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O PROBLEMA DO TEXTO NA LINGU[ s NA FILOLOGIA E EM OUTRAS CIENCIAS HUMANAS UMA EXPERIENCIA DE ANALISE FILOSOFICA Cabe denominar filoséfica a nossa andlise antes de tudo por consi- deragées de indole negativa: nao é uma andlise linguistica, nem filolé- gica, nem critico-literdria ou qualquer outra andlise (investigacdo) es- pecial. As consideragées positivas so estas: nossa pesquisa transcorre em campos limitrofes, isto é nas fronteiras de todas as referidas discipli- nas, em seus cruzamentos e jun¢ao. O texto (escrito ou oral) enquanto dado primario de todas essas disciplinas, do pensamento filolégico-humanista no geral (inclusive do pensamento teoldgico ¢ filosdfico em sua fonte). O texto éa realida- de imediata (realidade do pensamento e das vivéncias), a tinica da qual podem provir essas disciplinas ¢ esse pensamento. Onde nao hd texto nao hd objeto de pesquisa e pensamento. O texto “subentendido”. Se entendido o texto no sentido amplo como qualquer conjunto coerente de signos, a ciéncia das artes (a mu- sicologia, a teoria ea histbria das artes plésticas) opera com textos (obras de arte). S40 pensamentos sobre pensamentos, vivencias das vivéncias, palavras sobre palavras, textos sobre textos. Nisto reside a diferenga es- sencial entre as nossas disciplinas (humana) e naturas (sobre a natureza), embora aqui nao haja fronteiras absolutas, impenetrdveis. O pensar Digitalizado com CamScanner 308 | MiKHAtL naxteris dizer, cientificamente cxato dos textos ¢ a critica dos textos sao fe menos mais tardios (trata-se de toda uma reviravolta no pensamento das ciéncias humanas, do nascimento da desconfianga). A principio era a fé, que exige apenas compreensio — interpretagdo. O apelo aos textos profanos (0 aprendizado de linguas, etc.). Nao ¢ nossa intenga aprofundamento na histéria das ciéncias humanas, particularmente da filologia ¢ da linguistica — estamos interessados na especificidade do pensamento das ciéncias humanas, voltado para pensamentos, sentidos ¢ significados dos outros, etc., realizados ¢ dados ao pesquisador ape- nas sob a forma de texto. Independentemente de quais sejam os objeti- vos de uma pesquisa, s6 0 texto pode ser 0 ponto de partida. Todo texto tem um sujeito, um autor (0 falante, ou quem escreve). Os posstveis tipos, modalidades e formas de autoria. Em certos limites, a andlise linguistica pode até abstrair inteiramente da autoria. A inter- pretacao de um texto como modelo (os jutzos modelares, os silogismos na Iégica, as oragées na gramatica, a “comutaga0”” na linguistica, etc.) Textos imagindrios (modelares ¢ outros). Textos a serem construidos (com fins de experimento linguistico ou estilfstico). Aqui, manifestam-se em toda parte tipos especiais de autores, inventores de exemplos, expe- rimentadores com sua peculiar responsabilidade autoral (aqui existe tam- bém um segundo sujeito: quem poderia dizer dessa maneira). O problema das fronteiras do texto. O texto como enuinciado. O pro- blema das fungées do texto e dos géneros de texto. Dois elementos que determinam o texto como enunciad: ideia (intengao) e a realizacao dessa intengio. As inter-relagées dindmi- cas desses elementos, a luta entre eles, que determina a indole do tex- to. A divergéncia entre eles muita coisa pode sugerir. O “ “Pelestradal” (Leon Tolstéi)". Os lapsos e omissées segundo Freud (expresso do in- consciente). Mudanga da intengao no processo de sua realizagéo. O 040 cumprimento da intengao fonética. sua Digitalizado com CamScanner ESTETICA DA CRIAGAO VERBAL | 309 O problema do segundo sujeito, que reprodus (para esse ou outro fim, inclusive para fins dle pesquisa) o texto (do outro) e cria um texto emoldurador (que comenta, avalia, objeta, etc.). A dualidade especial de planos e sujeitos do pensamento das cién- cias humanas. A textologia como teoria ¢ pratica da reprodugao cienti- fica dos textos literdrios. O sujeito textolégico (0 textélogo) ¢ as suas peculiaridades. A questao do ponto de vista (da posigo espdcio-temporal) do ob- servador na astronomia e na fisica, O texto como enunciado inclufdo na comunicacao discursiva (na cadeia textolégica) de dado campo. O texto como ménada original, que reflete todos os textos (no limite) de um dado campo do sentido. A concatenacao de todos os sentidos (uma vez que se realizam nos enunciados). As relagGes dialégicas entre os textos ¢ no interior de um texto. Sua indole especifica (nao linguistica). Didlogo e dialética. Dois pélos do texto. Cada texto pressup6e um sistema universal mente aceito (isto é, convencional no Ambito de um dado grupo) de signos, uma linguagem (ainda que seja linguagem da arte). Se por trés do texto nao hé uma linguagem, este jd nao é um texto mas um fend- meno das ciéncias natutais (semiético*), por exemplo, um conjunto de gritos naturais e gemidos desprovidos de repetigao lingufstica (semié- tica). E claro, todo texto (seja ele oral ou escrito) compreende um nii- mero considerével de elementos naturais diversos, desprovidos de qual- quer configuragdo semiética, que vao além dos limites da investigacao humanistica (Linguistica, filolégica, etc.) mas sao por esta levados em conta (a deteriora¢éo de um manuscrito, uma dicgao ruim, etc.). Nao h4 nem pode haver textos puros. Além disso, em cada texto existe uma série de elementos que podem ser chamados de técnicos (aspecto téc- nico do gréfico, da obra, etc.). Portanto, por trds de cada texto est o sistema da linguagem. A esse sistema corresponde no texto tudo 0 que é repetido e reproduzido ¢ v * Embora Bakhtin ndo use o termo “semiético” mesmo estando tratando de signo, re- solvemos usé-lo para evitar a adjetivagao da palavra “signo”. (N. do T.) Digitalizado com CamScanner orSnposdar v faayssod 9 9¢ “01x91 Op (vongrwias) aruvoyrudis apeprorun va (srenSip soossasdury se ‘ojduraxa sod) jesnieu apepieynsurs Vy “(pded op oesuanu @ opetnpsogns ‘opSeiuasasdau ap ‘ourpmigre 01808 ow1o>) 021 -oiuias opeoyfudis azmbpe sone op ogSesuasasdas vu pesnieu 01898 C ‘ ‘01x91 Op vIJOI]_ “02XAI OP [INS 9 VOLT “epuryosd ovsuaaid -qyoo eUIn vIEpssa0U 9s-zey ‘OpnIuOD ‘oESsadsonUT R BOA} “O10 O ered oruenb wu exed o1uea sorxaa wo ovSezi[ead BU “eIOTUTOS ovssosdxa zu seuade sews (sresmaeu se1oug!> sep orerpausy o19{qo) es}09 OWL OPeP 39s apod ou (ox3no op 02 niaur 0) oxts3ds9 () “ortssdso op wou! Y -(opmnsuos 198 & ‘o1rpurSeur “[en3uaAd Op SoUDUT OF) 01x21 op se31]sop 28 ou 9 pedrounsd © “Testo ovSeon{dxo ep svsyosuoyy Sep OF} -sonb y ‘09d opundas op zny x osst opny. ‘sorxan sop vorsoasty OBSE|>y-FONU} ep eoypoadsa ovisond ‘odures opeutussoiep win ap o1qury Ou sorx01 sop eo1Zoyerp 2 (eongferp) eoNUpUIAS OLSE]as-JoIU! 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Todo sistema de signos (isto é, qualquer lingua), por mais que sua convengio se apoie em uma coletividade estreita, em principio sempre pode ser decodificado, isto é, traduzido para outros sistemas de signos (outras linguagens); consequentemente, existe uma légica geral dos sis- temas de signos, uma potencial linguagem das linguagens tinica (que, evidentemente, nunca pode vir a ser uma linguagem tinica concreta, uma das linguagens). No entanto, o texto (a diferenga da lingua como sistema de