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Fundamentos da Educação

Carlos Rodrigues Brandão


Francis Silva de Almeida
Iolanda Rodrigues Nunes
Sueli Teresinha de Abreu Bernardes
© 2019 by Universidade de Uberaba

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta publicação poderá ser


reproduzida ou transmitida de qualquer modo ou por qualquer outro meio, eletrônico
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Universidade de Uberaba

Reitor
Marcelo Palmério

Pró-Reitor de Educação a Distância


Fernando César Marra e Silva

Coordenação de Graduação a Distância


Sílvia Denise dos Santos Bisinotto

Editoração e Arte
Produção de Materiais Didáticos-Uniube

Editoração
Patrícia Souza Ferreira Rosa

Revisão textual
Erlane Silva Nunes

Diagramação
Jessica de Paula

Ilustrações
Acervo Uniube

Projeto da capa
Agência Experimental Portfólio

Edição
Universidade de Uberaba
Av. Nenê Sabino, 1801 – Bairro Universitário

Catalogação elaborada pelo Setor de Referência da Biblioteca Central Uniube

F962 Fundamentos da educação / Francis Silva de Almeida... [et al.]. – Uberaba :


Universidade de Uberaba, 2019.
246 p. : il.
Programa de Educação a Distância – Universidade de Uberaba.
Inclui bibliografia
ISBN 978-85-7777-902-4

1. Educação. 2. Educação – Pensamento crítico. 3. Professores. I. Brandão, Carlos


Rodrigues. II. Universidade de Uberaba. Programa de Educação a Distância. III. Título.

CDD 370
Sobre os autores
Carlos Rodrigues Brandão

Pós-doutorado em Antropologia pela Universidade de Perúgia, Itália. Pós


-doutorado em História Contemporânea pela Universidade de Santiago
e Compostela (USC), Espanha. Doutorado em Ciências Sociais pela
Universidade de São Paulo (USP). Mestrado em Antropologia pela
Universidade de Brasília (UnB). Especialização em Educação pelo Centro
Regional de Educación Fundamental para la America Latina (CREFAL),
México. Graduação em Psicologia pela Pontifícia Universidade CAtólica
do Rio de Janeiro (PUC-Rio).

Francis Silva de Almeida

Mestrado em Educação pela Universidade Federal do Triângulo Mineiro


(UFTM). Especialização em Docência nos Ensinos Médio, Técnico e
Superior pelo Centro Universitário Leonardo da Vinci (Uniasselvi/Instituto
Passo 1). Graduação em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica
de Goiás (PUC-Goiás). Professor de Filosofia e Cultura Religiosa no
Ensino Médio do Colégio Marista Diocesano de Uberaba. Professor do
curso de Pedagogia a distância da Universidade de Uberaba (Uniube).
Membro do grupo de estudos e pesquisa sobre a Formação Ética do
Professor (FEP), vinculado ao Programa de Pós-graduação, Mestrado
em Educação, da Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM).

Iolanda Rodrigues Nunes

Mestrado em Educação pela Universidade Federal de São Carlos


(UFSCAR). Mestrado em Ciências e Valores Humanos pela Universidade
de Uberaba (Uniube). Especialização em metodologia do ensino da
Geografia pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Graduação
em Pedagogia e Letras pela Sociedade de Ensino Superior de Nova
Iguaçu. Atualmente é professora de Educação Infantil na Rede Pública
do Município do Rio de Janeiro. Possui ampla experiência na área da
Educação com ênfase em Administração de Unidades Educativas.

Sueli Terezinha de Abreu Bernardes

Doutorado e mestrado em Educação pela Universidade Federal de Goiás


(UFG). Mestrado em Ciências e Valores Humanos pela Universidade de
Uberaba (Uniube). Especialização em Metodologia do Ensino Superior
pela Universidade de Uberaba (Uniube). Especialização em Metodologia
do Ensino Superior pela Universidade Federal de Santa Catarina
(UFSC). Especialização em Psicologia pela Pontifícia Universidade de
Minas Gerais (PUC-Minas). Graduação em Filosofia (licenciatura) pela
Faculdade de Filosofia Ciências e Letras “Santo Tomás de Aquino” (Fista).
Sumário
Apresentação.............................................................................................................. VII

Capítulo 1 O humano no homem: pressupostos teóricos...................... 1


1.1 O que é o ser humano?............................................................................................ 4
1.2 O ser humano e os outros seres vivos................................................................... 13
1.3 O desenvolvimento humano................................................................................... 22
1.3.1 As teorias do desenvolvimento humano (inatismo, ambientalismo e
interacionismo).............................................................................................. 23
1.4 O ser humano: sujeito e objeto do conhecimento.................................................. 29
1.4.1 Do senso comum ao conhecimento científico.............................................. 31
1.5 O ser humano: um ser histórico, político e social................................................... 35
1.6 Considerações finais.............................................................................................. 40

Capítulo 2 O professor na transição de paradigmas educacionais..... 45


2.1 Balizas e princípios do nosso estudo..................................................................... 47
2.2 Escutando a voz dos poetas.................................................................................. 55
2.3 Por que o foco no professor................................................................................... 57
2.4 A educação sob a ótica tradicional e a progressista ............................................. 59
2.4.1 Tendências teóricas e concepções de educação......................................... 68
2.4.2 Pedagogia liberal e pedagogia progressista................................................ 71
2.5 As situações dialógicas, solidárias e interativas de educar................................... 74
2.5.1 Cenas, cenários e gestos da educação no paradigma emergente.............. 78
2.6 A construção partilhada do conhecimento na experiência da pesquisa
na docência............................................................................................................ 89
2.6.1 Dimensões da pesquisa na docência........................................................... 92
2.6.2 A relação professor- aluno em um trabalho de pesquisa na docência........ 98
2.6.3 O conhecimento que se cria junto.............................................................. 103
2.7 Considerações finais............................................................................................ 109

Capítulo 3 A formação do pensamento crítico.................................... 115


3.1 Filosofia e Educação: definindo conceitos.......................................................... 117
3.2 O problema filosófico e o problema pedagógico................................................. 126
3.2.1 A Filosofia como elemento do processo de ensino-aprendizagem .......... 129
3.3 Escola: experiência e memória .......................................................................... 134
3.3.1 O papel da escola no contexto político-social brasileiro ........................... 139
3.4 Considerações finais .......................................................................................... 147

Capítulo 4 Redes e teias do saber: cultura, educação


e sociedade....................................................................... 151
4.1 Cultura popular, arte e movimentos sociais......................................................... 153
4.2 Educação popular................................................................................................. 166
4.3 Educação como cultura, educação e cultura....................................................... 168
4.3.1 Aprendizes de feiticeiros............................................................................. 168
4.3.2 Feiticeiros de aprendizes............................................................................ 171
4.3.3 A pedagogia escolar.................................................................................... 174
4.4 Pessoa e cultura................................................................................................... 178
4.5 Professor como recriador da cultura.................................................................... 188
4.5.1 Quem ensina?............................................................................................. 190
4.5.2 Resumindo nosso diálogo........................................................................... 193
4.5.3 Antes de nos despedirmos.......................................................................... 194

Capítulo 5 Ética e formação ética do professor................................. 199


5.1 Ética e moral: demarcações conceituais.............................................................. 202
5.2 Ética, liberdade e consciência.............................................................................. 207
5.3 Ética e práxis educativa........................................................................................ 217
5.4 Considerações finais............................................................................................ 229
Apresentação
A educação é o ponto em que decidimos se amamos o
mundo o bastante para assumirmos a responsabilidade
por ele e, com tal gesto, salvá-lo da ruína que seria
inevitável não fosse a renovação e a vinda dos novos e
dos jovens.
Hannah Arendt

Prezado(a) aluno(a), seja bem-vindo(a) à disciplina Fundamentos da


Educação.

Com a leitura deste livro, iniciamos uma trajetória de buscas e construção


de sentidos que nos permitirá compreender a Educação como um campo
de estudos formado por intersecções. Os diferentes saberes que se
atravessam na interface entre a Antropologia, a Filosofia e a Sociologia
nos revelam a natureza dinâmica do fenômeno educativo e, por isso
mesmo, sua compreensão como construção histórico-cultural projetada
no interior das relações humanas.

Aprender não é mais representar o mundo, como postulavam os gregos


ou os modernos. Por isso, o caminho ao qual nos dedicaremos será
mediado de questionamentos, tantos e tão emaranhados que, em
algum momento dessas leituras, poder-se-ia dizer: há mais perguntas
do que respostas. De fato, essa é a ideia que une os diferentes autores
deste livro. Diferentes pessoas, com distintas formações acadêmicas e
experiências de pensamento; diferentes modos de sentir, pensar e agir
diante do mundo; singularidades. Ao lado deles, partilho o juízo de que
todo processo de busca e construção passa, direta e necessariamente,
pela capacidade de formular problemas e colocar questões antes de
qualquer enunciado.
VIII UNIUBE

O que é a educação? O que significa educar? Quais os sentidos e


as dimensões da educação? De que modo a educação nos permite
construir imagens do estar-no-mundo humano? Que imagem temos nós
da educação? E a escola, que papel ela possui? Com estas primeiras
questões, admitimos o ponto de partida que orientará as conversações
que esta leitura nos propõe: a educação, fenômeno tipicamente humano,
caracteriza-se pelo conjunto das ações e influências intencionais e
mutuamente exercidas entre pessoas, cujo propósito concorre para a
construção dos contextos sociais, econômicos, culturais e políticos de
uma sociedade. Em última análise, a questão que se coloca diz respeito
ao modo como a intrínseca relação entre o trabalho, a história e a cultura
se desenvolve no interior do fenômeno educativo: isto porque, se, de
um lado, encontram-se as políticas educacionais como instrumento
de institucionalização desta relação, do outro, destaca-se a ideia de
cultura como lugar, fonte de que se nutre o processo sócio-histórico de
construção da sociedade.

No primeiro capítulo, intitulado “O humano no homem: pressupostos


teóricos”, o autor se propõe a refletir sobre o ser humano em suas
diferentes dimensões, e o modo como ele se relaciona com os seus
pares, com a sociedade e a natureza em busca de humanizar-se. Essa
busca, tal como se compreende, caracteriza-se como itinerário de
autoconhecimento e evidencia a relação dialética Eu-Outro como espaço
privilegiado para a construção da consciência de ser e estar no mundo,
do mundo como lugar de complexidade, das dinâmicas de interação
cultural e de todo o estado de coisas que esboça o homem como ser
inacabado, em vias de tornar-se sempre novo, múltiplo e diferente. Neste
capítulo, o autor enfatiza ainda o estudo das principais diferenças entre
o ser humano e os demais seres vivos, contemplando os aspectos e os
fatores que intervêm no desenvolvimento humano, destacando, para
tanto, as teorias do desenvolvimento humano e suas principais correntes:
inatismo, ambientalismo e interacionismo.
UNIUBE IX

A par das questões que cercam a educação como campo de constantes


mudanças, os autores do segundo capítulo, “O professor na transição
de paradigmas educacionais”, discutem os conceitos de paradigma,
paradigma tradicional e paradigma emergente. Nesse contexto, analisam
de que modo e, em que medida, as diferentes tendências teóricas da
educação têm sustentado a compreensão e orientação da prática
educacional brasileira. Questionam, ainda, a forma da relação professor-
aluno-conhecimento ante a pesquisa e a construção compartilhada
dos saberes nos ambientes de aprendizagem, tendo em conta o
reconhecimento dessas interações como abertura sensível, crítica e
criativa capaz de refletir uma postura de admiração e busca constante.

No terceiro capítulo, “A formação do pensamento crítico”, o autor indaga


a relação entre filosofia e pedagogia no âmbito da educação escolar,
e, a partir daí, os limites e as possibilidades dessa relação no processo
de formação do pensamento crítico. O itinerário teórico proposto pelo
autor coloca em questão não só o papel que a escola e o professor
desempenham nesse processo, mas, também e, principalmente, o modo
como a demanda por sentido se insere nesse curso formativo e assinala
a extensão da vida ética e política na qual professor e aluno encontram-
se inseridos. Assim orientada, a formação que inclui a consciência crítica
é evidenciada como condição à promoção do protagonismo dos sujeitos
que se relacionam no processo de construção de conhecimento, e se
destaca como evidência de uma educação escolar capaz de formar
sujeitos intelectualmente emancipados, politicamente engajados e
socialmente solidários.

Nos desdobramentos do quarto capítulo, denominado “Redes e teias do


saber: cultura, educação e sociedade”, os autores nos chamam atenção
para as experiências de subjetividade através das quais os homens se
constituem sujeitos e elaboram suas visões de mundo. Do mesmo modo,
destacam a relação entre a escola e suas margens, evidenciando como
X UNIUBE

os aspectos socioeconômicos, filosóficos e culturais interferem na relação


que a escola mantém com a sociedade e no modo como a sociedade
constrói e projeta suas visões de escola. Nos entremeios dessa relação,
os autores destacam o papel desempenhado pelas políticas públicas e o
modo como as diferentes concepções de educação e escola se arranjam
como elementos do discurso pedagógico brasileiro.

No quinto e último capítulo, “Ética e formação ética do professor”, o


autor realiza as demarcações conceituais que conduzem à compreensão
das dimensões da ética e da moral como campos epistemológicos
distintos, para, a partir daí, colocar a questão da formação ética do
professor e a importância de sua atuação como sujeito de uma práxis
que se encontre vinculada ao fortalecimento das relações democráticas
e dos direitos humanos. O capítulo encontra-se dividido em dois grandes
arranjamentos teóricos: no primeiro, são realizadas incursões conceituais
sobre ética, moral, liberdade e consciência, como fundamentos
da dialética do Eu-Outro; no segundo, são tecidas discussões que
perpassam a formação e a atuação docente, tendo em conta a regência
da ação educativa como manifestação do ethos. No desdobramento das
reflexões propostas pelo autor, o mundo é compreendido como o lugar
da formação dos valores que orientam o agir ético. Esses valores são
construídos como experiência que se entretece no interior das relações
humanas: atravessamento das memórias e narrativas, ato intencional e
complexo marcado por inúmeros desdobramentos e permeado de desejo
e singularidade; algo que se passa com pessoas, entre as pessoas e,
precisamente por isso, cria relações de aprendizagem.

Por fim, sublinhamos as ideias de Hannah Arendt, destacadas na


epígrafe desta apresentação, para corroborar a dimensão ética atinente
à educação no tempo presente. Ética do cuidado: cuidar-de-si, cuidar-do-
Outro; admitirmos a responsabilidade pela formação de sujeitos capazes
de assumirem o mundo como lugar, casa-comum. Para tanto: reconhecer
UNIUBE XI

que os princípios de uma prática educativa criada na medida de um


mundo duradouro, encontram-se, hoje, mediados por uma realidade
de intensas transformações; compreender os novos paradigmas da
educação, e reconhecer que o papel da educação escolar não pode
se limitar à transmissão dos conhecimentos historicamente produzidos
e acumulados; resistir à desconstrução da memória como processo de
“desengajamento”, ao mesmo tempo, e com a mesma urgência com
que devemos resistir às rígidas estruturas que tendem à ortodoxia do
pensamento, do homem e da sociedade.

Bons estudos!
Capítulo
O humano no homem:
pressupostos teóricos
1

Francis Silva de Almeida

Introdução
Nenhuma época conseguiu, como a nossa,
apresentar o seu saber em torno do homem de
modo tão eficaz e fascinante, nem comunicá-lo
de modo tão rápido e fácil. É também verdade,
porém, que nenhuma época soube menos que
a nossa que coisa seja o homem. Jamais o
homem assumiu um aspecto tão problemático
como em nossos dias.
(Martin Heidegger)

Propomos, neste capítulo, criar espaços que nos permitam


pensar os conceitos de homem e humanidade como problemas
que se constituem em entremeios: uma complexidade entretecida
nos viéses teórico-conceituais da filosofia, da antropologia, da
sociologia e da psicologia. Por esse motivo, compreendemos que
seja necessário esclarecer dois importantes pontos: primeiro, por
que situamos nosso objeto num entremeio, e, a partir disso, por
que nos interessa circunstanciá-lo como um problema teórico-
-conceitual que se constitui no atravessamento de diferentes
campos do conhecimento?

O desenho de uma intersecção entre a filosofia, antropologia,


sociologgia e psicologia ilustra o que chamamos de entremeio.
Trata-se, para falarmos com Deleuze e Guattari (1995), de um
intermezzo que faz uso de diferentes saberes para se produzir. O
2 UNIUBE

termo intermezzo diz respeito aos novos espaços de produção que


se originam da conexão entre os pontos de um rizoma. Segundo
Deleuze e Guattari (1995, p. 37), “um rizoma não começa nem
conclui, ele se encontra sempre no meio, entre as coisas, inter-ser,
intermezzo. [...] o rizoma tem como tecido a conjunção ‘e... e...
e...’” (grifo dos autores). O rizoma é o espaço da variação e dos
deslocamentos cujo movimento desconstrói as estruturas estanques
e hierarquizadas dos saberes suprimindo os aspectos do poder,
da importância e das prioridades da circulação do conhecimento
(DELEUZE; GUATTARI, 1995).

Nesse sentido, cumpre destacar: não temos como objetivo


apresentar um panorama dos vários tipos de explicações e seus
respectivos embasamentos teóricos sobre o homem e sua condição
humana, mas, ao contrário, situar as bases de uma hermenêutica
que nos permita enunciar múltiplas possibilidades de conexões,
aproximações e percepções teórico-conceituais sobre o homem e
os processos que lhe permitem humanizar-se.

Dito de outra maneira, propomos, no atravessamento dos campos


epismológicos da filosofia, da antropologia, da sociologia e da
psicologia, considerar as tessituras históricas, sociais e culturais
que fixam as formas de expressão por meio das quais o homem se
torna humano. Tal como compreendemos, esse fundamento nos
permitirá a análise teórica da natureza social do homem e do seu
desenvolvimento sócio-histórico. Precisamente por isso, o modo
como propomos pensar o humano no homem marca um processo
atravessado de movimento, ressonâncias, tensões, potencialidades,
desejos e sensações que operam “uma espécie de experimentação
tateante [...] da embriaguez ou do excesso.” (DELEUZE; GUATTARI,
2005, p. 58).
UNIUBE 3

Aproveitamos para esclarecer que, em algumas passagens


deste capítulo, utilizamos trechos retirados de nossa dissertação
de mestrado – Filosofia e fazer filosófico no Ensino Médio:
ressonâncias e deslocamentos em Deleuze-Guatari –
apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação da
Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM) no ano de 2016.

Objetivos
Ao final deste capítulo, esperamos que você seja capaz de:
• descrever e discutir os diferentes aportes teóricos que
conceituam homem, humanidade e cultura;
• reconhecer os processos de produção e apropriação da
cultura enquanto aspectos modeladores da condição
humana;
• compreender as teorias do desenvolvimento humano, suas
relações com a aprendizagem e os fatores que intervêm
nesse processo;
• explorar as conceituações que conduzem à compreensão do
homem como sujeito histórico, político e social.

Esquema
1.1 O que é o ser humano?
1.2 O ser humano e os outros seres vivos
1.3 O desenvolvimento humano
1.3.1 As teorias do desenvolvimento humano (inatismo,
ambientalismo e interacionismo)
1.4 O ser humano: sujeito e objeto do conhecimento
1.4.1 Do senso comum ao conhecimento científico
1.5 O ser humano: um ser histórico, político e social
1.6 Considerações finais
4 UNIUBE

1.1 O que é o ser humano?

O que é ser humano? Como ocorre o processo de tornar-se humano? O


que diferencia o ser humano dos demais seres vivos? Questões como
essas nos inquietam, ainda hoje, tanto quanto inquietaram os filósofos
da antiguidade clássica. Foi nesse período, aproximadamente entre os
séculos V e IV a. C., que o esforço de teorização dessas questões tomou
forma e modificou sensivelmente os modos de conceber e representar
o homem e os seus sentidos de ser-no-mundo. Ora, se o pensamento
filosófico pré-socrático destacava o kósmos (Universo) como problema
a ser reconhecido, com Sócrates e os sofistas as indagações sobre o
homem e sua natureza, bem como a natureza das virtudes morais, deram
origem ao que hoje reconhecemos como antropologia filosófica.

Ontologia
SAIBA MAIS

Do grego onthos, Chamamos de antropologia filosófica a disciplina


que significa ente;
e logoi, derivação particular que se desenvolve no interior da
da palavra logos, própria filosofia como busca pela compreensão
que significa
fundamento, do anthropós (homem) à luz da metafísica.
palavra, razão, Trata-se, portanto, da investigação da estrutura
discurso (portanto,
da ordem do essencial do homem, que, nesse sentido, toma
racional, do que para si as características de uma antropologia da
pode ser dito e
compreendido; diz essência e não das características humanas. Por
respeito à palavra- isso, inclusive, ela se distingue da antropologia
pensamento
que revela o mítica, poética, teológica, e científica natural ou
conhecimento de evolucionista.
alguma coisa.).
Enquanto ramo
da filosofia, a
ontologia é o As interpretações da antropologia filosófica se
estudo metafísico
que se ocupa da constituem no campo da ontologia na medida em
investigação do
ser enquanto ser. que coloca o “ser” no centro de suas investigações.
Trata, portanto, da
natureza, realidade Nesse sentido, o homem torna-se para si mesmo
e existência dos
entes (LALANDE, o tema de toda a especulação filosófica: interessa
1999). estudar o homem para compreender tudo o que a
ele se relaciona: afinal, o que é ser humano?
UNIUBE 5

No poema a seguir, refletimos com Drummond a complexidade dessa


questão.

O homem, bicho da terra tão pequeno


Chateia-se na terra
Lugar de muita miséria e pouca diversão,
Faz um foguete, uma cápsula, um módulo
Toca para a lua
Desce cauteloso na lua
Pisa na lua
Planta bandeirola na lua
Experimenta a lua
Coloniza a lua
Civiliza a lua
Humaniza a lua.

Lua humanizada: tão igual à terra.


O homem chateia-se na lua.
Vamos para marte - ordena a suas máquinas.
Elas obedecem, o homem desce em marte
Pisa em marte
Experimenta
Coloniza
Civiliza
Humaniza marte com engenho e arte.

Marte humanizado, que lugar quadrado.


Vamos a outra parte?
Claro - diz o engenho
Sofisticado e dócil.
Vamos a vênus.
O homem põe o pé em vênus,
Vê o visto - é isto?
6 UNIUBE

Idem
Idem
Idem.

O homem funde a cuca se não for a júpiter


Proclamar justiça junto com injustiça
Repetir a fossa
Repetir o inquieto
Repetitório.

Outros planetas restam para outras colônias.


O espaço todo vira terra-a-terra.
O homem chega ao sol ou dá uma volta
Só para tever?
Não-vê que ele inventa
Roupa insiderável de viver no sol.
Põe o pé e:
Mas que chato é o sol, falso touro
Espanhol domado.

Restam outros sistemas fora


Do solar a col-
Onizar.
Ao acabarem todos
Só resta ao homem
(estará equipado?)
A dificílima dangerosíssima viagem
De si a si mesmo:
Pôr o pé no chão
Do seu coração
Experimentar
Colonizar
Civilizar
UNIUBE 7

Humanizar
O homem
Descobrindo em suas próprias inexploradas entranhas
A perene, insuspeitada alegria
De con-viver.
(DRUMMOND, 2004, p. 718-19)

Há, aqui, uma constatação indiscutível: o homem é uma realidade


extremamente complexa, um emaranhado de problemas de toda ordem.
Por isso, no intento de realizar conexões, aproximações e percepções
teórico-conceituais sobre o homem e os processos que lhe permitem
humanizar-se, buscamos, no problema antropológico, as bases que
nos permitem discutir o problema da natureza humana. Para tanto,
destacamos três importantes perspectivas: a cosmocêntrica, a teocêntrica
e a antropocêntrica.

EXPLICANDO MELHOR

Na perspectiva cosmocêntrica, o centro da observação é o kósmos


(Universo). É a perspectiva da filosofia pré-socrática que coloca o
homem no interior mundo. Logo, para conhecer a natureza humana é
preciso conhecer o Universo. Por seu lado, a perspectiva teocêntrica
toma o theos (Deus) como ponto central de sua observação. Trata-
-se da perspectiva da filosofia cristã patrística e escolástica. Logo,
para conhecer a natureza humana é preciso conhecer a Deus, e,
conhecendo-o, considerar o quanto foi permitido ao homem conhecer
sua humanidade. Já a perspectiva antropocêntrica toma como
referência central o próprio homem, o anthropós. É a perspectiva da
filosofia moderna que, no resgate do humanismo clássico, evidencia o
homem como sujeito portador da dignidade de ser humano. A ênfase
dada ao homem na perspectiva antropocêntrica marca o movimento de
reafirmação da razão e da capacidade que o homem possui de conhecer
e representar sua experiência de ser e estar no mundo humano.
8 UNIUBE

No entanto, há que considerar o seguinte: os diferentes métodos


empregados pela antropologia elaboraram, ao longo da história,
diferentes compreensões do homem e das condições de sua
humanização. Para Mondin (1980), são quatro os principais tipos de
classificação da antropologia e, consequentemente, das respostas
que aí se produzem as questões que cercam ora a definição de uma
natureza humana – como no caso das antropologias metafísicas e
naturalistas –, ora a definição de uma condição humana – como no
caso das antropologias historicistas e existencialistas.

As antropologias metafísicas, que se valem do método metafísico,


são aquelas que se situam no pensamento de Platão, Aristóteles,
Plotino, Agostino, Tomás de Aquino, Descartes, Spinoza, Leibnitz etc.
Nelas, a natureza do ser humano é marcada pelo dualismo corpo e
alma, e a essência humana antecede sua existência material.

Nessa perspectiva, o corpo representa para a alma um cárcere que


só pode ser encerrado com a morte, haja vista que a vida humana,
terrena e mundana, é apenas uma peregrinação para o estágio
final, para o qual a alma se destina. Contudo, enquanto o homem se
encontra vivo, ele representa a união indissolúvel de um corpo mortal
com uma alma ideal e imortal. Trata-se de um dualismo psicofísico
que inscreve o corpo humano como extensão do mundo sensível e
a alma, como extensão do mundo ideal.

As antropologias naturalistas, que se valem do método positivo-


-científico, são aquelas que se situam no pensamento de Darwin,
Comte, Spencer, Freud. Nelas, a natureza humana é marcada pela
organicidade da matéria, bem como pelas relações que o homem
mantém com meio natural.
UNIUBE 9

Sublinha-se, então, a noção de hilemorfismo,


Sôma
segundo a qual todas as coisas são resultantes
de dois princípios que, embora diferentes, são Palavra de origem
grega que exprime
comunicantes e complementares: a matéria a noção de corpo.

