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QUEM FISCALIZA A POLÍCIA?

UM ESTUDO
SOBRE OS MECANISMOS DE CONTROLE
ACERCA DA VIOLÊNCIA POLICIAL
Luiza Correa de Magalhães Dutra1
Osmar Antônio Belusso Júnior2
Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo3
RESUMO: A presente pesquisa busca trazer à discussão a atuação das agências policiais
frente às denúncias de excesso no uso da força. Realizou-se, em um primeiro momento,
uma revisão bibliográica especíica do tema, com o enfoque na temática da violência
policial e dos mecanismos de controle das práticas dos agentes de segurança pública. In-
vestiga-se, após, os mecanismos institucionais de iscalização da atividade policial à luz do
trabalho realizado no Centro de Referência em Direitos Humanos da Defensoria Pública
do Estado do Rio Grande do Sul. Pergunta-se, então, quais os mecanismos institucionais
existentes hoje para realizar o controle, a apuração e a responsabilização destas violências
perpetradas pelas instituições policiais? Dessa forma, apresentaremos os dados coletados
na pesquisa de campo, oriundos dos procedimentos para apuração de danos individuais,
através dos quais o CRDH buscou dar acolhimento e visibilidade às vítimas de violações
oriundas das práticas excessivas da polícia.
PALAVRAS-CHAVE: Violência Policial; Segurança Pública; Polícia Militar.

1. INTRODUÇÃO
O abuso do uso da força por parte de instituições da área de segurança
pública, especiicamente das polícias, começa a entrar no cerne das discussões
dos centros urbanos latino-americanos na década de 1990. Debates sobre
como lidar e conter as violências e criminalidades sociais viraram o centro
dos questionamentos acadêmicos e institucionais.
1. Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais (PUCRS), Especialista em Seguran-
ça Pública, Cidadania e Diversidade (UFRGS), Bacharela em Ciências Sociais (UFRGS), Graduanda
em Ciências Jurídicas e Sociais (PUCRS). Email: luiza.dutra15@gmail.com;
2. Graduado em Ciências Jurídicas e Sociais (PUCRS) e integrante do Grupo de Pesquisa em Políticas
Públicas de Segurança e Administração da Justiça Penal (GPESC/PUCRS), Advogado no Grupo de Es-
tudos e Intervenção em Matéria Penal (GEIP – SAJU/UFRGS) e Assessor Jurídico do Projeto Cuidando
Trajetórias (Centro de Prevenção às Violências). Email: osmarbelusso@hotmail.com;
3. Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais (PUCRS), Professor titular da PU-
CRS, atuando nos Programas de Pós-Graduação em Ciências Criminais e em Ciências Sociais, Pesqui-
sador INCT-Ineac, Conselheiro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Email: rodrigo.azevedo@
pucrs.br.
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Assim, o tema do debate proposto possui ampla relevância social em e de 62% por aquelas que se autodeclaram como não brancas (FÓRUM
razão da importância de se discutir a violência policial dentro da sociedade e BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA, 2015, p. 6-7). Com dados
a forma mais eicaz de combatê-la. Existem, hoje, vários estudos e pesquisas da pesquisa realizada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA)
realizadas denunciando o uso irrestrito da força pelos integrantes das ins- em 2010, por todo o território nacional, Almir de Oliveira Junior aponta que
tituições policiais, em especial a polícia militar, responsável pela vigilância as instituições policiais com maior coniança são, respectivamente, a polícia
ostensiva nas cidades. federal, a polícia civil e, por último, a polícia militar. Enquanto a polícia fe-
De acordo com do 10º Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2016, deral possui um índice de 48,9% nas categorias “conia muito” ou “conia”, a
publicado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (2015), revelam que, militar conta com apenas 29,3% – isto é, 70,7% dos entrevistados posiciona-
no ano de 2015, aproximadamente 3.320 pessoas foram vítimas de mortes ram-se como “conia pouco” ou “não conia” (OLIVEIRA JR., 2010, p. 13).
decorrentes de intervenção policial (dito de outra forma: uma pessoa a cada três Diante desses dados, percebemos que existem indicativos apontando
horas), signiicando um crescimento desse índice em cerca de 37,2% sobre o que a polícia militar, além de ser a instituição policial brasileira com maior
ano anterior (FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA, 2016). efetivo de agentes, é também a responsável pelo maior número de ocorrências
Já no caso do município de Porto Alegre, o número de mortes intencionais de violações de direitos humanos. Disso parte a importância desta pesquisa,
chegou a 572 pessoas, um aumento progressivo de 44,8% entre os anos de uma vez que é necessário promover o debate sobre o uso irrestrito da força e
2011 e 2014 (CÂMARA MUNICIPAL DE PORTO ALEGRE, 2015, p. 153). sobre os mecanismos existentes para o seu controle.
Já dados mais atualizados do 11º Anuário Brasileiro de Segurança Públi-
ca relatam que 4.224 pessoas foram mortas, no ano de 2016, em decorrência 2. UMA FORÇA QUE NÃO CONHECE LIMITES
de intervenção policial, marcando um crescimento de 25,8% em relação ao Sérgio Adorno e Camila Dias, partindo da sociologia política webe-
ano de 2015. Ademais, entre os anos de 2009 e 2016, 21.897 pessoas perde- riana4, entendem que o Estado é composto pela relação de dominação de
ram suas vidas ema ações policiais. pessoas sobre pessoas no interior de um determinado território, utilizando
Se esses números, por si só, já expõem uma realidade violenta, é preciso como meio a violência (considerada) legítima. Dessa forma, conceituar o
pontuar o caráter parcial desse dado, considerando a diiculdade de se coletar as Estado passaria pela compreensão de três componentes essenciais: o território,
informações que lhe dão base, expresso no próprio relatório, variando conforme a dominação e, enim, o monopólio legítimo da violência (ADORNO; DIAS,
cada estado do país. Vale salientar, também, o número de policiais que constam 2014, p. 188). Importante, nesta pesquisa, a discussão acerca desse último
no número de homicídios no Brasil: dados do Anuário Brasileiro de Segurança elemento, pois diretamente vinculado à ideia de mandato policial.
