe14– aglutina os grandes grupos eco-
nômicos, vinculados à construção civil pesada, os bancos de financiamento,
a indústria automobilística e setores da burocracia estatal, determinados a
impulsionar o crescimento econômico a todo custo, tanto como estratégia
para assegurar os lucros capitalistas quanto para garantir o fortalecimento
do bloco político no poder.
No plano das aproximações que vimos realizando nesta temática,
parece-nos razoável afirmar que ela é a base material sobre a qual se ergue
intensa ofensiva na regulação pública do meio ambiente e, em particular, no
licenciamento ambiental, indicando efetivos retrocessos na agenda ambien-
tal brasileira, sobretudo a partir do final da década de 2000. Inúmeras são as
evidências do que se afirma aqui15.

12 É a questão urbana, estúpido! Disponível em: http://www.diplomatique.org.br/artigo.php?id=1465.


Acessado em 8 de setembro de 2013.
13 O agronegócio no comando da acumulação no campo configura subsistema técnico e político que
envolve o capital financeiro, a indústria química, a indústria de biotecnologia, sementes, fertilizantes,
tratores, enfim, toda a indústria metal mecânica, constituindo modelo agrícola e pecuário que vincula
a agricultura químico-dependente e os monocultivos para a exportação, incorporado, financiado e
apoiado pelo Estado brasileiro (RIGOTTO, 2010).
14 Nos seus primeiros quatro anos, estima-se que o PAC ajudou a dobrar os investimentos públicos
brasileiros (de 1,62% do PIB em 2006 para 3,27% em 2010) e ajudou o Brasil a gerar volume recorde
de empregos – 8,2 milhões de postos de trabalho no período.
15 Mencionemos as mais significativas: a Portaria 303, da Advocacia Geral da União – AGU,
210 de julho de 2012, considerada inconstitucional por todas as entidades representativas dos povos
indígenas e pela própria Fundação Nacional do Índio – FUNAI, portaria esta que previa a constru-
ção de bases militares, estradas ou hidrelétricas em áreas demarcadas, independentemente de
consulta às comunidades indígenas; tudo em respeito à soberania nacional. Neste mesmo sentido,
foi editada a Medida Provisória MP-558, cujo objetivo foi excluir 86 mil hectares de sete Unidades
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Em contexto de expansão econômica, o país apresentou números su-


periores em relação ao licenciamento, comparativamente à década de 1990.
As duras críticas que lhe foram desferidas procederam, na maior parte das
vezes, de setores empresariais que querem desobrigar-se de investir em
medidas ambientais, alegando que elas constituem obstáculos ao desen-
volvimento, além da alegada morosidade. Na realidade, o objetivo é a desre-
gulamentação, pois apesar da defesa e proteção do meio ambiente ser peça
integrante dos discursos e documentos institucionais, no plano das ações
objetivas o licenciamento vem sofrendo duros ataques, especialmente os
Estudos de Impacto Ambiental e o Relatório de Impacto sobre o Meio Am-
biente – EIA-RIMA, dado que eles definem condicionantes de licenciamento,
em geral de natureza mitigatória e compensatória, com custos financeiros
para os empreendimentos16.
Como parte dessa agenda regressiva, tem-se conjunto de iniciativas
do capital e mesmo do governo no sentido do efetivo desmonte do licen-
ciamento. Certamente, o caso de maior repercussão foi a construção da
usina hidrelétrica de Belo Monte, no Pará. Denúncias se sucederam contra
a recusa de realização das audiências públicas, por parte dos órgãos licen-
ciadores, além da fragmentação dos projetos, dificultando sua apreciação
no conjunto e a consequente avaliação dos reais impactos sobre o meio físi-
co-natural e sobre as populações afetadas pelos empreendimentos, além de
divulgação de falsas informações quanto à extensão da obra. Ressalte-se
que este processo de burla ensejou várias medidas judiciais de suspensão
das obras, posto que os projetos de grandes barragens são considerados de
alto impacto socioambiental.
Nessa dinâmica, não se poderia deixar de mencionar a Lei Comple-
mentar 140/2011, a qual retira atribuições do Conselho Nacional do Meio