– princípio físico de que todas as coisas Psyché

são constituídas –, e a forma – o princípio Na mitologia grega,


é uma divindade
metafísico que determina que as coisas sejam que representa a
aquilo que elas são. Por isso, o homem é personificação da
alma. Exprime,
ao mesmo tempo sôma e psyché, síntese portanto, a noção
das estruturas
perfeita entre corpo e alma. não corpóreas, ou
seja, relativas à
alma humana. Da
palavra psyché tem
A busca pelo sentido do humano, evidenciada origem a palavra
pelas antropologias metafísicas, e naturalistas psychologie –
psicologia: ciência
têm em vista a definição de natureza humana, que, em termos
gerais, se ocupa
ou seja, daquilo que caracteriza e singulariza dos estados e
das disposições
o ser humano desde o seu nascimento. psíquicas de um
ser ou de uma
Nessa perspectiva, o que o ser humano faz classe de seres
ao longo da vida é transformar em ato todas (LALANDE, 1999).

as potencialidades que lhes são inerentes.


Essas potencialidades ilustram o que Mondin
(1980) chama de dimensões da natureza humana. Para o autor, a
construção dos sentidos de ser humano ocorre no atravessamento
das diferentes potencialidades presentes no homem. É, pois, no
entretecimento dos aspectos da razão, da linguagem, do jogo,
da vontade, da técnica, do trabalho, da cultura, da religião e da
sociabilidade que o humano presente no homem se destaca como
realidade a ser (re)conhecida, como possibilidade hermenêutica da
natureza humana em suas diferentes formas.

As antropologias historicistas, que se valem do método histórico,


são aquelas que se situam no pensamento de Vico, Marx, Groce,
Gadamer. Nelas, a natureza humana se constitui no processo
10 UNIUBE

histórico no qual o homem se encontra inserido. O movimento da


própria história e a ação do homem como seu principal agente são,
com efeito, o meio pelo qual os processos de humanização surgem
como síntese das experiências sociais e culturais que o homem vive.

Nesse sentido, ao mesmo tempo em que a condição humana é


modificada em cada época da história, ela é também constituída
pelos aspectos particulares de cada cultura e de cada sociedade.
Logo, se a condição humana se constitui no interior da própria
história, é esse o movimento que lhe permite tomar consciência de
sua própria historicidade (MONDIN, 1980).

As antropologias existenciais, que se servem do método


fenomenológico, são aquelas que identificam a maior parte das
antropologias mais recentes. Entre elas destacam-se pensadores
como Scheler, Heidegger, Sartre, Ricouer, Merleau-Ponty, Marcel.
Nelas, as condições de humanização do homem são discutidas
do ponto de vista da existência, que, passa então a preceder a
essência. Nessa perspectiva, o ser humano não tem uma essência
ao nascer, mas vai construindo aquilo que é ao longo de sua vida, de
sua existência. Ora, se não há nada de universal que caracterize e
defina o ser humano, então não se trata mais de pensar a natureza
humana, mas as condições reais de sua humanização.

Atento a essas questões, Merleau-Ponty (2006) propõe a desconstrução


do paradigma cartesiano do cogito que subjaz a existência à substância
do pensamento e situa a compreensão da consciência no próprio corpo:
corpo-sujeito. A ideia de corpo-sujeito revela uma realidade intencional
do sujeito. Trata-se do contraponto da noção de corporeidade criada
por Merleau-Ponty em oposição à ideia de corpo-objeto ou corpo-
máquina evidenciada da tradição cartesiana. O corpo-sujeito é corpo-
consciência que transborda as experiências expressivas do corpo na
experiência vivida.
UNIUBE 11

Na obra Fenomenologia da Percepção, o filósofo ressalta a ideia


de que a consciência do corpo se constitui das percepções criadas
a partir do conhecimento que ele mesmo produz, portanto, das
representações de sua exterioridade. Por isso, segundo Merleau-
-Ponty (2006), o conhecimento não pode ser reconhecido fora das
experiências vivenciadas pelo corpo que se encontra, sempre,
recortado pela historicidade. O corpo que conhece e que o faz nos
atravessamentos da história é, portanto, um fenômeno situado, pois
“tudo o que sei do mundo, mesmo por ciência, eu o sei a partir de
uma visão minha ou de uma experiência do mundo sem a qual os
símbolos da ciência não poderiam dizer nada.” (MERLEAU-PONTY,
2006, p. 3).

Na ideia de condição humana não há uma noção determinada de ser


humano, mas uma abertura de sua compreensão que está de acordo
com a diversidade de suas ações. Por isso, no sentido de aprofundar
um tanto mais a discussão sobre a condição humana, buscamos em
Hannah Arendt (1906-1975) uma importante contribuição: o conceito
de vida activa.

Em A condição humana, Arendt (2008) designa três atividades


humanas fundamentais: o labor, o trabalho e a ação.

O labor é a atividade que corresponde ao processo


biológico do corpo humano [...]. A condição
humana do labor é a própria vida. O trabalho
é a atividade que corresponde ao artificialismo
da existência humana [...]. O trabalho produz um
mundo artificial de coisas, nitidamente diferente
de qualquer ambiente natural. Dentro de suas
fronteiras habita cada vida individual, embora esse
mundo se destine a sobreviver e a transcender
todas as vidas individuais. A condição humana
do trabalho é a mundanidade. A ação, única
condição que se exerce diretamente entre os
homens sem a mediação das coisas ou da matéria,
corresponde à condição humana da pluralidade,
12 UNIUBE

ao fato de que os homens, e não o Homem, vivem


na Terra e habitam o mundo. [...] A pluralidade é a
condição da ação humana pelo fato de sermos
todos os mesmos, isto é, humanos, sem que
ninguém seja exatamente igual a qualquer
pessoa que tenha existido, exista ou venha a
existir. (ARENDT, 2008, p. 15, grifos nossos).

As atividades descritas por Arendt correspondem às condições básicas


de humanização do homem enquanto aspectos gerais e fundamentais
de sua própria existência. Desse modo, enquanto o labor assegura não
apenas a sobrevivência individual de cada ser humano, mas também a
vida da própria espécie, o trabalho e seu produto exprimem a durabilidade
da vida em seu caráter transitório; já a ação manifesta a condição que se
empenha em fundar e preservar os corpos políticos.

PONTO-CHAVE

O labor (manutenção da vida), o trabalho (produção de algo novo) e a


ação (atividade política) – como formas predominantes da vida como
estado vivido – se inscrevem na ação do corpo como extensão da matéria
do mundo. Trata-se, segundo a filósofa, “de atividades fundamentais
porque a cada uma delas corresponde uma das condições básicas
mediante as quais a vida foi dada ao homem na Terra.” (ARENDT, 2008,
p. 15).

Ainda a esse respeito, Arendt (2008) chama atenção para o fato de


que o labor, o trabalho e a ação constituem-se como formas básicas da
vida que foi dada ao homem. Há, portanto, algo mais que compreende
a condição humana: tudo o que compõe o estado de coisas em que
o homem se encontra inserido e com o qual ele mantém permanente
contato torna-se condição de sua existência. Dito de outro modo: tudo o
que homem produz, material ou simbolicamente, e que adentra o mundo
humano de modo espontâneo ou por força de sua própria ação torna-se
parte da condição humana.
UNIUBE 13

Nesse sentido, a objetividade do mundo e a condição humana


complementam-se uma a outra: “a existência humana seria impossível
sem as coisas, e estas seriam um amontado de artigos incoerentes, um
não mundo, se esses artigos não fossem condicionantes da existência
humana.” (ARENDT, 2008, p. 17).

1.2 O ser humano e os outros seres vivos

O que distingue o homem dos demais seres vivos? A elaboração de


uma resposta que comporte assinalar as principais diferenças entre
o ser humano e os demais seres vivos encontra apoio em diferentes
campos de conhecimento. Na Biologia, partimos da premissa de que
pertencemos a uma espécie animal e que, tal como os demais seres
vivos, somos portadores de uma estrutura biológica. Na Antrapologia,
reconhecemos que o ser humano não se encerra em sua estrutura
biológica; ele é também produto da cultura. Na Filosofia, destacamos
as diferentes formas de representação da experiência de ser e estar
no mundo como processo consciente. Na Sociologia, identificamos a
complexidade das relações que ele perfaz com a natureza e a sociedade.

Com a Biologia, aprendemos que, para se desenvolverem, os


seres vivos apresentam habilidades que se manifestam de acordo
com sua necessidade de adaptação ao ambiente. Por exemplo,
os camaleões, que possuem admirável capacidade de alterar a
coloração de sua pele. Essa mudança possui funções na sinalização
social e em reações a temperatura e outras condições, bem como em
camuflagem. Camaleões tendem a apresentar cores mais escuras
quando irritados, ou na tentativa de assustar ou intimidar os outros,
enquanto os machos mostram padrões multicoloridos mais leves
quando cortejam as fêmeas.

Temos clareza de que boa parte dos comportamentos dos animais


resulta de uma reação instintiva, ou seja, do impulso natural e
14 UNIUBE

interior que faz com que um animal execute, de modo não racional,
atos adequados às necessidades de sobrevivência própria, da
sua espécie ou da sua prole. É o que se nota, por exemplo, na
atividade das abelhas nas colmeias. Entretanto, algumas espécies
apresentam comportamentos mais flexíveis, como no caso dos
animais domésticos. Nestes, os eventos de imprevisibilidade dos
comportamentos impulsionam, inclusive, a crença de que estejam
conscientes de sua reação. Nesse ponto, há que considerar o
seguinte: embora alguns animais apresentem traços de inteligência,
o uso da razão, enquanto faculdade que permite o encadeamento
de raciocínios que conduzem uma determinada compreensão
e a elaboração de juízos, diz respeito a uma característica
exclusivamente humana. No campo da razão ocorrem as relações
entre as exigências lógicas humanas e os dados provenientes do
mundo dos fenômenos e da existência, conforme percebidos pelo
homem. A esta razão humana, chamamos de racionalidade.

Nesse sentido, é precisamente a racionalidade que distingue o homem


dos demais seres vivos. Em A Evolução Cultural do Homem, Childe
(1975) analisa as diferenças a respeito das formas de sobrevivência
e adaptação entre o homem e o animal. Para o autor, enquanto os
animais tornam sua sobrevivência mais eficiente de acordo com
a adaptação de suas características biológicas ao ambiente em
que estão inseridos, o homem, por meio da racionalidade, cria e
compartilha técnicas que permitem a superação das adversidades
do ambiente.

Essa distinção fica ainda mais clara quando recordamos o domímio do


fogo pelo homem primitivo. Quando o homem obteve o controle do fogo,
uma variedade de novas formas de sobrevivência em relação ao ambiente
natural tornaram-se possíveis, como: afastar animais selvagens, cozinhar
UNIUBE 15

alimentos, deslocar-se durante a noite. O controle do fogo permitiu ao


homem entender melhor a natureza para controlá-la em seu favor.

Notamos:
O ser humano pode ajustar-se a um número maior
de ambientes do que qualquer criatura [...]. Mas fogo,
roupas, casas, trens, automóveis, aviões, telescópios
e armas de fogo não são parte do corpo do homem.
Eles não são herdados no sentido biológico. O
conhecimento necessário para sua produção e uso é
parte do nosso legado social. Resulta de uma tradição
acumulada por muitas gerações e transmitida, não
pelo sangue, mas através da linguagem – fala e
escrita. (CHILDE, 1975, p. 40).

Ora, não há dúvidas que também o homem, embora em desvantagem


física em relação à maior parte dos demais seres vivos, apresenta
reflexos e instintos vinculados à estrutura biológica que caracteriza sua
espécie. No entanto, essas características não lhe bastam, pois, diferente
dos demais seres vivos, o homem não nasce pronto pelas “mãos da
mãe natureza”. Ou seja, o ser humano não é apenas um ser biológico
produzido pela natureza, mas, para além disso, um ser que modifica o
estado da natureza, isto é, a condição natural das coisas definidas pela
natureza. Esse processo de transformação da natureza pelo trabalho
chamamos cultura, artifício por meio do qual o homem cria e representa
simbolicamente sua existência, produzindo-se e representando-se por
meio das relações que mantêm com os símbolos. Para White (apud
LARAIA, 1986, p. 55), “todo comportamento humano se origina no
uso de símbolos. Foi o símbolo que transformou nossos ancestrais
antropoides em homem e fê-los humanos. [...] O comportamento humano
é comportamento simbólico”. Com efeito, a cultura é o que distingue e
distancia os domínios do mundo humano (simbólico e representado) e
do mundo animal (natural).
16 UNIUBE

SAIBA MAIS

A primeira definição de cultura foi formulada do ponto de vista


antropológico e pertence ao pesquisador inglês Edward Tylor (1832-
1917). Para ele, o termo cultura determina “[...] todo o complexo que
inclui conhecimentos, crenças, arte, moral, leis, costumes ou qualquer
outra capacidade ou hábitos adquiridos pelo homem como membro
de uma sociedade” (TYLOR apud LARAIA, 1986, p. 25). Desse modo,
e considerando-se o amplo sentido etnográfico que aí se observa, o
termo cultura designa um duplo e importante movimento de produção,
apropriação e transformação da experiência humana: de um lado, refere-
-se aos diferentes processos e tessituras que compreendem e articulam
a criação e a transmissão de uma visão de mundo, de conhecimento,
de experiência de vida, de emoções; de outro, diz respeito à forma
orgânica e intencional com que o homem estrutura uma relação com a
natureza, e, a partir daí, define as formas de socialização nas relações
com os outros e com o pensamento simbólico.

Logo, a cultura é o meio pelo qual o homem significa a sua existência


criando um complexo conjunto de símbolos que inclui o conhecimento,
as crenças, a arte, as leis, os costumes e hábitos adquiridos na vida em
sociedade. Corroborando essa perspectiva, Cassier (1977, p. 51) assim
se pronuncia:
Razão é um termo muito pouco adequado para
abranger as formas da vida cultural do homem em toda
a sua riqueza e variedade. Mas todas essas formas são
simbólicas. Portanto, em lugar de definir o homem como
um animal rationale [racional], deveríamos defini-lo
como um animal symbolicum [simbólico]. Desse modo,
podemos designar sua diferença específica, e podemos
compreender o novo caminho aberto ao homem: o da
civilização.

A cultura trata-se, portanto, de um fenômeno tipicamente humano que


entretece as relações do ponto de vista da criação e transmissão de
conhecimento – seja como antítese da natureza, com a criação de
UNIUBE 17

uma condição humana –, e, nesse caso, concerne à herança social da


humanidade a transmissão de usos e costumes de uma geração para outra.

PONTO-CHAVE

Nesse sentido, o caráter de aprendizado da cultura se constitui


epistemologicamente na oposição à ideia de transição inata. Para Laraia
(1986), as diferenças que individualizam os seres humanos não podem
ser explicadas somente a partir das limitações impostas pelas questões
biológicas ou ambientais, pois, para além da herança genética que o
homem carrega consigo, toma evidência o complexo sistema simbólico
constituído a partir das experiências vividas, acumuladas e transmitidas
de geração em geração por meio da educação. Ou seja: não basta ao
ser humano deter notável inteligência se não lhe for permitido o alcance
material que assegure o exercício de sua criatividade.

A esse respeito, notamos:


O homem é o resultado do meio cultural em que foi
socializado. Ele é um herdeiro de um longo processo
acumulativo, que reflete o conhecimento e a experiência
adquiridas pelas numerosas gerações que o
antecederam. A manipulação adequada e criativa desse
patrimônio cultural permite as inovações e invenções.
(LARAIA, 1986, p. 45).

Trata-se, portanto, de um processo extrabiológico que permite ao homem


diferenciar-se dos demais animais. Este processo, afirma Laraia (1986),
tem origem na evolução neurológica dos primatas, que permitiu, por
meio da combinação de uma visão estereocópica e da manipulação
dos objetos, a abertura de uma percepção dos objetos inacessível aos
outros animais. O fato de o ser humano ter dois olhos permite-lhe, através
da estereoscopia, ter a noção de profundidade espacial, da distância
a que se encontram os objetos, das relações entre cor, forma, peso
e resistência. Assim, “[...] poder pegar e examinar um objeto atribui a
este um significado próprio” (LARAIA, 1986, p. 54). Nessa perspectiva,
18 UNIUBE

o surgimento da cultura encontra-se vinculado ao desenvolvimento da


capacidade da abstração, que, por seu lado, reflete o desenvolvimento
da inteligência – consequência das estimulações sensíveis que tornaram
o cérebro mais volumoso e complexo.

Corroborando essa perspectiva, Leslie White (1900-1975) considera que


a passagem do estado animal para o estado humano ocorreu quando o
cérebro do homem foi capaz de gerar símbolos. Visto dessa forma:

(i) mais do que uma herança genética, a cultura determina o


comportamento do homem e justifica suas realizações;

(ii) o homem age de acordo com os padrões culturais, sendo a


cultura o meio pelo qual o homem se adapta aos diferentes
ambientes ecológicos;

(iii) a aquisição da cultura está relacionada aos processos de


apendizagem (socialização), que, por seu lado, determina o
comportamento e a capacidade artística e profissional do ser
humano;

(iv) a cultura é um processo acumulativo que resulta da tessitura das


experiências vividas pelos seres humanos ao longo da história.

Informando esses pressupostos, Bock (2001) abaliza a discussão sobre


o papel da cultura na produção das condições que permitem ao homem
humanizar-se, ressaltando, entre outros aspectos, que o aparelho
biológico do homem não basta para lhe garantir a vida em sociedade;
ele precisará adequar-se ao meio por um processo de humanização.
Para a autora:
[...] as modificações hereditárias não determinam o
desenvolvimento sócio-histórico do homem e da
humanidade: dão-lhe sustentação. As condições
biológicas permitem ao homem apropriar-se da cultura
e formar as capacidades e funções psíquicas. A única
aptidão inata do homem é a aptidão para a formação de
outras aptidões. (BOCK, 2001, p. 170).
UNIUBE 19

É precisamente nesse movimento de interação que o homem se


constitui como um ser biológico e social, com características herdades
e adquiridas, com aspectos individuais e sociais, com elementos da
natureza e da cultura. Assim, ao adquirir várias aptidões e apropriando-
-se do conhecimento produzido em sociedade, o homem garante sua
sobrevivência buscando o bem-estar individual e coletivo.

A propósito de tudo o que já se discutiu, colocamos a questão: quais são


os processos através dos quais o homem se apropria da cultura?

O esboço de uma resposta, que nos atenda no objetivo de reconhecer


os processos de produção e apropriação da cultura enquanto aspectos
modeladores da condição humana, exige, em primeiro lugar, reforçar
algumas definições: primeiro, que a cultura designa um sistema
simbólico, intencionalmente criado pelo homem com o propósito de definir
os padrões de comportamento socialmente transmitidos; depois, que
a dinâmica cultural (ou seja, os processos de mudança que arranjam
novos modos e padrões de estabelecimento e agrupamento social, de
organização política, das crenças e práticas religiosas etc.) é, por si
mesma, um processo de adaptação (o homem é um animal, e como todo
animal deve manter uma relação de adaptação ao meio em que vive).

Reconhecemos que esse processo de adaptação ao sistema simbólico,


que define os padrões de comportamente socialmente transmitidos
seja, em última análise, um processo de apropriação, ou como
afirmam as teorias antropológicas, de endoculturação (LARAIA, 1986).
Etimologicamente, o prefixo “endo” vem do grego “endus”, que significa
“para dentro”. Trata-se, portanto, do movimento de apropriação por
meio do qual o homem toma para si os valores e padrões culturais do
meio em que ele vive. Desse modo, a endoculturação está relacionada
ao processo por meio do qual os indivíduos aprendem o modo de vida
da sociedade na qual nascem, adquirem e internalizam um sistema de
valores, normas, símbolos, crenças e conhecimentos.
20 UNIUBE

A endoculturação ilustra o modo pelo qual a cultura opera sobre o homem


condicionando, além dos padrões de comportamento, sua visão de
mundo, isto é, a forma como interpretamos o mundo em que vivemos.
Conforme Laraia (1983, p. 67): “Ruth Benedict escreveu em seu livro
O crisântemo e a espada que a cultura é como uma lente através da
qual o homem vê o mundo. Homens de diferentes culturas usam lentes
diversas e, portanto, têm visões desencontradas das coisas”. Ora, se a
herança cultural construída ao longo das gerações é o que condiciona
no ser humano os modos de sua compreensão da realidade, então a
visão de mundo nada mais é que um conjunto de ações voltadas para
a compreensão da dinâmica da relação do homem com o meio, com a
determinação social e a evolução histórica dessa relação.

Para Laraia (1986, p. 68): “O modo de ver o mundo, as apreciações de


ordem moral e valorativa, os diferentes comportamentos sociais e mesmo
as posturas corporais são assim produtos de uma herança cultural, ou
seja, o resultado de uma determinada cultura.”

Seguindo esse pressuposto, Moraes e Torre (2004, p. 22) informam que:


Nossa maneira de ser, de sentir, pensar e agir, nossos
valores, hábitos, atitudes e demais representações
internas que permeiam as nossas relações com a
realidade refletem a visão que temos do mundo, as
representações interiores guardadas na memória que
se explicitam através de conversações, negociações e
diálogos que estabelecemos uns com os outros, com a
natureza e com o sagrado.

Em síntese: o ser humano é possuidor de uma natureza biológica, que,


em contato com o meio social, possibilita-lhe aprender a agir, estabelecer
relações com os outros, apropriar-se da cultura e incorporar os modos
de ser de uma sociedade. Essas construções do ser, como humano,
foram possíveis, ao longo do tempo, a partir do momento em que o ser
humano despertou sua consciência de ser e estar no mundo. Como se
nota, o que fundamentalmente distingue o ser humano dos demais seres
UNIUBE 21

vivos é a cultura, e, com ela, a consciência que ele possui de sua própria
condição. Segundo Freire (1967, p. 39):
As relações que o homem trava com o mundo
(pessoais, impessoais, corpóreas e incorpóreas)
apresentam uma ordem tal de características que as
distinguem totalmente dos puros contatos, típicos da
outra esfera animal.

Ora, se a cultura é o resultado de tudo o que homem produz por meio do


trabalho para significar simbolicamente sua existência, então “não apenas
o trabalho manual, mas o intelectual, o educacional, são igualmente
geradores de cultura” (REZENDE, 1990, p. 63). Desse modo, a relação
que a educação mantém com a cultura e a história constitui o território
sobre o qual se desdobra a história do homem a partir dos significados
que ele atribui à sua própria existência.

“Educar-se é aprender a fazer a história, fazendo cultura. Isto é trabalho”


(REZENDE, 1990, p. 63). Logo, a educação deve implicar, para o trabalho,
o sentido mais profundo de produção da cultura pela transformação do
homem e do mundo; para a cultura, o sentido da compreensão teórica e
prática das relações humanas e do modo, como, a partir dessa trama, a
existência é simbolicamente representada.

Com efeito, é na educação e por meio dos processos educativos que


reconhecemos o espaço de criação da consciência e da identidade de
ser-no-mundo, “da compreensão do sentido do relacionamento dialético
entre a estrutura do sujeito e a do mundo [...]. Somente esta compreensão
permitirá o acesso dos sujeitos da educação à condição de sujeitos da
cultura pela apropriação dos sentidos da existência” (REZENDE, 1990,
p. 70). A educação está, portanto, num ponto de articulação entre o velho
e o novo, entre o passado e o futuro, entre o homem e o mundo.
22 UNIUBE

1.3 O desenvolvimento humano

O desenvolvimento humano tem merecido a atenção de estudiosos


de praticamente todas as épocas da humanidade. Para Bock (2001),
o estudo do desenvolvimento humano se presta ao conhecimento das
características comuns e díspares entre os indivíduos e tem como
objetivo a observação e a interpretação dos comportamentos em relação
aos diferentes espaços de apropriação da vida.

Considerando que, em última análise, este processo faz referência ao


conjunto das competências manifestadas em um determinado momento
da vida do indivíduo e esse desenvolvimento se constitui sempre em um
processo dinâmico, o desenvolvimento humano diz respeito tanto ao
desenvolvimento mental quanto ao crescimento orgânico do indivíduo. E,
para que a apropriação das características humanas aconteça, é preciso
que ocorra atividade por parte do sujeito através de ações, operações
motoras e mentais.

No âmbito dessas discussões, ganha destaque o pressuposto de que


o desenvolvimento humano é um processo contínuo marcado pela
interação permanente do corpo com as dimensões psíquias e emociais
(BOCK, 2001). Trata-se, por assim dizer, de uma compreensão teórica e
metodológica complexa e que considera não só os estágios orgânicos,
motores e cognitivos que afetam, circunstanciam e determinam o
desenvolvimento humano, como também o papel que a cultura exerce
na efetivação de atitudes, percepções e interações que permitem
ampliar essa discussão, alcançando o espaço das relações afetivas,
sexuais, morais, sociais, históricas e culturais. Essa perspectiva desperta
atenção para uma visão dialógica, integrada, pluralística e complexa do
desenvolvimento humano.
UNIUBE 23

1.3.1 As teorias do desenvolvimento humano (inatismo,


ambientalismo e interacionismo)

Para alguns teóricos, desenvolvimento e aprendizagem são processos


idênticos que resultam da ação do meio sobre o indivíduo. Para outros,
o desenvolvimento é resultante do amadurecimento progressivo de
estruturas pré-formadas no indivíduo, enquanto a aprendizagem é um
processo externo e independente do desenvolvimento. Existe ainda uma
terceira via teórica que considera a aprendizagem e o desenvolvimento
como dois processos complementares.

De modo geral, aprender é um processo amplo e que diz respeito ao


modo como o indivíduo se modifica em razão das experiências que
ele mantém com e no meio em que ele vive. Historicamente, a noção
de aprendizagem é associada ao behaviorismo (ou, como dizemos,
à epistemologia do comportamento). Para Colinvaux (2014), o
behaviorismo define a aprendizagem como processo de modificação do
comportamento a partir de intervenções externas. Trata-se, em síntese,
de um sistema de estímulo, resposta e recompensa. Nessa perspectiva,
a aprendizagem assume a condição de modeladora dos comportamentos
desejáveis à formação do homem e organização da sociedade.

Por outro lado, a perspectiva sociocultural conceitua a aprendizagem


como um processo de significação individual e coletiva em torno dos
sistemas de signos histórico e culturalmente situados. A integração
fundamental entre pensamento, sentimento e ação ganha destaque neste
contexto, e a aprendizagem passa a ser vista como “[...] possibilidade de
compreensão do mundo e de si mesmo e, ainda, do reconhecimento das
estreitas relações existentes entre conhecimento, linguagem e cultura.”
(COLINVAUX, 2014, p. 16).

