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Francisco José Calazans Falcon Livre Docente em Histéria Moderna Professor Titular da Universidade Federal Fluminense ¢ Professer Associado da Pontificia Universidade Catdlica do Rio de Janeiro TLUMINISM Diregtio Benjamin Abdala Junior Samira Youssef Campedelll Preparagio de texto José Antonino de Andrade Arte Coordenacdo @ projeto grafico (miolo) Antonio do Amaral Rocha Artefinal René Etiene Ardanuy Cana Ary A. Normenha, Antonio U. Domienclo SISBUUFU 201179 ISBN 8508 01513 5 1994 Todos os direitos reservados Editora Atics S.A. Rua Bardo de Iguape, 110 — CEP 01507900 TTel.: PABX 278:9322 — Caixa Postal 8656 End. Teiegratico "Bomlivro” — Fax: (011) 277-4146 830 Paulo (SP) Sumario Por que 0 Huminismo?. 3 © jogo das palavras: “Huminismo” ou “llustragao"’?. 9 A hora e a vez dos dicionérios. 9 A vez dos historiadores. 12 O espago-tempo do Iluminismo e suas bases sociais 20 © espago-tempo do movimento ilustrado. 20 A dimensdo cronolégica. 20 O espaco geogrifico do Iuminismo—______23 ‘As bases sociais das “Luzes” 24 Secularizagao e racionalismo———31 A falsa antitese. 31 ‘A razio iluminista — a iluminagio secular. 35 Dilemas da razdo iluminista. a4 © lugar do sentimento — a sensibilidade___44 A natureza das concepcoes racionalistas. 48 As reacdes do piiblico receptor. 47 A consciéncia da historicidade. 50 Natureza e caractertsticas da historiografia iluminista. — As valoragbes da historiografia ituminista. 53 ‘A visio iluminista da historicidade e seus problemas. 54 As bases do pensamento iluminista—5¢ ‘A antropologia das “Luzes™ 56 A aniropologia — seus temas e valores___— 59 Humanidade, $9; Civilizacio © cultura, 60; Progresso, 61. A pedagogia dos “fildsofos” 62 9% 10. iW. © pragmatismo das “Luzes’~ 65 Tolerancia 66 Humanitarismo. 68 Otimismo juridico. 68 Filantropia. 70 Servidio e escravidio, 71; Doenga e fome, po- breza e desemprego, 73; Guerra e patriotismo, 74, Beneficéncia. 16 O enciclopedismo das “Luzes'-____79 A enciclopédia. 79 lluminismo e revolugdo: 85 Vocabulario critico. 89 Bibliogratia comentada —______92 1 Por que o Iluminismo? Tluminismo e Despotismo Esclarecido, temas coeté- eos que remetem a um mesmo espaco-tempo — 0 sete~ contos europeu. Todavia, destinos histéricas diferentes: enquanto o Iluminismo permanece atual, 0 Despotismo Esclarecido € apenas passado, um tema cristalizado. A este dedicamos um livro nesta mesma série; tratemos por- tanto do primeiro Em que consiste a atualidade do Muminismo? Do fato de ser um assunto obrigatério nos compéndios e programas de Historia Moderna? Julgamos que ndo. Afinal, o tipo de tratamento dispensado 20 Huminismo nesses casos, com raras excegées, prima pela superficialidade. O Iluminismo & af reduzido @ uma espécie de recitativo dos nomes de “grandes pensadores” e das suas obras principais, ficando sua importancia hist6rica reduzida ao caréter de manifes- taco intelectual que expressa as idéias de uma “burguesia em ascenséo”. Estudado desse Angulo, o Iluminismo € ape- ras uma das “‘causas” da Revolucdo Francesa, um de seus TFALeON, F. J. C. O despotisme eselarccido. So Paulo, Atica, 1986. 6 antecedentes ou fatores determinantes, pois teria sido a expresso ideolgica da crise do Antigo Regime. Caso realmente © Muminismo tivesse sido apenas o que podemos ler nessas versbes escolares padronizadas, ele seria tio passado quanto o Despotismo Esclarecido. Nao € isso que acontece, porém. Para o mundo de hoje 0 Jumi- nismo & algo bastante presente, tanto que é capaz de pro- duzir debates e tomadas de posigio dos mais variados tipos. Enquanto para os historiadores a palavra Lluminismo remete & nogdo d: um movimento intelectual ocorrido na Europa do século XVIII — 0 “século das ‘Luzes’” —, em que pese o reconhecimento de que se trata de uma genera~ lizagao frente a realidade extremamente rica e diversificada de tal objeto — para nds, hoje, o Iluminismo reveste-se de muitas outras significagées. Podemos, por exemplo, tentar compreender o Ilumi- nismo como culminagio de um processo, ou como um comego.Enquanto ponto de chegada, 0 Muminismo apa~ rece como o climax de uma trajetéria cujos comecos se identificam com o Renascimento, mas que s6 alga véo realmente com a revolucdo cientifica do século XVII. Considerado como um ponto de partida, o /luminismo passa a constituir 0 primeiro momento de uma aventura intelectual que € também a nossa, Serio mutuamente excludentes essas duas perspecti- vas? Acreditamos que néo. Afinal, a primeira delas nada mais ¢ do que a propria autoconsciéncia iluminista. Se possui inconvenientes, talvez ndo seja dificil percebermos que 0 maior de todos eles é o de assumir implicitamente as formas de pensamento dos iluministas, sua visto retros- pectiva, enquanto uma certa maneira de situar sua propria \sercdo e importincia no processo de constituico da mo- dermidade. ‘Nao tenhamos muitas ilusdes, porém. A segunda pers- pectiva possui riscos muito parecidos; acontece apenas que © seu sentido ¢ inverso. Somos nés, aqui ¢ agora, que subs- tituimos a visio iluminista pela nossa visio retrospectiva. Trata-se entio de um dilema? Sim, pois de certa man esse € 0 grande dilema do historiador. Somos hoje, de fato, de uma forma ou de outra, her- deiros do Iluminismo. E 0 somos em escala bem mais signi- ficativa do que muitos parecem dispostos a reconhecer ou assumir, pois, quer como estilo de pensamento, quet como realidade politica, 0 fato 6 que © Huminismo ainda vive. ‘Que realidade politica seré essa entéo? Bem, aquilo que temos hoje assemelha-se bem mais a uma espécie de mutagio.’Com efeito, da Mustragao politica enquanto pro- posta individualista de uma cidadania centrada na liber- dade e na propriedade como valores principais, 0 que nos estou? Da Ilustracdo filos6fica, racionalista e otimista quanto ao valor da ciéncia, centrada no principio da critica universal, 0 que ainda sobrevive? No plano politico restou-nos principalmente a vertente autoritaria do Iluminismo, sempre distante ¢ hostil & partici- aco popular, téo elitista hoje quanto o eram & sua época 0s nossos to familiares “déspotas esclarecidos”. De fato, como designar, na atualidade, sendo como manifestacdes stas”, as formas iluminadas de que se revestem tan- tas ditaduras e lideres carisméticos, tantas elites tecnocrd- ticas e tantos partidos que se proclamam, todos eles, donos exclusivos da verdade, ou seja, do que € melhor para todos? ‘No nivel intelectual, 0 Hluminismo converteu-se nesse modelo paradigmético da verdade tinica e indiscutivel, aci- ma de qualquer divida, que reconhecemos simplesmente pela palavra ciéncia®. A sua sombra protetora vicejam a tecnocracia ¢ a burocracia. Esse triunfo da racionalidade cientifica, por definigdo a-histérica, representa com certeza PHapenwas, J. Conhecimento e Interesse, Rie de Ianciro, Zshar, 1982. Bo a mais sélida e quase imbativel aquisicio do Iluminismo contemporaneo. Todavia, quem sabe se a percepgdo de tais mutacSes, através do conhetimento mais exato do proprio Huminis- ‘mo, no nos possbilitaré compreender também por que @ sue heranga € também motivo de tantas desconfiangas? E preciso, hoje, desconfiar de tais manifestacbes iluministas. 34 no podemos aceitar as posturas ¢ préticas iluministas na esfera politica e no campo intelectual. Desconfiamos muito, iremos ccm certeza desconfiar muito mais ainda, dos autoritarismos do poder e do saber. Sabemos que 0s salvadores “iluminados”, quer sejam eles individuais ou coletivos, nao salvam seno a si mesmos. Também temos consciéncia de que a utopia da salvagio da humanidade através da ciéncia cedeu lugar ao pesadelo da destruigao da humanidade por essa mesma ciéncia. Tal desencantamento que hoje muitos de nés experi- mentamos diante do Huminismo € dos iluministas de varia dos matizes existentes no mundo atual contrasta vivamente com os entusiasmos € a autoconfianca dos seus pais-fun- dadores — 08 “fil6sofos” do século XVIII europeu. Quem sabe talvez esteja nesse contraste um dos bons motivos para revermos esse /luminismo dos primeiros tempos. $6 assim poderemos avaliar com exatido as mudancas ¢, a0 tomar ‘mos consciéncia das distncias que existem entre eles e nds, teremos condigées para proceder a um sempre util ¢ neces- sétio inventdrio das diferencas. Cremos que isso importante e necessétio. Longe de ficarmos na contemplacdo facil de uma suposta heranca transmitida através dos elos da cadeia de um progresso ima~ sgindrio, & preciso reconhecer a realidade origindria do Ilu- minismo, a fim de apreendermos com maior clareza o seu vit a ser contradit6rio mas essencial & nossa autocompreensio. E por tudo isso, quem sabe, que vale a pena rever 0 Huminismo. 