meios) nunca pode ser traduzido até o fim, pois néo existe um potencial texto tinico dos textos. O acontecimento da vida do texto, isto é, a sua verdadeira esséncia, sempre se desenvolve na fronteira de duas consci¢ncias, de dois sujeitos. Um estenograma do pensamento humanistico é sempre 0 esteno- gtama do didlogo de tipo especial: a complexa inter-relagao do texto (objeto de estudo e reflexio) ¢ do contexto emoldurador a ser criado (que interroga, faz. objegdes, etc.), no qual se realiza o pensamento cog- noscente ¢ valorativo do cientista. E um encontro de dois textos — do texto pronto e do texto a ser criado, que reage; consequentemente, € 0 encontro de dois sujeitos, de dois autores. Pode-se passar ao segundo polo, isto é, & linguagem — a linguagem do autor, & linguagem do género, da corrente, da época, & lingua nacio- nal (Linguistica) ¢, por ultimo, linguagem potencial das linguagens (0 estruturalismo, a glossemdtica'). Pode-se avangar para 0 segundo polo — para o acontecimento singular do texto. Entre esses dois polos se dispdem todas as possiveis disciplinas hu- manisticas, oriundas do dado primdrio do texto. Ambos os polos sao indiscutfveis: € indiscutfvel a potencial lingua- gem das linguagens, como é indiscutivel 0 texto tinico e singular. Todo texto verdadeiramente criador é sempre, em certa medida, uma revelacao do individuo livre, ¢ nao predeterminada pela necessidade empirica. Por isso ele (em seu nticleo livre) nao admite nem a explicagao Digitalizado com CamScanner causal nem a previsio cientifica, Mas isto, evidentemente, 1 necessidade interior, a légica interior do nticleo livre As ciéncias humanas do texto (sem isso ele nao seria compreendido, reconhe O problema do texto sao as ciéncias do homem em s s de, ¢ nio de uma coisa muda ou um fendmeno natural. © homem em sua especificidade hum. na sempre exprime a si mesmo (fila), isto 6, cria texto (ainda que poten- cial). Onde o homem é estudado fora do texto e independente dese, jé nao se trata de ciéncias humanas (anatomia ¢ fisiologia do homem, ete), problema do texto na textologia. O aspecto filosdfico dessa questo. Tentativa de estudar o texto como “reagao verbal” (behaviorismo)"”. A cibernética, a teoria da informagio, a estatistica eo problema do texto. A reificacéo do texto. Os limites dessa reificacéo. A atitude humana é um texto em potencial e pode ser compreen- dida (como atitude humana e no agao fisica) unicamente no contex- to dialégico da prépria época (como réplica, como posigao semantica, como sistema de motivos). “Todo o sublime ¢ belo” é nao uma unidade fraseolégica no sentido comum mas uma combinagio de palavras de tipo especial dotada de entonagio ou expressividade. E 0 representante do estilo, da visio de mundo, do tipo humano, cheira a contextos, nele hé duas vozes, dois sujeitos (aquele que fala assim tao sério, e aquele que parodia o primeiro). Tomadas em separado (fora da combinagao), as palavras “belo” e “su- blime” carecem de bivocalidade; a segunda voz sé entra na combina- cao de palavras que se torna enunciado (isto é, recebe 0 sujeito do dis- curso, sem o qual nao pode haver uma segunda voz). E uma palavra pode tornar-se bivocal se vier a ser uma abreviatura de enunciado (isto 6 se ganhar autor). A unidade frascoldgica nao foi criada pela primei- ra mas pela segunda voz. Lingua e fala, oragio e enunciado. O sujeito do discurso (uma in- dividualidade “natural” generalizada) e um autor do enunciado. Alter- nancia dos sujeitos do discurso e alternancia dos falantes (autores do enunciado). Podemos identificar lingua ¢ fala uma vez que na fala esto obliterados os