Pública indicam que, em 2015, ao menos 358 policiais civis e militares estão O monopólio legítimo do uso da força retira dos particulares a possibi-
nas estatísticas. Já no ano de 2016 esse número aumentou para 437 policiais lidade de recorrer ao uso da violência como método de resolução dos conlitos
civis e militares que foram vítimas de homicídio. Esses números indicam que a que emergem dentro de uma dada sociedade, recaindo exclusivamente ao
proposta de Segurança Pública do Brasil, além de se mostrar conivente com o Estado. Tal monopólio signiica a capacidade de aplicar ou ameaçar aplicar a
uso abuso da força por parte dos policiais, vitimiza os seus agentes. violência, bem como impedir o uso privado ou abusivo daquele que possui a
Quanto ao efetivo das forças policiais, em 2014 uma soma de 666.479 autorização para exercê-la. Essa ideia precisa ser compreendida através da relação
agentes eram abrigados pelos quadros dessas instituições, divididos entre po- inafastável entre o monopólio da violência e a legitimidade de seu uso: nem toda
lícia militar, polícia civil, polícia federal, polícia rodoviária federal e guarda violência exercida pelo Estado – ainda que seja o único detentor desse poder
municipal. Do total apontado, aproximadamente 64% dos agentes se referiam 4. Segundo Max Weber: “em nossa época, entretanto, devemos conceber o Estado contemporâneo como
a policiais militares. Por im, o relatório demonstra que o índice de satisfação uma comunidade humana que, dentro dos limites de determinado território – a noção de território cor-
responde a um dos elementos essenciais do Estado – reivindica o monopólio do uso legítimo da violên-
com a atividade policial é de 67%, por pessoas autodeclaradas como brancas cia física” (WEBER, 1967, p. 56).
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– é justiicável. Ainda, o monopólio estatal da violência não deve ser encarado Um determinado grau de discricionariedade integra essencialmente a
como se o uso da força constituísse a única resposta efetiva frente a ininidade natureza da atividade policial, pois ao im e ao cabo caberá ao indivíduo po-
de conlitos possíveis. O Estado, e ninguém mais, detém o uso exclusivo da licial que está de frente com a situação conlituosa a decisão pela solução mais
violência, mas não se encerra nela (ADORNO; DIAS, 2014, p. 189). adequada ao caso concreto – é a decisão política de esquina. Por isso, a prática
Se o monopólio estatal do uso da força for entendido como um impor- do exercício policial depende da abordagem autônoma dos policiais, porque
tante indicador do desenvolvimento de um Estado efetivamente democrático recai ao agente policial a deliberação de fazer uso da força (e em qual inten-
e de Direito, os grandes desaios a serem enfrentados são dois: o de possuir sidade) ou não. Não se pretende, no entanto, airmar que a responsabilidade
realmente o monopólio da violência e de que essa violência seja, de fato, por eventuais excessos reside apenas na esfera individual, da pessoa (vale dizer,
legítima (ADORNO; DIAS, 2014, p. 190). Intrinsecamente ligado a isso do trabalhador), o que se coloca é que, ainda que se formule estratégias pre-
está a concepção de instituição policial (“o que é a polícia?”), pois, de acordo ventivas, a apreciação política, social ou judicial da violência policial somente
com Egon Bittner a “polícia, e apenas a polícia, está equipada, autorizada e ocorrerá em momento posterior (MUNIZ; PROENÇA JR., 2014, p. 496).
é necessária para lidar com toda exigência em que possa ter que ser usada a A credibilidade das instituições policiais é um conceito determinante
força para enfrentá-la” (BITTNER apud MUNIZ; PROENÇA JR., 2014, p. para nos situarmos no debate acerca do mandato policial, pois ela interfere
493). Assim, o monopólio estatal da violência seria operacionalizado através diretamente no momento em que um cidadão precisa decidir se aciona ou
das instituições policiais que compõem o Estado. não a polícia, aceita ou não as suas propostas, legitima ou não a sua conduta,
Segundo os estudos de Jacqueline Muniz e Domício Proença Júnior, acredita ou não no que ela faz ou diz que faz, etc. Enquanto uma percepção
a polícia é o órgão que possui o uso potencial e concreto da força. Ela está positiva dessas instituições representa que as pessoas respaldam e se identi-
equipada para tanto, pois dispõe tanto de recursos materiais, como o trei- icam com a sua polícia – assim como a polícia se identiica nessas pessoas
namento para o exercício de seu mandato. A polícia é, também, autorizada – , um índice baixo de credibilidade signiica que as intervenções policiais
para utilizar a força, uma vez que a ela são conferidos ambos respaldo legal serão encaradas com um maior ou menor nível de desconiança ou repulsa
e social para policiar. Existe a expectativa de que a polícia faça uso da força (MUNIZ; PROENÇA JR., 2014, p. 499).
sempre que for necessário, porque é ela que monopoliza e detém esse poder Ampliam-se, assim, posturas intolerantes, discriminatórias e provoca-
(MUNIZ; PROENÇA JR., 2014, p. 493). Segundo os autores: tivas, tanto partindo do público em relação à polícia, quanto da polícia em
A polícia é uma resposta ao desaio de produzir enforcement sem que este direção aos cidadãos. Se por um lado a resistência social cresce, por outro, au-
leve à tirania ou passe a servir interesses particulares. Por essa razão, o uso de mentam também as taxas do uso desmedido da força. Não há reconhecimento
força pela polícia tem um propósito político distintivo e invariante: produzir social na polícia, que passa a se sentir ameaçada, assim como é sentida pela
alternativas de obediência com consentimento social, sob o Império da Lei população como uma instituição ameaçadora. Os agentes policiais deixam de
(MUNIZ; PROENÇA JR., 2014, p. 494).
