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apostilasmedicina@hotmail.com Produtos: http://ista.mercadolivre.com. br/_Custid_161477962 Tratado de Geriatria e Gerontologia Teorias Psicoldgicas do Envelhecimento | Percurso Histoérico e Teorias Atuais Anita Liberalesso Neri © estudo psicolégico do envelhecimento beneficia-se da acao multidisciplinar e interdisciplinar, da orientagéo por microteorias ¢ modelos, e da adogéo de uma perspectiva de desenvolvimento a0 longo de toda a vida. As funsées integrativas, sistematizadoras, preditivas ¢ explicativas das teorias em relagao 4 produgao e & aplicacao do conhecimento justificam que se faga um esforso deliberado de conhecé-las e de testé-las em busca de especificidades e generalidades dos fendmenos velhice ¢ envelhecimento. A realizagao de pesquisas ¢ intervengdes orientadas por clas pode significar um ganho substancial para o estudo e a atencao velhice no Brasil. Em contrapartida, a pesquisa e a intervencéo sem base em teorias gera pelo menos trés problemas: (1) florescimento e perpetuagio de falsas crengas € de preconceitos; (2) incapacidade de progredir a partir do que j& se conhece; (3) incapacidade de avaliar a qualidade das intervengées com base em critérios objetivos. Este capitulo representa um esforgo em diregao ao ensino de te: fortalecer a divulgacao e o ensino de teorias em Psicologia do Envelhecimento, area que, depois da Medicina, é a que mais contribui para o conhecimento gerontolégico. Inicialmente si veiculadas definigSes dos termos paradigma e teoria, Seguem-se explanagdes sobre 0 histérico ¢ os principios caracteristicos de cada um dos paradigmas (paradigmas mecanicista, organicista, dialético, de curso de vida e de desenvolvimento ao longo de toda a vida, ou (life-span)(. A teoria epigenética de Erikson (1959, 1968), que representa a transicdo do paradigma organicista para o de desenvolvimento a0 longo de toda a vida (life-span), é apresentada como a principal derivacio do paradigma organicista. O paradigma de curso de vida corresponde & teoria de Havighurt (1951, 1959) sobre tarefas evolutivas e sobre a atividade e & teoria de Neugarten (1964, 1965, 1968, 1969) sobre a construcao social do desenvolvimento. © paradigma dialético proposto por Riegel (1976) significou um ponto de inflexio no pensamento sobre 0 desenvolvimento ¢ influenciou diretamente a construcio do paradigma de desenvolvimento 20 longo de toda a vida (life-span) [Baltes, 1987, 1997], uma sintese dos paradigmas mecanicista, organicista e de curso de vida. O paradigma (life-span é hoje o mais influente da Psicologia do Envelhecimento, As microteorias da dependéncia ¢ da seletividade sscio-emocional (Baltes, 1996; Carstensen, 1991), temas que fecham o capitulo, sio suas derivacées. Neste livro, outros textos veiculam microteorias baseadas nesse as psicolégicas sobre o envelhecimento. £ importante 102 paradigma (ver os capitulos sobre sabedoria, criatividade e gerotranscendéncia: inteligéncia; controle; senso de autoeficécia e estratégias de enfrentamento do estresse) > Paradigmas e teorias em Psicologia do Envelhecimento Uma teoria é um conjunto de definicées, leis e principios gerais sobre um determinado objeto. 0 objetivo da teoria é a construgao do conhecimento cientifico, de forma sistemstica, reflexiva, critica, coletiva ¢ acumulativa, Funcionam como lentes por meio das quais os cientistas observam, compreendem, explicam e fazem predicées sobre a realidade (Birren, 1999), As teorias possibilitam realizar trés importantes tarefas no ambito da construgao do conhecimento: (1) integragio do que j se comhece, por meio de generalizacées ou de principios gerais que descrevem associagdes entre variiveis e entre conceitos; (2) explicagao sobre as relagdes entre os fendmenos observados, a qual permite fazer predigdes; (3) proposigao de hipéteses sobre 0 que ainda nao se conhece, com base naquilo que jé foi demonstrado empiricamente ¢ descrito por principios cientificamente fundamentados (Bengtson (ef al, 1999). Uma outra utilidade das teorias cientificas diz respeito & sua aplicagio a realidades particulares visando a solugao de problemas humanos. Assim, as teorias s4o titeis para orientar hipéteses diagndsticas, procedimentos clinicos, avaliagbes comportamentais, intervengdes educacionais, construsio de instrumentos e planejamento de pesquisas Teorias iiteis so as que atendem