limites dialégicos dos enunciados. No entanto nunca podemos identificar lingua e comunicagao discursiva (como intercim- Digitalizado com CamScanner BAL | 313 bio dialdgico de enunciados). F possvel uma idemtidade absoluca en- ere duas e mais oragdes (obrepostas uma a outra, como duas figuras gcométricas, es irfo coincidit); além disso, devemos admitir que qual {quer oragio, inclusive a mais complexa, no fluxoilimitado da fala pode repetit-se um ntimero ilimitado de vezes em forma absolutamente idéntica, mas como enunciado (ou parte do enunciado) nenhuma ora- gio, mesmo a de uma sé palavra, jamais pode repetir-se: € sempre um novo enunciado (ainda que seja uma citacio). Surge a questio de saber se a ciéncia opera com tais individualida- des absolutamente singulares como os enunciados, se eles no iriam além dos limites do conhecimento cientifico generalizador. E claro que pode. Em primeiro lugar, o ponto de partida de toda cincia s4o as uni- cidades {mpares, e em todas as etapas da sua trajetéria ela permanece ligada a estas. Em segundo, a ciéncia, e acima de tudo afilosofia, pode e deve estudar a forma especifica e a funcéo dessa individualidade. A necessidade de uma precisa conscientizagéo do corretivo permanente das pretensées da andlise abstrata (Linguistica, por exemplo) 20 pleno esgotamento de um enunciado concreto. O estudo dos tips ¢ formas de relagao dialégicas entre os enunciados e das suas formas tipolégicas (fatores de enunciados). O estudo dos elementos extralinguisticos ¢ a0 mesmo tempo extrassernénticos (artisticos, cientificos, etc.) do enuncia- do. Todo um campo existente entre a andlise linguistica e a pura andli- se do sentido; esse campo desapareceu para a ciéncia. No ambito de um mesmo enunciado a oragao pode repetit-se (a re- © involuntério), mas cada vez ela é sem- petigao, a citacao de si mesma, do, pois mudou de lugar e de funcéo na pre uma nova parte do enuncia plenitude do enunciado. O enunciado em sua plenitude ¢ enformado como tal pelos elemen- tos extralinguisticos (dialégicos),estéligado a outros enunciados. Esses elementos extralinguisticos (dialégicos) penetram o enunciado tam- bém por dentro. : {As express6es generalizadas do falante na lingua (pronomes pessoais formas pessoais dos verbos, formas gramaticais ¢ lexicais de expresséo da modalidade e de expressio da relagao do falante com o seu discutso) €0 sujeito do discurso. O autor do enunciado. : Do ponto de vista dos objetivos extralingufsticos do enunciado todo, o linguistico ¢ apenas um meio. Digitalizado com CamScanner BAKHTIN expressividade na obra. Em utor? Encontramos autor (percebemos, compreendemos, sentimos, te- mos a sensagio dele) em qualquer obra de arte. Por exemplo, em uma obra de pintura sempre sentimos o seu autor (0 pintor), contudo nun- ca 0 vemos da maneira como vemos as imagens por ele representadas, Nés © sentimos em tudo como um princfpio representador puro (0 sujeito representador) mas nao como imagem representada (visfvel). Também no autorretrato nao vemos, ¢ claro, o autor que o representa mas t4o somente a representagao do pintor. Em termos rigorosos, a imagem do autor € um contradictio in adjecto. A chamada imagem de autor é, na verdade, uma imagem de tipo especial, diferente de outras imagens da obra, mas é uma imagem esta tem 0 seu autor, que a criou. A imagem do narrador na narrago na pessoa do eu, a imagem da per- sonagem central nas obras autobiogréficas (autobiografias, confissoes, didrios, memérias, etc.), 0 herdi autobiogrdfico, o herdi Ifrico, etc. To- dos eles so mensurados e determinados por sua relacéo com 0 autor- homem (como