ser prestadores de serviço público e passam a ser percebidos como um perigo
Desse modo, o uso da força por parte da polícia deve ter um im que, constante, na mesma medida em que enxergam inimigos em cada rua, em
além de ser legitimado pela ordem legal e social, também deve ser passível de cada esquina (MUNIZ; PROENÇA JR., 2014, p. 500). O respaldo social
controle, como mecanismo que afaste a sua conversão em uma ferramenta compõe um assunto de grande complexidade e não deve ser considerado
de opressão estatal ou de determinados indivíduos ou grupos particulares. como algo pacíico, senão o contrário, como um tema controvertido, tendo
Portanto, por ser a polícia um instrumento de poder, cuja intervenção na em vista que diferentes grupos sociais podem atribuir às instituições policiais
sociedade produz, através do uso da força, obediência, as suas formas de isca- graus variados de credibilidade, de acordo com as realidades em que estão
lização se fazem necessárias, irrestritas e transparentes (MUNIZ; PROENÇA inseridas e as interações estabelecidas com a polícia5.
JR., 2014, p. 494-495).
5. Um exemplo disso é o dado já apontado anteriormente, demonstrando que o índice de satisfação com
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Levantar os pontos expostos até aqui nos ajudam a introduzir o debate Percebia-se que a vigência do paradigma da segurança nacional condicio-
sobre o uso da força policial no cenário nacional através do entendimento de nava a atividade policial à manutenção da ordem estatal e à proteção do
establishment contra a oposição política, e a distanciava profundamente de
algumas premissas básicas. A partir disso, a relevância de mecanismos fortes
um engajamento com a proteção dos cidadãos. Distanciava-a ainda mais de
e atuantes no controle e na iscalização das instituições policiais começa a ser uma atividade-meio do respeito aos direitos e garantias individuais. Os
tomar forma. traumas provocados pelo regime autoritário exigiam uma nova declaração de
Como apontam Paulo Sérgio Pinheiro e Emir Sader, apesar da vio- princípios, um novo ordenamento jurídico e mudanças das práticas, porém
exibiam claramente os limites colocados pela conjuntura da transição nego-
lência policial ser um tema recorrentemente tratado essencialmente em face ciada (LIMA; SINHORETTO, 2011, p. 131).
de períodos marcados pelo autoritarismo, como a ditadura do Estado Novo
Por isso, apesar de alguns destaques, como a plena judicialização de
(1935-1945) e do golpe civil-militar (1964-1985), essa espécie de opressão
todas as modalidades de prisão, a ruptura teórico-prática da atividade policial
estatal sempre foi uma realidade latente no Brasil, recaindo principalmente
resumiu-se a uma mudança puramente formal, permitindo a sobrevivência
sobre as classes populares. A percepção das práticas violentas limita-se a esses
de práticas institucionais autoritárias. Todo o aparato de segurança e justiça
momentos de “institucionalização do arbítrio”, ou melhor, momentos em que
criminal, por exemplo, permaneceu intocável, reproduzindo o que o regime
o Estado assume a violência abertamente como prática legal. Em contraparti-
militar havia desenhado: enunciados do universo jurídico-penal e provenien-
da, em outros momentos, sem a violência aberta, muitas práticas repressivas e
tes do discurso de “combate ao inimigo” (LIMA; SINHORETTO, 2011, p.
rotineiras passam despercebidas (PINHEIRO; SADER, 1985, p. 79).
132-133). Sobre isso, esclarecem os autores:
Invariavelmente, o último período ditatorial vivenciado pelo país teve
No primeiro caso, trata-se apenas da redução de conlitos sociais a tipos
expressões muito violentas, sendo impossível ignorar as suas repercussões penais, desprezando a natureza dos conlitos e suas conigurações, que en-
no campo da segurança pública. Diante disso, é necessário reconhecer que gendram regras e padrões de socialidades, constituem e põe em confronto
a promulgação da Constituição Federal de 1988 constituiu um marco nor- identidades individuais e coletivas. No segundo caso, segmentos sociais são
mativo signiicante na transição e no desenvolvimento de um Estado e de vistos como intrinsecamente perigoso e objeto constante de vigilância e neu-
tralização (LIMA; SINHORETTO, 2011, p. 133).
uma sociedade democrática. Entretanto, de igual forma é preciso pontuar
que os avanços conquistados na área dos direitos e garantias políticas e civis Após isso, conforme expõe Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo, a tendên-
não foram acompanhados por uma ampla rediscussão na esfera da segurança cia das reformas legislativas brasileiras nas últimas duas décadas foi no sentido
pública. Inclusive, o termo “segurança pública” foi utilizado pela primeira de apresentar o sistema penal como solução para todos os tipos de conlitos
vez na nova Constituição, em razão do abandono da ideia (ideologia?) de e problemas sociais, por meio do endurecimento de penas, da criminalização
segurança nacional, que foi o discurso responsável pelo aparelhamento das de condutas e da redução de garantias processuais (AZEVEDO, 2004, p.
polícias para o im de “combater os inimigos”6 durante a ditadura civil-mi- 40). Consequentemente, as pretensões de remodelação do sistema de justiça
litar (LIMA; SINHORETTO, 2011, p. 130-131). Segundo Renato Sérgio e, principalmente, das instituições policiais, deram lugar a pautas que refor-
de Lima e Jacqueline Sinhoretto: çam as práticas já estabelecidas: “mais polícia, mais prisão, mais pena, mais
armamento” (LIMA; SINHORETTO, 2011, p. 134).
o mandato policial é de 67%, por pessoas autodeclaradas como brancas e de 62% por aquelas que
se autodeclaram como não brancas (FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA, 2015, p.
