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uma (outra) guerra inda Marlene de Fayeri wy OVALEDOTAAL Pot date Prnni TAD, a A Tashi, pequena mulher a fazerme perguntas dificels de responder, enguanto conciliava papéis de mie e historiadora, e me cuidou. A minha mie, Theresinha, grande rmuther, «que me ensinoy tet coragem e superar desafos. Lista de Siglas APESC ~ Arquivo Pablico do Estado de Santa Catarina DOPS — Departamento de Ordem Politica e Social DEOPS - Departamento Estadual de Ordem Politica e Social DIP~ Departamento de Imprensa e Propaganda DEIP— Departamento Estadual de Imprensa e Propaganda TSN - Tribunal de Seguranga Nacional FAB~Forga Aérea Brasileira FEB — orca Expedicionéria Brasileira sips. ervigo de Inquéritos Politicos Sociais Introdugéo “prc quasi de ws poscr como una eclosion apenas mbes depose subs” Lin Feb! Ano de 1942. Agosto, dia 22. Na Matemidade Carlos ‘Corréa, Nair Scheidt estava em vias do trabalho de parto de seu primeito filho, quando um rebuligo se espalhou pela ‘cidade. Segundo conta, eu munca vi coisa assim, jiqusi assustada, cesperei a enfermeira e perguntei 0 que era, e ela disse: "o pessoal ‘estd reoliado com os alemdes porque rebentou a guerra; esto quebrondo muitas casas, muitos vidros de alem Nas lembrangas de Nair 0 tempo de tumulto € susto ‘no €.0 mesmo do rel6gio: o tempo da meméria remexe 0 passado eo resignifica de sentimentos di spares, quando a ‘capital catarinense foi palco de violéncias, prisSes, invasSes de residéncias, bulicio nas ruas e quebradeiras, passeatas © Marlene de Fiver palavras de ordem contra estrangeiros ¢ descendentes, Um vverdadeiro rebuligo, nos sentidos da depoence. Sua histéria rnd € cinica: em ouras rantos lugares naqueles diss € naqueles anos, muitas mulheres © homens foram orga a reelaborar sentidos, por veres muito amargos, e a encontrar saidas nas artimanhas de viver dias de inseguranga, rememorados hoje com rancor. O tempo da Segunda Guerra Mundial vem das narrativas que se abrem e revelam passagens ¢ relagbes de tum passado resignificado num presente que vai escoando velozmente. Mas, por que falar desse tempo? Melhor deixar quieto © pagar de ver as feridas...Tantas veues a palavra medo me foi dica em diferentes tons. Perguntei-me em virios momentos se 20 historiador eabe ouvir @ meméria do meio, remexer nos ressentimentos e dores do passado, nos siléncios - que forcaleza esses silénciost Em alguns momentos quase sucumbi 8 tentagio de tomar uma posigio em relagio As linguagens ainda aflias. Foi-me um processo doloraso este de owvie 08 sentimentos do outro e distanciar-me; cavou-me fundo o sentido do cuidado com as palavras. Era preciso, € preciso acariciar as cieatres. Jean Delumeau foi a inspiraglo - Por que ese siléncio prolongado sobre o papel do medo na histria?™- © desafio, Os sentidos me vieram das narrativas, sentimentos hhumanos que me fizeram eserever uma histéria seguindo a escuta, eagando rasros, significando detalhes Nas minhas inquietagies, percebi a auséncia destas hisedias nos livros sobre a Histéria de Santa Catarina; quando rio, sfo fragmentos de poucas paginas e mais para dizer que Jomos & guerra, galhardamente vencemos com herofsmo e nos vvingamos do afundamento de navios mercantes brasleiros rorpedeados pelos alemies. A Forga Aérea e Expedicionéria brasileiras aparecem sempre com este sentido, nada mais. Pesquisas recences tém levantado_questies sobre of acontecimentos durante a Segunda Guerra, o nazismo, 0 integralismo, as ressténcias na questo da ingua, ou das redes de espionagem e os mecanisimos de repressio aos alemies perseguidos durante a guerra,’ consetuindo-se referéncias para sce wna (oute) era as anslises sobre Sanca Cacarina, entretanto, nada que tenha pPontuaalo o cotidisno da guerrs neste Estado, Se a historiografia sobre Santa Carina tem-se omitido até bem pouco na visualizagio das misdas franjas e relagdes vividas durante aqueles anos da Sesunda Guerra, este “silencio historiogrifico” pode ser interpretada como um cuidado da sociedade civil em “esquecer” acontecimentos que the sio duros de lembrar? Ou seria a auséncia de arquivos especificos ¢ documentagio farta’ Ou seria, sind, a meméria oficial posterior i guerra, que fer prevalecer mitas e her6is, homens Poblicos e redes politcas entre partidos que naquele momento se degladiavam e exclufam, rearranjando-se depois no poder conde estio até hoje? A dificuldade de ouvir o outro, prin« palmenre deixir que fale de suas lembrangas e ouvir os siléncios © 08 rancores? Penso que um conjunto de coisas contribuiu ‘pam esse silenciamento e, se atentarmos pata uma preocupegao de Peter Burke sobre os usos da meméria social, observa-se ‘que os vencedores que escrevem suas historias podem dar-se 0 luxo de exquecer, enquanto os perdedores no conseguem acctar 0 que acontecew ¢ so condenados a remod-lo, revivé-lo, refletir sobre como podera tr sido diferente.” ‘As narrativas io intencionais, sim, e 0 uso das palavras € conceitos podem levar, se dubiamente colocados, a0s seus ‘usos para fins irtacionais, Eric Hobsbawn exprime esta preo- ‘cupagio - da autojusificagio, nos nacionalismos, de mitos ¢ ‘egimes com inspiraglo na histéria - e diz ser taefa do hsoriador tentar remover essas vendas, ou pelo menos levanté-las wm pouco de vex em quando - e na medida que o fazer podem dizer & saciedade ontemportnen danas coisas das guais elas paderiam se beneficia, atinda que hese em sprend2-las.