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Capítulo 1

O ofício do his tor iad or da ciência

área de Histó ria da Ciência teve seu proce sso de

A instit ucion alizaç ão a partir do início do sécul o XX.


Naqu ela época foram realiz ados congr essos e encon -
tros espec íficos , bem como criara m-se curso s e perió dicos
espec ializa dos. Assim, pode -se consi derar que, ao longo do
sécul o XX, o camp o de Histó ria da Ciência mani festo u os
"quat ro comp onen tes funda ment ais para que ocorr a a ins-
tituci onali zação de qualq uer área do conhe cimen to, a saber :
1
ensin o, pesqu isa, divul gação e aplic ação do conhe cimen to" •

Hoje, a Histó ria da Ciência se cons titui como o


espaço privil egiad o de reflexões sobre as difere ntes
formas de se elabo rar e utiliz ar conh ecim entos
sobre a natureza, as técnicas e a sociedade .

iona l
Alfon so-Gol dfarb & Ferraz '"Raízes históric as da difícil equaçã o instituc
da ciência no Brasil," 3
/1.o mesmo tempo em que a Hi stória da Ciência se fir-
mêJva enquanto área de con hecimento específica, delineava-
-st o perfil de um novo profissional: o historiador da ciência .
É especialmente sobre a formação e o ofício desse profissio-
nal q ue t rata remos aqui.

História da Ciência: uma área de conhecimento

A ideia do que sejam área de conhecimento , campo


de conhecimento e ciência, pode, à primeira vista, parecer
óbvia . Entretanto, intensas discussões em torno dessa ques-
tão têm sido travadas ao longo do tempo .
Desde a antiguidade, essas se manifestaram entre os
filósofos . Mas, as ideias que tiveram influência mais ampla
foram as de Aristóteles (384 a.e. - 322 a.C.) . Para esse filó-
sofo, os campos de conhecimento seriam definidos por seus
objetos e métodos, sendo que aqueles campos que tivessem
objetos e métodos próprios seriam considerados ciências .
Embora tenham sido formulados há mais de 2000 anos, esses
parâmetros apresentam-se válidos ainda hoje 2 . Assim, por
exemplo, quando afirmamos que a química é a ciência que
estuda a matéria e suas transformações, expressamos que
química tem objeto próprio: a matéria e suas transformações.
Da mesma forma, ao afirmarmos que a História da
Ciência é uma área de conhecimento específica, pressupo-
mos a delimitação de um objeto que seria próprio a essa
área . Assim, cabe interrogar sobre esse objeto. Para isso,
enfrentaremos a questão com base em características de
pesquisas atuais nessa área , fundamentadas em propostas
sobre a identidade da História da Ciência 3 .
Podemos dizer, de maneira bem ampla, que:

2 Alfonso-Goldfarb . "Corno se daria a construção de áreas inte rfa ce do saber?,''


57.
3 A l fonso-Gold farb , "Centenário Si mã o Ma th ias Documentos . Métodos e
Identidade da H is tó ria da C1ên c1a ." 5-9.

14 HISTÓRIA DA CIÊN CI A PARA FORMAÇ ÃO DE PROFESSORES


His tóri a da Ciê ncia é o estu do da(s ) form a(s)
de elab oraç ão, tran sfor maç ão e tran smi ssão de
con hec ime ntos sob re a natu reza , as técn icas e as
soc ieda des , em dife rent es épo cas e cult uras .

Essa defi niçã o de cam po, emb ora aind a abra nge nte,
obje to
ajud a a map ear o obje to da Hist ória da Ciên cia , um
cam pos ,
com plex o, con stru ído na inte rfac e entr e dife rent es
part es.
com o vere mos a segu ir, anal isan do essa defi niçã o por
cia
Pois bem , se con side ram os que a Hist ória da Ciên
ão e
é o estu do da(s ) form a(s) de elab oraç ão, tran sfor maç
técn icas
tran smi ssão de con heci men tos sobr e a natu reza as
obje to de
e a(s) soci edad e(s) , pod ería mos con side rar que seu
, as técn i-
estu do seri am os con heci men tos sobr e a natu reza
do da
cas e as soci edad es. Entr etan to, esse é o obje to de estu
epis tem olog ia, com o será visto no Cap ítulo 3.

