Professional Documents
Culture Documents
São diversos os conflitos do presente que giram em torno da alteridade – no Brasil, além da
polarização que vem esticando a corda da política, são aterradores os números de morte
por desnutrição e de contaminação por mercúrio dos Yanomami, para não falar da tentativa
de aprovação de um marco temporal que restringe a delimitação de terras indígenas. Pelo
mundo, conflitos com povos originários e imigrantes, vistos historicamente como os
“outros” por antigos colonizadores, somam-se aos embates com aqueles que estão ao nosso
lado mas aparentemente distantes, disputando espaços e direitos, por vezes básicos, em
reivindicações identitárias.
“Mas nem sequer é preciso acentuarmos essas querelas do momento presente, que podem
ou não ser as querelas do futuro”, escreve Pedro Mexia, editor português da Granta; “o ‘eu’
e ‘o outro’ acompanham-nos desde sempre, sobretudo no confronto, episódico ou
quotidiano, com as grandes diferenças humanas. Encontro ou choque de civilizações, como
no tempo das navegações e do colonialismo; diferenças de classe e luta de classes; o campo
e a cidade; o nacional e o estrangeiro; o familiar e o desconhecido. [...] A verdade é que a
alteridade também se manifesta em contextos que são de todas as épocas.”
Pode-se tentar reforçar e até ampliar essa distância que separa o eu do outro, ou investir
em tentativas de superá-la, quem sabe até tornando-se outro. Em seu texto de
apresentação ao volume, o editor brasileiro Gustavo Pacheco retoma o testemunho de Davi
Kopenawa a Bruce Albert, em A queda do céu, sobre virar outro: “Não há nada de simples
em ‘virar outro’. Para os Yanomami, assim como para tantos outros povos originários, ‘virar
outro’ é algo necessário mas também assustador, é algo frequente mas nem por isso menos
intricado, é algo prazeroso mas também doloroso. Como tem sido desde que o mundo é
mundo, nas infinitas variedades que o ‘virar outro’ pode assumir ao longo do tempo e do
espaço”.
É para tratar desse tema complexo que a 10 a edição da Granta em língua portuguesa reuniu
autores consagrados e em ascensão, de idiomas e gerações variados: César Aira, Olavo
Amaral, Adam Dalva, Isabela Figueiredo, Marta Hugon, Janet Malcolm, Ernesto Mané,
Natércia Pontes, Valério Romão, Ali Smith, Teresa Veiga, Aparecida Vilaça, Francesca Wade.
Os ensaios fotográficos são de Mag Rodrigues e Eduardo Viveiros de Castro (responsável
também pela imagem de capa).
E tantos outros
Tem peso e relevância o estrangeiro como “outro”, neste volume da Granta. A revista abre
com um trecho de Still Pictures, livro póstumo de Janet Malcolm, ainda inédito no Brasil. No
ensaio, a célebre jornalista e ensaísta norte-americana conta histórias de sua origem checa,
sua situação de imigrante, da infância e da juventude, chamando atenção para hábitos
marcados pela condição social modesta da família. “A sopa Campbell não era associada ao
Andy Warhol. Era só uma coisa que comíamos”, ela escreve.
Também Ernesto Mané contribui com um excerto do seu livro de estreia, Eu sou o outro do
outro, a ser publicado em 2024 pela Tinta-da-China Brasil, com edição de Gustavo Pacheco.
Nesse misto de ensaio, diário de viagem e relato autobiográfico, acompanhamos Mané em
uma viagem pela Guiné-Bissau, em fins de 2010, em que ele pretende recuperar a história
da família paterna.
Os estrangeiros aparecem, enfim, em “Há muito tempo que não levava tanta coisa às
costas”, de Valério Romão. Filho de portugueses que emigraram para a França, o autor situa
em Clermont-Ferrand, sua cidade-natal, o narrador do conto, um escritor que participa de
um debate literário enquanto remói conflitos pessoais e sociais em um patoá inventivo,
zangado, divertido e triste.
A alteridade também assume a forma das diferenças entre classes sociais, como se vê na
estreia da cantora portuguesa Marta Hugon na ficção. O leitor segue a rotina de trabalho de
Conceição, empregada doméstica que dá nome ao conto. Enquanto limpa a casa dos
patrões e cozinha para eles, ela rememora o antigo casamento e aquilo que enfrentou até
conquistar sua autonomia – quando é então surpreendida por maquinações de que jamais
suspeitava.
Teresa Veiga investiga o mesmo campo movediço dos afetos, em um conto que flerta com o
“outro” da estranheza: “Betânia” narra um reencontro que envereda por um caminho de
bizarrice quase gótica, explorando a figura do duplo e o tema do colapso mental.