de Conservação - UCs na Amazônia para construção de barragens nos rios Madeira e Tapajós.
Certamente, o caso de maior repercussão foi votação e homologação do novo Código Florestal.
Assentado no argumento da caducidade da legislação anterior, ele se prestou, efetivamente, a en-
cobrir a drástica redução das Áreas de Proteção Permanentes (APPs) – essenciais para a proteção
dos mananciais - o contrabando de milhões de imóveis rurais sob a alegada solidariedade aos “pe-
quenos produtores” e a anistia dos desmatadores (anteriores a 2008), além da transferência aos
Estados da competência para definir o que são atividades de utilidade pública e de interesse social,
“estabelecendo concessões, permissões, flexibilizações na legislação para facilitar a vida dos seus
211 produtores rurais, padronizando por baixo a questão ambiental” (LIMA, 2011, p. 1)
16 Mais informações disponíveis em: Apesar das críticas, licenciamento ambiental bate recorde
em 2006. Disponível em: http://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Meio-Ambiente/Apesar-das-cri-
ticas-licenciamento-ambiental-bate-recorde-em-2006/3/12767;. Acessado em 3/de julho de 2017.
PAULO ROBERTO FÉLIX DOS SANTOS EVERTON MELO DA SILVA LARYSSA GABRIELLA GONÇALVES DOS SANTOS

Ambiente (CONAMA) e reduz o papel do IBAMA na fiscalização de irregula-


ridades ambientais. Conforme apontado, inicialmente, o objetivo é esvaziar
o licenciamento e a ação do Estado, transformando os EIA-RIMA em peças
decorativas, reduzindo, assim, seu alcance.
Esse retrocesso, que se opera na esfera jurídico-formal, não vem ocor-
rendo sem resistências, seja de modo direto, quando os movimentos ocupam
canteiros de obras, denunciando os impactos negativos das obras, seja in-
diretamente, exigindo o cumprimento dos condicionantes de licenciamento,
como as audiências públicas, o cumprimento de medidas de compensação e
de mitigação dos impactos ambientais, dentre outros.

O LICENCIAMENTO AMBIENTAL
NA CONJUNTURA BRASILEIRA PÓS-GOLPE

A conjuntura mundial pós-crise de 2008-2009 constitui um dos marcos


da articulação do golpe que derrubou a presidente brasileira Dilma Rousseff
do poder, em 2016. Variável importante na dinâmica do golpe é a busca dos
EUA por recuperar sua influência na América Latina, enfraquecida pelos reali-
nhamentos operados por diversos governos de países do continente – espe-
cialmente Brasil, Argentina, Paraguai, Uruguai, Venezuela, Equador e Bolívia
– empenhados em construir alianças comerciais e políticas desgarradas da
potência norte-americana, ainda que não de caráter rupturista. A retomada
dos supostos neoliberais em sua radicalidade, temporariamente arrefecida
pela vaga neodesenvolvimentista e pela articulação dos BRICS, passou a ser
vital para a recuperação da hegemonia americana no país, possibilitando o
aprofundamento da exploração do trabalho, a intensificação da rapina dos
recursos naturais e do fundo público, via empresas estatais e de autarquias
governamentais remanescentes da era FHC-Collor (ALVES, 2016).
Contudo, para além das pressões internacionais, o governo Dilma
enfrentou descontentamento no âmbito interno, cujo epicentro deu-se com
as jornadas de junho de 2013, demonstrando o exaurimento do projeto de
conciliação de classes que se quer distributivista, sem realizar reformas es-
senciais; bem ao contrário, os governos neodesenvolvimentistas propiciaram
212
a concentração de capitais, levando o sistema bancário a obter lucros es-
tratosféricos, enquanto as camadas médias da classe trabalhadora se viram
escorchadas pelo aumento da carga tributária, pelo achatamento dos níveis
PAULO ROBERTO FÉLIX DOS SANTOS EVERTON MELO DA SILVA LARYSSA GABRIELLA GONÇALVES DOS SANTOS

