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EfeitosARTIGO ORIGINAL

do bullying na vida adulta

Quando o bullying na escola


afeta a vida adulta
Lélia Castro de Souza

RESUMO – O presente trabalho propõe uma reflexão sobre o bullying


na escola. Esta reflexão questiona não somente os efeitos imediatos do
bullying sobre a psique da criança ou do adolescente, mas aborda, também,
a noção de que o bullying na escola pode gerar efeitos que permanecem
até, e durante, a vida adulta. Muitas vezes, sintomas psíquicos aparecem
quando um acontecimento na vida do sujeito vem, através de associações de
ideias, trazer à tona as marcas mnésicas de uma situação vivida no passado,
revelando, assim, seu caráter traumático. É o processo que Freud chamou de
“ação diferida”. Nossa abordagem, psicodinâmica e psicanalítica, tenta, por
intermédio de duas situações clínicas, ilustrar a maneira como a experiência
infantil, com relação ao bullying na escola, pode ter consequências duráveis
e trazer transtornos na relação que o sujeito tem com ele mesmo e com o
mundo que o rodeia.

UNITERMOS: Bullying na Escola. Fobia Escolar. O infantil. Trauma.


Ação Diferida.

Lélia Castro de Souza - Psicóloga clínica, doutora Correspondência


em Psicologia clínica e psicopatologia, membro do Lélia Castro de Souza
La­boratoire UTRPP/EA-4403 (Unité transversale de 3 rue Maximilien Robespierre – Issy-les-Moulineaux,
recherche psychogenèse et psychopathologie), França. França – CP 92130
Psicoterapeuta psicanalista – GHU Paris Psychiatrie et E-mail: lcastrodesouza@hotmail.fr
Neurosciences, Paris, França.

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INTRODUÇÃO Nota-se também que os centros de interesse


O bullying na escola é um assunto que tem da criança ou do adolescente podem constituir
solicitado a atenção crescente de pais, professo- um alvo de discriminação e de agressão (brin-
res, educadores e profissionais de saúde, graças cadeiras e jogos julgados muito infantis, por
a uma tomada de consciência relevante sobre exemplo), como também o nível escolar (muito
seus efeitos nefastos no que concerne à psique bom aluno ou aluno em dificuldade escolar) ou,
da criança ou do adolescente. ainda, a origem socioeconômica da família. Tais
Neste trabalho, tentamos ressaltar como o im- discriminações vão gerar na criança um senti-
pacto do bullying na escola pode ultrapassar esse mento de depreciação narcísica.
trauma propriamente dito, reforçando traumas Convém salientar que, muitas vezes, o
mais antigos, afetando o equilíbrio psíquico do bullying na escola pode não ser percebido pelos
sujeito e a sua relação com o mundo que o rodeia. adultos que se ocupam da criança ou do ado-
Fala-se de bullying na escola quando a crian- lescente. Estes, por outro lado, não comunicam
ça (ou adolescente) é submetida, repetidamente esta situação aos adultos, por razões diversas,
e durante um longo período, a comportamentos tais como o fato de receber ameaças dos agres-
intencionalmente agressivos por parte de ter- sores no sentido de se calar, o fato de sentir-se
ceiros. Tais comportamentos visam prejudicar, envergonhada pelo que lhe acontece, o medo da
ferir, desestabilizar a criança e estabelecer uma incompreensão dos adultos, e/ou de eventuais
relação dominante-dominado entre o agressor represálias da parte dos agressores, caso esse
e a criança/adolescente agredida. O agressor
problema seja revelado.
é, geralmente, um outro colega ou um grupo
Pode acontecer, também, que as crianças/ado­
de colegas. A intenção agressiva, a repetição e
lescentes atingidas pelo bullying tentem, ins-
a longa duração das ações violentas caracteri-
conscientemente, proteger os adultos quando
zam, quando encontradas juntas, a situação de
estes são percebidos, por elas, como frágeis do
bullying.
ponto de vista psíquico. Assim, o adulto pode,
Catheline & Linlaud-Fougeret1 mostram que
também, subestimar o sofrimento psíquico cau-
os “motivos” de bullying na escola se baseiam
sado pela situação de bullying na escola e ba­
em uma percepção de uma diferença entre a
nalizar a situação.
vítima e seus agressores. As diferenças mais
Catheline & Linlaud-Fougeret1 destacam
frequentes são:
– o peso corporal (muito gordo/a, mas tam- que o mal-estar da criança/adolescente diante
bém, às vezes, muito magro/a); do bullying na escola não vai se traduzir de
– a altura; forma típica, porém, observa-se por vezes uma
– particularidades físicas, no que concerne, tendência da parte das crianças/adolescentes
por exemplo, aos cabelos, à pilosidade, às agredidas em evitar o meio escolar, um aumento
impeifeições da pele (acne); importante de atrasos na escola, uma propensão
– o estilo vestimentário. ao esquecimento do material escolar, visitas
Muitas vezes, tratam-se de características múltiplas à enfermaria, ausência nas atividades
que os agressores não querem encontrar em si esportivas e coletivas.
mesmos. Desta forma, as autoras supracitadas põem
Sabendo-se que a percepção que tem a crian- em evidência o risco de manifestação de ansie-
ça ou o adolescente do seu corpo é fundamental dade e agravação do estado psicológico da crian-
no que concerne à constituição do narcisismo, ça agredida, podendo, inclusive, levá-la à fobia
esses pontos que tocam a aparência física da escolar. Como se pode perceber, as situações
criança têm uma repercussão importante sobre de bullying na escola trazem um impacto muito
a imagem que esta vem a ter de si mesma. negativo sobre a capacidade de aprendizagem e