a quatro critérios: (1) adequagao légica, associada a clareza, & consisténcia interna, & parciménia e ao poder explicativo; (2) adequacio operacional, isto é, poderem ser testadas empiricamente; (3) adequaao empirica, ou seja, os dados explicados por elas devem poder ser replicados; ¢ (4) relevancia pragmatica, isto é serem aplicdveis 4 realidade e iteis & predicao e a intervengao (Achembaum e Bengston, 1994) Das teorias psicoldgicas do desenvolvimento e do envelhecimento sao esperadas as seguintes contribuigSes: (1) descrigdo ¢ explicagio das mudancas comportamentais que acontecem ao longo da velhice; (2) caracterizagio das diferengas existentes entre individuos e grupos com relagio a como e por que se desenvolvem e envelhecem; (3) diferenciagio entre 0 que é peculiar aos idosos por causa da idade do que & devido ao contexto sécio-histérico ¢ & histéria pessoal; (4) identificagao das diferencas entre os idosos e as pessoas de outros grupos de idade; (5) descricao sobre como se alteram como se relacionam, na velhice, os diferentes processos psicol6gicos, como, por exemplo, a motivagio € cognisao; (6) saber se os diferentes processos psicolé gicos se modificam ou se mantém com o envelhecimento (Bitren, 1999) Os paradigmas cientificos nao sao teorias, mas grandes construgies intelectuais ou visdes gerais 4s quais as teorias sio subordinadas, Ou seja, os paradigmas estabelecem o arcabouso légico para a construgao de teorias ¢ para a condugao de pesquisas. Servem para representar vastos dominios de fendmenos, tais como a origem das espécies (criacionismo ou evolucionismo?), a origem do conhecimento (biolégico-inatista ou interacionista-construtivista?) e as causas do comportamento ¢ do desenvolvimento (biolégicas, ambientais ou ambas em interacdo?). Sao influenciados por fatos histOricos e por valores culturais (Kuhn, 1962). No caso do desenvolvimento e do envelhecimento, os paradigmas dizem respeito 4 natureza geral das mudangas evolutivas que ocorrem em determinados periodos da vida ¢ durante a vida em toda a sua extensio. A construgao da Psicologia do Desenvolvimento foi presidida por trés paradigmas: 0 mecanicista, o organicista € 0 dialético (Baltes (et al, 1980). Lerner (1983) acrescentou a essa triade uma outra fonte de influéncia, o paradigma de curso de vida que foi gerado a partir do didlogo entre a Antropologia Cultural e a Sociologia m Paradigma mecanicista ‘Negagéo da possibilidade de desenvolvimentona vida adulta ena velhice A ideia central do paradigma mecanicista é a do ser humano como maquina que reage a forcas externas. Liberdade, decisoes, pensamentos € 6 préprio eu nao sio vistos como condigdes causais, mas como construtos tedricos. O desenvolvimento seria produto de uma histéria de relacées ou de funsées estimulo-resposta sem a intervencio de uma mente interpretativa. As teorias estimulo-resposta de Watson (1878-1958), Tolman (1886-1959), Hull (1884-1952) Skinner (1904-1990) exemplificam 0 paradigma mecanicista ¢ marcaram época na histéria das ideias em Psicologia, em uum momento em que era importante estabelecer o estatuto cientifico da disciplina © paradigma mecanicista ¢ as teorias a cle vinculadas tiveram papel fundamental no despertar da experimentagio em psicologia envolvendo individuos mais velhos, mas tiveram influéncia modesta na explicasao do desenvolvimento. Os experimentos sobre aprendizagem e tempo de reagdo em individuos mais velhos resultaram em dados que conduziram os estudiosos a concluir que a idade acarreta diminuigo das capacidades. Essa ideia ajudow a fortalecer a nogao de que 0 desenvolvimento cessa apés a adolescéncia, que predominou na Psicologia do Desenvolvimento até os anos 1960, 103 ‘Uma contribuicdo fundamental ao estabelecimento da nogao de que na velhice nao hé possibilidade de desenvolvimento foi ensejada pelos estudos psicométricos sobre a inteligéncia do adulto realizados durante a Primeira Guerra Mundial, os quais envolveram 1.726.966 homens entre 18 ¢ 60 anos. Em 1921, foram publicados os resultados dessa investigacio, mostrando que os grupos de 30 anos e mais apresentavam desempenhos piores, e que, quanto mais velhos os individuos, maior era a discrepancia entre seu desempenho intelectual ¢ o dos mais jovens. Yerkes (1921) sugeriu que os dados talvez decorressem nao s6 de influéncias biolégicas, mas também da bagagem cultural, das experiéncias