objeto especifico de representagao), mas todos eles sio imagens representadas que tém 0 seu autor, 0 portador do principio puramente representativo. Podemos falar de autor puro para diferen- cid-lo de autor parcialmente representado, mostrado, que integra a obra como parte dela. A questao do autor do enunciado mais comum, padronizado, co- tidiano. Podemos criar a imagem de qualquer falante, perceber objeti- vamente qualquer palavra, qualquer discurso, mas essa imagem objetiva ndo entra na intengao ¢ na tarefa do prdprio falante nem é criada por ele como autor do enunciado. Isso nao significa que nao haja caminhos do autor puro para 0 au- tor-homem; estes existem, evidentemente, e ainda mais na prépria me- dula, no préprio amago do homem, mas essa medula nunca pode vir a ser uma das imagens da prépria obra. Tal autor est4 nela como um todo, ¢ ademais em grau superior, mas nunca pode vir a ser parte com- ponente figurada (objetificada) da obra. Ele nao é uma natura creata* Digitalizado com CamScanner ESTETICA DA CRIAGAO VERBAL | 315 nem natura naturata et creans* mas uma natura creans et non creata*** pura. Em que me 1 sfo possfveis na literatura palavras puras sem obje- to, monovocais? Pode uma palavra, na qual 0 autor nao ouve a voz do outro, na qual hé ele sé e inteiro, vit a ser material de construcao de uma obra literdria? Algum grau de objetificagao nao seria condigao in- dispensével de qualquer estilo? Nao estaria o autor sempre fora da lingua como material para obra de arte? Nao seria qualquer escritor (até 0 rico puro) sempre “dramaturgo” no sentido de que ele distribui todas as palavras a vozes dos outros, inclusive & imagem de autor (a outras més- caras de autor)? E possivel que toda palavra sem objeto ¢ monovocal seja ingénua e imprestavel para uma criagéo auténtica. Toda voz autenti- camente criadora sempre pode ser apenas uma segunda vor no discurso. $6 a segunda vor — a relagdo pura — pode ser até o fim desprovida de objeto, sem abandonar a sombra substancial figurada. O escritor é aque- le que sabe trabalhar a lingua estando fora dela, aquele que tem o dom do falar indireto. Exprimir a si mesmo significa fazer de si mesmo objeto para 0 ou- tro € para si mesmo (a “realidade da consciéncia’). Este ¢ 0 primeiro grau de objetivagio. Mas também é poss(vel exprimir minha relago comigo enquanto objeto (0 segundo estdgio da objetivacao). Neste caso, minha propria palavra se tora objetificada e recebe a segunda voz —a mi- nha prépria. Mas essa segunda voz jd nao langa (de si mesma) sombra, porquanto exprime uma relaco pura, e toda a carne objetivadora, ma- terializadora da palavra foi cedida a primeira voz. Exprimimos a nossa relacao com aquele que falaria desse modo. No falar cotidiano isso encontra expressio na entonacio zombeteira ou irénica (Kariénin em Tolstéi), entonagio surpresa, que nio com- preende, interroga, duvida, confirma, rejeita, sente indignagao, esté em extase, etc. Trata-se de um fendmeno bastante primitivo ¢ muito comum de bivocalidade na comunicagao discursiva da conversa do dia a dia, dos didlogos e discussées sobre temas cientificos e outros temas ideolé- v = Natureza gerada e criadora (atim). (N. da ed. russa.) Natureza criadora nao criada (latim). (N. da ed. russa.) Digitalizado com CamScanner 316 | MIKHAIL BAKHTIN gicos. E uma bivocalidade bastante grosseira ¢ pouco generalizadora, amitide francamente pessoal: sio reproduzidas com reacentuagao a palavras de um dos interlocutores presentes, Uma forma igualmente grosseira ¢ pouco generalizadora sao as diferentes variedades da estilj. zacio parédica. A voz do outro é