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Pesquisa na Clinica Muscoterapica: a Cangao como Ancora Terapéutica' Marcia Maria da Silva Cirigliano Consideragées Iniciais: Muito se esereve em Musicoterapia acerca de reacdes dos paci- entes ao proceaso terapeutico. Sem davida, é de grande importancia que se reflita sobre tais aspectos. Acompanhar a evolugao dos atendimentos clinicos, seu prognéstico, bem como o aprimoramento da postura profissional devem constituir alguns dos principais ele- mentos norteadores de nossa pratica. Entretanto, talvez ainda falte, na literatura de que ora dispomos, discussivs m, istematizadas no tocante a figura do musicoterapeuta, seus sentimentos e/ou intervencoes, presentes na singularidade da relagao terapéutica que estabelece com cada paciente. O que sente o musicotcrapeuta, por exemplo, frente a comportamentos especificas de seu paciente, tais como irritacao, siléncio, isolamento, ¢ tantas outras formas de resposta, nem sempre positivas efou manejaveis? Como responde, especialmente a nivel musical, a situagdes causadoras de desconfor- to, impoténcia, ansiedade? E neste sentido que se pretende desere- ver alguns aspectos de um estudo de caso, tema central da disciplina intitulada IL Projeto Independente, no programa de Mestrado em Musicoterapia da Temple University, U.S.A. (Cirigliano, 1996). Minha trajetéria profissional em Musicoterapia semprereceben forte influéncia da teoria psicanalitica. Nao poderia ser diferente. dado que, antes de ingressar no Curso de Formagao de Musicotera- peutas, jd trazia uma graduacio e experiéncia pratica (atendimento em consultério, supervisio e andlise pessoal) em Psicologia. A monografia conclusiva da Graduagao em Musicoterapia (Cirigliano, 1991) ¢ alguns trabalhos apresentados em eventos da categoria (Cirigliano, 1988, 1990, 1993) expressam o propésito de articular conceitos psicanaliticos (em particular, os de associagao livre e atencao flutuante) a pratica musicoterapica. i Trabalha apresentado no IX Simpésio Brasileiro de Musicaterapia- Rio de Janeiro, 1997. Ainda que, cursando o Mestrado em Musicoterapia, em um pais onde a Psicandlise nao é exatamente priorizada, tive a oportunida- de, através de contatos com o orientador, de, nao apenas fortalecer minhas reflexGes teéricas, relacionando-as com a pratica, mas orga nizé-las seguindo os parametros da Pesquisa Qualitativa. Em ou- tras palavras, como selecionay um tépico, contextualiza-lo a nivel de revisao bibliografica, estabelecer um proposito de investigagao, mé todo e andalise dos dados coletados e, finalmente, apresentar os resultados, tecendo conclusées acerca dos mesmos? Em que medida tal investigagao contribuiria a produgao teérico-pratica em Musico- terapia? Para efeito de palestra, a ser apresent torna-se invidvel a exposicao integralmente traduzida de uma dis- sertagao de Mestrado. Segue-se, portanto, seu resumo, nos passos empreendides ao longo destes tiltimos seis semestres de estudo, indagagdes, aprendizado e, acima de tudo, desejo de encorajar o aprofundamento de cada musicoterapeuta no singular universo musical de si mesmo. a no presente evento, Introdugao Dentre as variadas expressdes musicais, as cancoes sempre me sensibilizaram por sua riqueza ¢ poderosa complexidade. Tanto a nivel pessoal como no trabalho de clinica musicoterdpica, o cantar se faz presente, nao tanto em termos de produgao estética, mas como significativa forma de auto-expressio. Consequentemente, 0 regis- tro de sua ocorréncia em sessdes musicoterapicas é fundamental em meus relatorios clinicos. Trabalhando com a técnica de Improvisacio Musical Livre e, particularmente com criancas de comportamento autista, pude ob- servar um fato curioso. Em varias ocasides, sem me dar conta, eantava um trecho de acalanto e/ou alguma cangao infantil, a medida que improvisava melodicamente. A frequéncia com que isso ocorria com um paciente em especial chamou ainda mais a minha atencdo. Através de orientagao recebida para a dissertacao, procedi ao enfoque deste paciente para refletir acerca da ocorréncia das mencionadas cancGes infantis/acalantos nos momentos de minhas improvisagdes melédicas. Alzumas perguntas foram leyantadas: havia a ocorréncia de cancées especificas? Elas se repetiam? Quan- do? O que isso poderia estar significando? Consultando os relatérios de sessées, devidamente documentadas, pude entao estabelecer os critérios, a seguir citados, para o estudo. 