2 oO jogo das palavras: “Tluminismo” ou “Tlustracéo”? ‘A primeira vista, nossa indagagdo possui um certo sabor de preciosismo, nfio é mesmo? Afinal, que diferenca faz? Iuminismo € a palavra utilizada pela maioria. Iusira- edo, talvez mais correta, tem pouco trinsito. A hora e a vez dos diclonarios Em tais situagSes, € comum recorrermos aos diciond- Flos e enciclopédias para dirimir nossas diividas. Quem sabe se assim nao conseguiremos resolver a querela de uma vez por todas. Mas serd mesmo? ‘Vejamos alguns exemplos Hluminisme. Sm. 1. A mistica dos iluminados (5). 2. Flos. V. filosofia das luzes. Filosofia das luzes. Files. Movimento filoséfico do séc. XVIll que se caracterizava pela confianca no progresso e na raz, pelo desafio & tradig#o © & auto: ridade ¢ pelo incentive & liberdads de pensamento. (Sin. Huminismo, Hustracéo. Tb. se diz 0 alemao Aufkléeung ¢ 0 inglés Enlightenment.) (Novo picionAnio Aunétio) rd Huminisme, Sm. Seita ou doutrina religiosa ou filosética do século XVIII que se fundava ne crenga de uma inspire: edo sobrenstural: Néo surpreenda esta, se pode dizer-se, mitologia experimental, historicamente vinculével ao flumi- hismo de Peracelso. (Ric. Jorge, Serm. de um Leigo, p. 274, ed, 1925.) (Diciowénio CONTEMPORANEO DA LINGUA ‘PORTUOUESA CALDAS AULETE) lluminisme. Sm. Nome com que se designa o movimento filoséfico-intelectual que floresceu no séc. XVill na Europa fe que, embasado numa postura racionalista, realizou 0 exe me critico das instituicées absolutistes @ eclesiésticas, combatendo as tradigSes feudais ¢ religlosas, opondo-se @ qualquer dourrina revelada, ¢ acreditando numa ordem re- ional do mundo que seria perceptivel pelo progresso da humanidade; llustragdo. (De lluminer) (Dictoxén1o ILUSTRADO DA LINGUA PORTUGUESA DA ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS) ‘uminismo. S.m. Doutrina sustentada por diversas seltas, segundo @ qual os seus mentores eram lluminados sobrena turelmente for Deus. Doutrina filosética do século XVII (sic) que 86 edmitla a luz, o lumen da razéo humans, De IHumin (er) + ismo, (GRANDE DICIONARIO. ETIMOLScICO-PROS6DICO DA LINGUA PORTUGUESA, por Francisco da Silveira Bueno) Tal como jé foi indicado, sdo apenas alguns exemplos, tomados ao acaso. Longe de nossa intengdo supor que tais verbetes sejam os melhores ou mais merecedores de crédito. Deixemos isso aos especialistas. Basta-nos, por ora, per- ceber o seguinte: 1.) a tendéncia a sinonimia: Hluminis- ‘mo / Hustracdo;2.°) a referéncia comum a um “movimento filos6fico do século XVHI"; 3.°) a indicagdo, salvo no ter- ceiro verbete, de que a palavra se refere também a uma un certa “mfstica” ou “doutrina”, cujos adeptos se diziam “ilu- minados”, podendo-se notar que, no segundo verbete, de- fine-se 0 filoséfico em funcdo do sobrenatural. ‘Avangamos um pouco, & verdade, pois ficamos saben- do que existe, no caso do significante Muminismo, uma polissemia interessante ¢ até certo ponto contraditéria: de- notando “Iuzes”, ele conota racional ou razdo e irracional ou sobrenatural, identificando ou opondo, conforme o caso, “seita religiosa” a “seita” ou “doutrina filoséfica”. Sera que Iustracdo esté isenta de ambigilidades? Vejamos (na mesma ordem das fontes utilizadas) : lustragao. (Do Ist, ilustratione) Sf. 1. Ato ou efelto de ilustrar(-se). 2. Conjunto de conhecimentos; saber: homem de notdvel /lustraedo. 3. Imagem ou figura de qualquer natu- reza com que se orna ou elucida o texto de livros, folhetos @ periddicos. 4 Filos. V. “fllosofia das luzes". lustragée. S.f. Agdo de ilustrar.//Esclarecimento, explica- 80, comentério,//Renome, realce, nobreza,//Grande cépia de conhacimentos (...): Este aseritar denuncia multa ts. tragdo... (Latino Goetho, Elogios académicos. p. 119, ed. 1873) ... Desenho gravado € intercalado no texto de um livro,//Obra literdria cujo texto 6 ornado de gravuras ou desenhos, como a ilustracio, semanério inglés, francés ete,//ilustracdo divine, Inspiragdo.//F. lat. illustratio. IMustragao. $.f, Ato ou efeito de ilustrar; conjunto de conhe- ‘clmentos; saber; renome; reslce; nobreza; esclarecimento; exolicagao: comentario; personagem ilustre por seu saber: Imagem, desenho ou gravura que acompanha, jlustrando-o, © texto de obra oserita.//(Hist.) Huminismo (Do lat. illus tratio, onis) Hustea Sf. Aculturagéo, educagdo Intelectusl, erudigéo. Explicegéo, explenaggo de um texto, problema, doutrina Lat. tard. illustrationem (Lactancio). 2 Teremos avangado mais? Parece-nos que nfo. Este ‘outro significante, 2 nivel denotativo, possui significados bastante gerais ¢ conhecidos, mas nenhum deles tem algo fa ver especificemente com o nosso dilema. Apenas em seu nivel conotativo reencontramos © tema que nos interessa, mas se trata ai da mesma sinon{mia j4 detectada: Justra- eo / Hurminisino. ‘Tratar-se-G, entdo, de uma simples questio de prefe- réncia? Fica a critério de cada um utilizar uma ou outra palavra? Decerto que sim, se nos ativermos aos dicionérios e enciclopédias. A vez dos historiadores E os historiadores? Bem, para estes as dividas tam- bém existem. ‘Num longo ¢ excelente artigo de Miguel Baptista Pe- reira, encont-amos abundantes indicagées a respeito do que deveria ser uma “anélise rigorosa da dificil hist6ria do concelio de fluminismo desde 0 comeco do século XVIII” * ¢ a interpretacio da sua esséncia, ou seja, sua discusséo entre 1780 ¢ 180%. Existe de fato uma polissemia do termo Huminismo no século XVHE e corre-se hoje 0 pe- rigo de redugdo deste conceit a uma formula vazia, capaz de ab bergar os pr6prios preconceitos atuais, sem culdar da dife- renga histérica e do horlzonte préprio, que 86 @ Investigacéo "PEREIRA, Miguel Baptista, Huminismo ¢ secularizacio. Revista de Historia das Idéas, O margués de Pombal o seu tempo, Coim- ba, Institute de Teoria e Historia das Idéias, 4(2) :439 et seqs. 1982. 2StuKe, H. Aufilarung, 1972, apud PEREIRA, M. B., op. cil, p. 440, nota 6. SScuNeWwers, W. Die wahre Aufkldrung, Munique, 1974, apud Pereira, M. B, op. cit, p. 441, nota 7. 8 hermenéutica, concreta @ temporelmente fiel do séoulo XVItl, em cada espaco cultural, nos pode fornecer (grifos snossos) ¢ Acontece que, na realidade, o problema do Hluminismo encerta nada menos que trés ordens de questbes estrita- mente imbricadas entre si: a questo das palavras, a ques~ tho dos sentidos ou significados dessas palavras e, por ilti- mo, a metdfora das “Luzes”. As palavras — Na literatura sobre 0 Huminismo, & muito comum considerarem-se como coetineos os substanti- vos lumiéres, Aufkldrung, enlightenment, lumi, ilustracién, iluminismo, assim como também os verbos éclairer, aufkli- ren, to enlighten, ilustrar, illuminare, iluminar. Poucos, na verdade, séo aqueles que se dio conta de que varias dessas, palavras so criagées posteriores a0 proprio fendmeno do Tuminismo, produzidas que foram ao longo do século XIX, sendo por conseguinte estranhas ao vocabulirio do sete- ‘centos. Os significados — j& no proprio século XVIII, varia vam muito os significados que assumiam, em cada espaco cultural, os termos utitizados para traduzir a feitura espe- cifica que af era feita das idéias contidas em palavras expresses como lumidres, Aufkldrung € to enlighten, A titulo de exemplo, basta-nos comparar, resumida- mente, os varios sentidos de iunriéres, Aujkldrung © to enlighten. No dinbito cultural francés, lumieres (“Luzes”) 6 ao mesmo tempo uma palavra de ordem e um estado de espirito que expressa a nogdo de um movimento