pessoais e do nivel educacional dos participantes, mas suas ponderagdes ndo foram ouvidas, possivelmente porque iam contra a corrente dominante no pensamento cientifico da época. Prevaleceu e cristalizou-se o que Lehr (1988) chama de “modelo deficitario do desenvolvimento mental na vida adulta’, que tanta influéncia exerceu na vida social e na Psicologia m= Paradigma organicista Teorias psicolégicas de estdgio do desenvolvimento na vida adulta e na velhice A metéfora que caracteriza esse paradigma é a de crescimento, culminancia e contragio, assumido pela Psicologia do Desenvolvimento, que marcou a constituigdo da Psicologia do Desenvolvimento (Lerner, 1983). As nogdes centrais desse paradigma sio de proceso, integracao ¢ organizagao ¢ de desenvolvimento como processo ativo de mudanga ordenada a um alvo superior. Segundo a visio organicista, o desenvolvimento é uma sucessio de estgios regulados por principios intrinsecos de mudanga, para cuja manifestag4o os determinantes sociais, histéricos e culturais oferecem as condigoes. Esse paradigma pode ser resumido em seis nogdes norteadoras: (1) sequencialidade das transformacdes que ocorrem no individuo ao longo do tempo; (2) unidirecionalidade; (3) orientagao meta; (4) irreversibilidade; (5) natureza estrutural- qualitativa das transformagées; ¢ (6) universalidade dos processos de mudanga. (© ancestral comum as teorias de estégio desenvolvidas na primeira metade do século 20 é a teoria ev Darwin (1801-1882) com seus princfpios de continuidade da mudanga histérica, multidirecionalidade, seletividade, criatividade e progressividade da evolucao das espécies. Eles influenciaram a maioria dos cientistas que viveram no comeso do século 20, a comesar por G. Stanley Hall (1844-1924), um dos fundadores da Psicologia do Desenvolvimento, autor de duas obras de félego, que foram precursoras da Psicologia da Adolescéncia (Hall, 1904) ¢ da Psicologia da Velhice (Hall, 1922). Os principios evolucionistas s4o subjacentes As teorias sobre o desenvolvimento na vida adulta ena velhice de autoria de Buhler (1935), Erikson (1959, 1968) ¢ Levinson (1978), que exerceram ¢ exercem forte influéncia no campo. A teoria de Erikson foi a primeira a considerar o desenvolvimento como um proceso que dura toda a vida, motivo pelo qual é tida como precursora do paradigma (life span. Erik Erikson: o desenvolvimento como sequéncia de crises psicossociais ¢ de tarefas evolutivas que se desdobram ao longo de toda a vida Segundo Erikson, o potencial para o desenvolvimento esté totalmente presente no individuo por ocasiao do nascimento, cabendo ao ambiente sociocultural dar oportunidades para a manifestasio desse potencial. Denomina sua teoria de epigenética, termo cuja etimologia remete 4 nogao de algo que se origina, aparece ou se manifesta de dentro para fora, por desdobramento, como no desenvolvimento do embrido. Para o autor, as fases de desenvolvimento se sucedem em ciclos, cada um caracterizado pela emergéncia de um tema evolutivo ou crise evolutiva. Para o autor, as crises evolutivas sio universais, assim como é universal a sua sequéncia, porque integram a natureza humana, Elas se desdobram sucessivamente, estando os estgios mais avangados contidos nos anteriores (Erikson, 1959, 1968) Erikson assumiu como ponto de partida a teoria sobre os estagios do desenvolvimento psicossexual proposta por Freud (1905), mas integrou-a com conhecimentos das ciéncias sociais. Diferentemente de Freud, nao via o ego como palco dos conflitos entre as necessidades internas e as pressdes do ambiente, Chamou a atengao para o enfrentamento ativo do mundo pelo ego, que muda qualitativamente ao longo da vida, permitindo a modificagao das vivencias ¢ dos comportamentos ¢ 0 desenvolvimento da personalidade. Para o autor, as influéncias socioculturais contextualizam a manifestagio ¢ a resolugao das crises evolutivas que se desdobram em ciclos particulares ao longo do ciclo vital. As crises sao consideradas como temas cruciais que emergem sequencialmente ao longo da vida, do nascimento & velhice. Segundo © autor, da tensio que se cria entre forcas contraditérias ou desafios irradiados pelos dois polos de cada uma delas originam-se qualidades do ego ¢ o crescimento. No Quadro 3.1, aparecem as oito fases ou idades da vida propostas por sua teoria, em cada uma das quais o autor aponta a emergéncia de uma crise caracteristica, O