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O Poder Judicidrio 0 Servigo Social na judicializacéo da polftica e da questao social | Judiciary Power and Social Work in the judicialization of policy and of social question Vanta Morates SIERRA’ Resumo: Este ensaio tem por objetivo apresentar a evolugao do Poder Judiciario no Brasil e analisar o fendmeno da judicializacao da politica e da questio social, a partir do estudo sobre a importincia do Poder Judiciatio na consecucéo dos direitos de cidadania. A fim de compre- ender 0 processo que desencadeou o fendmeno da judicializagao da politica ¢ da questio social, ser apresentada uma sintese da historia da formagéo do Poder Judiciério no Brasil. Em seguida, sera feita uma andlise da expansao do Poder Judiciatio ¢ do Servigo Social Judicial como parte do proceso de judicializacéo da politica e da questio social. Tal estudo se mostra relevante para 0 Servico Social, visto que as pol objetivo da cidadania, tendo 0 assistente social como um profissional icas sociais sio embasadas nas legislagdes sociais, elaboradas no indispensavel na consecugéo desses direitos. Palavras-chave: Poder Judiciario; Servico Social; judicializacio. Abstracts ‘Ihis article aims to present the evolution of Judiciary Power in Brazil and to analyze the phenomenon of judicialization of politics and of social question, through of the study on importance of the Judi- ciary Power to consecution of the citizenship rights. In order to unders- tand the process that motivated the phenomenon of judicialization of politics and of social question, we will present a brief history of the formation of the Judiciary in Brazil. After that, we will analyse at the expansion of Judiciary Power and of social work as part of the process of judicialization of politics and of social question. 1 Sociéloga, professora doutora da Faculdade de Servico Social da UERJ. Pertence a0 Depar- tamento de Politica Social e€ docente do quadto permanente do curso de P6S-Graduagio em Servigo Social da UERY. SER Social, Brasilia, v. 16, n. 34, p. 30-45, jan.-jun./2014 31 Keywords: Judiciary Power; Social Work; judicialization. Introdugio Com as mudangas recentes na relacao entre os Poderes no Brasil, em grande parte devido a presenga do Poder Judiciério na politica, imi- metas questées vém sendo debatidas nas ciéncias sociais. O Poder Judi- ciario, tradicionalmente criticado por scu isolamento estrutura cxees- sivamente burocratica, hierérquica, conservadora, atrelada ao Poder Executivo, tem se incumbido de desempenhar um papel ativo na defesa dos direitos definidos na Constituigio, principalmente aqueles relacio- nados ao bem-estar social, tais como a satide, a educagio ¢ a assisténcia. Isso porque a Carta Magna atribuiu aos juizes a fungao do controle de constitucionalidade das leis,? motivo que tem gerado criticas ao Poder Judicidrio, pelos cfeitos de suas decisécs sobre o planejamento ca gestao das politicas sociais. ‘As novas atribuigées desempenhadas pelo Judicidrio tém pro- vocado questionamentos por parte de intelectuais ¢ da sociedade civil acerca de suas implicagées para a democracia. A tradigao juridica no Brasil designava 0 juiz, como mero exccutor da Ici, despolitizando a fungio de julgar. Desde 2 Constituigo de 1988, os juizes tm exer- cido o papel de guardiies, passando a assumir a fungao de defesa dos direitos individuais ¢ de minorias, Tal atribuigao parece romper com a tradicional concepgao da relagdo harménica entre os poderes. Con- sequentemente, 0s juizes tém se tornado um ator relevante no pro- ccsso politico. Na medida em que as sentengas produzem impactos sobre a ges- tio das politicas, néo se amplia apenas o poder dos