His tóri a da Ciê ncia é o estu do da(s ) forma(s) de


Obje to da
elab ora ção , tran sfor maç ão e tran smi ssão de
EPISTEMOLOGJA
con hec ime nto s sob re a natu reza , as técn icas e
as soc ieda des , em dife rent es épo cas e cult uras .

o-
Estu dos cent rado s ness e obje to trata riam da elab
, bem
raçã o e da com para ção entr e conc eito s rela cion ados
. Estu dos
com o das cond içõe s e dos limi tes de sua vali dade
uisa em
com esse foco cert ame nte fazem part e de uma pesq
riog rá fi-
Hist ória da Ciên cia e, em algu mas pers pect ivas histo
dese n-
cas , cent raliz am o trab alho . Tal é o caso dos estu dos
na qu e las
vo lvid os na pers pect iva hi stor i ográ fi ca tra di cio na l e
ca p ítul o .
cham a das inte rn a li sta s, com o vere mos no p róxim o
Mas, essa abo rdag e m soz inh a não d á co nta de uma
ivas hi s-
pesq u isa e m Hi stó ria da Ciên cia , co nfo rm e pers pect
aliz ação
to riog ráfica s atua is qu e leva m em cont a a cont extu
taçã o de
dos p roce ssos de e labo raçã o, tran s mis são e adap

O ofício do historiador da c1ênc1a 15


l
conceito s . Assim , devemo s continua r a análise da cJe 1i rr I';;.
ção do campo da História da Ciência ap resenta da anttnr.,-.
mente, consider ando agora que:

História da Ciência é o estudo da (sJ forma (sJ


Objeto da de elabora ção, transfor mação e trans missão de
HISTÓRI A conhec imento s sobre a naturez a, as técnica s e
as socieda des, em diferen tes épocas e cultu ra s

oacréscim o dessa condição tempo ra l traz o ca mi::,c,


da história para a cena, já que consider a o s conh eci men:cs
elaborad os ao longo do tempo, ou se ja, em difere ntes épe,-
cas. Essa abordag em faz parte da pesqu isa em Hi stória e:::
Ciência, mas, também , não a esgota .
Continu ando na análise da delimit ação apresentada é
necessário abordar os conhecim entos consider a ndo as di~E:-
rentes culturas que os produzir am . Mas só com essa aborà~ -
gem estaríam os no campo da sociolog ia .

História da Ciência é o estudo da (s) forma {s}


Objeto da de elaboração, transfor mação e transm issão de
SOCIOLO GIA conhec imento s sobre a naturez a, as técnica s e
as socieda des, em diferen tes épocas e culturas .

Disso tudo já se pode perceber a complexidade dês


pesquisas em História da Ciência, um campo que. confor::~
perspectiva historiog rá fi ca atual . proposta pelas pesqu !S:";·
doras do Centro Simã o Mathias de Est udo s em Hi stóna e~
Ciência (CESIMA )' , teria a construç ão de seu ob jeto na in:e·
face entre a epi stemolog ia . a h istória e a sociolog ia Ent~c =
que caracteriza ria uma pesqu isa em H istó ria da C1ê11c1a ser.~
a análi se do ob jeto - fo rma (sJ de elaboraçã o transform a~ =

Alfo,1s0-Go, afãrb Ferraz & ó e trar A r .sicmogra1. a Co"terr po~:-~ ~ ç


C ér cias da Ma té r.a Jrra lar ga roia cre,a :;e ;>erc..õ ços ~9-73

16
e transmissão de conhecimentos sobre a natureza as técni cas
e a(s) sociedade(s) - em três esferas: epistemológica, histo -
riográfica e contextual (ciência e sociedade).5

Hinoriogrofio ·. : Ciência e
Sociedade

Dessa forma, mesmo levando em conta que a possibi-


lidade de delimitação do objeto da História da Ciência tenha
sido discutida epistemologicamente por estudiosos de porte
de Georges Canguilhem ( 1904-1995 )6 , podemos afirmar que
a História da Ciência tem objeto próprio , constituindo uma
área específica de conhecimento, interdisciplinar por exce-
lência. Uma área que, embora distinta da história, da socio-
logia, da ciência, da epistemologia e da filosofia da ciência ,
estabelece interfaces com estas e outras áreas, pela própria
natureza de seu objeto.