Passadas duas décadas, em que pese a vedação expressa da Constituição
7). Assim, “a maneira pela qual os indivíduos processam as informações e experiências anteriores, de Federal, a pena de morte continua sendo administrada informalmente pela
modo a emitir tal avaliação, é provavelmente mediada pela sua posição na estrutura social, marcada por
diferenças de gênero, cor, etnia, idade, nível socioeconômico e região de moradia” (OLIVEIRA JR., polícia, especialmente nas regiões periféricas dos grandes centros urbanos,
2010, p. 10).
6. A ideia de inimigo é extensamente discutida por Eugenio Raúl Zaffaroni, que compreende que essa nos quais os jovens negros e pobres coniguram as principais vítimas. Se as
conceituação surge da separação entre cidadãos (pessoas) e inimigos (não-pessoas), onde este último
possuirá um tratamento diferenciado por parte do Estado, em virtude de sua suposta periculosidade.
instituições policiais estão autorizadas a utilizar a violência, no momento e
Ao retirar-lhe a condição de pessoa, coisifica-se o inimigo, permitindo toda espécie de neutralização
(ZAFFARONI, 2007, p. 18).
na medida estritamente necessária, então, mesmo que se proponha evitar, o
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resultado morte ainda compõe um efeito possível de acontecer (BUENO, situações pouco elucidativas, a violência letal é utilizada como forma de con-
2014, p. 512). No entanto, o tema da letalidade policial não pode ser ana- trole social coercitivo, direcionado a pessoas consideradas como “suspeitas”,
lisado com ingenuidade, pois, para muito além da mera eventualidade das fazendo uso corriqueiro da “justiicativa” de combate ao crime violento. Para
mortes causadas pela polícia, o cenário brasileiro indica um uso abusivo da muito além da detenção do indivíduo acusado de algum crime, os agentes po-
força policial, decorrente de um alto número de homicídios e da existência liciais “condenam, sentenciam e aplicam a pena” (LOCHE, 2010, p. 53-54).
de padrões em suas vítimas.
Bittner alerta para a ausência de critérios seguros capazes de indicar a ne- 3. QUEM POLICIA A POLÍCIA?
cessidade e adequação da força empregada pelas instituições policiais. Todavia, Conforme estudos de 2003, realizados por Julita Lemgruber, Leonar-
algumas medidas internacionais estão disponíveis para o exame do quadro geral da Musumeci e Ignacio Cano, as denúncias mais frequentes recebidas pelas
de um país e aferir se existe abuso da força letal ou não, sendo tais: (i) a relação ouvidorias de polícias no Brasil, envolvendo agentes policiais, consistem em
entre civis mortos e policiais mortos; (ii) a razão entre civis feridos e civis mortos (i) violência policial, compreendida no uso excessivo da força, em especial
pela polícia e; (iii) a proporção de civis mortos pelas polícias em relação ao total no uso seu uso letal e no caso de tortura; (ii) abuso de poder, sendo práticas
de homicídios dolosos (BITTNER apud BUENO, 2014, p. 514). que não possuem violência física, mas que denotam uma postura violadora
No Brasil, como já exposto anteriormente, predomina a diiculdade de de direitos e; (iii) corrupção, tanto na forma de extorsão (unilateral), como na
obtenção dessa espécie de informação, porém, baseando-se nos dados trazidos negociação para poupar pessoas da aplicação da lei (bilateral). As duas primei-
pelo 9º Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2015, a proporção, especii- ras práticas são geralmente ‘justiicadas” como forma de assegurar a “eicácia”
camente quanto ao primeiro critério, chega a 7,5 civis mortos para cada policial da atividade policial, no “combate à violência”. Por sua vez, a corrupção é
morto7. Quanto ao terceiro índice, a relação de civis mortos em decorrência da tolerada, inclusive do ponto de vista institucional, a título de “compensação”
intervenção policial com o total de homicídios dolosos gira em torno de 5,6% em face dos baixos salários (LEMGRUBER; MUSUMECI; CANO, 2003,
(FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA, 2015, p. 6-12). p. 37-41). Especiicamente sobre a letalidade policial, trouxeram os seguintes
Os obstáculos na colheita das informações são inúmeras, desde a falta dados, referentes ao estado do Rio de Janeiro:
do devido registro nas delegacias de polícia de todo o território nacional Por sua vez, os dados médico-legais procedentes das necropsias, também
– isto é, a ausência de uma prática uniforme – , até o não fornecimento examinados pela pesquisa, conirmaram o quadro de uso excessivo da força e
aos responsáveis pela pesquisa. Entretanto, um dos maiores fatores que in- a existência de execuções sumárias: 46% dos cadáveres apresentavam quatro
luenciavam diretamente na minimização da responsabilidade dos agentes ou mais disparos; 61% mostravam pelo menos um disparo na cabeça; 65%
apresentavam pelo menos um disparo pelas costas; um terço dos mortos
policiais ou até no afastamento da respectiva investigação do uso letal da sofreu outras lesões além das provocadas por arma de fogo e 40% das vítimas
força icava por conta da utilização de categorias conhecidas como “autos de tinham recebido disparos à queima-roupa, o sinal mais claro de execução
resistência”8 nas ocorrências policiais, indicando sempre o agir em legítima (LEMGRUBER; MUSUMECI; CANO, 2003, p. 39).