juizes, mas, sobre- tudo, a sua responsabilidade (CAPPELLETTI, 1989). Neste sentido, é com relagao as consequéncias das decisées judi is que os juizes tem 2 AConstituigéo instituiu controle abstrato de normas (art. 103, 120 X), 6 controle omissivo de inconstitucionalidade (art. 103, § 29) eestabeleceu a possibilidade da instituigto da argui- cio de descumprimento de preceito fundamental (art. 102, § 1°). O Poder Judicidrio ¢ 0 Servigo Social na judicializacéo da politica ¢ da questio social 32 Vania Morales Sierra sido cobrados no tocante ao seu dever com a justica. Na medida em que © positivismo juridico vai sendo suplantado pelas mudangas que foram introduzidas na Constituigao, a tendéncia é de que os magistrados pas- sem a recorrer ao conhecimento de outras areas. ‘As ciéncias humanas, de um modo geral, tém contribuido nao apenas na producao de conhecimento sobre o direito ¢ o Poder Judi- ciétio, como também no trabalho de assessoria com a claboracao de pesquisas, relatérios etc. A ampliagao do servigo social no Poder Judi- cidrio, tanto cm nivel federal quanto cstadual, indicam este proceso, no qual a contribuigio de outros profissionais surge como fundamen- ia al para assegurar aos juizes informages nece , que servem para balizar suas decisées. A fim de compreender 0 processo que desenca- deou o fendmeno da judicializagio da politica ¢ da questio social, serd apresentada uma sintese da histéria da formacio do Poder Judi- ciétio no Brasil, com destaque para a questao da cidadania para a classe trabalhadora. Em scguida, sera analisada a expansio do Poder Judicidtio c do scrvigo social judicial como parte do processo de judi- cializago da politica ¢ da questio social. Este artigo é produto de uma pesquisa financiada pelo CNPq, que tem como objetivo analisar as mudangas no Poder Judicidrio ¢ a atuagao dos assistentes sociais judiciais no Rio de Janeiro. O Poder Judicidrio no Brasil e a (des) protecio da classe trabalhadora Durante o perfodo colonial ¢ imperial, o Judicitio se constituiu sob as marcas da cstrutura latifundiaria, da monocultura c da cscravi- dao. Sendo 0 dono de terra o centro das decisées dos conflitos ¢ refe- réncia maior que a lei, era ele o legislador ¢ executor da justiga local. Os aparelhos de justica ao invés de funcionarem com base na lei paucavam- -se na arbitrariedade, fazendo predominar a parcialidade ¢ 0 faccio- sismo (VIANA,1973, p. 140), Segundo Viana (Idem, p. 142), 0 desam- paro legal dos pobres, de todos os desprotegidos dos fracos reforgava SER Social, Brasilia, v. 16, n. 34, p. 30-45, jan.-jun./2014 33 © poder do chefe territorial, que, por sua vez, possuia autoridade para defendé-los diante dos juizes corruptos. Conclui Viana que as institui- ges de ordem administrativa ¢ politica nunca amparam cabalmente “os cidadaos sem fortuna, as classes inferiores, as camadas proletirias contra a violéncia, o arbitrio ca ilegalidade” (Idem, p. 146) Durante a Reptiblica Velha, a justica privada exerce o predomi- nio sobre o que poderia ser o amparo legal. Ainda que a Constituigao de 1891 tenha definido a separacao entre os poderes, havia de fato era a subordinasao da organizagao judiciéria a0 “governismo dos chefes locais”, 0 que resultava na incurséo do poder privado sobre 0 poder publico, a partir do compromisso “coronelista’ (LEAL, 1997). Neste sistema, o filhotismo ¢ 0 mandonismo subtraia a justica da possibili- dade de garantir igualdade para todos diante da lei. A regra para 0 convivio social cra simultancamente o “favor” ¢ 0 “porrete”, que, em sintese, foi expressa por Leal da seguinte forma: “para os amigos pio, para os inimigos pau” (Idem, p. 61). Segundo Comparato (2004, p. 153), a justica