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us Paulo Eduardo Rodrigues Alves Evangelista ccultam o nada que the pertence. Também a existéncia é mada e ser ag mesmo tempo; sendo isto ou aquilo, realizando-se nesta atividade, lan. ‘gando-se naquela possibilidade, pode dizer de si mesmo: “sou professor" “sou psicdlogo”, “sou animal racional” e, com isso, encobrir 0 nada que ‘copertence ao ser-ai corroendo sua frégil identidade substancial. Em tudg {que sou, posso niio ser. Em todo ser que sou, ‘ha’ nada. Em toda familia. ridade espreita a estranheza que pode, a qualquer momento e inadverti damente, irromper. Ser estranho, o homem! Instaurando familiaridade sobre a estranheza que o constitui, o homem faz da terra scu lar, ‘cons. tdi” sua existéncia. Mas a angistia solapa o sentir-se em casa, revelandg que ser € tarefa interminavel ¢ que qualquer familiaridade ¢ apenas provic soria. Por mais que faga do mundo sua casa, nunca se toma como ele. Seu ser est sempre em jogo, diferentemente dos entes, cujo ser Ihes é indife- rente. A existéncia esta entregue 4 responsabilidade de existir. Dasein & = is io, etidado (Sorge). Ser-Preocupagao (Sorge)** Como, entdo, determinar 0 ser da existéncia? O entrelagamento de ser e nada impede qualquer determinagao substancial. Para a Psicolo- gia isso € problemético, pois essa ciéncia depende de uma definigao iden- titéria de seu ‘objeto’. Seguindo por esse caminho, Figueiredo (1998) acusa essa dificuldade da Psicologia e propde que seu objeto seja a subje- tivagiio (processo de trénsito, passagem ¢ diferenciacao), a0 invés do, sujeito. Mas, bastaria dizer que existir é fluxo, processo, vir-a-ser? N3o se toma essa também uma determinagao substancial, ainda que ser e vit- -arser se tomem sinénimos? Para Heidegger essa inversio permanece presa & determinagio de ser como substincia. Assim, Nietzsche, filésofo critico do platonismo substancialista ocidental, & interpretado’ como 0. Ultimo metafisico, para quem Deus morreu e ser tornou-se fumaga (Heidegger, 1943/2014). A substituicao de uma determinagao substantiva (personalidade, psiquismo, identidade) por uma fluida (fluxo, experi cia, processo) ¢ apenas virar o lado da mesma moeda. A analitica existen~ cidria libera uma nova, porém antiga, determinagio do ser do homer antiga como na tragédia grega ou como em fibula de Higino. Mas no s¢ retorna a essa determinagao por capricho, por Humanismo, nem se cheg® a ela por dedugdo. Ela di-se a ver fenomenologicamente para a existéncia ue, assumindo como tarefa explicitar-se, perde o conforto das interpreta Mireia de Sa Cavaleante 0 traduz por ‘cur’ Psicologia FenomenolSiea Existencial 9 1s herdadas da tradigdo e confronta-se com sua condigio, tornando-se frermeneuta da facticidade. Segundo Stein, a determinagio do ser do Da sein a que, se chega em Ser e fempo niio & uma nova teoria sobre o set jumano. E uma descri¢ao fenomenolégica da existéncia (Stein, 1990). Seria teoria se partisse de premissas e/ou hipéteses. Mas Heidegger ¢ fenomendlogo ¢ busca o /ogos que cortesponde ao fendmeno em questao, que, na analitica existenciaria, é 0 ente que é abertura légica (Linguistica) go que se mostra, O ente analisado em Ser e rempo é o ente que nés mes- nos somos, para o qual a hermenéutica & condigio. Esse ente é desde Aristételes o ‘animal racional’, Antes, era jungio de corpo e alma, maté- ria e ideia, interpretagdo que é retomada pelo cristianismo e que perma- nece inquestionada por mais de dois milénios, desembocando na Psico- Jogia, « ciéncia da mente, Assim, a analitica existenciaria retira a existén- cia do encobrimento das interpretagdes legadas pela tradi¢ao, revelando-a como preocupagiio (Sorge).. Dasein é preocupagio pois seu ser esti a cada momento em jo go. Ser, na existéncia, & poder-ser. Todas as possibilidades existenciais fm que ser-ai se lana sdo modos de responder & sua indeterminago on- toldgica, tornando-se