defesa do agente (BUENO, 2014, p. 515). Dessa maneira, observamos que implementar uma cultura jurídica e
De acordo com a pesquisa realizada em 2010, Adriana Loche concluiu social igualitária no interior de uma sociedade multiplamente hierarquizada
que, no estado de São Paulo, onde executa-se um número elevado de civis em e violenta não é uma tarefa fácil (DAMATTA apud LIMA; SINHORETTO,
7. Em estudo realizado por Adriana Loche, a partir de dados colhidos pela Secretaria de Segurança Pública
2011, p. 148), tendo em vista o grave problema da não universalização dos
do Estado de São Paulo, durante o período que compreende os anos de 2000 a 2009, a média entre esses direitos humanos no Brasil, ante a falta de uma transição democrática efetiva
dois fatores foi de 16,3 civis mortos para cada policial morto (LOCHE, 2010, p. 50). Segundo Ignacio
Cano, o teto máximo dessa proporção deveria flutuar em 4 civis mortos para cada agente policial morto – onde se vê ampliada a ideia de “direitos humanos para humanos direitos”,
(CANO apud BUENO, 2014, p. 514).
8. Outros termos que fazem parte dessa categoria são: “resistência seguida de morte”, “morte em confron- consolidando a modalidade de subcidadania, onde o acesso aos serviços pú-
to”, “homicídio com motivação”, “enfrentamento com a polícia” e “resistência com morte do opositor
(BUENO, 2014, p. 516).
blicos básicos ou é inexiste ou é precário.
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Frente a esse contexto, cresce a necessidade de se criar mecanismos funções. Se por um lado a polícia civil é polícia judiciária, responsável pela
pelos quais a atividade policial possa ser monitorada e controlada, para o im investigação e condução de inquéritos criminais, a militar executa o poli-
de mantê-la dentro dos parâmetros estabelecidos pela lei e pela sociedade. ciamento ostensivo, isto é, diretamente nas ruas, com intuito de preservar a
Tais entidades possuem uma origem bastante recente no Brasil – embora o “ordem pública”, sendo uma força auxiliar e reserva do exército (LEMGRU-
civilian oversight of the police seja uma tradição que remonta a década de 1940 BER; MUSUMECI; CANO, 2003, p. 60).
nos Estados Unidos da América – , sendo as primeiras ouvidorias de polícia Consoante o Decreto nº 43.245 de 2004 – que estabelece o regula-
instituídas nos anos 1990 – no Rio Grande do Sul, especiicamente, em 1999 mento disciplinar da polícia militar do estado do Rio Grande do Sul – ,
(LEMGRUBER; MUSUMECI; CANO, 2003, p. 25). especialmente o que dispõe o seu artigo 3º, a hierarquia e a disciplina são
Apesar da variedade com que essas instituições de controle se manifes- “a base institucional da Brigada Militar”, compondo expressamente os seus
tam em cada sociedade – algumas atuam de forma vinculada às denúncias princípios fundantes. De acordo com Lemgruber, Musumeci e Cano, é pos-
que recebem dos indivíduos, enquanto outras buscam realizar avaliações e sível adicionar como base dessa polícia “o patriotismo, o civismo e o culto
apresentar recomendações, seja do trabalho policial, seja da conjuntura da às tradições, o espírito do corpo, a fé na missão, o amor à proissão e o aper-
segurança pública como um todo – , todas elas convergem na preocupação feiçoamento técnico na tarefa prioritária de manutenção da ordem pública”
de responderem à necessidade de um órgão que faça com que as instituições (LEMGRUBER; MUSUMECI; CANO, 2003, p. 60).
policiais “prestem contas do trabalho que realizam e sejam responsabilizadas Segundo os autores, é perceptível a sistematicidade em que os regula-
pelos abusos e ilegalidades que eventualmente cometam” (LEMGRUBER; mentos disciplinares dos policiais militares, de todo o país, de um lado se
MUSUMECI; CANO, 2003, p. 25-26). mostram rigorosos quando o assunto é a transgressão das normas concer-
Algumas entidades de iscalização podem trabalhar a partir de uma nentes à hierarquia e à disciplina, e de outro são lenientes com condutas
delegação de membros, que podem ser indicados exclusiva ou concomitan- que dizem respeito a violações de direitos humanos por parte dos agentes
temente pelo Executivo, pelo Legislativo, pela própria polícia ou inclusive policiais. Assim, diagnosticam que o controle interno da polícia militar – no
pela comunidade em que desenvolvem a atividade. Outras, baseiam-se em Rio Grande do Sul, a Corregedoria Geral da Brigada Militar – acaba por se
uma única pessoa, geralmente escolhida pelo Executivo, que é auxiliada restringir a reforçar a cadeia hierárquica e disciplinada do militarismo, sem,
por uma equipe técnica. Essa última modalidade é o caso das ouvidorias de contudo, representar uma iscalização real da atividade policial (LEMGRU-
polícia brasileiras, que trabalham de maneira reativa, ou seja, lidando com BER; MUSUMECI; CANO, 2003, p. 62-63).
queixas especíicas de condutas inadequadas ou ilegais de agentes policiais Sobre o exercício do controle externo da polícia militar, um dos principais
– em que pese existam alguns casos isolados, mas de extrema importância, órgãos é a Ouvidoria da Justiça e da Segurança do Estado do Rio Grande do Sul,
como a ouvidoria do estado de São Paulo, que conseguiu introduzir a dis- instituída através do Decreto nº 39.668 de 1999, e é a responsável, segundo o
ciplina de direitos humanos no currículo da academia da polícia civil, bem seu artigo 2º, por receber denúncias (e sugestões de funcionamento) envolvendo
como a utilização de silhuetas de corpo inteiro no treino de tiro (LEM- integrantes da polícia militar, da polícia civil, da Superintendência dos Serviços
GRUBER; MUSUMECI; CANO, 2003, p. 27-30). Penitenciários (SUSEPE) e do Instituto Geral de Perícias (IGP). No entanto,
Até este momento, tratamos das instituições policiais de forma una, esse controle externo se mostra limitado na medida em que não possui poder
estando presente um enfoque levemente inclinado para a polícia militar. para conduzir uma investigação própria, senão apenas encaminhar – e monito-
Convém, aqui, estreitar o objeto para essa polícia, uma vez que constitui o rar – cada caso para a respectiva corregedoria, ou seja, a remessa para o devido
objeto que esta pesquisa se propõe a debater. As distintas entidades policiais mecanismo de controle interno (MARIMON, 2009, p. 56-57).