submetida aos chefes locais passou, ao longo da Reptiblica, a estar subjugada ao chefe do Estado, representando, de certa forma, a transposigao para a esfera estatal do tradicional relacionamento entre 0s coronéis ¢ scus agregados ¢ capatazcs, tipico do interior. A rclagao cntre os podcres Judiciério ¢ Executive nao se consolidou como uma relagéo entre duas poténcias, mas de submissio geral 4 pessoa do presidente ou a0 governador de Estado. Somente a partir de 1930, 0 governo de Getilio vai criar uma justiga especial para tratar das questées refcrentcs ao trabalho,* alte- 3. Segundo Leal, 0 coronelisino € um sistema politico caracterizado pela incursio do poder privado no dominio piblico, num momento de formacéo das estruturas politicas represen- tativas no Brasil. Trata-se de uma estrutura complexa de distribuicao de poder, que envolve a barganha entre fazendeiros ¢ governo. 4 A origem da Justiga ‘Trabalhista é 0 Decreto n® 21.369, de 12 de maio de 1932, instituido das comissoes mistas de negociagao para dirimir os conflitos coletivos, ¢ 0 Decreto n® 22132, de 25 de novembro de 1932, que criou as juntas de conciliacio ¢ julgamento (ARAUJO, O Poder Judicidrio ¢ 0 Servigo Social na judicializacéo da politica ¢ da questio social 34 Vania Morales Sierra rando o caréter formal da justica pelo reconhecimento de sujeitos de diteito coletivo (GOMES, 2007, p. 17). A justica do trabalho, con- forme a Constituicao de 1934, nao pertencia ao Poder Judiciério, sendo uma justica administrativa, subordinada ao Poder Exccutivo, regida pela legislagio social, empregando somente 0 método jurisdicional (ARAUJO, 2004). Somente em 1946, a ju integrar o Poder Judicidrio, na categoria Justica Federal Especializada. ga do trabalho passou a No periodo de 1930 a 1945, foi intensa a producao da legislacao trabalhista c previdenciaria. Segundo Carvalho (2002, p. 126), durante a ditadura varguista, os dircitos sociais “no cram vistos como indepen- dentes da acio do governo, mas como um favor em troca do qual se dariam gratidio ¢ lealdade. A cidadania que resultava era passiva ¢ receptora...”, Com a ditadura, 0 acesso da classe trabalhadora ao Poder Judiciario, para defesa de seus direitos, reduzia-se as questées relaciona- das as causas trabalhistas. Segundo Arantes (2004, p. 102), é2 partir dos anos 1930 que se inicia a expansio do Poder Judicidrio. Até a Constituigio de 1988, Arantes identifica trés momentos, que foram interpretados como ondas de expansao do Poder Judicidrio. A primeira onda ocorreu nas décadas de 1930 © 1940, quando foram criadas solugées alternativas para os problemas da ordem c dos conflitos colctivos. Na segunda onda, essa matriz. ideoldgica seria rctomada a partir de 1970, quando sc atribui ao Ministério Ptiblico a responsabilidade principal da defesa dos interesses difusos ¢ coletivos perante o Poder Judicidtio. A terceira onda se carac- teriza pelas profundas transformagées inseridas no ordenamento juri- dico durante a década de 1980, que vao desde 0 reconhecimento legal da existéncia dos direitos difusos ¢ coletivos ¢ a abertura do processo judicial a represcntacao desses dircitos. Tradicionalmente, o Poder Judicidtio é percebido como poder coercitivo, burocratico, cujo funcionamento serve & fragmentagio da 2004, p. 181). SER Social, Brasilia, v. 16, n. 34, p. 30-45, jan.