You are on page 1of 14

A PARTILHA DO EVANGELHO E DE TODOS OS

BENS POR DEUS EM JESUS CRISTO: UMA


LEITURA DE ATOS 2:42-47

Flávia Oliveira Alvim1


Tiago Tadeu Contiero2

RESUMO

Tratando-se da comunidade primitiva no novo testamento, o livro de Atos dos


Apóstolos foi escrito aproximadamente entre os anos 80 e 90 d.C., provavelmente em
Éfeso. Tal obra relata a partir do período apostólico (30-70 d.C.), finalizando com a
atividade de Paulo em Roma (58-60 d.C.). Os primeiros cristãos organizaram as suas
vidas em pequenas comunidades domésticas, buscando viver na comunhão e na
partilha de todos os bens através do ato de servir uns aos outros, à luz da vida, da
morte e da ressurreição de Jesus Cristo, que possibilitou a concretização de uma
sociedade igualitária experimentada pelos antigos israelitas nas Doze tribos.
Seguindo esta direção, o presente artigo pretende realizar uma hermenêutica da
perícope de Atos 2:42-47, procurando destacar as quatro características da vida
comunitária dos primeiros cristãos, além do ideal implícito de sociedade igualitária
encontrada na organização das Doze tribos do antigo Israel. Será indicado a
ambientação socioeconômica em que o livro de Atos dos Apóstolos foi redigido, assim
como a concepção teológica e a composição social da comunidade lucana. Ao captar
essa periodização, será produzida uma interpretação da perícope em questão,
especificamente de Atos 2:42: o ensinamento dos apóstolos, a comunhão fraterna, a
fração do pão e as orações. Tais expressões indicam não só a influência da
sociedade romana e das tradições judaicas, mas o serviço e a comunhão de uma
comunidade que tem uma fé engajada na história, que autentica com as suas práticas
solidárias a mensagem apostólica.

Palavras-chave: Koinonía, Diaconia, Eucaristia.

1 Bacharela em Teologia pela Universidade Metodista de São Paulo (UMESP) e em Filosofia pela
Universidade do Sul de Santa Catarina (UNISUL). Especialista em Sagradas Escrituras pelo Centro
Universitário Claretiano e pós-graduanda em Teologia do Novo Testamento pela Faculdade FABAD.
2 Bacharel e licenciado em História pela Universidade Estadual Paulista – Júlio de Mesquita Filho,

especialista em Gestão de Recursos Humanos pelo Centro Universitário Claretiano, Mestre e Doutor em
Ciências da Religião pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Professor e tutor dos
diversos cursos do Centro Universitário Claretiano, como Teologia e História.
SHARING THE GOSPEL AND ALL GOODS BY
GOD IN JESUS CHRIST: A READING OF ACTS
2: 42-47

ABSTRACT

In the case of the primitive community in the New Testament, the book of Acts of the
Apostles was written approximately between AD 80 and 90, probably in Ephesus.
This book reports from the apostolic period (AD 30-70), ending with Paul's activity in
Rome (AD 58-60). The first Christians organized their lives in small domestic
communities, seeking to live in communion and in sharing all goods through the act
of serving one another, in the light of the life, death and resurrection of Jesus Christ,
which made it possible to achieve of an egalitarian society experienced by the
ancient Israelites in the Twelve Tribes. Following this direction, the present article
intends to carry out a hermeneutics of the pericope of Acts 2: 42-47, seeking to
highlight the four characteristics of the community life of the first Christians, in
addition to the implicit ideal of egalitarian society found in the organization of the
Twelve tribes of ancient Israel. The socioeconomic setting in which the book of Acts
of the Apostles was written will be indicated, as well as the theological conception
and social composition of the Lucan community. When capturing this periodization,
an interpretation of the pericope in question will be produced, specifically from Acts
2:42: the teaching of the apostles, fraternal communion, the breaking of bread and
prayers.

Keywords: Koinonía, Diaconia, Eucharist.

1 INTRODUÇÃO

Daniel Marguerat, em sua obra intitulada Introducción al Nuevo Testamento: su


historia, su escritura, su teologia, escreve que os Atos dos Apóstolos (At) é o único livro
em seu gênero literário no Novo Testamento, que relata a propagação da primeira
cristandade no mundo após a morte e a ressurreição de Jesus Cristo. O livro de Atos dos
Apóstolos, segundo este autor, unindo-se ao Evangelho de Lucas faz história.3 Mas, essa
união literária não é uma mera coincidência, pois, segundo o teólogo Alfred Wikenhauser,
a obra de Atos dos Apóstolos é a continuação do Evangelho de Lucas, constituindo uma
obra em dois volumes. O prólogo do segundo livro (At) faz uma referência direta ao
primeiro (Lc), sintetizando seu conteúdo. Partindo disto, Marguerat explica que as duas
partes da obra Lc-At sobre a Ascensão de Jesus (Lc 24:50-53; At 1:6-11) são narradas de
formas distintas, pois o primeiro vê a Ascensão como o apogeu e a conclusão da atividade
de Jesus, enquanto o segundo a concebe como uma abertura ao tempo do testemunho. 4
No tocante ao termo “Atos” (em grego  segundo Irineu José Rabuske, é um
gênero literário específico na literatura da antiguidade, que é constituída por coletâneas de