* Essa € uma perspectiva, ou melhor, o desejo de tecer outra narrativa que dé sentido aos dramas e emoses de um tempo em que tensBes e preconceitos xnicos fluiam barbaramente, estabelecendo um dislogo com ‘© presente ~ um hoje que se debruga em problemas com os ‘quis ainda no apiendemos como lidar. Natrar é também selecionar porque nunca alcanga a totalidade do observado ‘um dado lugar © momento; & dar textura as tramas através de a Marlenede Kaveri escolhas, Humana, a tama histériea nio suporta dererminémos, sdesentolase na tentativa de revirar buinhas do passado. A medida que ousei ouvir as margens e os siléncios, ¢ sleliberadamente fui em busca de pessoas comuns, mais necessirio se fer entender 0 medo: afinal, de que medo falavam efalam? Do que as pessoas tinham e tém medo? Quais os sentidos do medo que vem revigorado durante a guerra? ‘Quem o produ e dele se utiliza? Marlen Chauf persuadu-mme a interpretar esse sentido - que & também afeto e espanto, ‘sito e siféncio, vida e more, dd e poder - vendo-o nas mais triviais situagdes cotidianas, inclusive » maior medo dos homens: 0 medo da morte. Da traigio, da tortura, da rerda, do inferno, da desonra, da fome, da dot, do escuro, mas sobrenide da morte.’ E do outro, o estranho. Cada época consent seus deuses e deménias,e 0 faz conforme conwim a ‘este ow aquele grupo de interesse - comunistas, braxas, Judeus, mouros, mulheres, indios, escrangeiros, nazistas, insperores, rabes, eaSlicos, mugulmanos: um “outro” sobre ‘0 qual convergem discursos que incitam ao édio, foram imaginsios Sim, & produgio de imaginsios sociais produzem-se sentidos - formas de receber sensagies - ¢ slo significados nas representagies de si, de mundo, do outro. Os homens & mulheres de diferentes geragdes, etnias, classes sociais, ou ‘cultura, que moravam em qualquer lugar do Estado catarinense durante os anos da guerra, estavam produsindo sentidos: 0 que mais posso “escavar" das palavras escritas por Gertudes 0 presidente da Repiilica, cuja carta expressa uma séplica para que Iberte seu marido preso num campo de concentagio? Subjetividade nica, singular, porém produzida nas concigbes de uma esposa e mie vivendo o drama da prisio por conta da guerra, € que, portanto, tem uma dimensio histérica. ‘A carta de Gertrudes, ¢ tantas outras similares neste trabalho, como também jas narrativas da meméria € os sdepoimentos contidos nos processos crime, instigam para a ‘questo da interpretagio, ou uma reflexio sobre o problema ‘que mais tem incitado historiadores (e filésofos) hi muito tempo: de que lugar fala © historiador? Nao estria ele julgando ‘Memes deur (ours) guerra ages do passado ao dar um sentido outro para o que as pessoas Pensaram e porque assim agiram, disseram ou excreveram no momento em que as viveram? Se levarmos em conta que 0 sentido de um texto suscita muitas possiblidades, 0 intérprete deve ir até 0 fundo, escavar na profundidade - mesmo que seja para descobrir que essa profundidade ndo é senfo um jogo e uma ruga da superficie, conforme as teflexdes de Foucaule sobre Nietsche. A interpretagio, diz Foucault, € aefainfnta, sempte fragmentada e inacabada, Nada existe além dea.” Essas reflexes permitem olhar as fontes com cuidedo: como as pessoas pensaranvagiramfescreveram tem historicidade inscita ‘nos jouos de poder e de forcas vividas na cotidianidade’- lugar das tensbes, dos imprevstos,estratéias ou atcudes, ou possibi- lidades de improvsago de mudangas de resstncia,sssinala Maria lila Dias sobre como as pessoas se conduzem, rompendo com papéis normativos. Ela prope que, estudar 0 cotidiano, atualmente, ¢ voltarse para a apreensio das difeencas, bara a documentagao de especificidades; perceber as diferentes cemporalidades, os seres concretos e culturalmente diverss.!* [No cotidiano esté anunciado o fortuito, regras imprevisives € menos contingentes. Essa € uma possivel aposta e também uma postura politica. Quero dizer com isso sobre o quanto € dificil interpretar ¢ abandonar a ambicio de realizar julgamentos hisuricos destes ou daqueles procedimentos. Portanto, fer a critica interna ao documento, duvidar do que esté na superficie, ineerrogar o detalhe, perceber as diferentes versies producidas no “calor da hora", desconfiar do testemunho e cer claro qual o lugar do intérprete - eis 0 desafio. Para alguns acontecimentos, por exemplo, pude observar tes versies distintas: a dos jomnais, aquela contida no processo crime € a das memérias afetivas. Entio, qual meu papel e lugar nesta narrativa que fago sobre a guerra, que é cambém minha interpretagio? Intermediar diferentes texcos/imagens/fala, confrontar verses fazer ver uma certa correspcndéncia ek! diferenga entre elas, produzir outro sentido, sem nenhuna pretensio de diter verdades. B Ms Nas representages cortentes, tanto nos anos de 1949 ‘quanto ainda hoje, a guerra - artigo definido feninino - paradoxalmente & masculina. Si0 os homens que as fazem, as declaram, latam, morsem, vam heeds e mrtires. Nes franjas dessa guerra que chamo de “ourra", delibecadamente, as, mulheres aparecem quando esceevem cartas em nome da familia e dos filhos, querendo a soteura dos maridos presos. ‘Allgumas testemunham nos processes crime, sfo incriminadas ¢ afastadas por ordem do Departamento de Ordem Politica © Social. No mais, elas “nio existiram” enquanto sujeizos histéricos, porque os homens as viam com lentes da época, da cultura que as excluta de paricipagio na esfera pablica- s6 homens fasiam parte de inspetorias, s6 eles eram delegados, Drefetos, jules, escrivies ou outtos cargos de diseingo. Eram elas, sim, destinadas a serem professors, znfermei- ras, alertadoras, samaricanas, érbita que as cicunscrevia no espago privado do lar e na missio de cuidar do outro, dos filhos dos outros e seus, 0s doentes dos outros e seus, © todos pela patria, Ou seja, na construgio culeural dos géneros, nas relagdes vividas nos anos de 1940, se eram diferentes os paréissocinis e sexuais exigidos para homens e para mulheres, hhouve um reforga pontuado pela ideologia vigente, mas principalmente nas exigéneias