inte- Iectual com o qual os “filésofos” e “homens de letras” fran- ceses sentem-se solidérios, pois so os seus protaganistas. Para esses intelectuais o tema das “Luzes” implica uma filosofia da histéria e é também um ato de fé. ‘Penziza, M. B, op. cit, p. 440, “ As “Luzes" se identificam, no sentido filoséfico do termo, com 0 desenvolvimento, a partir de meados do século, de um pensamente simultaneamente empirista © racionalista cujos antecedentes so diversos, mas cuja forma positiva estava muito distenciade do aspecto de doutrina admitida or um grupo numeroso de edeptos. Cada um dos partici. pantes do movimento das “Luzes” julga dar uma contribui- (edo decisive; daf ndo falterem os contrastes e 3s contra digdes ®, No caso do ambiente cultural alemdo, Aufklirung significa esclarecimento, descobrimento, reconhecimento; seu sentido € mais dindmico e vem associado a0 modelo meteorol6gico do tempo sereno e limpido, ou do tempo que € ow se toma claro. Transferide para o dominio inte- lectual, ao longo do século XVIII, passa a significar o escla- recimento racional. A sensibilidade intelectual germanica setecentista nfo pode ser dissociada da experiéncia poli- tica ligada as praticas dos “déspotas esclarecidos”, especial- mente Frederico II ¢ José I, dai possuir talvez mais pon- tos de contato com as Lumi italianas e até mesmo com a Tlustracién espanhola a Iustragdo portuguesa * Na Inglaterra e Escécia, onde as condigées politicas © sociais ja traduziam na prética uma boa parte daquelas idéias © propostas que constitufam ainda objetos de de- sejo ou de projeto no contexto das “Luzes”, to enlighten possui um sentido mais dirigido para as quest6es de natu- reza moral ¢ econémica: f@ Inglaterra liberal, pals de Lock ¢ de Newton, 6 0 pais, mais esclarecido da Europa; ninguém se apaixona pela tole- FRANCASTEL, P. Lesthétique des Lumiéres, In: Uroris et institu tions au XVJitw siecle, Paris, Mouton, 1963. p. 34 SFALCON, F. 5. C. A época pombalina, Sao Paulo, Atica, 1982. p.354-8, 5 Hancla religiosa, pelas lIberdades politicas © intelectuals quando J se possul tudo Isso. O problema do vocabuldrio das “Luzes” é ainda uma questio em aberto, Nao basta estudar cada palavra em si mesma; é preciso situé-la filolégica ¢ historicamente, na- cional e internacionalmente. A rede de significagdes que constituem 0 seu campo semdntico nao & mera reprodugio ou reflexo de uma realidade histérica, mas é uma reagéo a essa realidade. Entre uma coisa e outra hé um espaco mental, maior ou menor, tendente A contestagéo da propria realidade. Tal é 0 caso francés, por isso mesmo conside- rado “cléssico”: distancia e reagdo convertem-se af em cri- tica violenta ao existente. A metdfora das “Luzes" — O ponto de partida da idéia de “Luzes” é a multissecular metdfora da luz: a oposi- cdo entre luzes e sombras, entre o dia ¢ a noite, cujas gens remontam as épocas mais remotas da humanidade, expressa nos cultos solares e em seus variados mitos. Ao longo dos séeulos, muitos foram os valores ¢ temas asso- ciados quer & noite, quer ao dia, sempre com a tendéncia & valorizacdo positiva do dia ¢ da luz. Quer na filosofia, com o platonismo e o neoplatonis- mo, quer na esfera religiosa, com 0 judaismo e o cristianis- mo, a luz é sempre imagem ou simbolo que significa ver- dade ou conhecimento verdadeiro. A iluminacdo mistica crista, baseada na revelacdo divina, foi relida ¢ secularizada pelo pensamento das “Luzes”: ori- Elenos agora num século que iré se tornar cada vez mais esclarecido, @ numa tal escala que todos 0s séculos ante- ‘Gusvowr, G. Les principes de ta pensée au sidcle des Lumisres Paris, Payot, 1971. p. 296. 16 Flores nada mals serio do que trevas se comparedos @ ele’, Tal apropriacdo da metéfora das “Luzes” pelos ilumi- nistas, opondo as “Luzes” as “Trevas” das supersticdes, dos eros e da ignoréncia dos séculos precedentes, possufa tam- ‘bém seus riscos. Pretendendo veicular novos sentidos atra- vés da antiga metéfora, os “filésofos” ndo podiam impedir que, entretanto, para muitos, o sentido tradicional se man- tivesse vivo. Dal, @ necessidade de distingulr, nos textos de Hluminismo, © sentido geral © neutro de luz e'esclarecimento da razio, @ 0 sentido tradicional, filoséfico @ teolégico, de lluminacao ‘u de intelecto agente, que até por opositores do Hluminis- mo poderiam ser perfilhados, do sentido tipicamente epocal de luz da razio, que marca esse perfodo hiistérico do pen- samento europeuY, A verdade € que coexistem, ao longo do século XVII, dos iluminismos, sendo anacrénica a pseudotransparéncia de sentido que se apresenta como “evidente” em muitos dos textos atuais sobre o assunto, Alls, tal fato j fora por nés percebido quando das andancas pelos dicionérios, casio em que observamos haver uma profunda diferenca entre o sentido religioso da iluminacdo mistica e sentido secular da iluminacdo racional. Desfaz-se, assim, a suposta univocidade do conceito de Iluminismo e com isso desmorona-se também a pretensio que consiste em identificar a época com 0 movimento inte- lectual. Enfim, do mesmo modo fica demonstrada a falécia SBaxie, Pierre, Nowvelles de la République des Lettres, ave. 1684, article 11. S PEREIRA, M. B., op. cit, p. 444; ef, Guspone, G., op. cit, p. 297 =300 e 304.6, - a de supormos, com relagdo ao préprio Muminismo, uma uni- dade de principios e uma autoconsciéncia que no corres- pondem, de maneira alguma, A pluralidade inerente as va- riadas tomadas de consciéncia do movimento ifustrado. Afinal, a realidade do setecentos € muito mais rica: ‘As toorlas modernas do Inconsciente evidenciaram o ca réter irredutivel das resisténclas que se opdem & tese de uma exposi¢So universal das realidades humanas. Desde 0 ‘século XVIll, @ dogmética do recalcamento posta em pratica pola afirmagao das *Luzes" suscits, sob diversas formes, © retorno do recalcado. O século das “Luzes” & também o século do tiuminismo, que afirma a prioridade da luz inte- lor sobre a cleridade ilusoria do Intelectualismo, verdadelro poder de caguidao ™. Apés tantas idas e vindas, depois de todo nosso em- penho em tentar perceber com mais preciso quais sio efetivamente as “coisas” que as palavras significam, € pos- sivel afirmarmos algo acerca do Iluminismo, no século xXVIP Sabemos agora que Huminismo tanto pode significar a doutrina dos que acreditam na “iluminacdo interior” ov mistica, a qual para outros constitufa uma espécie de ma- nifestagdo “irracionalista”, quanto, justo 0 oposto, Huni- nismo & sinénimo de “filosofia das luzes”, isto é, da cha- mada “iluminacdo racional”. Lembremos, s6 para exem- plificar, que, no setecentos Iuso, os textos utilizam muito “luzes” ¢ “iluminados” quando se referem as idéias que chamamos de iluministas. Todavia, dependendo do con- texto, “iluminados” eram também os misticos que, em Espanha, so conhecidos como “alumbrados”. HA uma relagdo dialética © histérica entre esses dois sentidos que cooxistem, no setecentos, para a idéia de “Lu- 2 Gusporr, G., op. cit, p. 308. zes” ou Iuminismo. O ponto de partida foi o sentido reli- gioso e mfstico da idéia de iluminagao. $6 aos poucos é que tal sentido foi sendo redefinido a partir de uma leitura racionalista dessa idéia ¢, como resultado, “Luzes” passou a ter, também, uma significacZo antagénica em relacdo Aquela que era originalmente a sua. Em conseqiiéncia dessa identificacao entre “Luzes” e razio a iluminacdo racional substituiu a iluminagdo mistica dos “alumbrados” na cons- citneia dos “filésofos”. A ambigitidade & a marca da trajetdria da idéia de “Luzes” ao longo do setecentos. Nada melhor, talvez, do que 0 ambiente cultural alemao para apreender os varios matizes dessa ambigiiidade, dadas as especificidades politi- cas, s6cio-econdmicas e religiosas da Alemanha (ou das Alemanhas) de entéo. Como demonstracdo do que afirmamos, so significa- tivas as respostas dadas & pergunta: “Was ist Aufklarung?” (Que é 0 Tuminismo?). Essa indagacéo, formulada por J. F. Zoellner, em artigo publicado no periédico Berlinische Monatsschritt, em dezembro de 1783, recebeu numerosas respostas, destacando-se, dentre