salariais e pelo endividamento das famílias. Os efeitos do aprofundamento


da crise internacional haviam traído as mais otimistas profecias de Lula, em
seu último governo: mais que uma “marolinha”, o espectro da crise expunha
suas garras e revelava com astúcia irretocável a voracidade do capital em sua
busca por saquear os trabalhadores, o fundo público por eles constituído e os
recursos ambientais.
Aproveitando-se da queda de legitimidade do governo Dilma e diante
de uma esquerda incapaz de oferecer respostas aos anseios e críticas dos
múltiplos segmentos em luta, operou-se obra de engenharia política ousa-
da: com forte engajamento da mídia oligopolizada e apoiando-se em se-
tores majoritários do judiciário e do parlamento capturados pelos grandes
grupos econômicos nacionais e transnacionais, destituiu-se a presidente
eleita, com o objetivo de realizar movimento de contrarreformas, de caráter
privatista e conservador, em velocidade assustadora, sob o argumento do
combate à corrupção.
Conforme nos lembra Alves (2016), em brilhante contribuição para o
desvelamento da complexa conjuntura atual:

Pelo fato do Brasil ser o elo mais forte do imperialismo norte-ame-


ricano na América do Sul, a natureza da experiência progressista
adotada por Lula e Dilma, experiência neodesenvolvimentista que
ousou articular-se no plano externo geopolítico com adversários
do modelo de capitalismo liberal hegemonizado por Washington
– que discutiremos abaixo – tinha como “calcanhar de Aquiles”,
a sua incapacidade de refundar o Estado brasileiro de matriz oli-
gárquica-neoliberal. Incapaz de derrotar pelo voto o projeto neode-
senvolvimentista, como correu na Argentina, Washington apoiou,
subrepticiamente, um golpe de Estado de novo tipo, ensaiado no
Paraguai em 2012 – o dito “golpe político-jurídico-midiático”17.

E o autor conclui:

(...) No cenário de desaceleração da economia por conta da crise


global, provocando queda da arrecadação fiscal, a implementação
e ampliação de Programas de Assistência Social sem uma ver-
dadeira Reforma Tributária, a adoção da política da taxa de juros
altos para combater uma inflação de oferta e a manutenção do
213 pagamento e serviços da dívida pública, contribuíram para acirrar

17 Disponível em: https://blogdaboitempo.com.br/2016/06/08/o-golpe-de-2016-no-contexto-da-


-crise-do-capitalismo- neoliberal/. Acessado em 3 de fevereiro de 2017.
PAULO ROBERTO FÉLIX DOS SANTOS EVERTON MELO DA SILVA LARYSSA GABRIELLA GONÇALVES DOS SANTOS

o conflito distributivo que assumiu a dimensão da luta de classes e


a implosão do lulismo como estratégia de governabilidade.

Nesses termos, o chamado neodesenvolvimentismo escancara seus


limites, como herdeiro de institucionalidade política oligárquica, fortemente
elitista e conservadora, reiterativa dos traços essenciais da formação social
brasileira: a persistência do atraso, quando se quer moderno.
A conjuntura sucedânea ao golpe aprofunda o contexto de crise em
níveis certamente nunca vivenciados pelas gerações atuais. A crise de legiti-
midade do governo Temer, as denúncias de corrupção envolvendo os grupos
políticos que, com o argumento de combatê-la, articularam o golpe, produz
sentimento de descrença generalizada nas instituições e de paralisia, sobre-
tudo entre os segmentos que foram às ruas apoiar o golpe. O que se observa,
ao fim e ao cabo, é o vazio político alimentado pela evidente recusa da es-
querda tradicional (boa parte dela abrigada no partido dos trabalhadores) em
assumir a radicalidade que a conjuntura exige, organizando e mobilizando os
trabalhadores para o enfrentamento dos duros ataques personificados nas
“reformas” trabalhista e previdenciária.
É possível aventar, neste contexto marcadamente regressivo, que o
alinhamento do governo golpista aos interesses neoliberais tende a enfraque-
cer os já insuficientes mecanismos de regulação e controle da exploração do
meio ambiente, especialmente o licenciamento ambiental, dado ao caráter
liberalizante do bloco hegemônico que assaltou o poder. Diversos projetos e
pautas que se encontravam engavetados nas instâncias decisórias – sobre-
tudo no parlamento – entram na ordem do dia, aproveitando-se de correlação
de forças favorável ao projeto liberal-burguês.
No tocante ao licenciamento, diversos projetos e emendas estão em
tramitação. O mais importante, todavia, é o Projeto de Lei 3.729, de 2004,
chamado de Lei Geral do Licenciamento Ambiental, desengavetado, apesar
das muitas resistências18, encontra-se em tramitação na Câmara dos Deputa-
dos (MEDEIROS, 2016). Suas propostas dizem respeito ao enfraquecimento
do licenciamento, com redução de tempo para liberação das obras, possibi-
lidade do licenciamento trifásico, reunindo em uma só as três atuais etapas
do processo legal, além do fim do mecanismo das audiências públicas como
214 18 Mais de 140 organizações assinam carta denunciando medidas que violam direitos humanos e
colocam em risco a proteção ambiental. Mais informações disponíveis em “Sociedade civil se une
contra retrocessos promovidos pelo governo e bancada ruralista”. Disponível em: http://www.inesc.
org.br/noticias/noticias-do-inesc/2017/maio/licenca-para-destruir-resista/sociedade-civil-se-une-
-contra-retrocessos-promovidos-pelo-governo-e-bancada-ruralista. Acessado em 3 de julho de 2017.
PAULO ROBERTO FÉLIX DOS SANTOS EVERTON MELO DA SILVA LARYSSA GABRIELLA GONÇALVES DOS SANTOS