-jun./2014 35 classe trabalhadora, visto que atende caso a caso ¢, em nome da suposta igualdade de condigao diante da lei, julga sem considerar as desigualda- des sociais. Alias, a relagao do Judiciario com os pobres tem sido carac- terizada como preconccituosa c repressiva. Sua organizacéo, ritos ¢ lin- guagem rebuscada serviram para delimitar sua distancia ¢ impor a legalidade. Todavia, o Poder Judicisrio nunca foi imparcial. Os proces- sos judiciais, como jé registrado por Challoub (2001), em sua pesquisa sobre os trabalhadores no inicio do século XX, reforcavam a percepgio dos pobres como viciosos ¢ perigosos. Durante a ditadura civil ¢ militar, a autonomia do Poder Judi- cifrio foi restringida, cendo sido suspensas as garancias dos magistra- dos, pela possibilidade de demiti-los, dispensé-los, aposenté-los, transferi-los para a reserva. Também foi delegada a Justica Militar poder para julgar crimes politicos ou contrarios a seguranga nacional, cometidos por civis. No perfodo que vai de 1964 a 1988, a repressio & criminali- dade tida como comum continuava recaindo sobre 0s pobres nao integrados ao sistema produtivo (SERRA, 2009, p. 221). Pouco se sabe sobre o Poder Judicidrio nessa época. Conforme observou Zaffa- roni (1995, p. 29), na América Latina apagou-se a meméria histérica referente & fungao que cumpriu © Poder Judicidrio, cm cada periodo politico, Com isso, criou-se um obstaculo para a construgéo da critica acerca de sua intervencSo, o que permite, segundo o autor, a reincidén- cia dos mesmos erros. De acordo com Zaffaroni, a “explosao da litigiosidade” na Amé- rica Latina decorre, basicamente, da disparidade cntre 0 discurso juri- dico ¢ a planificagao cconémica, da distancia entre os dircitos sociais definidos constitucionalmente ¢ os problemas regionais, agravados pela marginalizagao e exclusio. Nesta regio, o protagonismo dos juizes se efetua num contexto de aumento da burocracia estatal (¢ da pretensdo de sua redugdo por cortes orgamentérios) ¢ da produgao legislativa impulsionada unicamente pelo clientelismo politico (1995, p. 24). O Poder Judicidrio ¢ 0 Servigo Social na judicializacéo da politica ¢ da questio social 36 Vania Morales Sierra No Brasil, o tema do acesso a justica foi analisado por Jun- queira, que destaca a singularidade brasileira no proceso de redemo- cratizagio do Poder Judiciétio. A scu ver, diferente do que acontecia nos paises centrais, a principal questo histérica nao cra a expansio do Welfare State ¢ a necessidade de tornar cfetivos os dircitos das s ¢ sexual , mas a necessidade da expansio dos direitos sociais bésicos, para toda a populagio (JUNQUEIRA, 1996, p. 391). Para a autora, a pressio por mudangas no direito ocorreu, inicial- mente, devido ao crescente fendmeno das invasdes urbanas e da inca- pacidade do Poder Judiciério de resolver os novos conflitos emergen- tes na socicdade brasileira. ‘Ao longo da década de 1990, depois de promulgada a Constitui- gio de 1988, as politicas sociais foram submetidas as condigées ditadas pelas medidas politicas ¢ econémicas de ajuste fiscal. A reducao no orcamento provocou a degradacao dos sistemas de protecao social, ampliando a demanda pelo Poder Judicidrio, deslanchando 0 processo de judicializacao da politica ¢ da questio social. De acordo com Salvador (2010, p. 60), em 2009, foram desvia- dos para alguns sctores econdmicos quase 70 bilhoes de reais, que faziam parte do orgamento da seguridade social. O autor também comenta que nio houve compensagio, pois o governo nao adotou medidas no sentido de garantir 0 emprego c ampliar a protegao social. Em grande parte, estas agées fazem com que o Estado deixe de cumprir seu dever constitucional de garantir a protegao social aos cida~ daos brasileiros. Ao abdicar desta fungio, intensifica-se a tendéncia de aumento da demanda por dircitos sociais no Poder Judiciério. De certa forma, a judicializagéo da politica resulta da omissio do Poder Execu- tivo no encargo da efetivacao de direitos, mediante a execucao da polt- ticas puiblicas. SER Social, Brasilia, v. 16, n. 34, p. 30-45, jan.