Era 1975. Com 17 anos, já era guitarrista líder do Mendigos e
Companhia. Mas, como escreveu Rimbaud, ninguém é sério aos dezessete anos. Éramos Paulo na bateria, Tadeu no baixolão e eu na guitarra. O Tadeu e eu fincávamos nossos plugues num amplificador de som de toca- discos estereofônico. Dava certo, e fazíamos um barulho com vontade de sair música, no enorme saguão do depósito de meu pai. Nem sempre os ensaios davam certo. Nem sempre todos compareciam. O Paulo, no meio de uma peça qualquer, parava de tocar e saía para fumar. Eu ficava muito tenso com isso. O Tadeu só sabia falar de mulher. Ele era o meu baixista. Eu gostava dele. O Tadeu foi muito companheiro por aqueles dias, saíamos juntos para comprar uma calça, ouvir música, pegar um concerto, andar pelo centro da cidade, tomar caldo de cana, comer pastéis, churrasco grego e falar de guitarras, baixos e baterias. Eu gritava feito um louco, principalmente quando dava defeito na fiação, no captador, nos trastes, no absurdo da existência daquele trio. Um dia, fomos à casa do Eduardo Araújo, e a Silvinha foi contar pra ele a novidade: um trio! Três meninos estavam formados num clássico guitarra- baixo-bateria! Ninguém mais fazia isso, eram os tempos do sintetizador e da pedaleira. Chegamos a ir nalguns ensaios, um dia não fomos mais. Tínhamos que nos concentrar mais em nossos próprios tocares. O Mendigos durou um período de ensaios e um concerto num festival roqueiro, no Coe, uma escola da Lapa, bairro da cidade de São Paulo. As ruas do bairro desertas, sábado à tarde, a maioria das lojas fechadas. O quieto, o moroso, o limbo no ar. Descendo a Doze de Outubro, apenas alguns malucos. Aumentava o número conforme chegávamos ao local marcado. Cheio de cabeludos, semi-hippies, entrosados, marginalia, espécies em ascensão e outras em recaída. Presenciei um cara com tique nervoso, era reputado excelente guitarrista. Uns cabeludos altos, também, uns com cara de índio, e a gente ali no meio, três garotos com os olhos arregalados. Um loiro magro, com ar de galã pop, ele ia tocar junto com um guitarrista negro, forte, que batia a mão direita em concha sobre as cordas. Pareciam muito viajados. Diferentes de nós três. Eu já tinha o meu cabelinho mais comprido, totalmente desgrenhado e enrolado. O Paulo, na última hora, foi viajar, e tivemos que chamar um amigo para o substituir. E veio o Luiz, com toda sua boa vontade. Ele era do tipo arrumadinho, mas eu gostava dele, tinha sentimento. E lá, nervosos, querendo desfilar com nossos instrumentos, éramos verdadeiras crianças em meio ao geral. Um pessoal tranquilo, com a sabedoria das longas mechas. Fomos para um canto, rapidamente ensaiamos o tema, repassando pro Luiz. Éramos os três, ali, sozinhos, sem conhecer ninguém. Era tudo cara maduro, mas e daí? Pareciam muito sapientes, mas éramos três bobões tentando passar por figuras de larga data. Nós íamos arrebentar! Claro que nos sentíamos os pivetes intrometidos, mas podíamos dizer que estávamos lá! E fazíamos pose de quem já viajou muito... Nossa, vieram pedir pra gente abrir o festival, e mandaram improvisar bastante! Foi o mesmo que implorar pro rato comer queijo. O Luiz sentou na banqueta da bateria como se fosse um profissional. Levantou as baquetas e me pareceu que deu umas velozes dançadas com elas no ar. Não era cabeludo, e como eu já falei, tinha um jeito arrumadinho, mas eu gostava muito dele, era persistente, gentil, atencioso. Na verdade, só tínhamos guardado uma única peça no repertório, a que ensaiáramos exaustivamente. Tanto que o baterista conhecia tudo de fio a pavio, já que éramos tudo da mesma turma... Na hora do vamos ver, o baixista não estava com seu baixolão, mas com um instrumento emprestado, enorme, e grudara com fita adesiva duas palhetas duras juntas. Começou fazendo teque, teque, teque, até que entrou e o baterista tocou feito um Rollando Castelo Júnior! E aí? Fiquei na agrura! Meti meus pés no pedalzinho de uá-uá, e fiz a guitarra mais aguda de todo o festival! E solei, solei, solei... até que percebi que um solzinho batia no braço de minha guitarra, era um meio para final de tarde, e nossa energia de adolescentes, misturada com sons que vinham da cabeça para os dedos, fraquinhos, eu mesmo tinha dificuldade para apertar as cordas e fazer puxadas, enquanto meu baixista olhava para o fantástico vermelho que adquirira nas mãos, ao tempo de nossa paciência monástica e vontade de ficar ali por horas. Estávamos nervosos, trêmulos, mas bastante felizes. Olhei pra frente e não vi ninguém, só vultos e cabeleiras difusas. Já era muito míope, e decidira tocar sem os óculos. Apesar de sentir melhor o que tocava, diversas vezes tropecei nos fios. Naquele tempo, tudo usava fio: os instrumentos, os microfones, os amplis, tudo! A gente não se mexia muito no palco, mas eu vivia andando de um lado para o outro, ou ficava parado em frente ao público, que eu sabia, estava lá, mas nem via se olhavam ou não para nós. De repente, olhei pro céu e vi que era o momento de terminar. O Tadeu parecia exausto. Ele me disse que havíamos ficado lá por mais de uma hora. O Luiz falou em cinco minutos, e eu achei que havia sido uns 15. Nenhum de nós usava relógio, éramos bastante intuitivos. Pulsávamos cada um o seu próprio tempo. Para que marcação cartesiana? Não sei como foi, mas depois que olhei para o céu, me pareceu que o baterista deu ares de que ia parar de tocar: ele olhou pro Tadeu e paramos. Terminamos, assim, como quem lambe os lábios depois de comer pizza. Anos depois, descobri que Hendrix jamais soubera uma nota de teoria musical. Parei de estudar música e comecei tudo de novo. Mas a banda... Nunca mais uma banda como Mendigos e Companhia. Foi a primeira e última apresentação, depois de muitos e muitos ensaios. E seguimos depois cada qual para nossos caminhos.