3 MARGUERAT, Daniel. Introducción al Nuevo Testamento: su historia, su escritura, su teologia. Bilbao:


Desclée de Brouwer, 2008. p.105.
4 Ibid., p. 106.
histórias e partes biográficas de uma ou mais pessoas célebres.5 Tal livro bíblico
popularizou-se a partir do século II6, com Irineu (por meio de sua obra intitulada Contra os
hereges) ao lado de outros títulos, como os Atos dos Santos Apóstolos.7
A intenção do autor do livro de Atos dos Apóstolos era compor uma obra
historiográfica8, cujo conteúdo retrata o período apostólico (anos 30-70 d.C.), que se inicia
com a ressurreição de Jesus (ano 30 d.C.), finalizando com a atividade de Paulo em Roma
(anos 58-60 d.C.).9 A historiografia dessa obra bíblica é uma narrativa que parte de um
ângulo específico do fato e em função deste ponto de vista, seleciona os dados e os põe
em perspectiva. Nas palavras de Marguerat, o escritor “[...] mantêm somente os elementos
que podem favorecer sua leitura teológica [...].” 10 Isto indica que a sua historiografia é
teológica, ou seja, procura mostrar a universalização do cristianismo mediante a missão de
Pedro e de Paulo, expondo uma história parcial e orientada sob o ponto de vista daquelas
missões, especificamente paulina. 11 Lembra Rabuske, que o autor bíblico buscou “[...]
fazer a história da Palavra e do Espírito, para que as pessoas de suas comunidades
pudessem perceber qual era a sua identidade”. 12 Ao redigir uma narrativa teológica, o
escritor se propôs escrever uma história com um fim apologético, pois demonstrava que o
cristianismo nascente não atingia as estruturas políticas do Império romano.13
Marguerat recorda que a Igreja dos primeiros séculos, atribuía a autoria da
unidade Lc-At a Lucas, que era médico e colaborador de Paulo (Cl 4:14; 2 Tm 4:11; Fm
24).14 Contudo, Lucas não poderia ser um companheiro histórico de Paulo e nem o
verdadeiro autor da obra, porque o Evangelho de Lucas se remete a uma imagem do
cristianismo vinculado a terceira geração, próxima das Epístolas Pastorais. É provável que
o autor de Lc-At seja um escritor familiarizado com a topografia do Império romano, com a
Bíblia grega (LXX) e que pertencesse ao movimento paulino que, nos anos 80 d. C.,
agrupavam alguns fieis que se lembravam do apóstolo dos gentios, buscando preservar a
sua tradição.15 Em vista de praticidade, permanecerá o nome de Lucas, para referenciá-lo
como autor e como “líder” da comunidade cristã que tal literatura possa ter sido destinada.
Reconhecendo os traços gerais do livro de Atos dos Apóstolos, será realizada uma
hermenêutica da perícope de Atos 2:42-47 para compreender a vida em comunhão dos
primeiros cristãos. Por meio dessa interpretação, será encontrada de forma implícita, a
ideia do projeto original de uma sociedade igualitária advinda da organização das Doze
tribos do antigo Israel. Conforme Carlos Mesters, os primeiros cristãos depositaram a sua
fé em Jesus Cristo e através dele, conseguiram organizar as suas vidas em pequenas
comunidades, vivendo uma comunhão de bens (i)materiais que eram (com)partilhados

5 RABUSKE, Irineu José. A Igreja em suas origens: revisitando os Atos dos Apóstolos. Teocomunicação –
PUC, Porto Alegre, n.1, 2012. p. 6.
6 RABUSKE, Irineu José. loc. cit.
7 MARGUERAT, Daniel. Introducción al Nuevo Testamento: su historia, su escritura, su teologia. Bilbao:

Desclée de Brouwer, 2008. p. 106


8 RABUSKE, Irineu José. loc. cit.
9 RICHARD, Pablo. El movimiento de Jésus antes de la Iglesia: una interpretación liberadora de los Hechos

de los Apóstoles. Santander: Sal Terrae, 2000. p. 11.


10 MARGUERAT, op. cit., p. 120, tradução nossa.

11 MARGUERAT, loc.cit.

12 RABUSKE, op. cit., p. 9.

13 WIKENHAUSER, Alfred. Los Hechos de los Apóstoles. Barcelona: Herder, 1973. p. 15, tradução nossa.

14 MARGUERAT, op. cit., p. 111.

15 MARGUERAT, op. cit., p. 111-112.


entre todos, não havendo necessitados.16 É possível que os cristãos “primitivos”, sob uma
releitura do Antigo Testamento à luz da vida, da morte e da ressurreição de Jesus,
alcançaram a concretização de uma nova vida em comunhão, resgatando o ideal de
sociedade igualitária vivida pelos antigos israelitas. Em vista de compreender a perícope
de Atos 2:42-47, será necessário entender a periodização histórico-social em que o livro
de Atos dos Apóstolos foi escrito e as principais características da comunidade de Lucas,
para que possa ser produzida a hermenêutica da perícope em questão. A interpretação
partirá das palavras-chaves localizadas em Atos 2:42 (o ensinamento dos apóstolos, a
comunhão fraterna, a fração do pão e as orações), que darão o entendimento geral da
perícope e do conteúdo implícito do projeto original de sociedade igualitária. A seguir será
descrito o cenário histórico-social em que o livro de Atos dos Apóstolos foi escrito e da
comunidade destinatária.

2. O CENÁRIO HISTÓRICO-SOCIAL POR TRÁS DO LIVRO DE ATOS DOS


APÓSTOLOS

2.1 O Ambiente histórico-social

Nas costas do Mar Mediterrâneo encontravam-se três ambientes fundamentais


para compreender as cidades que aquele rodeava: as planícies costeiras, os planaltos e
as montanhas. Tais âmbitos físicos eram determinantes no século I d.C., pois as áreas
montanhosas e isoladas residiam moradores empobrecidos e mais conservadores. As
planícies costeiras com as suas numerosas cidades acessíveis foram adequadas para a
agricultura e para o comércio; o que possibilitou um vínculo de união entre os diferentes
grupos humanos que povoavam as suas margens, resultando em uma influência advinda
do exterior. 17 La Casa de la Biblia observa que as sociedades que rodeavam o Mar
Mediterrâneo eram agrárias, pois a agricultura, a pecuária e a pesca ocupavam 80% da
população, que trabalhavam na produção primária e de forma artesanal. 18 As regiões
costeiras apresentavam diferenças, mesmo estando relacionadas historicamente.19
Em termos políticos, o Império romano dividiu-se em duas províncias: Senatoriais
(constituídas antes do surgimento do Império ou dependentes do Senado) e Imperiais
(eram as mais novas, conquistadas pelos primeiros imperadores e dependentes destes).
Além disto, havia os reinos vassalos que eram vinculados a Roma por meio de um tratado
ou acordo.20 As cidades romanas eram à base da organização política, do comércio e do
espaço que se criava e se difundia a cultura; o que indica que elas foram um instrumento
de unificação cultural.21 A partir disso, é compreensível que a relação entre os cidadãos e
16 MESTERS, Carlos. Un proyecto de Dios: la prática liberadora para una convivencia humana igualitaria.
Quito: Centro Biblico Verbo Divino, 1992. Disponível em: <https://www.centrobiblicoquito.org/coleccion-
biblia/>. Acesso em: 15 ago 2020.
17 LA CASA DE LA BIBLIA. El Evangelio del Espíritu: cuatros sesiones de formación sobre los Hechos de los

Apóstoles. Estella: Verbo Divino, 1998. p. 60


18 Ibid, p. 58-59.

19 A região da Judeia, juntamente com Samaria e Galileia, compartilhava uma história ou situações comuns,

mas havia características específicas que as diferenciavam uma das outras. Para maiores informações, a
seguinte referência bibliográfica é indicada: LA CASA DA BIBLIA. El Evangelio del Espíritu: cuatros sesiones
de formácion sobre los Hechos de los Apóstoles. Estella: Verbo divino, 1998.
20 Exemplificando, a Palestina era o reino vassalo de Herodes.