-jun./2014 O servigo social na judicializagao da politica e da questao social Tate (1995) entende por judicializagao a cxpansio do Poder Judiciério nos sistemas politicos do mundo. Com base no conceito de Vallinder, Tate (Idem) compreende que a judicializaggo da politica pode ocorrer em dois momentos: 1) quando as cortes ¢ os juizes ampliam seu poder, ao revisar a decisao sobre a politica ptiblica, for- mulada anteriormente por outras agéncias, especialmente o Legisla- tivo eo Exccutivos ¢, 2) quando os métodos e procedimentos judiciais sio incorporados as instituigécs administrativas, indo além do Judici- rio. Vallinder (1995) também destaca que a judicializagio pode oca- sionalmente ocorrer em decorréncia da omisséo das instituigdes majoritdrias diante de certas questdes pelas quais deveriam se encarre- gar de decidir. Desde que Tate ¢ Vallinder cunharam a expressio judicializagao da politica, com a publicagao do livro The Global Expansion of Judicial Power, em 1995, 0 fendmeno tem sido discutido entre diversos pesqui- sadores no mundo. Antoine Garapon (1999, p. 44), um jurista francés, considera que tal processo tem gerado a politizagio da razéo judicidria ao mesmo tempo em que se judicializa o discurso politico. Por conse- guinte, as reivindicagées politicas passam a ser feitas cm termos mais juridicos que idcoldgicos, ¢ os dircitos individuais ¢ formais tendem a suplantar os dircitos coletivos e substanciais. De acordo com o seu pen- samento, a judicializacio também tem efeitos sobre a vida social, pois h4 um aumento desmesurado de leis para regular a sociabilidade. Tal processo é resultado de maior pluralismo social ¢ do recuo do Estado provedor. Num contexto de crise estrutural do capitalismo, o Estado se retrai ¢ desmonopoliza a “questao social”. A judicializagao, segundo esta abordagem, cxpressa a anomia das socicdades contemporancas, resultante do movimento progressive de privatizagao das normas, de precarizacao do trabalho ¢ de retracio dos servigos do Estado. Nesse contexto, os individuos pressionam o sistema juridico em busca de pro- tecdo e seguranga. O Poder Judicidrio ¢ 0 Servigo Social na judicializacéo da politica ¢ da questio social 38 Vania Morales Sierra No Brasil, a chamada judicializagao da politica ¢ das relagoes sociais tem sido objeto de polémica em torno da questao de saber se a intervengao do Poder Judiciério na cena politica ¢ na esfera da vida privada ¢ democritica. Além disso, questiona-se a ingeréncia do Poder Judicidrio sobre a vida dos pobres, o que tem sido interpretado como mais uma forma de controle social, sem 0 objetivo da promogio social ou da cidadania. Nestes termos, o Poder Judiciitio estaria reforcando o processo de criminalizagao da pobreza, ao nao se pronunciar, quando provocado, contra as restrigdes aos direitos civis impostas, por exem- plo, aos moradores de “lugares perigosos”, ou ainda em desconsiderar 0s dircitos fundamentais, em suas decis6es, como nos casos do julga- mento de ages contra a remogio de moradores em arcas piiblicas ou em regides de conflitos agrarios. O fendmeno da judicializagao da politica ¢ das relagées sociais tem sido motivo de controvérsias entre gestores da politica, procurado- res, juizes ¢ intelectuais. O protagonismo dos juizes, bem como o ati- vismo do Poder Judiciario nas politicas piiblicas, parcccm inaugurar um novo capitulo na histéria do Poder Judiciétio brasileiro. Mais afas- tados das decisées puramente técnicas ¢ formais, pasando a atuar como intérpretes da Constituigéo de 1988, os juizes vém se tornando atores politicos com influéncia direta sobre o governo. Os estudos sobre judicializagao no Brasil adquiriram visibili- dade