É, pois, nesse sentido, que as teorias da aprendizagem prezam pelo


reconhecimento da dinâmica que envolve os processos de aquisição dos
24 UNIUBE

saberes que permitem ao homem desenvolver-se. A seguir, destacamos


algumas das principais teorias que orientam as reflexões sobre a
aprendizagem.

• Inatismo. Do ponto de vista filosófico, o inatismo afirma o caráter


inato das ideias, sustentando que a produção dessas ideias
independe das experimentações e vivências realizadas pelo homem
após o seu nascimento e ao longo de sua vida. Caracteriza-se, desse
modo, como uma teoria formulada acerca do psiquismo humano.

De acordo com Bock (2001), os teóricos do inatismo valorizam


sobremaneira os fatores endógenos (ou seja, inerentes ao organismo
humano e que estabelecem a relação de reciprocidade do indivíduo com
o mundo). A propósito do inatismo, o desenvolvimento humano é um
desdobramento das informações inscritas nas características genéticas
do indivíduo, uma vez que as suas competências e habilidades já se
encontram definidas desde o seu nascimento, carecendo apenas, ao
longo do tempo, sofrerem o processo de maturação.

Ora, se conforme notam os teóricos inatistas, as formas de pensar, os


hábitos, valores e comportamentos são considerados dados inatos,
ou seja, trazidos pelo homem desde seu nascimento como um dado
natural, então, a inteligência e as aptidões individuais são herdadas e
já estão presentes desde o nascimento da criança – o que justificaria
o fato de que algumas pessoas são mais inteligentes que as outras em
razão de sua herança genética. No entanto, assim compreendido, o
desenvolvimento e a aprendizagem se caracterizam por uma série de
limitações que terminam por limitar também o papel que a educação
assume na formação integral do ser humano. Parece-nos claro o perigo
de que, admitidos tais fundamentos, os processos educativos sejam
abalizados com o propósito de selecionar, segregar e marginalizar os
indivíduos com base no determinismo biológico.
UNIUBE 25

• Ambientalismo. Ao contrário do inatismo, as teorias ambientalistas


valorizam os fatores exógenos (determinados pelo ambiente
biológico, físico e natural) que cercam o ser humano. Nesse sentido,
assume-se como premissa a importância dos fatores ambientais
para a aprendizagem, ou seja, das diferentes referências que,
encontrando-se fora do indivíduo, estimulam o seu desenvolvimento
em diferentes condições de existência.

Desse modo, não são as modificações hereditárias que determinam o


desenvolvimento sócio-histórico do homem e da humanidade. Estas
dão-lhe apenas sustentação. Conforme Bock et. al. (2001, p. 170), “as
condições biológicas permitem ao homem apropriar-se da cultura e
formar as capacidades e funções psíquicas. A única aptidão inata do
homem é a aptidão para a formação de outras aptidões.”

Na perspectiva do ambientalismo, o homem é um ser biológico e social,


com características herdades e adquiridas, com aspectos individuais e
sociais, com elementos da natureza e da cultura. Ao que nos parece, é
justamente este o mérito da teoria ambientalista: de nos chamar atenção
para a plasticidade do ser humano, para a capacidade que ele possui
de adaptar‑se às diferentes condições de existência, aprendendo novos
comportamentos e desenvolvendo novas habilidades.

• Interacionismo. Na expectativa de superar o extremismo entre


inatistas e ambientalistas, a teoria interacionista explica que o
desenvolvimento humano e a aprendizagem resultam da interação
sujeito-cultura. Trata-se, portanto, de um processo que envolve
os fatores hereditários, genético-maturacionais, bioquímicos e de
estimulação ambiental e da aprendizagem.

Nesse âmbito, o ser humano deixa de ser um sujeito passivo (diante


dos fatores biológicos, genéticos, hereditários e ambientais) para
assumir o papel de um sujeito que atua de forma ativa na interação
com os objetos da cultura construindo as significações para conhecer,
26 UNIUBE

aprender e consecutivamente, se desenvolver. Nesta abordagem,


aprendizagem e desenvolvimento constituem-se como dimensões que
se inter-relacionam, misturam-se e se completam, proporcionando ao
indivíduo a responsabilidade de sua aprendizagem.

Segundo Davis (1990, p. 36):


A concepção interacionista de desenvolvimento
apoia-se na ideia de interação entre organismo e meio
e vê a aquisição de conhecimento como um processo
construído pelo indivíduo durante toda a sua vida,
não estando pronto ao nascer nem sendo adquirido
passivamente graças às pressões do meio.

Os principais teóricos do interacionismo são Jean Piaget (1896-1990)


e Lev S. Vygotsky (1896-1934). Adiantando-se nas investigações de
Piaget – para quem os conhecimentos são construídos na interação
homem-mundo –, Vygotsky afirmava que o conhecimento é, antes de
tudo, impulsionado pela linguagem. Ou seja: é pela relação com os
mais experientes e pela força da linguagem que o sujeito se apropria
ativamente do conhecimento social e cultural do meio em que está
inserido. Assim, as influências e mudanças são recíprocas ao sujeito e
ao meio onde se encontra.

SAIBA MAIS

Linguagem é o instrumento que permite ao ser humano pensar e


comunicar o pensamento, estabelecer diálogos com seus semelhantes
e dar sentido à realidade que o cerca. A linguagem se exprime de
diferentes formas: pode ser verbal ou não verbal, escrita ou oral,
pode ser também visual e corpórea. Isso porque toda linguagem é um
sistema de signos. Para Peirce (1977), o signo é uma coisa que está
no lugar de outra sob algum aspecto. Por exemplo: o choro de uma
criança pode estar no lugar do aviso de desconforto, de fome, de frio
ou de dor; ou pode estar no lugar da frustração por não ter conseguido
o que desejava. O choro pode ser signo de todas essas coisas, e para
UNIUBE 27

decifrá-lo adequadamente, é imprescindível compreender o contexto


em que ele ocorre. Os números e as palavras também são signos, isto
é, encontram-se no lugar das quantidades reais de objetos (números)
ou do próprio objeto (palavra). Nesse sentido, o signo é objeto de um
encontro, e é precisamente a contingência do encontro que garante a
necessidade daquilo que ele faz pensar o seu sentido, aquilo que ele
expressa como representação (PEIRCE, 1977). Essa representação é
a relação arbitrária entre o significado (o conceito, a ideia transmitida
pelo signo, a parte abstrata do signo) e o significante (a imagem sonora,
a forma, a parte concreta do signo, suas letras e seus fonemas).

Somente o ser humano é capaz de estabelecer signos arbitrários,


regidos por convenções sociais. Precisamente por isso, o mundo
humano é simbólico. A esse respeito, corroboramos em Bondía a
definição aristotélica zôon lógon échon. Para o pensador espanhol, o
sentido do “vivente com palavra” não quer dizer que o homem tenha
domínio da palavra como um instrumento, ou uma faculdade da razão,
mas, antes, “[...] que o homem é palavra, que o homem é enquanto
palavra, que todo humano tem a ver com a palavra, se dá em palavra,
está tecido de palavras, que o modo de viver próprio desse vivente, que
é o homem, se dá na palavra e como palavra” (BONDÍA, 2002, p. 21). A
palavra é, portanto, condição que encarna a experiência como tradição
compartilhada: sempre uma outra experiência à medida que recobra
algo que interessa, que se passa entre pessoas e, precisamente por
isso, permite a criação de sentidos.

SINTETIZANDO...

Em síntese: língua: é um código e faz parte do legado científico e cultural


da humanidade; é um conjunto de sinais baseado em palavras que
obedecem às regras gramaticais; signo: é o elemento representativo
que possui duas partes indissolúveis: significado e significante;
linguagem: mecanismo de significação do mundo; capacidade que
os seres humanos têm para produzir, desenvolver e compreender a
língua e comunicar o pensamento; fala: diz respeito ao uso individual
da língua, aberto à criatividade e ao desenvolvimento da liberdade de
expressão e compreensão.
28 UNIUBE

A linguagem constitui o próprio movimento do conhecer e, por isso


mesmo, designa-se como elemento essencial para a formação da
consciência do homem, e pelo modo como ele representa a realidade
e enfrenta os problemas do mundo: por meio da linguagem, o homem
significa as coisas, conferindo-lhe valores. Por isso, em sentido
vygotskyano, a aprendizagem tem sua origem nas relações sociais,
sendo produzida nas relações entre-pessoas e marcada pelas condições
históricas, sociais e culturais que aí se inscrevem. É por meio da interação
com outras pessoas, adultos e crianças que, desde o nascimento, o
indivíduo constrói a suas características: modos de agir, pensar, sentir e
perceber o mundo.

Conforme Oliveira (1997, p. 38):

A interação face a face entre indivíduos particulares


desempenha um papel fundamental na construção do
ser humano: é através da relação interpessoal concreta
com outros homens que o indivíduo vai chegar a
interiorizar as formas culturalmente estabelecidas de
funcionamento psicológico. Portanto, a interação social,
seja diretamente com outros membros da cultura,
seja através dos diversos elementos do ambiente
culturalmente estruturado, fornece a matéria-prima para
o desenvolvimento psicológico do indivíduo.

Nesse sentido, a educação escolar recobra um importante e fundamental


papel: o de valorizar os diferentes elementos que permeiam o ambiente
social e educativo do sujeito, tendo em conta a forma plural com que
suas experiências pessoais e de aprendizagem são tecidas. Na escola,
a cultura se manifesta como dinâmica própria do relacionamento que o
indivíduo tem com o trabalho e a história. Segundo Rezende (1990, p.
59): “a cultura é o significante desse significado que é a existência. Ela
é a existência significativa do homem através da história”. Com efeito, o
sentido cultural, político e coletivo da existência humana faz da escola
o espaço das dinâmicas interativas que corroboram a elaboração e a
circulação de sentidos através das práticas discursivas como práticas
significativas.
UNIUBE 29

1.4 O ser humano: sujeito e objeto do conhecimento

Do latim cognoscere, que significa ato de conhecer, a palavra


conhecimento designa o modo pelo qual o sujeito cognoscente (que
conhece) se apropria de um objeto cognoscível (o que pode ser
conhecido) e o representa mentalmente (LALANDE, 1999). Desse modo,
o ato do conhecimento diz respeito à relação que se estabelece entre
o sujeito que conhece e o objeto a ser conhecido, isto é, diz-se de um
processo que envolve o sujeito conhecedor, com sua consciência, e um
objeto, que pode ser a realidade, o mundo, os inúmeros fenômenos. O
objeto é algo fora da mente, mas é também a própria mente quando
percebida como espaço de reconhecimento dos afetos, dos desejos
e das ideias. Nesse sentido, ao tempo em que o homem é sujeito do
conhecimento, ele é também objeto, pois é capaz de pensar o mundo
que o rodeia, sendo, dessa maneira, o mundo, o chão de sua criação.

Conforme Nagel (1978), o produto do conhecimento é o que resulta do ato


de conhecer, isto é, a forma representada do objeto conhecido. Trata-se,
em últia análise, do conjunto dos saberes produzidos e acumulados pela
cultura bem como os saberes que cada um de nós acrescenta à tradição:
as crenças, os valores, as ciências, as religiões, as técnicas, as artes, a
filosofia etc.

Na história da humanidade, os mitos representam a primeira forma de


produção do conhecimento para apropriação e explicação da realidade.
Segundo Vernant (2000, p. 12), o mito “[...] se apresenta como um relato
vindo do fim dos tempo e que já existiria antes que um contador iniciasse
sua narração. Nesse sentido, o relato mítico não resulta da invenção
individual nem da fantasia criadora, mas da transmissão e da memória.”

Por meio dos mitos, o homem procurou explicar não só a origem do


Universo e dos deuses, mas também sua própria existência e os
fenômenos físicos e humanos que lhe cercam. Designando um gênero
30 UNIUBE

narrativo, os mitos eram ensinados por tradição oral e tinham como


objetivo a formação ética, moral e religiosa dos membros de uma
determinada comunidade (VERNANT, 2000).

No entanto, como sabemos, os mitos não foram suficientes para suprir


o desejo humano de conhecer, explicar e dominar os fenômenos de
sua realidade. A busca pela compreensão do mundo como expressão
complexa fez, em determinado momento e por conjectura da história,
que o homem questionasse o mito como única forma de conhecimento.

O movimento de ruptura com a mitologia, como marco da origem


histórica da filosofia entre os gregos antigos, nos permite apontar
um duplo e importante registro: primeiro, que ao longo de toda a sua
história, o fazer filosófico como atividade do pensamento primou pela
autenticidade do saber como o resultado de um movimento de superação
da realidade aparente e busca do entendimento do que as coisas são
em sua essência; segundo, que o pensamento filosófico possui uma
característica que excede o consenso de que pensar filosoficamente é
pensar de modo radical, rigoroso e de conjunto. O pensamento filosófico
é também, fundamentalmente, criativo (ALMEIDA, 2016).

Cumpre, entretanto, registrar que esse movimento não ilustra o


rompimento radical de uma forma de saber pela outra, mas da criação
de uma nova postura intelectual. Assim, enquanto admiração pelo
desconhecido, amizade pelo saber e busca pela verdade, a Filosofia
surge como expressão de um conhecimento racional, lógico e sistemático
da realidade natural e humana, da origem e causas do mundo e de
suas transformações, da origem e das causas das ações humanas e do
próprio pensamento.

No âmbito da filosofia, o conhecimento assume a forma de uma produção


mediada pelo juízo (ou seja, pela capacidade de julgar e elaborar valores
sobre determinadas questões). Para Nagel (1978), esse tipo de produção
UNIUBE 31

de conhecimento, chamado de discursivo (do latim dircursus: ação


de correr para diversas partes, de tomar várias direções), opera pelo
encadeamento de conceitos e ideias e, diferentemente do conhecimento
chamado de intuitivo (da ordem empírica), carece da linguagem como
suporte fundamenal ao processo da abstração. A abstração permite
que o homem passe da natureza sensível, concreta e particular de um
objeto à representação mental que dele se faz. É este processo que torna
possível a generalização dos enunciados, a nomeação, a significação e
a valoração dos produtos da existência humana.

Sobre o papel da linguagem na produção do conhecimento, encontramos


em Freire (1996, p. 57) uma importante consideração. Conforme o autor:
No momento em que os seres humanos, intervindo
no suporte, foram criando o mundo, inventando a
linguagem com que passaram a dar nome às coisas
que faziam com a ação sobre o mundo, na medida em
que foram se habilitando a inteligir o mundo e criaram
por consequência a necessária comunicabilidade do
inteligido, já não foi possível existir a não ser disponível
à tensão radical e profunda entre o bem e o mal, entre
a dignidade e a indignidade, entre a decência e o
despudor, entre a boniteza e a feiura do mundo.

A propósito desta nota, observamos: se por um lado, afastar-se do


vivido permite que a razão enriqueça o conhecimento através das
noções abstratas que conduzem a interpretação e a crítica da realidade;
por outro, esse movimento pode representar o empobrecimento da
experiência intuitiva que o homem tem com o mundo e consigo mesmo.

1.4.1 Do senso comum ao conhecimento científico

Em sua origem, o termo senso comum é deveridado do latim sensus


comunnis (LALANDE, 1999). Diz respeito à maneira comum de sentir e
agir do homem no tocante às suas experiências cotidianas, e não implica
qualquer ideia de juízo teórico. Trata-se, portanto, de um conjunto de
opiniões construídas no âmbito das experiências e das percepções
32 UNIUBE

cotidianas. Assim designado, o senso comum “[...] é aquele pelo qual se


sente que se vê, que se ouve etc.; ele recolhe todas as outras sensações
e coordena-as entre si.” (BLANC apud LALANDE, 1999, p. 997).

O senso comum situa as mesmas noções que todos os homens têm


precisamente das mesmas coisas. É sempre o mesmo em toda parte,
e vem sempre antes de qualquer exame teórico sobre os fenômenos
que cercam e afetam os sentidos humanos. Assim sendo, referencia
o conjunto das crenças espontaneamente construídas e transmitidas
pela tradição de modo não crítico. Embora o senso comum represente
uma relevante forma de constituição dos saberes que mantêm coesos
sujeitos e comunidades ao longo da história humana, seu escopo carece
ser continuamente criticado em razão do movimento de assimilação pelo
qual novas proposições obtêm, sucessivamente, o valor intrínseco do
conhecimento como produto da razão, isto é: “uma vez que o homem
é um ser racional, há possibilidades para que aquilo que toda a gente
pensa (sobre as matérias que estão ao alcance de toda gente) não seja
irracional.” (LALANDE, 1999, p. 997).

Nesse sentido, e tendo em conta a necessidade de aprofundar um tanto


mais essa discussão, destacamos em Deleuze (2006) a crítica ao ideal do
senso comum como pressuposto de uma imagem ortodoxa, dogmática,
natural e moral do pensamento.

Ao criticar o ideal do senso comum, Deleuze (2006, p. 193) ironiza os


pressupostos de que “pensar seja o exercício natural de uma faculdade,
que esta faculdade tenha uma boa natureza e uma boa vontade”. Ao
partir da crítica formulada a Descartes e ao bom senso como o que está
melhor repartido entre os homens, Deleuze assinala a falsa imagem do
pensamento como algo direito, ou seja, como aquilo que naturalmente
pertencendo ao homem torna possível o acesso à verdade, qualquer que
seja a relação entre aquele que conhece e aquilo que é conhecido. Nesse
UNIUBE 33

sentido, afirma que “o bom senso ou o senso comum naturais são, pois,
tomados com a determinação do pensamento puro. É próprio do sentido
pré-julgar sua própria universalidade e postular-se como universal de
direito, comunicável de direito” (DELEUZE, 2006, p. 194). Assim, supor
que o pensar faz parte da natureza humana parece dar, por direito, uma
afinidade natural com a verdade.

Destarte, o pensamento constitui um movimento de intensidade entre


o saber e o não saber e, por isso, não pode ocorrer como algo que
seja espontâneo, pelo menos não no sentido de que não exista aí um
notável esforço de “aplicar o espírito” em objetar seus contrassensos.
A crítica formulada por Deleuze com relação ao ideal do senso comum
não se refere ao pensamento como condição natural do homem, mas,
antes, pelo desinteresse com os métodos e o rigor argumentativo que
nos permite justificadamente alcançar o conhecimento daquilo que nos
mobiliza na direção do saber.

Feita estas considerações, sublinhamos, a seguir, as distinções


fundamentais entre o conhecimento do senso comum e o conhecimento
científico, conforme Nagel (1978, p. 15-26).
34 UNIUBE

SENSO COMUM CIÊNCIA

Particular: restringe-se a uma Geral: as leis científicas são


pequena amostra da realidade gerais, ou seja, postulações que
com base na qual são feitas não valem apenas para os casos
generalizações apressadas observados, mas para todos
e imprecisas. Desse modo, o os que a eles se assemelham.
que vale para um ou para um As explicações da ciência são
grupo de objetos observados, sistemáticas e controláveis pela
é atribuído a todos os demais experiência, o que permite a
objetos. produção de conclusões gerais.

Fragmentário: não estabelece Unificador: estabelece relações


conexões com situações e/ entre os fenômenos de modo
ou fenômenos cujas relações que sejam evidenciadas as
poderiam ser verificadas. aproximações de causa e efeito.

Subjetivo: depende do ponto Objetivo: chama-se objetivo o


de vista individual e pessoal, conhecimento imparcial, que
podendo, por isso, ser independe das referências
condicionado aos sentimentos individuais e que permite o
ou afirmações arbitrárias do confronto com outros pontos de
sujeito da experiência. vista. Suas conclusões podem
ser testadas, confrontadas e
reelaboradas.

Ambiguidade: nomeia não só Rigor: a ciência dispõe de uma


a falta de clareza na produção linguagem rigorosa (aqui se inclui
de suas explicações, como a questão do método científico)
também a propriedade subjetiva capaz de formular enunciados
que encaminha um ou mais gerais através do exame das
sentidos ao mesmo fenômeno. diferenças e semalhanças entre
os fenômenos, o que, por seu
lado, evita ambiguidades de
compreensão e interpretação
do fenômeno.
UNIUBE 35

PONTO-CHAVE

As características que definem o conhecimento científico não fazem


da ciência um saber neutro, desinteressado, puramente intelectual e à
margem do questionamento social e político que cerca suas pesquisas.
O fazer científico encontra-se diretamente relacionado às questões
da ordem moral e política que se arranjam no âmbito da sociedade
e das concepções que ela produz de homem e humanidade. Há,
portanto, que compreender a ciência como suporte fundamental para
a construção de uma sociedade que tenha como fim a fundação de
um estado de bem-estar intelectual, social e moral capaz de assegurar
ao homem o acesso aos valores que lhe permitam o reconhecimento
consciente de seu tempo e lugar, sobremaneira, do lugar para onde
deseja ir.

1.5 O ser humano: um ser histórico, político e social

As dimensões da história, da política e da sociedade encontram-se


implicadas na grande trama que entretece o humano no homem. São
dimensões indissociáveis que atravessam todas as expressões e
formas da vida humana. Para compreender melhor o modo como essas
dimensões se articulam e se implicam, organizamos, didaticamente,
dois arranjos téoricos: o primeiro, concernente ao problema histórico; o
segundo, ao problema político e social.

No primeiro caso, o problema que nos reporta diz respeito ao sentido


da história. Segundo Mondin (1980), há dois sentidos que nos permitem
compreender a dimensão histórica do homem: o primeiro, sendo objetivo,
compreende a marcha do homem no decorrer do tempo; o segundo, de
caráter subjetivo, coloca a questão dos acontecimentos humanos que se
sucedem no tempo.
36 UNIUBE

PARADA PARA REFLEXÃO

O agente histórico é o homem, e não o tempo. O homem é situado no


tempo: nasce, vive e morre em determinado tempo da hitória; participa
em diferentes medidas e de diferentes modos dos processos históricos
que atravessam e sustentam o tempo de sua experiência humana. O
homem é consciente de sua existência, de sua temporalidade, da con-
dição de sua finitude. “O homem existe — existere — no tempo. Está
dentro. Está fora. Herda. Incorpora. Modifica. Porque não está preso a
um tempo reduzido a um hoje permanente que o esmaga, emerge dele.
Banha-se nele. Temporaliza-se.” (FREIRE, 1967, p. 40).

É precisamente a tomada de consciência de sua historicidade (ou seja,


da qualidade de ser histórico) que caracteriza e circunstancia o homem
nas relações que ele mantém com o outro e com o mundo. Nesse
sentido, importa romper com o mito do homem abstrato de que fala
Bleger (1987 apud BLOCK, 2001). Sujeito de uma história que se realiza
concretamente, o homem tem sua identidade forjada nas tramas do
tempo, e, através delas, compreende a si mesmo, os outros, a cultura e
os acontecimentos de ontem e hoje como espaço dialético, de autocrítica
e de autorrealização.

Nesse sentido, há que considerar duas importantes perspectivas, sendo


a primeira delas referente à morte. Ao longo de séculos, a morte foi
tomada pela filosofia não apenas como horizonte-limite da experiência
humana, como também, e, por conseguinte, como o meio pelo qual
far-se-ia possível compreender a relação do homem com o mundo em
suas diferentes formas. A premissa da morte imprimiu sobre a experiência
humana a condição de sua consciência, e, nela, da produção e atribuição
dos sentidos de ser e estar no mundo humano.

Ao reconhecer a temática da morte na abordagem fenomenológico-


-existencial, a referência que melhor nos orienta é a desenvolvida pelo
UNIUBE 37

filósofo alemão Martin Heidegger. Para ele, o homem, distinguindo-


-se dos demais entes que habitam o mundo, caracteriza-se como
ser-aí, ou seja, para fora de si mesmo, e, por isso, é sempre ser-com-
-outros (HEIDEGGER, 1993). Dito de outra forma: para Heidegger, é
na experiência coletiva que o homem reconhece a condição de sua
humanidade. Ser humano é ser-com: ser-no-mundo e ser-no-mundo-
com-os-outros, fundamento de uma facticidade básica, o que torna o
homem, em si mesmo, um sujeito de relações.

Entretanto, há que considerar o seguinte: embora o homem se constitua


em virtude das relações que ele mantém com o mundo, toda relação é
fundamentalmente indeterminada e não fixada, o que acaba por oferecer
ao homem a liberdade necessária para realizar suas escolhas. A esse
respeito, afirma Heidegger (1993, p. 63): “pela instabilidade que lhe é
constitutiva, o homem pode perder e não mais achar todas e cada uma de
suas possibilidades de ser”. Por isso, sabendo que vai morrer, o homem
projeta para fora de si a potência que o impulsiona na transformação do
mundo em que vive. Assim, existindo no mundo e lançado ao mundo
como projeto, o homem toma para si o sentido do ser no horizonte do
tempo.

Por outro lado, toma forma a questão da natalidade, ou seja, do


nascimento, da vinda de seres humanos novos para um mundo mais
velho. Ao nascer, o homem se faz estrangeiro num mundo que já existe
como estado de coisas já fixada. A natalidade diz respeito à relação
entre os que nascem e o mundo já existente. Deste lado, a morte deixa
de constituir-se como espaço de produção da consciência humana, para
comunicar ao ser-nascido a condição básica de sua existência.

Em A condição humana, Arendt (2008) afirma que a natalidade se


relaciona com todas as atividades que o homem exerce, sendo, contudo,
especialmente relevante para a ação e, assim, para a política. O conceito
38 UNIUBE

de natalidade ocupa uma importante posição na obra da pensadora,


mas é no ensaio intitulado A crise na educação que ele ganha uma
importância peculiar, já que a vinda dos novos é a condição que exige a
ação educativa: “a essência da educação é a natalidade, o fato de que
seres nascem para o mundo.” (ARENDT, 2005, p. 223).

Para Arendt (2005), cada criança que nasce é uma novidade: vem ao
mundo alguém que é diferente de todos os que já viveram antes dele
e dos que convivem com ele. É precisamente a singularidade como
potência presente em cada ser humano que faz com que todo nascimento
reflita uma realidade sempre nova, inédita. Não se trata, portanto, de fins,
mas de começos. Ser capaz de começar algo, de intervir naquilo que
já existe, (re)inventando, (re)criando. Esse processo, atravessado pela
relação educação, trabalho e cultura, permite ao homem revelar-se como
singularidade no mundo que compartilha com os outros e por meio do
qual se qualifica como humano.

Por isso, afirma Arduini (2000, p. 15):

A preocupação humana deve ser concentrar-se


no kairós. Kairós é decisão radical. É optar, assumir,
realizar. Kairós é salto histórico. Rompe com o passo,
estala estruturas, resolve consciências e muda vidas.
A cronologia mede o curso do tempo, sem ponderar
situações humanas e desumanas. A kairologia avalia a
situação concreta em que se encontra a humanidade.