A pesquisa em História da Ciência: um estudo de caso


A História da Ciência trata , portanto, das formas d e e la -
boração , transm issão e adaptaçã o de antigos conh eci m e ntos
s obre a natureza , a s técn ica s e a socied a d e, cons iderando as
três esferas de an á lise que confere m ide nt id a d e a essa área .
Desse modo, tra ta de é pocas e cultu ras d o passad o e d os

5 Al fonso -Goldfarb, "Centenário Si mão Mathias"


6 Canguilhem Estudos de H tS tóna e de Filoso/ta das C1ênc1as. 1- 16

O ofício do h1sco n ador d a ciénc,a 17


antigos conhec imento s elabor ados , transm itidos , adapta dos
em diferen tes épocas e cultura s . Cabe assim , pergun tar corno
0 histori ador da ciência tem acesso a esses antigo s conheci-
mentos e como constró i conhec imento sobre eles .
Para isso, focaliz aremos alguns estudo s que vimos
desenv olvend o nos último s anos. Embor a esses nossos
estudo s tenham seu foco em antigo s conhec imento s sobre
a matéria , e particu larmen te sobre o proces so de dest ilaçã o,
os momen tos do percur so investi gativo que aprese ntarem os
a seguir ilustram caminh os e possib ilidade s na pesqu isa ern
Históri a da Ciência como um todo .

Como o histor iador da ciênci a tem


acesso aos conhe cimen tos antigo s?

Em primei ro lugar, devem os destac ar que o materia l


que o histori ador da ciência manip u la em sua lide pode ser
de diferen tes nature zas : textos origina is , imagen s , docum en-
tos da cultura materia l, estudo s realiza dos por outros inves-
tigado res etc. De modo geral, esses materi ais podem ser
classif icados , numa primei ra aborda gem, corno: ongma 1s e
literatu ra secund ária .
Os origina is podem ser textos, image ns o u docu-
mento s da cultura materi al (objeto s físicos ) que chegaram
a nossos dias trazen do registr os de conhe cimen tos e la bora -
dos, transm itidos , adapta dos em outros tempo s e cu lturas.
Algum as vezes, por influên cia da tradiçã o de estud os históri-
cos , esses materi ais são chama dos de fontes primár ias.
Já a literatu ra secund ária abrang e trabal ho s sobre o
tema focaliz ado , escrito s por estud io so s contem porâneos.
Pela mesma influên cia já menci onada da tra d içã o de estudos
históricos , esses materi ai s sã o també m c hamad os de fo ntes
secund á ria s .
• Origina is (Fontes Primária s)
• Textos
• Imagen s
• Docume ntos da cultura materia l
• Literatu ra Secund ária (Fontes Secund árias) = trabalho s de
autores

Tendo selecionado um tema para estudo em História


da Ciência, devemos em primeiro lugar, assim como em qual-
quer área de pesquisa, fazer um amplo levantamento da lite-
ratura secundária, ou seja, dos estudos realizados sobre o
tema em foco. Em seguida, analisamos os textos procurando
identificar especialmente a perspectiva historiográfica assu-
mida pelo autor e a relevância do estudo para nossa pesquisa.
Verificamos também se o autor baseou seu estudo em origi-
nais e se suas interpretações são coerentes. Assim, é possível
avaliar as vertentes e os tipos de estudo já realizados sobre o
tema selecionado. Isso faz parte da esfera historiográfica de
análise .

Perspectiva histori ográfic a é a


forma de escrever a históri a.

Retomando nossos estudo s sobre a destilação, o


levantamento revelou que os poucos estudo s dedica dos a
esse tema baseav am-se em perspectivas historiográficas tra-
dicionais. Além disso, observamos que muitas afirmações
sobre esse processo, particu larmen te no que se referia às ori-
gens das prepar ações do que hoje chama mos álcool e ácidos
minerais, precisavam ser revisitadas e analisa das a partir de
novas interpr etaçõe s dos textos originais, aborda ndo as três
esferas de análise que identificam uma pesqui sa em História
da Ciência .
Na µe rs pecti va hi s t o ri ográfica tradicional.
0 pa ssado é vi s to co m os o lh os
de hoje .
Admite-se que a c iênc ia te ri a se dese n,·o\vido
progressiva e linearmente . Ness a p erspectiva .
a História da Ciência representari a o p rogresso
do espírito humano e da s o ciedad e .