estão previstas no artigo 144 da Constituição Federal, em especial no inciso Ainda no que tange ao controle externo, outro órgão importan-
V, que estabelece a polícia militar, e os parágrafos 5º e 6º, que deine suas te, cuja atribuição é conferida pela própria Constituição Federal de 1988,
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especiicamente no artigo 129, inciso VII, é o Ministério Público. Por conse- controle das instituições policiais se manifesta de forma turva. De um lado,
quência do marco constitucional, essa instituição teve uma imensa ampliação o controle externo, no qual a Ouvidoria da Justiça e da Segurança não possui
no seu rol de funções, tornando-se o defensor da ordem jurídica, dos direitos poderes para investigar, enquanto o Ministério Público pouco atua. De outro,
constitucionais, do regime democrático, do patrimônio público, dos direitos o controle interno, enviesado pela falta de independência dentro da polícia
difusos e coletivos e, enim, do controle externo da atividade policial. Para o militar. Essa última, contudo, foi a entidade selecionada como objeto da nossa
devido desempenho desse papel, cabe ao Ministério Público “o monitoramen- proposta de estudo, uma vez que igura, hoje, como o órgão mais atuante do
to de todos os estágios do trabalho policial, o exame de todos os documentos e combate da violência policial.
procedimentos relacionados às investigações, e a denúncia de tortura, crimes,
abusos e violações de direitos dos cidadãos” (LEMGRUBER; MUSUMECI; 4. O CENTRO DE REFERÊNCIA EM DIREITOS
CANO, 2003, p. 122). HUMANOS E A FISCALIZAÇÃO DA ATUAÇÃO POLICIAL
Entretanto, embora exista uma grande amplitude na sua lista de en- Durante o ano de 2016, mais especiicamente entre junho e agosto, a
cargos e prerrogativas – que transformaria o Ministério Público no principal equipe de pesquisa do Grupo de Pesquisa em Políticas Públicas de Segurança
órgão de iscalização das instituições policiais – , a prática vem demonstrando e Administração da Justiça Penal (GPESC) da PUCRS, em parceria com o
que a sua autoridade é meramente formal, havendo raros casos onde suas Centro de Referência em Direitos Humanos (CRDH) da Defensoria Pública
atribuições foram exercidas de fato – notadamente situações isoladas, guiadas do Estado do Rio Grande do Sul, analisou 279 Procedimentos para Apura-
por pessoas ou grupos militantes. As razões pelas quais se explicam a não ção de Dano Individual (PADINs), instaurados durante o período de 2014
correspondência das expectativas geradas pela Constituição Federal de 1988 a junho de 2016 pelo CRDH. Os PADINs envolviam casos de violência
giram em torno da inércia interna da instituição, deixando em segundo plano policial e, a partir de sua análise, procurou-se traçar os peris dos envolvidos
o controle externo, em detrimento de outros papéis, como a titularidade na ocorrência (vítima e agressor), e analisar o evento da violência em si – qual
da ação penal, bem como a resistência corporativa das instituições policiais tipo de violência foi realizada, em que local, quais as circunstâncias – e os
frente às interferências de agências externas (LEMGRUBER; MUSUMECI; encaminhamentos que foram dados após a abertura deste PADIN – quais
CANO, 2003, p. 123-124). órgãos foram oiciados, se houve resposta ou se foi necessário o reenvio.
Ainda, no ano de 2017, a Corte Interamericana de Direitos Humanos Em relação ao peril dos acusados, temos que 70,61% são homens,
condenou o Brasil pelo Caso Favela Nova Brasília, caso que trata das chacinas 2,51% são mulheres, e existe uma porcentagem de 26,88% de gênero não
ocorridas em 1994 e 1995 na comunidade Nova Brasília, no Complexo do informado. O número elevado de homens na posição de agressores pode se
Alemão, durante operações policiais no Rio de Janeiro. O Brasil terá um ano, dar, por um lado, pela proporção desigual entre o número de homens e mu-
até 11 de maio de 2018, para reabrir as investigações acerca das chacinas. O lheres no quadro das corporações policiais. Leonarda Musumeci e Bárbara
que torna essa condenação de suma importância para o debate em questão Musumeci Soares apontam que, na maioria dos estados, as mulheres só foram
é que antes de chegar na CIDH, os inquéritos em relação às chacinas chega- admitidas para adentrarem nas instituições policiais ao longo da década de 80,
ram ao Ministério Público do Rio de Janeiro e foram arquivados. Ademais, e essa abertura se deu principalmente como uma medida para “humanizar” a
a CIDH coloca que em casos em que policiais apareçam como possíveis imagem das polícias militares brasileiras. Em suas pesquisas, concluíram que
acusados, a investigação seja delegada a um órgão independente e fora da o número de mulheres integrantes da polícia militar no Rio Grande do Sul
força policial envolvida no incidente. Um caso que coloca em evidência a era de 1.143, frente a um total de 18.785 policiais, ou seja, apenas 5,7% –
fragilidade das instituições de prevenirem e combaterem o uso abusivo de não destoando da média nacional, de 7% (MUSUMECI; SOARES, 2004).
violência por parte dos policiais.