No que pese ao caráter essencialmente político e sociável do ser humano, o


que primeiro se expõe diz respeito ao caráter gregário do homem: ele carece
do meio social como busca de poder comunicar sua existência e compartilhar
o bem-comum como membro de uma sociedade política. A esse respeito,
Bondim (1980, p. 134) assim nos adverte: “O homem – afirmamos – é
essencialmente sociável: sozinho não pode vir ao mundo, não pode crescer,
não pode educar-se; sozinho não pode satisfazer nem suas necessidades
mais elementares, nem realizar suas aspirações mais elevadas”. Logo, o
homem não existe, como ser humano, fora do meio social.
UNIUBE 39

Nessa perspectiva, cumpre romper com o mito do homem isolado de


que fala Bleger (1987 apud BLOCK, 2001). Em nosso tempo, a simples
suposição de que o homem é primitivamente isolado depõe contra o
curso do desenvolvimento cultural da própria humanidade. Ora, à medida
que o nível cultural da humanidade se elevou, também a dimensão de
sociabilidade tornou-se mais ampla e complexa, razão de sua natureza
política.

A necessidade da vida social conduziu o surgimento da vida política. Ora,


se pressumimos a origem da sociedade como condição de uma mútua
dependência de todas as pessoas em relação a todas as outras, então,
a natureza política do homem não se manifesta de outro modo senão
como condição de seu estar no mundo: a permanente associação entre
indivíduos determinou como imperativo e necessário o estabelecimento
de normas e padrões de conduta que regulem a vida em sociedade.

O problema da natureza política do homem é, em última análise, o


problema da origem e fundação do Estado. Segundo Aristóteles (apud
MONDIN, 1980, p. 137), “é evidente que o Estado é uma criação humana
e que o homem é naturalmente um animal político”. Para os gregos da
antigudiade, a polis é o lugar da vida, por execelência. É na polis que o
homem existe como realidade ontológica. É precisamente disto de que
trata a política: da arte de governar, de regular os conflitos de interesses
e as relações de poder. Portanto, “o Estado é a ideia do Espírito Absoluto
na manifestação da vontade humana e de sua liberdade.” (MONDIN,
1980, p. 138).

Com efeito, é no interior das temporalidades e na tecitura de relações


políticas e sociais que o homem produz a si mesmo enquanto sujeito
que sabe, que questiona, que trabalha, que cria e que representa sua
experiência de estar no mundo humano por meio da palavra e da técnica.
Para Freire (1996, p. 83): “[...] diferentemente dos outros animais, que
40 UNIUBE

são apenas inacabados, mas não são históricos, os homens se sabem


inacabados. Têm a consciência de sua inconclusão.”

1.6 Considerações finais

Ao refletirmos Quem é o ser humano, afinal?, pensamos sobre nós


mesmos e sobre a humanidade. Quem somos? Por que existimos? Por
que buscamos o sentido das coisas? Que influência recebemos? São
esses os questionamentos que fazemos na tentativa de compreender
nossa presença no mundo e com o mundo. Nós, seres humanos,
buscamos encontrar nos fenômenos naturais e sociais, na história e
na cultura, o sentido de nossas inquietações, tentando compreender,
assim, nosso jeito de ser e a razão de existir. Por isso, de tudo quanto se
discutiu até aqui, reconhecemos a complexidade que cerca e atravessa
os processos que permitem ao homem humanizar-se, ser humano. Disso,
cumpre ressaltar: primeiro, a forma contínua que marca os processos
de humanização; depois, o que cerca a experiência humana em suas
diferentes formas; por fim, a consciência desse processo.

A socialização, a aquisição e o uso da linguagem, a compreensão do


corpo, suas formas e seus usos, os discursos, a política, a cultura, a
composição e o pertencimento político, social e cultural são processos
contínuos, que se desenrolam em função das experiências que o homem
mantêm com a natureza e a sociedade, consigo e com os outros.
Pluralidade. Devir: “[...] relações de movimento e repouso, de velocidade
e lentidão, as mais próximas daquilo que estamos em vias de nos
tornarmos, e através das quais nos tornamos” (DELEUZE; GUATTARI,
1997, p. 64). Por isso, o homem é sujeito de entremeios, sintagmático: é
sempre “e... e... e...” com as múltiplas possibilidades de experimentar a
existência em todas as suas formas e potências, de ensaiar a vida como
obra de arte e representar o mundo; enfim, de tornar-se humano.
UNIUBE 41

Do modo mais essencial, ser humano é reconhecer-se inacabado,


insuficiente e postulante de inúmeros outros desdobramentos e
encontros. É este o sentido em que a vida se desenha como experiência
de intensidade: imanência. Para Deleuze (2002, p. 14): “uma vida está
em toda parte, em todos os momentos que este ou aquele sujeito vivo
atravessa e que esses objetos vividos medem: vida imanente que
transporta os acontecimentos ou singularidades”. Por fim, e para ilustrar
as reflexões que nos orientaram até aqui, lembramos Elisa Lucinda e a
boniteza de suas palavras na tecitura do poema Inexato.

Que o mundo é sortido


Toda vida soube!
Quantas vezes
Quantos diversos de mim
Em minh’alma houve?!
Árvore, tronco, maré, tufão e capim,
madrugada, aurora, Sol a pino e poente
Tudo carrega seus tons, seu carmim.
O vício, o hábito, o monge
O que dentro de nós se esconde
O amor, o amor, o amor
A gente é que é pequeno
E a estrelinha é que é grande
Só que ela tá bem longe.
Sei quase nada, meu Senhor,
Só que sou pétala, espinho, flor
Só que sou fogo, cheiro, tato, plateia e ator
Água, terra, calmaria e fervor
Sou homem, mulher
Igual e diferente, de fato.
Sou mamífero, sortudo, sortido
Mutante, colorido, surpreendente,
medroso e estupefato.
Sou o ser humano
Sou o inexato.
42 UNIUBE

Resumo

O objetivo deste capítulo foi discutir os conceitos de homem e


humanidade como problemas que se constituem entretecidos nos
campos da filosofia, da antropologia, da sociologia e da psicologia. No
intento de realizar as conexões, aproximações e percepções teórico-
conceituais que definissem os contornos dessa discussão, os estudos
deste capítulo buscaram considerar as tessituras históricas, sociais e
culturais que fixam as formas de expressão por meio das quais o homem
se torna humano. Por isso, atravessando diferentes epistemologias e
viéses de interpretação, as discussões arranjadas ao longo do texto
evidenciam a articulação dos diferentes modos de compreender o
desenvolvimento sócio-histórico da condição humana: a socialização
e a produção da subjetividade, o problema da aquisição e do uso da
linguagem, a compreensão do corpo, suas formas e seus usos, os
discursos, da política, da cultura e da apropriação dos valores culturais,
da composição e do pertencimento político e social como processos
contínuos que se desenrolam em função das experiências que o homem
mantêm com a natureza e a sociedade, consigo e com os outros.

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MERLEAU-PONTY. Maurice. Fenomenologia da percepção. Tradução


de Carlos Alberto Ribeiro de Moura. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

MONDIN, Battista. Introdução à filosofia: problemas, sistemas,


autores, obras. Tradução de J. Renard. São Paulo: Paulus, 1980.

MORAES, Maria Cândida; TORRE, Saturnino de la. Sentirpensar: Fundamentos


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PEIRCE, Charles S. Semiótica. São Paulo: Perspectiva, 1977.

NAGEL, Ernest. La estructura de la ciência. Buenos Aires: Paidós, 1978.

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REZENDE, Antônio Muniz. Concepção fenomenológica de educação.


São Paulo: Cortez, 1990.

VERNANT, Jean-Pierre. O universo, os deuses, os homens. Tradução de Rosa


Freire d’Aguiar. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
Capítulo O professor na
2 transição de paradigmas
educacionais

Carlos Rodrigues Brandão


Iolanda Rodrigues Nunes
Sueli Teresinha de Abreu Bernardes

Introdução
Neste capítulo, vamos refletir sobre a educação no paradigma
educacional tradicional e, sobretudo, procurar fundamentar a
questão: o que está mudando na educação? Somos autores de
diferentes formações: antropologia, o Carlos; pedagogia, a Iolanda;
e filosofia, arte e educação, a Sueli. Em comum, o fato de sermos
educadores com visões de mundo semelhantes e uma grande
vontade de compartilhar nossa busca de conhecimento. Entre
muitos educadores, cientistas, artistas, filósofos e poetas que nos
formaram ao longo da vida, selecionamos alguns para este diálogo
sobre a transição de paradigmas na educação. São esses os
nossos referenciais: Cora Coralina (1988), Nikolaos Gyzis (1885),
Maria Isabel da Cunha (1998), Pierre­‑Auguste Renoir (1889),
Cipriano Carlos Luckesi (1991), Dermeval Saviani (1987), Maria
Cândida Moraes (1987), Paulo Freire (1970), dentre outros.

Objetivos

Ao final dos estudos aqui propostos, esperamos que você possa:


• caracterizar as tendências teóricas redentora, reprodutivista
e transformadora;
46 UNIUBE

• diferenciar pedagogia liberal e pedagogia progressista;


• caracterizar o paradigma educacional emergente;
• descrever, a partir da leitura deste capítulo, da observação
e do diálogo com autores, artistas, professores e colegas,
a educação na pedagogia tradicional, na pedagogia
progressista e no paradigma educacional emergente;
• apontar diferentes interações professor­‑aluno­‑conhecimento
e as repercussões na construção de saberes nos ambientes
de aprendizagem;
• reconhecer a pesquisa docente como uma postura diante do
outro e do grupo, na construção partilhada de conhecimento
entre professor-aluno e aluno­‑aluno.

Esquema

2.1 Balizas e princípios de nosso estudo


2.2 Escutando a voz dos poetas
2.3 Por que o foco no professor?
2.4 A educação sob a ótica tradicional e a progressista
2.4.1 Tendências teóricas e concepções de educação
2.4.2 Pedagogia liberal e pedagogia progressista
2.5 As situações dialógicas, solidárias e interativas de educar
2.5.1 Cenas, cenários e gestos da educação no paradigma
emergente
2.6A construção partilhada do conhecimento na experiência da
pesquisa na docência
2.6.1 Dimensões da pesquisa na docência
2.6.2 A relação professor­‑aluno em um trabalho de pesquisa
na docência
2.6.3 O conhecimento que se cria junto
2.7 Conclusão
UNIUBE 47

2.1 Balizas e princípios do nosso estudo

Desde as primeiras culturas, o ser humano surge dotado de um dom


singular: mais do que homo faber, ser fazedor, o homem é um ser
formador. Ele é hábil para instituir relacionamentos entre os múltiplos
episódios que ocorrem ao redor e dentro dele. Relacionando os eventos,
ele os configura em sua experiência de vida e lhes dá um significado.
Nas questões que cria ou nas escolhas que faz ao atuar, ao imaginar, o
homem continuamente faz relações e forma algo.

Porque o homem produz símbolos e atribui significados ao que percebe,


vive e realiza, ele é formador, e é impelido a isso desde as mais remotas
culturas. Por meio dessa capacidade de ordenar e dar sentido aos
fenômenos, transforma o fazer em criação e, assim, vai além do homo
sapiens – o que sabe e tem consciência do seu saber – e do homo faber,
o fazedor. A experiência de dar forma com criatividade, sensibilidade,
beleza e todos os valores cabíveis em sua obra é uma terceira dimensão
da vida do homem e faz parte da expressão mais elementar de sua
existência. O homem cria porque necessita desenvolver­‑se de modo
mais significativo, ordenando, dando contornos, símbolos, sentidos e
significados às formas com as quais ele delineia seu mundo e sua vida.
Ele cria o simbólico e o belo e não apenas o útil e o utilitário. Observe
que o homem faz o jarro de barro. Mas por que ele desenha flores ou
deuses nele?

Se é pensado que o homem é um ser formador e passível de ser


formado, as suas diferentes dimensões devem ser abarcadas. O trabalho
que leva em conta a criação de conceitos, que engendra ideias que se
desenvolvem em diferentes direções da existência é insuficiente para
suprir a formação humana na densidade de seu todo. O sensível, o
intuitivo, o imaginário, o espiritual, o cultural, o corporal, o emocional e o
ético são complementares ao ser e ao agir que a racionalidade assumiu
hegemonicamente como seu domínio.
48 UNIUBE

A ausência de formação para a sensibilidade é herança do projeto da


modernidade, pois o ideário moderno foi construído a partir de uma
pretensão da razão de dominar o mundo e submeter a natureza aos fins
humanos. Desse pressuposto decorre uma compreensão de liberdade
que é medida pela capacidade de consumir; um conceito de igualdade de
oportunidades que, na verdade, é instaurado em condições excludentes;
uma ideia de fraternidade que é malograda pela divisão entre os que
detêm o poder e os que obedecem; uma concepção de felicidade ligada
à ideia individualista, consumista e pragmática de sucesso. A ética de
nossa sociedade é regida pelas leis de compra e venda do mercado.

Na escola, muitas diretrizes evocam o desenvolvimento de competências


e a prioridade do saber­‑fazer. Mesmo com um olhar mais ampliado
para situações em que o pensamento crítico predomina no campo
pedagógico, é possível observar ora uma preocupação política, ora uma
ênfase nas relações pedagógicas de ensino­‑aprendizagem, enquanto
a dimensão da sensibilidade permanece restrita quase sempre aos
espaços reconhecidos como de domínio do artista: o teatro, o museu, o
cinema, a televisão, o “conservatório musical”, dentre outros, como se a
sensibilidade fosse peculiar apenas a alguns poucos privilegiados.

Diante desse quadro, seria oportuno perguntar: e, afinal, onde se


situa o sonho? Onde se localiza a sensibilidade, o encantamento? A
uma ideologia produtivista não se deveria contrapor uma pedagogia
do sonhador? Na verdade, o homem não deixa de sonhar quando se
fantasia para o carnaval, quando se apaixona, e em múltiplas situações
de sua cotidianidade. No entanto, desvaloriza, ou vê desvalorizado
o seu sonho, considerado improdutivo e distante das necessidades
consideradas imediatas. A ciência moderna ressaltou a racionalização,
pretendeu tornar o homem senhor da natureza, mas desproveu­‑o da
imaginação criadora. O mundo humano tornou­‑se servil da razão utilitária
e instrumental.
UNIUBE 49

O leitor não deve estranhar, pois encontrará diferentes linguagens


nos textos a seguir. A criatividade dos professores convidados a
escrever leva­‑os não só ao uso da linguagem artística, reconhecendo
a complementaridade entre ciência e devaneio. A própria concepção do
projeto político­‑pedagógico dos cursos de licenciatura da Universidade
de Uberaba, e, por conseguinte, da formação pedagógica comum aos
licenciandos, apresenta um sentido criativo e inovador. Assim, eixos e
unidades temáticas substituem a tradicional concepção curricular de
matérias e disciplinas.

Na formação comum, objeto deste livro, do eixo temático “O


desenvolvimento humano e os contextos de aprendizagem”,reúne temas
da filosofia da educação, da sociologia da educação, da psicologia
educacional, da didática, da antropologia da educação, da história da
educação, da arte, das ciências políticas e sociais, dentre os vários
saberes que se inter­‑relacionam.

Tal organização curricular expressa, ainda, a busca para se compreender


o trabalho do professor em ambientes de aprendizagem como integrado
e decorrente das concepções de mundo e de paradigmas que envolvem
a educação.

No entanto, o que está por detrás dessas palavras formais é bastante


mais denso, bastante mais complexo, bastante mais educativo e bastante
mais humano. Vejamos.

Refletindo sobre a opção de nossos alunos de ser professor, observamos


que entre tantas escolhas abertas – pelo menos em teoria, pelo menos
na imaginação – às nossas jovens e aos nossos jovens de hoje, escolher
“fazer licenciatura em” ou optar por “licenciar­‑se em” representa uma
seleção dentro de outra. Significa que uma pessoa que em um primeiro
momento elegeu estudar ciências biológicas, química, matemática, história,
50 UNIUBE

letras (português, espanhol ou inglês), geografia, física, história, optou, ao


mesmo tempo, estudar para fazer­‑se uma professora, um professor “de”.
Escolheu, portanto, tornar­‑se um educador, uma educadora. A sua escolha
de carreira foi e seguirá sendo uma opção de vida.

Fosse na Grécia, onde mais ou menos ao mesmo tempo nasceram a


geometria euclidiana, a filosofia e a educação, e poderíamos dizer que
a escolha em “licenciar­‑se” representa de algum modo um passar da
techné, a técnica, para a paideia, a formação do homem. Significa, ainda,
e desde a Grécia antiga, o passar do criar conhecimentos e transformar
tecnologicamente a natureza para incorporar “coisas” (objetos, utensílios,
equipamentos) a polis (a cidade), a criar conhecimentos e transformar
pedagogicamente, integrando pessoas tornadas sujeitos sociais de sua polis.

Houve um tempo em que, fora raras, estranhas e honrosas exceções,


escolher “ser professor” representava uma “escolha por baixo” na
vida de um futuro profissional. No caso dos homens, pior ainda. Uma
mentira perversa que, por muito tempo, foi propagada principalmente
nos países do Terceiro Mundo. Afinal, “por que escolher ser professor
de anatomia quando eu posso ser um médico?”. “Por que estudar para
ser uma professora de biologia quando eu posso ser uma bióloga,
isto é, uma pesquisadora­‑pura de minha ciência?”. Mas, então, qual
a razão pela qual durante quase toda a história do pensamento
do Ocidente e do Oriente, os grandes pensadores foram também
professores e os cientistas mais importantes dividiam­‑se entre as
salas de aulas e os laboratórios? Quando não faziam de suas oficinas
ou de seus laboratórios as suas também salas de aulas.

Acreditamos que este tempo passou. E defendemos com ardor, mas do


mesmo modo com o olhar fixo em algumas afortunadas evidências dos
últimos anos, que a escolha por licenciar­‑se e ser uma professora, um
educador, tende a ser a cada dia mais uma opção de vocação consciente.
Uma escolha motivada e, portanto, responsável.
UNIUBE 51

Como tudo o mais que tem acontecido e sido criado no Instituto de


Formação de Educadores, o processo de gestação da formação
pedagógica dos cursos de licenciatura da Universidade de Uberaba foi
e segue sendo o resultado de uma série de rodadas de diálogos em volta
de propostas concretas e também de teorias. Poderíamos simplesmente
ter “trazido para a Uniube” o espírito e a letra de projetos equivalentes que
deram certo em outras universidades. Teria sido o percurso mais fácil.
Com o defeito de que ele negaria de saída justamente o que estamos
propondo com mais empenho: que a educação seja, em qualquer
momento e para qualquer efeito, uma prática teórica ao mesmo tempo
crítica e criativa. Isto é, uma proposta de ação cultural – como toda a
educação é – com fundamentos culturais resultantes de uma reflexão
profunda, séria e partilhada – como toda a educação deve ser.

Preferimos, por isso e por outras razões, o caminho oposto. Optamos


por criar os cursos por meio de uma ampla e diferenciada atividade já,
ela própria, educativa em todos os sentidos. Para tanto, escolhemos o
caminho do estudo e do diálogo.

No caminho do estudo: procuramos reunir o que nos pareceu a


bibliografia disponível mais atualizada e mais consistente a respeito de
nossos assuntos. Não apenas os livros e os artigos da moda, mas tudo
o que pudesse ser, de fato, um subsídio à reflexão e aos debates que
deveriam anteceder toda e qualquer formulação de propostas concretas.
Logo se verá que não seguimos teorias únicas nem modelos prontos.

No caminho do diálogo: procuramos colocar “em volta da mesa”,


tanto quanto possível, todo o corpo de ideias e de sugestões que
deveriam servir como subsídios e como fundamentos às nossas
propostas, incluindo o estudo do uso de novas tecnologias e a
educação a distância. Em um segundo momento, estabelecemos o
52 UNIUBE

mesmo procedimento para a discussão das próprias propostas, até


chegarmos ao momento de seus menores detalhes.

Convivemos com a contribuição inestimável dos educadores da


Uniube e de alguns convidados com experiência nas modalidades
presencial e a distância. Foram, longas horas de vários dias
de extensas e fecundas conversas à volta das ideias. Mas, em
momentos seguintes, as pessoas responsáveis pelo trabalho criaram
uma proposta que esperamos responder à pergunta: quais são os
saberes que todo educador da educação básica deve ter?

Não será difícil verificar que sobre alguns supostos hoje tornados
comuns e consagrados, procuramos criar algo ao mesmo tempo atual
e consistente. Não há, repetimos, uma fonte única nem uma filiação
mono dirigida. Mesmo das ideias e sugestões que foram ouvidas,
nós as tomamos com a liberdade que o teor de nossos próprios
diálogos ensejou desde os primeiros dias de trabalho. Este projeto
pedagógico e os dos vários autores lidos, debatidos e referidos
aqui, foram sempre um conjunto rico e relevante de fundamentos
e de sugestões. Nunca uma palavra final. Acreditamos que esta
“palavra final” foi e prossegue sendo das pessoas responsáveis pela
educação na Uniube.

Almejamos uma educação com vistas a ser continuada, se possível,


“por toda a vida”, mormente em se tratando da educação de
educadores e da formação crítica e criativa de formadores, isto é,
de professores de professores. Teremos que descobrir adiante (mas
não tanto) como tornar isto uma prática viável e democraticamente
acessível a todas e todos os que procuram sua formação nesta
Universidade. Nossos cursos de especialização em educação a
distância já constituem um grande avanço nessa direção.
UNIUBE 53

Propomos uma educação de vocação francamente multicultural.


Uma educação, portanto, não apenas aberta às diferenças pessoais
e culturais, mas à própria imensa riqueza que esta diversidade
representa. Ou mais ainda, representará, num mundo onde uma
globalização acelerada das economias e dos poderes, tende a
uniformizar também – como se tudo o que é humano fosse “a mesma
coisa” – as ideias, as imagens e o imaginário de pessoas, povos e
culturas. Trata de partir de nós, do que é nosso e de nossas próprias
diferenças, para estabelecer com outros, diferentes, a partir dos mais
próximos a nós, um verdadeiro diálogo.

Uma educação de interações motivadamente participativas, mais


do que apenas uma “educação ativa”. Queremos partir do princípio
de que em todas as suas situações, mas, sobretudo, quando se
trata de formar educadores­‑professores e professoras­‑educadoras,
todo o processo de ensino­‑aprendizagem está contido dentro de um
processo mais amplo e mais profundo: o de se criar juntos o saber
com o qual se aprende, solidária e individualmente.

Nesse sentido, apresentamos uma proposta pedagógica empenhada


em formar professores­‑educadores, bem mais do que especialistas
em educação. Que outros cursos, em outros momentos, deem conta
da continuidade da formação deles. Continuamos pensando que
a grande carência de nossa educação ainda é a de profissionais
da educação. Pessoas críticas e criativas dentro e fora da sala
de aula, e não apenas competentes e especializadas em seus
temas científicos, em seus conteúdos didáticos e em seus métodos
peculiares de trabalho de sala de aula, mas, ao mesmo tempo,
pessoas hábeis ao lidarem plenamente com outras pessoas.
Educadores capazes de estabelecerem diálogos com seus alunos
para além da rotina das “matérias” e da lógica das “disciplinas”.
Para além do saber da disciplina, em direção ao saber das áreas
54 UNIUBE

científicas e não científicas nas quais elas estão situadas. E, para


além dessas áreas, em direção a complexos da inteligência e do
conhecimento, onde estão e se multiplicam as integrações entre
as ciências, as interações entre elas e outros modos humanos de
saber, e entre tudo isto e o todo das pessoas que somos, que são
os nossos estudantes, futuras e futuros educadores.

Por isso, passamos a dar uma grande importância na associação entre


a docência e a pesquisa, procurando superar, tanto quanto possível, a
tradição que valorizava a acumulação de saberes memorizados para a
prova e não integrados aos saberes da vida.

Desde os primeiros momentos, nossos educandos se viram desafiados


a viverem a experiência essencial da reflexão pessoal e partilhada como
exercício fundador do trabalho preparatório ao vir­‑a­‑ser um educador.
Queremos também partir do pressuposto de que se o professor crítico­
‑reflexivo­‑inventivo­‑transformador, capaz de criar conhecimento com o
aluno, é o educador necessário ao nosso tempo e ao nosso mundo. Essa
pessoa é responsável por criar ideias e por saber viver com os outros
ou incentivá­‑los continuamente para aprender a aprender e a aprender
ainda mais com os outros, pois esse educador não se gera num sempre
depois, quando já profissional. Essa educação deve começar a existir
no primeiro dia em que uma mulher ou um homem, nossos educandos,
se descobrem começando a viver a formação de suas escolhas. A esse
propósito demos, seguindo o pensamento de outros e os nossos, o nome
de desenvolvimento pleno e integral do educador que, mais à frente,
deverá reviver essa mesma experiência com os seus próprios educandos.
Entre as opções de uma educação oportunista, superficial, competitiva
e dirigida à formação de agentes econômicos (bons produtores e ávidos
consumidores) de um mercado que se pretende erigir como modelo de
toda a vida em sociedade, optamos pelo caminho oposto, uma vez mais.
Escolhemos a prática de uma educação voltada ao todo pleno da pessoa
UNIUBE 55

humana. Uma educação motivada pela criação de sujeitos­‑do­‑ser, e não


de agentes­‑do­‑ter. Uma educação devotada a uma vocação humanista
que, justamente por estar agora tão posta sob ameaça, deveria ser mais
do que nunca recolocada em seu lugar central na vida de uma sociedade
em construção como a nossa.

Se enfatizamos a interação teoria­‑prática; a pesquisa na docência;


a experiência do diálogo; a formação de um professor­‑educador
compromissado com o desenvolvimento humano em suas diferentes
dimensões; a integração da diversidade em suas várias faces; as
relações afetivas; o prazer nos ambientes de aprendizagem; a
valorização da experiência do aluno; a educação da sensibilidade; o
estudo inter-relacionado das ciências da educação e das próximas a
elas é porque buscamos ultrapassar fronteiras disciplinares a fim de nos
prepararmos para um trabalho interdisciplinar.

2.2 Escutando a voz dos poetas

Ouçamos, por um instante, a voz dos poetas, Fernando Pessoa


porque ela, muitas vezes, nos proporciona ver,
Viveu de 1888 a
sentir, pensar, dizer. Nela e por ela, o real se mostra 1935. É um poeta
português e sua obra
como se nunca o tivéssemos visto, dito, pensado ou
é reconhecida como
sentido. Pela poesia e por toda a criação artística, a de um gênio. Sua
poesia é de uma
podemos viver a experiência de nascer todo dia pátria sem limites de
geografia, língua, raça,
para a eterna novidade do mundo. Assim ouvimos
pois é aberta ao voo
nos versos de Fernando Pessoa (2010): infinito de todas as
suposições e sonhos.
56 UNIUBE

O meu olhar é nítido como um girassol.