alguém ou algo a partir do que é possivel nos mun- dos histéricos facticos que habita. Preocupagio (Sorge) & 0 termo usado por Heidegger para indi car o ser do Dasein, Em alemdo é Sorge, que pode ser traduzido por cura ou cuidado e significa “a ansiedade, a preacupagio que nasce de apreen- ses que concemem ao futuro” (Inwood, 2002, p. 26), possuindo tanto o sentido de preocupar-se com algo (sich sorgen) quanto tomar conta, cui- dar de alguém ou algo (sorgen fiir). Desse étimo derivam outros dois Yerbos importantes em Ser ¢ tempo: besorgen (ocupar-se) e Fiirsorge (preocupar-se). Besorgen significa obter ou prover algo para si ou para utrem, tratar, cuidar ou tomar conta de algo ou alouém e, principalmente 1o infinitivo substantivado, “estar ansioso, preocupado, perturbado com algo” (Inwood, 2002, p. 26). Ocupagio (besorgen) indica a lida cotidiana Com entes nfo Dasein. E preocupagio (Fiirsorge), © existencidrio ser- com-outros. Sorge & o existencidtio que indica 0 modo temporal da existén- ia revelado pela anilise possibilitada pelo estado de Animo da angistia, As trés extases™ temporais ~ ‘passado’, ‘presente’ e ‘futuro’ — esto arti= Culadas em toda possibilidade factica, em todo modo de existir, como Heideguer chama de éxtases as diree Ses temporais para deixar elaro que no sio limi tadas e definidas, como os coneeitos de passado, presente ¢ futuro dio a entender, € ‘amiém para mostrar que a existéneia (ex-sstneia) est sempre fora’, adiame, ats 120 Paulo Eduardo Rodrigues Alves Evangelista existenciariedade, factualidade e ser-do-decair. Existenciariedade indigg © poder-ser, isto 6, 0 adiantar-se em relagdio a si mesmo (‘futuro’) de todg, entendimento. Por exemplo, o pregar um prego antecipa, presentificandg, pot assim dizer, 0 telhado que abriga das intempéries. Factualidade inj: ca a significatividade herdada, os modos histéricos compartilhados pelos quais 0s entes ja estio disponiveis e interpretados. No exemplo, seriam os métodos tradicionais de construir telhados, os materiais usados para o5 construir etc., que no s2o inventados a cada vez, mas familiarmente re. petidos “como a gente sempre fez”. E ser-do-decair indica 0 que € com 6 encontrado na situagdo atual. No caso, pregos, martelos, telhas etc, co- ‘mo entes que servem para o abrigar. A fim de zelar para que a descoberta do ser-preocupagdo tenha fundamento, Heidegger busca na histéria ocidental um testemunho pré- -ontol6gico, isto é, alguma tematizagio da esséncia do homem como ser- preocupagio realizada sem o objetivo de definir o ser da existéneia. Encon- {ra numa fabula transmitida por Higino uma “prova” (Heidegger, 1927) 2012, p. $51, § 42). para o ser-preocupacdo como esséncia da existéneia, Isto é, néo é a primeira vez na histéria da humanidade que esse modo de entender a existéncia foi possivel. A fabula é anterior a0 advento da cién- cia e da metafisica, 0 que a protege das hipostasias que as caracterizam, Heidegger cita-a do latim ¢ a traduz na exata metade de Ser e tempo. 1330 leva Stein (1990) a defender que a fabula da preocupagao coroa sua constni- ‘¢20 de uma antropologia dogmética fundada no encurtamento hermenéuti- Co, inaugurando uma ontologia geral. Trata-se de um “ponto de niio retomo, f partir do qual se passaria no apenas a ter que redefinir, mas subverter as, pretensées de qualquer ontologia ou epistemologia futuras” (p. 81). A esséncia da existéncia como set-preocupagio prepara um no- vo paradigma filoséfico, um novo modo de compreens3o da realidade. Por isso, nfo pode ser simplesmente absorvido por um paradigma dife- rente, como as psicologias que se intitulam fenomenolégicas parecem fazer. A ontologia heideggeriana é uma nova ontologia Cito a tradugao de Castilho para a fabula: Um dia em que a *Preocupagio’ atravessa um rio, vé um lodo argilo- so: pensativa, pega uum tanto e comeea a moldi-lo, Enquanto reflete sobre o que fizera, Jipiter