enfrentamento ativo de cada crise resulta em dominio que se reflete no cumprimento de tarefas especificas: na fase oral, 0 estabelecimento de vinculo com a figura materna; na fase anal, responder s tentativas de socializagao inicial pela familia; na fase genital, estabelecimento de identidade do papel sexual ¢ desenvolvimento inicial do autogoverno; na de laténcia, submissio 4s normas culturais bésicas; na adolescéncia, formasao da identidade sexual adulta, busca de novos valores e adaptacao do (self as mudangas da puberdade; na vida adulta inicial, desenvolver relagées profundas com um parceiro, sem medo de perda da identidade, estabelecer familia, trabalhar ¢ \cionista de 104 educar; na vida adulta, conquistar 0 apogeu profissional e passar o bastdo para a geracdo seguinte; na maturidade, autoaceitagao, senso de integridade da histéria pessoal e formagao de um ponto de vista sobre a morte. Para Erikson (195 1968), cada crise é sistematicamente relacionada com todas as outras, ¢ 0 desenvolvimento apropriado depende da vivéncia das crises, uma apés a outra. Cada crise existe de alguma forma antes da chegada de sua época critica, Interessa & sociedade encorajar o desdobramento sequencial dessas potencialidades porque isso garante a manutengao do humano. As ideias de Erikson sao contemporaneas dos primeiros estudos inspirados no paradigma de curso de vida e precederam 10 do paradigma dialético 4 compreensio do desenvolvimento (Riegel, as publicagdes pioneiras que propunham a aplica 1976). Blas sao consideradas como precursoras do didlogo entre os paradigmas organicista e dialético. ~ quadro 3.1 As oto idades do ser humano (Erikson, 1950, 1968) rise Faseda vida | psicossocial ‘Tarefas evolutivas Qualidade do ego Fase bebé | Confiangax _Formagao de vinculo com a figura materna, confianga nessa figura e em si mesmo; Esperanca desconflanga | confianca na prépria capacidade de fazer com que as colsas acontecam Infancia ‘Autonomiax Desenvolvimento da liberdade de escolha; controle sobre o préprio corpo Vontade/dominio inicial vvergonha e divida Idade do Iniciativax | Atividades orientadas a meta: autoafirmacio Propésito brinquedo | culpa Idade escolar | Trabalhox _Aquisicdo de repertérios escolares e sociais bisicos exigidos pela cultura Competéncia Inferiridade Adolescéncia | Identidade x | Subordinagio do seifa um projeto de vida; senso de identidade; capacidade critica Fidelidade difusioda | aquisicéode novos valores Identidade Idade adulta | Intimidadex | Desenvolvimento de relacées amorosas estavels que implica conhecimento,respeito, Amor isolamento | responsabilidade e doagio, como base em relagées amorosas estavels; capacidade de revelar-se sem medo de perda da identidade Geratividade Gerace de filhos,ideias e valores; transmissao de conhecimentos e valores a geracgo Cuidado xestagnagio | seguinte Velhice Integridade __Integragio dos temas anteriores do desenvolvimento; autoaceitagio; formac3o deum | Sabedoria doegox Ponto de vista sobre a morte; preocupacéo em deixar um legado espirituale cultural desespero m Paradigma dialético O desenvolvimento como processo permanente de condilaséo entre determinantes inatos-biol6gics, individuais-psicolégicos,culturas psicol6gicos e naturais-ecolégicos As nogdes fundamentais do paradigma dialético sao a mudanga ¢ a contradicio, Uma posigao dialética em Psicologia focaliza a mudanga, a interacio dindmica, a causacio simultinea e miitua, a falta de completa determinasio e a atuasio conjunta de processos ontogenéticos (individuais) ¢ histérico-culturais (coletivo-evolutivos) na determinagto do comportamento ¢ do desenvolvimento (Riegel, 1976). © pensamento dialético implica a aceitasao da ideia de que pode haver interagdo reciproca entre as contradicées. Um exemplo disso é uma nogio de assimilagio ¢ a acomodagio na teoria de Piaget: na acomodagao, a experiéncia muda as estruturas mentais; na assimilacao, as estruturas mentais transformam a experiéncia foco do paradigma dialético era o abandono da perspectiva organicista ¢, em seu lugar, a adogao da perspectiva dialética ¢ a rejeigao das teorias de estagios orientados 4 meta, representada, por exemplo, pelo (status adulto ou pelo pensamento operatério abstrato, Segundo Riegel (1976), 0 desenvolvimento deve ser compreendido como um processo que dura toda a vida e que € presidido por influéncias de natureza