34 | Contexto Pessoal O paciente em questo foi atendido em consultério particular, com frequéncia de duas vezes por semana, pelo periodo de trés anos. Devido 4 impossibilidade de proceder a obtencao de formuldrio de consentimento dos responsdveis, informagoes referentes a diagnés- tico, duragado do tratamento ¢ situacdes de material de sessao que nao dizem respeito ao tema exposto,embora necessarias para efeito de contextualizacdo, sio mascaradas no intuito de preservar o paciente e sua familia. Uma vez que a presente discussiio recai sobre a figura do musicoterapeuta, tal varidvel nao veio a interferir no tratamento dos dados. Contando quatro anos de idade, apresentando comportamento autista ¢ escassa comunicacao verbal, o menino gostava de vocalizar enquanto eu cantava para ele. Apreciava igualmente o som do pandeiro e me acompanhava sonoramente nas ocasiées em que eu utilizava o wioldo. Melodias simples, de estrutura basica de I-IV-W-I ram por ele apreciadas: respondia com sorriso, contacto visual, vocalizagies e, as vezes, alguma célula ritmica percutida no pandei- YO. No primeiro ano de atendimento, apresentava frequentes flu- tuagdes de humor. Havia sessoes em que chorava, distanciava-se do “setting”, atirava instrumentos musicais a esmo, sem qualquer motivo aparente. A ocorréncia de estereotipias com as maos, comum em seu comportamento, tendia a diminuir 4 medida em que intera- gia comigo nas improvisagées musicais, seja vocalizando, utilizando algum instrumento ou apenas ouvindo. A participagao dos pais merece destaque, pela dedicacao de- monstrada para com o desenvolvimento de seu filho, nao obstante as limitagdes. Embora separados, 0 casal sempre se empenhou em levar o filho para atendimento, além de manter assiduidade as sessdes periddicas de avaliacdo. O fato de o pai pertencer ao meio musical ¢ a made a area de Educagio também pareceu contribuir favoravelmente: observava-se 0 quanto a crianca era musical e habituada a receber constante estimulagao no ambiente familiar, pelas respostas, tanto musicais, quanto no tocante a colocacao de limites ¢ outras solicitagdes no Ambito terapéutico. Contexto Profissional Esta secdo da pesquisa é dedicada 4 toda a revisdo de literatura necessaria para propiciar suporte ds idéias em estudo. A influéncia da miisica no comportamento humano, bem como as pesquisas realizadas com bebés © suas reagdes a estimulacdo musical (e, em especial 4 voz matema) exemplificam alguns temas relevantes A discussao sobre a importéncia dos acalantos e cangdes infantis na histéria musical de cada individuo. Ressalvas devem ser feilas no tocante as influéncias ambientais e culturais, elementos importan- tes na composi¢ae do mosaico musical de cada um. Para fins de apresentacao em plenaria, uma extensa descricao bibliografica resultaria fatigante. No entanto, ha duas idéias que necessitam ser esbogadas, ainda que rapidamente. Diaz de Chuma- ceire (1995) considera as cantigas de ninar como “cantos transicio- nais” (transitional tunes), ou seja, cangdes que funcionam como facilitadoras do processo de separagao na relacao mae-bebé. No contexto terapéutico, a mesma autora nomeia os acalantos como “transicionais-transferenciais”. Em contrapartida, as cangées trazi- das pelo terapeuta sao chamadas “cangdes contratransferenciais”. Um segundo conceito, enunciado nas teorias de Reik (1960) veicula a idéia da “melodia fantasma”(haunting melody), aqui par- ticularizada em relacao ao terapeuta. Sao cancdes que “insistem em aparecer”, muitas vezes sem que, no momento o terapeuta consiga se dar conta, expressdes de idéias inconscientes que, no “setting” terapéutico podem ser muito significativas e reveladoras de diversas questdes contratranferenciais. A articulacao de ambos os pressupostos acima foi de particular importancia para a reflexdo dos dados coletados. Propésito de Investigagao Minha percepeao do paciente, luz dos relatorios de se resumir 4s seguintes perguntas: 1) O que eu fazia para me comunicar com aquela crianga, cujo processo de crescimento estava tendo a chance de acompanhar? 