elas, a0 menos como as mais famosas, aquelas que foram escritas por Moses Men- delssohn © Emmanuel Kant, em 1784, A resposta de Kant explicita, como principio defi- nidor da Aufkldrung, 0 pensar por si mesmo e a ousadia de fazt-lo: A1Em torno dos editores dessa revista, Johann E. Biester © F. Gedike, que havia sido fundada em 1783, logo se reuni um grupo de intelectuais interessados nos temas politicos, juridicos, teol6gicos, filoséticos, pedagégicos e médicos, os quais logo ctiaram a "So- ciedade da Quarta-Feira”, também chamada de “Sociedade dos ‘Amigos da Aufklirung”, com o objetivo de promover “a investig io livre da verdade de qualquer espécie"; cf. PeReima, M. B., op. cit, p. 462-3. B A saida do homem da sua menoridade, pela qual ele 6 responsdvel. Menoridade, isto &, incapacidade de servir-se do prdprio entendimento sem a orlentacdo de outrem, me- noridade pele qual ele é o responsével porque a causa dessa Incapacidade ndo esté numa deficiéncla do seu entendi- mento, e sim na falta de deciséo e de coragem para dele sorvir-se sem a direcdo de outrem. Sapere Aude! Tem co- ragem de servi-te do teu proprio entendimento! Els a di- visa das “Luzes” *2 Concluindo, acreditamos haver conseguido chamar a atengao do leitor para 0 fato de que, para os iluministas, a despeito das miiltiplas significagdes e até mesmo das ambi- gilidades entao existentes com relagdo as nogdes que entao tentavam dar conta da idéia de “Luzes”, havia um denomi- nador comum: a consciéncia de que no se tratava de um acontécimento, nem apenas de um movimento intelectual, espécie de modismo de uma certa época, mas, sim, de um processo que apenas estava comecando — 0 processo de esclarecimento do homem. Assim, no haveria propriamente uma época de Auf- Kldérung, mas um continuo entiquecimento, traduzido pela idéia de progresso, cuja esséncia é a capacidade de um né- mero cada vez maior de homens “pensarem por si mes- mos”? 12 Penema, M. B., op. cit, p. 467-70. 35 Guspoar, G., op. cit,” p. 304-5. quantitativas, Venturi mostra-se cético e irénico a tal res- peito, no poupando criticas as histérias sociais da cultura que partem da pretensfo de uma histéria total — “a coisa mais perigosa que existe” —, e da visio da sociedade como de uma estrutura global capaz de revelar sua l6gica interna, isto é, as leis de sua prépria existéncia, utilizando um ins- trumento interpretativo adequado a tal fim: seja a luta de classes (0 marxismo), a quantificacdo ou o estruturalismo, Em assim procedendo, produz-se apenas filosofia da his- t6ria® ‘Nao tenhamos muitas ilusdes. Qualquer um desses estilos que definem a mentalidade ilustrada eram apenas finas peliculas superpostas & espessura de um corpo social que, na maioria dos casos, sequer se dava conta dessa existéncia superficial. Os cidadaos da autoproclamacio da “Republica das Letras” ndo eram sendo parcela infima dos homens de entao, Eram a minoria da minoria dos instruidos, e essa era, de fato, “a verdadeira fronteira das ‘Luzes'” ", 38 Analisando os trabalhos franceses dirigides por A. Duproat, ow elaborados por G, Bolléme, J. Ehrard, Frangois Furet, D. Roche, © J. Roger sobre Livro e sociedade no século XVIII, Venturi ironiza (5 respectivos realtados: “.., estudando as idéias quando ji tormaram estruturas mentais, sem apreender-Ihes © momento cria- tivo e ativo, 0 resultado hisioriogritico (desses trabalhos) € 0 de reafirmar, com grande luxo de méiodes novos, aquilo que ja era sabido"; of. Introduciio, cit, p. 24-5 1 HaMpson, N., op. cil, p. 72; CHAUNY, Pop. cit, pe 71 4 Secularizacao e racionalismo Por outro lado, no cere do Iluminismo aconteceu © Impor- tante fendmeno da secularizaréo ou nova forma de liber- dade @ autonamia, que determinaré 0 mundo e o modo de ‘ser-no-mundo do homem moderna. Por Isso, uma interpre tagio do luminismo 6, por esséncla, uma leltura da secu larizagao* A falsa antitese Quando, em 1975, em livro de nossa autoria®, abor- damos o problema da secularizacio, situamos esse conceito no interior de um proceso caracterizado pela “passage da transcendéncia & imanéncia, da verticalidade & horizon- talidade”, articulando-o aos desenvolvimentos do individua lismo e do racionalismo ¢ ainda, mais amplamente, as transformagdes que se verificaram, durante 2 Idade Mo- derna, em diferentes planos: © politico, 0 econdmico © 0 4 Peazina, M. B., op. cit, p. 443. 2 FALCON, F.1. C. A epoca pombalina, cap. b 3a ideolégico. Todo esse conjunto, por nés denominado de “problemética européia”, ao mesmo tempo que privilegiava de certo modo a questo da secularizagio, oferecia a res- peito desta ditima um certo tipo de concepcao pautada pela visio dicotémica que tende a opor, de forma radical, razio e religiéo. Cremos que, hoje, jé é tempo de matizar um pouco as coisas, ‘A passagem @ imanéncia, cada vez mais associada as idéias de “progresso” ¢ de “civilizagdo”, como o assinala Gusdorf, esté presente nas sucessivas mudancas que entdo se operam quanto a maneira de definir as relagdes entre 0 homem ¢ a netureza, cuja contrapartida se acha na luta da Igreja Catélica contra os avangos de um “novo espirito cientifico”, que é 0 verdadeiro espftito da ciéncia moder- nna, expresso na concepeo matemético-natural do mundo. Contra essa possibilidade de uma outra verdade, distinta, auténoma e imanente, os guardides da verdade revelada assestaram suas baterias. Que o digam Giordano Bruno ¢ Galitex Galilei! A afirmacdo da imanéncia, tipica do racionalismo mo- demo, privilegiando a dialética homem-natureza, colocou em evidéncia 0 paradigma naturalista, fazendo da idéia de uma natureza auto-regulada, detentora de sua propria lega- lade, a premissa necessdria de todo conhecimento cienti fico. Este racionatismo naturalista constituiria, no séeulo XVIH, um dos pressupostos basicos do fluminismo. A secularizagao significou, até certo ponto, a esséncia do processo de passagem da transcendéncia a imanéncia no campo das teorias © priticas politicas, econdmicas e sociais em geral. Neste sentido, a secularizactio pode ser idemtifi- cada como a emancipacio de cada um dos campos parti- culares do conhecimento, especialmente daqueles cujo obje- to 6 0 préprio homem, da tutela teolégica metal 33 Ocorre no dominio da cléncia do espltito © mesmo pro- cesso de secularlzagée com que deparamos antes no do- minio da observagio e do conhecimento da natureza /~ A visio tradicional, de natureza finalista ou teleolé: gica por definicdo, era tipica de um universo mental mar- cado pela Revelacao. Pouco a pouco essa visio perdeu terreno diante do avanco da visio imanentista, naturalista e antropocéntrica. Ao longo desse embate produziu-se uma nova concepedo do mundo e do homem, essencialmente ter- rena e humana, pautada pelos pressupostos da imanéncia, da racionalidade e da relacfo homem-natureza como reali dade essencial. Um dos aspectos mais conhecidos e evidentes da secu- larizagao foi o desenvolvimento da critica as crencas e prd- ticas religiosas, em nome da razio e da liberdade de pen- samento. J em 1713 Anthony Collins, no seu Discourse of free-thinking, defendia a liberdade de pensamento e, referindo-se as interpretagdes da Biblia e 4 multiplicidade de opinides em matéria de religiio, afirmava que a ra deve ser 0 unico critério valido, de acordo com a propria vontade divina, O livre-pensar, com tendéneia ao deismo, caracteriza inicialmente os meios culturais angio-holandeses, difundin- do-se, a partir dali, durante o setecentos e assumindo, prin- cipalmente em Franca, uma forte conotacio anticlerical, que Voltaire muito bem simboliza. A tradigdo desse radi- calismo anticlerical levou as leituras da secularizagao em bases antitéticas: razdo versus religido, ow natural versus sobrenatural +, Contra essa vistio algo maniqueista da se~ cularizagdo, presente nos circulos magdnicos, € necessério 8 Cassmen, Ernst. Filosofia de ta Hustracidn. México, Fondo de Caltura Econdmica, 1950. p. 181 SEALCON, F, J. C, A época pombalina, p. 9, nota 36, € p. 10, nota 37. PERUINDES, 34 contrapormes a realidade histérica de uma secularizagdo que esté longe de