inato-biolégica, individual-psicoldgica, cultural- psicolégica e natural-ecoldgica. A contribuicao relativa de cada uma delas muda conforme a idade, e qualquer uma pode ser fonte de influéncia esperada ou inesperada, tanto em termos individuais quanto coletivos. Periodos de desenvolvimento dito normal sio aqueles em que essas fontes esto em sincronia. Eventualmente, esse proceso ¢ interrompido ou obstado por pontos de transicdo ou crises de natureza biolégica (p. ex., a menarca ou o climatério), psicossocial (p. ex., a aposentadoria e a entrada no mercado de trabalho), societal (p. ex, uma guerra) ou ecolégica (p. ex, um terremoto), que geram novos pontos de influéncia, de duragao variavel e com valor positive ou negativo. Depois desses eventos, a experiéncia nio mais sera a mesma, ¢ 0 processo de desenvolvimento integraré 0 novo elemento produzido pelo enfrentamento do desafio, Instabilidades e descontinuidades no desenvolvimento caracterizam assincronia entre os vérios dominios ¢ criam focos de tensio ¢ de conflitos. Esforgos adaptativos do individuo ~ por exemplo, investindo em novos conhecimentos, em novos papéis ou em mecanismos de enfrentamento ~ conduzem o desenvolvimento a uma nova sintese, ou a um novo perfodo de desenvolvimento normal, ¢ assim sucessivamente, Ao contririo do pretendido pelas proposigdes organicistas, para o paradigma dialético o desenvolvimento nao percorre ‘um caminho linear, mas uma trajetéria caracterizada por tensio constante entre as forgas que o determinam. Essa tensio é adaptativa e essencialmente promotora do desenvolvimento. Os ingredientes-chave do paradigma dialético sio: foco na mudanga, interagéo dindmica, causalidade recfproca, auséncia de completa determinacio e preocupagio com processos de mudanga determinados pela atuasao conjunta de processos individuais (ontogenéticos) e histéricos (culturais-evolutivos) (© paradigma de desenvolvimento ao longo de toda a vida (life-span) que se desenvolveu a partir dos anos 1980 teve nos paradigmas dialético ¢ de curso de vida suas mais poderosas fontes de influéncia, Psicélogos, sociélogos, antropélogos, geneticistas, bidlogos e médicos realizaram um grande e bem-sucedido esforco interdisciplinar para geré-lo. Na atualidade, a influéncia do paradigma (life-span ultrapassa os limites da Psicologia do Envelhecimento. E corres Psicologia do Desenvolvimento, na Psicologia da Familia e na Gerontologia. Deu origem a numerosas pesquisas de carter interdisciplinar longitudinal que evidenciaram as suas qualidades como um corpo de abstragdes sobre o significado, as diregdes e a variabilidade do proceso de envelhecimento visto como concorrente ao proceso de desenvolvimento. wm Paradigma de curso de vida Atrajetéria de desenvolvimento é presidida por processos simbélicos expressos em normas etdrias e de género em interagao com eventos de transigao A interagao social e a socializacao sao 0s conceitos bésicos do paradigma de curso de vida, vinculado ao funcionalismo em Psicologia e ao interacionismo simbélico em Sociologia. Foram seus precursores William James, na Psicologia, nos anos 1890, ¢ George Ilerbert Mead, na Sociologia, nos anos 1930, Seus conceitos influenciaram Havighurst (1900-1990) ¢ Neugarten (1916-2001), entre outros integrantes do primeiro programa académico sobre maturidade e velhice de que se tem noticia, ¢ que se instalou na Universidade de Chicago nos anos 1940. A partir dos anos 1940, aumento do niimero de idosos nos EUA eo aumento da expectativa de vida da sua populagio criaram um imperativo demogrifico cujo efeito sobre a academia foi a criagao de cerca de 1.100 cursos sobre envelhecimento em faculdades e universidades e de um grande mimero de publicagSes sobre o envelhecimento. Esses fatos ajudaram a impulsionar a Psicologia do Envelhecimento (Neugarten, 1988). As teorias de tarefas evolutivas (Havighurst, 1951), da atividade (Havighurst ¢ Albrecht, 1953) ¢ do afastamento (Cummings e Henry, 1961) nasceram nesse contexto. Havighurst (1951) definiu tarefas evolutivas como desafios normativos associados 4 idade cronolégica, produzidos conjuntamente por maturasio biolégica, pressio cultural da sociedade ¢ desejos, aspiragdes e valores da personalidade. Compreendem habilidades, conhecimentos, fungdes ¢ atitudes que o individuo deve adquirir em dado momento de sua vida, sob a ago da maturagio fisica, das perspectivas sociais e dos