21 LA CASA DE LA BIBLIA, op. cit., p. 61.


os camponeses era tensa, devido à exploração deste segundo grupo. Esses aspectos
auxiliaram na difusão e na consolidação do cristianismo que é apresentada no livro de
Atos dos Apóstolos (At 13:1-14; 27; 16:6-18; 22).
Os dois sistemas importantes na sociedade mediterrânea eram o político e o
familiar. O sistema político se fundamentava não só nas cidades, mas no poder central dos
imperadores. A classe social dos imperadores e dos governantes das províncias era
assistida por um grupo de funcionários, pelo exército e pelo alto clero.22 La Casa de la
Biblia descreve a função social desses grupos diante dos imperadores:

os funcionários estavam a seu serviço; se ocupavam da administração da justiça, e


sobretudo da arrecadação dos impostos, que era a principal fonte de renda da
economia política. Graças a eles podiam realizar as obras públicas que deram
fama ao Império romano [...]. Os soldados, por sua parte, serviam para manter o
poder da classe governante e para garantir a ordem implantada por eles.23

Por meio dos impostos, os imperadores e os governantes apropriavam-se do


excedente produzido pelos camponeses, aproveitando a maior parte para benefício próprio
e uma pequena porcentagem dividia entre seus funcionários. 24 Daí é possível perceber a
desigualdade social no Império romano: uma pequena classe social era privilegiada
economicamente e uma maioria (os camponeses, os artesãos e os pequenos
comerciantes) encontrava-se nos limites de subsistência.
A família, abaixo do sistema político romano, era uma instituição central da
sociedade mediterrânea do século I d.C., que desempenhava numerosas atividades
sociais como: assistência aos necessitados, a proteção diante dos assédios externos, a
atenção aos enfermos e anciões, a educação dos filhos e a administração da justiça como
patrimônio da família. Vinculadas as terras e a religião, o “patriarca” da família (pater
familias) tinha autoridade sobre todos os membros, exercendo poder sobre as suas vidas
através da moderação pelos costumes e conselhos familiares. Este cenário social é
percebido em Atos 5:42;10;11; que descrevem a expansão do cristianismo nas casas e a
“conversão” do cabeça da família em vista de evitar conflitos familiares que poderiam
comprometer os cristãos no Império romano.25
A economia e a religião estavam interligadas nos sistemas político e familiar, de
modo que havia uma economia doméstica e uma economia política e, do mesmo modo,
uma religião doméstica e uma religião política.26 No Império romano, a religião pública era
oficial e os seus cultos tradicionais e ao imperador foram desenvolvidas nas províncias
orientais, celebrando em algumas ocasiões, banquetes no templo dos deuses. La Casa de
la Biblia observa que entre a esfera pública e o âmbito privado encontram-se os cultos
orientais inseridos nas cidades romanas por meio de alguns grupos sociais, como os
“cultos egípcios e de outras procedências com seus mistérios que prometiam salvação
[...]”.27 Outra forma religiosa muito difundida no Império romano eram as associações
religiosas (ou cultuais) conhecidas como collegia, que era uma espécie de fraternidades
assentadas em uma casa28, cuja composição social era oriunda do estrato inferior (os mais

22 LA CASA DE LA BIBLIA, op. cit., p. 63.


23 LA CASA DE LA BIBLIA, loc. cit., tradução nossa.
24 LA CASA DE LA BIBLIA, loc. cit.
25 LA CASA DE LA BIBLIA. El Evangelio del Espíritu: cuatros sesiones de formación sobre los Hechos de los

Apóstoles. Estella: Verbo Divino, 1998. p. 64.


26 Ibid., p. 62.

27 Ibid, p. 69, tradução nossa.

28 LA CASA DE LA BIBLIA, loc. cit.


pobres, incluindo as mulheres e os escravos).29 As práticas religiosas domésticas eram
relacionadas à família e ao seu ciclo vital ou as atividades cotidianas. Dentro desse
mesmo contexto, havia as manifestações religiosas vinculadas à magia, a astrologia, a
necromancia (At 8:9-25; 13:4-12) e outras práticas que tiveram êxito entre alguns
imperadores romanos. No começo de seu desenvolvimento, o próprio cristianismo foi
acusado de fomentar tais manifestações.30
No tocante a localização e a datação do livro de Atos dos Apóstolos, não há um
consenso entre os teólogos.31 Pablo Richard acredita que esse livro tenha surgido
aproximadamente nos anos 80 e 90 d.C., com procedência em Éfeso 32, devido a sua
familiaridade com as tradições paulinas.

2.2 A comunidade de Lucas

Os seguidores de Jesus Cristo originaram um movimento que recebeu várias


nomenclaturas, apresentando traços especificamente distintos e com uma dimensão plural
e também hostil, em certos aspectos. Paulo Siepierski comenta que “[...] todos os grupos
que se autodenominavam cristãos acreditavam estar cumprindo os ensinamentos de
Cristo”. 33 Neste sentido, tiveram diversas formas de cristianismo como paulino, judaico,
gnóstico, monástico, cenobítico, apocalíptico e dentre outros. Este autor observa que cada
grupo de cristãos, diferenciava-se pela sua liderança, mensagem e ênfase.34 Em relação
às diversas comunidades cristãs, La Casa de la Biblia expõe que “Mateus nos explica seu
modelo de vida comunitária no chamado Sermão do Monte (Mt 5-8); Lucas o expõe
sobretudo nos sumários do livro de Atos dos Apóstolos...”. 35
Direcionando-se a comunidade lucana, como uma das formas de cristianismo, era
composta por cristãos de procedência não-judaica, assim como o próprio autor da obra.
Composta de uma minoria privilegiada e de uma maioria pobre e indigente36, essa
comunidade buscava uma nova relação com o mundo greco-romano, apresentando-se
como algo distinto do judaísmo e também, como um grupo de cristãos que não oferecia
nenhuma ameaça política as instituições do Império romano.37 Os cristãos dessa
comunidade liam o Antigo Testamento da versão grega denominada de Septuaginta
(LXX). Tal comunidade considerava-se como o Novo Israel38, pois “Israel teve um papel na