possibilidade de diálogo com a sociedade civil, instrumento criado, ainda,


durante o regime militar. Essa proposta, formulada pela Frente Parlamen-
tar Agropecuária (FPA) e abraçada pelo governo ilegítimo, visa beneficiar as
empresas, os latifundiários e o agronegócio, que poderão instalar empreen-
dimentos no território nacional, desresponsabilizando-se dos impactos ne-
gativos sobre o ambiente físico-natural e a vida das populações locais.
Também está previsto, no conjunto das mudanças propostas, o fim
do licenciamento para algumas obras entendidas como de “interesse nacio-
nal”. Esses empreendimentos compõem hoje extensa lista de setores que
passarão a ser desobrigados de realizar o licenciamento ambiental, apesar
dos danos que sabidamente causarão19. Para os que ainda precisarem rea-
lizar o licenciamento, a proposição do referido PL é acelerar o processo,
estabelecendo prazo curto para sua conclusão e reduzindo, assim, o tempo
para a produção do Estudo de Impacto Ambiental (EIA), estratégia eficaz
para esvaziá-lo, de fato.
Conforme propugnado pelo referido PL, também é possível que os
empreendimentos transfiram suas reponsabilidades ambientais, estabeleci-
das no âmbito do licenciamento, para empresas ou grupos terceirizados ou,
ainda, órgãos governamentais, através de transferências de recursos. Assim,
estes passarão a responder pelas ações de avaliar, mitigar e compensar
os impactos das obras. De acordo com o texto, o empreendimento estaria
“isento de qualquer responsabilidade subsidiária ou solidária decorrente da
inexecução das medidas compensatórias cujos recursos foram repassados”,
desresponsabilizando-o.
Outro elemento se relaciona à redução do papel dos órgãos responsá-
veis pelas ações ligadas aos povos indígenas, quilombolas e de preservação
do patrimônio histórico e cultural. Segundo o texto do PL, as manifestações
desses órgãos “não vinculam a decisão do órgão licenciador”, que deverá
motivar as manifestações que forem rejeitadas ou acolhidas.
Um último destaque com relação a esse projeto diz respeito à tentativa
de desresponsabilizar o sistema financeiro dos problemas que as obras por

19 A proposta da nova Lei Geral de Licenciamento Ambiental dispensa as atividades e empreendi-


mentos na agricultura, pecuária e florestas plantadas desse processo e fixa prazos administrativos
para a avaliação dos pedidos por autoridades da Funai, Fundação Palmares, IPHAN e os “órgãos
executores” nas unidades de conservação. O texto também isenta do licenciamento as obras e
215 serviços de melhoria, manutenção e ampliação em instalações atuais ou em faixa de domínio de
atividades já licenciados, como estradas e rodovias, inclusive a dragagem de portos. E prevê a “com-
petência supletiva” para Estados emitirem licenças ambientais em caso de demora no processo.
http://blogs.canalrural.com.br/blogdozanatta/2017/08/30/.
PAULO ROBERTO FÉLIX DOS SANTOS EVERTON MELO DA SILVA LARYSSA GABRIELLA GONÇALVES DOS SANTOS