Vale salientar que a abertura para a chegada da polícia feminina no
Diante do exposto, o quadro que se desenha quando se discute o Brasil teve como molde de experiência as polícias européia e americana, onde
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se averiguou o bom desempenho feminino quando se tratava da resolução Em relação aos órgãos que mais recebiam ofícios do CRDH, aparecem
de conteúdos relacionados a polícia preventiva e funções assistenciais. Assim as Delegacias de Polícia Civil (um total de 197 vezes de tentativa de contato),
sendo, a primeira polícia feminina uniformizada foi criada, em 1955, no sendo seguido de perto pela Corregedoria-Geral da Brigada Militar e pelo Mi-
Estado de São Paulo, através do Decreto nº 24.548. Após essa iniciativa, nistério Público Estadual (em ambos os órgãos, um total de 195 incidências)9.
outros estados brasileiros passaram a seguir o exemplo e criaram suas polícias Tais ofícios eram expedidos pelo CRDH no duplo intuito de: (i) relatar e
femininas: em 1977, o Paraná e em 1980 foi a vez do Amazonas. informar a situação de violência sofrida por um cidadão ou cidadã, em que no
Além disso, a polícia militar lidera o número de acusados de violência polo ativo do evento igurava um agente da força policial e; (ii) demandar uma
policial: 89,89% são vinculados a essa instituição, enquanto 6,5% são da polícia providência do órgão responsável para que proceda com a apuração do fato nar-
civil e 2,17% da guarda municipal. O alto número de policiais militares que se rado e a consequente e adequada sanção dos policiais envolvidos, se necessário.
envolvem com situações desta natureza possui relação com as suas atribuições, O dado mais interessante para o debate, entretanto, repousa no número
pois é a Brigada Militar que realiza o policiamento ostensivo. Um determinado de respostas dos órgãos oiciados: a Corregedoria-Geral da Brigada Militar –
grau de discricionariedade integra essencialmente a natureza da atividade desta analisando sempre através do número de PADINs em que houve expedição
espécie de polícia, pois ao im e ao cabo caberá a este policial que se depara com de ofício ao respectivo órgão – enviou resposta em para 55% dos ofícios
a situação conlituosa a decisão pela solução mais adequada ao caso concreto. enviados; as Delegacias de Polícia Civil, guardando a mesma proporção,
Por isso, recai sobre o agente policial a deliberação de fazer uso da força (e em responderam aproximadamente 57% dos ofícios. Já no caso do Ministério
qual intensidade) ou não (MUNIZ; PROENÇA JR, 2014). Público – órgão destinado constitucionalmente ao controle da atividade po-
Quanto ao cargo desempenhado pelos agentes considerados agressores, licial, o retorno foi de apenas 14% dos ofícios.
23,30% desempenham a função de soldado, 3,23% de sargento, 0,72% de Isso quer dizer que, dos 195 ofícios expedidos para o Ministério Público,
delegado, e 72,76% das funções desempenhadas pelos indicados não foram dentro dos Procedimentos para Apuração de Danos Individuais, instaurados
informadas em nenhuma fase do processo. A partir desses dados iniciais, pelo CRDH, foram registradas apenas 28 respostas do órgão. Isto é, a ins-
nota-se de antemão uma grande porcentagem de dados não-informados tituição cuja atribuição para exercer o controle externo da atividade policial
em nenhuma parte do inquérito policial ou do próprio processo criminal – é conferida pela própria Constituição Federal de 1988, especiicamente no
quando é instaurado um -, o que pode demonstrar uma indiferença por parte artigo 129, inciso VII, é precisamente aquele que a experiência prática vem
das instituições formais de fornecerem informações que seriam importantes demonstrando ser o menos atuante, aparentando ser a sua prerrogativa de
para possíveis investigações que envolvessem abuso de força policial e para a iscalizador das agências policiais meramente formal, havendo poucos casos
tabulação de dados para iscalização da efetividade da ação policial. onde suas atribuições foram de fato exercidas.
Em relação aos encaminhamentos dados para cada caso, 73%, dos 279 Dentre esses três principais órgãos (Corregedoria-Geral da Brigada Mi-
PADINs, estavam em andamento, sem solução inal. 15% desses procedi- litar, Delegacias de Polícia e Ministério Público), trazemos também as mais
mentos foram encerrados devido à ausência de elementos probatórios, via de recorrentes respostas remetidas, no que diz respeito especiicamente ao seu
regra pela falta de informações no que diz respeito à identiicação dos agentes conteúdo. Das 108 respostas da Corregedoria da Polícia Militar, a maior
policiais perpetradores da violência. Outros 8% corresponderam a casos em parte, 53,7%, foi no sentido de informar que foi instaurado um procedi-
que houve ajuizamento de processo judicial, geralmente visando à indeniza- mento administrativo para investigar o fato; em 17,5% houve a negativa da
ção pelos danos causados. Somente em 4% dos casos houve arquivamento em ocorrência do fato narrado pela vítima (ou, nos termos dos pareceres emitidos
razão de desinteresse pela parte – na verdade, o que se constatou é que essa
espécie de arquivamento se dava, em regra, nas situações em que o CRDH 9. Outras instituições também figuraram como destinatárias dos ofícios expedidos: a Secretaria da Justiça
tentava contatar a vítima, mas não lograva sucesso. e dos Direitos Humanos do estado (em 37 ocasiões), o Instituto Médico Legal (30), a Corregedoria-Ge-
ral da Polícia Civil (12) e, enfim, a Corregedoria-Geral da Guarda Municipal (4).