29 STEGEMANN, Ekkehard W; STEGEMANN, Wolfgang. Historia social del cristianismo primitivo: los inicios
en el judaísmo y las comunidades cristianas en el mundo mediterráneo. Estella: Verbo Divino, 2001. p. 381.
30 LA CASA DE LA BIBLIA, op. cit., p. 70.

31 Daniel Marguerat e Federico Pastor Ramos acreditam que esse livro foi escrito entre os anos 80 e 90 d.C..
32 RICHARD, Pablo. El movimiento de Jésus antes de la Iglesia: una interpretación liberadora de los Hechos

de los Apóstoles. Santander: Sal Terrae, 2000. p. 11.


33 HINSON, Glenn E.; SIEPIERSKI, Paulo D. Vozes do cristianismo primitivo. São Paulo: Sepal, [s.d.]. p. 12.

34 HINSON; SIEPIERSKI, loc. cit.


35 LA CASA DE LA BIBLIA. El Evangelio del Espíritu: cuatros sesiones de formación sobre los Hechos de los

Apóstoles. Estella: Verbo Divino, 1998. p. 50.


36 RABUSKE, Irineu José. A Igreja em suas origens: revisitando os Atos dos Apóstolos. Teocomunicação –

PUC, Porto Alegre, n.1, 2012. p. 10.


37 RAMOS, Federico Pastor. Hechos de los Apostoles. In: La Casa de la Biblia . Comentario al Nuevo

Testamento. Madrid: Atenas, PPC; Salamanca: Sigueme; Estella: Verbo Divino, 1995. p. 342.
38 DREHER, Martin N. Bíblia: suas leituras e interpretações na história do cristianismo. São Leopoldo: CEBI,

Sinodal, 2000. p. 7.
história da salvação, mas a culminação desta história corresponde ao cristianismo”. 39
Martin Dreher comenta que os primeiros cristãos utilizaram dois métodos de interpretação:
o alegórico e o tipológico. Dada a ênfase na interpretação teológica da comunidade de
Lucas relacionada à perícope de Atos 2:42-47, será atentado somente ao método
hermenêutico tipológico. Conforme a explicação deste teólogo,

a interpretação tipológica, por seu turno, é criação da própria comunidade cristã.


“Tipo” (em grego: typos) é a apresentação antecipada daquilo que ainda não está
por ocorrer. [...] Na interpretação tipológica, o Antigo Testamento e os sucessos
nele narrados são vistos como exemplos do que vai se cumprir. A tipologia quis ser
uma interpretação histórica salvífica: a história tem seu cumprimento em Jesus
Cristo.40

Através da releitura do Antigo Testamento (LXX), a comunidade lucana conseguiu


compreender o significado fecundo da vida, da morte e da ressurreição de Jesus. Tanto
que essa comunidade recorda que a sua missão é a mesma que desempenhou o “Resto
de Israel” (Is 4:3). Este “Resto” constituía em uma comunidade de hebreus, que eram o
testemunho de Deus diante dos israelitas desgarrados da idolatria dos falsos deuses,
assumindo como missão direcionar os judeus para o reconhecimento de Yahvé (ou
YHWH) como o único Deus do cosmos e da história.41 À luz do método hermenêutico
tipológico, a comunidade lucana considerava-se, simbolicamente, o “Novo Resto de
Israel”, cuja missão seria “anunciar” aos judeus e aos não-judeus a bondade de Deus
revelada em Jesus Cristo. Contudo, tal comunidade não descartou a espera do retorno de
Jesus, pois essa é o seu horizonte da história (At 1:11; 10:42; 17:31). Mas, a fé dessa
comunidade é mobilizada em função do testemunho que tem de oferecer a história,
buscando colaborar na difusão do Evangelho e dos seus valores éticos. Essa forma de
cristianismo não se preocupa pelo atraso da parúsia de Cristo, mas valoriza o tempo
presente e o tempo da Igreja42, (re)lembrando e atualizando a sua mensagem, a sua
identidade comunitária e também as suas origens.43
Em relação aos lugares de reunião da comunidade lucana, Ekkehard Stegemann e
Wolgang Stegemann afirmam que eram realizadas nas casas privadas; o que poderia
pensar em comunidades domésticas.44 Mas, os primeiros cristãos poderiam reunir-se no ar
livre ou em locais aniquilados (At 20:7). Segundo esses autores, “as possibilidades
oferecidas por uma casa privada como lugar de reunião convidam a pensar que o número
de membros das comunidades crentes em Cristo correspondia à capacidade do local”. 45
Doravante a isto, a difusão e a propagação do cristianismo nas cidades romanas
empenhavam-se na conversão de casas privadas, pois os termos que as comunidades
cristãs empregavam refletiam a esfera da experiência social da instituição familiar. Os
mesmos teólogos observam que as metáforas de casa e da família correspondiam às
admoestações éticas ao amor ao próximo, assim como ao amor fraterno. 46 E acrescentam

39 RAMOS, Federico Pastor. Hechos de los Apostoles. In: La Casa de la Biblia . Comentario al Nuevo
Testamento. Madrid: Atenas, PPC; Salamanca: Sigueme; Estella: Verbo Divino, 1995. p. 342.
40 DREHER, Martin N. Bíblia: suas leituras e interpretações na história do cristianismo. São Leopoldo: CEBI,

Sinodal, 2000. p. 8-9, grifo nosso.


41 DARDER, Francesc Ramis. Hechos de los Apóstoles. Estella: Verbo Divino, 2009. p. 71.

42 MARGUERAT, Daniel. Introducción al Nuevo Testamento: su historia, su escritura, su teologia. Bilbao:

Desclée de Brouwer, 2008. p. 119.