ter sido um processo linear ow homogé- neo. Seria mais exato concebermos ndo uma, mas vdrias secularizacées, cada qual com seu préprio ritmo, formando um conjunto diacrénico e desigual, nao raro contraditério. Dentro de tal perspectiva, o essencial € nao estabele~ cermos uma total oposicZo ou incompatibilidade entre a secularizaco € 0 cristianismo, pois: Nas raizes histéricas do Jluminismo hé um crescente pro: cesso de secularizagéo, que ndo 6 apenas um produto da Reforma nem uma expropriagéo de bens culturais extorqul- dos de seu legitimo proprietério, mas uma profunda mu- danga histérica nascida sob a influéncia direta do cristia- iso ®. © anticiericalismo, tipico das “Luzes” francesas, nao 6 a regra no restante da Europa. O reconhecimento da diferenca como raiz da autonomia do homem e do mundo faz parte também de um processo interior & prdpria Igreja. Com freqiiéneia, a iluminacao racional, Jonge de ser enca- rada como oposta & iluminacao religiosa, foi entendida como uma espécie de expansio ou ampliacao desta dltima. “0 caminho do racionalismo moderno, historicamente, ndo 60 da rejeigio do cristianismo mas, muito pelo contréti 0 de seu alargamento.” Do sécalo XVI ao século XVII, desenvolveram-se duas linhas de rejlexdo tendentes, em ambos os casos, @ reconhecer a realidade secular. 4 primeira, no plano da politica, tem seus marcos mais significativos em Maquiavel, Bodin, Hobbes ¢ Locke, mas é preciso nao esquecer a im- portincia de certos textos de Tomas de Aquino (sée. XIII) , sobretudo, de Roberto Belarmino (sée. XVD, nos quais desponta uma visdo cristd da secularizacdo cuja esséncia & S PEREIRA, M.B, op. cit, p. 484. 38 o reconhecimento da autonomia ¢ da legitimidade da esfera prépria do entendimento humano, assim como da realidade intramundana do homem e da vida, ou seja, do natural *. ‘A segunda linha, muito vinculada, as vicissitudes. in- glesis do seiscentos, tem em Herbert de Cherbury (1588- 1648) e nos piaténicos de Cambridge, como Henry More, os expoentes de uma tendéncia que busca conciliar a cién~ Gia com os valores espirituais, pois, para cles. ¢ muitos outros, “a razio é a luz, 0 candelabro. do Senhior”. Pensa- vam, assim, que efa possivel conciliar razdo e Revelacdo, fazendo da Revelacio presente na Biblia apenas © comeco histérico de uma revelacdo a set adquirida por intermédio da razio. Foi esse também o grande objetivo de B. Spinoza e, bem mais tarde, ele estard presente em Lessing. Se, no plano do pensamento politico, as especulacdes sobre as origens da sociedade e do Estado ¢ sobre a natu- reza do poder do principe e dos direitos dos siditos leva- vam a uma espécie de compromisso entre a esfera da poli- tica, propria do Estado, ¢ a esfera da liberdade de cons- cigncia, propria do stidito, afirmando entdo 0 bindmio “pa- blico” (Estado) versus “privado” (individuo), no plano do pensamento religioso a tendéncia foi a conciliagiio entre: fa luz natural da razio © a luz sobrenatural da revelacio hist6rica: “A luz natural também é uma palavra divina, Tal ‘a a esséncia das reflexGes de Pierre Bayle. Outra no se~ ria, alids, a posigio de Kant, para quem 0 dictamen da cons- cigncia 6 a propria palavra de Deus. A razio iluminista — a iluminagao secular 34 vimos que a visio de mundo do Tuminismo, 20 retomar a antiga metdfora das luzes que se opdem as som- Fd, ibid., p. 488-9. 36 bras, interpretou-a no interior de um contexto marcado pelo proceso de secularizagéo, devendo-se entender este “ltimo nos termos do que acabamos de expor linhas acima: ~vrffata-se da “iluminago racional” a qual, para boa parte dos pensado:es de entio, néo se opde necessariamente & “uz divina”. Entre 0 racionalismo dos grandes filésofos do século XVIT (Descartes, Spinoza, Leibniz, entre outros) 0 ra- cionalismo das “Luzes” hé continuidades ¢ diferencas im- portantes, Para os iluministas a razdo é alguma coisa 20 ‘mesmo tempo mais modesta ¢ também mais ambiciosa do que © era para os grandes construtores de sistemas filo- s6ficos do século anterior. Mais modesta porque os “fil6- sofos” ja nao acreditam numa razio definida como soma- tério ou sintese de idéias inatas reveladoras da esséncia absoluta do existente; mais ambiciosa porque, para os ho- mens do Iluminismo, a razao esté longe de ser uma espécie de heranga — ela é, sim, uma aquisicéo possivel. Portanto, em lugar de constituir uma espécie de tesouro, ou “banco de dados”, como dirfamos hoje, a razo € uma forca inte- Jectual original cuja funcao maior é a de guiar o intelecto no caminho que o leva a verdade*, Longe de ser um conjunto de conhecimentos a priori sobre principios ou verdades preexistentes, a razdo ilumi- nnista 6 concebida como energia ou forga intelectual, s6 com- preensivel © perceptivel através da pritica, isto & do que 6 capaz de fazer € produzir. Principio de toda verdade, auténoma por definicio, & razéo iluminista se ope a tudo que 6 irracional e se ceulta sob as denominagées, vagas de “‘autoridade”, “tra- digo” ¢ “revelagio". Tampouco essa razdo é escrava dos 7 Cassiner, E., 0p. cit, p. 13, 7 dados empiricos, daquilo que chamamos de “fatos", uma vez que a verdade jamais é diretamente “dada” por qual- quer tipo de “evidéncia”. Para o pensamento iluminista, a razio é trabalho, trabalho do intelecto, cujas ferramentas S40 a observacdo ¢ a experimentagio, A razdo é instrumen- to de mudanga: © primeiro passo é mudar o prépric modo de pensar. Pensar racionalmente, filosoficamente, isto é, pensar diferente. Que significa esse novo pensar? Basicamente, trata-se de criticar, duvidar e, se necessério, demolir. A ra- zo define-se portanto como critica de um pensamento “tra- dicional” — de suas formas e contetidos. Nao ha mais espa- 0s proibidos & razdo. Tudo deve ser submetido ao espirito critico, Afinal, & através da critica do existente que se po- der produzir 0 ovo e 0 verdadeiro. Os preconceitos, as superstigdes, os fdolos, no sentido de Bacon, constituem barreiras ou véus que ocultam/encobrem a verdade, impe- dindo 0 caminho até ela, A verdade é um mais além, algo a desvendar e/ou a descobrir. Contra a ideniagia (desculpem-nos 0 anacronismo) os iluministas empunham as armas da critica racionalista. © movimento mental das “Luzes” repousa no pressu- posto do avango constante, historicamente necessério, de uma racionalidade que pouco @ pouco “ilumina” as som- bras do erro e da ignordncia, A razdo ilwminista apresenta- -se aos seus adeptos como um instrumental critico que se dirige a cada individuo naquilo que possti de mais intimo ¢ essencial — sua consciéncia racional de ser humano. Mais que convencer ou persuadir, com argumentos racio- nais, trata-se de trazer A tona, em cada um, essa capacidade ou essa esséneia racional, comum a todes: pensar por si mesmo, “sait da menoridade para 2 majoridade”, tal € 2 palavra de ordem. A razdo iluminista instaura em detinitivo o “reino da critica” * e, a0 fazé-lo, no & apenas o Estado absolutista que the serve de alvo. E a sociedade existente como um todo que deve sex reconstniida. Identificando no cristia- nismo a verdadeira esséncia da sociedade contemporanea, os iluministas promovem a critica impiedosa dessa cidade de Deus, para em seu lugar edificarem a cidade dos homens, natural, secular®, ou, quem sabe, a cidade celestial dos filésofos ®, Se tudo pode e deve ser submetido ao tribunal da cri- tica racional, por que nao criticar também as prOprias con- cepgdes do racionalismo iluminista? Significativamente, tal critica, empreendida por Kant, j& anuncia o crepiisculo do Tuminismo. Mas, até chegarem a essa critica, foi possivel aos iluministas esbanjarem suas certezas e difundirem seu otimismo quanto a felicidade possivel do género humano sua f€ no progresso. © otimismo racionalista dos “filésofos” expressa a convergéncie de duas vertentes de pensamento complemen- tares. Por um lado, sua autoconsciéneia; por outro, a admiracdo, a quase embriaguez com que se debrucam sobre (0 modelo fisico-matematico. A autoconsciéncia iluminista contrapde seus préprios “avangos” 20 “obscurantismo” das pocas anteriores. Sua visio peculier da historia reforca-Ihe as conviccdes de su- perioridade intelectual. Quando muito, reconhecendo-se como “modernos”, jé que os “antigos” estiveram mergu- Ihados em trevas, admitem os “filésofos” a importancia daqueles precursores — movimentos ¢ homens — que, em determinados momentos — como no Renascimento ¢ no 8 Kostuteck, Reinhardt. Critica illuminista e erisé della societa bor- ghese. Bologna, I Mulino, 1972. 