Apresentamos parte dessas novas interpretações em


diversos artigos 7. Mas, aqui. vamos usar con10 exemplo uma
discussão sobre as origens do alambique travada em meados
do século passado, envolvendo historiadores da quím ica que
se fundamentaram em documentos e perspectivas histor io-
gráficas diversas.
Em um artigo pioneiro publicado nos idos de l 945 ,
Aparato de destilação Frank Sherwood Taylor ( l 897-1956 ) buscou em textos e la-
borados na antiguidade grega , tais como a Meteorologia de
Aristóteles e a Matéria Médica de Dioscórides (sec. l d .C), men-
ções referentes ao processo de destilação e ao a la mbique .8
Segundo esse historiador da química , a prime ira men -
ção semelhante a algo como a destilação é encontrada na
Meteorológica de Aristóteles . "... água salgada quando se toma
vapor fica doce, e o vapor não forma sal quando condensa
novamente"9 . Sherwood Taylor também encontrou menções
à destilação em textos de Alexandre de Aphrod isias (e . 200).
Plínio (séc. 1) e Dioscórides. A partir daí. procurou identifi -
car termos referentes a partes de aparatos ut ilizados na rea -
lização desse processo. Para isso . baseou-se não a pe nas
nos textos daqueles antigos estudiosos gregos e roma nos,
mas também em textos literários do mesmo período. Desse

7 eltran , "Alguma s considerações sobre as ori gens da preparação de áciào r:-


trico"; idem , "Rosários e água de rosas: os livros de d est il açã o e algumas ae
suas fontes med ievai s" ; idem . Imagens de magia e de ciênclil entre O mnboltS m0 e os
diagramas da razão.
8 Sherwood Taylor, ··rhe evolution o f the st ill ," 185-202
9 Aristóteles, Meleorologica. l l.3 35 8b 16

20 HIST Ó RIA DA CIÊN CIA PA RA FORMAÇÃO DE PROFESSORES


estudo, Sherwood Taylor pode identificar os termos ÀorcaÇ e
aµp1ç, respectivamente, com as partes inferior e superior do
alambique .
O termo ÀorcaÇ - lopaz - referente à parte inferior do
alambique, era utilizado para designar um utensílio culinário
achatado, do tipo de uma assadeira ou de uma frigideira . Já
o termo aµp1~ - ambix -, identificado com a parte superior
ou cabeça do alambique, relacionava-se a um tipo de vaso
usado para armazenar vinhos e outros líquidos.
Tendo identificado esses termos, e com base no trecho
da obra de Dioscórides dedicada a descrever a sublimação
do mercúrio, Sherwood Taylor propôs um esquema para os
antigos aparatos de destilação, como se segue:

Figura I B - ambix D - lopaz 1º

Além disso, esse mesmo historiador da química reto-


mou imagens presentes em manuscritos atribuídos a alqui-
mistas alexandrinos dos primeiros séculos de nossa era e
pode propor um caminho para a "evolução do alambique",
cuja origem estaria na Grécia antiga.

1O Sherwood Taylor. 185-202

O ofício do h istoriador da ciénc1a 21


11
Figura 2: Tribiko s.

Quinze anos depois, Martin Levey ( 1913-1970 ). um


historiador que realizava estudos sobre as cultura s m esopo-
tâmias e árabe, apresentou outra visão sobre as origens do
alambique, partindo da análise de tabletes e objetos retira-
dos de escavações arqueológicas . Assim, em seu artigo "Os
estágios mais primevos na evolução do alambique", de 1960,
Levey propôs-se a complementa r e debater as ideia s sobre as
origens do aparato de destilação apresentadas por Sherwood
Taylor. 12
Levey faz referência em seu artigo a um ap arat o
Tablete mesopotâmio encontrado na escavação de Tepe Gawra, o qua l fo i datado
no terceiro milênio a. C., ou seja, anterior ao aparecimento
da escrita . Além disso, esse estudioso pôde relacionar esse
aparato a um vaso destilatório (diqaru). empregado na confec-
ção de perfumes, mencionado num tabl ete mesopo tâm io de
1200 a C. A partir dessas con siderações . Levey pro pôs que a<::
origens do alambique não se riam grega s, ma s sim mesopo-
tám ia s e bem an teri o res ao qu e fo ra suposto po r Sherwood
Taylor Tam bém a "evo lu ção d o alambiqu e" se da ria por ur.-i
;\Jõ a nti ga M esopot~rro1 õ 0s
textos era rr reg st rõci o_ e'T cam inh o bem d iferent e, ev id enc iad o p o r outros ob1etus
tab etes de a g a rttp 11 ta mbém enco ntrad o s em escavaçõe s arqueol óg 1c.as e.::~ e·
0