43 RAMOS, loc. cit.
44 STEGEMANN, Ekkehard W; STEGEMANN, Wolfgang. Historia social del cristianismo primitivo: los inicios

en el judaísmo y las comunidades cristianas en el mundo mediterráneo. Estella: Verbo Divino, 2001. p. 374.
45 Ibid, p. 375, tradução nossa.

46 Ibid, p. 377.
que o modelo ideal do antigo amor ao amigo serve, no livro de Atos dos Apóstolos 2:42;
4:32, para desvelar a vida comunitária do grupo de cristãos de Jerusalém. Consoante a tal,
os irmãos Stegemann afirmam que as comunidades cristãs – incluindo a lucana –
compreenderam a si mesmas e as suas relações sociais, à luz do modelo social da casa
antiga ou do núcleo familiar.47
Partindo da periodização histórico-social do Império romano, onde a comunidade
de Lucas estava inserida, a seguir será realizada uma hermenêutica específica de Atos
2:42-47 em vista de compreender a vida dos primeiros cristãos.

3. ATOS 2:42-47: UM MODELO DE COMUNIDADE CRISTÃ IGUALITÁRIA

O texto de Atos 2:42-47 é expressa da seguinte forma:

Eles mostravam-se assíduos ao ensinamento dos apóstolos, à comunhão fraterna,


à fração do pão e às orações. Apossava-se de todos o temor, pois numerosos
eram os prodígios e sinais que se realizavam por meio dos apóstolos. Todos os
que tinham abraçado a fé reuniam-se e punham tudo em comum: vendiam suas
propriedades e bens, e dividiam-nos entre todos, segundo as necessidades de
cada um. Dia após dia, unânimes, mostravam-se assíduos no Templo e partiam o
pão pelas casas, tomando o alimento com alegria e simplicidade de coração.
Louvavam a Deus e gozavam da simpatia de todo o povo. E o Senhor
acrescentava a cada dia ao seu número os que seriam salvos.48

Esta perícope indica um recurso literário utilizado por Lucas, conhecido como
sumário. Luiz Alexandre Solano Rossi e Alfredo Rafael Belinato Barreto explicam que a
narração do livro de Atos dos Apóstolos é interrompida por observações gerais, breves
apanhados sintéticos que se assemelham a pontos de revezamentos ou marcos no
percurso da história.49 Marguerat acrescenta que os sumários são passagens de transição
que unem as sequências com a finalidade de integrá-las no plano de Deus, que é a
difusão da Palavra.50 Porém, Richard lembra que Lucas não pôde reconstruir a vida
cotidiana e permanente da comunidade de Jerusalém dos primeiros anos; o que significa
que este sumário narra as atividades constitutivas da comunidade após o Pentecostes,
com ações permanentes e fundantes.51
No entanto, Marguerat acredita que o sumário de Atos 2:42-47 não passa de uma
idealização da comunidade de Jerusalém por parte de Lucas, pois este via os primeiros
tempos do cristianismo reunidos em torno dos doze, constituindo uma “idade de ouro”
excepcional e, como tal, um modelo para os demais cristãos. Este teólogo percebe que tal
sumário foi escrita a maneira do livro veterotestamentário de Gênesis 1-11, como uma
“história das origens”, onde o texto de Atos 1-11 cumpre a funcionalidade de ser um mito
fundador de um cristianismo que está dividido e separado do judaísmo no período em que
47 STEGEMANN, Ekkehard W; STEGEMANN, Wolfgang. Historia social del cristianismo primitivo: los inicios
en el judaísmo y las comunidades cristianas en el mundo mediterráneo. Estella: Verbo Divino, 2001. p. 379.
48 Bíblia. Português. Bíblia de Jerusalém. Paulus: São Paulo, 2002. p. 1905, grifo nosso.

49 ROSSI, Luiz Alexandre Solano; BARRETO, Alfredo Rafael Belinato. Koinonía cristã: pressuposto

hermenêutico da comunidade primitiva dos Atos dos Apóstolos. Revista Pistis e Prax – Teologia e Pastoral,
PUC, Curitiba, n.3, 2017. p. 744.
50 MARGUERAT, Daniel. Introducción al Nuevo Testamento: su historia, su escritura, su teologia. Bilbao:

Desclée de Brouwer, 2008. p. 118.


51 RICHARD, Pablo. El movimiento de Jésus antes de la Iglesia: una interpretación liberadora de los Hechos

de los Apóstoles. Santander: Sal Terrae, 2000. p. 46.


foi redigido.52 Rossi e Barreto acrescentam que esse sumário traça um perfil da
comunidade de Jerusalém, lançando bases para um ideal comunitário que visa a ser
adotado pelo cristianismo subsequente, como um elemento distintivo e normativo para as
suas diversas matizes.53
À parte de seu caráter literário, no versículo de Atos 2:42 destaca-se as seguintes
expressões: o ensinamento dos apóstolos, a comunhão fraterna, a fração do pão e as
orações. A primeira expressão “o ensinamento dos apóstolos” (em grego ) era a
transmissão das palavras do Jesus terreno e as suas orientações éticas, bem como a
interpretação de seu destino à luz da paixão e da Páscoa. 54 Darder recorda que este
ensinamento consistia na explicação e no aprofundamento do conteúdo da mensagem,
pois os cristãos que constituíam a comunidade foram os que aceitaram o primeiro anúncio
da Boa Nova (Kerigma). 55 Este ensinamento indica a exigência da continuidade, ou seja,
o ensinamento é direcionado como uma instrução pós-bastimal para as pessoas que se
comprometeram a vincular-se ao batismo. Roloff comenta que o ensinamento dos
apóstolos relaciona-se estreitamente com a comunhão, pois “[...] aqueles que se deixaram
integrar, mediante o batismo, no âmbito do domínio escatológico do Cristo exaltado
ingressam, assim, numa relação especial uns com os outros”. 56 Em outras palavras, a
vinculação da comunhão com Cristo se entrelaça com a vinculação da convivência na
comunhão dos batizados57, o que faz crer, conforme Rossi e Barreto, que o ensinamento
dos apóstolos pode estar atrelado à comunhão espiritual. Estes teólogos escreveram que