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sobre a autoestima da criança/adolescente, que SOBRE O TRAUMA


podem apresentar, frequentemente, sintomas Neste ponto de nossa reflexão, pensamos ser
de depressão. necessário articular a questão do bullying na
Ttoffi et al.2 dizem que uma criança vítima escola com a noção de trauma.
de bullying na escola de Ensino Fundamental Freud aborda o trauma como o resultado
teria quatro vezes mais riscos de suicídio na do efeito conjunto de uma variação de energia
adolescência, e que poderíamos interpretar esta psíquica e da quantidade de estímulos que o
observação como consequência de um estado psiquismo do sujeito pode suportar, ou seja,
depressivo que, aliás, tenderia a permanecer e ele aborda o trauma em termos econômicos. A
desenvolver-se mais tarde, na fase adulta. abordagem econômica baseia-se na hipótese
Por vezes, pode acontecer da criança sentir- segundo a qual os processos psíquicos consistem
-se responsável pela agressão sofrida. Tais casos na circulação e na repartição de uma energia
constituem uma manifestação de defesa psíquica (energia pulsional) cuja intensidade pode variar.
inconsciente, que acontece sobretudo quando Na situação traumatizante, o fluxo dessa energia
pré-existe uma relação afetiva entre a vítima aumenta de maneira tal que ele invade o psiquis-
e o(s) agressor(es). Sentir-se culpada permite,
mo do sujeito, desorganizando-o e deixando-o na
de uma certa forma, à vítima, tentar preservar,
incapacidade de trazer uma resposta adequada
de maneira inconsciente, o afeto que ela tem
à situação que lhe é imposta.
pelo(s) agressor(es) e o afeto que espera do(s)
A sideração na qual pode se encontrar a
mesmo(s). Podemos pensar também, no meca-
criança/adolescente assediada traduz essa
nismo de identificação ao agressor, descrito por
desorganização da psique diante do bullying.
Ferenczi3,4. Nessa hipótese, a vítima assumiria
Então, ela vive desse modo uma experiência
inconscientemente a culpa do agressor. Dessa
que aparenta a um trauma, na medida em que
maneira, esta tentaria voltar, de maneira alu-
ela se sente sem meios de defesa, face à situação
cinatória, à situação pre-traumática, “como se
de agressão.
nada tivesse acontecido”. Tal operação psíquica
Freud compara o trauma a um estado de de-
(clivagem) tem por consequência um retorno
de agressividade da vítima contra si mesma, samparo, cuja referência é o desamparo primário
podendo levar o sujeito a condutas masoquistas do bebê (“Hilfosikeit”)6, e que se assemelha
ou de autodestruição. também ao estado no qual uma criança pode se
Parece-nos que a situação de bullying na es- encontrar quando abandonada, realmente ou
cola pode também representar um trauma para afetivamente, pelos pais. Ele vê o trauma como
as crianças/adolescentes que são testemunhas experiências que atingem o ego, na medida em
das agressões e engendrar, assim, transtornos que tais experiências atacam o que ele chama
psíquicos. Alguns trabalhos que relatam obser- de “paraestímulos”7, ou seja, o “escudo protetor”
vações durante o tempo de recreação mostram formado de mecanismos de defesa psíquica que
que 80% das agressões do tipo bullying na escola permitem ao sujeito suportar a carga emocional
acontecem diante de outros alunos5. Na maioria de uma situação potencialmente traumatizante.
dos casos, as testemunhas observam a cena, Se esse escudo protetor não preenche sua
passivamente, sem tomar partido, o que, segun- função de proteção, essa falha vai tornar ainda
do Ttoffi et al.2 conduziria a vítima a sentir-se maior a ferida narcísica resultante do trauma.
responsável pela agressão sofrida e aumentaria Ora, a fragilidade do paraestímulos é decor-
o sentimento de impunidade do(s) agressor(es). rente de respostas inadequadas (ou inexistentes)
Com efeito, há possibilidade de haver, em tais dadas pelos adultos ao bebê ou à criança quando
situações, um movimento psíquico inconsciente esta confronta-se com estímulos internos (fome,
de identificação com a vítima. sede, frio, desconforto, etc.) ou externos.