Tenho o costume de andar pelas estradas
Olhando para a direita e para a esquerda,
E de vez em quando olhando para trás...
E o que vejo a cada momento
É aquilo que nunca antes eu tinha visto,
E eu sei dar por isso muito bem...
Sei ter o pasmo essencial
Que tem uma criança se ao nascer,
Reparasse que nascera deveras...
Sinto­‑me nascido a cada momento
Para a eterna novidade do Mundo...

Nesse poema, escrito em 8 de março de 1914, Fernando Pessoa


chamava a atenção para a eterna novidade do mundo. Essas palavras,
que geralmente são ditas separadas ou opostas, são unidas pela poesia,
pois há dimensões da realidade que os poetas veem primeiro e nós
aprendemos com eles, se tivermos a sensibilidade para ouvi­‑los.

Observamos que, no campo da educação, assim como no mundo todo,


continuamente estão ocorrendo mudanças, mas também há sempre
algo que permanece. Vocês, aluna e aluno atentos deste curso, hoje
estão estudando de um modo diferente do que estudaram seus pais.
A cada momento, o homem cria, em todos os seus afazeres, ideias e
sentimentos. Não é apenas na arte que se cria. Vocês e nós estamos
participando de um desses instantes. Aprendamos, pois, com a questão
que o poema de Fernando Pessoa aponta: o que está mudando na
educação? Como o professor pode favorecer essa transição?
UNIUBE 57

2.3 Por que o foco no professor?

A opção por apresentar o professor como a figura mais relevante para


pensar as mudanças no campo educacional poderá ser compreendida
com facilidade. Pensamos que o professor ainda é o agente principal de
qualquer transformação na educação, embora outros fatores devam ser
considerados. Por exemplo, interferem igualmente no processo educativo,
a vida escolar: a estrutura de poder, o grau de contentamento dos docentes
e dos funcionários no exercício da função, o empenho dos alunos na busca
de outros modos de aprender, a oportunidade de uma formação continuada
para mestres, especialistas e gestores, a situação social, econômica e
política do município, do estado e do país, dentre outros aspectos. É,
portanto, um conjunto de ações, de atores e de saberes que possibilitam
qualquer mudança.

Apesar disso, estamos priorizando a reflexão sobre o professor porque


o entendemos como o sujeito decisivo para se pensar os paradigmas
educacionais e o momento de transição entre eles.

Apenas os educadores pensam e expressam seus sentimentos em


relação ao professor? O que você pensa a esse respeito?

Você deve ter respondido não. Também pensamos assim. Vamos a um


exemplo. Em Vila Velha de Goiás, uma escritora, doceira e cozinheira, e
uma das mais lidas poetas brasileiras, compôs um poema em que fala
sobre sua vida, e, como não poderia deixar de ser, sobre os mestres que
teve e a educação recebida. Leia alguns versos de Cora Coralina, quem
é você?
[...]
Tive uma velha mestra que já
havia ensinado uma geração
antes da minha.
Os métodos de ensino eram
58 UNIUBE

antiquados e aprendi as letras


em livros superados de que
ninguém mais fala.
[...]
A escola da vida me suplementou
as deficiências da escola primária
que outras o destino não me deu.
Foi assim que cheguei a este livro
Sem referências a mencionar.
[...]
(CORA CORALINA, 1998, p. 73­‑76).

A relação professor­‑aluno, as limitações de uma escola do interior,


a pobreza marcante na infância, tudo isso formava o contexto da
experiência de escolaridade (ou da falta dela) da poetisa goiana.

SAIBA MAIS

Veja quem foi Cora Coralina!

Ana Lins dos Guimarães Peixoto nasceu em 20 de agosto de 1889, na


Casa Velha da Ponte. Cora ou Aninha (apelido para seu nome de batismo)
estudou apenas até a terceira série primária. Aos 14 anos escreveu seus
primeiros contos e poemas. A poetisa apareceu no cenário literário local na
adolescência, quando participou, com outras escritoras locais, da elaboração
do jornal A Rosa, em 1907. Em 1910, [...] escreveu o conto Tragédia na
Roça, que foi publicado no Anuário Geográfico e Histórico e, assim,
tornou­‑se conhecida por vários críticos da época pelo pseudônimo Cora
Coralina que passou a usar [...]. É dessa primeira fase de sua vida que
Cora extraiu as memórias que compõem a maior parte de seus poemas. É
[...] através de seus olhos inquietos de criança que surgiria um futuro olhar
UNIUBE 59

poético. Cora Coralina faleceu em 1985, em Goiânia, GO, cidade que lhe
deu o título de Doutora Honoris Causa, em 1983, por meio da Universidade
Federal de Goiás.

Disponível em: <http://www.museucoracoralina.com.br/site/>. Acesso em:


29 out. 2019.

2.4 A educação sob a ótica tradicional e a progressista

Em estudos anteriores, você discutiu os conceitos de paradigma e de


visão de mundo. Refletiu igualmente que as visões de mundo e as
representações da realidade podem ser compartilhadas em cada época
e em cada cultura; percebeu que em cada época pode existir, entre as
pessoas, um modo comum de agir, de explicar os acontecimentos, de
responder aos questionamentos, isto é, de ver o mundo sob um mesmo
paradigma.

Pensando assim, podemos afirmar que uma concepção de educação


revela valores, crenças, hábitos, enfim, o modo como as pessoas se
relacionam com o mundo em que vivem.

As famílias, por exemplo, possuem uma concepção de educação. Ao


escolherem escolas para seus filhos, procuram as que são compatíveis
com essa concepção.

Foi assim com Cora Coralina, não é mesmo?

Como você pode perceber, a forma de pensar a educação está


interiorizada nas pessoas em geral e não apenas nos professores. A
diferença é que as famílias não se dedicam ao estudo dessas concepções
de educação como os professores.
60 UNIUBE

As escolas fazem opção por uma concepção de educação e procuram


elaborar seu planejamento a partir dela. Já um educador revela sua
concepção de educação pela forma como age dentro da sala de aula.
Isso significa que a maneira como o professor se relaciona com seus
alunos e com o conhecimento, o modo como planeja as aulas, seleciona
conteúdos, avalia, organiza a sala, enfim, o modo como concebe o
processo ensino­‑aprendizagem, traduz, em última instância, a concepção
de educação assumida por ele.

A representação da escola

Vejamos um exemplo na Grécia antiga. O que nos diz a pintura a seguir?

Observando atentamente a pintura, você percebeu que o artista retrata


uma sala de aula em um lugar que mais parece uma caverna? Pois é
isso mesmo, embora pareça estranho. Essa obra de arte expressa um
dos mitos gregos mais duradouros.

Figura 1: A escola secreta,


Fonte: Nikolaos Gyzis, 1885-1886. Pintura a óleo. <http://commons.wikimedia.org/wiki/
File:Gizis_kryfo_skoleio.jpg>.
UNIUBE 61

Diz a narrativa que os otomanos proibiram escolas Otomanos


para o povo grego. Esse impedimento à educação
Sob o comando de
ocorreu, segundo o mito, especialmente durante um líder chamado
Osman I, ou Othman,
os dois primeiros séculos de domínio otomano na
os turcos ficaram
Grécia, em meados do século décimo quinto para conhecidos como
“otomanos”. Foram
o início do décimo sétimo. eles que derrotaram
os bizantinos em
Constantinopla,
Para contornar esse impedimento, os gregos em 1453, e, sob a
liderança de Maomé
secretamente organizaram pequenas escolas II, conquistaram
territórios na Europa
subterrâneas para a formação de suas crianças.
(Grécia, Hungria,
Essas escolas teriam existido em igrejas e Bulgária e Sérvia
atualmente). Criaram,
mosteiros, geralmente à noite. Assim, o povo assim, o Império
Turco­‑otomano, que
grego procurou garantir a transmissão de sua
só desapareceu após
sabedoria, de seus valores, de sua religião, de a Primeira Guerra,
quase 500 anos
seu conhecimento e de sua busca à liberdade. depois.

O mito da Escola Secreta tem sido parte da


narrativa histórica grega e é reconhecido no
discurso oficial para justificar a sua incorporação nos livros da escola
primária. Além disso, a imagem pictórica criada por Nikolaos Gyzis foi
gravada em 1996, no verso da nota de 200 dracmas, documento emitido
pelo Banco da Grécia. O dracma era a mais antiga moeda ainda em
circulação no mundo, até ser substituído pelo euro em 2002.

Um fato que adicionou popularidade ao mito foi a incorporação em sua


narrativa de uma canção infantil.

Minha pequena lua brilhante


brilhe em meus passos
para que eu possa ir à escola
aprender a ler e a escrever
para aprender os ensinamentos de Deus.
62 UNIUBE

Essa cantiga da literatura popular expressa uma concepção de educação,


como era entendida pelo povo grego. Segundo ela, o que o professor
deveria ensinar? Qual era a finalidade da escola?

Antes de iniciarmos um estudo mais teórico sobre o assunto, vamos fazer


mais algumas reflexões sobre o que acontece na realidade escolar.

Há algum tempo, as escolas eram bem diferentes das de hoje.


O professor era o centro das atenções e o detentor do saber. Os
alunos eram aqueles que, por não saberem, estavam na escola para
aprender. Até aí você pode pensar que não há muita coisa diferente
dos dias atuais.

Na mídia – jornais, televisão, Internet, cinema, programas de televisão


– assistimos a muitas representações da escola, dos professores e dos
alunos. Vamos parar e refletir sobre essas representações.

• Como a personagem­‑professor ensina a personagem­‑aluno?


• Qual é a resposta elogiada?
• Qual é a representação de “bom aluno” que esses programas
expressam?
• Quem é o “bom professor”?
• Como a sala de aula é descrita?

Em nossa sociedade, acreditava­‑se que o bom professor era o que


reprovava, pois isso significava rigor, autoridade, o que aumentava,
supostamente, a qualidade do ensino. O bom aluno era o que obedecia,
reproduzia bem as lições, apenas memorizava e tirava notas altas nas
provas.

Na década de 1980, a professora Maria Isabel da Cunha realizou uma


pesquisa sobre o que é ser um bom professor. A autora, comentando os
resultados de sua investigação afirma que:
UNIUBE 63

[...] A [reflexão] mais significativa [sobre os resultados


da pesquisa] foi compreender que mesmo os
[considerados] bons professores ainda trabalham,
preponderantemente, na perspectiva da reprodução do
conhecimento – paradigma dominante – e que essa é
uma posição aceita pelos alunos. Esses professores
desenvolvem um grande número de habilidades de
ensino (fazer perguntas, variar estímulos, organizar o
conteúdo da aula etc.) e apresentam muitas qualidades
humanas e afetivas no trato com os alunos e com o
conteúdo de ensino. Entretanto, esse estudo mostrou
que ainda não foram encontrados professores
especialmente voltados para desenvolver habilidades
intelectuais nos estudantes [...] (CUNHA, 1998, p. 34).

Essas palavras significam que para os alunos ouvidos na pesquisa da


profa. Maria Isabel, o bom professor é o que explica o conteúdo, faz
perguntas sobre ele e apresenta o conhecimento que adquiriu. Tudo
realizado de uma forma afetuosa com os aprendentes.

SAIBA MAIS

Maria Isabel da Cunha. Doutora e mestra em Educação, pesquisadora e


escritora com reconhecimento acadêmico.

Tais qualidades seriam, então, desnecessárias ao professor? Será


que é isso que estamos querendo dizer?

Não, não é bem isso. O que pensamos é que essas características


não são suficientes. O aluno precisa, por exemplo, aprender a
construir o seu conhecimento e não apenas entender e memorizar o
conhecimento que lhe é transmitido pelo professor em sala de aula.

Perceba que estamos descrevendo valores que são revelados pela


postura assumida pelo professor no processo ensino­‑aprendizagem. Essa
postura revela uma concepção de educação. A escola ou o educador
64 UNIUBE

que adota essa postura autoritária está reproduzindo as relações que


existem na sociedade. Dessa forma, a escola está preparando o aluno
para adequar­‑se à sociedade e não para transformá­‑la.

PARADA PARA REFLEXÃO

Para você a educação pode transformar a sociedade? Por quê?

Como a concepção de educação centralizadora, autoritária e


reprodutora se reflete na sala de aula

Ao adotar essa concepção, ou seja, de que a educação é reprodutora


da sociedade:

• as ações de ensino estão centradas na exposição dos


conhecimentos pelo professor. O professor assume funções como
vigiar e aconselhar os alunos, corrigir e ensinar a matéria. É visto
como a autoridade máxima, um organizador dos conteúdos e
estratégias de ensino e, portanto, o único responsável e condutor
do processo educativo;
• as aulas são dadas de forma que o professor sempre escolhe os
conteúdos a partir de modelos prontos;
• na relação professor­‑aluno, predomina a autoridade do
professor, determinando uma atitude receptiva dos alunos e
dificultando a comunicação entre eles;
• a sala de aula é organizada em carteiras enfileiradas, para garantir
a disciplina e o silêncio;
• o professor escreve a matéria no quadro e o aluno copia; muitas
vezes, o professor dita a matéria;
• os exercícios visam à repetição a fim de que o aluno memorize
o conteúdo ensinado, porque se acredita que a aprendizagem
ocorre por meio da repetição;
• os castigos são comuns a quem não obedece para manter a ordem;
UNIUBE 65

• a reprovação é a maior forma de punição aos alunos que não


aprendem ou que não obedecem;
• os conteúdos e os procedimentos didáticos não se relacionam
ao cotidiano e aos interesses do aluno nem aos problemas que
atingem a sociedade.
As consequências dessa concepção pedagógica reprodutora são
preocupantes, pois se percebe no aluno:

a. hábito de tomar notas e memorizar;


b. passividade e falta de atitude crítica;
c. profundo “respeito” quanto às fontes de informação, sejam elas
professores ou textos;
d. distanciamento entre teoria e prática;
e. tendência ao racionalismo radical;
f. preferência pela teoria;
g. falta de “problematização” da realidade.

Essa passividade do aluno foi retratada por inúmeros artistas em


diferentes épocas, como Renoir. O hábito da leitura, a expressão de
um conhecimento erudito podem ser admirados em diferentes telas, e
observados com encantamento, porque a beleza é um valor sempre
presente.

SAIBA MAIS

Pierre­‑Auguste Renoir (1841­‑1919)

Foi um dos mais célebres pintores franceses. Para ele, pintar era sempre
exprimir a beleza e a alegria proporcionada pelas cores. Seu maior objetivo,
como ele próprio afirmava, era conseguir criar uma obra que causasse deleite.
66 UNIUBE

Figura 2: A leitura
Fonte: Renoir, pastel sobre papel, c. 1889.
<http://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:La_Lecture.
jpg>.

Na sociedade como um todo, as consequências de uma pedagogia


reprodutora são igualmente negativas:

adoção inadequada de informações científica e


tecnológica de países desenvolvidos;
Status quo adoção indiscriminada de modelos de pensamento
elaborado em outras regiões (inadaptação à cultura);
Expressão latina que
individualismo e falta de participação e cooperação;
designa o estado
atual das coisas, seja falta de conhecimento da própria realidade e,
em que momento for. consequentemente, imitação de padrões intelectuais,
Nesse caso, significa artísticos e institucionais estrangeiros [...];
manter a divisão da
sociedade em classes manutenção da divisão [da sociedade em] classes
sociais. sociais (status quo), afirma Bordenave (apud
PEREIRA, 2003, p. 1529­‑1530).
UNIUBE 67

SAIBA MAIS

O que é a cultura?

Para responder a essa questão, veja o que Moacyr Laterza afirma:

Eu parto de um conceito mais elementar de cultura.


Cultura é aquilo que eu acrescento à natureza.
Cultura é o que o homem acrescenta de seu à
natureza. É uma noção antropológica. Cultura é
quando o homem quebrou a pedra, poliu a roda,
pegou um osso, soprou e fez o som. Tudo que
ele acrescenta de inteligente, com o bom uso da
liberdade, isso é cultura. Se o homem destrói por
destruir, isso é um uso iníquo, então não é cultura.
Esses são os conceitos mais elementares, o
conceito antropológico de cultura que é aquele que
faz com que a mão inteligente labore a matéria,
quebre a pedra de modo material ainda, artesanal.
Não falei em beleza, em bondade. Estou partindo da
coisa mais ampla de cultura. É uma noção que cobre
todos os atos inteligentes do homem no exercício
da liberdade, que vai desde a cultura artesanal,
a cultura artística, a cultura científica, a cultura
filosófica, a cultura técnica, a cultura tecnológica, até
a cultura moral, no campo da ética (LATERZA apud
ABREU­‑BERNARDES, 2004, p. 94).

Observemos com atenção uma coisa. Atualmente, temos de admitir: nem


todos os professores agem dessa forma, embora ainda existam escolas
em que esta concepção está bastante presente.

Na verdade, há diferentes concepções de educação e elas podem


coexistir em um mesmo momento histórico. Os teóricos da educação
estudaram, analisaram e organizaram as diversas práticas pedagógicas
adotadas ao longo da história.

Vejamos como essa organização é feita por um grande educador


brasileiro, Luckesi.
68 UNIUBE

SAIBA MAIS

Cipriano Carlos Luckesi. Doutor em Educação: Filosofia e História da


Educação, mestre em Ciências Sociais, escritor e conferencista. Você
poderá saber mais sobre esse autor visitando seu web site: <http://www.
luckesi.com.br/apresentacao.htm>.

2.4.1 Tendências teóricas e concepções de educação

Luckesi categorizou as concepções de educação em três grandes


tendências teóricas que interpretam o papel da educação na sociedade:
• educação como redenção da sociedade – tendência redentora;
• educação como reprodução da sociedade – tendência reprodutivista;
• educação como transformação da sociedade – tendência
transformadora.

2.4.1.1 A tendência redentora

Propõe uma ação pedagógica otimista, praticamente ingênua, pois


considera que a educação tem poderes quase absolutos sobre a
sociedade. Aqueles que seguem essa tendência afirmam que a educação
sozinha pode realizar as transformações sociais necessárias e, para
isso, devemos concentrar esforços nas novas gerações, formando suas
mentes e dirigindo suas ações a partir dos ensinamentos escolares.
Ao voltar­‑se para a formação das personalidades, o professor tem
por objetivo integrar harmonicamente os indivíduos no todo social já
existente. Para tal, basta que todos os cidadãos frequentem a escola.

2.4.1.2 A tendência reprodutivista

Não se vê qualquer saída para a educação a não ser submetê­‑la


aos condicionamentos da sociedade. Totalmente oposta à tendência
anterior, aqui se acredita que a educação não consegue transformar a
UNIUBE 69

sociedade e que o melhor é preparar os alunos para que se adaptem


a ela. A sociedade necessita reproduzir­‑se para perenizar­‑se e, para
isso, a escola garante o “saber fazer” e o “saber comportar­‑se”. Assim,
a escola torna­‑se instrumento da sociedade dominante, conduzindo não
só à aprendizagem do “saber”, mas também do “saber comportar­‑se”.

2.4.1.3 A tendência transformadora

Busca­‑se uma pedagogia que aja estrategicamente para alcançar a


transformação da sociedade. Propõe a formação do sujeito, para construir
sua própria história e transformar a sociedade.

A tendência transformadora tem consciência de que efetivar esse


processo dentro da sociedade capitalista é muito difícil, devido à astúcia
desenvolvida por tal sistema para confundir os anseios dos educadores.
Mas se propõe a essa tarefa por acreditar que se precisa viabilizar a
contramaré da ingenuidade e perdição da crença na capacidade do ser
humano em ser sujeito da própria história. Por isso é necessário que
os educadores reflitam sobre o sentido da educação em seu tempo,
além da permanente vigilância, que é essencial para não se deixar cair
em armadilhas de tendências que podem estar a serviço da sociedade
dominante (SAVIANI, 1987).

Paulo Freire, educador pernambucano, é considerado um dos mais


expressivos representantes da tendência transformadora. São dele as
palavras seguintes:
Para mim, a História é tempo de possibilidade e
não de determinações. [...]. Pensar a História como
possibilidade é reconhecer a educação também
como possibilidade. [...] Uma de nossas tarefas
como educadores e educadoras é descobrir o que
historicamente pode ser feito no sentido de contribuir
para a transformação do mundo, de modo que resulte
um mundo mais “redondo, menos arestoso, mais
humano”... (FREIRE, 2000, p. 35­‑36).
70 UNIUBE

Na pedagogia freireana, há

a substituição do formato convencional das salas


de aula pela distribuição dos atores em círculos e o
emprego de técnicas de grupo (a conversa, o grupo de
estudo, o grupo de ação, o fórum, o grupo de debate
e a carta temário), como alternativas à conferência e
à exposição didática, preparavam o clima para o
diálogo e a descoberta, pelos atores, de saberes já
existentes entre eles, mas não percebidos como
saberes. O “movimento” da consciência intransitiva
para a transitivo­‑ingênua e, desta, para a consciência
“fanatizada” (massificação) ou a consciência crítica foi,
de certo, o ponto de partida para as construções futuras
[...]. Inclusive dos princípios do “método Paulo Freire
de alfabetização”. A utilização de técnicas audiovisuais
(projetores) facilitaria a prática do “método”, tanto
quanto poderia facilitar, entre os alfabetizandos e os
alfabetizados, sobretudo a partir da problematização
e da pergunta/diálogo, a leitura ou releitura crítica do
mundo.
No processo de criação do “método” Paulo Freire,
do mesmo modo como ocorrera com sua própria
alfabetização, o autor salienta o universo vocabular
do alfabetizando como ponto de partida. [...] “era
preciso que eu fosse ao contexto de quem ia aprender
a ler, para pesquisar o discurso da cotidianidade e de
lá retirar o vocabulário a ser utilizado no processo”.
Na simplicidade desse ato encontra­‑se a origem do
envolvimento dos alfabetizandos, não apenas quanto
ao interesse por aprender a ler a palavra escrita, mas se
dispor a participar da problematização de situações e a
dialogar quanto à busca de explicações lógicas para as
situações/problemas.
(Centro Paulo Freire, estudos e pesquisas. Fonte: <http://
www.paulofreire.org.br/asp/Index.asp>. Foi no exílio que
escreveu Pedagogia do oprimido (1970), considerada
por muitos sua obra­‑prima.)

O professor centralizador e autoritário aproxima­‑se de qual


tendência teórica apresentada por Luckesi?

Se você identificou, nessa descrição, a tendência teórica reprodutivista,


concordamos com você! O professor que não acredita na educação como
agente transformador da sociedade pensa que o melhor é preparar os
UNIUBE 71

alunos para adaptarem­‑se a ela. Ele acredita que está fazendo o melhor
para os discentes, uma vez que os está preparando para viverem na
sociedade.

A maneira como agimos revela os nossos valores. Mas será possível


mudar a nossa forma de pensar e de agir?

Nós pensamos que sim! Quando desenvolvemos nossa consciência


crítica, podemos compreender melhor porque agimos de uma forma ou
de outra e, assim, podemos fazer escolhas mais conscientes.

Apresentadas as três tendências que interpretam o sentido da educação


na sociedade: educação como redenção, educação como reprodução
e educação como transformação da sociedade, agora vamos dialogar
sobre as concepções pedagógicas.

Vamos analisar, de modo conciso, as diversas tendências teóricas que


pretenderam dar conta da compreensão e da orientação da prática
educacional em diversos momentos e circunstâncias da história
educacional brasileira.

2.4.2 Pedagogia liberal e pedagogia progressista

Quais são as pedagogias que surgem dessas tendências teóricas?

Para responder a essa pergunta, adotaremos a organização de Luckesi,


que propõe dois grupos: pedagogia liberal e pedagogia progressista.

Identificamos algumas características da pedagogia liberal:

• atribui ao aluno a responsabilidade pela sua aprendizagem e pelo


seu fracasso, não levando em conta as condições socioeconômicas
desiguais;
• seleciona os conteúdos com a finalidade de adequar o indivíduo às
necessidades do mercado;
72 UNIUBE

• prioriza os métodos que utilizam a exposição verbal do conteúdo


pelo professor. Ao aluno cabe a memorização do conteúdo que será
cobrado em avaliações verificadoras e medidoras dos resultados
alcançados;
• educa o aluno para alcançar, pelo seu próprio esforço, sua plena
realização como pessoa;
• aborda os conteúdos, os procedimentos didáticos e a relação
professor­‑aluno sem qualquer relação com o cotidiano do aluno e
muito menos com as realidades sociais;
• predomina a palavra do professor, as regras impostas, o cultivo
exclusivamente intelectual e moral.

SINTETIZANDO...

Essa pedagogia liberal revela­‑se em diferentes práticas pedagógicas: a


tradicional; a renovada progressista; a renovada não diretiva; e a tecnicista.

A pedagogia progressista

• parte de uma análise crítica da sociedade;


• considera as diferenças sociais e individuais;
• seleciona os conteúdos a partir da realidade do aluno, para que
ele atinja um nível de consciência crítica da realidade a fim de
transformá­‑la;
• utiliza métodos que priorizam o diálogo e o professor deixa de ser o
“dono” do saber para caminhar com o aluno;
• defende que o aluno pode modificar a própria realidade a partir do
processo de compreensão, reflexão e crítica;
• estimula o aluno a ser sujeito de sua história.
UNIUBE 73

SINTETIZANDO...

A Pedagogia Progressista revela­‑se em diferentes práticas pedagógicas:


libertadora; libertária; e crítico­‑social dos conteúdos.

A Pedagogia Progressista representa um instrumento de luta dos


educadores ao lado de outras práticas sociais. Os defensores dessa
concepção pedagógica reconhecem que uma Pedagogia Progressista
não consegue se institucionalizar numa sociedade capitalista.

No Quadro 1, a seguir, observe e compare os aspectos em que as


Pedagogias Liberal e Progressista se diferenciam.

Quadro 1: Aspectos em que as pedagogias liberal e progressista se


diferenciam

Indicadores Liberal Progressista


Leva em conta as diferenças
Relação escola Esconde as diferenças de
sociais e individuais dos
sociedade classe social.
alunos.
Professor Dono do saber. Caminha com o aluno.
Pode modificar a própria
Único responsável pela
realidade a partir do
Aluno aprendizagem e pelo seu
processo de compreensão,
fracasso.
reflexão e crítica.
Partem da realidade do
Visam adequar o indivíduo aluno, para que esse atinja
Conteúdos às necessidades do um nível de consciência
mercado. crítica dessa realidade para
transformá­‑la.
Priorizam a exposição Priorizam o diálogo e o
verbal do conteúdo – professor deixa de ser
Métodos
sempre organizado e o “dono” do saber para
ministrado pelo professor. caminhar com o aluno.
74 UNIUBE

Verificam a aprendizagem
Verificadoras e
a partir do processo de
Avaliações medidoras dos resultados
compreensão, reflexão e
alcançados.
crítica dos alunos.
tradicional;
libertadora;
Práticas renovada progressista;
libertária;
pedagógicas renovada não diretiva;
crítico­‑social dos conteúdos.
tecnicista.

