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10º volume da Revista Granta em Língua

Portuguesa chega às livrarias brasileiras


Publicação investiga a alteridade no encontro de civilizações, nas relações pessoais e dentro
de cada um

Capa Granda: O Outro (10ª edição)

Na antropologia, na psicanálise, na política e na literatura, nos choques de civilizações e


identidades, na família e nas relações amorosas, o outro é aquele que não sou eu. Ou talvez
seja? O conceito de alteridade, investigado em tantos campos do conhecimento e da arte,
atravessa os contos, ensaios, trechos de romance e ensaios visuais da revista Granta: O
Outro, 10o volume da revista literária que se dedica à fermentação de novas escritas.
Publicada pela Tinta-da-China Brasil sob direção editorial de Pedro Mexia (Portugal) e
Gustavo Pacheco (Brasil) e direção de imagens de Daniel Blaufuks, a Granta será lançada no
fim de julho nas livrarias.

São diversos os conflitos do presente que giram em torno da alteridade – no Brasil, além da
polarização que vem esticando a corda da política, são aterradores os números de morte
por desnutrição e de contaminação por mercúrio dos Yanomami, para não falar da tentativa
de aprovação de um marco temporal que restringe a delimitação de terras indígenas. Pelo
mundo, conflitos com povos originários e imigrantes, vistos historicamente como os
“outros” por antigos colonizadores, somam-se aos embates com aqueles que estão ao nosso
lado mas aparentemente distantes, disputando espaços e direitos, por vezes básicos, em
reivindicações identitárias.
“Mas nem sequer é preciso acentuarmos essas querelas do momento presente, que podem
ou não ser as querelas do futuro”, escreve Pedro Mexia, editor português da Granta; “o ‘eu’
e ‘o outro’ acompanham-nos desde sempre, sobretudo no confronto, episódico ou
quotidiano, com as grandes diferenças humanas. Encontro ou choque de civilizações, como
no tempo das navegações e do colonialismo; diferenças de classe e luta de classes; o campo
e a cidade; o nacional e o estrangeiro; o familiar e o desconhecido. [...] A verdade é que a
alteridade também se manifesta em contextos que são de todas as épocas.”

Pode-se tentar reforçar e até ampliar essa distância que separa o eu do outro, ou investir
em tentativas de superá-la, quem sabe até tornando-se outro. Em seu texto de
apresentação ao volume, o editor brasileiro Gustavo Pacheco retoma o testemunho de Davi
Kopenawa a Bruce Albert, em A queda do céu, sobre virar outro: “Não há nada de simples
em ‘virar outro’. Para os Yanomami, assim como para tantos outros povos originários, ‘virar
outro’ é algo necessário mas também assustador, é algo frequente mas nem por isso menos
intricado, é algo prazeroso mas também doloroso. Como tem sido desde que o mundo é
mundo, nas infinitas variedades que o ‘virar outro’ pode assumir ao longo do tempo e do
espaço”.

É para tratar desse tema complexo que a 10 a edição da Granta em língua portuguesa reuniu
autores consagrados e em ascensão, de idiomas e gerações variados: César Aira, Olavo
Amaral, Adam Dalva, Isabela Figueiredo, Marta Hugon, Janet Malcolm, Ernesto Mané,
Natércia Pontes, Valério Romão, Ali Smith, Teresa Veiga, Aparecida Vilaça, Francesca Wade.
Os ensaios fotográficos são de Mag Rodrigues e Eduardo Viveiros de Castro (responsável
também pela imagem de capa).

E tantos outros

Tem peso e relevância o estrangeiro como “outro”, neste volume da Granta. A revista abre
com um trecho de Still Pictures, livro póstumo de Janet Malcolm, ainda inédito no Brasil. No
ensaio, a célebre jornalista e ensaísta norte-americana conta histórias de sua origem checa,
sua situação de imigrante, da infância e da juventude, chamando atenção para hábitos
marcados pela condição social modesta da família. “A sopa Campbell não era associada ao
Andy Warhol. Era só uma coisa que comíamos”, ela escreve.

Também Ernesto Mané contribui com um excerto do seu livro de estreia, Eu sou o outro do
outro, a ser publicado em 2024 pela Tinta-da-China Brasil, com edição de Gustavo Pacheco.
Nesse misto de ensaio, diário de viagem e relato autobiográfico, acompanhamos Mané em
uma viagem pela Guiné-Bissau, em fins de 2010, em que ele pretende recuperar a história
da família paterna.