apés a publicagao, em 1999, do livro de Werneck Vianna et al. intitulado A judicializagdo da politica e das relagées sociais no Brasil Para os autores, numa sociedade de capitalismo retardatério ¢ de democracia incipiente, a judicializagao nao seria resultado apenas do processo de privatizacao das normas como destacou Garapon (1995), mas sobretudo, “do avango da agenda igualitéria cm um contexto que, tradicionalmente, nao conheccu as instituigécs da liberdade” (VIANNA, 1999, p. 150) Nesse proceso, enquanto os cidadaos recorrem ao Judicidrio visando a efetivagao de seu direito, 0 Poder Judicirio é acusado de ser SER Social, Brasilia, v. 16, n. 34, p. 30-45, jan.-jun./2014 39 indiferente aos limites orgamentirios da administragao publica (BAR- ROSO, 2007). Faria (2004, p. 106), ao remeter & questao, afirma estar 0 Poder Judiciério numa encruzilhada, pois nao dispoe de meios pré- prios para assegurar a concretizagéo de objetivos substantivos nela pre- vistos. Nao obstante, o Poder Judiciario tem sido procurado cm vista da possibilidade de efetivagao de direitos, apesar da desconfianga com rela- gao a sua eficdcia, em vista de sua morosidade. Segundo Sadeck (2004, p- 88), ha uma crise no Poder Judiciétio, que diz respeito a sua estru- tura pesada, sem agilidade ¢ incapaz de fornecer solucées, em tempo razoavel, previsiveis ¢ a custo acessivel para todos. A judicializagio da politica e da questio social é uma tendéncia que tem se acentuado no Brasil. Segundo Vianna, Burgos ¢ Salles (2007, p. 41), 0 juiz tem se tornado protagonista direto da questo social, num processo claro de substituicao do Estado ¢ dos recursos classicamente republicanos. De acordo com Aguinski ¢ Alencastro (2006, p. 20), tal proceso ocorre “cm detrimento do compromisso mais cfctivo do Estado c da esfera publica”. Nas Ciéncias Sociais Aplicadas, 0 tema tem sido debatido ora sendo considerado um avango, ora recebendo criticas. Silva (2012, p. 556), em seu estudo sobre a judicializacao do Beneficio da Prestasao Continuada (BPC), afirma que quasc 6% dos bencficiatios tiveram reconhecidos scus direitos por determinagio judicial, © que constitui 199.863 pessoas bencficiadas. Todavia, a autora conclui que, apesar da inegivel imporeancia do Judicidrio no acesso a0 BPC, as desigualdades regionais acabam sendo reforcadas, visto que o acesso & justica é menor nas regides mais empobrecidas, como o Nordeste por exemplo. Assumpgao (2012) também investigou a judicializagao do BPC e destacou ser este processo resultado do confronto entre a interpreta- ¢40, por parte dos juizes, da Constituigao ¢ das leis infraconstitucio- ais, citando como exemplo a Lei Organica da Assisténcia Social (Loas). Por estipular apenas um quarto da renda per capita para ter acesso ao BPC, a Loas estaria restringindo um direito constitucional O Poder Judicidrio ¢ 0 Servigo Social na judicializacéo da politica ¢ da questio social 40 Vania Morales Sierra somente aos que vivem em extrema pobreza. Além disso, passou a ser contestada também por estabelecer um critério estritamente quanti- tativo para definir a pobreza. Além do BPC, outras éreas da politica tém sido investigadas. Alves (2013) considerou a judicializacio dos medicamentos em Campos dos Goytacazes um avango, tendo em vista os problemas relacionados a falta de logistica do governo para a sua distribuigao. Percebeu que a procura pelo Poder Judicidrio consistia na tinica altcrnativa para a obtengio do remédio, que, em caso contririo, nao setia obtido. A assistente social judicial Josélia Reis (2010, p. 82) também destacou a importincia do Service Social neste processo, demonstrando a ocorréncia de 62% de resolutividade nos casos que envolvem as demandas de seguridade social, sem a necessidade de se chegar ao juiz. Com relagio a judicializacao, a autora considera que, mesmo sendo em grande parte resultado do actimulo de ages indi- viduais em vista da obtengio de dircitos que nao foram cfectivados, tal proccsso expressa a possibilidade altcrnativa de exercicio da cida- dania. Em suas palavras: (...) 