da vida cotidiana. Na medida fem que escreveram carta afirmanddo-se como mies €esposas, zelosas, euidaram dos homens (mavids, filhos, pals irmios) violentados pela policia, amedrontaram-se com a possivel escassez de alimentos ov com a possbilidade da prisio ou recrutamento dos parentes masculinos, obrigaram-se a “calat” a criangas, estavam se constiuindo como sueitos e sfirmando papéis. Ou seja, a guerra nio as liberou das fungSes ditas femininas. sendo possivel afi papéis sexuais e socials normativos, na medida em que delas cexigit ainda mais cuidados com a honta. Dizem-me, por exemplo, que, com a presenga de soldados vindos de outras regides, principalmente do Rio de Janeiro © do Nordeste do pais, eram constantemente lembradas dos possiveisperigos de andar nas ruas, somado aos blecautes (apagies) que as war que Feforcon eereripor © n Memes de uma (oute) guerra obrigava a se recolherem mais cedo. Ou seja, 0 medo funcionou também como elemento recrudescedor para 0 conservadorismo Também nio estou afirmando que existe uma meméria feminina exclusiva, o que seria por demsis nacuralizance. Hi, sim, aspectos diferenciadores no que lembram, que deixam encrever uma *meméria educada" para determinados papeis. Quando falamn da guerra “ouera", remexem mais nes lides cotidianas, da faina com os flhos, da easa como lugar de “dar conta", mas no 36 do espago privado. AS mulheres, eas suas narratives, dio-me conta de que guardam lembrangas de uma guerra nas moleiplasintermediagSes inserdas na cultura na fluides das idus e vindas. Nao se explicam esas memérias 56 como categoras fixas do piiblico ¢ do privado, mas nas mileiplas dimensoes da vida coridiana ‘A meméria tem esse poder de nos encantar afer com os deealhes fugidios, porque as narrativas expressam-se partic de pontos de vista prdprios, buscadas do ontem ¢ feinterpretadas hoje, resignificada, sim, porque 08 signos, € seus siificados corelatos, vém da imagem de eada un e que toca a dimensto da vida ~ recordar € estar vivo: um simbolo, cheiro, som, coque faz remexer na lembranga. Cada depoente tem uma histria, € personagem do préprio enredo, © mesmo que esta se misrure & meméria coleriva, nfo deixa de ter um componente individual! Ora, a meméria € feta tamaém de exquecimentas ~ sd formas de slncios, de senios ndo tos, de sentidos @ nao dizer, de silncios ¢slencizmentos permeados de dores,recees.Silenciae no significa esquecer: a emergencia do “dito” ndo prow que ele representa mais do que a pte imersa do indiseel." Sa0 outras formas de discurso impressos na emoglo, expressio, gests... olhos suados, por vez, reabrir portas de um passado cecido de sentimentos, recuperando pares de histérias que ndo cabem em formas. Em muitas destas conversas, a garganta travourme, Jnrompendo em silence e kigrimas “ « por que ao Ligrimas? Ao sentir os sentides do outro, aprendi que, sobreviventes de cerca forma, os depoentes me ensinaram que a via fui, que lembrar é viver de novo, que estar aqui e poder ainda % Marlene de Rivest emocionar-se € uma dédiva, mesmo quando jé velhos epaziguados eviawam evocé-las, onque as feridas mal cicatizadas soltavam a sangrar como se fossem de ontem, na expressio de Gabriel Garcia Marques.” Respeiear esses siléncios € também redimir a histria das absurdas homogeneisagses, do tempo linear. O carter mili, vulnerivel,fugidio,aetvo, alrerado, pereurbador da meméria, permite sim, perceber em cada olhar profundo um jeito de ligar os flos que torcem e retorcem, e, no fim, fazem um sentido imenso. E desse sentido, desses olhares penetrantes no passado, olhos de hoje jé cansados, porém Itcidos de reminiseéncins, que este trabalho se faz = ‘ouvir foi uma escolha. A meméria esté na cultura, através dela a cultura € fexternada nas reminiseéncias das priticas e resistencias. Ai, ‘nas reticéncias ainda presas a este mundo por ténues franjas, aparecem as representagdes € re-laborages ca vida cotidiana, expressa nas relagSes com a produgio e reprodugio da vida - or isso vem do verbo cubivar como as pessoas entendem & entendem-se neste mundo, apropriam-se e re-apropriam o que ‘ouvem, léem, véem... ¢ adaptam. Nao ¢ isso que somos? Um ceremo selecionar, adaptar, representar, interpreta, construir, ddesmontar, calar ou begat. todas as agbes que nos envolvem © tempo todo, Entio, ouvir & um desafio; narrar, uma arte, ensina Walter Benjamim."* (Os discursos da meméria nio so desprovides de riscos: so plurais, fugidios, maledveis, instaveis, imprevistos, descontinuos, entrelagam acontecimentos diversos ¢ sofrem influéncia dos meios de transmissdofcomunicagao.” Cabe, pois, ao historiador/ouvinte a leitura das entrelinhas - dos entre discursos -, rever interprecagies ¢ refinar o que parecia inquestiondvel, re-afinar, cornardescreive, detalhado, exposto, seguir de porto (perseguir) os recantos e os sentidos mais ‘ncimos, reavivar. Cuidar, também, j4 que esses relatos no 50 Jnocentes da meméria, mas antes tentatvas de convencer, formar 4 meméria de outrem", lembra Peter Burke, reflexivo com as lides do historiador no offcio de “fazer histéia Mas a consequéncia da guera que nés semimos ndo esté escrta em nenhumn lugar, elucida 0 depoente Eugénio Depiné.” %6 Mesias dew (ovtra) guar Esté na sua meméria, nos seus sends. Quem somos nés, pias de um tempo que no vivemos, senio curiosos escutacores? narrador sabe que sua hist6ria nio esté nos livros, « diz, voluntariamente#, uma frase que soa grave; e 0 diz porque alguém tere a curiesdade de ouvi-lo, ou talver jamais disess, ‘muito embora posse lembrarse na sua solidio. Foi-me preciosa esta experiéncia de perguncar sobre “o tempo da guerra” & ouvir sobre as “tropas de Genilia” em 1930, a primeira guerra, 1 Constitucionalista, a ditadura militar. Lapsos involunciios de