Os estrangeiros aparecem, enfim, em “Há muito tempo que não levava tanta coisa às
costas”, de Valério Romão. Filho de portugueses que emigraram para a França, o autor situa
em Clermont-Ferrand, sua cidade-natal, o narrador do conto, um escritor que participa de
um debate literário enquanto remói conflitos pessoais e sociais em um patoá inventivo,
zangado, divertido e triste.
A alteridade também assume a forma das diferenças entre classes sociais, como se vê na
estreia da cantora portuguesa Marta Hugon na ficção. O leitor segue a rotina de trabalho de
Conceição, empregada doméstica que dá nome ao conto. Enquanto limpa a casa dos
patrões e cozinha para eles, ela rememora o antigo casamento e aquilo que enfrentou até
conquistar sua autonomia – quando é então surpreendida por maquinações de que jamais
suspeitava.

Fracassado em sua tentativa de publicar um romance, o escritor Adam Dalva recorre ao


também malsucedido Jeb Bush, ex-governador da Flórida que tentou se candidatar para as
eleições presidenciais dos Estados Unidos de 2016. Sabendo-se muito diferente e distante
de Bush, Dalva mesmo assim passa a escrever mensagens pedindo conselhos e confessando
seus males profissionais, amorosos e pessoais ao político, certo de que este não teria acesso
ao endereço eletrônico divulgado por sua campanha.

Os embates pessoais e suas tentativas de superação com a ajuda de outras pessoas é


igualmente tema de Aparecida Vilaça, que em “Tsunamis” recorre a inúmeras referências da
literatura – Elena Ferrante, Rosa Montero, Joan Didion – para buscar conforto diante de um
abandono.

Teresa Veiga investiga o mesmo campo movediço dos afetos, em um conto que flerta com o
“outro” da estranheza: “Betânia” narra um reencontro que envereda por um caminho de
bizarrice quase gótica, explorando a figura do duplo e o tema do colapso mental.

Os desencontros amorosos ganham contornos e metáforas náuticos, gamers, geológicos –


enfim, de batalha e choque – no conto “Súbito continente”, de Olavo Amaral. “Foi-se o
tempo em que o contorno das nossas ilhas era liso, antes dos choques que nos fariam fortes
e cheios de cicatrizes, transformando nossas arestas em fractais incapazes de se
encaixarem”, escreve o médico, professor e autor.

Destaque dentre os escritores brasileiros da nova geração, Natércia Pontes apresenta um


capítulo de seu novo romance, ainda inédito; “Vida doçura” adentra a vida de Jocasta,
mulher que vive em um apartamento pequeno com seu gato, bate febrilmente à sua
máquina de escrever e, como passatempo, assiste os vídeos no YouTube de uma família
comum que registra seu cotidiano, procurando entrar em contato, de modo virtual, com a
vida de outras pessoas.

O comezinho aparece também no conto de Ali Smith, “O clamor humano”, em que a


celebrada autora escocesa devaneia entre a vida e a morte de D.H. Lawrence e a
contestação de uma fraude em seu cartão de crédito. As histórias vão se intercalando e
chegam a se cruzar de maneira engraçada, a partir das relações que a narradora vai criando
à deriva, questionando quem teria sido D.H. Lawrence já na morte e quem ela mesma é, por
ter sido confundida pela empresa de cartão de crédito.

Outro ponto alto desta edição da Granta, o conto “Picasso”, do argentino César Aira, leva às
mais delirantes consequências a possibilidade de escolher entre ser Picasso ou ter um
Picasso – alternativas que lhe são oferecidas por um gênio, que surge de dentro de uma
garrafa quando o narrador visita o Museu Picasso, em Paris. “Para ser outro é preciso deixar
de ser você mesmo, e ninguém aceita de bom grado essa renúncia”, ele delibera.

Ao fim da edição, em um retorno ao diário e ao ensaio, Francesca Wade investiga o outro


que é o biografado para seu biógrafo; em “Recibos da lavanderia e manifestos”, excerto de
seu livro Square Haunting, Wade ensaia em torno do trabalho do escritor que se dedica a
contar histórias de vida, exemplificando com diversos livros os pontos que traz para
discussão.

O gênero do diário fica por conta de Isabela Figueiredo: a autora portuguesa conta em seu
“Diário da canícula”, datado de julho de 2022, quando se mudou temporariamente para
uma casa no vilarejo alentejano de Outeiro do Mato e resgata figuras esquecidas ou
desprezadas. “Temos a contraposição entre cidade e aldeia, a observação empática desses
‘outros’ que os urbanos esquecem”, observa Pedro Mexia.

