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GLAUBER- EXU IMPLODE Houve uma implosio no centro da tela, seremos todos tragados para rides abissais, Caindo como um meteoro sobre a Tera, 0 timo filme de Glauber Rocha provoca dios, paixoes, resstencts. Entre 0 xtase © a agonia, como na foto que anunciou o filme pelos jomais estf0 a mulher e 0 homem, 0 lado feminino ¢ 0 lado ‘masculino, os desejos eas paixSes de Manoel ¢ Ross em Monte Santo em Deus e 0 Diabo na Terra do Sol, filme que detonou lum processo consciente-nconsciente na cultura brasileira. Nos catazes, a forga de Xang das naghesindigenassubvertem as leis da gravidade com armas que tém luzzs fulgurantes nas pontas, como o sol na alvorads de Brass, A luz explode na imagem © 0 som tom varias camadas geolopicas superposts, evocando sons de véris idades. O Bras! tem domisantemente 500 anos de civlizaezo portuguesa, européia crit mas como diz Glauber: "qui losa 0 que mais? » E detonada a experiencia sensodal (visual-wuditiva) busea da memoria ¢ da experiéncia perdidas, mersas no incons- cientee n0 sonho, 0 medo de voltar.se contra os clichés impostos & memé- tia eB experiéncia provoca em alguns 6dio ou resisténci, Nem 4 manfo nem o coragfo consentem na busca dessa cvlizagio ¢ de sua tragédia colonial Primeiro plano: sintese © coeréncia: ¢ a terra do nascer 4o sol, da vida, © a dgva para fertlizéle — a grande fazenda, ‘cua grande / 0 paldcio da Alorada, sons dos nogros e indi tambores e sinos gritos, Como mum némero dem dante de nosios olhos uma bola prateada, brilhane, hipno zando ¢ induzindo ao sonho,caminhando a partir daquela p ‘gem para entrar em outro tempo. Glauber destri ¢ econstr o tempo, ¢ lida com a per- smanéncia, com heranga trdgica da humanidade do culpabil- dade pelo desejo ¢ sua proibigso, pelo desejo da morte do pai, {que representa lel e 0 poder, pela énsin do poder. A tragedia de Edipo, a tragédia da trangularidade num roteiro de iicial Jnnpinagao ahaksopeareana, em uin filme de teflendo ilosSfi 4 tragédia do ser 0 nfo ser do homem do terceio mundo. Mas neste filme hé'um avango. A culpabilidade nfo € aeita numa primeira hora hipndtica de filme, onde se operam vériastrans- ormagdes. O discurso das relagSes entre sexo e poder politico, retoms, em A Idede da Tera, a discussio sobre a otigem 63 moralidade, © totemismo, 0 monotefsmo, a endogamia e a exogamia — bases e matrizes da profunda discussfo sobre iden- tidade cultural brasileira, detonada por Glauber com sua “obrakynematographyka", modema antropologia audiovisual. ‘A bola prateada gira no centro da tela come um brilho hipnético de um mégico para balancar a cabesa e nfo temer a loucura e 0 canto da morte — 0 canto das sreas. Corte para Brahms / Mauricio do Valle (“o ymperialismo polyvalente”). Primeirsimo primeiro plano de uma boca suada, pintada de batom rei coroado e enxovalhado, antiKrysto, poder que sti- ta; "Minha missfo é destrue a Terra corte para Jece Valadgo | Kaysto | Adio no parafso descobrindo a naturza, flores, folhas, ovos. Ele diz: 0 passaro da eternidade nfo existe. . ‘Meu pat me tral... $0 0 real ¢ eterno.” As lizes acendem @ apagam, Glauber ofusca e iluming, a cdmera vai e vm, ha vida ¢ proposta existencial. Jece avanca. A bola gira. Tem incenso, bbéncfo, luz que estoura e ruidos tribals, gritos de guerra, tam bores, indios, uz intensa, vermelho, enquadramento de bragos «© pemase corpo, intenso