cariverfugidio, confuso e desconcertante, 20 mesmo t2mpo delicado, sensivel, inustado e significatvo. A meméria, como fonte oral, é, sem duvida, um dos possiveis caminhos para a ‘compreensio de relagdes outras, passadas ~ mesmo que sejam ‘de ontem. Ela € importante na medida em que realga 0 sersivel, descobre 0 desejo, recupera passagens e desclobres, fragmentos indizveis cue 36 a curiosa escuta pode fazer transbordar. Nese livro procuro compreender, principalmente, como «a populagio civil de Santa Catarina viveu esta “outta” guerra, ‘observando, nas franjas do cotidiano, os enfrentamentos € pposibilidaies de resistencia, os milkiplos papés socais vvidos ppor homens ¢ mulheres, nacionais e estrangeiros, percebendo sdiferengas com relacio a represslo, tendo como fio conduter © ‘med, coretuido para 0 controle e normatizagio da sociedade. Procuro, também, perceber sujeitos que se constroem, quer através dis narrativas, quer através de oficios, cartas, lei jomais, processos crime, numa luca de interpretagéet que ‘parece 0 tempo todo, interferindo decisivamente nas relagbes ” 0 Meese dew (out) gut elatados, restemunhantes, incriminados, afastads, demitidos, exonerados, supliciados, detidos, extorquids, desapropriados, civilizados ou incvilizados, etc. nas vensdes entre o que queriam, Ser € 0 que queriam que fossem. Sim, viveram um presente com tenses permanentes, inseguranca, vida instével, medo. de tantas coisas impossfveis de traduzir com palavias, e, de inventividades e dissimulagSes necessirias. Estes io o¢ mesmos ‘que seguem prosagonizando as histérias que agora apresento. Este livro, originalmente tese de doutoredo pela Universidade Federal de Santa Catarina, defendida em absil de 2002, sofreu algumas supressdes para aliviar a texwura, sem ‘que com isso se alcerassem as andlises e fontes. Ey Meanceas de wm (oute) gers Notas 1 Apud MOTA, Carlos Guilherme (Or) FEBVRE - Histria (Coleg ‘Grandes Cientistas Sociis), So Paulo: Ata, 1978, 9 ‘2 SCHEIDT, Nair, 80 anos. Depoimenco concedide em 19 de julho de 1999, Palhoga ‘3 DELUMEAU Jean Hirao medo no cident: 1300-1800, uma cde ‘cial. Sio Paulo: Compania das Letras, 1989, p. 13. 4 Vee FALCAO, Lui Felipe. Ene ontem amanha:dferenga cult, ‘ensbe: soci eseparatimo em Sina Catarina no sielo XX. Ij Unival 2000. (Capieulo 2-O separatism como eaigic ou integralismo, nna enaclonaliigio) SCAMPOS, Cynthia Machado. A pla da ngua na rs Vergs proibigho do fir alemio e resistencias no sul do Brasil. Campi, 1998. Tese (Doweraloem Hiscra)- Universidade Estadual de Carrpinas, Campinas 6 PERAZZO, Priscila Ferteits. © pergoalemdo e a repress police no Eutado Novo. Sio Paulo: Arquivo do Estado, 1999. ‘7 BURKE, Peer. Vaidales de hss culual: Rio de Janelto: Civilians, Brasil, 2000, p. 83, BHOFSBAWM, Eric. Save hiséia Sto Palo: Compania ds Leen, 1998, p. 48 3B Marke de Favesi ‘CHAU, Marina. Sobreo medo. Ins CARDOSO, Sérgio etal (On) ‘Os sets da paso. Sto Paulo: Companhia das Letras, 1987, p. 35-75. IOFOUCAULT, Michel: Nietzsche, Freud e Marx. Theatrum Phosfcum. ‘Sto Paul: Prinepio Editors, 1977, p. 10 seguincs, 11 DIAS, Maria Ouils Lda Silva, Hermentutica do cotiiano na |historiafa contempordnea. In: Proje isda, v.17 ~ Trabalho da ‘emer. Sdo Palo: PUC, nov. 1998, p. 257-258. TZ Mausce Halbwachs nos di que a meméria & constr por grupos socias; em uma dimensio coletiva, espontines, méleipl, guadi@ do ‘paso ¢ manifestada na plralidade afetva, oposto da istria que, na ‘scrita, perder-se-i a meméria e pasar-seia histet, ow 0 fi das sociediles meméria” Mesmo com esse argumento, no tira do individuoa fculdade individual de lembrar. HALBWACHS, Maurice. ‘Ameméria coletva Sio Paulo: Verice: Revista dos Tibunsis, 1990. 13 ORLANDI, Eni Paccineli. Maio de 1968: os ilncios da meme In ACHARD, Pierre (Or). Papal da meméra. Crapinas: Pontes, 1999, 14 FRANK, Robert. Quests paraas fontes do present. In; CHAVEAU, Asien). Quests parsahinta do presen, Ba: EDUS, 199, pls. 15 MARQUES, Gabriel Garcia, © amor ns tempos do cea. Si Palo: Record, 1985, p43, 16 BENJAMIN, Walter.O naralor: In: Os ersadores textos exci, Benjamin, Habermas, Hoskheimer, Adomo. 2. el-Sio Paulo: Abil Cul ural, 1983, p. 57.74 TAS menéras so nfuenciads pela organiza soctl de ransmisdo eo diferentes eis de comico empregadas. BURKE, Peter (2000). Op. eie,p. 3 18 idem. ibid, 9.74 19 DEPINE, Eugenio, 77 ance, Depoimento concedi em 13 de outubro ‘de 2001, Rodeo. Concedioa Janiane Cinaro Doan, a quem agradego. 20 Ao partir dos eseritus de Proust, a mendria vlunusia seria “fread, ‘uniforms, enquanto que wt involuntdria surge inesperada, prenhe de afetividale, nstuneinea, Ou sea, insted ler seria memsiia ‘ver SEDXAS, Jacy Alves. Percutss de memrias em ctr da hist ‘probit tunis. Ins BRESCIANI, Marit Stella e NAXARA, Marcia (Ong) Meer re) sentiment: nlazagies sobre uma quest sensfve ‘Campinas: UNICAMP, 2001, 37-58. 21 HOBSBAWM, Exc. Erados exrematrobrevexéeulo XX (1914-1991). 2. ed So Paulo: Companhia das Letras, 1995, p15, 22 ARENDT, Hannah, Sobreavieéncia, Rode Janeen: Reame-Dursi, 1994, p58. 