As teorias educacionais surgem da observação e da reflexão sobre a


prática pedagógica; por isso, para conhecê­‑las melhor, para identificar o
surgimento de novas teorias ou mesmo para construí­‑las é fundamental
que estejamos sempre relacionando teoria e prática.

2.5 As situações dialógicas, solidárias e interativas de


educar

Vamos, agora, refletir sobre a educação em nossos dias. Mas, antes,


pensando ainda com Fernando Pessoa sobre o eterno e o novo, vamos
ler algumas palavras poéticas proferidas (ou inventadas) pela sabedoria
oriental.
Uma vez um Mestre Zen parou diante de seus
discípulos, prestes a proferir um sermão. No instante em
que ele ia abrir a boca, um pássaro cantou.
E ele disse: – o sermão já foi proferido.

Portanto, se um pássaro cantar agora, ouça­‑o primeiro. Ele conseguirá,


estamos certos, dizer­‑lhe de modo mais claro e mais bonito do que
nós, que seu desejo é oferecer­‑lhe o que de melhor consegue criar. E
sensíveis aos trinados de pássaros e à sabedoria milenar, pensemos no
conhecimento que estamos criando juntos, você e nós, nesse campo da
educação.
UNIUBE 75

Sempre que realizamos alguma leitura, alguns conceitos parecem não


ficar muito claros. Isso acontece com você também?

Por exemplo, paradigma. Esse é um termo de uso recente na educação e


sua compreensão é fundamental para nossas reflexões. Vamos ampliar um
pouco mais o nosso entendimento, conhecendo a interpretação de Capra.

Fritjof Capra, físico, pensador contemporâneo, que trata das inter­‑relações


dos homens e da natureza, afirma que paradigmas constituem todos os
pensamentos, todos os valores, e todas as percepções que formam um
modo de dar sentido ao mundo e de fazer um projeto de sociedade que
abranja todos os tipos de ações humanas (1999).

SAIBA MAIS

Fritjof Capra

Físico, publicou muitos trabalhos sobre as implicações filosóficas da ciência


moderna. Ele mostra como a revolução da física moderna prenuncia uma
revolução iminente em todas as ciências e uma transformação na nossa
visão do mundo e dos nossos valores. Para ele, a nova visão da realidade
baseia­‑se na consciência do estado de inter-relação e interdependência
essencial de todos os fenômenos – físicos, biológicos, psicológicos, sociais
e culturais (CAPRA, 1999, p. 259).

A partir das palavras de Capra, vamos pensar:

• Qual é o paradigma dos nossos dias, ou seja, quais são os valores


que norteiam nossa vida?
• Como é o modo de ver e de sentir o universo de seres e de coisas
na realidade em que vivemos?
• Como nos relacionamos com os outros homens? E com os outros
seres da natureza?
76 UNIUBE

Outras pessoas também fazem essas perguntas. Alguns de um modo


muito racional, como os cientistas e os filósofos.

Outros o fazem a partir de sua afetividade, de sua emoção e de sua


criatividade, sobretudo os artistas, embora todos nós tenhamos as
mesmas dimensões de sensibilidade.

Se você olhar com atenção, verá que os filmes, as telas dos pintores,
as músicas dos compositores, as poesias, os romances, os cantos e
também as peças de artesanato expressam a visão de mundo de uma
determinada época e o paradigma que os influencia.

Observe, por exemplo, os panos de prato de sua cozinha. Como estão


arrematados? É por um “biquinho” de crochê? Ou possuem apenas
um desenho impresso e bainhas não muito caprichadas como as de
antigamente? Ou há os dois tipos de acabamento?

Isso não significa que os mais simples de agora não tenham outros
valores: eles são mais fáceis de fazer, de lavar e passar e mais baratos.
Vamos observar com atenção dois aspectos:
• primeiro, há um processo de transformação do pensamento, dos
hábitos e costumes e não um processo de rompimento;
• segundo, as coisas de ontem não eram nem melhores e mais
bonitas e nem piores e mais feias do que as de hoje. Elas atendiam
às possibilidades e às necessidades da época.

O que você pensa que esse detalhe de capricho doméstico


significa?

Houve um tempo em que a mulher exercia um papel de administradora


do lar e a produtividade que lhe era cobrada restringia­‑se aos muros
domésticos. A dedicação feminina estendia­‑se aos cuidados minuciosos
dos objetos do lar, inclusive ao crochê que ornava as peças do enxoval,
UNIUBE 77

costurando as roupas que a família vestia ou mesmo cuidando do jardim.


Como o pintor realista, Daniel Ridgway Knight, expressou em sua tela:
uma mulher regando as flores de um jardim.

Figura 3: Regando o jardim.


Fonte: Daniel Ridgway Knight, 1912.

SAIBA MAIS

Daniel Ridgway Knight (1839-1924) nasceu nos Estados Unidos e


morreu na França, sendo considerado um dos grandes pintores realistas
norte­‑americanos. Seus trabalhos representam vários aspectos da pintura
do século XIX, incluindo história, gênero, paisagens, retratos e temas florais.
Em cada trabalho tudo o que é estético é reproduzido nos seus mínimos
detalhes com maestria.
78 UNIUBE

Hoje, as mulheres trabalham em diferentes locais e o tempo é dividido


entre o mundo do trabalho profissional e as tarefas da casa. Não há mais
tempo para os lindos bordados e tecelagens de nossas avós.

Observamos que os valores difundidos de produtividade, da inserção no


mercado de trabalho, de “modernização” do papel feminino provocam
mudanças até nos pequenos detalhes da vida doméstica. Ou seja, “os
valores, as percepções que formam um modo de dar sentido ao mundo”
influenciam as ações humanas.

2.5.1 Cenas, cenários e gestos da educação no paradigma


emergente

E no campo da educação, qual cenário vemos?

Quais são as pautas educacionais que sinalizam mudanças


significativas?

Vários autores, que se dedicam a pensar a educação, criticam o saber


que é ensinado nas escolas segundo o paradigma tradicional, uma vez
que o conhecimento é apresentado como pronto, fechado, cabendo ao
professor fragmentá­‑lo em pequenas partes, organizá­‑lo sequencialmente
e transmiti­‑lo aos alunos.

Ao contrário, no paradigma emergente, parte­‑se do princípio de que, em


todas as situações – e sobretudo quando se trata de formar professores­
‑educadores e professoras­‑educadoras – o processo de ensino­
‑aprendizagem estará contido dentro de um processo mais amplo e mais
profundo: o de criar juntos o conhecimento com o qual aprendemos.

De acordo com o paradigma emergente, a própria noção de conhecimento


é revista. Conforme as leis mais atuais da física, quando nós observamos
um objeto, incluímos o nosso olhar no objeto. Assim, a realidade nunca
será observada da mesma forma, por vários observadores e o real será
sempre um modo particular de perceber o mundo. Não se pensa mais
em verdades perenes, mas em verdades que são relativas e transitórias.
UNIUBE 79

Se não há conhecimento pronto, se não há verdades acabadas, todo


conhecimento será relativo, isto é, a realidade será uma vivência única
para cada indivíduo.

Qual é a consequência desse modo de entender o conhecimento


na escola?

Pensemos juntos: o que acontece na prática pedagógica é a sugestão


para que, ao invés de privilegiar o resultado, o conhecimento pronto,
professores e alunos deem mais importância ao processo, à relação, ao
diálogo, à realização e à busca da felicidade.

Se a escola insistir em ser apenas transmissora de conhecimentos, ela


terá que se contentar em apenas informar, em tempo bem posterior,
aquilo que a Internet, a televisão e outras mídias oferecerem em tempo
muito mais rápido.

Nessa educação relacional, que prioriza o diálogo entre o professor


e o aluno, podemos dizer que o ensino está centrado no professor
– como ocorria na escola tradicional – ou está centrado no aluno?

Nem apenas no aluno nem somente no professor, mas nos dois; ou,
melhor dizendo, na relação que se estabelece entre aluno e professor. A
ênfase está, portanto, no “e”: professor e aluno.

conhecimento

professor e aluno

Figura 4: Relação professor, aluno e


conhecimento
80 UNIUBE

Uma distinção realizada por Abreu­‑Bernardes (2004, p. 109) pode ser


útil nesta reflexão: a diferença entre conhecimento e pensamento.
Conhecimento é aquisição intelectual do saber já constituído,
estabelecido, instituído e qualificado. Pensamento é afrontamento de
uma realidade nova, cujo saber é construído a partir de um não saber que
requer sua compreensão. Como diz o pensador francês Roland Barthes,
pesquisar é “ensinar o que não se sabe”.

Empreendo, pois, o deixar­‑me levar pela força de toda


vida viva: o esquecimento. Há uma idade que se ensina
o que se sabe; mas vem em seguida outra, em que se
ensina o que não se sabe: isso se chama pesquisar
(BARTHES, 1997, p. 47).

SAIBA MAIS

Roland Barthes (1915-1980). Foi um escritor, crítico literário, semiólogo,


professor e filósofo francês. Entre as inúmeras obras publicadas, ressal-
tamos Aula, produto de uma conferência proferida por ele em uma aula
inaugural do Colégio de França, em Paris, no dia 7 de janeiro de 1977.
Além de discorrer sobre o poder inserido na linguagem, ele reflete sobre
o que é pesquisar, que trouxemos para este texto.

A docência exige estar aberto à incerteza; possibilitar ao aluno teste-


munhar seus dilemas, suas dúvidas e – por que não? – seus devaneios.
Quando a escola deixa de ser um lugar onde se pensa para ser o lugar
onde se reproduz o conhecimento, o professor ocupa um lugar soberano
de detentor de saber. Porém, o trabalho pedagógico exige, antes, um
professor mediador entre o estudante e o pensamento.

Fazendo uma transposição metafórica do quadro de Velázquez, Las


meninas (1656), o soberano é lembrado pelo reflexo no espelho, de-
ixando vazio o espaço que é ocupado pelos sujeitos concretos. Assim
também, na sala de aula, o lugar do detentor do saber deve ficar sem-
pre desabitado para que possa ser entendido como acessível a todos,
alunos e professores, porque não é de ninguém.
UNIUBE 81

SAIBA MAIS

Diego Velázquez (1599-1660). Maior pintor da Espanha, também foi um


dos maiores artistas de todos os tempos. Um mestre da técnica, em estilo
altamente individual, influenciou a arte europeia mais do que qualquer
outro pintor.

Figura 5: Las meninas.


Fonte: Velázquez, 1665, óleo sobre tela, 310 X 276. Acervo Museu do
Prado Madrid, Espanha.

Neste momento do texto justificamos, com maior ênfase, o trabalho do


pensamento que interroga. Ocorre­‑me uma tela de Picasso, La fermière
(1938). Nela o pintor conserva os primeiros traços, os estudos para a
obra final.
82 UNIUBE

PESQUISANDO NA WEB

Sugerimos que veja essa imagem pintada por Picasso em:

<http://www.picassowebgallery.com/image/tid/516>.

Pablo Picasso, Farmer and nude, surrounded by hens (Fazendeira e


nu, cercada de galinhas), 1935.

Aproveite e admire outras obras do artista.

É a manifestação de um processo, as dúvidas da criação ali estão.


Pensamos que o professor, o filósofo, o pintor consideram aquilo a que
os outros chamam a sua criação, ou a sua aula, como o simples esboço
de uma obra que fica sempre por fazer. A arte nos comunica a procura do
invisível, do não conhecido, ela não se apoia em certezas, mas na busca.

Moacyr Laterza fala em vigilância do pensamento, esse olhar atento a


todos os contextos da existência, a todos os locus da educação que não
se reduzem à lógica da escola. Essa extensão do conceito de educação
é um aprendizado com a arte. Essa nos ensina a liberdade. O artista é
um gesto de transgressão.

O filósofo confunde­‑se com o professor e aí está o verdadeiro sentido do


ensinar para ele. Porém, a maior descoberta na vida de Moacyr não foi
a filosofia mas a “perversão por outros caminhos”, no caso, a arte. Ou
melhor dizendo, o pensar filosoficamente a arte e, assim, fundamentar o
seu trabalho como educador.

Tenho a impressão de que despertei realmente para


as palavras, e, portanto, para a poesia, antes mesmo
da minha reflexão propriamente filosófica. Ao longo da
minha trajetória tive uma dúvida, quando eu descobri,
depois de ter passado por outras áreas como a química,
como a medicina, uma grande interrogação que não
UNIUBE 83

foi resolvida ou que foi resolvida de uma maneira


surpreendente. É o seguinte: eu não sabia se me
dedicava à poesia ou à filosofia. Eu ponho isso em
termos de uma interrogação que se assentava sobre
uma falsa oposição, ou dicotomia, ou divergência,
e o meu diretor espiritual e depois a grande pessoa
que influiu na minha vida, não só intelectual, mas
principalmente espiritual, foi o Padre Francisco Lage
Pessoa, no seu cuidado, na sua atenção para com
a minha pessoa, com a minha carreira, com a minha
profissão, com o meu caminho, com o meu destino,
falou assim: “Moacyr, isso não se resolve assim, ou
isso, ou aquilo. Quando chegar a hora certa você
saberá se deve fazer poesia ou se deve fazer filosofia,
até chegar a um ponto ótimo, desejável, quando você
fará uma coisa e outra ao mesmo tempo. Isso é mais
um desafio de vida do que uma profecia.” No entanto,
eu tentei muito, com muita atenção temática fazer as
duas coisas. Do meu primeiro professor de filosofia,
Monsenhor Juvenal Arduini, recebi um elogio quando
lhe enviei um texto escrito em homenagem a uma
professora de Belo Horizonte. Ele disse que eu estava
fazendo ao mesmo tempo uma estética filosófica e uma
filosofia estética. Com essa palavra estética certamente
não é fácil localizar a beleza, o belo que é um dos
nomes de Deus. Então, pela mediação da beleza eu tive
o privilégio, eu tive o dom, ou pelo menos a vocação de
procurar ver as coisas ligadas às próprias realidades e
ao seu valor ontológico depois ao seu valor filosófico.
Hoje me parece que a pergunta realmente era frívola:
poesia ou filosofia? Bem ou mal a gente tenta ser amigo
da beleza, ou amigo da sabedoria. Sem soberba, com
simplicidade, recebendo isso como um convite de Deus,
descobri os vários dons: não só a beleza, mas também
a verdade (LATERZA apud ABREU­‑BERNARDES,
2005, p. 13 e 14).

SAIBA MAIS

Moacyr Laterza (1928­‑2004) foi professor na Universidade Federal de


Minas Gerais, eminente filósofo, tendo conseguido aproximar a experiência
da criação artística ao trabalho de educador. Criou o primeiro Laboratório de
Estética do mundo nessa Universidade, com o qual dinamizava as aulas de
estética e história da arte e agregava pesquisas.
84 UNIUBE

O professor Laterza aprende com o artista a interrogar o mundo, a


instaurar o debate, a questionar, e a apresentar o seu conhecimento
e o seu pensamento como algo que expressam a realidade na sua
percepção, com seus dilemas e perguntas. O educador observa que o
pintor não apresenta a simples cópia do que outros criaram. Por maior
que seja a erudição artística, a formação técnica, o artista empreende
cada obra como única e sem receio ou preconceito relacionados ao
uso da imaginação, da sensibilidade e dos seus questionamentos. Ele
expressa sua “desordem interior” e convida o espectador a continuar
o gesto transgressor da arte, além de vivenciar os seus valores
(ABREU­‑BERNARDES, 2004, p. 112).

2.5.1.1 Dicotomias

Pensemos, agora, que sob o paradigma Dicotomia


emergente não tem mais sentido afirmar que
Separação em duas
existe um professor que sabe e ensina e um partes que, em geral,
aluno que não sabe e aprende, como ocorre se opõem.

no modo de ver o mundo separado, dividido,


dicotomizado.

Observe o lugar em que você mora e algumas palavras que você e as


pessoas que nele convivem falam:

• o certo e o errado;
• o visível e o invisível;
• o doce e o amargo;
• o feio e o bonito;
• o ensinar e o aprender;
• o sujeito e o objeto;
• o país desenvolvido e o país subdesenvolvido;
• o bairro dos ricos e o bairro dos pobres;
• o estar na moda e o estar fora de moda;
UNIUBE 85

• o que sabe e o que não sabe;


• a sala dos professores e a sala dos alunos.

Faça um pequeno exercício: identifique outras dicotomias do paradigma


tradicional relacionadas à educação. Anote­‑as.

No paradigma educacional emergente, essa visão dicotômica evolui


de uma mera transmissão de conhecimento para uma relação em que
o professor assume o papel de mediador e de quem reconhece que
aprende com o aluno no diálogo que entre eles se estabelece.

Existe um intervalo entre o que uma equipe aprendente (professores e


alunos) sabe, e está aberta a ampliar solidariamente o que ela conhece,
e o que lhe é desafiado a reconhecer. Ser mediador é apresentar neste
intervalo uma proposta de conhecimento a ser transformado em saber
construído pelo trabalho coletivo e, ao mesmo tempo, individual. Ser
mediador é articular experiências em que o aluno reflita sobre suas
relações com o mundo, com o outro e com o conhecimento.

Nessa linha de pensamento, em uma aula inaugural no curso de


mestrado em educação na Uniube (2001), Carlos Rodrigues Brandão
disse:
[...] o que torna única a maneira pela qual aprendemos
é o fato de que só aprendemos por meio de um diálogo
com outra ou com outras pessoas. O que torna ilimitado
o diálogo por meio do qual aprendemos é o fato de que
ele é uma estrada de dupla direção: ele é o caminho no
qual quem ensina aprende ao ensinar e quem aprende
ensina ao aprender.

Nesse sentido, o aprender é uma atividade sempre solidária, dialógica e


sempre ativa e criativa. Nessa perspectiva, podemos afirmar que:

• aprender não é acumular conhecimentos;


• aprender não é sequer adquirir novos conhecimentos;
86 UNIUBE

• aprender é integrar saberes de modo interativo, construídos


na aprendizagem, em uma nova reordenação de todo o
conhecimento anteriormente criado.
Salientamos, ainda, que nesse paradigma emergente há um
aproximar­‑se amorosamente interessado na formação do aluno
como um todo. Cabe ao docente procurar contribuir para o
desenvolvimento do aluno em todas as suas dimensões e não
apenas considerá­‑lo como um talento a ser desenvolvido ou um
investimento intelectual a ser realizado. Seu corpo, sua imaginação,
sua emoção, sua intuição, suas aspirações éticas, artísticas e
políticas, tudo é considerado no processo ensino­‑aprendizagem.
Então as aulas deverão ser diferentes, os livros serão outros e
haverá muitas outras mudanças.

No livro A escola com que sempre sonhei sem imaginar que pudesse
existir, o conhecido escritor brasileiro Rubem Alves (2001) apresenta
narrativas e depoimentos sobre uma escola situada no norte de Portugal,
a cerca de 30 km da cidade do Porto, numa simpática vila que se chama
“Vila das Aves”. É a Escola da Ponte.

SAIBA MAIS

Você poderá saber mais sobre a Escola da Ponte visitando o site: <http://
www.eb1­‑ponte­‑n1.rcts.pt/>.

Pensamos que vale a pena mostrar­‑lhe algumas características dessa


instituição que se aproxima de uma concepção de educação do
paradigma emergente.

Do livro de Rubem Alves, trazemos um recorte para que você a conheça um


pouquinho.
UNIUBE 87

A Escola que sempre sonhei...


São extraordinários os esforços que estão sendo
feitos para fazer com que nossas linhas de montagem
chamadas escolas sejam tão boas quanto as
japonesas. Mas o que eu gostaria mesmo é de
acabar com elas. Sonho com uma escola retrógrada,
artesanal...
Impossível? Eu também pensava. Mas fui a Portugal
e lá encontrei a escola com que sempre sonhara: a
“Escola da Ponte”. Encantei­‑me vendo o rosto e o
trabalho dos alunos: havia disciplina, concentração,
alegria e eficiência.
Gente de boa memória jamais entenderá aquela
escola. Para entender é preciso esquecer quase tudo
o que sabemos. A sabedoria precisa de esquecimento.
Esquecer é livrar­‑se dos jeitos de ser que se
sedimentaram em nós, e que nos levam a crer que as
coisas têm de ser do jeito como são.
Não. Não é preciso que as coisas continuem a ser do
jeito como sempre foram.
Pois estou fazendo com as minhas crônicas o que
Monet fez: ele, diante do monte de feno; eu, diante de
uma pequena escola por que me apaixonei – pois ela é
a escola com que sempre sonhei sem ter sido capaz de
desenhar.
Escola da Ponte: um único espaço, partilhado por
todos, sem separação por turmas, sem campainhas
anunciando o fim de uma disciplina e o início da outra.
A lição social: todos partilhamos de um mesmo mundo.
Pequenos e grandes são companheiros numa mesma
aventura. Todos se ajudam. Não há competição. Há
cooperação. Ao ritmo da vida: os saberes da vida não
seguem programas. É preciso ouvir os “miúdos”, para
saber o que eles sentem e pensam. É preciso ouvir os
“graúdos”, para saber o que eles sentem e pensam.
São as crianças que estabelecem as regras de
convivência: a necessidade do silêncio, do trabalho não
perturbado, de se ouvir música enquanto trabalham.
São as crianças que estabelecem os mecanismos
para lidar com aqueles que se recusam a obedecer às
regras.
Pois o espaço da escola tem de ser como o espaço do
jogo: o jogo, para ser divertido e fazer sentido, tem de
ter regras. Já imaginaram um jogo de vôlei em que cada
88 UNIUBE

jogador pode fazer o que quiser?


A vida social depende de que cada um abra mão da sua
vontade, naquilo em que ela se choca com a vontade
coletiva.
E assim vão as crianças aprendendo as regras da
convivência democrática, sem que elas constem de um
programa. (ALVES, 2001.)

SAIBA MAIS

Claude Oscar Monet (1840-1926), pintor francês. O rio Sena e as belas


paisagens serviram de inspiração para numerosos quadros de Monet, que
pintava ao ar livre. Ele criou uma série de pinturas de pilhas de feno, citadas
por Rubem Alves. Uma delas, Fim de verão (1890­‑1891), você poderá
apreciar em <http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Wheatstacks_(End_
of_Summer),_189091_(190_Kb);_Oil_on_canvas,_60_x_100_cm_(23_5­
‑8_x_39_38_in),_The_Art_Institute_of_Chicago.jpg>.

Rubem Alves (1933-2014). Educador, escritor, psicanalista e professor


emérito da Unicamp. Os trechos aqui transcritos foram retirados das
crônicas publicadas no jornal Correio Popular, de Campinas, SP (entre
maio e junho do ano 2000), que foram posteriormente publicadas no livro
A escola com que sempre sonhei sem imaginar que pudesse existir
(2001).

No paradigma educacional emergente, há a busca da inovação. Isso


origina resistências, pois o saber, no paradigma tradicional, está
muito vinculado ao poder e quem questiona esse poder fundado no
conhecimento científico não é ouvido. Igualmente não é reconhecida
a voz do professor que nega a simples repetição do conhecimento
transmitido como uma forma ideal de aprender.

Falemos um pouco mais sobre a prática docente que se fundamenta


em uma relação professor­‑aluno­‑conhecimento, segundo o paradigma
educacional emergente.
UNIUBE 89

2.6 A construção partilhada do conhecimento na experiência


da pesquisa na docência

Todo o escrito tem uma história do que escreve. Não fugiremos à regra
e se verá que temos os nossos motivos.

Todo esse escrito a seguir sobre o “mutirão” foi publicado no livro A partilha
da vida (1995), de Carlos Rodrigues Brandão e este recorte está entre as
p. 247 e 250.
Do modo costumeiramente praticado até hoje nos sítios
e nas fazendas do Alto Paraíba em Goiás, o mutirão
é uma modalidade de prática comunal camponês
que associa o trabalho produtivo e a convivência
solidária, o serviço e a festa, o resultado eficaz e
a arte, a demonstração ritual do saber e do afeto
(grifo nosso) e a possibilidade, também ritualmente
controlada, do exercício da competição e mesmo do
conflito.
A sua fórmula é simples e contém todos os elementos
do dom: dar, receber, retribuir.
Há um convite regido pela necessidade de um trabalho
coletivo, associado ao desejo de realizá­‑lo não por meio
de empresa paga, mas por meio de uma coletivização
de um serviço vivido em um dia, como um rito.
Há uma resposta obrigatória ao convite, por razões de
parentesco, vizinhança, amizade, associada ou não
a uma dívida anterior e equivalente de parte de um
convidado (quem o convida participou antes de um
mutirão em suas terras).
Há uma oferta obrigatória de alimentos dados pela
família anfitriã, em geral composta de um grande
almoço, um jantar, um café com biscoito e aguardente
à vontade.

Na região em que você mora, é comum a realização de mutirões nas


fazendas, ou mesmo nas cidades, nesse caso para construir, por
exemplo, uma casa?
90 UNIUBE

Observe se eles têm as mesmas características do mutirão descrito neste


texto ou se ele se identifica de outro modo.

Há uma encenação sob a forma de um canto solo,


chamado brão, entoado a dois em momentos de
pausa do trabalho. Esse mesmo canto entrecorta
pelo menos quatro momentos de um dia de
mutirão: [...] na chagada, na despedida (quando os
convidados, findo o trabalho e jantados, retornam
aos seus bairros e sítios) após o almoço e, às vezes,
“na janta”.
Os cantos de brão são sempre de saudação aos
“donos” e de demonstração pública de apreço entre
os participantes, mormente entre “companheiros”
residentes em bairros distantes e que supostamente
não se encontram há algum tempo.
[...] ao longo de todo o dia de “serviço”, o brão, sempre
cantado a solo e em duplas de “companheiros” de
trabalho e canto, toma a forma de carinhosa saudação
entre as pessoas.
[...] Durante todo o dia do trabalho algumas duplas
de companheiros, que para tanto estarão sempre
trabalhando no pasto por perto, param o trabalho da
“bateção”, combinam, quando necessário, o que irão
entoar e cantam por um instante.
Raramente um “cantorio” de uma dupla dura mais
de uns trinta segundos, já que a “graça do brão” é o
persistente diálogo que ele instaura. Diálogo que é o
próprio brão, pois ele não quer ser outra coisa mais do
que uma conversa múltipla e cantada durante a jornada
do trabalho. Um multirão sem pelo menos algumas
animadas duplas de brão é considerado “mais triste” do
que aqueles em que se canta todo tempo.