intervém, ‘Preocupagtio’ the pede que em- preste espirito ao modelo, no que Jupiter consente de bom grado. Mas, ‘quando *Preocupagtio’ quis impor-Ihe seu proprio nome, Ju i be e exige que seu nome Ihe deveria ser dado, Enquanto ‘Preocupa- ‘elo e Jupiter discutiam sobre o nome, a Terra (Tetlus) surge também a pedir que seu nome fosse dado a quem cla dera seu corpo. Os quere- Psicologia Fenomenoldgiea Existencial 11 Jantes tomam, enti, Saturno, para juiz, o qual profere a seguinte deci- sfo equitativa: “Tu, Japiter, porque deste o espirito, deves recebe-lo na sua morte; tu, Terra, porque o presenteaste com 0 corpo, deves receber © corpo. Mas, porque “Preocupagiio" foi quem primeiro o formou, que ela entio o possta enguanto ele viver. Mas, porque persiste a contro vérsia sobre o nome, ele pode se chamar homo, pois & feito de humus (terra), (Heidegger, 1927/2012, p. 351-3, § 42) Enredada na tradigao metafisica, uma répida interpretagdo da fibula reconhece ai mais ums mitologia sobre o homem como constructo corporal-espiritual, bio-psico. Mas a fenomenologia exige a suspensio dessa interpretago platénica-cristd. Sua hermenéutica exige a conquista do moda de acesso mais correspondente, que, para Stein (1990), significa reconhecer a especificidade dessa fibula. Seguindo a indicagdo de um estudioso de fabulas (Blumenberg), Stein explica que & necessério para compreende-la considerar por que Preocupagao atravessa 0 tio. A fabula a com ela 0 atravessando, Ao atravessar 0 rio, tem sua imagem espe- thada na Agua e projetada no barro do fundo, o que Ihe serve de molde para a criatura. Faz 0 homo & sua imagem e semelhianga. Mas, diferente- mente da beleza do deus judaico-cristio, a imagem de Preocupagao pode no ser encantadora; até o contrario, pode ser disforme, atormentada e, por isso, sugere Stein, nfo apareceria na narrativa. E essa a justficativa para que Satumo, o deus-Tempo, Ihe confira a propriedade enquanto vive. Assim como Preocupagiio vé-se ao olhar para o rio, Dasein ‘vé-se’, isto é, sabe quem é, a quantas anda, experimenta seu fundamento nulo ¢ dele foge, pois se reconhece disforme e atormentado, a quem ser & tarefa que s6 se conelui quando ja niio é mais. Encobrindo sua condigao de ter~ que-ser langado e finito (sua estranheza origindria) entranha-s cotidiana, sendo isto ou aquilo e encontrando familiaridade tranquilizado~ ra, Assim, a existéncia é demiurga de si mesma; por no ter rosto, faz-se a partir dos rostos disponiveis, isto €, das possibilidades ficticas fornecidas pelo mundo. Mas a angiistia, sem aviso, abre sua estranheza e solapa as ilusérias identidades mundanas. Mesmo sendo demiurgo de si mesmo, enquanto existe, esti sob o jugo do tempo. F Satumno quem decide quanto A vigéncia de Preocupagio. Por isso, Stein (1990) diz que Dasein é 0 de- miurgo eunuco de si mesmo; ao mesmo tempo que, indeterminado (isto ¢, determinado por Preocupagdo, que nao lhe fornece quididade), tem que se 1, seu criar-se é limitado pelas possibilidades existenciais (historicas) endo dispoe do fim de sua obra. Tempo determina o existr. ‘A fibula de Preocupagao prepata a re-petigao da anise do ser- -em-o-mundo & luz da temporalidade peculiar ao Dasein, fundamento das interpretagdes de ser ao longo da historia ocidental, isto &, das ontologias. ca existenciria é ontologia fundamental. Preocupagdo (Sorge) a condigo ‘humana’ que sustenta o advento de ontologias, isto &, Dasye responde & questio que seu existr é determinando seu ser e do que contra na lida cotidiana. A estrutura da preocupagio é temporal: existen: ciariedade (ser-adiante-de-si-mesmo, ‘futuro’), factualidade (jé-sendgy, em, ‘passado’) ¢ ser-do-decair (ser-junto-a0-ente-do-interior-do-mun “presente’), Dasein é “futuro sendo-sido presencizante” (Heidegeer, 1999p 2012, p. $89, § 65). A temporalidade originiria revela que a existéncia nfo & uma ocorréncia na cronologia, mas um acontecimento no qual se