23 0 fanr Deus. Colhido em ocara@yahoograpos.com.b, em 19 de ‘stem de 2001 24.0 Reygate do Solado Ryon (ile). Diego Steven Spielberg, 1998 BUA. u Capitulo | © medo revirando © pasado Capitulo VI Retalhos de dramas, cotidianos Memdrias de wma (out) guerra ‘Viver esta outra guerra exigiu das pessoas, entre outras ‘coisas, dribles em situagées constrangedoras, desembaragan- do-as nos improvisos; lugar de resisténcias inscritas na ccotidianidade, nas rupturas com © mundo habitual, pessoas de carne © 0850 como o sto estas que hoje revigoram e reavivam, em desdobramentos narrativos, detathes resignificados do passado ¢ vecidos de sentiments. Deste tcido ténue e largo que a meméria debxa entrever, as mulheres riveram que inventar subterfjgios £0 trato com jangas, 0s racionamentos, os esconderijos. Obrigaram-se a se desfazer de objetos preciosos, estes que fazem o elo com passado - focografias, livros, enfeites, quadros religiosos,, lipides - , foi preciso destruir cudo 0 que lembrase a lingua e a origem. Se hé rancor nessa gente que lembra, também hai ternura, solidariedades, desejos, mostrando que se vivia, resistindo; mas a vida seguia em cursos diversos... A vi 315 Marlene de Fiver triturada as vezes, pontilhada de ressentimentas feridos com. todos os problemas advindos da intolerincia e arroubos de ‘ocasitio, era imperativa. Na cotidianidade, a vida se f prenhe de medo e urdiduras préprias de tempos de crise - as ‘narrativas se abrem e revelam coisas da meméria que brotam, insisrentes, como segue dizendo este capitulo, Estratégias para viver ¢ “outra” guerra Resistir: contingéncia de mutheres e homens, criangas, velhos. Como ealar as eriangas quando a prisio podia acontecer por um descuido inocence? Lembro de um menino que cortow 0 dedo,levado ao hospital ficou berrando em aleméo, e a mae disse “fala poreuguést”, e ele gritou: “se quiser que ext falo portugues entdo me dé wma barra de chocolate”, mas em alemo! Frogmento do cotidiano em Florianépolis rememorado por Vera Molends, © que mostra sentidos vividos na sua contingéncia, Noutra ocasido, Vera conta de uma familia que tinha «és meninas, e, a0 safrem de casa a mle recomendou: “nds ‘vamos sair agora, mas por favor, na rua falem portugués porque tem policia". A menina, "e na Alemanka falam portugués?", retruca; e a mae, "no, folam em alemdo". “Entdo li ndo existe policia?”."A inocente pergunta recorre a uma légica infantil e mostra relagdes diffces de explicat. Como a mie teria resolvido ‘este problema aparentemente frugal? Improvisou, por cert. Posso entender que qualquer explicagio ceria embutida a construgio da imagem da polfcia, e, para a crianga, como seria reelaborada? Sabemos que as mareas da infiincia ficam impress e sho resigificadas na medida em que so remexidas, vvém em lapsos, e outorgam o principio da recordagio - Vera faz este elo entre a meméria e a histia, porque lembranga puxa lembranga ¢ seria preciso um escutador infno, diz preciosamente Ecléa Bosi.tAo crazer essas teias mitidas e aparentemente frugais, a depoente reatualizou o instante, operacionalizou um “retomo" de algo que foi vivid no passado para o presente, fulminante de sentidos. 316 Memrias de uma (outs) guersa Era preciso acomodar as coisas de modo que se evitasse delagdes e prisbes, sendo tarefa das mulheres aquietar os pequenos: em vig «x no quero conversa nenhuma aqui”. Tinha melo, mama ‘A gente nfo era live de dizer porgue em casa raha sempre gente vigiand, escutando, As vezes o pai inh vontade de borar um eachorr brabo, nose podia (rise). Eisso é, mas no se poi ememora Onilia Marchi, sobre como sua mae lidava com medo quando a depoente era menina, isso em Nova Trento*Na casa de Anica Maria Borcher Schutz, em Joinville, as criangas eram escondidas em bais que ficavam guardados embaixo da escada que levava ao andar superior da za, para cevitar que se trafsem na Iingua, ou para esconder o idioma fraticado, rememora Anita, dizendo da. amargia e rancor Que ‘© marido Afonso sentiu, por conea da repressio, até o final de sua vida". Estes depoimentos somam-se a dezenas de outros ae ouvi e onde as criangas esto no centro dos cuidados. Como exigir que calassem, acostumadas que estavam a $5 falar na Lingua da farniia? Como compreendiam essas protbigGes! Nas palavras de Orilia, a gente no era livre de dizer - felar era de dar redo - para - como rir, brincar, chamar a mie. Aquietar-se © dormir era preciso. © capitio Rui Quilhon Perera de Mello, entdo delegado dla Capitania dos Ports de Itjat naquele janeiro de 1942, teve, na ocasiio de uma ronda, a atengdo desbertada para um grupo de criancas palestando em lingua lem. Aproximouse eindagon 4 no sabiam exprimi-se em Portugués; ranto bastou para que & mie, Anelise Paul interviss edesiespeitunamerte epee expe represenuante do poder pti, decleando ainda de mode agressive "Sou alemde as criangas 36 folardo a Iingua alema". Bem, & 0 que diz a nota de primeira pigina do jornal intirulads*Replido desespeltosamenteo comandante da Capitana dos Poros de lta, quando em cumprimento da obra patriétca e relevante de nacionalzapo dos ovens descendentes de estrangirs, exprobando 0 frocedimento da acusada, que pass a exprestarthe em alemdo am J Marlene de Fivest impropérios a digidade do Bras ea pessoa do oficial, sendo que 6 matido eambém o fzera com palavras e gests obscenos.* Deste episidio resultou que o capitio enviou a Antonio de Lara Ribas a dentincia, sendo aberto processo crime no Tribunal de Seguranga Nacional, onde foram acusados Richard Paul Junior, Richard Paul Neto e Anelise Paul, residences em Timbs e naquela ocasifo veraneando na praia de Camboris. proceso € longo: Anelise foi em defesa das criangas qu, dss, asistiam uma rede sendo puxada com peixes € comenteram © faro, 20 que 0 capitio tera dito diante da reséncia da mulher ‘enti ud para a Alemanha, ud ter com Hier, tu & 5 coluna, secudindo-a nos ombros ¢ forgado-a a it para o auromével, foi acudida peo filha adolescente, e, na versio do capitio, ceria ‘Anelize dito “du dummer ese", ou “burro estipido", e, para © filo, “Au ihn eine in de fresse" ou “d-the uma na cara”. Anelise entfo telefonou para o marido em Timbé (da Fira Fritz Meurer), que veio... E comecou outto enredo: Richard foi tomar satisfies com 0 capitio, ¢ no bate-boca, teri falado com a auroridade com as mos na altura dos quads e feito wma banana para o capitio (gsto mostrando 0 cotovelo), uma cruz com os bragos em tom agressivo... O acusado disse que ndo fer estos