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A boa resposta vai conter o eventual excesso o infantil está ligado ao intangível, à realidade
de reações a tais estímulos, permitindo uma interna, psíquica, sem cronologia, constituída
“descarga” e protegendo, assim, o psiquismo da de fantasmas.
criança. A interiorização, pela criança, das “boas Ora, se a questão do infantil atravessa toda a
respostas” no psiquismo vai contribuir para a obra de Freud e é de importância fundamental
formação de um “paraestímulos” de boa quali- para a prática da cura psicanalítica, ela não apa-
dade, permitindo mais tarde ao sujeito proteger rece claramente sob forma de conceito nos textos
mais eficientemente seu ego. freudianos. Notemos, entretanto, que Freud dirá
Dando continuidade à reflexão de Freud ao Homem dos ratos10 que: “o infantil [é] uma
sobre o desamparo, que ele aborda também característica principal do inconsciente”.
articulando-a à noção de trauma8, Ferenczi9 vai Podemos dizer entretanto que a noção de
se interessar particularmente pelos traumas que “infantil” emana dos tempos primordiais da psi-
geram a sideração do Ego. Para ele, a sideração canálise e, mais precisamente, da correspondên-
do aparelho psíquico se produziria na ausência cia que Freud e Fliess mantiveram durante 17
de resposta do objeto face à situação potencial- anos, correspondência que, partindo do trabalho
mente traumatizante para o sujeito. Em outras clínico e analítico sobre os primeiros anos de
palavras, em caso de desqualificação ou de vida, fundamentou, entre outras coisas, a teoria
negação, por parte de outrem, do que o sujeito da sexualidade infantil.
sente e experimenta, diante de uma situação Durante esse período, Freud vai elaborar seus
que o traumatiza. “Estudos sobre a histeria” (1895), conjuntamente
E necessário ressaltar que toda pessoa, mes- com Breuer, “A interpretação dos sonhos” (1900),
mo tendo as defesas psíquicas adequadas, pode a “Psicopatologia da vida quotidiana” (1901),
encontrar-se, em certas situações, sem meios assim como o “caso Dora”, que figurará mais
psíquicos de reagir adequadamente a um ex- tarde entre os casos clínicos descritos na cole-
cesso de estímulos. Porém, se o “paraestímulos” tânia “Cinco Psicanálises” (1935). Todas essas
é frágil, o sujeito será bem mais afetado pela elaborações, e, em particular, “A interpretação
situação potencialmente tramatizante, e, em dos sonhos”, traduzem a importância da infância
particular, em caso de bullying. na constituição do psiquismo.
Supondo-se que uma criança/adolescente, Nos parece necessário ressaltar que o pe-
vítima de bullying na escola, tenha sofrido an- ríodo de constituição do “infantil” na obra de
teriormente, no seu meio ambiente, violências Freud corresponde a uma fase da infância em
físicas e/ou psicológicas, o bullying poderá ter que a aquisição da linguagem já aconteceu, o
um efeito de “ação deferida”, ou seja, uma forma que significa que, no insconsciente, a formação
de repetição de situações anteriores que fazem de representações, representações de palavras
com que o trauma seja ainda maior. ligadas a representações de imagens, existem e
podem assim ser pensadas e, consequentemente,
“INFÂNCIA” E “INFANTIL” recalcadas. Nas fases anteriores à aquisição da
A psicanálise nos conduz a distinguir “in- linguagem, só a representação de imagens exis-
fância” e “infantil”. A infância concerne um tiria no inconsciente, e esta ficaria, de uma certa
período da vida do sujeito e a situações reais maneira, à espera “da tradução” que permitira,
que ocorreram neste período. O infantil se refere mais tarde, a linguagem.
às marcas deixadas no psiquismo (inconscien- A criança em idade escolar já possui este ins-
te) pelas interações entre o sujeito e o meio no trumento de “pensar os pensamentos” que cons-
qual ele evolui. A infância está ligada a uma titue a linguagem. Ela já possui no insconsciente
cronologia, à realidade externa, constituída de o material psíquico, que vindo à tona de maneira
acontecimentos, de fatos, de coisas tangíveis; consciente, é suscetível de ser recalcado.