limitada, passiva, € nao tem profun- didade nem eficdcia (criadora, generalizadora) na relagao mutua entre as vozes. Na literatura, é 0 caso das personagens positivas ¢ negativas, Em todas essas formas manifesta-se uma bivocalidade literal, por assim dizer, fisica. A questao é mais complexa com a voz do autor no drama, onde, pelo visto, ele nao se realiza na voz. Ver e compreender o autor de uma obra significa ver ¢ compreen- der outra consciéncia, a consciéncia do outro ¢ seu mundo, isto é, ou- tro sujeito (“Du”). Na explicagao existe apenas uma consciéncia, um sujeito; na compreensio, duas consciéncias, dois sujeitos. Nao pode ha- ver relagao dialégica com o objeto, por isso a explicagéo ¢ desprovida de elementos dialégicos (além do retérico-formal). Em certa medida, a compreensao é sempre dialdgica. Diferentes modalidades de formas de compreensio. A compreen- so da linguagem dos sinais, ou seja, a compreensio (0 dominio) de um determinado sistema de signos (por exemplo, de uma determinada lingua). A compreensio de uma obra em uma lingua jé conhecida, isto é, j4 compreendida. A auséncia pratica de fronteiras acentuadas ¢ as mu- dangas de uma modalidade de compreensao para outra. Pode-se dizer que a compreens4o de uma I{ngua como sistema nao tem objeto ¢ é inteiramente desprovida de elementos dialégicos? Em que medida se pode falar de sujeito da I{ngua como sistema? Decodifi- cacao de uma lingua desconhecida: a posigio de eventuais falantes in- definidos, a construgao de eventuais enunciados em dada lingua. A compreensio de uma obra em uma |{ngua bem conhecida (ainda que seja a materna) sempre enriquece a nossa compreensio de tal Iin- gua como sistema, 5 ito da lingua aos sujcitos de uma obra. Diferentes degraus intermedidrios. Os sujeitos dos estilos de linguagem (0 burocrata, 0 Co- merciante, o cientista, etc.). As méscaras do autor (as imagens de autor) € 0 préprio autor. Digitalizado com CamScanner JCA DA CRIAGAO VERBAI Aimagem socioestlistica do funciondrio pobre, do conselh cular (Diévuchkin*, por exemplo). Tal imagem, ainda que dada pelo mérodo da autorrevelagio, € dada como ele (terceira pessoa) ¢ nao como tu. Bla & objetificada e modelar. Ainda nfo existe uma auténtica rela- co dialégica com ela, Aproximagio dos meios de representagao do objeto da representa- zo como indicio de realismo (aurocaracterizacio, vous, extilossociais, do representagdo mas citacao das personagens como pessoas falantes).. Elementos objetificados e puramente funcionais de qualquer estilo. O problema da compreensio do enunciado. Para a compreensao é ainda necessario sobretudo estabelecer limites essenciais e precisos do enunciado. A alternancia dos sujeitos do discurso. A capacidade de de- finir a resposta. A responsividade de principio de qualquer compreen- sio. Kannitverstan™. Na pluralidade premeditada (consciente) de estilos, sempre hd re- lagées dialdgicas entre os estilos". Nao podemos entender essas inter- relagGes em termos puramente linguisticos (ou até mecanicos). ‘Um inventério ¢ definicio puramente linguistica ( ademais pura- mente descritiva) de diferentes estilos no ambito de uma obra nao pode revelar as suas inter-relagdes semanticas (nem mesmo as artisticas). Eim- portante compreender o sentido total desse dilogo de estilos do pon- to de vista do autor (nao como imagem mas como fungio). Quando se fala em aproximar os meios de representagéo do representado, suben- tende-se por representado 0 objeto € nao o sujeito (o tu). ‘A representacio da coisa ¢ a representagao do homem (falante por sua esséncia). O realismo coisifica frequentemente o homem mas isso nao