imorais € quanto a par as miios nos quadris e crwar os bbragos no peito é um costume que tem, € que sua esposa foi desrespeitada e ele chamado de sujeto, 0 que no gostou. Salientou que criara os filhos como bons brasileiros, iria procurar seus diteitos... Eram 12 cestemunhas’, cada qual ‘aumencando um ponto na versio, traduzindo os improbérios e frases ditas em alemio como entendiam, confirmando a versio das bananas e dos gestos.. Bem, era 20 de abril de 1942 ‘quando 0s juses do Tribunal de Seguranga Nacional conside- raram que s6 uma testemunha soube eraduzi as palavrasditas em alemio € nio ficou provade que houvesse havido injérias a0 oficial, faro de pouca relevncia para que o processo prosseguise,e ral. foram absolvidos por deficitncia de prov. Neste processo, que curiosamente foi resolvido em trés meses pelo Tribunal, percebo a disputa de poder, onde os sujeitos se constroem na imprevisibilidade do cotidiano, do fortuito, para acitradas verses e interpretagdes. No cotidiano 378 ‘Merméas de ura (ower) gueera esté anunciado 0 imprevisto, ou lugar onde as regras so constantemente quebradas, onde aquilo que parece ser de ura jeito se abre para o inusitado. As criangas estavam na ponta dda meada e foram usadas no jogo das disputas enere adultos: se para 0 capitdo era ponto de honra o que entendeu como desacato ¢ injria - esse senvimento de agravo,insulo e fronta -, usou seus poderes de autoridade; jf para o acusado, era mister due defendesse a honra da mulher que, afinal, foi desrespeitada pela auroridade. De qualquer Angulo, o que esti em jogo so lucas de incerpretagdes e posigBes de poder € de forgas. Neste aso, a policia desconcertou-se com a “ousidia” de Anelise Ousadia ou poder? Anelise mostra qu: o poder esté disseminado, vem de baixo, se arranja e desgoxerna. Ou, lé onde ‘est 0 poder hi resistencia, esté 0 seu cordter rdacional, lugar das titicas necessérias, improves, esbonténeas, sdvagens, sores, planejadas, arvastadas, violentas, irreconciliveis, prontas a0 compromisso, interessadas ou fadadas ao sacrifcot; s6 posstveis nas relagées de poder. [Naqueles anos, as criangas “de origem" eram visadas sr, ¢ de forma imprevisvel e surpreendente, como aparece neste fragmento da meméria de Irma Wil: Algumas meninas ganhuram sombrinhas vernelhas e estavam passeandona estrada com suas sombrinhas; iso alguns soldados viram e acharam que era representaglo do putide comunist Fot ur pouco rabalhasa a explicaglo, mas no fim deu tudo ‘certo. Eas meninas chamavem se Licia Hobis, Tela Habus © Gerta Bert. E nisi pissou o senor Leopoldo Prochnow € dsse"O que€ iss? Ecomunismo? Serique o undo val cabar?™ (Qual objeto vermetho era mocivode med pois representava comunisino? Essas meninas moravam em Trombudo Alto, uma ‘miniscula colénia rural. © momento era de subjetividades afloradas: como devem ter sentido as meninasfihas de Paulo ‘Richter, quando numa dilgéncia que @ policia de Ibirama fez sem sua casa tudo foi devassado, nao respitardo nem mesmo equenas bonecas de pano, que eram destipadas fara averiguagies palais? medo das criangas e adultos, quando, em 1942, a ‘senhora Bera Prst eve um bebé ao anoitecere, owindo baralhos, 319 Marlene de Faveri 28 fies acharam queer 0 balko, 0 excita, ¢cortzam ¢ tnaram ‘9s travezteirar,exconderam quadros ¢ almofadas, panos onde esta esto em aleméo e colocaram debaizo da cama, esconderam tudor; mas, por sorte, eva 56 05 vizinkos que vieram visité-l, ‘fa! Na lembranga de Ursula Grima, detahes do que ocoria sem Trombude Cental, como rabém em muito, muitos ouroe lugares. Sim, era um med de dar susto; eram susts de supirar sde medo: vivia-e de susto e de medo. Florianspolis. A guerra era Ii do outro lado do oceano, fencrencas tomavam conta € no meio dela as erlangas sofriam. Conta-me Wemer que sua irm menor frequentava a Escola Alema, e como nés nao éramos do Partido mas os professes vindos da Alemanka eram todos naxists, perseguiam ‘aquels alunos eujos pais ndo eram fiiados. Segundo recorda 0 depoente, sus inna 36 foi aceita porgue brincava com o filho do Gortsmann, filiado ao partido, entdo ele (> professor) sossegou. Hii vsrios depoimentos desta natuteza, ou seja,)se ‘por um lado sofriam porque a familia nao era solidévia com a ‘Alemanha ov Islia, por outro, as criangas “de crigem’ achinealhadas¢ estigmatizadas, Bastava portar um sobrenome que as denunciassem e eram vistas como “quintacolunas” - a Dbrincadeita de chamar colegas desta forma é recorrente nas memérias; ficou impressa. “Aquele & quina-coluna”, a gente sicia para os dlemdes,recorda Beatriz Nair Fernandes. Agora ex me lembro que as vetes as meninas brincavem, se enticauem “ei + quina-colna", diz-me Luiza Francisa Menini. Provocacio € implicineia ce eriangas, que o fasiam a partir das representa- ‘des construldas naguele momento e do que estava sendo dito nas relagies familiares e de visinhanga. Na brincadeira de sgarotos adolescentes, diiam “tx és quinta-coluna”, recorda Werner Springmann..” Por outro lado, as eriangas brasileiras externavam conceitas que ouviam em casa. Conta Alice Mendonga (Lages) dla surra que recebew apés responder a uma serhora alemi: Ela dise que rasicvo era adio. Eu inka 14 anos evspondi para cla: "E, brascio € vadio, mas wocts exo aqui, comendo 0 po dos brasilnos's" A associagio de imagens que uns fasiam dos outros estavem afloradas nas relagBes da guerra; as eviangas 380 Memoras de uma (outa) guerra ‘ouviam as conversas e acabavam por estbelecer e demarcar diferengas com os conceitos aprendidos -a etnicidade, lugar de conilitos, € também um aprendizado e tem rafzes nas representagaes que aprendemos desde que nos educamos; no- caso da menina, mostra uma noglo “educada” do que era ser brasileito. ‘As criangas brasileiras também amedrontavam-se