www are er t:-T esopotarr éH.s


co rr l õ, :::: t,. t-rr esopo:a:r,o• c1alrnente algun s fo rnos que confnrmc' Leve) teria m le\ao.
wrt.ng-~:,St ':~ r i .,.

22 H c,iÔ 'I • 14 ( t,-. c '- ;,.&.R.A FORMAÇÃO OE PRO FESSORES


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•m , com base em outros documentos , incluindo
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documentos da cultura material. tais como objetos de esca-
vações, Levey atribuiu as origens ~o alambi~ue aos anti-
quíssimos povos mesopotâmios, afirmando., ainda que sua
evolução conduziria a realizações da cultura arabe medieval
Com O exemplo dos estudos descritos anteriormente,
podemos perceber algumas das características do ofício do
historiador da ciência tais como a pesquisa - busca, locali-
zação e análise - de originais de diferentes tipos tais corno
textos e objetos (documentos da cultura material) nos quais
ficaram registrados antigos conhecimentos sobre a natureza e
as técnicas. Podemos também notar a possibilidade de deba-
tes sobre um mesmo tema, no caso a "evolução do alambi-
que", quando são considerados diferentes documentos.
No caso dos estudos citados, chama atenção também
a ênfase dada às origens do processo de destilação. Se para
Sherwood Taylor as origens estariam na Grécia antiga; para
Levey, elas teriam raízes ainda mais remotas e orientais .
Dentro dos estudos sobre as origens da destilação
também devem ser consideradas as pesquisas desenvolvi-
das por Joseph Needham ( 1900-1995), estudioso da cultura
e particularmente da ciência chinesa . Needham e seus cola-
boradores também analisaram as origens da destilação, em
especial sobre as primeiras preparações do álcool e dos áci-
dos minerais, e chegaram inclusive a realizar experimentos
para comprovar suas hipóteses sobre a origem chinesa des-
ses procedimentos. 16
Embora possam parecer divergentes, as co nclusões
desses três pesquisadores sobre as origens da desti lação tra·
zem em comum a mesma perspectiva historiográfica tradi·
cional, que tende a considerar o passado com os olhos do
presente. Dessa forma, é possível escolher diferentes origens

16 Needham "Th e. com ing o f ardent wa t er " : ·d


1 em . "A n experi me ntal companso
· n
of the East As 1an Hell en ·15t' d d ' •
d' . . · te , an ln tan (Ga nd haran ) st ills in relat1on tot he
ist111 at 1on of ethanol an d acet ic acid"

24
HISTÓRIA DA CI ÊNCIA PARA FORMAÇÃO DE PROFESSORES
para os conhecimentos. Na época em que Sherwood Taylor
publicou seu artigo, era unânime a ideia de que as origens
da ciência estariam na Grécia antiga . Já nos anos 1960 e 1970,
quando Levey e Needham publicam seus trabalhos , a possi-
bilidade de que poderia haver conhecimentos científicos em
culturas diversas e de que o contexto poderia interferir no
desenvolvimento desses conhecimentos passaria a ser discu-
tida entre os pesquisadores que consideravam fatores sociais
no desenvolvimento científico. Entretanto, a visão tradicional
da História da Ciência como relato de um processo que pro-
gressiva e inevitavelmente levaria à ciência atual permanecia
entre esses autores, mesmo considerando que as origens das
ideias pudessem ser diferentes. Isso porque continuavam a
analisar o passado com os olhos do presente.
Porém, esses estudos pioneiros, mesmo circunscritos
aos limites da perspectiva historiográfica tradicional, trata-
ram com seriedade a pesquisa em História da Ciência e trou-
xeram à luz vários tipos de originais, abrindo caminho para
análises cada vez mais complexas do tema. Isso mostra o
papel central que os originais exercem no ofício do historia-
dor da ciência. Assim, vamos, em seguida, tratar um pouco
mais sobre os diferentes tipos de originais e mais especifica-
mente dos textos.