2) O que acontecia comigo enquanto eu cantava e improvisava musicalmente? Segundo o que observava, algumas vezes eu improvisaya para estimular sua vocalizacAo. Em outras ocasides, era tao somente para acalma-lo. Mas, em muitas vezes, 0 meu cantar se manifestava contratransferencialmente, como tentativa de, por exemplo, lidar com a ansiedade que o choro dele provocava em mim. Sem dtivida, o canto e o violéo eram frequentemente utilizados has sessoes musicoterdpicas. Também os acalantos, familiares ao paciente. Mas, para além disso, cancdes infantis, algumas proveni- entes de contos de fadas apareciam, em trechos, as vezes quase imperceptiveis, nas improvisacdes melédicas. sessio pode 36 Metodologia Varias cangdes poderiam ser escolhidas ¢ a selecio se deu a partir do agrupamento de sessenta sessdes, relatadas mais detalha- damente, para que houvesse uma amostra razoavelmente adequada 4 analise pretendida. Além de possuirem letra em portugués, as cancées destacadas sao familiares aos ouvidos brasileiros, em parte pela influéncia americana, especialmente no que diz respeito aos contos de fadas. Primeiramente foram listadas cineo cangdes das sessenta ses- sdes mencionadas. O periodo de tempo do tratamento musicotera- pico correspondia ao de maior ocorréncia das cancées, de agosto de 1989 a fevereiro de 1990. Entretanto, isto nao quer dizer que estas cancées (¢ outras) nado apareceram em outras épocas. O recorte no tempo ¢ nitmero de cancdes s6 é feito para facilitar a organizagao de dados. Portanto, foram agrupados os seguintes titulos: Brahms’ Lullaby, Some Day My Prince Will Come (tema do conto Branca de Neve), Rock-a-bye Baby, Have Yourself A Merry Little Christmas, A Dream is a Wish (tema do conto Cinderela). O critério de listagem se deu por ocorréncia em mais de trés vezes, o suficiente para chamar a minha atengao. Ou seja, se otrecho de uma can¢o ccorria uma ou duas vezes, isso poderia ser mera oineidéncia: acima disso, era digno de nota. A seguir, as cangées foram agrupadas em termos da possivel relagio com temas organizados em seis categorias, a seguir: circuns tancias da crianca; minha percepeao da crianga e seus sentimentos; como a cangao se relaciona 4 crianga; como a cancao se relaciona a minha percepcdo e sentimentos; mudancas na resposta da crianea mudancas em mim Tais eategorias expressam a minha percepefio das reagdes do paciente, bem como as minhas préprias.Quaisquer mudangas em ambos foram descritas, de acordo com o momento em que acancao era cantada. Durante a coleta de dados, mantinha-me direcionada a ques- t6es, em relagao ao paciente, tais como: o que ele esta sentindo?! 0 que acontece com ele?/ Sera que ele esta triste?! Por que? Ele se sente mal? Em relagao as minhas questées contratransferenciais, tentava traduzi-las em construgdes como: gostaria de ajuda-lo! sinto-me ansiosa/ nao sei como intervir! percebo-me impotente frente a situ- agao. O principal aspecto da cangao a ser enfocado era a letra. Hipo- tetizava-se¢ que haveria algum verso, ou mesmo palavra que eu 37 poderia ligar ao que estava acontecendo, no momento da sessao em que a cangao era trazida. O propdsito norteador da investigagao era examinar cada momento e retirar, da letra da cancao, aquilo que eu considerava que poderia explicar a razio pela qualo comportamento observado ocorreu (ou, se modificou) na situagio terapéutica. Nao importava que trechos das cangées eram cantados, nem mesmo se era s6.a melodia que surgia. O porqué de determinada atitude minha, ou mudanga no momento terapeutico, teria seu equivalente na(s) palavra(s) contida nas cang: Sem dtivida, um arduo traba- lho de “associagao livre” em Musicoterapia (Cirigliano, 1988). Resultados Foi registrado o aparecimento de trés a ito vezes para as seguintes cancdes: Brahm’s Lullaby, Some Day My Prince Will Come, Rock-a-bye Baby e Have Yourself a Merry Little Christmas. Comparando-se a A Dream Is a Wish, esta apresentou ocorréncia de quatorze vezes, Esta ultima cangao se configurou como resposta musical a determinadas situacdes terapéuticas em que o fluxo do didlogo terapéutico se encontrava, por alguma razao, interrompido. A partir da ocorréncia da cangao, 0 movimento na sess4o era retomado: como se a cangdo desempenhasse o papel de liberar qualquer eventual impedimento 4 comunicagao terapéutica, Apesar, e para além, dos aspectos perdidos nas tradugées, & importante examinar alguns tépicos. Em primeiro lugar, a mensa. gem da cangao traz a idéia de que é muito importante sonhar, ter um propésite na vida, uma razio para viver. Em segundo lugar, “o sonho é um deseja expresso pelo coragao”, ou seja, o que se tem de mais emocional, profundo em termos da verdade de cada um, Final- mente, segundo partes da letra, o desejo esta sempre presente, “nao importa o Tuto, niio importa o mal que atormenta’, mensagem esta que da ao ser humano, a esperanca de superar as proprias dores e perdas, e sempre recomecar. A fungao desempenhada pela cancao foi basicamente fazer com que a sessao readquirisse movimento, propiciando, tanto respostas da crianca como, principalmente, maior presenea minha como tera- peuta. Quanto as demais cangées investigadas, nenhuma apresen- tou padrées comuns que levassem a conclusdes significativas. 