movimento horizontal no plano. NA IDADE DA TERRA Temos uma proposta de envolsimento sensorial com tum reaidade de tipo fantasmagérico: 0 mundo das Amazo- nas, onde se recupera, como num sonho, uma dimensfo de tempo ancestralzo passado,o presente eo futuro sem qualquer contradiefo. B com Exu’ abrindo caminhos, adentramos 0 mundo dos mortos, dos ancastrais, © mundo’ dos egun, Exu representa © passado, 0 presente ¢ 0 futuro sem contradicf0, ‘esumindo morfoiogias dos ancestais masculinos e fertininos, , em homenagem esidtica a José Mojica, Zé do Caixfo, a liberagzo do instinto de morte, a Uberagio da destrutivdade ome parte do homem e a iberasH0 da sexuaidade numa ou- a motalidade. E af tens, com Kysto /Monotetta /Jeve/ Catajeste / Sedutor | Eros, a sedugfo de Norma / Rainha das ‘Amazonas /Pante(sta / Matiarca.Instlase 0 patrarcado em ‘melo a bizios, chifes, pemba de candombléc palha da Costa. esse episddio, temos uma alegoria da forea do sincretismo ligioso no Brail, ema que percorteréo filme, Nafrase final do rotero de trabalho, Glauber escreve: “Os Amarés prendem, escravizam as mulheres Nago Katanga (0 filme toca na historia das represses, das cisdes, noga- fg dose do flo Mas az um Edipo fo casado, um ipo que nfo se erga: $6 o real é cleo”. Glauber ~ Exu permite todas as transressbes. Como divindade do panteon aicano, 0 Exu contém nele mesmo o principio da dingmica sociale da individualizagao, Expressando a preservacfo do pen- samento africano — ser forga— 0 Exu intcodur a desordem para trazer 0 equilrio. Viola, wansgide. Exu possbilita a fransgsesafo. Sua moral estéligada a uma moral real, nfo a tuna moral social, Exu crcula lime entre todos os elementos do sistema nag6: € 0 principio da. comunicagto, liga 0 aiyé (a terra) 0 eéu (orun), como os movimentos de camera de A dade da Tera, endo inSzptete ¢ linguists. A celagto entie Exu e 0 sistema do oréculo € Indisctivel. O dessjo segue sempre, ele nio pira. Glauber profeta, mais pro diabo do que pro Deus, Glauber Exu das estradas, Glauburu abre caminhos. Godard traz Glauber em papel simbdlico em Vent dst com ‘of bragos abertos como um Cristo erguido na encruzithada do éinema politico. Uma moca grvida que passa com uma cimera perguntaihe qual é 0 caminho que Conduz 20 cinema da libe- raga. Godard estava convencido de que exister paralelos entre a repressfo das estraturas polticas tredcionaise a repressio das estruturas flmicas tradicionais. Para Glauber, a verdadcira forga das massas sulamerica- nas estd no mistcismo e no comportamento emocional “dion ‘a0, que ele vé como resultado da mistura entre eatoicis- smo © 8 religies afticanss. Glauber quer tocar essa enegia emocional. Busca iso na construggo de um now discurso, documentalsfccional,cujascontraveng6es vio do rompimento com a narratia classca linear 4 ausenia da letra escrta;ng0 hi neahum leteiro no filme, nem ficha téenica, 0 que, para muitos, € uma contravengfo suprema. Ruptura radical com teatro tealista,superagao do impasse da épica brecht $240, para Glauber, por sua estrutura¢eficécia ainda ligadas a0 espitito grego-clésico-ealista. Mas Glauber prega 0 desvio da ” docadéncia do teatro do absurdo, Tratase para ele de impedit a sobrevivencia do realismo, Ele esereve: “Arte do século XIX, © realismo € suas formas vérias como @ realismo eritico, & & arte burguesa que comega a eait com a queda do Palicio de Invemno. Na Rissa, a moral burguesa $6 