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pela Corregedoria, “inexistência de indícios de indisciplina ou de crimes de Assim sendo, coloca-se em destaque a necessidade – urgente – de de-
natureza militar”). A Corregedoria encaminhou para outro órgão em 14,8% batermos e repensarmos as formas de iscalização das práticas policiais que
das ocasiões e em 13,8% requisitou ao CRDH o envio de mais informações. visam, em tese, a proteção de todos e todas, independente das condições
Já nas Delegacias de Polícia, por outro lado, das 113 respostas enviadas sociais em que esses se apresentem. Do debate supracitado, erguem-se ques-
ao CRDH, o retorno com maior incidência era o encaminhamento para um tionamentos sobre a própria formação da instituição policial brasileira, de
terceiro órgão (62,8%). Informaram que estavam procedendo com a devida seus agentes – normalmente formados para o combate -, bem como das
investigação em 23,8% das ocasiões. As demais respostas tiveram pouca in- instituições ditas de “justiça” que, entre teias de poder, acabam por legitimar
cidência (requisitaram mais informações em 7,9% das situações e negaram a práticas abusivas que, de fato, apenas deslegitimam estruturas democráticas,
existência do fato em 6,1%). trazendo à tona feridas sociais abertas e não curadas.
As respostas do Ministério Público, por im foram, respectivamente:
encaminhamento para outro órgão (39,2%); solicitação de maiores esclareci- REFERÊNCIAS
mentos (28,5%); informação de que estariam investigação a situação (21,4%) ADORNO, S.; DIAS, C. Monopólio estatal da violência. In: LIMA, R. S.; RATTON, L. L.;
e; negativa da existência do fato (10,7%). Importante ter presente, sempre, AZEVEDO, R. G. (Orgs.). Crime, polícia e justiça no Brasil. São Paulo: Contexto, 2014. p. 187-197.
que o percentual apresentado acima diz respeito a um universo de 28 retornos AZEVEDO, Rodrigo Ghiringhelli de. Tendências do controle penal na época contemporânea: reformas
penais no Brasil e na Argentina. São Paulo Perspectivas. vol. 18. n. 1. São Paulo, 2004. p. 39-48.
da instituição dos 195 ofícios expedidos pelo CRDH.
BUENO, Samira. Letalidade na ação policial. In: LIMA, R. S.; RATTON, L. L.; AZEVEDO, R. G.
(Orgs.). Crime, polícia e justiça no Brasil. São Paulo: Contexto, 2014. p. 511-518.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS CÂMARA MUNICIPAL DE PORTO ALEGRE. Mapa dos direito humanos, do direito à cidade e da
segurança pública de Porto Alegre 2015. Porto Alegre: Stampa, 2015.
Evidencia-se, a partir dos dados e da discussão bibliográica apresentada FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. Anuário brasileiro de segurança pública de
anteriormente, que a temática em relação a violência policial e, por conse- 2015. São Paulo, 2015.
guinte, em relação ao debate sobre as reformas das instituições policiais, em LIMA, R. S. de; SINHORETTO, J. Qualidade da democracia e polícias no Brasil. In: LIMA, R. S. de.
Entre palavras e números: violência, democracia e segurança pública no Brasil. São Paulo: Alameda, 2011.
grande medida, é invisibilizada – e arriscaria se dizer negada – pelos órgãos p. 129-152.
destinados ao controle da atuação policial. O ato de exercer a iscalização em LOCHE, Adriana. A letalidade de ação policial: parâmetros para análise. Tomo, Revista do Núcleo de
relação a prática policial é raramente realizado pelos órgãos competentes – e Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais, Universidade Federal de Sergipe. São Cristóvão, n. 17,
jul./dez., 2010.
nesse ponto colocamos foco no Ministério Público.
LEMGRUBER, Julita; MUSUMECI, Leonarda; CANO, Ignacio. Quem vigia os vigias? – um estudo
De acordo com a pesquisa realizada no Centro de Referência em Di- sobre controle externo da polícia no Brasil. Rio de Janeiro: Record, 2003.
reitos Humanos da Defensoria Pública do Estado do Rio Grande do Sul, a MARIMON, Saulo Bueno. Policiando a polícia: a corregedoria-geral de polícia civil do Rio Grande do Sul
(1999-2004). São Paulo: IBCCRIM, 2009.
partir da análise dos 279 PADINs instaurados, por parte do CRDH, entre
MUNIZ, J.; PROENÇA JR., D. Mandato Policial. In: LIMA, R. S.; RATTON, L. L.; AZEVEDO, R.
os anos de 2014 e metade do ano de 2016, se constatou que a DPE oiciava G. (Orgs.). Crime, polícia e justiça no Brasil. São Paulo: Contexto, 2014. p. 491-510.
os órgãos destinados à iscalização dos – possíveis – episódios de violência MUSUMECI, Leonarda; SOARES, Bárbara Musumeci. Polícia e gênero: participação e peril das poli-
policial para melhor prosseguimento de investigações. Porém, das 197 tenta- ciais femininas nas PMs brasileiras. Nitéroi: Revista Gênero, v. 5, n. 1, 2004.
tivas de contato com as Delegacias de Polícia Civil, apenas 57% dos Ofícios OLIVEIRA JUNIOR, Almir de. Dá para coniar nas polícias? Coniança e percepção social da polícia
no Brasil. Revista Brasileira de Segurança Pública. São Paulo. Ano 5. ed. 9. ago./set., 2011.
enviados foram respondidos; em relação à Corregedoria da Polícia Militar,
PINHEIRO, Paulo Sérgio; SADER, Emir. O controle da polícia no processo de transição democrática
55% dos ofícios foram respondidos. Em relação ao Ministério Público – órgão no Brasil. In: Temas IMESC. São Paulo, 1985. p. 77-95.
destinado constitucionalmente ao controle da atividade policial, apenas ob- WEBER, Max. Ciência e política: duas vocações. São Paulo: Cultrix, 1967.
teve-se 14% de resposta em relação aos ofícios enviados. ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O inimigo no direito penal. 2ª ed. Rio de Janeiro: Revan, 2007.

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