38 Conclusao Ao final da andlise dos dados, conclui-se que a cant nada, tendo em vista minhas cireunstancias no “setting” terapéuti- co, funcionava como o meu préprio acalanto. Em outras palavras, constitufa-se uma forma de estar “ancorada”, quando me defrontava com situagdes desafiantes e, por vezes, insoliw Embora levando em conta o impacto que a cancao exercia para mim, bem como as reagdes do paciente, nao considero apropriado proceder a uma interminavel discussio acerca de aspectos transfe- renciais/ contratransferenciais. Isso jA existe em quantidade sufici- ente na literatura especializada. Acima de tudo, a cancdo me propiciava relaxamento, levando-me, assim a estar mais atenta para “escutar” o paciente. Era, em suma, um acalanto, no sentido de funcionar como Ancora terapéutica pessoal, sem significar ame- aga, nem qualquer efeito nocivo ao paciente. Este estudo pode ser de utilidade a outros musicoterapeutas em seus trabalhos clinicos, na medida em que lhes propicie refletir sobre suas proprias ancoras musicais, que, se conscientizadas e devida- mente utilizadas (nao como mecanismo defensivo), podem repre- sentar uma ferramenta de trabalho que facilite a comunicagao terapéutica. Em outras palavras, guardados os aspeetos do contexto de improvisagao musical, 0 musicoterapeuta pode lancar mao de seus proprios elementos de ancoragem para mobilizar respostas em contexto terapéutico, A imagem da ancora traz justamente a idéia de alcancar o paciente, musicalmente, onde quer que ele esteja. Desnecessario comentar que a descoberta ¢ uso das ancoras musicais requer cuidado, auto conhecimento, atencio e, sobretudo, sensibilidade para pereeber o momento adequado de intervir. So- mente através da pratica e investigagao clinica parece ser possivel aprofundar este conhecimento. Em suma, uma viagem para dentro de si mesmo enquanto musicoterapeuta que, também traz uma historia musical. Que o presente estudo possa encorajar os profissionais de Mu- sicoterapia a refletir mais detidamente sobre seu comportamento frente aos desafios que os pacientes nos trazem. Que esta auto-re- flexfio possa motivar outras tantas e que discussdes nessa diregaio proliferem no meio musicoterdpico. Que os profissionais ousem se expor, guardados os devidos limites éticos e pessoais. Que outras ancoras musicais venham a ser compartilhadas ¢, no futuro possa-se teorizar mais detalhadamente. Mas, por enquanto, este “desejo” é apenas um “sonho”, expresso pelo coracao. 39 Referéncias Bibliograficas CIRIGLIANO, Marcia Maria da Silva. Improvisagde mu.sical livre, asseciagdo livre e atencdo flutuante: posstveis relagdes entre musicoterapia e psicandli.se. Trabalho apresentado no IV Simpésio Brasileir) de Musicoterapia. Rio de Janeiro. Rd, 1988. CIRIGLIANO, Marcia Maria da Silva. Das possiveis relagdes entre musicolera- pte ¢ paicandlie d-emergéncia de win nove termo: atencag fiutuante musical Monografia apresentada como parte dos requisitos para a conclusiio do Curso de Formagao de Musicoterapeutas. Conservatério Brasileiro de Musica, Rio de Janeiro, 1991 CIRIGLIANO, Mircia Maria da Silva. Atengao flutuante musical: ura reflexao psicanatitica quanto ao papel do musicoteraperia. Trabalho apresontado no VI Congreso Mundial de Musicoterapia. Rio de Janeiro, RJ, 1990. (Traduzi- do para o idioma espanhol para apresentagdo no VII Congresso Mundial de Musicoterapia, Vitoria, Espanha, 1993). CIRIGLIANO, Marcia Maria da Silva. A dream is a wish: a therapist's song. Dissertagiio de Mestrado. Temple University. Philadelphia, USA, 1996 DIAZ DE CHUMACEIRO, C.L. Lullabies are “transferential transitional songs”: farther considerations on resistance in musicotherapy. Arts in Psy chotherapy. 1995, 22, 353-357. REIK. T. The haunting melody. New York: Grove Press Inc., 1960,

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