fortaleceu na tirania burocritica, que chegou a influenciar os proprio surrealstas que eram a vanguarda estética do Ocidente.” Para Glauber a revolugio € uma estética. A arte realista serd sempre uma ress tencia burguesa 20 sonho que pode revelarhe o seu verdadeizo rosto. Qual € 0 rosto de Brahms? Jé 6 a dccadéncia, ee esté gordo, doente, tem alucinagses como Diaz II, o caudilho de abecas Cortadas. O imperiaismo tem cancer, presente « mor te, erige um tomulo-pirimide onde patroes e empregados 580 Prsioneiros do modemo concreto armado — Brasilia. Usa po- eres e seus gestos debochadamente: “I love coffee... América Tove you uma merda,... quero mulheres putas, desflando ‘com um carro modelo americano pela espacalidade arquiteto- fea de Brasitia,simbolo do desenvolvimento tecnol6gico e do Brasil Moderna”. Glauber, profeta do apocalipse, que iaventa 0 persona- ‘gem Felipe dos Santos, Tarcisio Meira, misturs de Diaz com Vieira, de erudito e popularesco, gritando que fomos invadi os, que nos tornamos a cloaca do mundo, cue nossa ecologia std sendo subvertida, Glauber fala do tempe modemo experi- ‘entanda a linguagem do cinema até as dltimas consequéncias, E quando Danusa, personagem modemisiimo, amante de Brahms, entra em cena, num estilo Jodorowsky linha panic Geraldo del Rey/ Katloz aparece guerrilheito terceiromurdis saido de Tera em Transe (1968), mas multinacionalizado, de ccamisa americana ¢ estilo punk. Mas Geraldo também € Ex fem cena erética com Danusa e Brahms. Nesse momento volt ‘mos 20 tempo ancestral do dom nio absolute do pai, sua forga simbolizada no poder de seu falo. Mas Geraldo usa na cabesa a faca de Exu, formasimbolo de deslocament filico. Exu pro- prietrio da fea ¢ responsivel pelo desprendimenta de poreoes do itero mitico fecundado, Danusa the diz: “Porque woe no mata Brahms? Geraldo: “Eu nfo quero te matar pai amado.” No universo mitico de um modemo apartamento, Glauber nos fala de incesto, sexo e poder: “O poder ¢ Brahms. A cama é 0 Jeg do poder.” A liberago do desejo. A cimera descobre ‘nayos espagos, angulapSes, aproximagses envolvendo-nos com seus personagens. Geraldo, bissexual, danca com dois evélve- res nas mos como seiosbuseando abondade da mie. Mas esté excluido do sto do amor de Danusa com Brahms. O tempo se dilata, a cimera foca e desfoca, tensos brilhos, espethos,oscila- §8¢5, 0 religioso se confunde com o profano no tempo do rit. Glauber ilumina e apaga, dé ordens aos atares: “Geraldo € Danuss, rebolem mais.” Geraldo resists tentagbes de luxiria ‘ pecado, como mais tarde Aurora Madalena / Ana Maria Ma- salhies / Xangb / Deusa da Guerra / Anunciagio do poder feminino / Descendéncia / Realeza / Fogo, resistiré ao assédio de Brahms, falo do capitalismo multinacional Krysto pescador coroado, Aruan saido de Barravenco en: ‘ontrase com o Diabo | Exu com uma caveira falando em frente a um televisor aceso contra o qual se ccnsome um globo {errestre. © mundo oscla. Krysto fora sagrado com poderes ‘migioos indios e negros, mas ¢ tentado pele Exu em meio a soqueltos © mares da Bahia. Pitanga surge como um profeta ‘negro que, por Omulu, Oxossi, Xango e Ogun revive as forgas 4408 mitos do povo como Sebastifo a0 vento, em Monte Santo, em Deus e o Diabo. Apesar de vender PepsiCola, ele ainda busca a Tesra Prometida como Manuel o Vaqueizo, mas agora é negro e latino e sua companheirs, uma Prineess Oriental, tem © eseudo de Sao Jorge 1s Mas a beleza e a vitlidade negra sobrevivem a beleza branea castradora, Antonio das Mortes nfo mais triunf, Glauber gritahoje que nossosalicexces foram destruidos, aque as guas esto poluias, Na paixfo de Felipe dos Santos por Aurora Madalena, deusa da guerra e cortes, antecipa 0 futuro que the pede: “Mate Brahms, mate Brahin!