Outro ponto alto desta edição da Granta, o conto “Picasso”, do argentino César Aira, leva às
mais delirantes consequências a possibilidade de escolher entre ser Picasso ou ter um
Picasso – alternativas que lhe são oferecidas por um gênio, que surge de dentro de uma
garrafa quando o narrador visita o Museu Picasso, em Paris. “Para ser outro é preciso deixar
de ser você mesmo, e ninguém aceita de bom grado essa renúncia”, ele delibera.
O gênero do diário fica por conta de Isabela Figueiredo: a autora portuguesa conta em seu
“Diário da canícula”, datado de julho de 2022, quando se mudou temporariamente para
uma casa no vilarejo alentejano de Outeiro do Mato e resgata figuras esquecidas ou
desprezadas. “Temos a contraposição entre cidade e aldeia, a observação empática desses
‘outros’ que os urbanos esquecem”, observa Pedro Mexia.
Granta em imagens
Ensaio Pontos de Vista_ Foto: Eduardo Viveiros de Castro. Granda: O Outro (10ª edição)
Ensaio Pontos de Vista_ Foto: Eduardo Viveiros de Castro. Granda: O Outro (10ª edição)
Mag Rodrigues, que assina “A cor da Luz”, o ensaio visual sobre albinismo que compõe esta
edição, é vista como uma aposta por ele, que ainda não conhecia o trabalho da fotógrafa
antes de convidá-la para participar desta Granta. Formada em Fotografia, ela é autora de
diversos trabalhos documentais e de autor e, no último ano, abriu em Paris a exposição
FAMÍLIA — Retratos de famílias LGBTQIA+.
Ensaio A Cor da Luz_Foto: Mag Rodrigues. Granda: O Outro (10ª edição)
“Pontos de vista” é o segundo ensaio visual do volume, composto por oito fotografias dos
anos 70, 80 e 90 que Eduardo Viveiros de Castro realizou como antropólogo. As imagens
estiveram presentes na exposição Variações do Corpo Selvagem: Eduardo Viveiros de
Castro, fotógrafo, realizada em 2015 no Sesc Ipiranga, em São Paulo, com curadoria de
Veronica Stigger e Eduardo Sterzi.
Stigger fez a seleção das imagens para a Granta. “Quando ainda estava estudando ciências
sociais, Eduardo desenvolveu a atividade como fotógrafo, principalmente como fotógrafo de
cena do cineasta Ivan Cardoso”, contou em um vídeo do Sesc, à época da vernissagem, a
respeito de um dos mais influentes antropólogos da atualidade. “Ele leva essa atividade
como fotógrafo para o seu trabalho de campo. Quando começa a estudar os indígenas, os
Yawalapiti, os Araweté, quando passa um breve tempo estudando os Kulina, os Yanomami,
ele faz registros junto a eles.”
A Granta em português
A revista Granta estreou no Brasil em 2012, durante a Flip - Festa Literária Internacional de
Paraty, com uma edição que celebrava os melhores jovens escritores do país e reunindo
textos de nomes como Antonio Prata, Michel Laub, Tatiana Salem Levy e Vanessa Barbara.
Um ano depois, do outro lado do Atlântico, foi lançada, pela Tinta-da-China, a Granta
Portugal. Em 2018, as duas revistas se tornaram uma só, com a unificação na Granta em
Língua Portuguesa, tendo um editor brasileiro e um português.
A Granta foi fundada em 1889 por estudantes da Universidade de Cambridge e tem em seu
histórico o peso de ter revelado nomes como Sylvia Plath e Ian McEwan. Susan Sontag,
Milan Kundera e Gabriel García Márquez também passaram por suas páginas. Além da
edição britânica, a Granta tem onze edições internacionais: Bulgária, China, Finlândia, Itália,
Japão, Noruega, Espanha, Suécia, Turquia, em hebraico e em língua portuguesa.
Após um hiato pandêmico de dois anos, a Granta em Língua Portuguesa voltou a circular no
país pela Tinta-da-China Brasil, com periodicidade semestral. Em outubro de 2022, a Granta
Rússia olhou para o continente literário russo por lentes multifocais: ficção, literatura de
viagem, jornalismo, ensaio de crítica literária e história, e também a necessária voz das
escritoras russas contemporâneas. Alguns dos textos reativam o longo e fértil diálogo entre
a ficção russa e a literatura em língua portuguesa. Entre ficção e não ficção, ora com humor,
ora em tom trágico, e muitas vezes numa mescla tipicamente russa entre os dois registros, a
Granta mostra uma Rússia para além dos estereótipos a que costumamos ver retratados no
noticiário.