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A violência física, a rejeição (ostracismo), os Com efeito, uma criança pode encontrar-se
insultos proferidos durante o período de bullying diante de um evento cujo sentido não lhe é aces-
na escola vão ficar consequentemente “regis- sível pelo fato da imaturidade de seu aparelho
trados” no insconsciente. Se a criança/adoles- psíquico. Existem também ocasiões em que o
cente recebe a ajuda necessária dos adultos ou sujeito, qualquer que seja a sua maturidade,
de outras crianças ou de outros adolescentes, encontra-se em um estado de sideração psíqui-
ela poderá pensar as situações de agressão e, ca provocado por situações traumáticas, estado
eventualmente, reagir de forma a se proteger. que lhe impedem de pensar, e de entender de
Assim, os efeitos dessa violência sobre sua imediato o que lhe aconteceu. O psiquismo do
psique podem ser atenuados. Contudo, muitas sujeito vai, entretanto, guardar as marcas de tais
vezes, essa ajuda é insuficiente ou inexistente, experiências.
e o nível de violência sofrida é tão forte que a A noção de “ação diferida” (“Nachträglich”),
capacidade de pensar da criança é momenta­nea­ apareceu cedo na obra de Freud e baseia-se
mente escamoteada. Esta se encontrará assim na ideia de que a expressão de uma causa psí-
em um estado de sideração do pensamento. Tal quica poderia ser diferida no tempo. Freud10,11
estado de sofrimento e angústia pode levar à
constatou que experiências vividas sem impacto
desorganização psíquica e ao aparecimento de
notável em um dado momento poderiam adquirir
sintomas psíquicos e corporais.
uma nova significação em um momento ulterior
A clínica psicológica dos adultos encon-
da vida do sujeito. Por vezes, esse processo acon-
tra frequentemente os efeitos do processo de
tece quando um acontecimento na vida atual
bullying na escola, e, em particular, nos casos
vem, através de associações de ideias, trazer à
em que o bullying não pôde ter sido percebido,
tona as marcas mnésicas de uma situação vivi-
na época, em sua dimenção deletéria, por parte
da no passado. Esse fenômeno, que implica o
dos adultos, pais e professores. Os efeitos de tais
desvendamento de um conteúdo recalcado no
agressões sofridas exprimem-se, por exemplo, no
adulto, pela presença de ansiedade, de falta de inconsciente, é suscetível de gerar um (novo)
estima de si mesmo e de sintomas de depressão, trauma e/ou de reforçar o trauma vivido an-
sintomas que o levam a se consultar com um teriormente. Trata-se assim de uma forma de
terapeuta. repetição.
O adulto que vem em busca de trabalho psí- Ora, a experiência traumática produz uma
quico traz consigo algo da criança que ele foi, transformação de ordem interna, sob forma de
ou, mais precisamente, do que foi “registrado” uma desorganização psíquica ou de uma nova
no seu inconsciente nas situações vividas na organização do psiquismo, organização que irá
infância. estruturar a relação do sujeito com o mundo. No
período que segue à experiência traumática vão
O INFANTIL, O TRAUMA E A QUESTÃO aparecer transtornos nessa relação, mas pode
DA AÇÃO DIFERIDA acontecer que o acesso às suas causas psíquicas
Antes de prosseguir e nos apoiar sobre algu- não seja possível e que seus efeitos só venham a
mas ilustrações clínicas, nos parece oportuno ser reativados mais tarde. Isso porque as vivên-
evocar aquilo que chamamos, em psicanálise, cias do sujeito vão movimentar pensamentos, re-
“ação posterior” ou “ação diferida”. Esta noção presentações psíquicas suscetíveis de passarem
traduz a ideia de que as marcas mnésicas dei- por um processo de recalque no inconsciente. É
xadas no psiquismo do sujeito podem adquirir o que podemos observar, por exemplo, em certos
um sentido em um tempo posterior ao evento casos de bullying na escola, na infância ou na
que as provocou. adolescência.