Textos originais
Grande parte dos estudos em História da Ciência
tem como centro a análise de textos originais de di ferentes
tipos. Nos exemplos apresentados já falamos de textos pro-
venientes da antiguidade grega e também de tabletes meso-
potâmios. Esses originais constituem formas de registros de
conhecimentos sobre a natureza e as técnicas gravadas sobre
diferentes suportes. De fato, os suportes dos textos originais
variam desde a argila até o papel, passando por suportes de
fibras vegetais, como o papiro e por peles de an imais conhe-
cidas como pergaminho. Também as fo rmas de gravar os

O ofíci o d o historiador d a c iência 25


· t s sobre O suporte são tão diversas q uanto 0 ~
con h ecImen o . . .
- d na s d i·ferentes formas de escrita , tn clu indo a
est t1os usa os
cu ne ·f
I o rme, a ca1 1·gra fia medieval e a pren sa de t ipos m óveis
cu jo uso se generalizou na Europa em mead o s d o sécul o
x:v. Essas características dos originais frequent em ente exi -
gem , além do conhecimento de línguas clás sicas t ais como o
latim , uma cons iderável familiaridade com as fo rma s antiga s
de escrita.
Para ilustrarmos os diferentes tipos de textos com os
quais os historiadores da ciência lidam , vamos novamente
exemplificar com origi na is que temos anali sado em nos -
sos estudos sobre as operações e reflexões sobre a ma té ria,
em especial aqueles que tratam das práticas ligada s ao qu e
podemos chamar de artes decorativas.

No século XV, as técnicas eram chamadas


artes. A ideia de belas-artes que temos ho je
só começou a ser formulada no século XVIII

De fato , grande parte dos mais antigos textos qu e t ra-


tam de operações e reflexões sobre a matéria são receit uári os
referentes à produção de pigmentos e corantes para p intu ra
e tinturaria , preparo de materiais metálicos sim i la res ao ou ro
e à prata , con fecção de materiais semelhante s a p edras pre-
ciosas etc. Entre esses textos devemo s citar o Pap iro X de
Leiden e o Papiro de Estocolm o , cuja s cóp ias mais ant igas ,
embora datem do século Ili de nossa era , t ra zem co nheci -
mento s de épocas bem anteri o re s. Out ros text o s desse t ipo
chegaram a nossos dia s em cóp ia s medi evai s, desta cand o-se
os relaci onado s no quadro qu e se segue

26 '-i lSTÓRI A. D A. CIÊN CI A. PARA FORM A.Ç Ã.O DE PROFESSO RES


RECEITUÁRIOS RELACIONADOS A PRÁTICAS DE ATELIÊ QUE TEM
SERVIDO DE DOCUMENTOS A HISTORlADORES DA QUÍMICA:

• e. séc. Ili
Papiro X de Leiden
Papiro de Estocolmo
•Séc VIII
Compositiones ad tingenda
•Séc X
De arti&us Romanorum, atribuído a Eraclius
•Sécs X e XII
Mappae clavicula
•Séc XII
Diversarum artium schedula , atribuído a Teófilo

Dentro da perspectiva historiográfica tradicional, esses


Mappae Clavicula
receituários eram considerados como manuais de ateliê e suas
receitas eram vistas como raízes de práticas atuais. Porém,
estudos recentes têm mostrado que esses receituários tinham
outro significado à época em que foram compilados e/ou copia-
dos. Eles eram tidos como chaves que possibilitariam acessar
antigos e secretos conhecimentos sobre a natureza. Assim ,
seu lugar não era no ateliê ou na oficina onde trabalhavam
artesãos analfabetos em sua maioria, mas sim na biblioteca,
para contemplação, reflexão e estudos dos eruditos. A tradi-
ção desses livros, também chamados de livros de segredos, foi
iniciada muito provavelmente com os tabletes mesopotâmios
tendo sido preservada mesmo quando os textos impressos
passaram a disseminar esses "segredos".
, ... r
1 .. ~:... .· -.__.
"""'· - , _ - .._ ._ ~_ ~ ·-·

Outro tipo de texto concernente a operações e refle-


Mappae Clavícu la (Pequena
xões sobre a matéria, que teve sua publicação intensificada
chave para a p int ura) é
durante o século XVI, constituiu os livros de destilação . Esses uma coleção de receitas
livros propagaram a ideia de que as "águas" obtidas pela des- de divers as origens Um
ma nuscrito elegante , que
tilação de materiais curativos há muito conhecidos (plantas ,
apresenta o t eKto como
minerais e partes de animais) , seriam mais eficazes do que "cha ve" para desvelar
os tradicionais chás e decacções. Esses livros impressos em segredos da natureza.