com (0s hoatas que corriam soltos. Maria de Lurdes morava no Saco das Limes (Florianépolis), era menina € se assustava muito com as noticias de que os submarinas alemes estavam por perto, com o ronco de avites, © medo de bombas, invasSes, dos soldados, do escuro... minha mae tinka medo, do deixava ninguém ir na rua, nem no quitalbrinear, nao podia ver avido, & noite ndo podia falar alto, era assim tudo ecuro; foi um sufoco, isso ew me lembro bem. Disse que iam na fori olhar a escuridzo, © que medo!." ‘As mulheres estavam vivendo sitsagSes que rompiam ‘com 05 costumes habituais: suas memérias reportam-se aos, ccuidados com criangas, racionamento de alimentos, 0 escuro ue limitava os afazeres 8 noite, a imposibilidede de costurar sem luz sufciente, © cuidado em boar panos prevs nas janelas, a maternidade, a escola, as doencas; Bestrit Nair lembra que Foi um alvororo nesta cidade! Porque muita gente dagui era cembarcada, tinham parents também, citando © nome dos navios afundados no més de agosto de 1942. Lembra também da dificuldade de conseguir remédios, comida, came... os pregos subiram.’* Beatriz fla de um bairro da capital, Esteito. No centro da cidade, havia necessidade de preocupar-se em abastecer a casa: ir para a fila" bem cedo, como fasia Nair Lima de Medeitos - ..depois de um tempo que é que a gente comegou a sentir fala, veio aquela aftiga (..), al entéo ew ta de ‘madrugada pré fila prd pega agica (.), ah, 0 ito, a fainha eva hhorrorosa, era escura, era marroms ¢ faltava lee. Irene também lembra das fils, 0 lee ena um livo para cada um, ia cinco horas dda mank, (..) ¢ fariam aquela mistura com frinka de mandioca horrvel, 0 po fieava duro. Ambas recordam que mesmo com 1 guerra finda, houve demora para restabelecer a oferta de produtos.!” 381 arlene de Fivert A farina escura advinha da mistura do trigo com outros farindceos (milho, mandioea, ou mesmo grios de qualidade inferior), e, com a perspectiva da escassez, as mulheres amedrontavar-se; em cempo de ameagas € rumores alava-se nas fils, nas casas, nos burburinhos da rua, afinal, era tempo ide guerra, tempo de crise e boates, as linguas ficavam mais soltas e a5 pessoas inquietas. Se a farinha e 0 plo estavam racionados, a carne, ou a sua falta, preocupava os citadinos: ‘Como 0 charque, que naquela épeca se chamava “comida dos pobres”, a carte seca que chamavamt, vinha do Rio Grande do Sul, estava rocionads e vinha em pequenas quantidades, ou sinha pouco, ra lembranga de Beatris. Em Santa Catarina, em 1944, uma Portaria decerminou que a came bovina no mais seria distribuida nas segundas-eiras", a0 que se percebe um racionamento controlado e nfo a eseasser. Por outro ledo, num telegrama as prefeituras do Estado, em dezembro de 1942, 0 Departamento de Auténomos solicitou, por ordem da Interventoria,o imediato tabelamento dos géneros de primeira necessidade ros muniefpios” para fazer frente aos abusos de ‘comerciantes que se aproveitavam do momento € aumentavam os pregos & revelia. Em fevereiro de 1943, 0 jornal A Imprensa (Tabarto) denunciou os comerciantes que eumentavam os presos, chamando-os de ganunciasos, © que se constcu um crime contra a econemia®, reclame que aparece em outros jorais, ‘Ainda antes da entrada do Brasil na guerra, houve demsincias de crimes desta natureza. Em outubro de 1939, foram intimados Augusto Klimmek, proprietétio de Fabrica "Condor", de Sio Bento, e Teodoro Engel, gerente, para se explicarem sobre o aumento de até 25% nos produtos (escovas de dente, pentes, etc), conforme telegramas enviados 20s clients, justifeados com a guerra na Europa, portanto, tinham 2 finalidade de suspender as vendas ¢ formar estoques, conforme ‘© process crime impetrado no Tribunal de Seguranga Nacional e arquivado no final de desembro." Também Diewich von Wangenhein, alemio naturalizado diretor-presidente da Sociedade Andnima Carlos Hoepcke, estabelecida como Indisria de Pregos Rita Maria (Florianépolis), foi denunciado por telegrafar aos clientes suspendendo a entrega do produto, 382 Meena de uma (ours) ues com 0 objetivo de, aproveitando-se da stuagdo, aufrirlueros, segundo parecer da Delegacia de Ordem Politica ¢ Social. Dietrich angumentou que o arame vinha da Europa € o estoque 36 daria para cumprir compromissos anteriores, nio sendo posstvel obter este arame nas usinas nacionais. Enfim, os argumentos do advogado, Mario Bulhes Pedreira, foram aceitos pelo Tribunal de Seguranga Nacional e o réu foi absolvido. Casos como estes so comuns, porém, neste contexto foram perar no Tribunal de Seguranga Nacional por atencarem contra a seguranga ¢ a economia nacional. Os acusados eram alemfes das relagSes econdmicas de firmas visadas pela polfcia (ranro os Hoepcke quanto os Klimmek tiveram outros problemas com a policia politica, como -vimos), foram imediaramente investigados Dentineias de populares acabavam nos tribunais, como fe 0 jomalista Augusto Montenegro de Oliveira, a9 denunciar Rosa Wendel, proprietéria da Pensio Wendel, em Joinville. Segundo Oliveira, sta aumentara o aluguel mensal alegando alta de géneros de primeira necessidade e ele, indignado, recuperou avisos do gabinete do Ministi, onde fixava os precos por conta da mobilizagio econdmica de guerra, proibindo a majoracio de precos de hots, restaurantes € similares. Rosa nfo se amiudou e depés dizendo que avisou ‘aos demais héspedes (Armando Cordeiro, Alberto de Alencastro, Reinaldo Bruker e outros) que aceitaram 0 ‘aumento; ¢ este... em, que procurase outra penslo. Era agosto de 1944 ¢ Rosa Wendel recorreu & promotoria pibica, tendo 6 processo arquivado em novembro deste ano, pelos juzes do “Tribunal. Libétio Soncint fi acusado de major pregos de mévets ‘na Firma Comercial H. Soncini, em Floriancpois, iso em junho de 