9 Hazan, Pop. cit, 1. wBecxen, Call. The heavenly city in the philosophy of the 18th century. Yale University Press, 1959, 38 século XVII —, fizeram fulgir os primeiros clardes de ra- cionalidade, contestando crengas ¢ valores, afirmando no- vos prinefpios de conhecimento, sendo por isso mesmo per- seguidos, incompreendidos e quase sempre esmagados pela iniolerdncia, cujo modelo perfeito e acabado era represen- tado pelo Santo Oficio. J& 0 modelo fisico-matematico € a demonstracdo cien- tifica da racionalidade do universo ¢ constitui a garantia de que existe uma identidade essencial entre o sujeito e 0 objeto do conhecimento: a racionalidade ¢ imanente a0 mundo € ao homem. Deriva dat 0 ofimismo quanto as pos- sibilidades da razio humana — ela pode aprender, reco- nhecendo-se, a razao universal. Daf as conseqiiéncias ba- sicas: existem leis que regem o existente, tais leis séo ra- cionais, logo, acessiveis & razdo humana. O homem pode conhecer as leis que govermam o mundo material ¢ as proprias sociedades que ele criou, logo, conhecendo-se tais, leis € possivel construir uma sociedade adequada 2 clas © que, dada a natureza racional do préprio homem, serd também a melhor sociedade possivel para esse homem. © modelo de racionalidade tipico do pensamento ilu- minista é aquele que o grande avanco das ciéncias da na- tureza, de Galilew a Newton, havia fixado como verdade indiscutivel. Os progressos da matematice ¢ da fisica ali estavam, diante dos “fildsofos”, a demonstrar a verdade in- sofismavel da racionalidade do universo. Existem “leis” a0 mesmo tempo racionais, naturais e universais. Se assim € no mundo da natureza, por que ndo o deveria ser tam- bém no mundo dos homens? Se a razdo que a tudo governa 6 a mesma, por que ndo deveriam estar também a cla sub- metidas as instituigGes sociais? Eis, portanto, a grande tarefa do Ihuminismo: fazer o balango ¢ a divulgagdo dos enormes progressos ja alcancados pela razio tedric e pré- tica (as ciéncias e as téenicas) ¢ empreender a investigacio “ a das leis que dizem respeito diretamente 20 homem — in vidual © social, © paradigma fisico-matemdtico, entéo no seu apogeu, levou o racionalismo iluminista & naturalizacéo do homem, isto €, da sociedade e da cultura. As instituigSes humanas entdo existentes apareciam & razdo iluminista como cria- (qBes irracionsis, incapazes de resistirem por mais tempo aos golpes da critica racional, Cabe a esta dltima desvendar a inadequagio de tais instituicSes & natureza racional do homem, Nao é, portanto, de causar espanto 0 otimismo iluminista, Ele resulta, naturalmente, da {€ que tém os fil6sofos no poder da razo e na verdade da ciéncia — uma nova religiéo enfim, uma religiéo secular, cujo deus é a razio e onde a razio é Deus. As avaliagSes do pensamento ifuminista constantes da maioria das histérias da filosofia so reticentes ou franca mente negativas. Os “fil6sofos” parecem haver criado pouco e pecado pela falta de originalidade ". & como se, num certo sentido, sua capacidade criadora houvesse sido eclipsada pela atividade critica, A tal respeito, Cassirer observa: © Huminismo criou realmente uma forma de pensamento que era original em sua totalidade, pois s6 no que diz res- peito 20 conteddo ela continuou na dependéncia des elucu- bragBes dos séculos precedentes 1. ‘© pensamento do Huminismo pode ser avaliado tanto negativa quanto positivamente, pelo que negou e criticou 3 Cumvatien, J. Hitire de Jo pensée — 3: ta pensée moderne de Descartes Kent Pars, Flammarion, 1961. pr ad et seqes Bnasttn, E. Hisore dela philosophic 2; La pliosopie modefng Fadi Davtetame Sele Pais PUr. 190, Cutracre itdria da Mowofia "= 4:0 liuminimo.o' seul XVIIL Rio Janeiro, Zahar, 1974, * Gaines, E, op city p. 13 € pelo que construiu. Sua especificidade reside ndo tanto em suas doutrinas, quanto na forma que imprimiu & ativi- dade de criticar, duvidar ¢ demolir, mas também de cons- trai. Distanciando-se do “espirito do sistema” que predo- minara no século anterior, mas ndo do “espirito sisteméti- co”, 05 “filésofos” tentaram quase sempre reconhecer os métitos, tanto do racicnalismo cartesiano, quanto do em- pirismo inglés, de Locke ¢ Newton. Seu maior desejo era fundir essas duas correntes filoséficas, aproveitando de cada uma delas os melhores elementos. Ainda hoje as and- lises dos especialistas divergem quando se trata de apontar quem teria exercido maior fascinio sobre os iluministas: Descartes ou Locke. © que realmente importa a concep¢do que os ilumi- nistas tinham da filosofia: uma forma de pensar (racional- mente) todos os ramos do conhecimento, dando énfase a0 sentido de indagaco ¢ descoberta, pois assim & a razio: critica e criadora, O progresso dessa mesma razio — o progresso intelectual em suma — permitiré ao homem a verdadeira liberdade. Tal liberdade s6 € possivel através do conhecimento daquelas foreas e tendéncias que regem © mundo ¢ so responsaveis pela ordem e pelas leis uni- versais: Os fatos néo so uma mistura caética @ fortuita de ole- mentos separados; pelo contrério, parecem incorporar-se a certos padres © apresentar formas, reguleridades @ rela- 00s definidas. A ordem é Imanente ao universo, acreditava Newton, ¢ no se pode descobria a partir de principios abstratos, mes sim mediante a observagie @ 2 acumulagio de dados 18 Sendo assim, era preciso estudar os “fatos”, levar em consideragao os “dados” fornecidos pela observagao ¢ pela 28 Zemin, 1, op. cil, p. 15. 2 experimentacio, a fim de que se pudesse unir 0 positive, isto 6, 0 ciemtifico, ¢ 0 racional. Somente através do co- nhecimento acurado dos fendmenos em si mesmos é possi- vel fazer avangar 0 verdadeiro conhecimento racional. Anilise e sintese, observagao empirica e explicagio racio- nal, eis a verdadeira meta a alcancar. *. Partindo do primado absoluto da razio, principio garantia do progresso da humanidade, uma vez que este se identifica com 0 avango do conhecimento verdadeiro, a ideologia iluminista produz ¢/ou articula as principais cate- gorias da sensibilidade intelectual do século XVIII: cultura © civilizacdo, progresso e liberdade, educacdo e huma- nidade. Princfpio universal, a razdo € também conquista in- trinsecamente individual. £ ao homem esclarecido que cabe fazer triunfar a racionalidade, numa espécie de encontro consigo mesmo ¢ com a natureza em geral. Para esse homem esclarzcido nada poderd estar fora ou acima da sua prépria razio, sua Gnica ¢ legitima fonte de autoridade, Pois qualquer autoridade que se situe fora dessa conscién- cia individual, racional por definicéo, € necessariamente “irracional” e ilegitima, mero “despotismo” de sacerdotes, principes e funciondrios. Os filésofos demonstram, com freqiiéncia, a confianga € a certeza que possuem quanto a constituirem a vanguarda de uma nova Era pelo proprio fato de serem os portadores da verdade. Ao apresentar um quadro geral do “estado do espirito humano”, em meados do século XVII, diz D’Alembert: 'Cassimer, E., op. cit, p. 12; Gusporr, G., op. cit, p. 151 et segs. “A ideologix da Aufklarung baseia-se na transparéncia de uma Fazio que s6 presta contas a si mesma; o prot6tipo dessa inteligi- bilidade foi tomado por empréstimo as operagdes do conhecimento Gientifico que, pela primeira vez na historia do saber, assume aquele valor exemplar cutrora reservado & teologia.” 