[...] a comunhão dos crentes com a Palavra anunciada concretiza-se na


perseverança no ensinamento ( = didaché) apostólico. O testemunho
(  martypía) dos apóstolos acerca da ressurreição do Senhor remete ao
conteúdo da pregação ouvida e crida pela comunidade. [...] o vínculo de unidade
entre todos os crentes; os apóstolos testemunham a mesma fé que ensinam e que
por sua vez deve ser também testemunhada por aqueles que a acolhem.58

Neste sentido, os mesmos autores acrescentam que os sinais () e os


prodígios realizados junto ao povo, confirmam o ensinamento e o testemunho dos
apóstolos, além de autenticar a pregação apostólica sob a forma de serviço aos
necessitados. Daí, os sinais devem ser entendidos como uma continuidade entre as obras
de Jesus e a missão de seus discípulos, porque é os milagres que dão autenticidade a
mensagem apostólica.59
Correlacionada ao ensinamento dos apóstolos, a segunda expressão “comunhão
fraterna” (em grego  manifesta-se na comunhão dos bens necessários a vida
humana60, sendo considerada uma maneira de viver em comunidade, abarcando duas
dimensões: uma subjetiva e outra objetiva61. A dimensão subjetiva, explica Darder, é a

52 MARGUERAT, op. cit., p. 120.


53 ROSSI; BARRETO, loc. cit.
54 ROLOFF, Jürgen. A Igreja no Novo testamento. São Leopoldo: Sinodal, CEBI, 2005. p. 78.

55 DARDER, Francesc Ramis. Hechos de los Apóstoles. Estella: Verbo Divino, 2009. p. 70.

56 ROLOFF, Jürgen. A Igreja no Novo testamento. São Leopoldo: Sinodal, CEBI, 2005. p. 79.

57 ROLOFF, loc. cit.

58 ROSSI, Luiz Alexandre Solano; BARRETO, Alfredo Rafael Belinato. Koinonía cristã: pressuposto

hermenêutico da comunidade primitiva dos Atos dos Apóstolos. Revista Pistis e Prax – Teologia e Pastoral,
PUC, Curitiba, n.3, 2017. p. 749.
59 ROSSI; BARRETO, op. cit., p. 750.

60 ROSSI; BARRETO, op. cit., p. 751.


61 RICHARD, Pablo. El movimiento de Jésus antes de la Iglesia: una interpretación liberadora de los Hechos

de los Apóstoles. Santander: Sal Terrae, 2000. p. 47.


comunhão dos membros de um grupo em torno de algum vínculo que pertence a todos. 62
Enquanto a dimensão objetiva, Richard enfatiza a ideia de uma comunidade de bens: as
propriedades não eram vendidas, mas pertenciam a todos ou o dinheiro das propriedades
vendidas era entregue aos apóstolos. Partindo dessa concepção, este teólogo afirma que
o mais importante é o espírito de sua organização: a falta de necessitados ou pobres nas
comunidades.63 Mas, Josef Kürzinger lembra que não havia nenhuma coação externa, já
que existia entre os economicamente privilegiados a plena liberdade de decisão pessoal
de renunciarem a propriedade privada.64 Ampliando essa noção de koinonía, Rossi e
Barreto creem que a comunhão dos bens corresponda à comunhão espiritual ao conferir
estabilidade e autenticidade à mensagem apostólica. Ao fazerem referência a Phillipe
Ménoud, esses teólogos identificaram em Lucas uma busca pelo equilíbrio entre a
mudança de mentalidade oportunizada pela fé abraçada e o testemunho desta mesma fé
na vida prática. Os mesmos autores reescrevem as observações de Ménoud, mostrando
que “o cristianismo conhece uma única comunhão, que é a fé de ordem espiritual e de
ordem temporal”. 65
Entre a “comunhão fraterna” e as “orações”, encontra-se uma terceira expressão
em Atos 2:42, que é a “fração do pão”. Por trás deste termo, existe uma experiência social
específica do cristianismo primitivo que são as comidas comunitárias das pessoas
reunidas em um lar, cujo convite era recíproco. Wikenhauser recorda que entre os judeus,
o pão consistia em um ingrediente básico de toda alimentação. Baseando-se num costume
judaico (Ex 12.1-4), este teólogo relata que

os alimentos tomados em comum se iniciava com o gesto do pai de família que, em


qualidade de presidente da mesa, tomava o pão em suas mãos, recitava sobre ele
a oração de ação de graças (ou de adoração): “Seja adorado Yahweh, nosso Deus,
rei do mundo, que da terra faz crescer o trigo”; o partia logo e dava um pedaço a
cada um dos comensais. Era [...] costume na Palestina que as rodelas do pão [...]
se partissem com a mão.66

Doravante a esta prática do judaísmo antigo, Ekkehard Stegemann e Wolgang


Stegemann descrevem que a fórmula “fração do pão” (At 2:42-46; Lc 24:35) indica um
cerimonial, que deve ser entendido a partir da prática das refeições judaicas, mesmo que
Lucas tenha relacionado-o com Jesus (Lc 24:31-35).67 É possível que tal cerimônia seja a
celebração eucarística, que a princípio era a ceia que Jesus passara aos seus discípulos,
mediante a qual ele sempre retornava a fundamentar à comunhão dos seus seguidores,
proporcionando-lhes a participação na salvação escatológica.68 Nas palavras de Rossi e
Barreto, “[...] a fração do pão emerge como característica particular da fé abraçada e ao
mesmo tempo como caminho, por meio do qual a comunidade dos crentes poderá atingir
sua meta escatológica”. 69
Colocada como a última expressão de Atos 2:42, as “orações” deve ser

62 DARDER, Francesc Ramis. Hechos de los Apóstoles. Estella: Verbo Divino, 2009. p. 70.
63 RICHARD, op. cit., p. 48.
64 KÜRZINGER, Josef. Los Hechos de los Apóstoles: tomo primero. Barcelona: Herder, 1974. p. 79.

65 MÉNOUD, 1952, p. 26 apud ROSSI; BARRETO, 2017, p. 752.


66 WIKENHAUSER, Alfred. Los Hechos de los Apóstoles. Barcelona: Herder, 1973. p. 85, tradução nossa.

67 STEGEMANN, Ekkehard W; STEGEMANN, Wolfgang. Historia social del cristianismo primitivo: los inicios

en el judaísmo y las comunidades cristianas en el mundo mediterráneo. Estella: Verbo Divino, 2001. p. 384.
68 ROLOFF, Jürgen. A Igreja no Novo testamento. São Leopoldo: Sinodal, CEBI, 2005. p. 79.