1941. Esta empresa recebia méveis da Companhia Zipperer, de Rio Negrinho, e o process rolou no Tribunal de Seguranca Nacional até margo de 1942, quando foi arquivado. Neste caso, a ligagdo da Firma Soneini com a Cia. Zippererlevou 20 lado no processo - vimos anceriotmente que José Zipperer susado, em 1942, de ouvir radio e promover reunides cixistas.. Ou seja, as deniincias que envolviam alemdes © 383 Marlene de Fiver italianos especulando eram imediatamence averiguades, relacionadas, investigadas as possiveis ligagSes com saboragens, envio de dinheito para a Alemanha, etc. Outro exemplo: era ainda julho de 1939 quando Francisco Sant fi ddenunciado por Joaquim Silveira da Mota diretor da Escagio Experimental de Vinicultura, Etnologia e Frotos de Clima ‘Temperado, do distrito de Perdizes, Campos Novos. italiano Francisco Sanci teria entrado na referida Estagio rocurando desir 0 serge oferecendo servgos a funciontios com melhor prego, e falando em lingua estrangeia, sendo evidente a tentativa de sabotagem, conforme 0 relatério do delegado Lara Ribas. As testemunhas! conferiam: oferecia mesmo um melhor salério para um empregado que diigisse tum camino. Santi confimou que fo procurar um empregado « negou que tenha falado em italiano. O Tribunal de Seguranga [Nacional fez arquivar 0 processo em janeiro de 1940." Nos exemplos acima vemos que, se a regra do mercado hoje - a diferenga esté no fato de que os acusados eram de nome e falavam uma lingua estrangeira. Noto que a aso de expeculadores serviu também como “efeito de guera", intensificando a mobilzagio eo imaginério de escassez## Num momento em que o Estado de Santa Catarina reve um crescimento nas exportagSes, com a integragio do Estado no tmercado nacional (carvlo,eéxtes,ervarmace, madera/pinho), foram os grandes empresirios a se beneficiarem a custas da ‘exploragio e eantrole em nome da ordemy Iara Costa observa aque, em Joinville, a velagdes sociais “paeralas”engendraram conde: expeciamente faordves para una expresna ccumuagio de capital a partir de uma mao de obva dsciplinada, ereinada ¢ burata, no contraponto do discurso de empreendedores ¢ de tum Estado disciplinador que tentou eliminar as contradisbes de classe ¢ confit” Nao é de estranhor que especuladores utilizassem do momento para ganhos pessoas, afinal, era empo de crise e as denincia forjavam intriga) Por conta do momento, Otilio Pagnoncelli, proprietirio do Comércio & lndistria Saulle Pagnoneelli S.A. (Joagaba), foi denunciado Or estar provocando um colapso no comércio de carne, 384 deuma (urea) guerra ‘oferecendo prego maior para os produtores do gado a fim de cexcluie outro agougue da lealidade, eneravando o fornecimento normal de carne verde a populacdo, ferindo a lei em vigor", conde consta crime contra a economia popular, conforme 0 processo crime aberto em agosto de 1944, no Tribunal de Seguranga Nacional.” "Nas memeérias, a falta de querosene e outtos combustives aparece sempre associada & guerra, e tem ligica, muito embora © esforco de guerra fizesse por aumentar o reccio da escasse2 total. A querosene era usilzada em pombocas e lamparinas na ‘uminegio das casas, para quem no tinha ainda iluminag30 elétrica, e, portanto, forem os populares e moradores das colénias que mais sentiran. As prefeituras encarregaram-se de instituir coras mensais para a compra de querosene. Aldemira de Albuquerque lembra das dificuldades com 0 -sumigo de produtos em Bom Retio: O café que era nosso, era brasito, era a viqueza do Brasil, no tinka no tempo da guerra (...) 0 tiga, 0 agiicar e a querosene que eram 0s produtos rincibois da regio que ndc tina luz (eléerica), € & prefeitura ‘dava para cada casa uma ecta de queroxene”, muito embora as téticas de conseguir eram atlzadas: por exemplo, a amizade ‘com o dono da venda era uma forma de burlar a lei das cocas 'e conseguir um pouguinho mais. Em alguns momentos, este racionamento foi mais forte © a cota semanal era controlada ‘Por eartdo, podendo-se adquirir um quilo de farinha de trigo _agdcar; j6 0 sal era quinzenal, enquanto eada familia tinha dlreio @ um lit de querosene ou dois por semana, controlado através de cartio expedico pela prefeitura. O governo do Estado decretou o racionamento do petréleo e derivados, em 27 de junho de 1942 - Decreto n. 271 -, atendendo recomen- sdag3o do Conselho Nacional de Petréleo. Para resolver o problema da escasse: de petréleo « a falta de combustiveis, através do Decreto lei no. 1.125, de 28 de fevereito de 1939, 0 geverno criou a Comiss8o Nacional do Gasogénio e 0 Curso de Gasogénio, no Ministério da Aaricultura, objetivando promover © seu uso em tratores agricolas, caminhdes e instalacdes fixas, incremencar a fabricagio no Brasil e incentivar o replantio das florestas.” 385 Marlene de Fiver Em Santa Catarina, a Comissio Estadual do Gasogénio foi instalads, em ouubro de 1941, com a presidéncia de Haroldo 2. Pederneitas,c, em julho de 1942, Nereu Ramos decretou as ccotas e cartdes de racionamento™: por semana, auroméveis parciculare, 8 ltrs; automéveis pariculaes de médicos, 15 ltsos; aucomSveis de alugue, 50 lis, sendo o forecimento proibido acs damingos e feriados, nos das seis das 07 as 18, horas. Os proprietarios de postos de venda ficaram obviamente vulnerdveis ao racionamento, Ermenegildo ‘Coben, de Cogador, apresentou queixa contra Pedro Ponzoni por the ter eobrado um prego majorado no combustivel; inquisido, Ponzont argumentou falta de estoque e, portanto, rmandou buscar em Perdizes, cobrando assim o frete, fato confirmado pehs testemunhas e aceito pelos juses do Tribunal de Segurange NacionaP*; era encio dezembro de 1943, 0 processo fot arquivado. No mesmo ano, em agosto, a justiga publica abriu

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