0 reconhecimento da importancia do exercicio de cidadania participativa apresenta-se subjacente ao reconhecimento da provo- casio do Judicidrio como algo inerente & falta de cumprimento das obrigagées formais das instituigées para com a populacao (REIS, 2010, p. 83) Todavia se, por um lado, a judicializagao pode ser uma alternativa para a cfetivacao de dircitos, por outro, pode se traduzir em resultados negativos, reforcando a tendéncia do Judiciétio cm aplicar o scu poder “prioritariamente de forma cocrcitiva ou repressiva, dirccionado para 0 disciplinamento, a normalizagio de condutas” (FAVERO, 2005). Em uma pesquisa sobre a judicializagao dos conflitos com crian- gas c adolescentcs atendidos por programas de acolhimento institucio- nal integral cm Sao Gongalo, Figuciredo (2012) entendcu este processo SER Social, Brasilia, v. 16, n. 34, p. 30-45, jan.-jun./2014 41 como o aprofundamento da tendéncia do Poder Judicidrio em usar 0 direito como uma forma de controle social, sendo que atualmente res- ponde conforme a idcologia neoliberal. (...) a judicializagao das criangas e adolescentes acolhidos em S40 Gongalo exprime um processo inverso ao das instituigdes que aten- diam a politica relacionada a0 Cédigo do Menor de 1979, visto que antes se judicializava a infancia a fim de separié-la da familia, submetendo-a a tutela do Estado, enquanto, nos dias atuais, a judi: cializagao implica na retirada dessas criangas ¢ adolescentes das ins- tit ig6es de acolhimento, seja para devolvé-las As suas familias, seja para entregé-las & adogio. Trata-se de buscar adaptar o Estatuto as orientagbes da politica neoliberal, que visa tornar o Estado mais efi- (FIGUEIREDO, ciente, restringindo 0 alcance das politicas soci: 2012, p. 4). De fato, a judicializagao da politica tende a intensificar a judicia- lizagao da questo social, mas enquanto a primeira pode ser concebida positivamente, a outra tende a ser identificada como aumento do poder de coergio e controle. Segundo Sierra (2011, p. 259), a judicializagio da politica “remete a intromissio do Poder Judiciério nos processos de dcliberagao politica, admitindo com isso 0 conflito na relagao entre os Podcres”, cnquanto a judicalizagio da questao social “refere-sc ao aumento da interferéncia dos aparatos de controle judicial sobre a pobreza, quer seja para protegio e defesa dos direitos de cidadania, quer seja para repressio dos comportamentos penalmente punfveis”. Enfim, em todos os casos destacados, o servico social tem parti- cipado fornccendo subsidios as decisécs judiciais. Segundo Souza (2006, p. 59), o assistente social parte constituinte c constitutiva dos conflitos judicializados. Tradicionalmente o servigo social € convocado para realizar o estudo social ¢ 0 parecer técnico. Todavia, outras atribui- Ges esto sendo exigidas ao assistente social judicial, como emitir rela- O Poder Judicidrio ¢ 0 Servigo Social na judicializacéo da politica ¢ da questio social 42 Vania Morales Sierra trios de avaliacto, formular projetos de intervengao, além de realizar as jé conhecidas visitas domiciliares, de esclarecer os usudtios dos scus dircitos, fazer cncaminhamentos para o acesso as politicas ptiblicas, rea- lizar contatos interinstitucionais etc.