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DUAS ILUSTRAÇÕES CLÍNICAS Por essa razão, na escola, Dorotéia era alvo de
Nas duas situações clínicas abordadas a discriminações e de críticas repetidas por parte
seguir, as pacientes sofreram bullying na escola de outros alunos. Estas a levaram rapidamente
quando crianças. O que nos parece interessante a isolar-se dos outros, chegando, muitas vezes,
é que o bullying inscreve-se aqui em um contexto a recusar-se a ir à escola. Face a tais difuldades,
particular da infância, no qual dominam senti- os seus pais decidiram mudá-la para uma escola
mentos de abandono e de carência afetiva, no especializada (Montessori). Porém, a esperiência
caso da primeira paciente, e violência familiar, precedente, longa, deixara marcas significativas
na imagem que Dorotéia tinha dela mesma,
no caso da segunda.
uma imagem profundamente depreciada. Essa
A hipótese de que, quando confrontado a
representação negativa era também alimentada
uma situação de bullying, a fragilidade psíquica
pelo fato de que o seu irmão mais novo era um
da criança/adolescente a torna mais vulnéravel
aluno brilhante e muito sociável, o que a fazia
aos seus efeitos, parece-nos pertinente. Além do
sentir-se ainda mais inferior.
mais, podemos observar que, mais tarde, expe- O bullying na escola intervém aqui em uma
riências da vida adulta do sujeito podem trazer conjunção na qual a criança tinha enfrentado,
à tona o conteúdo psíquico recalcado durante a de maneira continuada, situações de separação
situação de bullying no passado, dando uma valor dolorosa. As defesas obsessionais desenvolvidas
de repetição traumática a uma experiência atual. por ela nos parecem traduzir a importância do
seu sofrimento. Com efeito, as pelúcias e as
Dorotéia bonecas não podiam mudar de lugar na cama,
Aos seus 30 anos, quando a encontrei, aten- o que interpretamos como uma tentativa “má-
dendo a seu pedido de um acompanhamento gica” de impedir, simbolicamente, que o pai a
psicoterapêutico, Dorotéia tinha uma má opinião deixasse.
dela mesma, considerando-se fracassada em A ausência do pai foi sentida por Dorotéia
tudo. O passar dos anos, e um percurso universi- como um abandono e esta parecia ter integrado,
tário e profissional considerados bem sucedidos de maneira insconsciente, que a ausência do pai
não modificaram de maneira favorável tal ima- estaria ligada a seu pouco valor como pessoa.
gem de si mesma. Casada com um homem muito Por outro lado, algumas situações evocadas
protetor, sua pouca confiança em si própria fazia por ela nos fez pensar que sua mãe estaria,
provavelmente, sofrendo de depressão, e, con-
com que ela deixasse ao marido as decisões e
sequentemente, estaria menos disponível para
escolhas que se referiam a ela mesma. Das mais
conter de maneira adaptada as angústias da
corriqueiras às mais importantes.
menina e oferecer o apoio afetivo de que esta
A infância de Dorotéia foi marcada pela au-
precisava. É possível que esta tenha se sentido
sência do pai. Este foi levado, na época, a per-
sem o respaldo necessário face à ausência do pai.
manecer durante longos e repetidos períodos de Observamos que o tipo de relação que Doro-
trabalho em um país estrangeiro. A cada partida téia tem com o marido aparenta ser uma forma de
do pai, Dorotéia permanecia inconsolável. A repetição de sua história infantil. O marido ocu-
partir dessa época, desenvolveu rituais na hora paria, simbolicamente, o lugar do pai protetor.
de dormir que consistiam em colocar na cama O que dizer da dislexia de Dorotéia? Neste
brinquedos e animais de pelúcia em uma posição caso, os sintomas diagnosticados como uma dis-
específica. Sem este ritual longo, que lhe trazia lexia poderiam ser vistos como uma expressão
angústias, ela era incapaz de adormecer. dos transtornos psíquicos vividos pela criança. O
Bem cedo, ela foi diagnosticada como disléxi- ritual da cama antes de dormir, que supomos em
ca, com grandes dificuldades na aprendizagem. reação às ausências repetidas e prologadas do