esforgos pessoais. Organizam-se em torno de sete polos: crescimento fisico, desempenho intelectual, ajustamento emocional, relacionamento social, atitudes diante do eu, atitudes diante da realidade e formacao de padrées e valores. (© sucesso no cumprimento das tarefas evolutivas tipicas de cada idade conduz a satisfagdo, ao senso de ajustamento € a0 sucesso no enfrentamento de tarefas futuras, a0 paso que o fracasso conduz a insatisfagao, & desaprovacéo social ¢ a dificuldades na realizagao de futuras tarefas. © autor descreveu seis estagios evolutivos, ao longo de todo curso de vida, cada um correspondente a uma tarefa evolutiva central, © conceito organizador das tarefas evolutivas relacionadas com a velhice é a atividade, descrita como condigéo de uma velhice exitosa, caracterizada por altos niveis de satisfagio, sade ¢ produtividade (Havighurst, 1951). Sao ideias centrais da teoria da atividade (Havighurst Albrecht, 1961), que se estabeleceu em oposigao a teoria do desengajamento (Cummings ¢ Henry,1961). Ambas tiveram forte influéncia sobre a pesquisa e a intervencao em Gerontologia. Por desengajamento entende-se o afastamento natural ¢ normal das pessoas que envelhecem dos papéis sociais ¢ das atividades anteriores e, em paralelo, o aumento da preocupagao com o (self 0 declinio do envolvimento emocional com 08 outros. No comeco dos anos 1950, essa ideia j4 ndo era nova na Psicologia, posto que Charlotte Bubler (1935) e Jung 106 (1933) ja haviam descrito a tendéncia 4 interiorizacao e ao afastamento como caracteristicas da meia-idade. A diferenca é que estes dois autores viam estes movimentos como de origem intrinseca, ao passo que a teoria do afastamento os viam como produto da socializagao. No paradigma de curso de vida, o individuo eo ambiente social s4o vistos como entidades mutuamente influentes e, assim, coparticipantes no proceso de construgao da trajetéria de desenvolvimento individual e das diferentes coortes. O desenvolvimento é visto como um processo continuo de adaptagao que dura por toda a vida, Nao se aceita que a trajetéria de desenvolvimento seja organizada por eventos de natureza ontogenética, como querem os psicélogos de orientagio organicista, que descrevem 0 desenvolvimento como proceso balizado pela idade cronolégica ou por crises evolutivas Ao contrario, para o paradigma de curso de vida, a sociedade constr6i cursos de vida ou trajetérias de desenvolvimento, na medida em que prescreve quais sio os comportamentos apropriados para as diferentes faixas etirias, ¢ ensina os individuos e instituigdes a considerar que certas trajetdrias sio normais e esperadas, como se isso fosse natural, e nio criado socialmente. A metéfora do (relégio social foi cunhada por Neugarten (1969) para descrever os mecanismos sociais de temporalizagio do curso de vida individual. Para a autora, individuos e coortes internalizam esse reldgio, que serve para regular 0 senso de normalidade, de ajustamento e de pertencimento a um grupo etirio ou a uma geragio. Os cursos de vida sio plasmados pelas crengas culturais sobre como devem ser as biografias individuais, por sequéncias institucionalizadas de papéis posigdes sociais, por restrigdes ¢ permissdes em relagao aos desempenhos de papéis etirios e de género e pelas decisoes das pessoas. As trajetérias sio também determinadas por eventos de ordem privada, como, por exemplo, a idade subjetiva ea nogao de normalidade em rela¢io 4 temporalidade do proprio desenvolvimento, A conjugacio de eventos biolégicos € psicossociais € 0 material a partir do qual os individuos e a sociedade criam conceitos de desenvolvimento normal e de fases do desenvolvimento que, em ver de se sucederem a partir de uma determinacao interna-bioldgica ou interna psiquica, sto graduados e demarcados por eventos de transigio de natureza bioldgica (p. ex. a menarca e a menopausa) € sociolégica (p. ex. a entrada na escola ¢ a aposentadoria), que se associam a tarefas evolutivas (Neugarten, 1964, 1965, 1968, 1968) © paradigma de curso de vida tem especial interesse pela anilise do significado dos eventos de transigdo na vida das pessoas, que ao mesmo tempo em que quebram a estabilidade do desenvolvimento, também representa condicées para mudangas adaptativas. Considera-se que os eventos de transigao podem assumir duas formas; normativas ¢ idiossincriticas. As transigSes normativas séo aquelas que tém