Granta em imagens

Ensaio Pontos de Vista_ Foto: Eduardo Viveiros de Castro. Granda: O Outro (10ª edição)

“Tenho bastante cuidado em escolher pessoas em quem acredito, naturalmente. Tento


misturar pessoas que são do passado e do presente e aquelas que são apostas para o
futuro”, declarou Daniel Blaufuks, diretor de imagem da Granta em língua portuguesa, a
respeito dos ensaios visuais que acompanham os textos a cada edição. O fotógrafo falou
sobre a edição no evento de lançamento da Granta: O Outro em Portugal, na Feira do Livro
de Lisboa que aconteceu em junho de 2023.

Ensaio Pontos de Vista_ Foto: Eduardo Viveiros de Castro. Granda: O Outro (10ª edição)

Mag Rodrigues, que assina “A cor da Luz”, o ensaio visual sobre albinismo que compõe esta
edição, é vista como uma aposta por ele, que ainda não conhecia o trabalho da fotógrafa
antes de convidá-la para participar desta Granta. Formada em Fotografia, ela é autora de
diversos trabalhos documentais e de autor e, no último ano, abriu em Paris a exposição
FAMÍLIA — Retratos de famílias LGBTQIA+.
Ensaio A Cor da Luz_Foto: Mag Rodrigues. Granda: O Outro (10ª edição)

“Pontos de vista” é o segundo ensaio visual do volume, composto por oito fotografias dos
anos 70, 80 e 90 que Eduardo Viveiros de Castro realizou como antropólogo. As imagens
estiveram presentes na exposição Variações do Corpo Selvagem: Eduardo Viveiros de
Castro, fotógrafo, realizada em 2015 no Sesc Ipiranga, em São Paulo, com curadoria de
Veronica Stigger e Eduardo Sterzi.

Stigger fez a seleção das imagens para a Granta. “Quando ainda estava estudando ciências
sociais, Eduardo desenvolveu a atividade como fotógrafo, principalmente como fotógrafo de
cena do cineasta Ivan Cardoso”, contou em um vídeo do Sesc, à época da vernissagem, a
respeito de um dos mais influentes antropólogos da atualidade. “Ele leva essa atividade
como fotógrafo para o seu trabalho de campo. Quando começa a estudar os indígenas, os
Yawalapiti, os Araweté, quando passa um breve tempo estudando os Kulina, os Yanomami,
ele faz registros junto a eles.”

Lançamento da Granta: O Outro em Portugal, na Feira do Livro de Lisboa, em junho de


2023: https://www.youtube.com/watch?v=KtHAWs0hRBg
Veronica Stigger apresenta a exposição Variações do Corpo Selvagem: Eduardo Viveiros de
Castro, fotógrafo, em 2015: https://www.youtube.com/watch?v=yvq-CfBUxr4&t=52s
Entrevista com Mag Rodrigues sobre seu trabalho: https://gerador.eu/mag-rodrigues-
consigo-aceder-a-partes-que-sao-infinitas-e-novas-no-ser-humano/

A Granta em português

A revista Granta estreou no Brasil em 2012, durante a Flip - Festa Literária Internacional de
Paraty, com uma edição que celebrava os melhores jovens escritores do país e reunindo
textos de nomes como Antonio Prata, Michel Laub, Tatiana Salem Levy e Vanessa Barbara.
Um ano depois, do outro lado do Atlântico, foi lançada, pela Tinta-da-China, a Granta
Portugal. Em 2018, as duas revistas se tornaram uma só, com a unificação na Granta em
Língua Portuguesa, tendo um editor brasileiro e um português.
A Granta foi fundada em 1889 por estudantes da Universidade de Cambridge e tem em seu
histórico o peso de ter revelado nomes como Sylvia Plath e Ian McEwan. Susan Sontag,
Milan Kundera e Gabriel García Márquez também passaram por suas páginas. Além da
edição britânica, a Granta tem onze edições internacionais: Bulgária, China, Finlândia, Itália,
Japão, Noruega, Espanha, Suécia, Turquia, em hebraico e em língua portuguesa.