69 ROSSI, Luiz Alexandre Solano; BARRETO, Alfredo Rafael Belinato. Koinonía cristã: pressuposto

hermenêutico da comunidade primitiva dos Atos dos Apóstolos. Revista Pistis e Prax – Teologia e Pastoral,
PUC, Curitiba, n.3, 2017. p. 754.
compreendida nessa perícope, como uma forma litúrgica da prática exterior que serviam-
se das orações da ceia festiva judaica, do louvor sobre o pão no seu início e da oração de
agradecimento sobre o cálice final. A expressão “orações” pode estar relacionada com a
ceia de Jesus, ao ser documentado em aramaico como marana ta: “nosso Senhor, vem!”
(1 Co 11:26; 16:22; Ap 22:20). Por meio dessa oração, Roloff comenta que “[...] a
comunidade suplica pela vinda presente do Senhor exaltado para a comunhão da ceia
com os seus e também pela sua vinda futura para a ceia messiânica da consumação, para
a qual a sua reunião comensal aponta antecipadamente”. 70 Conclui este teólogo, que
Lucas indica implicitamente, que a oração cristã desenvolveu-se em torno da celebração
eucarística.
Em Atos 2:46, a “fração do pão” celebrava-se com júbilo e alegria pelos lares, por
causa do gozo pela esperada salvação escatológica 71, que é advinda de um estado de
ânimo desprendido das coisas terrenas72. Mostrando-se assíduos no Templo e partindo o
pão pelas casas é de se presumir o caráter doméstico desse ato comunitário, elucidando a
vida litúrgica relacionada à convivência comunitária.73 Daí vem à expressão “simplicidade
de coração” que significa, conforme Kürzinger, “[...] aquela atitude que se abre indivisível e
totalmente a Deus e nele encontra a única realização e ao mesmo tempo o estado de
seguridade que faz o homem feliz”. 74
Delineado as características da comunidade cristã de Jerusalém na perícope de
Atos 2:42-47, é possível perceber o ideal do projeto original de sociedade igualitária,
encontrado no Decálogo e no Código da aliança das Doze tribos do antigo Israel. Carlos
Mesters sintetiza os traços peculiares do projeto de Deus para essas tribos: a organização
a serviço da igualdade; a terra a serviço da produção autônoma; o poder a serviço da
comunidade; as Leis em defesa do sistema igualitário; o bem de todos defendido por sua
união; o saber a serviço do povo; Deus a serviço do povo; o culto a serviço do Deus da
vida e da história; e os sacerdotes a serviço do povo (sacerdotes sem terra). 75 O conteúdo
de uma sociedade igualitária encontra-se no anúncio, no profetismo, na vida, na morte e
na ressurreição de Jesus, que é a inauguração e a concretização (a)temporal do Reino de
Deus. A ideia central do projeto de Deus para as Doze tribos do antigo Israel era a
descentralização do poder76, centralizando-se ao serviço (diakonia) solidário, fraterno,
mútuo e igualitário. O Reino de Deus proclamado por Jesus requer(ia) uma mudança
radical, onde o povo teria que deixar de ser dominador, transformando-se em uma
comunidade de irmãos e irmãs serviçais (Mt 20:28).77 Desta forma, a comunidade de
Jerusalém descrita no sumário de Atos 2:42-47 resgata a ideia central do projeto de Deus
para as Doze tribos do antigo Israel, reinterpretando-o à luz da vida, da morte e da
ressurreição de Jesus, como um Novo (resto de) Israel constituído de judeus e não-judeus.
Este Novo Israel através de Jesus Cristo descobriram que o verdadeiro “poder” é estar a
serviço dos irmãos e irmãs, dos necessitados, dos pobres e dos desfavorecidos, porque

70 ROLOFF, Jürgen. A Igreja no Novo testamento. São Leopoldo: Sinodal, CEBI, 2005. p. 79.
71 STEGEMANN, Ekkehard W; STEGEMANN, Wolfgang. Historia social del cristianismo primitivo: los inicios
en el judaísmo y las comunidades cristianas en el mundo mediterráneo. Estella: Verbo Divino, 2001. p. 384.
72 KÜRZINGER, Josef. Los Hechos de los Apóstoles: tomo primero. Barcelona: Herder, 1974. p. 83.

73 ROSSI, Luiz Alexandre Solano; BARRETO, Alfredo Rafael Belinato. Koinonía cristã: pressuposto

hermenêutico da comunidade primitiva dos Atos dos Apóstolos. Revista Pistis e Prax – Teologia e Pastoral,
PUC, Curitiba, n.3, 2017. p. 754.
74 KÜRZINGER, op. cit., p. 84, tradução nossa.

75 MESTERS, Carlos. Un proyecto de Dios: la prática liberadora para una convivencia humana igualitaria.

Quito: Centro Biblico Verbo Divino, 1992. Disponível em: <https://www.centrobiblicoquito.org/coleccion-


biblia/>. Acesso em: 15 ago 2020.
76 MESTERS, loc. cit.

77 MESTERS, loc.cit.
essa atitude (práxis) manifesta a intervenção libertadora de Jesus, a favor dos/as
excluídos/as pelo sistema socioeconômico.