uma época esperada de ocorréncia, de acordo com o que é reconhecido ou prescrito pela cultura (p. ex. menopausa, casamento e aposentadoria). As idiossincraticas sao as que ocorrem raramente, ou para poucos individuos, ou que tém uma época de aparecimento imprevisivel (p. ex, divércio, desemprego ¢ ganhar na loteria). Por serem esperadas e permitirem preparacio ou socializacao antecipatéria ou ressocializagao, as transigGes normativas nao tém impacto emocional tao grande quanto &s transigdes idiossincraticas. As pessoas tendem a viver as mudancas normativas acompanhadas pelo seu grupo de idade, género e condigao social, o que Ihes assegura apoio social e senso de normalidade, a0 passo que as idiossincraticas sio geralmente vividas de forma solitéria ou como eventos tinicos. Por isso parecem mais estressantes (Neugarten, 1969) Tanto os eventos normativos quanto os idiossincréticos podem ser descritos em termos de duas outras dimensées: internalidade ¢ externalidade, Hi transigdes deflagradas por eventos originados (de dentro para fora que envolvem sentimentos, reagdes fisicas, experiéncias pessoais outros eventos privados relativos ao (self (p. ex., insatisfagao com a carreira ou crises de identidade e/ou valor que podem acionar mudangas pessoais, que se expressam no contexto social. As transigdes provocadas por eventos externos refletem forgas sociais ¢ sio exemplificadas por promogao no trabalho, ganhar na loteria e ganhar um neto, mudangas essas que necessitam ser elaboradas pelo (self para que funcionem como eventos de transigao. Chiriboga (1975) nota que eventos de transigao que sdo esperados, mas nao ocorrem (p. ex., no casamento para mogas que desejaram casar-se), ¢ eventos esperados que sio vividos fora de tempo (p. ex, nascimento tardio de filhos para mulheres que néo desejavam adiar a maternidade) tendem a causar mais pressio emocional do que quando eventos esperados ocorrem na hora certa, Tais pontos de vista resultaram em modelos de anilise da adaptasio a transigao que sio liteis para orientar processos de intervengao clinica ou de aconselhamento ‘Uma outra maneira de considerar o papel dos eventos de transicao na vida adulta diz respeito & nosdo de que eles sio elementos que evocam a necessidade de reestruturacéo do roteiro de vida de cada um, As pessoas tém necessidade de compreender, interpretar ¢ integrar os grandes eventos da histéria social ¢ os pequenos ¢ grandes eventos de sua vida pessoal em histérias coerentes, das quais possam derivar senso de continuidade e propésito em suas vidas. Certos pontos de transigéo, principalmente se traumaticos ou muito desafiadores, podem criar pontos de inflexto a partir dos quais a vida passa a ser contada de outra maneira e a autodescrisao passa a contar com novos elementos de exaltagao ou de inferiorizagao do (self (Sommer e Baumeister, 1998). 107 © paradigma de curso de vida leva em conta o proceso de construcao social do desenvolvimento do adulto, o papel dos processos sociais no desenvolvimento das fungdes do (selfe a natureza interpessoal da vida humana. Tais ideias tiveram forte influéncia sobre o paradigma psicolégico do desenvolvimento ao longo de toda a vida (life-span), que se desenvolveu na mesma época, como uma sintese dos conceitos organicistas, de curso de vida e dialéticos. 1m Paradigma de desenvolvimento ao longo de toda a vida (life-span) De indole pluralista, este paradigma considera miltiplos niveis ¢ dimensdes do desenvolvimento, visto como proceso interacional, dinamico e contextualizado (Baltes e Smith, 2004a). Integra a nogao organicista segundo a qual as mudangas evolutivas tém base ontogenética com as ideias dos paradigmas de curso de vida e dialético. Em artigo autobiogrifico em que discorre sobre as origens do paradigma, Baltes (2000) comenta que a Psicologia do Desenvolvimento alema ja tinha orientagao (lifespan desde 0 século 18, como atestam as obras precursoras de Tetens (1736-1807) e, j4 no século 20, as ideias de Thomae (1915-2001), que, entre 1964 e 1980, desenvolveu 0 primeiro estudo longitudinal sobre a meia-idade e a velhice, o (Bonn Longitudinal Study of Aging (Thomae, 1976). Na origem do paradigma de desenvolvimento ao longo de toda a vida (life-span) estéo também as contribuicées metodolégicas de K. Warner Schaie, nascido na Alemanha em 1928. Ao planejar o (Seattle Longitudinal Study, uma investigacdo sobre a