Compartilhamos com você um dos cantos ouvidos que expressa o


ritual do dever do afeto na convivência solidária e alegre do mutirão
(BRANDÃO, 1995):
Tô chegando, tô chegando
nessa hora de alegria,
eu saúdo o meu patrão
com toda a sua família.
UNIUBE 91

Do povo de Santa Rita


eu tenho muita saudade.
tô cantando de alegria
pra vocês, companheirada.
Ribeirão que corre corre
corre meio maneiroso
Se namoro fosse crime
Eu já era criminoso.
Na hora da despedida
Eu não quero nem pensar
Vou deixar meus companheiros
De saudade eu vou chorar.

Cantos como esse são criados de improviso e constituem um diálogo e


uma forma de disputa musical. Divertem os parceiros e dão um “ar de
festa” ao trabalho coletivo.

Esse pequeno trecho sobre o mutirão faz parte do relato de um longo


e entrecortado tempo de vivências e investigações na região do Alto
Paraíba e, nela, em São Luiz de Paraitinga, realizado por Carlos Brandão
nas décadas de 1980 e 1990.

O acontecimento narrado é muito bonito e vale a pena ser relido para


observarmos como as pessoas interagem, compartilham, dialogam, se
solidarizam e festejam a construção de um trabalho coletivo. Homens e
mulheres do campo dão um sentido de troca e de celebrações de amizade
à vida de trabalho nas difíceis misturas entre o homem e a natureza.
É sobretudo disso: diálogo, interação, partilha, cooperação,
amorosidade, que nós ansiamos falar e refletir com você sobre a
experiência da pesquisa no trabalho docente, uma dimensão do educar
e formar, segundo o paradigma educacional emergente.
92 UNIUBE

2.6.1 Dimensões da pesquisa na docência

Nos últimos tempos (nos últimos cinco, sete, dez anos), muita coisa
tem sido dita e escrita e também praticada no esforço de associar o
trabalho de pesquisa na sala de aula e o trabalho ligado ao ensino
e à aprendizagem. Até pouco tempo atrás, pesquisa e docência
eram consideradas como atividades próximas, mas separadas
e, em alguns casos, como atividades bem destacáveis umas das
outras. O professor que ensina, que trabalha com seus alunos na sala
de aula ou fora dela, e muitas vezes fora dos tempos do calendário e dos
afazeres didáticos, então se dedica ao estudo e, quando pode, a algum
tipo de pesquisa, sobretudo quando é um professor de universidade.

Há, hoje em dia, todo um esforço para trazer a experiência da pesquisa


em alguma de suas dimensões até dentro da escola, até dentro da sala
de aula. É importante observarmos que essa alteração de rumo vem
associada a outros acontecimentos como, por exemplo, a descoberta
da cultura na relação com a educação; a descoberta do cotidiano como
espaço­‑tempo essencial na vida da escola e na vida das relações entre
a escola e a sociedade, e a escola e seu mundo, sua comunidade de
acolhida em seu dia­a­dia.

Essa mudança vem também agregada a uma espécie de desvelamento


da subjetividade quando, tal como acontece em outras áreas da vida
social, tomamos consciência de que os sujeitos envolvidos no processo
pedagógico, no acontecimento cultural chamado educação, são pessoas
individuais que se aproximam, que se aglutinam, que se envolvem em
projetos solidários coletivos à volta do dever de ensinar e do direito de
viver e aprender. Se quisermos dizer de outra maneira, às voltas com o
desejo recíproco de ensinar e aprender.

Ora, na universidade, e talvez mais ainda, nas suas áreas de


ciências humanas e sociais, muitas vezes convivemos com o que
UNIUBE 93

nós gostaríamos de chamar de um fetiche Fetiche


da investigação científica. Ele reside numa
Objeto animado ou
espécie de classificação antecipada de níveis, inanimado, feito pelo
homem ou produzido
de modos, de estilos de trabalho de pesquisa
pela natureza, ao
em que se atribui uma verdadeira legitimidade qual se atribui poder
sobrenatural ou
apenas a alguns tipos de pesquisas mais mágico e se presta
culto, se venera.
formais, mais oficiais e mais academicamente
consagrados. Fonte: Fetiche (1975,
p. 624).

Numa direção oposta a essa tendência, queremos


pensar a presença da pesquisa, do trabalho de
criação do saber por meio da investigação científica ou da investigação
artística ou filosófica. E desejamos igualmente pensar a relação entre
esse trabalho e a prática docente em sala de aula e às voltas da sala de
aula, nos seus vários ciclos, nos seus vários planos e momentos.

Esse é o sentido em que pensamos a pesquisa: como atividade humana


realizada em uma cultura que, de uma maneira intencional e sistemática,
procura produzir novos conhecimentos confiáveis ou procura contribuir
para cenários de diálogo às voltas com áreas do conhecimento humano.
A pergunta que fazemos a seguir é muito mais espontânea do que as
perguntas: O que é pesquisa? O que é pesquisa científica? Quais as
modalidades de pesquisa científica num campo como o da educação?
A nossa pergunta é outra, ela é: quando me vejo a mim mesmo, enquanto
educador e quando olho à minha volta e observo as pessoas com as
quais convivo – estudantes, professores, pesquisadores individuais ou
em equipes – o que eu vejo essas pessoas fazendo? Ou: o que é que
elas fazem que, de alguma maneira, em alguma dimensão, posso
associar ao trabalho da pesquisa?

Procuremos, então, compreender o sentido múltiplo e complexo de


criação de saberes novos, buscando compreender em que situações e
94 UNIUBE

de que maneira diferentes pessoas trabalhando no contexto da educação


parecem estar realizando essa experiência cultural.

Vamos, então, apresentar três diferentes dimensões de pesquisa


na docência.

A primeira delas, talvez a mais simples é o estudo, sim, o estudo


cotidiano. Muitas vezes esquecemos que essa pequena prática elementar
é a fundadora de todo o conhecimento; é uma forma de pesquisa; é uma
dimensão de um trabalho sistemático por meio do qual, lendo, buscando
bibliografia, estabelecendo uma dinâmica de confronto de ideias pessoais
e as ideias de autores, produzimos para nós mesmos ou, então, por meio
de nós mesmos, para os nossos alunos, uma experiência de pesquisa
científica.

Por exemplo, quando um professor de filosofia


Marilena Chauí
dedica anos de sua vida, como Marilena Chauí
Filósofa, professora
de filosofia na USP,
ao estudar Spinoza, para aprofundar seu
autora de vários conhecimento a respeito desse filósofo, ou de
livros em sua área.
Pesquisou durante 20 problemas fundamentais de filosofia por meio
anos o pensamento
do filósofo holandês
dele, ela está realizando ao longo desses vários
Spinoza. anos, sozinha em sua casa, nas bibliotecas,
frente a livros ou a computadores, uma completa
experiência de pesquisa filosófica.

No campo das ciências mais experimentais ou, então, mais de trabalho


de campo, como no caso da antropologia, o estudo, a leitura, o confronto
de ideias por meio do qual um professor aprofunda seus conhecimentos e
se aperfeiçoa, muitas vezes não é considerado uma pesquisa. É apenas
acatado como um estudo prévio, uma atividade antecedente, mas não
propriamente uma pesquisa. No entanto, em outras áreas é, ao contrário,
reconhecido como pesquisa de pleno direito, é uma pesquisa teórica
UNIUBE 95

qualquer que seja o seu intento, até mesmo uma finalidade associada
apenas ao autoaperfeiçoamento de uma pessoa, de um educador, de
um pensador.

Esse é o momento em que nós podemos imaginar que na vida de um


professor, na vida de uma educadora, há um processo ao longo de sua
prática docente, que deve, inclusive, ser a substância fundadora da sua
própria experiência docente, que é um processo de estudo contínuo.
Não apenas aquele no qual se prepara uma aula, mas aquele, a partir
do qual, o profissional da educação se vê crescendo em conhecimentos,
densificando ideias, atualizando informações e teorias a respeito do seu
campo de trabalho e a respeito de círculos que envolvem esse campo
de trabalho.

Uma segunda dimensão do que consideramos uma pesquisa no


trabalho docente é essa atividade por meio da qual uma aula é
preparada. Nós nos acostumamos a utilizar nomes como preparar aula
para o equivalente docente às “tarefas de casa” dos alunos. Preparar
uma aula é um trabalho didático e isso ficou fora da ideia de investigação
científica. Mas queremos integrar essa preparação de aula aqui, dentro
da ideia de pesquisa.

Pensamos o professor reflexivo, e estamos pensando aqui situações


muito concretas do cotidiano da vida do professor reflexivo, esse
exercício, às vezes diário, às vezes a cada dois, três dias, às vezes
semanal, sobretudo quando procurando novas ideias, novos olhares a
respeito das questões educacionais, esse estudo é uma atividade de
pesquisa. Nós diríamos até que, talvez, seja a mais natural experiência
de pesquisa na vida de um professor, ao lado do estudo pessoal, da
pesquisa de teorias e metodologias de trabalho.

Temos trabalhado muitas vezes essa ideia em nós, entre nossos alunos
e do mesmo modo quando falamos a educadores, de que essa atividade
96 UNIUBE

não é mecânica, é reflexiva; não é apenas repetitiva e acumulativa. Ela é


criadora; é um estabelecer de princípios e normas de criação de saberes
ao preparar uma aula, para que a aula seja ela própria, o diálogo com
os alunos à volta da criação do saber e não a repetição do já sabido.

SAIBA MAIS

Professor reflexivo

Para entender esse conceito, trazemos as palavras de um grande edu-


cador português, Antonio Nóvoa, doutor em educação e catedrático da
Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade de
Lisboa. De uma entrevista a Salto, pela TVE Brasil, recortamos o texto:

Salto: O que é ser professor pesquisador e


reflexivo? Essas capacidades são inerentes à
profissão do docente?
Nóvoa: O paradigma do professor reflexivo,
isto é, do professor que reflete sobre a sua
prática, que pensa, que elabora em cima dessa
prática é o paradigma hoje em dia dominante na
área de formação de professores. Por vezes
é um paradigma um bocadinho retórico e eu,
um pouco também, em jeito de brincadeira,
mais de uma vez já disse que o que me importa
mais é saber como é que os professores
refletiam antes que os universitários tivessem
decidido que eles deveriam ser professores
reflexivos. Identificar essas práticas de reflexão –
que sempre existiram na profissão docente, é
impossível alguém imaginar uma profissão docente
em que essas práticas reflexivas não existissem –
tentar identificá­‑las e construir as condições para
que elas possam se desenvolver.
Eu diria que elas não são inerentes à profissão
docente, no sentido de serem naturais, mas que
elas são inerentes, no sentido em que elas são
essenciais para a profissão. E, portanto, tem que
se criar um conjunto de condições, um conjunto
de regras, um conjunto de lógicas de trabalho e,
em particular, e eu insisto neste ponto, criar lógicas
de trabalho coletivos dentro das escolas, a partir
das quais – através da reflexão, através da troca
UNIUBE 97

de experiências, através da partilha – seja possível


dar origem a uma atitude reflexiva da parte dos
professores. Eu disse e julgo que vale a pena insistir
nesse ponto. [...].
(Entrevista concedida em 13 de setembro de 2001.
Disponível em: <http://www.tvebrasil.com.br/salto/
entrevistas/antonio_novoa.htm>.)

Uma terceira dimensão, talvez um pouco mais ampla, um pouco mais


abrangente é aquela que configura em tempos maiores e, muitas vezes,
ocupando as férias de uma professora e de um professor, que é a
montagem, a preparação de um novo curso. Todo ele, não apenas uma
aula, não apenas uma unidade didática de um programa qualquer, mas
todo um programa de estudo para um ano ou um semestre. Isso pode
ser feito individualmente, e, com frequência, o é.

Você considera essa atitude docente de dialogar com os alunos


à volta da criação do saber coerente à concepção de educação
no paradigma educacional emergente, aqui discutida?

Lembramo­‑nos de repetidos anos em que na universidade nós tínhamos


que entregar um programa de curso meses antes do início de um novo
semestre. Aquilo representava toda uma atividade de estudo, todo
um delimitar, às vezes com novo olhar. Era um momento em que era
selecionada a disciplina, depois se procuravam novos livros, às vezes
filmes que pudessem servir para discutir e contextualizar a discussão.

Isso pode ser feito, e vivemos também muitas vezes, em pequenas


equipes, sobretudo quando vários professores da mesma área de saber
se reuniam para montar, em grupo, a mesma proposta de trabalho para
uma disciplina ministrada em duas, três, quatro turmas diferentes, ainda
que respeitando preferências e diferenças individuais.
98 UNIUBE

Tomamos, até aqui, a pesquisa como um estudo contínuo de formação ou


de produção teórico­‑crítica do educador. Tomei a pesquisa como estudo
e elaboração antecipada de aulas, e tomei a pesquisa, como estudo e
preparação antecipada de programas de curso, como três dimensões de
pesquisa do cotidiano na vida do professor.

Desse modo, consideramos como um trabalho de pesquisa docente: a


produção de conhecimento por meio de uma motivação e de uma ação
sistemática sobre determinada área ou um campo mais ampliado de
conhecimento, com finalidade de produção de trabalhos científicos; de
criação de material didático; de realização de programas de estudos, de
cursos, de aulas e outros dessa natureza.

PARADA PARA REFLEXÃO

Esse período de planejamento de curso já deve ter sido vivido por você
que é professora e professor. Ou então, já foi observado por você em
alguma escola. Como se realizava esse trabalho?

2.6.2 A relação professor­‑aluno em um trabalho de pesquisa na


docência

Queremos reconhecer agora novas situações dentro dessa classifica-


ção, sempre buscando responder à pergunta:

Em que situações nós nos vemos, em que situação nós vemos


outras educadoras, outros professores, envolvidos com algum
tipo de atividade de criação de conhecimento, em ações que
identificamos como algum tipo de pesquisa científica associada
à docência?

Esse olhar não menos sério, mas mais generoso e abrangente sobre os
cenários de pesquisa, ele tem também a sua razão de ser nessa intenção
de contrapor essa ideia de investigação docente a uma visão crescente
UNIUBE 99

de que pesquisa é aquilo que fazemos quando não estamos trabalhando


com os nossos alunos, quando estamos de licença, quando estamos
desobrigados do trabalho docente, ou porque fomos fazer um mestrado,
ou porque estamos elaborando a tese de doutorado.

Estamos, ao contrário, pretendendo defender aqui a ideia de que,


mesmo fora da sala de aula, mesmo antecipando a atividade docente
ao momento real de sua realização, a pesquisa existe e povoa a vida do
professor, da professora em vários momentos diretamente associados
ao próprio trabalho de educar, ao próprio trabalho de lecionar junto aos
alunos.

A primeira relação professor­‑aluno num trabalho de pesquisa na docência


seria convidar os alunos a viverem a prática do estudo, da leitura, da
procura de textos, da busca pessoal – depois estendida a grupos – do
conhecimento, do saber. Estudar como um trabalho em que a didática se
estende à pesquisa, isto é, transforma­‑se numa busca de conhecimento
a partir de uma experiência de recriação, de cocriação de um novo saber.

IMPORTANTE!

Se partimos da experiência do aluno ele se verá acolhido e valorizado.

Nós nos acostumamos, primeiro como alunos, depois como professores,


a pensar atividades que envolvem o mistério e a maravilha do ensinar
e aprender em termos profundamente militares e em termos industriais.
Palavras como disciplina, dever para casa, prova, avaliação, rendimento,
desempenho, população­‑alvo, ferramenta, prontidão, instrumento e tantas
outras. Esses termos são repassados para o mundo da convivência entre
pessoas com a experiência de educar: há toda uma lógica e toda uma
metáfora de um mundo regido pela competição e pela exterioridade de
100 UNIUBE

desempenhos que são medidos, em geral, pela artificial superação de si


mesmo, na superação de seus outros, das outras pessoas.

PARADA PARA REFLEXÃO

Nós, educadores, podemos usar esses termos escritos acima, mas


precisamos deixar claro qual é o seu sentido na educação.

Será o mesmo sentido militar ou empresarial?

O quadro de honras, a tabela de classificações, a transformação da


escola em várias circunstâncias de graduações de desempenhos, tudo
isso, representa no mundo que deveria ser de partilha, de solidariedade,
de cocriação, algo que tem a ver muito mais com o exercício da manobra
militar, ou com o desempenho de pessoas robotizadas numa linha de
montagem.

A realização de tarefas escolares, ou de deveres para casa, muitas vezes


como uma repetição adestrante, instrumentalizadora de competências e,
debaixo de uma permanente ameaça de punições ou de uma avaliação
negativa, é a exata contra face da proposta de diálogo solidário que tem
sido hoje em dia levada à educação.

Nesse pensar a educação por meio do diálogo, estamos partindo


de alguns princípios:

Primeiro, de que a sala de aula é, antes de qualquer coisa, uma


oficina de interações e de intertrocas de vivências, de experiências,
de competências antecipadas, antecedentes e presentes na vida de
cada um. Essa compreensão do ato de educar tem um valor em si, não
um valor comparativo, quantificável, por considerar aquilo que cada
pessoa presente na sala de aula, como aluno ou professora, tem e traz
para a escola, com suas experiências de vida, com seus valores, com
UNIUBE 101

suas ideias, ou seja, como aquilo que realiza a própria experiência da


educação.

De que maneira nós temos pensado a educação?

• Como uma prática criadora de cotidianos férteis, significativos,


críticos e criativos?
• Como espaço de mediação entre as vivências do cotidiano
das pessoas empenhadas em aprender e um alargamento
de horizontes de saberes de outras vivências que são
representadas pelo aprender, pelo criar com outros
conhecimentos?
• Ou, ainda, como alargamento do próprio viver cotidiano a partir
do que se aprende na escola ou com a escola?

As situações de educar são tão mais verdadeiras quanto mais


representam a possibilidade de nos sentirmos integrados, não numa
fábrica de produção, memorização, empilhamento e cobrança de
conhecimentos prontos; mas num espaço, num círculo, num tecido
de criação tão livre e espontânea de possíveis cossaberes, de
conhecimentos partilhados a partir dos quais, no interior dos quais e
entre os quais, convivendo em diálogo com outras pessoas, vivemos
a experiência pessoal de aprender. Ou seja, de retirar para nós, sem
tirar de ninguém, a fração, o quinhão de conhecimento de um trabalho
antecedente de criação de experiências, de partilha do saber, de que
participamos e seguimos participando ativamente.

Esse é outro sentido que podemos atribuir à tarefa de casa, ao estudo


obrigatório. Para isso, precisamos: retirar todo o sentido de uma
coação exterior, como algo que devo a alguém e que preciso fazer
obrigatoriamente. Inserir, no lugar disso, a experiência de que sou
chamado a partilhar com o outro, na sala de aula, ou em situações
derivadas da sala de aula, um momento posterior de trocas, de
102 UNIUBE

intercomunicações, de experiências e vivências. Instante que será mais


rico, mais fértil, mais fecundo quando, por minha conta, reservar outros
momentos do cotidiano extraclasse, extra­ssala de aula, extraescola, para
uma vivência pessoal, gratificante e generosa de estudo.

A tarefa de casa é um problema para muitos professores e um


martírio para muitos alunos. É possível outro sentido para ela?

Desse modo, o estudo deixa de ser tarefa e se transforma em vivência,


deixa de ser obrigação de memorizar conhecimentos, de aprender a
lição ou de fazer o dever de casa e se transforma numa experiência
de pesquisa. Nós nos sentimos ao ler, ao estudar, mesmo que seja
uma fórmula, como alguém que pesquisa, que estuda, que incorpora o
novo a si mesmo como aprendizado, por meio da realização voluntária,
desejante desses momentos de busca do conhecimento.

Estamos questionando as relações autoritárias de imposição de


conhecimento. Já refletimos neste capítulo que no paradigma
educacional emergente não se afirma que há conhecimento pronto,
acabado.

Se para o professor estudar, ler, selecionar livros, comparar teorias e


ideias, tirar as próprias conclusões são um exercício de pesquisa e não
uma obrigação didática para um melhor desempenho, também para os
alunos isso deveria ser vivido e ser inclusive avaliado com esse sentido.

Um segundo princípio que desejamos enfatizar aqui é: não devemos


nos esquecer de que, em experiências de pesquisa na docência, o mais
importante é o trabalho individual ou coletivo da experiência de criar
conhecimentos e aprender por meio desse processo. Isso com base em
alguma alternativa de pesquisa, em que o mais importante é a formação
de nossos estudantes ou, numa outra dimensão, a formação de pessoas
UNIUBE 103

com senso crítico, com uma capacidade maior de criatividade a partir do


que viveram e aprenderam nas suas experiências de pesquisa.

SINTETIZANDO...

A pesquisa forma a pessoa porque desenvolve a capacidade de dialogar, de


compartilhar, de criticar, de discutir ideias, de construir novos conhecimentos,
de interagir saberes.

Essa é a diferença essencial: uma coisa é a pesquisa feita pelo professor no


processo de sua autoformação, ou então a pesquisa destinada a produzir
teoria a respeito de uma determinada questão ou de um determinado tipo
de problema social. Outra coisa é a pesquisa realizada com alunos, entre
alunos e por meio de alunos, em que o objetivo essencial é a formação
desses alunos como pessoas, a formação como futuros educadores e a
formação como pesquisadores por meio da pesquisa. É uma circunstância
em que, de uma maneira muito clara e definida, a experiência da pesquisa
é subordinada, ela serve à experiência didática, à formação de pessoas
numa vivência de educação que incorpora práticas de pesquisa como um
momento dessa própria formação.

2.6.3 O conhecimento que se cria junto

Pensamos que, a partir de nossas experiências como professor, alguma


coisa mais poderia ser dita sobre essa experiência da pesquisa no
trabalho docente. Queremos enfatizar aqui dois aspectos.

Um, referente àquela ideia de que, sob o nosso ponto de vista, a


experiência da pesquisa em sala de aula é um caminho muito bom para
se relativizar, para se desqualificar todo esse ar competitivo, concorrente
que tem impregnado a escola de hoje. Aqui nós poderíamos lembrar de
uma frase de Piaget, que diz: “Eu não creio na pesquisa solitária, eu creio
na pesquisa solidária.”
104 UNIUBE

PARADA PARA REFLEXÃO

Você identifica situações em que a escola estimula a competição?

Pense em algumas.

Sempre defendemos um espírito de equipe, sempre a possibilidade,


desde a educação infantil, em todos os níveis e momentos da educação
fundamental e também na universidade, de que é possível substituir
a competição pela cooperação. O trabalho entre concorrentes, pelo
trabalho de pessoas que se reúnem, mesmo em equipes diversas,
criando algo que é uma partilha que envolve estudo, trocas, diálogos,
construção conjunta.

Outro aspecto é que há uma segunda razão de ser desse tipo de


experiência de pesquisa na docência que é um alargamento do
conhecimento. Não apenas aprender a ser pesquisador, a fazer
pesquisas, não apenas um aprender a criar os seus saberes e a formação
competente de alunos como futuros pesquisadores. Pensamos que há
uma razão intelectual, uma razão cultural e uma razão pedagógica mais
ampla e que incorpora essa aí.

É criar entre os alunos, se possível desde o começo de suas carreiras


como estudantes, a ideia de que muito melhor do que um aprendizado
empacotado de conhecimentos prontos e ditos, dados por um professor
a uma turma, é o conhecimento que se resolve criar juntos, a respeito do
qual há acordos, consensos e um trabalho participativo de construção,
mesmo que modesto e simples.

PARADA PARA REFLEXÃO

Se acolhemos um conhecimento pronto, acabado, não desenvolvemos a


capacidade de criticar, pois não aprendemos a pensar, apenas a memorizar.

Você concorda?
UNIUBE 105

Pesquisas que podem ser feitas muitas vezes em alguns dias, mas que,
de alguma maneira, as pessoas, ao construir aquilo, estão vivendo ali
a experiência essencial da educação: a integração entre a vivência do
cotidiano e a reflexão crítica e alargada a respeito desse cotidiano e dos
círculos de vida, em todos os planos, que o cercam e que o estendem
mais além. A confiar nos seus saberes criados por meio da participação
de situações de pesquisa, mas também, e com muita relevância, um
aprender a pensar criticamente por meio do processo de construção dos
seus próprios saberes.

IMPORTANTE!

Podemos desenvolver a consciência crítica a respeito do lugar social


onde vivemos, ou a respeito do mundo mais amplo onde nós habitamos.
Um modo é lendo obras de autores críticos. Mas, se nós pudermos fazer
isso, praticando por nossa conta, por meio de um estudo teórico sério e
comparativo, nunca centrado em apenas um autor, é evidente que a nossa
reflexão cidadã como professor ou como aluno irá aumentar muito. Não só
estaremos aprendendo a partir da leitura dos outros que nos ensinam por
meio do que escreveram, mas estaremos criando o nosso próprio patamar
de crítica ao problematizar o nosso próprio estudo teórico. Na construção
dos nossos próprios dados, podemos colocar­‑nos frente aos autores e,
então, estabelecer aí um diálogo, não de igual para igual, mas pelo menos
de próximo para próximo.

Outra razão de ser da experiência da pesquisa na docência estaria em


que ela talvez seja a prática mais criadora de um sentido produtivo
da atividade na sala de aula. Muitas vezes nós ficamos inventando
atividades, joguinhos, pequenas dinâmicas de grupo para quebrar a
hierarquia, a verticalidade do cenário da sala de aula. Ora, quando
uma turma se propõe a um fazer prolongado, que envolve dois meses,
um semestre inteiro, um ano inteiro, essa equipe se vê transformada
de um pequeno grupo, ou de uma turma amorfa, numa equipe ou num
conjunto de equipes que respondem por uma tarefa, que se criam
106 UNIUBE

como um “nós” responsável por um trabalho a ser produzido; não para


ser avaliado, para acabar numa nota e aprovação, mas um trabalho
em que muito mais importante do que o produto final é o processo,
passo a passo, até a chegada a ele.

Devemos dizer, do mesmo modo, alguma coisa a respeito das dimensões


da qualidade dessas pesquisas. Quando lemos importantes pesquisadores,
nós vemos que em todos eles existem produções acadêmicas, produções
de trabalhos científicos de tamanhos físicos e também de qualidades
diferentes. Breves informes de duas ou três páginas, ao lado de livros que
consumiram anos de vida que têm 600 páginas; pesquisas que derivaram
de dissertações de mestrado, teses de doutorado, mas também um estudo
cultural de um acontecimento de fim de semana.