™ Mas Peli dos Santos, politien modem, fcaré com a platiada Danusa em frente ao Teatro Municipal ssindo de Tera em Transe e proclamando que mesmo quando exctce a violEncia defende os mais sagrados direitos humnos. Mas Aurora Madalena prolonga 6 exorcismo de Brahms, anunciando que apareceu um profeta nas montanhas do Norte. Um novo lider — um Cristo unide ao mundo indie afrcano “no éxtase da resureigdo.” Glauber fala de um novo Cristo que passa por todas as tentagées e continua a0 lado do powo — operirio em constru: o, Transita do capitalism ao anarco-construtivismo, cons indo um painl gigante, que propoe, nas palavras de Glauber: Uma revolupfo econdmica, espirtual, socal, sexval para que (0 povos possam vero prazer, Diz ele: “Precisimos do entendimento entre os politicos convertidos 40 amor ¢ 06 religiows”. Ao discurso do jomalista Castello Branco, Glauber opde o esplendor dissolugto do capital. Surge Krysto e no som Ogun, deus afticano da guerra, {4 no ar, On. A contravengio em tolaef0 imagem de Crist, Ressurge o guetilheito de Terra em Tronse, Danusa e Brahms ‘xlebram contratos. 0 guerlheio Karloz conclamao pove no Maracand vazio a toma seu ugar, porque a guerra bacteriolS- pica vai comeyar”. Jeve / Krysto aparece saido de O Amuleto de Ogu, na fiente de um bareo, com 0 corpo fechado. O povo esti nas Praias,nasuas, no carnaval eprocsses, Diz Glauber: filme acaba com 0 povo triunfando na utopi.” Que utopia? Uma utopia mistca? © povo esti fora do lugar? Mas, seo nico que hd ¢ a realidad, so tudo mais é isto, por que o homem ‘fo pode chesar& realidade? Mas que realidade€ estaem que insist? Por que o homem 6 carénia? Por que 0 pessimism slauberiano? Por que os cartes epatemologicos sto ora mate: Tialistas, ora idealistas romintioos? Consegue Glauber esclare- cerse na utopia? Como estar, como ser na ralidade que the cabe viver? Ele est dentro do filme eseus atores, como sees hhumanos, também uma compreensio vertical horizontal Glauber fenta luminarse. A luz tem momentos de clareza € bscuridade. Busca sus ontologia como um testemunho da his- ‘ria. Hi um avango do sor? A realidade torna ase impenetes- vel, obscura? Como quer Glauber iuminéla; com suas concep. es esfuziants de beloza, luz, espelhos, diafragma corigido za cara do ator que toma 0 cinema tidimensional? Glauber é um paciista? Nao quer a Iuta armada apesar de todos os seus revolveres? A utopia ¢ x hatmonia? Propde a volta para Jesus Cristo? Glauber maneja a hitorcidade: seus petsonagens tem uma continuidade histérica como formas de conscigneia em transformaeo, Em alguns momentos € como Parménides: tudo ¢ linear e continuo, hd uma sontinuidade temporal. Ha contemporaneidade absoluta ¢ em outros mo- ments cortes no tempo. £sincrdnico ediacronico.Hé perma néncia e mudanca, H4 uma dialdtica entre um idealimo misti- co € uma cra relidade materilsts quando a teenologia dovo- ‘20 sere impede o pensamento, Qual é a mensagem? De opacidade, de ceticismo? De tMuminagso? Glauber esti sempre ea aberto,avanga RAQUEL GERBER

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