Destaques
- A presença de escritores brasileiros contemporâneos com textos inéditos, como Natércia
Pontes, Ernesto Mané, Olavo Amaral
- A participação de autores estrangeiros consagrados, como Janet Malcolm, Ali Smith, César
Aira, Isabela Figueiredo
- Dois antropólogos estão presentes na edição: Eduardo Viveiros de Castro, com fotografias,
e Aparecida Vilaça, com um conto
- A diversidade de gêneros: contos e trechos de romances se somam a ensaios e diários
- Dois belos ensaios fotográficos, de autoria de Mag Rodrigues e Eduardo Viveiros de Castro
Ganchos
- Disputas políticas em torno da alteridade: xenofobia, discussão do marco temporal
- A ideia de que conhecemos, e até podemos viver a vida de outras pessoas, ao acompanhá-
las pelo mundo on-line
- Sucesso comercial de biografias: o ensaio de Francesca Wade ilumina o trabalho do
biógrafo
Dizem por aí
- Fundada em 1889 por estudantes da Universidade de Cambridge, a revista revelou nomes
como o de Sylvia Plath. Por suas páginas passaram Susan Sontag, Milan Kundera, Gabriel
García Márquez e mais
Conversa com
- O primeiro livro de Gustavo Pacheco, Alguns humanos, reúne onze histórias tão
inquietantes quanto arrebatadoras, viajando do Bornéu ao Bronx, de Moçambique a
Salvador, da Alemanha ao México, de Pequim a Buenos Aires
- A linguagem experimental de Valério Romão também está presente em Autismo, romance
em que o autor parte de sua experiência para tratar da complexidade dos vínculos afetivos
em uma família com um filho autista
- A HQ Gênero queer, de Maia Kobabe, tematiza as diferenças entre as pessoas, pelo viés do
gênero e da sexualidade, e o preconceito que pode derivar delas
- Nas crônicas de Diante do fascismo, Paulo Roberto Pires retrata a ascensão de Bolsonaro à
Presidência da República, quando o país passou a viver sob um regime de violência que
estimula confrontos entre a população
Trechos
Janet Malcolm – “Skromnost”
“Vivíamos consoante as nossas posses, de acordo com os salários dos meus pais, com uma
modéstia confortável. A palavra checa skromnost significa ‘modéstia’, mas implica também
uma ligeira noção de humildade deferente, de saber qual é o nosso lugar.”
“Expliquei que vim conhecer minhas raízes, a família do meu pai etc. Ele disse que sabia da
história — falava português perfeitamente. ‘E estás a gostar?’ Eu disse que sim, mas que
achava algo engraçado: ‘Estão me chamando de branco aqui’. Ele me respondeu, em
resumo, que a noção de branquitude, para os africanos, tem a ver não só com a cor da pele,
mas também com a cultura, e disse que a minha forma de me comportar é diferente da das
pessoas daqui. ‘Ah, é como se realmente eu fosse um branco!’, exclamei, surpreso e
consternado com minha mais nova descoberta.”
Valério Romão – “Há muito tempo que não levava tanta coisa às costas”
“por estar um bocadinho bêbedo, concedo, mas vinte e duas horas, quem não está com os
copos a esta hora ou a vida lhe corre bem ou é desinteressante a maior parte das vezes
ambos, até eu devo estar bêbedo numa brasserie baratucha ao lado de um shisha bar se for
minimamente interessante o que devo confessar duvido, se calhar bêbedo em casa a ver um
canal de desportos e a suplicar um bico à portuguesa tricolor de volta de um frango no
forno a quem já pedi desculpa, até ao puto pedi desculpa até à puta da mãe dela pedi
desculpa, quantas desculpas tem um tipo de pedir para lhe chuparem a pila que raio de
mundo em que isto se tornou, eu naturalmente despreocupado com a lonjura a que o
asteróide dos dias do fim repousa macilento à espera de um empurrão solar,
despreocupado com o mercúrio do atum de marca branca a bolçar uma estranha espuma
pela boca da latinha, despreocupado sobretudo com o aquecimento global e o coronavírus e
a guerra na Ucrânia que os borregos de pastar jornalixo engolem de manhã à noite,”
Ficha técnica
Título: Granta em Língua Portuguesa: O Outro (vol. 10)
Formato: 14,5 x 21 cm
Páginas: 216
ISBN: 978-65-84835-13-9
Preço de capa: R$ 90
Editora: Tinta-da-China Brasil
À venda em: tintadachinabrasil.com.br
Assinatura
Granta em Língua Portuguesa
Edição impressa da Granta (2 edições por ano)
Acesso completo ao site da Quatro Cinco Um
R$ 150 por ano (à vista ou em 4x sem juros)
Tinta-da-China Brasil
A Tinta-da-China Brasil é uma editora de livros independente, que publica o melhor da
literatura clássica e contemporânea, além de livros de história, jornalismo, humor, literatura
de viagem, ensaios, fotografia, poesia, a edição em língua portuguesa da mais importante
revista literária da era moderna — a britânica Granta — e a mais bonita coleção de
Fernando Pessoa em qualquer língua.