eles financiadas possam causar ao ambiente e à população. De acordo com o


texto, “as entidades governamentais de fomento e as instituições financeiras
autorizadas a funcionar pelo Banco Central somente responderão por dano
ambiental se comprovado dolo ou culpa e relação de casualidade entre sua
conduta e o dano causado, sendo responsáveis, subsidiariamente, por reparar
o dano para o qual tenham contribuído, no limite da sua contribuição para o
referido dano”. Sabe-se, no entanto, que sem o financiamento os investimen-
tos não são efetivados, sendo indispensável, portanto, que o financiador se
responsabilize sobre a destinação de seus recursos.
Ainda no tocante ao licenciamento, outras propostas semelhantes
às do PL aqui considerado passaram a tramitar no Senado, como o PL
654/2015, que visa diminuir o tempo de elaboração do Termo de Referência
sobre os estudos de impactos da instalação de grandes empreendimentos
em áreas ocupadas por povos tradicionais, além de suprimir a realização de
audiências públicas com as populações envolvidas. Também é desse perío-
do o PL 602/2015, ainda em tramitação naquela Casa, que pretende criar
um Balcão Único de Licenciamento, com o objetivo de “desburocratizar”
a emissão de licenças ao colocar em um único colegiado representantes
de todas as instituições envolvidas. Soma-se, ainda, aos anteriores, o PL
603/2015, que propõe priorizar as emissões de licenças para o aproveita-
mento de potenciais hidrelétricos, também em tramitação no Senado.
Como se pode demonstrar na exposição acima, o que se pretende com
esse arsenal de mudanças pretendidas é a desregulação da atividade econô-
mica, no que tange aos impactos socioambientais por elas produzidos20. No
mais perfeito estilo liberal, trata-se da externalização dos custos ambientais,
em outras palavras, as empresas privatizam os lucros e socializam os danos
e efeitos gravosos de sua atividade.

20 Outros retrocessos estão previstos: Venda de terras para estrangeiros (PL 4059/2012), redução
das áreas protegidas e de UCs (MP 756/2016), liberação de agrotóxicos (PL 6299/2002 - PL do Vene-
no e PL 34/2015 - Rotulagem de Transgênicos), facilitação da grilagem de terras, ocupação de terras
públicas de alto valor ambiental e fim do conceito de função social da terra (MP 759/2016). Ataque
216 a direitos trabalhistas de trabalhadores do campo (PL 6422/2016 - Regula normas do trabalho rural,
PEC 287/2016 - Reforma previdenciária e PLS 432/2013 - Altera o conceito de trabalho escravo),
ataque a direitos de populações ribeirinhas e quilombolas. (MP 759/2016 e PL 3.729/2004), além da
flexibilização das regras de Mineração (PL 37/2011 - Código de Mineração) (INESC, 2017).
PAULO ROBERTO FÉLIX DOS SANTOS EVERTON MELO DA SILVA LARYSSA GABRIELLA GONÇALVES DOS SANTOS

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As reflexões empreendidas até aqui remetem às primeiras sínteses