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pai, traduziriam, ao nosso ver, o desenvolvimento física e verbal voltada para sua mãe e violência
de defesas psíquicas rígidas. Ora, “a leitura verbal exercida sobre ela mesma.
requer grande flexibilidade, grande poder para A violência e sua dimensão traumática estão
conectar letras e sílabas e transições flexíveis, presentes em diferentes momentos da vida de
nas quais as letras se misturam (sem perder sua Helena, tanto na infância como, mais tarde,
forma e independência)”12. na vida adulta. Esses elementos nos levam a
Nossa hipótese é de que a dislexia interveio pensar, tanto no que concerne a Dorotéia como
aqui como uma manifestação do arsenal de- no que concerne a Helena, que o bullying na
fensivo psíquico rígido que Dorotéia, criança, escola parece acontecer em um contexto no qual
utilizou, de maneira inconsciente, para amenizar já existiria uma certa vulnerabilidade psíquica
seu sofrimento. Nessa perspectiva, a dislexia ligada à situação familiar.
faz sentido e seria considerada, sob o ângulo do No caso de Helena, vítima ela mesma da
sintoma psíquico, significando a presença e a violência do pai, mas sobretudo, testemunha
importância de tais defesas. Vale salientar que, da violência física e verbal sofrida por sua mãe,
durante a terapia, um conjunto de defesas de tipo trata-se desde cedo de bullying, pelo caráter vio-
rígido se revelaram características e predomi- lento e repetitivo do comportamento paterno. As
nantes no funcionamento psíquico da paciente. agressões sofridas pela mãe, das quais Helena
Nesse contexto, pareceu-nos possível que o foi testemunha, tiveram certamente um efeito
bullying sofrido na escola tenha tido um efeito traumático para Helena, por via de identificação
traumatizante em si, mas igualmente, um efei- à vítima, sua mãe.
to de “ação diferida”, reforçando os efeitos do A Neurobiologia salientou, através os estu-
trauma causado pela situação familiar, e, em dos de neurônios ditos “espelho”, os mecanis-
particular, reforçando o sentimento de abandono mos neurobiológicos agindo no que podemos
e a imagem negativa que tinha dela mesma. chamar de um processo de empatia13. Assim,
é possível que o bullying na escola tenha aqui
não somente um valor traumático em si, mas,
Helena
também, um valor de ação diferida, vindo re-
Filha única, Helena evoluiu na infância entre
forçar o trauma gerado pela violência familiar.
uma mãe, que ela descreve como afetuosa com
A aparente passividade materna descrita por
ela e submissa ao marido, e um pai exigente e
Helena, diante das agressões paternas, levam-
brutal. Na escola, Helena era boa aluna. Ela diz
-nos a supor que sua mãe tenha, provavelmente,
ter sido vítima de bullying na escola por parte de
encontrado dificuldades para proteger sua filha,
um grupo de alunos durante todo o decorrer do
quando criança, da violência no meio onde vivia
Ensino Fundamental I, segundo ela, pelo fato de
(lar e escola).
ser boa aluna e também pela particularidade de
Helena viveu maritalmente cinco anos com
seu sobrenome: “Cavalo*”. Durante este período,
um companheiro que a maltratava. Nos últimos
sentiu-se rejeitada, desqualificada, e teria sofrido tempos dessa relação, não se alimentava mais,
uma forma de ostracismo. ficava prostada, extremamente deprimida, sem
Helena descreve outras situações de sua in- forças vitais. O trauma foi tal que seu estado
fância, no seio da familia, que a confrontaram à somático e psíquico levou-a ao hospital. Helena
violência. Trata-se da violência do pai, violência conseguiu, com o apoio da equipe da estrutura
hospitalar que a acolheu, recuperar-se e voltar
a trabalhar. Porém, uma enorme tristeza e uma
imagem muito negativa dela mesma estavam
*Os nomes, as situações foram modificados de maneira a sempre presentes, apesar de todos os seus es-
preservar o anonimato e a confidencialidade. forços para se sentir bem.