43 Noses época gosta de chamar-se “época de filosofia”. De fato, se examinarmos sem preconcelto aigum a situacao atual dos nossos conhecimentos, néo poderemos negar que a fllosofia realizou entre nés grandes progressos... Tudo tem sido discutido, analisado, removido, desde os principios das cléncias até os fundamentos da religiéo revelada *5. Ha um certo sabor de anacronismo nas criticas que se limitam a arrolar tudo aquilo que os “filésofos” nao produziram — grandes teorias e sistemas. Afinal, devemos dar mais atengao Aquilo que eles realmente foram ¢ quise- ram sempre ser: os batalhadores, divulgadores, realizado- res de um programa centrado na critica racional do exis- tente, em nome de prineipios que apontavam para @ pos: bilidade de libertar 0 homem do erro ¢ do preconceito, ¢ desobstruir 0 caminho para uma nova sociedade digna de uma humanidade reconciliada consigo mesma. 3 Apad FALCON, F. 5. C. A época pombalina, p. 98. 6 As bases do pensamento iluminista Movimento intelectual portador de uma visio unitdria do mundo ¢ do homem, 0 Hluminismo, apesar das diversi dades de leituras que the so contempordneas, conservou uma grande certeza quanto & racionalidade do mundo e do homem, a qual seria imanente em sua esséncia, Suas principais linhas de forca foram o pensamento eritico, 0 primado da razéo, a antropologia ¢ a pedagogia. © pensamento critico e 0 primado da razdo jé foram analisados nos capitulos anteriores. Vamos examinar agora as questées que denominamos de antropologia e pedagogia das “Luzes”. A antropologia das “Luzes” As varias antropologias do século XVIII tem em co- mum, segundo Gusdorf, 0 objetivo de realizar o estudo positive do homem: ‘considerade como Individuo, sadio ou doente, como espé- cle natural, como criador coletive da civilizagso 20 longo dos caminhos da historia, 87 Daf resultam as diversas perspectivas que a ciéncia do homem assume entdo: — uma histdria natural, independente da perspectiva da antropologia médica, tendendo a primeira a sistematizar-se numa filosofia da natureza; — uma filosofia da cultura, produto do desenvolvi- mento do sentido histérico; — uma teoria do conhecimento, associada a uma ané- lise psicoldgica que conduz a uma antropologia filoséofica. Esta pluralidade de dimensdes epistemoldgicas, a0 ameagar a perspectiva unitéria do homem, abria caminho & fragmentagdo do saber, em funcdo da especializagio crescente das diversas disciplinas, cujo objeto comum era ohomem. Para enfrentar esse risco, 0 Muminismo realizou um movimento duplo: 0 primeiro foi a elevacdo da antro- ologia & categoria de fundamento de todos esses saberes, deslocando, em conseqiiéncia, a teologia, que havia desem- penhado até entio esse papel; o segundo consistiu na orga- nizago e consolidagio dos conhecimentos existentes, © tal foi a razdo de ser da Enciclopédia. Dentre as diversas tendéncias ¢ dimensdes criadas ow desenvolvidas pela antropologia das “Luzes”, todas elas ex- pressbes de uma crenca profunda na inteligibilidade racio- nal do dominio do humano, hé duas que mais nos inte- ressam: uma, baseada nas conquistas da histéria natural e da medicina, considera 6 homem como um ser solidério de todos os seres vivos em geral, dai resultando uma histé- rig natural do homem e uma filosofia da natureza. Ji a outra tendéncia, mais impressionada pela distincia que seus adeptos créem existir entre humanidade e natureza, coloca em primeiro plano o dominio humano sobre o mun- do natural, dada a capacidade, inerente a homem, de ser 58 © criador do seu préprio mundo — 0 mundo da cultura; dai derivavam eles entéo uma filosofia baseada na vocagio do género humano 2 civilizagao. Filosofias da natureza ¢ filosofias da cultura conduzi- ram, de imediato ow ndo, as doutrinas evolucionistas e as filosofias da histéria baseadas na idéia de progresso * A tendéncia ou vertente das filosofias da natureza originou, no Huminismo, as diferentes idéias, geralmente teunidas sob o rétulo de “materialismo do século XVIII" (o mesmo que Marx chamaria de “materialismo vulgar”), Estes diversos materialismos diferem dos seus homénimos do século XVI, pois enquanto estes iltimos eram meca- nicistas, os do século XVIII eram em geral vitalistas ou bioldgicos. Foi este 0 caso de pensadores como Lamettrie, Diderot, D'Holbach, Maupertuis e Helvetius, se bem que este iltimo j4 se situe numa espécie de passagem para a filosofia da cultura, A vertente das filosofias da cultura privilegia a nogio de civilizacdo enquanto expresso auténtica da emancipa- 0 do mundo da cultura, isto & do proprio homem — o homo faber. Qualquer ciéncia do homem deverd implicar, neste caso, uma cigncia das sociedades humanas, sempre a partir de uma visada dupla: o conhecimento de tais socie- dades como so e 0 conhecimento de como deveriam/de- vero ser. Sem constituir exatamente uma aquisigio do Huminismo, essa autonomizagio do humano € agora enri- quecida pelo sentido do devir histérico, dotado de uma inteligibilidade prépria e positiva — 0 progresso. Nao foi or acaso que 0 Hluminismo foi o primeiro grande momento da filosofia da historia, AGusporr, Georges. Introduction aux sciences humatnes, Paris, Ophrys, 1974, p, 229 ¢ 243, Desn, R. Os materialisias franceses, de 1750 @ 1800, Lisboa, Sea- Fa Nova, 1969, 59 A antropologia — seus temas e valores Tendo como premises mais gerais o primado abso- luto da razdo © o caréter universal e eterno da natureza humana, desenvolvem-se os temas da humanidade, de civi- lizagdo & do progresso. Humanidade A palavra, antiga (do latim humanitas, correspon- dente ao grego philanthropia), significa coisas antigas e novas no contexto do Huminismo: qualidade inerente a0 ser humano, ideal de cultura que torna o homem verdadei- ramente humano, comunidade dos homens, valor de impor- tancia juridica, moral, e pedagégica. Humanidade & para 6s iluministas também uma tomada de posicdo: da imanén- cia contra a transcendéncia do homem, da afirmacZo do reino do humano como quadro epistemoldgico, € objeto de pesquisa — o homem pode ser objeto de ciéncia e sua verdade € deste mundo. Temos af 0 antropocentrismo das “Luzes”. Como expresso desse antropocentrismo das “Luzes”, a idéia de humanidade traduz, simultaneamente, © ponto de chegada de um debate teoldgico secular e uma diferenca em relaco ao humanismo renascentista. Como ponto de chegada, ela significa a rejeigdo da doutrina do pecado original e a redefiniclo das relagdes entre 0 homem © Deus; enquanto diferenga, ao contrério das construgSes filoséficas dos humanistas renascentistas, tal idéia é afir- macio do valor da realidade terrena em si mesma, da importaincia das ciéncias do homem e da investigagio se- gundo os principios da ciéncia experimental. Humanidade e ciéncia do homem pressupdem-se mutuamente. Enfim, 2 idéia de hemanidade implica atitudes, comportamentos ¢ 60 priticas humanas, como veremos mais adiante 20 tratar~ mos do “pragmatismo das ‘Luzes’"*. Civilizagdo @ cultura Palavras do século XVIII, a primeira dos vocabulérios francés ¢ inglés e a segunda do alemao — Kultur. Para os iluministas, civilizagao & uma realidade ¢ um ideal, algo como a varidvel temporal da idéia de humanidade, tendo como seu substrato a nogio de progresso. Boa parte dos mais importantes trabalhos produzidos durante 0 século XVIII tem como objetivo a idéia de “civilizagio” *. No es- paco mental das “Luzes”, civilizagdo assume uma conota- ¢do dupla: ela € um valor em si, espécie de qualidade que faz ou deve fazer parte da prépria maneira de ser do homem em sociedade — seu estado natural; ela € também uma tomada de consciéncia da realidade da existéncia do homem na sua dimenso horizontal — a apreensio ¢ valo- rago da diferenca no tempo e no espaco entre as sociedades humanas, pois, em iiltima andlise, “os selvagens sio os nossos contemporiineos primitives”. Trata-se entio de uma arqueologia humana, na qual as diferengas apenas demons- tram um caminho ao longo do qual os homens progridem, do selvagismo & civilizacao. Civilizagao significa também a possibilidade de civili- zar. Dai, no plano dos costumes e da educacio, as ambi- gilidades existentes no século XVIII entre eivilizacdo, civi- lizar e palavras como “civilidade”, “policia” e “policiado”, significando a primeira potidez ou cortesiz, enquanto a se- gunda e a terceira designando os costumes ¢ as instituig6es TGusponr, G. Les princpes..., cit, p. 348-75, especialmente seine 3545, : . 