Após um hiato pandêmico de dois anos, a Granta em Língua Portuguesa voltou a circular no
país pela Tinta-da-China Brasil, com periodicidade semestral. Em outubro de 2022, a Granta
Rússia olhou para o continente literário russo por lentes multifocais: ficção, literatura de
viagem, jornalismo, ensaio de crítica literária e história, e também a necessária voz das
escritoras russas contemporâneas. Alguns dos textos reativam o longo e fértil diálogo entre
a ficção russa e a literatura em língua portuguesa. Entre ficção e não ficção, ora com humor,
ora em tom trágico, e muitas vezes numa mescla tipicamente russa entre os dois registros, a
Granta mostra uma Rússia para além dos estereótipos a que costumamos ver retratados no
noticiário.

Em formato de livro, a Granta em Língua Portuguesa é o espaço de fermentação de novas


escritas, de novas gerações de autores e da presença dos grandes escritores nacionais e
internacionais, sob os cuidados dos editores Pedro Mexia (Portugal) e Gustavo Pacheco
(Brasil). A direção de imagem é de Daniel Blaufuks.

Destaques
- A presença de escritores brasileiros contemporâneos com textos inéditos, como Natércia
Pontes, Ernesto Mané, Olavo Amaral
- A participação de autores estrangeiros consagrados, como Janet Malcolm, Ali Smith, César
Aira, Isabela Figueiredo
- Dois antropólogos estão presentes na edição: Eduardo Viveiros de Castro, com fotografias,
e Aparecida Vilaça, com um conto
- A diversidade de gêneros: contos e trechos de romances se somam a ensaios e diários
- Dois belos ensaios fotográficos, de autoria de Mag Rodrigues e Eduardo Viveiros de Castro

Ganchos
- Disputas políticas em torno da alteridade: xenofobia, discussão do marco temporal
- A ideia de que conhecemos, e até podemos viver a vida de outras pessoas, ao acompanhá-
las pelo mundo on-line
- Sucesso comercial de biografias: o ensaio de Francesca Wade ilumina o trabalho do
biógrafo

Dizem por aí
- Fundada em 1889 por estudantes da Universidade de Cambridge, a revista revelou nomes
como o de Sylvia Plath. Por suas páginas passaram Susan Sontag, Milan Kundera, Gabriel
García Márquez e mais

Conversa com
- O primeiro livro de Gustavo Pacheco, Alguns humanos, reúne onze histórias tão
inquietantes quanto arrebatadoras, viajando do Bornéu ao Bronx, de Moçambique a
Salvador, da Alemanha ao México, de Pequim a Buenos Aires
- A linguagem experimental de Valério Romão também está presente em Autismo, romance
em que o autor parte de sua experiência para tratar da complexidade dos vínculos afetivos
em uma família com um filho autista
- A HQ Gênero queer, de Maia Kobabe, tematiza as diferenças entre as pessoas, pelo viés do
gênero e da sexualidade, e o preconceito que pode derivar delas
- Nas crônicas de Diante do fascismo, Paulo Roberto Pires retrata a ascensão de Bolsonaro à
Presidência da República, quando o país passou a viver sob um regime de violência que
estimula confrontos entre a população

Trechos
Janet Malcolm – “Skromnost”
“Vivíamos consoante as nossas posses, de acordo com os salários dos meus pais, com uma
modéstia confortável. A palavra checa skromnost significa ‘modéstia’, mas implica também
uma ligeira noção de humildade deferente, de saber qual é o nosso lugar.”

Ernesto Mané – “Eu sou o outro do outro”


“No Brasil, o sobrenome que herdei do meu pai, Mané, é um termo que significa ‘otário,
idiota’. Levou muito tempo para eu entender o verdadeiro significado do meu sobrenome. A
Teté me falou que os Manés eram sábios vindos do Império do Mali. Fiquei feliz com essa
informação e já não me ofendo mais. Além do meu fenótipo, meu sobrenome africano é a
coisa mais concreta que me conecta com a África. Finalmente a ferida está curando.”

“Expliquei que vim conhecer minhas raízes, a família do meu pai etc. Ele disse que sabia da
história — falava português perfeitamente. ‘E estás a gostar?’ Eu disse que sim, mas que
achava algo engraçado: ‘Estão me chamando de branco aqui’. Ele me respondeu, em
resumo, que a noção de branquitude, para os africanos, tem a ver não só com a cor da pele,
mas também com a cultura, e disse que a minha forma de me comportar é diferente da das
pessoas daqui. ‘Ah, é como se realmente eu fosse um branco!’, exclamei, surpreso e
consternado com minha mais nova descoberta.”