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Helena solicitou uma psicoterapia de inspi- sem dúvidas, perspectivas para que o sujeito
ração psicanalítica com o intuito de entender saia de tal impasse.
melhor o que a levou a suportar tanto tempo os As duas ilustrações clínicas propostas con-
maus tratos de seu antigo companheiro. tribuem à hipótese de que sujeitos que tenham
Ao decorrer do processo psicoterapêutico, sofrido traumas durante a infância ou apresen-
relatou também situações no trabalho, vividas tam carências no plano afetivo encontrariam-se
como uma forma de assédio moral. Sua grande provavelmente mais vulneráveis diante de situa­
dificuldade em reagir aos ataques de outras pes- ções de bullying.
soas, ex-companheiro e colegas, nos fez pensar
em um fenômeno de sideração do pensamento, CONCLUSÕES
gerando, consequentemente, uma inibição da Todos os lugares situados fora de vigilância
capacidade de reagir. dos adultos favorecem as situações de bullying
A hipótese de uma forma de repetição da na escola (lavatórios, corredores, lugares menos
situa­ção infantil durante a vida marital e pro- frequentados da area escolar). Assim, é necessá-
fissional de Helena nos parece interessante. rio que exista uma equipe pedagógica disponí-
Repetir, do latim “repetere”, significa procurar, vel, fisica e psicologicamente, ciente dos riscos
entender. Freud diz que o que não foi compreen­ e das consequências de tais situações.
dido fica retornando, como uma alma penada A análise da situação de bullying na escola
que não tem descanso, até ser encontrada a comporta diversos aspectos que traduzem sua
solução do problema e a libertação14. Em 1920, grande complexidade. É impossível abordá-los
em “Além do princípio do prazer”6, ele colocou de maneira exaustiva e aprofundada dentro dos
em evidência a noção de uma restrição de re- limites do presente trabalho. Nossa proposta
petição, obstáculo ao princípio do prazer. Freud consiste sobretudo em chamar a atenção do leitor
chamou-a então de “compulsão à repetição”. Do sobre a importância dos efeitos de tais situações,
ponto de vista da Psicopatologia, a compulsão as quais podem modificar profundamante o ego
à repetição (ou restrição de repetição) refere- e deixar marcas profundas na psique. Tentamos
-se a um processo incontrolável e de origem também alertar sobre o fato que esses podem
inconsciente pelo qual o sujeito está ativamente perdurar, mais tarde, na vida adulta.
envolvido em situações dolorosas, repetindo ex- A Psicanálise reconhece e busca os efeitos
periências antigas sem lembrá-las e com a forte do infantil na vida psíquica dos adultos. Essa
impressão de que se trata de algo totalmente prática constitui o eixo principal da investigação
motivado pelo contexto atual15. e do tratamento psicanalítico. O que é resgatado
Freud dizia que, se o ego repete, é porque através da fala dos pacientes não são bem os
faz um esforço de simbolização16, que é um es- fatos, os acontecimentos da sua vida, mas, sobre-
forço de entender o que aconteceu para poder, tudo, a maneira como esses ficaram registrados
assim, integrar seu conteudo “metabolizado” na no seu psiquismo. Essas marcas deixadas no
psique. Porém, a repetição compulsiva constitui inconsciente, recalcadas, podem traduzir-se, por
igualmente uma resistência à lembrança da exemplo, na expressão de sintomas, por inter-
cena traumática ou do conflito que foi recalcado. médio da interpretação de sonhos, pela maneira
Aqui estamos diante da óbvia complexidade do como o paciente vai relatar os acontecimentos do
funcionamento psíquico. A repetição é tanto passado, e também através da análise de movi-
uma maneira de lembrar como uma maneira de mentos transferenciais e contratransferenciais.
reprimir a lembrança, mantendo, assim, indefini- O trabalho psicanalítico tenta assim trans-
damente, as consequências psíquicas do trauma. formar as marcas da experiência traumática
Retomar toda a cadeia traumática e considerar os de maneira dinâmica, questionando o sujeito
mecanismos de defesa em jogo na análise abre, sobre o que ele pode fazer dessas marcas, de