aproximativas acerca dos profundos impasses atuais que enfrenta o li-
cenciamento ambiental no Brasil, tendo em vista a tendência regressiva e
conservadora que vem pautando a institucionalidade burguesa, com fortes
repercussões no conjunto da vida social. Os ataques às conquistas sociais
e ambientais, obtidas nos duros combates à ditadura civil militar (e seu pro-
jeto concentrador de riqueza e de poder), parecem encarrilhar-se à espera do
próximo alvo: para a reação neoliberal em curso não deverão restar marcas
ou registros dos anseios de construção de uma sociedade livre da explora-
ção e da dominação de classe. A flexibilização dos instrumentos políticos e
jurídico-formais construídos nas quatro últimas décadas parecem constituir
fronteira decisiva para a expansão dos negócios burgueses.
A reprodução da ordem burguesa em tempos de crise estrutural do ca-
pital impõe ofensiva brutal sobre as condições de vida dos trabalhadores em
todo o mundo, especialmente dos que se localizam na periferia do sistema.
Corroborando as teses de Alves (2016), pode-se aventar que o sentido último
da articulação golpista que atingiu a frágil democracia brasileira na metade
desta década é, por um lado, a busca pela retomada da hegemonia norte-ame-
ricana no continente (posto que o Brasil é peça-chave nessa estratégia) e, por
outro, a disputa pelo fundo público levada a termo pelos oligopólios.
Por outro lado, dado à condição que marca a inserção brasileira na
divisão internacional do trabalho como fornecedor de commodities, além de
se tratar de país dotado de um vasto território e rica biodiversidade, cabe
atentar para as estreitas relações entre as articulações golpistas e os inte-
resses de frações do capital, sobretudo dos oligopólios internacionais, em
aprimorar e flexibilizar os instrumentos de apropriação dos recursos naturais
aqui existentes: a tentativa de mudanças na legislação, para permitir a com-
pra de terras por estrangeiros; a pressão em torno das alterações no marco
regulatório do petróleo; o debate em torno do Código de Mineração; as inicia-
tivas de mercantilização dos bens de uso comum, além da flexibilização do
licenciamento ambiental são elementos que devem ser objeto de inquietação
e de indagação científica. Se por um lado é plausível afirmar o caráter limita-
217
do e tecnocrático do licenciamento ambiental no Brasil, de outro constata-se
na conjuntura atual, um amplo movimento liberalizante, cujo fim último é as-
segurar que “o direito de poluir”, antes objeto de regulação pública, passe a
PAULO ROBERTO FÉLIX DOS SANTOS EVERTON MELO DA SILVA LARYSSA GABRIELLA GONÇALVES DOS SANTOS

ocorrer isento de quaisquer condicionantes, desresponsabilizando o capital


frente aos danos ambientais e sociais de sua reprodução.
Em conjuntura marcadamente regressiva, na qual as forças de resis-
tência buscam encontrar seu lugar, cabe pedido de licença pra concluir este
artigo com uma citação: “Estão plantadas as sementes de uma revolta huma-
nista [e diria revolucionária] contra a inumanidade pressuposta na redução
da natureza e da natureza humana à pura forma-mercadoria. A alienação da
natureza é a alienação do potencial de nossa espécie. Isso gera um espírito
de revolta no qual palavras como dignidade, respeito, compaixão, cuidado e
afeto se tornam slogans revolucionários, e valores como verdade e beleza
substituem os cálculos frios do trabalho social”. Oxalá Harvey tenha razão!

REFERÊNCIAS

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Disponível em https://blogdaboitempo.com.br/2016/06/08/o-golpe-de-2016-no-
-contexto-da-crise-do-capitalismo-neoliberal/. Acessado em 3 de julho de2017.
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ciamento ambiental. Ministério do Meio Ambiente. Brasília, 2009.
CALIXTO, B. Trump Sai do Acordo de Paris. Ruim para o planeta, pior para os
EUA. Disponível em:http://epoca.globo.com/ciencia-e-meio-ambiente/blog-
-do-planeta/noticia/2017/06/trump-sai-do-acordo-de-paris-ruim-para-o-plane-
ta-pior-para-os-eua.html. Acessado em 3 de julho de2017.
HARVEY, D. 17 contradições e o fim do capitalismo. Tradução Rogério Bettoni.
1ª Ed. São Paulo: Boitempo, 2016.
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e Bancada Ruralista. Disponível em:http://www.inesc.org.br/noticias/noti-
cias-do-inesc/2017/maio/licenca-para-destruir-resista/sociedade-civil-se-u-
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MEDEIROS, É. Meio Ambiente sob Ameaça no Congresso. Disponível em:
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https://www.cartacapital.com.br/politica/meio-ambiente-sob-ameaca-no-
-congresso; Acessado em 3 de julho de 2017.
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tica pública ambiental brasileira com a produção e a expansão capitalista do
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mentam-e-violencia-no-campo-bate-recorde-diz-comissao-pastoral-da-ter-
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Meio-Ambiente/Apesar-das-criticas-licenciamento-ambiental-bate-recorde-
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