O oficio do historiador da ciência 27


, e fartamente il ustrados podiam to rnar acess,·v
vernacu 1o eis
esses conhecimentos a um grande público fo rmad o tanto
p or eruditos quanto por pessoa ~ semi alfabet iza da s ou anal-
fabetas. Afi nal. como declarou H1eron ymu s Brunchwig ( 1450_
mais d ifund idos livros de destilação-
1512 ), auto r de um dos
"As imagens são festa para os olhos e auxíli o para aqueles
0
17
que não sabem ler ou escrever .
Também ao longo do século XVI foi publicado outro
Hieronymus ti po de livro que se propunha a desvelar os segredos da s arte~
Brunchwi dos meta i s. De fato , os chamados tratados técnicos renas-
centi stas de m in eração e metalurgia trazem em suas páginas
cuidadosas descrições e fi guras most rando as práticas envol-
vi das na extração e no re fino dos metais - prát i ca s trad icio-
nais e ci osamente guardadas nos grupos e corporações de
m in eradores e metalurgistas . Entreta nto, estudos atua is que
procu ram ana lisar a general ização desses livros mostraram
que a necessidade de metais naquel e períod o levou ao pro-
cesso de invest imento de nobres e proprietários nas at ivi da-
des minei ra s, consideradas artes serv is e , p ortanto, indignas
de pessoas que tinham posses e tít ulos. Os mais destaca dos
0 IV' ':J O':~ E:1Jriscrw1g teve livros desse ti po são :
ma .~ de 50 ea i;ões entre 1500
e I GI rJ • Vanoccio Biring uccio ( 1480- 1539 ) - De la pirottich 11 1i1
(Sobre as artes do fogo ), Ven eza , 1540

• Georgi us Ag rico la ( l 494-1555 ) - Dr re Meta l!ita (Sobre


as coisas dos metais ), Ba siléia , l 556

• La zarus Ercke r ( 1530- 1504 ) - Beschri?ili1rnd (1 11,,, 111r-

nernisten rnineraliscften Ert: I wrn d hrrcku trckrs Ar!t'II ,


/" Descrição compl eta d os principa is mét odos de
re f 1no de minérios e de mineração ), Praga l 5 ~ ~

De fato esses I ivros procuram \ a loriza r as artes d3


m ineraçã o e da metalu rg ia En t reta n to . o mesm o nã o pode·
mos d:zer q uanto a Intençã o d e desve lar o s segredo ::: Je:- s3 :=

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28
artes que os autores propalam em seus textos . Muitas das
passagens, e mesmo das imagens descrevendo complexas
operações, são simplificadas no livro, de modo a serem com-
preendidas apenas por leitores que tivessem intimidade com
as operações focalizadas . 18

A formação do historiador da ciência

Considerando esses exemplos, já se pode perceber


que a leitura e a análise de originais em História da Ciência
exige um preparo específico e especializado que faz parte da
formação dos historiadores da ciência.
A História da Ciência como área interdisciplinar do
conhecimento exige formação especializada que envolve
tanto estudos epistemológicos quanto históricos e socio-
lógicos , sem contar com o domínio de línguas clássicas em
alguns casos e técnicas de leitura e análise de originais sejam
eles textos, imagens ou documentos da cultura material.
O ofício do historiador da ciência não é construído pela
soma de diferentes formações, mas sim pela abordagem inter-
disciplinar exigida pelo objeto próprio da História da Ciência.

18 Belt ran, ··A Produção do Sa l it re 'Diant e dos Olhos ·. Análise de Imagens e


Tratados Renascen t ista s de Metalurgia ," 225 -236.

O ofício do histo riad or da c iê ncia 29

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