inteligéncia que comegou em 1955 ¢ dura até hoje, elaborou estratégias que levavam em conta nao apenas as mudangas devidas & passagem do tempo do calendario, que assinala mudancas de origem genético-biolégica, mas também as devidas ao tempo histérico, que envolve mudangas socioculturais (Schaie, 1965, 1996) Em colaboragao com os socidlogos do paradigma de curso de vida, a perspectiva de desenvolvimento ao longo de toda a vida (life-span) identificou trés classes de influéncias biossociais: (1) graduadas por idade; (2) graduadas por histéria; e (3) nGo normativas ou idiossincréticas (Baltes (et al, 1979, 1980). Posteriormente, os autores refinaram essas concepgies ¢ propuseram principios adicionais descrevendo outras trajetérias evolutivas que levam em conta a atuacao concorrente dos determinantes genético-biolégicos ¢ socioculturais: (1) a arquitetura da ontogenia ¢ a interagao dindmica entre fatores biolégicos culturais mudam ao longo da vida; (2) hd diferente alocagio de recursos ao longo da vida, que passa da énfase no crescimento (na infincia) 4 énfase na manutencio e na regulacéo das perdas (na velhice); e (3) ocorre atuagao sistémica de mecanismos de selegéo, otimizagéo ¢ compensagéo na produgo do desenvolvimento ¢ do envelhecimento bem- sucedidos ou adaptativos (Baltes, 1997; Baltes e Smith, 2004; Li e Freund, 2005). Nese paradigma, o desenvolvimento ¢ o envelhecimento s2o analisados como uma sequéncia de mudangas previsiveis, de natureza genético-bioldgica, que ocorrem ao longo das idades, e por isso sdo chamadas de mudangas graduadas por idade; como uma sequéncia previsivel de mudangas psicossociais determinadas pelos processos de socializagao a que as pessoas de cada coorte esto sujeitas, ¢ que por isso so chamadas de influéncias graduadas por histéria; e como uma sequéncia nao previsivel de alteragdes devidas & influéncia de agendas biol6gicas e sociais, e que por isso sio chamadas de influéncias nao normativas > Influéncias normativas graduadas por idade, ou ontogenéticas. Sao eventos que tendem a ocorrer na mesma época e com a mesma duragao para a maioria dos individuos de uma dada sociedade ou subcultura, © conceito de normalidade é estatistico e diz respeito 4 alta frequéncia desses eventos em um dado grupo de idade. Embora nao causados pela mera passagem do tempo, mas pelas interagdes entre organismo eo ambiente, eles s40 associados ao tempo dimensionado em anos ou meses. Parte desses eventos é de natureza biolégica, como, por exemplo, a maturagao durante a infancia inicial, © envelhecimento e o aumento da variabilidade interindividual a partir da vida adulta. Hi eventos graduados por idade que esto ligados & socializagao ¢ a expectativas sociais, da familia, da educacao ¢ do trabalho. Permitem a aquisicao de papéis e de competéncias sociais associadas & idade e & estrutura social. Ou seja, em cada Epoca e sociedade estabelecem-se normas de comportamento associados 4 idade ¢ ao género, Hoje ha padrées diferentes quanto ao casamento, & procriagéo ¢ 4 carreira, em comparacéo com os que vigoravam hé 30 ou 40 anos. As pessoas se casam mais tarde, adiam o plano de ter filhos em favor de investir na carreira e podem optar por nio ter filhos. Os divércios sdo mais comuns ¢ os recasamentos podem permitit que homens mais velhos tenham netos ¢ filhos quase da mesma idade. A aposentadoria pode nao mais significar o encerramento da carreira, mas a possibilidade de realizar novos investimentos educacionais e profissionais (Settersten ¢ Mayer, 1997) No envelhecimento, uma parte substantiva dos eventos normativos graduados por idade é de natureza biolégica, seguindo agenda tipica da espécie humana. Assim, com 0 envelhecimento diminui a plasticidade comportamental definida como a possibilidade de mudar para adaptar-se ao meio (p. ex. por meio de novas aprendizagens); diminui a resiliéncia definida como a capacidade de enfrentar e de recuperar-se dos efeitos da exposicao a eventos estressantes (p. ex., doencas € traumas). Os limites da plasticidade individual dependem das condigdes histérico-culturais, condigdes essas que se refletem na organizagéo do curso de vida dos individuos ¢ das coortes, como foi demonstrado por estudos sobre 0 desenvolvimento intelectual ao longo da vida. A resiliéncia individual depende dos apoios sociais, mas depende também 108

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