Valério Romão – “Há muito tempo que não levava tanta coisa às costas”
“por estar um bocadinho bêbedo, concedo, mas vinte e duas horas, quem não está com os
copos a esta hora ou a vida lhe corre bem ou é desinteressante a maior parte das vezes
ambos, até eu devo estar bêbedo numa brasserie baratucha ao lado de um shisha bar se for
minimamente interessante o que devo confessar duvido, se calhar bêbedo em casa a ver um
canal de desportos e a suplicar um bico à portuguesa tricolor de volta de um frango no
forno a quem já pedi desculpa, até ao puto pedi desculpa até à puta da mãe dela pedi
desculpa, quantas desculpas tem um tipo de pedir para lhe chuparem a pila que raio de
mundo em que isto se tornou, eu naturalmente despreocupado com a lonjura a que o
asteróide dos dias do fim repousa macilento à espera de um empurrão solar,
despreocupado com o mercúrio do atum de marca branca a bolçar uma estranha espuma
pela boca da latinha, despreocupado sobretudo com o aquecimento global e o coronavírus e
a guerra na Ucrânia que os borregos de pastar jornalixo engolem de manhã à noite,”

Marta Hugon – “Conceição”


“Na cidade, o casamento parecia-lhe uma coisa já distante. Poliu a aliança com a ponta do
avental. No dia do seu casamento não gostara da expressão de Custódio quando lha pusera
no dedo. Achara-o velho demais, as unhas um pouco sujas, o cabelo mal-amanhado e as
calças lustrosas do uso. Sentira até pena dele, mas sobretudo pena de si própria, por se ver
assim encurralada. A mãe fizera-lhe a conversa do costume, já vinha tarde. Conceição
conhecia homem desde os quinze, mas tivera cuidado para não ter de fazer nenhum
desmancho.”

Adam Dalva – “Cartas a Jeb Bush”


“Jeb ficou em quarto lugar em New Hampshire e na Carolina do Sul, depois desistiu da
corrida eleitoral. Naquela altura, eu tinha recomeçado a escrever, com cuidado, a medo. Um
texto de ficção curto, um pequeno ensaio. Comecei a tratar o endereço de e-mail de Jeb
como um diário privado, contactando-o por regra no primeiro dia de cada mês. Isto
permitiu-me criar uma rotina e reforçou a minha confiança. Além disso, os e-mails deram-
me amiúde clareza de espírito enquanto enfrentava situações que me sentia incapaz de
explicar com sinceridade às pessoas da minha vida.”

Aparecida Vilaça – “Tsunamis”


“Vejo e revejo na internet imagens em busca de alguma pista. Será que os sobreviventes
tentam imaginar os sinais que não perceberam? Um som, um tremor, uma mudança no
vento?”

Teresa Veiga – “Betânia”


“Alguma vez pensaste em mim?, era a pergunta silenciosa que eu lhe fazia enquanto
concordava com ela e sorria, sabendo que nunca a havia de formular porque a resposta me
deixaria sempre incrédulo quer fosse ‘algumas vezes’ ou ‘nunca’.”

Natércia Pontes – “Vida doçura”


“Jocasta mata um mosquito com a raquete elétrica, o cheiro de proteína queimada invade a
sala escura. A luz do celular brilha no ambiente incensando uma força dramática. Jocasta
está deitada no sofá verde-maçã. Um gato rajado dorme em seus pés. Ao seu lado uma
geladeira chia. O apartamento é pequeno, três peças: um vão, um banheiro e uma cozinha
tão minúscula que só acomoda o fogão de duas bocas — a geladeira tem que ficar na sala.
Em duas horas o dia vai amanhecer e Jocasta não tem previsão de nada, vive minuto a
minuto, exalando horas de inação esticadas como fios chiclete.”

Olavo Amaral – “Súbito continente”


“Erguendo-me devagar, estico o pescoço para olhar em volta e descobrir aonde foi o
oponente. Mas ao virar o rosto para onde deveria estar o mar, deparo-me com a enorme
planície verde que se estende a perder de vista. Por um momento permaneço confuso, sem
compreender como minha geografia pode ter mudado tanto. E só então percebo que o
território à minha frente já não é meu, que a outra ilha permanece ali.”