14 lca nova, de Vico (1728) 4 rane des nade, de Adan saith (1176) © esprit das Fein, So Montesquiew (1788): 0 ensaio sobre 4 litorin de ociedade civil de-A. Fergson (1767) ce. Cl Gosvone, Gr op. cits 9.336, 6 9 de um povo ou de um pais, numa gradagdo ou hierarquia de sentido em relagdo a “civilizagio”. Enfim, no fumi- nismo, civilizagao afirmou-se mais ¢ mais como o “conceito que designa 0 movimento coletivo da realidade humana na sua passagem do estado da natureza 20 estado da culture” * No decorrer do movimento das “Luzes", porém, a idéia de civilizacao tornou-se mais e mais ambigua, pola- Hizando-se entre © pressuposto filoséfico de uma civiliza- a0 unitéria e a verificagao empfrica da existéncia e das especificidades das civilizagdes diferentes entre si. J4 no crespiisculo do Jluminismo, mais e mais se percebe que, em lugar de civilizacdo, existem na realidade “civi Progresso © tema do progresso 6 essencialmente moderno. S6 € possivel pensé-lo se forem admitidas também a historici- dade da existéncia humana, como realidade auténoma na perspectiva de um desenvolvimento temporal, ¢ a cficécia da acio do homem no mundo. Dai ser uma idéia que pressupGe a imanéncia. © progresso € fruto de uma tomada de consciéncia capaz de perceber 0 movimento e a dife- Fenga, assim como o sentido de mudangas que tém no homem o seu sujeito. A idéia de progresso manifesta-se inicialmente & época do Renascimento, como consciéncia de ruptura. Ela ird implicar mais e mais, a partir de entéo, uma dissociagao entre 2 ordem da cultura e 2 ordem natural, pois implica a negacdo da repeticao ciclica. No século XVIII tal idéia associa-se & consciéncia do carter progressivo da civiliza- so, ¢ & assim que @ encontramos em Voltaire. Tal como para Bacon, no inicio do século XVI, 0 progresso também é uma espécie de objeto de {6 para os iluministas, © Gusponr, G., op. cit, p. 333-48, especialmente p. 337, 340 © 345, 6 Apesar de existirem vozes dissonantes, como as de Hume ¢ Rousseau, a crenca no progresso € “um dado que se demonstra com a prépria histéria geral da humanidade” (Turgot). O caminho da barbarie & civilizacdo € 0 préprio caminho do ser humano da animalidade & humanidade. Tal progresso & linear ¢ ilimitado, A tomada de consciéncia que a nogdo de progresso implica expressa-se numa hierarquizagio da humanidade, no tempo € no espaco, sustentada, porém, pela tese da perfectibilidade infinita da espécie humana, que € 0 seu fundamento filoséfico. A certeza do progresso permite en- carar o futuro com otimismo. Todavia, talvez em decorréncia de seu préprio dina mismo intelectual, as “Luzes” se saldam também aqui por novas ambigiiidades: frente a tese da perenidade da natu- reza humana em todos os tempos ¢ lugares, afirma-se 0 cardter mutdvel da espécie humana a partir das préprias evidéncias empiricas ° A pedagogia dos “tllésofos” Boa parte das expectativas e pressupostos positivos do re- Jormismo ilustrado tinha como premissa a eficacia das prdti- cas pedagédgicas, como se depreende, alids, da propria con- cepcdo, que destacava como instrumento ideal para a dift so das “Luzes” a educacdo do principe pelos “filésofos”. Fator-chave do progresso da razio, a pedagogia era para os iluministas o tnico caminho racionalmente possi- vel no sentido da igualdade. S6 ela poderia propiciar a eliminacao, no futuro, do abismo que separava os espiritos bem-pensantes, moralmente bem-formados socialmente S Bory, J. La idea del progreso. Madrid. Alianza, 1971, p. 151 et seqs.; GusvORE, G., op. cil, p. 310-33, 63 hem-educados, da plebe ignorante, supersticiosa, inclinada ‘oy maus costumes e mal-educada. A. pedagogia iluminista envolve, para o historiador, unas ordens de indagacées, que foram assunto dos politicos © dos “filésofos” do setecentos: a questi da natureza do proceso educativo e a questéo da reforma ¢ difusio das instituigdes educacionais. No que se refere ao proceso educative em si, havia ivergéncias significativas. Helvetius, assim como boa parte los demals “fil6sofos", especialmente aqueles de tendencias mais inclinadas a0 materialismo, estava convencido de que “O homem nao € sendo o produto da sua educagio”. Se- undo ele, a pedagogia era uma ciéncia to exata quanto a geometria, ¢ era ela que tornaria possivel produzir bons cidaddos, ou seja, pessoas capazes de subordinarem seus interesses particulares ao bem piiblico, Afinal, dizia-se, “todos os homens tém os mesmos interesses € os mesmos sentidos” — cabe & educaco exploré-los. Opondo-se a tal concepcio pedagégica, situou-se Rousseau. Seu Emilio € a negacio das afirmagdes de Helvetius ¢ dos demais pedagogos que se apoiavam na psicologia das sensacdes. Contrariando aqueles que privi- legiavam a influéncia do meio, Rousseau apela para a “verdadeira natureza do homem”, Em lugar de ensinar a rude ou a verdade, a educacdo, para Rousseau, 6 um conjunto de preceitos negativos que visam a preservacéo do “espirito” ¢ do “coragio”, ameacados pelo “erro” & pelo “vicio”, defendendo os impulsos primitivos da crianga da contaminacdo pela sociedade e pelos intelectuais. Em esséncia, afirma cle, os instintos naturals da crianca sto corretos ¢ bons. Refutando Locke ao negara importancia da instrucdo, Rousseau coloca em primeiro plano o desen- volvimento das potencialidades da crianca e 0 pleno flo- rescimento da sua personalidade. we im relagéc ao problema da difusdo dos estabeleci- mentos educacionais, o primeiro dado a considerar € a Opinio favordvel dos “filésofos” 2 um sistema controlado pelo Estado. © proprio Rousseau, neste particular, corro- bora esse consenso. Percebendo as relacdes entre a cons- cigncia nacional e 0 patriotismo na formagao do cidadéo, Rousseau defenie, em O conirato social, a educacao pt- blica, defininde 2 educacio como “exigencia piblica ¢ dever do Estado”. Na realidade, era da cidadania que se tratava, em opesigfo a0 cosmopolitismo © 20 vago senti- mento de amor pela humanidade. Dessa forma, a cidadania s6 poderia ser construfda com seus alicerzes plantados na heranca cultural particular de cada nacdo, O amor da patria depende de instituigées nacionais, ¢ dessas nenhuma mais importante do que urn sistema estatal de instrucdo. Pedagogos e reformadores iluministas tendiam, assim, a tejeitar em excala crescente todos 05 tipos de obstéculos capazes de impedir o cidadio de afirmar seus lagos de obediéneia exclusivamente para com v Estado nacional. Sistematizando tais idéias, temos o Ensaio de educa- do nacional, Se La Chalotais, publicado em 1763, arqui- {nimigo dos’ jesuftas. No mesmo sentido manifestou-se Turgot. No terreno das prdticas, apesar dos entusiasmos que saudaram em diversos paises a derrocada dos jesuitas, as realizagbes ficaram nao raro muito aquém das expectativas f esperangas. Conforme o pats, diversas foram as realiza goes pedagégicas®, modestas na Franga, importantes na Inglaterra, particularmente intensas nos paises do despo- tismo esclarecido, Op. city pe 2103 ¢ 274-86, 7 O pragmatismo das STuzes” No horizonte do movimento ilustrado, as idéias em si mesmas, apenas enquanto idéias, isto é, abstragdes inte- lectuais, divorciadas de uma prética transformadora, tem muito pouca importincia. As idéias apenas tém razdo de ser, para os iluministas, quando objetivam acBes que modi fiquem a realidade existente. Tal pragmatismo, freqtiente~ mente colorido de utopismo, ainda hoje espanta um pouco 0s. adeptos do pensamento puro, Mas assim eram os “filésofos” ', E possivel agruparmos a multiplicidade das propostas e das préticas ifuministas em trés t6picos maiores: # tole: réncia, 0 humanitarismo ¢ 0 utilitarismo. Um quarto t6- pico —"a pedagrgia, ol “educaeio do género humano” —, j@ foi abordado no capitulo anterior, pois julgamos TGusnonr, G. Les princpes..., ei c 7 ncipes.. city p. 3767, “Uma sabedoria prdtce © empresniedora sutstial es ettcs expeclativen” Tal Ure preosupapao da Academia Real, de Londres, dh Academia {is Gin, te uy como ner ant de Rul Acad ds can, de Lisboa. Bala inportncia das cénia hstriens, poll ticas e econémicas. fsorias pol

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