> Atualmente, 0 servigo social da Justiga Federal esté presente no atendimento dos juizados especiais federais (JEFs). Segundo Reis (2010, p. 76), somente em 1989 ingressou a primeira assistente social para atuar com o servidor do Poder Judiciério Federal. A demanda para a realizagio de um trabalho voltado ao piblico dos JEFs ocorrcu somente em 2005, por conta da necessidade da pericia social ser reali- zada junto ao Servigo de Perfcias Médicas. De certa forma, a ampliagao do servigo social na justica tem acompanhado a expanséo do Poder Judiciério ¢ de suas atribuigées, 0 quc indica a valorizagio deste scrvigo, cada vez mais considcrado indis- pensvel ao cneargo da prestagio jurisdicional. Considcrando a criagio de procedimentos menos formais nos juizados especiais ¢ os jufzes per- cebendo a necessidade de valorizar informagées confidveis pertinentes ao litigio, a fim de fundamentar as sentengas, percebe-se 0 quanto o assistente social pode acrescentar no sentido da qualidade da prestagao jurisdicional, possibilitando aos juizes conciliar a sua responsabilidade judicial com a capacidade de responder as demandas por justiga, favo- recendo com isso um melhor desempenho institucional. De certa forma, se é possivel reconhecer um aumento da responsabilidade dos juizes neste processo, também se pode verificar uma sobrecarga de tra- balho da equipe técnica, que neste contexto de judicializagao adquire relevancia nao apenas sobre a influéncia nas sentencas, mas, sobretudo, por ser 0 assistente social um profissional que intervém sobre as expres~ ses da questéo social, scndo cobrado das habilidades ¢ competéncias Informagio obtida no site da Justisa Federal e do ‘Tribunal de Justisa do Rio de Janeiro, disponivel em: SER Social, Brasilia, v. 16, n. 34, p. 30-45, jan.-jun./2014 43 expressas nas dimensées técnico-operativa, tedrico-metodolégica ¢ ético-politica do servigo social. Num pais onde a extrema desigualdade social acentua a desigual- dade no acesso e garantia de direitos, o Servigo Social Judicial, ao lidar com a parcela da populagio que enfrenta grandes dificuldades de acesso aos direitos sociais bésicos, procura alinhar o trabalho profissional aos interesses das classes trabalhadoras ¢ subalternas, no sentido do projeto &ico politico (NETTO, 1999) ¢ dos principios do Cédigo de Etica da profissio de 1993, scndo, portanto, favordvel a cquidade ¢ a justiga social, “numa perspectiva de universalizagio do acesso a bens ¢ a servigos relati- vos as politicas ¢ programas sociais, bem como sua gestio democritica’. Trata-se de um trabalho que requer o compromisso profissional com a defesa dos direitos de cidadania, numa disputa com o projeto hegems- nico neoliberal, que tem deteriorado os sistemas de protegao social. No Poder Judiciario, a exccugao do trabalho do assistente social judicial deve se orientar na dire¢io do Cédigo de Erica Profissional e do Projeto Etico-Politico-Pedagégico, tendo em vista que pode ser reali- zado com a finalidade de tornar a justica mais préxima ¢ sensivel aos dramas que atingem 0 cotidiano da classe trabalhadora, procurando fazer com que scjam garantidos o respcito a sua individualidade ¢ a todos os scus dircitos. Referéncias AGUINSKI, B. G.; ALENCASTRO, E. H. Judicializagao da questao social: rebatimentos nos processos de trabalho dos assistentes sociais no Poder Judicidrio. Revista Kaidlysis, v. 9, n. 1, 2006. ALVES, Manoela Magalhies. A judicializagao na assisténcia farmactutica ¢ os principios do Sistema Unico de Satide. Dissertacao de Mestrado. Campos dos Goytacazes: UENE, 2013, mimeo. ARANTES, Rogério Bastos. O Judicidrio entre a justiga ¢ a politica. In: AVELAR, Lucia; CINTRA, Antonio Octavio (orgs.). Sistema politico brasileiro — uma introducao. 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