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suas consequências sobre seu funcionamento adulto abriga em si. Nesse “infantil”, o tem-
psíquico e sobre o possível sentido que ele pode po não passou, as marcas das experiências se
atribuir ao que aconteceu. encontram vivas. “Atualizar ” na análise esse
Trata-se, então, de mobilizar por meio da passado permite ao sujeito se apropriar do seu
linguagem, das palavras, “o infantil” que esse presente e de vivê-lo plenamente.

SUMMARY
When bullying at school affects adult life

This paper proposes a reflection on school bullying. This work does


not only approach the immediate effects on the psyche of the child or
adolescentIt also addresses the notion that school bullying can lead to effects
that remain until, and during, adult life. Often, psychic symptoms arise when
an event in the subject’s life brings out, through associations of ideas, the
mnesic marks of a situation lived in the past. The traumatic character of
the past event is thus revealed. Freud called this process “deferred action”.
Our approach, psychodynamic and psychoanalytic, attempts, through two
clinical situations, to illustrate how the child’s experience of school bullying
can have lasting consequences and bring about disorders in the relationship
that the subject has with himself/herself and with the world around him/her.

KEYWORDS: School Bullying. School Fobia. The Infantile. Trauma.


Deferred Action.

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Trabalho realizado no GHU Paris Psychiatrie et Neu­ Artigo recebido: 4/4/2019


rosciences, Paris, França. Aprovado: 26/6/2019
Conflito de interesses: A autora declara não haver.

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