é uma aproximagéo com este. O naturalismo, com sua tendéncia para a explicac4o causal dos atos e pensamentos do homem (de sua po- sigdo semantica no mundo), o coisifica ainda mais. O enfoque “indu- tivo”, que aparentemente é prdprio do realismo, é, no fundo, uma ex- plicagao causal coisificante no homem. Ai, as vozes (no sentido de es- tilos sociais coisificados) se transformam simplesmente em indicios das coisas (ou sintomas de processos), a elas ja nao se pode responder, v * Personagem central do romance Gente pobre de Dostoiévski. (N. da ed. russa.) Digitalizado com CamScanner 318 | MIKHAIL BAKHTIN com elas jé nao se pode discutir, extinguem-se as relagées dialégicas com tais vozes. Os graus de obj (resp.* da {ndole 40 das pessoas representadas lacao do autor com elas) diferem ac tuadamente na literatura. Nesse sentido, a imagem de Diévuchk fere essencialmente agens objetificadas dos funciondrios pu pobres em outros escritores. Ele também est4 polemicamente afiado contra essas imagens, nas quais nao existe o ¢v autenticamente dialégico, Nos romances costumam aparecer discusses perfeitamente acabadas ¢ resumidas do ponto de vista do autor (isso, evidentemente, quando aparecem discussdes). Em Dostoiévski h4 estenogramas de uma dis- cussao inacabada e inacab4vel. Contudo, todo romance geralmente é pleno de tonalidades dialégicas (nem sempre com as suas personagens, € claro). Depois de Dostoiévski, a polifonia cresce soberanamente em toda a literatura universal. Em relacéo ao homem, 0 amor, a compaixdo, 0 enternecimento e quaisquer outras emogoes sempre sao dialégicas nesse ou naquele grau. Na configuracio dialégica (resp. na configuragao de sujeito das suas personagens) Dostoiévski ultrapassa certo limite, mas a sua configura- gio dialégica assume uma qualidade nova (superior). A configuracdo de objeto da imagem do homem néo é mera ma- terialidade. Pode-se amé-lo, ter compaixio dele, etc. e, 0 mais impor- tante, pode-se (¢ deve-se) entendé-lo. Na literatura de fic¢ao (como na arte em geral), hd reflexo de subjetividade até nas coisas mortas (corre- lacionadas com o homem). O discurso concebido em termos de objeto (e 0 discurso-objeto requer necessariamente compreensao — caso contrdrio nao seria discur- so ~, mas nessa compreensio o elemento dialdgico é atenuado) pode ser incluido na cadeia causal da explicagio. O discurso sem objeto (cen- trado meramente no sentido, funcional) permanece no didlogo con- creto inacabado (por exemplo, a investigagao cientifica). Comparacio dos enunciados-provas em fisica. O texto como reflexo subjetivo do mundo objetivo, o texto como expresso da consciéncia que reflete algo. Quando o texto se torna do v * Respectivamente. (N. da ed. russa.) Digitalizado com CamScanner DA CRIAGAO VERBAL | 319 nosso conhecimento podemos falar de reflexo do reflexo. A compreen- so de um texto sempre & um correto reflexo do reflexo, Um reflexo através do outro no sentido do objeto refletido, Nenhum fendmeno da natur tem ignificado”, s6 os signos (in- clusive as palavras) tém significado. Por isso, qualquer estudo dos sig- a qual for o sentido em que tenha avangado, comeca obrigato- nos. amente pela compreensio. O texto é 0 dado (realidade) primatio e 0 ponto de partida de qual- quer disciplina nas ciéncias humanas. Um conglomerado de conheci- mentos e métodos heterogéneos chamado filologia, linguistica, estudos literdrios, metaciéncia, etc. Partindo do texto, eles perambulam em di- ferentes direges, agarram pedagos heterogéneos da natureza, da vida so- cial, do psiquismo, da histéria, ¢ os unificam por vinculos ora causais, ora de