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Reconhecendo que o livro de Atos dos Apóstolos e o Evangelho de Lucas (Lc-At)


são uma obra em dois volumes, cujo conteúdo parte do período apostólico (anos 30-70
d.C.) encerrando com as atividades da missão paulina em Roma (anos 58-60 d.C.), a sua
historiografia indica três traços: (1) faz uma leitura teológica, demonstrando que a sua
comunidade é herdeira da história milenar das promessas feita a Israel e tem seu
cumprimento na vida, na morte e na ressurreição de Jesus; (2) tem uma finalidade
apologética, ou seja, deseja inocentar a comunidade cristã perante as instituições romanas
e aos ataques dos judeus, buscando diferenciá-la da religião daqueles; e por fim, (3) fixa e
reforça a identidade cristã em sua comunidade através de uma celebração de suas
origens.
A comunidade lucana, ao fazer uso da LXX e ao realizar uma interpretação
tipológica da história, tem como horizonte o profetismo, as obras, o serviço e a parúsia de
Jesus, que não a impede de ter uma fé engajada a favor dos desfavorecidos, dos pobres e
dos excluídos do sistema socioeconômico. Como já foi observada, a sociedade romana
era composta de uma minoria privilegiada constituída por funcionários romanos,
comerciantes e religiosos; e por uma massa popular de escravos, camponeses,
trabalhadores autônomos, viúvas, órfãos e mulheres. Tal comunidade, reunindo-se em
casas, (com)partilharam não só os bens materiais, mas o Evangelho de Jesus Cristo que
abarca todas as dimensões humanas, incluindo uma nova relação social entre homens e
mulheres e econômica.
Por meio do ensinamento dos apóstolos, da comunhão fraterna, da fração do pão
e das orações, conforme Atos 2:42, a comunidade lucana não viveu somente uma fé
espiritualizada e focada nos sinais e prodígios da força dinamizadora do Deus Trino
(Espírito Santo) oriunda da mensagem apostólica. Através de sua perseverança no
ensinamento dos apóstolos (didaché) engajou a sua fé a serviço daqueles que Jesus
intervinha para libertá-los, não só do mal advindo da “alma”, mas das opressões e
exclusões sociais que retiravam a dignidade de ser humano; criado a imagem e a
semelhança de Yahweh. Ao viverem em comunhão fraterna (Koinonía), não
(com)partilhavam somente a Palavra de Deus, mas colocavam tudo a disposição dos
pobres e dos necessitados, sem agregarem o ideal de “cada um para si”. Ao fracionarem o
pão (eucaristia), não só celebravam a participação na salvação escatológica mediante ao
sacrifício e a ressurreição de Jesus, mas tomavam o alimento com alegria e simplicidade
de coração por estarem em uma comunhão espiritual e (a)temporal; já que consideravam
a sua união como o “corpo escatológico” de Jesus na terra. As orações são indicativas de
agradecimento, júbilo e clamor pela vinda do Filho de Deus, fazendo presença no meio de
sua comunidade de discípulos e discípulas.
Portanto, cumpre notar diante de todas as observações realizadas sobre a
perícope de Atos 2:42-47, que o ideal do projeto original de sociedade igualitária
encontrada na organização das Doze tribos do antigo Israel aparece de forma implícita.
Como já foi descrito, a comunidade lucana fazia uma releitura do Antigo Testamento à luz
de Jesus Cristo que, conforme Carlos Mesters; aquele inaugurou e concretizou o projeto
de Deus (Reino de Deus) já vivido pelos israelitas através das Doze tribos, onde o povo
teria que constituir-se como uma irmandade a serviço do próximo.78 Por trás da perícope
em questão, não existe somente influências (in)diretas advindas das relações sociais do
núcleo familiar romano, das releituras da tradição judaica por meio da LXX e do sistema
socioeconômico romano, mas há um ideal de uma sociedade igualitária com novas
relações humanas (quebrando o binômio homem-mulher/judeu-gentio), nova perspectiva
econômica (com-partilhar os bens, colocando-os a disposição de todos/as) e uma ruptura
com as relações de dominação e poder, que é o serviço a todos e todas, especialmente
aos desfavorecidos, com base na solidariedade, fraternidade e igualdade.

REFERÊNCIAS

Bíblia. Português. Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 2002.

DARDER, Francesc Ramis. Hechos de los Apóstoles. Estella: Verbo Divino, 2009.

DREHER, Martin N. Bíblia: suas leituras e interpretações na história do cristianismo.


São Leopoldo: CEBI; Sinodal, 2000.

HINSON, E. Gleen; SIEPIERSKI, Paulo D. Vozes do cristianismo primitivo. São Paulo:


Sepal, [s.d.].

KÜRZINGER, Josef. Los Hechos de los Apóstoles: tomo primero. Barcelona: Herder,
1974.

LA CASA DE LA BIBLIA. El Evangelio del Espíritu: cuatros sesiones de formación


sobre los Hechos de los Apóstoles. Estella: Verbo Divino, 1998.

MARGUERAT, Daniel. Introducción al Nuevo Testamento: su historia, su escritura, su


teologia. Bilbao: Desclée de Brouwer, 2008.

MESTERS, Carlos. Un proyecto de Dios: la práctica liberadora para una convivencia


humana igualitaria. Quito: Centro Bíblico Verbo Divino, 1992. Disponível em:
<https://www.centrobiblicoquito.org/coleccion-biblia/>. Acesso em: 15 ago 2020.

RABUSKE, Irineu José. A Igreja em suas origens: revisitando os Atos dos Apóstolos.
Teocomunicação – PUC, Porto Alegre, n.1, p.5-18, 2012.

RAMOS, Federico Pastor. Hechos de los Apostoles. In: La Casa de la Biblia. Comentario
al Nuevo Testamento. Madrid: Atenas; PPC; Salamanca: Sigueme; Estella: Verbo Divino,
1995. p. 341-345.

RICHARD, Pablo. El movimiento de Jésus antes de la Iglesia: una interpretación


liberadora de los Hechos de los Apóstoles. Santander: Sal Terrae, 2000.

ROLOFF, Jürgen. A Igreja no Novo Testamento. São Leopoldo: Sinodal; CEBI, 2005.

78 MESTERS, Carlos. Un proyecto de Dios: la prática liberadora para una convivencia humana igualitaria.
Quito: Centro Biblico Verbo Divino, 1992. Disponível em: <https://www.centrobiblicoquito.org/coleccion-
biblia/>. Acesso em: 15 ago 2020.
ROSSI, Luiz Alexandre Solano; BARRETO, Alfredo Rafael Belinato. Koinonía cristã:
pressuposto hermenêutico da comunidade primitiva dos Atos dos Apóstolos. Revista
Pistis e Prax - Teologia e Pastoral, PUC, Curitiba, n.3, p. 740-759, 2017.

STEGEMANN, Ekkehard W.; STEGEMANN, Wolfgang. Historia social del cristianismo


primitivo: los inícios en el judaísmo y las comunidades cristianas en el mundo
mediterráneo. Estella: Verbo Divino, 2001.

WIKENHAUSER, Alfred. Los Hechos de los Apóstoles. Barcelona: Herder, 1973.

You might also like