Ali Smith – “O clamor humano”


“Será que havia alguma relação entre a vida, a morte e a dispersão das cinzas de Lawrence e
minha luta contra a fraude do cartão de crédito? Só sei que fiquei contente ao pensar em
Lawrence, tão individualista que lutaria contra qualquer um até de mãos atadas, tão
propenso à compaixão que era incapaz de esmagar um mosquito sem antes tratá-lo
formalmente, em francês, e compará-lo a uma obra de arte do Louvre.
Imaginem como Lawrence lidaria com o mundo virtual. Só de pensar em Lawrence
esculhambando um site pornô, clamando contra as baixarias da internet e todos os seus
joguinhos de computador, bastou para que eu esquecesse por um instante a carta da
Barclaycard em minhas mãos.”

Francesca Wade – “Recibos da lavanderia e manifestos”


“Como pode um biógrafo, pergunta Heilbrun, evitar impor às pessoas que estuda os seus
próprios preconceitos sobre como se deve viver uma vida? Como escrever sobre vidas que
se situaram deliberadamente fora dos padrões convencionais, sem se partir do princípio de
que o que nos parecem erros e desilusões seriam causa de arrependimento ou censura?
Que novas possibilidades se abrem para escrever sobre as vidas das mulheres, pergunta
Heilbrun, se deixarmos de considerar o não cumprimento das expectativas como algo a
condenar e procurarmos antes celebrar as histórias de ambição, risco e esforço para viver
de modo diferente e mais expansivo?”

Isabela Figueiredo – “Diário da canícula”


“O senhor Moreno tem 85 anos e já não vive com a mulher, porque ele quer estar na terra
dele e ela na dela. Há uns anos foi a tribunal por causa de uns assuntos de carros e o juiz
perguntou-lhe se era divorciado. ‘Sou.’ Se vivia sozinho. ‘Não senhor. Nunca estou sozinho.’
Com quem vivia? ‘Senhor doutor, ê vivo mais a minha Boneca, que é a minha cadelinha e o
grande amor da minha vida.’ Diz que o doutor se riu. Eu também. A conversa com os
homens começa sempre pelas cadelas. As minhas estavam aos meus pés, a dele estava em
casa. ‘Já está velhota. Agora não agarra à caminha, por causa do calor, mas prantei-lhe um
lençol no chão e fica lá toda estendidinha.’”

César Aira – “Picasso”


“Para ser outro é preciso deixar de ser você mesmo, e ninguém aceita de bom grado essa
renúncia. Não é que eu me considerasse mais valioso que Picasso, nem mais saudável ou
mais capaz de enfrentar a vida. Eu sabia, pelas biografias, que ele era bastante perturbado;
eu era mais ainda, portanto minha saúde mental sairia ganhando se eu me transformasse
nele. Mas, graças ao longo trabalho de uma vida inteira, eu fizera as pazes com meus
medos, neuroses, angústias e outros defeitos, ou ao menos conseguia mantê-los na linha, e
ninguém garantia que essa cura pela metade funcionaria com os problemas de Picasso. Foi
mais ou menos esse o meu raciocínio, não com palavras, mas na base da intuição.”

Ficha técnica
Título: Granta em Língua Portuguesa: O Outro (vol. 10)
Formato: 14,5 x 21 cm
Páginas: 216
ISBN: 978-65-84835-13-9
Preço de capa: R$ 90
Editora: Tinta-da-China Brasil
À venda em: tintadachinabrasil.com.br

 Assinatura 
Granta em Língua Portuguesa
Edição impressa da Granta (2 edições por ano)
Acesso completo ao site da Quatro Cinco Um
R$ 150 por ano (à vista ou em 4x sem juros)

Granta em Língua Portuguesa + Quatro Cinco Um Impressa + Digital


Edição impressa da Granta (2 edições por ano)
Assinatura Impressa + digital
R$ 500 por ano (à vista ou em 4x sem juros)

Tinta-da-China Brasil
A Tinta-da-China Brasil é uma editora de livros independente, que publica o melhor da
literatura clássica e contemporânea, além de livros de história, jornalismo, humor, literatura
de viagem, ensaios, fotografia, poesia, a edição em língua portuguesa da mais importante
revista literária da era moderna — a britânica Granta — e a mais bonita coleção de
Fernando Pessoa em qualquer língua.

Fundada em 2005 em Portugal, a editora aportou no Brasil em 2012 e desde 2022 é


controlada pela Associação Quatro Cinco Um, organização sem fins lucrativos dedicada à
difusão da cultura do livro.
Tinta-da-China Brasil | Associação Quatro Cinco Um
Largo do Arouche, 161, sl 2 – República – São Paulo
tintadachina.com.br

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