sentido, misturam constatagdes com juizos de valor. Da alusio 20 objeto real é necessério passar a uma delimitagao precisa dos objetos da investigagao cientifica. O objeto real é 0 homem social (inserido na sociedade), que fala ¢ exprime a si mesmo por outros meios. Pode-se encontrar para ele e para a sua vida (0 seu trabalho, a sua luta, etc.) algum outro enfoque além daquele que passa pelos textos de signos criados ow a serem criados por ele? Pode-se observé-lo ¢ estudé-lo como fend- meno da natureza, como coisa? A acio fisica do homem deve ser inter- pretada como atitude mas no se pode interpretar a atitude fora da sua eventual (criada por nés) expresso semidtica (motivos, objetivos, esti- mulos, graus de assimilagio, etc.). E como se obrigdssemos o homem a falar (nés construimos os seus importantes depoimentos, explicagées, confissdes, desenvolvemos integralmente 0 seu discurso interior even- tual ou efetivo, etc.). Por toda parte hd o texto real ou eventual ea sua compreensao. A investigagao se torna interroga¢io € conversa, isto ¢ didlogo. Nés nao perguntamos & natureza ¢ ela nao nos responde. Co- locamos as perguntas para néds mesmos ¢ de certo modo organizamos a observagio ou a experiéncia para obtermos a resposta. Quando escu- damos o homem, procuramos e encontramos signos em toda parte € nos empenhamos em interpretar 0 seu significado. Estamos interessados primordialmente nas formas concretas dos tex tos € nas condig6es concretas da vida dos textos, na sua inter-relagao e interagao. Digitalizado com CamScanner 320 | MIKHAIL BAKHTIN As relagoes dialégicas entre os enunciados, que atravessam por den- tro também enuinciados isolados, pertencem & metalinguistica. Diferers radicalmente de todas as eventuais relagées lingufsticas dos elementos tanto no sistema da lingua quanto em um enunciado isolado, A indole metalingufstica do enunciado (da producao do discurso). As relacées de sentido dentro de um enunciado (ainda que seja in- finito, por exemplo, no sistema da ciéncia) sao de indole légico-objeti- va (no amplo sentido dessa palavra), no entanto as relacées de sentido entre os diferentes enunciados assumem indole dialégica (ou, em todo caso, matiz dialégico). Os sentidos esto divididos entre vozes diferen- tes. A importancia excepcional da voz, do individuo. Os elementos linguisticos sao neutros em face da divisio em enun- ciados, movem-se livremente ignorando as fronteiras do enunciado, ignorando (sem respeitar) a soberania das vozes. O que determina as fronteiras inabaldveis do enunciado? As forcas metalinguisticas. Os enunciados extraliterdrios e as suas fronteiras (réplicas, cartas, didrios, discurso interior, etc.) transferidos para a obra literdria (por exem- plo, para o romance). Aqui se modifica o seu sentido total. Sobre eles recaem os reflexos de outras vozes e neles entra a voz do préprio autor. Dois enunciados alheios confrontados, que nao se conhecem e to- quem levemente o mesmo tema (ideia), entram inevitavelmente em relagdes dialdgicas entre si. Eles se tocam no territério do tema co- mum, do pensamento comum. A epigrafe. A questo dos géneros dos escritos mais antigos. Oautor eo destinatdtio dos escritos. Os chavées obrigatérios. As ins- ctigdes nos timulos (“Alegra-te!”). O apelo do morto ao vivo que pas- sa.ao lado. As formas padronizadas obrigatérias da forma das evocagoes nominais, dos exorcismos, das rezas, etc. As formas dos encémios € dos enaltecimentos. As formas do vitupério e da ofensa (ritual). O pro- blema da relacdo da palavra com o pensamento e da palavra com 0 de- S

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