articulam og trés éxtases temporais. Desse modo, qualquer tentativa de descrever existéncia em termos de processo, desenvolvimento ou evolugio, que pressupdem linearidade e continuidade, passam ao largo desse fendmeno, A existéncia nfig é.uma corrente ininterrupta de vivencias, e, sim, atraves: sada por quebras rupturas. E “acontecencial” (Loparic, 2001, p. 106), Sendo temporal, a existéncia ¢ essencialmente historica. Em alemao ha duas palavras para ‘histéria’: Geschichte e Histo: ie. O primeiro € 0 mais comum, enquanto o segundo é usado para se referir & histéria como objeto de ciéncia, a historiografia. A palavra Ges- chiclte vem de geschechen — acontecer, gestar = indicando 0 cariter acontecimental da historia. Nao é um continuum, como levam a crer a5 cigncias histéricas, que encontram nexos e causalidades que costuram um sentido tinico. A histéria é atravessada por interrupgdes, irrupgoes, vira- das etc, como a existéncia, mas estas ficam encobertas pela narrativa historiogrifica. O mesmo ocorre com a histéria pessoal. E um emvaranha- do de fatos, eventos, acontecimentos reunidos por um sentido que os or- dena, que marca a importincia de alguns e a irrelevancia de outros, rele- gando-os ao esquecimento. Mas, como acontecimento, o sentido pode mudar ¢ o antes banal revela-se agora especial; o significativo, irrelevan- te. A biografia é, assim, um acontecimento compartilhado (Critelli, 2012) do qual s6 se pode fazer afirmagdes conclusivas quando finda. Essa descrigtio da existéncia visando seu ser (Dasein) ¢ ontol6- gica. Muito rapidamente ela pode ser convertida numa antropologia (6n- tica), o que trai o sentido da anilise heideggeriana. Mas Psicologia nio & Filosofia, E uma cigncia dntica. Sera possivel efetuar a passagem da onto- logia para uma cigncia éntica? Isso toma a analitica existenciéria uma antropologia? Se sim, essa antropologia pode fundamentar a Psicologia? Sera isso 0 que caracteriza o ser-psicdlogo fenomenolégico existencial? Na directo de responder essas perguntas retomo os desdobramentos da publicagio de Ser e tempo nas ciéncias psicologicas. Vv Desdobramentos da Ontologia Heideggeriana na Psicologia A questo que se desdobra desta retomada da ontologia heide- ageriana é: 0 que isso tem a ver com ser psicélogo? Isto &, como esta repe~ tiglo do ser da existéncia por Heidegger abre possibilidades para ser psic6~ Jogo? O que pode um psicélogo fundamentado na ontologia heideggeriana? Considerando minha historia e as tradigdes que compartilhei e compartitho, devo também perguntar como esta compreensiio de existén- cia do outro e propria se faz e fez presente na minha trajetéria como psi- e6logo. Essa pergunta é pertinente, pois enquanto eu estudava a ontologia de Heidegger eu realizava atendimentos psicolégicos... mais precisamen- te, psicoterapéuticos. Como é estar diante do outro como psicélogo e como existéncia deixando-o livre para também ser existéncia? Recebi muitos pacientes no consultério que ndo voltaram para uma segunda ou terceira sesso. Nao foram atendimentos psicologicos? Realize’ atendimentos em grupo, dei e dow aulas, supervisiono atendi- menos psicoterapéuticos, realizo e supervisiono atendimentos de plano Psicolégico, Em tudo isso acredito estar sendo um psicélogo fenomeno- légico existencial fundamentado na ontologia heideggeriana. Entdo, como € ser e estar assim com outros? Aprendi desde o inicio de minha formagio que a fenomenologia existencial faz-se psicoterapia, mais especificamente, Daseinsanalyse. E foi assim que, do ponto de vista hist6rico, o pensamento de Heidegger chegou 4 pritica psicolégica, primeiramente nos estudos do psiquiatra Binswanger, depois com Medard Boss. Ambos compartilham uma histéria profissional Comum: so médicos psiquiatras, profindos conhecedores da psicanzlise freudiana, que em suas obras figura como principal interlocutora,

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