Nós mesmos vivemos na vida, primeiro como aluno e depois como


professor, essas mesmas situações. Reconhecemos que algumas
pesquisas são breves, outras longas, algumas envolvem toda uma
questão teórica profunda que se resolve também por meio de um
trabalho extremamente consistente. Algumas apenas querem trazer uma
descrição simples de uma experiência de educação popular, de uma
festa, de uma experiência sociocultural qualquer. Elas não são pesquisas
menos sérias, de maior ou menor valor, pela quantidade do papel que
gastam, elas são dimensões diferentes de um mesmo processo.

Vale destacar!

O importante é que isso seja dito com clareza. O importante é que em um


trabalho realizado com uma turma de alunos, seja dito primeiro entre eles,
como uma negociação antecipada e depois se o trabalho é publicado,
ou de alguma maneira dito para leitores, quais as intenções, quais as
motivações, qual o tipo, qual o investimento de tempo, qual a intenção
de realização da pesquisa.
UNIUBE 107

EXEMPLIFICANDO!

Os alunos do Colégio Ricardo Misson de Uberaba, MG, orientados pela


equipe pedagógica da escola, realizaram uma pesquisa sobre a obra de
Guimarães Rosa, em 2007. Foi um trabalho “de descrição simples de
uma experiência cultural”. O resultado das buscas foram apresentados
no II Encontro das Licenciaturas, promovido pelo Instituto de Formação
de Educadores da Universidade de Uberaba. Foram criados pôsteres e
materiais artesanais, além da construção de portfólios.

Podemos, finalmente, em nosso caso específico lembrar que o destino


do conhecimento que produzimos deságua, em primeiro lugar, numa
comunidade cultural chamada educação e, a seguir, nas suas pequenas
e insubstituíveis comunidades sociais chamadas escolas, salas de aulas,
comunidades aprendentes.

Em texto posterior, Brandão (2005, p. 2) afirma que:

[...] acostumados ao mundo da escola, acabamos por


imaginar que o processo formal da educação ao mesmo
tempo aproxima e opõe uma pessoa­‑que­‑sabe­‑e­‑ensina
e pessoas­‑que­‑não­‑sabem­‑e­‑aprendem. De algum
modo é assim mesmo que se dá o ensinar­‑e­‑aprender.
E o respeito que praticamente todas as culturas têm
pela pessoa e pela figura do “mestre”, é bem uma
imagem deste fato universal.
Mas, olhada de perto e de dentro, podemos pensar que
ninguém ensina ninguém, porque o aprender é sempre
um processo e é uma aventura interior e pessoal. Mas
é verdade também que ninguém se educa sozinho, pois
o que eu aprendo ao ler ou ao ouvir, provém de saberes
e sentidos de outras pessoas. Chega a mim através
de trocas, de reciprocidades, de interações com outras
pessoas.
Conhecimentos, valores, teorias e receituários do “como
fazer na prática”, que estão permanentemente em fluxo,
sendo passados, transmitidos de uma pessoa a outra.
E a própria ideia de pessoa já é a de um organismo
original e único, transformado pela socialização por
108 UNIUBE

meio de múltiplos momentos de aprendizagem, em


uma pessoa. Pessoa: o ser humano capaz de conviver
socialmente em um mundo interativo de cultura.

Maria Cândida Moraes, que discute o paradigma educacional


emergente, assim escreve sobre as mudanças na educação, na escola
e no papel do professor:

[...] Destacamos a importância de perceber que a


missão da escola mudou, que em vez de atender a uma
massa amorfa de alunos, despersonalizados, é preciso
focalizar o indivíduo, aquele sujeito original, singular,
diferente e único, dotado de inteligências múltiplas,
que possui diferentes estilos de aprendizagem e,
consequentemente, diferentes habilidades de resolver
problemas. Mas um “sujeito coletivo”, inserido numa
ecologia cognitiva da qual fazem parte outros humanos,
cujo pensamento é influenciado pelas pessoas
integrantes do ambiente, a partir de uma relação
contínua existente entre o pensamento e o ambiente
em geral, dois aspectos inseparáveis de um único
processo, cuja análise em partes distintas não tem mais
sentido.
Reconhecemos a importância de focalizar o processo
de aprendizagem, mais até do que a instrução e a
transmissão de conteúdos, lembrando que hoje é mais
relevante o como do que o que e o quanto você sabe.
E necessário levar o indivíduo a aprender a aprender,
que se manifesta pela capacidade de refletir, analisar e
tomar consciência do que sabe, dispor­‑se a mudar os
próprios conceitos, buscar novas informações, substituir
velhas “verdades” por teorias transitórias, adquirir os
novos conhecimentos que vêm sendo requeridos pelas
alterações existentes no mundo, resultantes da rápida
evolução das tecnologias da informação.
Propomos como um dos itens integrantes dessa nova
agenda uma educação centrada no “sujeito coletivo”
que reconhece a importância do outro, a existência
de processos coletivos de construção do saber e a
relevância de se criar ambientes de aprendizagens
que favoreçam o desenvolvimento do conhecimento
interdisciplinar, da intuição e da criatividade, para que
possamos receber o legado natural de criatividade
existente no mundo e oferecer a nossa parcela
de contribuição para a evolução da humanidade
(MORAES, 1996, p. 64).
UNIUBE 109

SAIBA MAIS

Maria Cândida Moraes. Doutora em educação pela Pontifícia


Universidade Católica de São Paulo (PUC­‑SP). Foi coordenadora­‑geral do
Programa Nacional de Informática Educativa (PROINFO), da Secretaria
de Educação a Distância (SEED) do MEC.

O diálogo entre áreas, campos, planos e sistemas de conhecimento


serve ao adensamento e ao alargamento da compreensão de
pessoas a respeito do que importa: nós mesmos, os círculos de vida
social e de cultura que nos enlaçam de maneira inevitável, a vida que
compartilhamos uns com os outros e todos os seres da vida, o mundo
e os infinitos círculos de realização do cosmos de que somos, nossa
pessoa individual, nossas comunidades, a vida, o nosso mundo, parte
e partilha. Compreendemos não apenas quando nos apropriamos de
algo que nos é agora sabido, conhecido. Compreendemos algo quando
passamos a fazer parte dos círculos de diálogos em que “aquilo que
compreendemos” é compreendido.

2.7 Considerações finais

Acostumados ao mundo da escola tradicional, acabamos por imaginar


que o processo formal da educação ao mesmo tempo aproxima e opõe
uma pessoa­‑que­‑sabe­‑e­‑ensina e pessoas­‑que­‑não­‑sabem­‑e­‑aprendem.
Mas, vista segundo o paradigma educacional emergente, podemos
pensar que ninguém ensina ninguém, porque o aprender é sempre um
processo e é uma aventura interior e pessoal. Mas é verdade também
que ninguém se educa sozinho, pois o que nós aprendemos ao ler ou ao
ouvir, provém de saberes e sentidos de outras pessoas. Chega a nós por
meio de trocas, de reciprocidades, de interações com outras pessoas.

É, sobretudo, de diálogo, interação, partilha, cooperação, amorosidade,


que nós ansiamos falar e refletir com você sobre a experiência da
110 UNIUBE

pesquisa no trabalho docente, uma dimensão do educar e do formar


segundo o paradigma educacional emergente.

A quem pensa esta vocação comunitária do saber, podemos lembrar


com o carinho de uma despedida, o velho provérbio chinês tão nosso
conhecido:
Se você faz planos de vida para um ano
semeie arroz.
Se você faz planos para dez anos
plante árvores.
Se você pensa planos para cem anos
eduque o povo.
(Autor anônimo)

Ao longo do curso, continuaremos dialogando sobre esse paradigma


emergente e a concepção de educação que dele se origina. Outras
reflexões serão acrescentadas.

Esperamos que este nosso diálogo tenha expressado o que pensamos


sobre o professor na transição de paradigmas. Não podemos falar
em momentos distintos de práticas pedagógicas e de concepções de
educação. Elas coexistem há muito tempo e em vários lugares.
UNIUBE 111

Resumo

Neste capítulo foram discutidas as questões da educação no paradigma


tradicional e no paradigma emergente. Foram analisadas, de modo
conciso, as diversas tendências teóricas que pretenderam dar conta
da compreensão e da orientação da prática educacional em diversos
momentos e circunstâncias da história educacional brasileira, como a
pedagogia liberal e a pedagogia progressista. Discutimos, ainda, as
relações professor­‑aluno­‑conhecimento e a configuração da pesquisa na
docência. Para essas reflexões, nos baseamos, sobretudo, em Cipriano
Luckesi, Carlos Brandão e Maria Cândida Moraes. Várias criações
artísticas ajudaram a compor o texto, entre poetas, músicos e pintores.

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jpg&imgrefurl=http://lucy-natureza.blogspot.com/2009/03/escola-com-
que-sempre sonhei.html&usg=__VOXsZIztAqhJbXVCOrR_TSC6dJM=
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Capítulo A formação do pensamento
3 crítico

Francis Silva de Almeida

Introdução

A pergunta se impõe. Chega


um momento em que já não
se pode continuar evitando
nem permanecer na opinião
de costume.
Immanuel Kant

A educação escolar apresenta características plurais: aprender,


na escola, é um processo multifacetado que considera diferentes
contextos e assinala um movimento de significação e geração
de movimentos individuais e coletivos em torno de sistemas de
signos históricos e culturalmente situados. Nesse ínterim, algumas
questões se destacam. Há uma relação entre filosofia e pedagogia?
Qual a natureza dessa relação? A questão educativa pertence à
ordem didática ou se constitui como um problema de natureza
filosófica? A filosofia deve permear os processos educativos? De
que maneira? De que modo e em que medida a relação entre
filosofia e pedagogia corroboram a formação do pensamento
crítico?

As questões que enunciamos acima orientam o ponto de partida


das reflexões que propomos neste capítulo: discutir a relação entre
filosofia e pedagogia no âmbito da educação escolar, e, a partir
daí, os limites e as possibilidades dessa relação no processo de
116 UNIUBE

formação do pensamento crítico; colocar em questão o papel que


a escola e o professor desempenham nesse processo, e, ainda,
compreender de que modo a demanda por sentido que se insere
nesse curso formativo assinala a extensão da vida ética e política
na qual professor e aluno encontram-se inseridos.

Nessa perspectiva, os papéis e as representações assumidas pelo


homem na vida em sociedade, bem como o papel das instituições
que se inscrevem no domínio da coletividade, têm promovido
a elucidação de que as diferentes dimensões do ser humano
revelam uma unicidade, uma integralidade que carece ser revista,
sobretudo, pela instituição escolar que, no tempo presente, assume
a tarefa de superar o legado da razão instrumental, resgatando
as dimensões do desejo, da ludicidade, da linguagem e do fazer
significativo, como abertura para a dimensão das vivências
socioculturais como espaço de construção dos sentidos de ser e
estar no mundo.

Aproveitamos para esclarecer que, em algumas passagens


deste capítulo, utilizamos trechos retirados de nossa dissertação
de mestrado – Filosofia e fazer filosófico no Ensino Médio:
ressonâncias e deslocamentos em Deleuze-Guatari –
apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação da
Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM) no ano de 2016.

Objetivos

Ao final deste capítulo, esperamos que você seja capaz de:


• discutir a relação entre filosofia e pedagogia no âmbito da
educação escolar bem como os limites e possibilidades dessa
relação no processo de formação do pensamento crítico;
• inferir o papel da filosofia como elemento de um processo de
ensino-aprendizagem que paute a construção da autonomia
e a formação de sujeitos críticos e reflexivos;
UNIUBE 117

• descrever o papel que a escola e o professor desempenham


no processo de formação do pensamento crítico;
• explorar sobre como o processo de formação do pensamento
crítico assinala a extensão da vida ética e política na qual
professor e aluno encontram-se inseridos.

Esquema
3.1 Filosofia e Educação: definindo conceitos
3.2 O problema filosófico e o problema pedagógico
3.2.1 A Filosofia como elemento do processo de ensino-
-aprendizagem
3.3 Escola: experiência e memória
3.4.1 O papel da escola no contexto brasileiro
3.5 Considerações finais

3.1 Filosofia e Educação: definindo conceitos

Filosofia. Do grego: philo (amigo, amante) e sophia (sabedoria). Em sua


origem, a palavra filosofia assinala uma atitude, uma postura. Enamorar-
-se da sabedoria significa colocar-se diante de suas próprias razões num
movimento contínuo de busca pela verdade e resistência a toda forma
de dogmatismo.

A filosofia é uma forma de saber e produzir conhecimento; apenas


uma entre tantas outras que se destacaram no decurso histórico
de interpretação da realidade. Desde a sua origem, a filosofia tem
sido tomada como uma postura intelectual que preza pela produção
de conhecimentos capazes de traduzir de forma racional, lógica
e sistemática as diferentes respostas para a origem, causas e
transformações da realidade humana bem como da origem e das causas
do próprio pensamento. Com uma postura intelectual, a filosofia revela a
necessidade que o homem possui de inserir-se no interior das questões
que enredam os diferentes aspectos da vida humana.
118 UNIUBE

PONTO-CHAVE

As grandes interrogações que os filósofos do passado fizeram


permanecem no presente: os homens de hoje continuam a colocar
problemas sobre eles mesmos, sobre a vida, sobre a sociedade, sobre
a cultura, sobre o transcendente etc., que constituem verdadeiros
desafios à nossa atividade reflexiva (JAPIASSU, 1997 apud LORIERI,
2002, p. 36).

O sentido da filosofia como uma postura crítico-reflexiva reafirma a


tradição filosófica que, desde a Antiguidade, enfatiza a descontinuidade
entre o pensamento filosófico e o senso comum. Por isso, parece-nos
significativo que o ensino da filosofia em nível
Doxa médio reproduza a perspectiva do pensamento
Filosofia. Sistema antigo que opunha doxa e episteme. É
ou conjunto de
juízos que uma precisamente essa atitude de distanciamento
sociedade elabora
em um determinado entre a filosofia e o senso comum que assinala
momento histórico o entendimento de que o fazer filosófico consiste
supondo tratar-se
de uma verdade num árido trabalho intelectual sustentado, em
óbvia ou evidência
natural, mas que primeiro plano, pela crítica e pela reflexividade.
para a filosofia
não passa de
crença ingênua,
a ser superada Segundo Lalande (1999), a palavra crítica,
para a obtenção radicalizada do grego kritikos (derivada da palavra
do verdadeiro
conhecimento. krisis – julgamento, seleção), diz respeito à
(HOUAISS; VILLAR,
2009, p. 711) capacidade de constituir juízos; isto é, concerne
Episteme à disposição do sujeito pensante para pôr em
Filosofia. O crise não só as visões de mundo construídas
conhecimento pelo conjunto das crenças, opiniões e diferentes
verdadeiro, de
natureza científica, modos de viver e demonstrar sua subjetividade,
em oposição à
opinião infundada que exprime não só a herança cultural dos sujeitos,
ou irrefletida.
(HOUAISS; VILLAR, mas também o próprio conhecimento que “sob a
2009, p. 783
forma de palavra, ideia, teoria, é o fruto de uma
tradução/reconstrução por meio da linguagem e
UNIUBE 119

do pensamento e, por conseguinte, está sujeito ao erro.” (MORIN, 2000


apud LORIERI, 2002, p. 34).

Assim, enquanto uma postura crítica, a filosofia concentra a função


depurativa das certezas e das verdades que constituem o ideário dos
indivíduos e seus universos simbólicos, cujo termo indica as condições
para a construção de uma consciência individual e coletiva do caráter
histórico, cultural e dialógico em que se inscrevem as relações humanas
e a produção dos saberes.

Por seu lado, a palavra reflexão, originada dos radicais latinos re, outra vez,
novamente; e flexus, dobrado (derivado do verbo flectere, dobrar), enuncia
o processo mental em que nos movimentamos sobre as dobras do nosso
próprio pensamento (LALANDE, 1999). Trata-se da disposição de (re)ver
o já pensado; (re)pensar e colocar em questão os próprios fundamentos
do conhecimento. Cumpre destacar, conforme corroboramos as ideias de
Deleuze e Guattari (2005), que a filosofia não é necessária para refletir
sobre o que quer que seja: refletir não é uma prerrogativa da filosofia, mas
a propriedade comum de qualquer área do saber.

Ao indagarmos o sentido da filosofia como uma postura crítico-reflexiva,


aludimos à forma de uma pluralidade que descreve tanto a filosofia como
sua atividade. Por esse motivo, não nos permitimos afirmar a existência
de uma filosofia, mas, como sugerem Deleuze e Guattari (2005), de
filosofias; de diferentes experiências do filosofar como processos de
construção abertos e inacabados.

Logo, se compreendemos que o filosofar é uma experiência de


singularidade que se desdobra dos múltiplos movimentos reflexivos que
conferem unidade ao exame crítico dos fundamentos daquilo que se
constitui nos domínios da doxa – postulante da representação e primado
da identidade –, então, a filosofia encontra a sua legitimidade como uma
120 UNIUBE

postura crítico-reflexiva das condições concretas da existência e abertura


à episteme – condição de uma “filosofia da diferença.” (DELEUZE, 2006).

Opor doxa à episteme é, portanto, tarefa da filosofia. Isso porque,


segundo Deleuze, a redução da imagem do pensamento como
representação propõe uma nova imagem em que as noções de sentido
e o valor do exercício do pensar não se constituem como trabalho natural
de uma faculdade que conjectura que “o pensamento está em afinidade
com o verdadeiro, possui formalmente o verdadeiro e quer materialmente
o verdadeiro” e, por isso, presume “que cada um saiba o que significa
pensar.” (DELEUZE, 2006, p. 192).

Nesse sentido, a abertura à episteme depende necessariamente das


forças que se apoderam do pensamento. São as condições concretas
às quais nos referimos e que dizem respeito a tudo aquilo que se
manifesta no plano da sensibilidade e exprimem a força mobilizadora do
pensamento: o objeto de um encontro fundamental, o de-fora, o signo,
o sentiendum, aquilo que, segundo Deleuze (2006), sensibiliza a alma,
torna-a perplexa e, por isso, força a passagem da doxa à episteme. A
identificação da filosofia à atividade que constitui o pensamento, como
este movimento de ruptura pode ser apreendido de diferentes formas,
contudo, conforme notamos, ele só pode ser sentido: “do sentiendum
ao cogitandum se desenvolveu a violência daquilo que força a pensar.”
(DELEUZE, 2006, p. 205).

Toda relação que o homem estabelece com mundo é mediada por


representações construídas a partir de diferentes experiências de
subjetividades. Por isso, pensar o sentido da filosofia como processo
criativo capaz de inserir o homem no mundo por meio do pensamento nos
remete às seguintes proposições: (i) a possibilidade de uma “experiência
de mundo” que se desenha a partir das experiências vivenciadas pelo
pensamento, se configura, precisamente, pela relação que o homem
UNIUBE 121

constitui com o mundo, e com aquilo que lhe parece problemático; (ii)
se assumimos o problema como aquilo que afeta o homem – razão dos
espantos que lhe são provocados pela existência –, o processo criativo
de inserção no mundo pelo pensamento é um processo naturalmente
filosófico à medida que provoca desencontros, rupturas e força criações.

Como se vê, a filosofia e o pensamento se entretecem de forma tal que a


experiência do mundo como pensamento só se torna possível à medida
em que o ato de pensar agencia múltiplas aberturas, processos de tensão
e composição em que as relações e os acontecimentos se constroem
e se desconstroem. Nesse sentido, afirmam Gallo e Kohan (2000, p.
192), “a filosofia é uma atividade de fazer experiências de pensamento,
transversalmente atravessando o vivido e construindo sentidos para
esses acontecimentos.”

Educação. De origem latina, a palavra educação resulta da transliteração


de dois vocábulos: educere, de ex-ducere; e educare. Enquanto no
primeiro termo o prefixo “ex” indica o ato de conduzir (à força) para fora;
o segundo remete ao sentido de alimentar. Nesse sentido, conduzir e
alimentar são acepções que lançam luz à ideia de uma prática que é,
em última análise, movimento de passagem: do mundo animal ao mundo
humano, do mundo instintivo ao mundo consciente, do mundo concreto
ao mundo representado; passagem viva do não saber ao saber. É,
portanto, processo de humanização, um fenômeno tipicamente humano
que se caracteriza pelo conjunto das ações e influências intencionais
e mutuamente exercidas entre pessoas, cujo propósito concorre a
construção dos contextos sociais, econômicos, culturais e políticos de
uma sociedade (REZENDE, 1990; LORIERI, 2002).

Compete afirmar que a educação é uma prática social, e, como tal, existe
em toda e qualquer sociedade humana, em todo tempo e lugar. Desde os
agrupamentos sociais mais primitivos a educação já se manifestava como
uma ação intencional orientada pelo conjunto dos valores que permitem
122 UNIUBE

a coesão social e cultural entre as gerações. É precisamente a intenção


de introduzir as novas gerações no mundo da cultura que distingue essa
prática social de outras práticas sociais, e faz da educação o espaço de
produção simbólica da existência. Por isso, podemos afirmar: a educação
é o espaço de construção do humano como sentido que não se esgota
e que, por essa razão, evidencia o aspecto fundador do conhecimento
como o que conduz à compreensão da existência humana no mundo.

A educação é o “processo-projeto de aprendizagem humano-significativa


da cultura” (REZENDE, 1990, p. 59). Ou seja, enquanto fenômeno
tipicamente humano e uma prática social, traz consigo três sentidos
fundamentais:

a. da condição corpórea como dimensão objetiva por meio da qual o ser


humano é capaz de apreender da realidade externa: “há na educação
todo um trabalho de educar os sentidos e a partir deles: aprende-se a
ouvir, a ver, a cheirar, a degustar, a sentir, como também se aprende
a lidar com a imaginação.” (REZENDE, 1990, p. 52).
b. da condição intelectiva como expansão das capacidades cognitivas
que permitem o ser humano compreender as relações de sentido que
se entretecem por meio da linguagem: “a educação da inteligência
diz respeito não apenas ao conhecimento, mas ao pensamento,
isto é, à capacidade de refletir, meditar e acrescentar sentido.”
(REZENDE, 1990, p. 53).
c. do caráter histórico, político e social como condição de uma postura
crítica ante o mundo e a si mesmo: “as intenções humanas, dos
indivíduos e dos grupos, entram realmente em cena, na forma de
conflitos subjetivos, no sentido forte deste termo.” (REZENDE, 1990,
p. 55, grifo do autor).

O ato intencional em que se sustenta a educação como prática social


e de humanização se desdobra sobre os complexos processos de
subjetivação e construção de sentidos. Constitui um espaço de relações
concretas, onde diferentes sujeitos, com distintas percepções de seus
UNIUBE 123

papéis sociais, revelam um exercício subjetivo que traz à tona a dinâmica


de interação Eu-Outro: no interior da educação os indivíduos elaboram
as suas visões de mundo e se elaboram no mundo, pelo Outro.

EXPLICANDO MELHOR

Subjetivação é o processo de tornar-se sujeito. Ao nos referimos aos


processos de subjetivação, dizemos das diferentes formas pelas quais, em
nossa cultura, os seres humanos tornam-se sujeitos. Esses processos são
realizados num plano histórico-político a partir do qual a forma do sujeito
emerge como efeito. Dito de outro modo: os processos de subjetivação
dizem respeito à produção de modos de existências, ou seja, dos diferentes
modos de agir, de sentir e de dizer o mundo.

Logo, compreendemos que a educação é aquilo Híbrido


que se constitui nas mais variadas formas da Que ou que é composto
de elementos diferentes.
ação humana como intensidade que marca (HOUAISS, 2009, p. 1018).
a própria vida enquanto processos híbridos,
Múltiplo
múltiplos e heterogêneos. Encontrando-
O que apresenta grande
-se histórico, social, cultural e politicamente número ou variedade de
algo. (HOUAISS, 2009, p.
situado, o fenômeno educativo traz consigo 1329).
a força plástica daquilo que é imanente,
Heterogêneo
ou seja, que se define como o que não está
Que possui natureza
nem para o sujeito nem para o objeto; como desigual e/ou apresenta
o que é pré-reflexivo, a-subjetivo e se forma diferença de estrutura,
função, distribuição etc.
na anterioridade e na exterioridade da relação (HOUAISS, 2009, p. 1016).

sujeito-objeto enquanto movimento que não Plástico


começa nem termina (DELEUZE, 2002). Aquilo que pode ser
moldado (HOUAISS, 2009,
p. 1507).
No interior do fenômeno educativo, a cultura
se manifesta como dinâmica própria do Imanente
Que está
relacionamento que o indivíduo tem com o inseparavelmente contido
trabalho e a história. Segundo Rezende (1990, na natureza de um ser ou
de um objeto (HOUAISS,
p. 63), “é pelo trabalho, pelas práxis, que o 2009, p. 1048).
124 UNIUBE

homem gera cultura. [...] o homem se faz, se transforma, no trabalho,


na história e na cultura”. Ora, se a cultura é o resultado de tudo o que
homem produz por meio do trabalho para significar simbolicamente sua
existência, então “não apenas o trabalho manual, mas o intelectual, o
educacional, são igualmente geradores de cultura.” (REZENDE, 1990,
p. 63).

O trabalho se coloca em relação direta com a cultura e com a história


e, justamente por isso, constitui o território sobre o qual se desdobra a
história do homem a partir dos significados que ele atribui à sua própria
existência. Conforme Rezende (1990, p. 63): “Educar-se é aprender a
fazer a história, fazendo cultura. Isto é trabalho”. Logo, a educação deve
implicar, para o trabalho, o sentido mais profundo de produção da cultura
pela transformação do homem e do mundo; para a cultura, o sentido da
compreensão teórica e prática das relações humanas e do modo, como
a partir dessa trama, a existência é simbolicamente representada.

A educação como aprendizado do trabalho e da cultua figura o espaço


da criação da consciência e da identidade de ser-no-mundo, “da
compreensão do sentido do relacionamento dialético entre a estrutura
do sujeito e a do mundo [...]. Somente essa compreensão permitirá o
acesso dos sujeitos da educação à condição de sujeitos da cultura pela
apropriação dos sentidos da existência.” (REZENDE, 1990, p. 70).

Por seu lado, a educação escolar diz respeito aos processos formais de
escolarização, de construção e aquisição de conhecimentos na escola.
Essa perspectiva nos leva a reconhecer a educação escolar como uma
dimensão que se encontra contida na educação, ou seja, como a fração
de um fenômeno que “se atualiza em um estado de coisas e em um
estado vivido que fazem com que ele aconteça” (DELEUZE, 2002, p. 16).
Assim, ao pensarmos a escola como instituição social, o fazemos pelo
viés de uma concepção que temos de educação, o que, por seu lado,
implicará diretamente as relações humanas e de aprendizagem.
UNIUBE 125

Os papéis e as representações assumidas pelo homem na vida em


sociedade, bem como o papel das instituições que se inscrevem no
domínio da coletividade, têm promovido a elucidação de que as diferentes
dimensões do ser humano revelam uma unicidade, uma integralidade
que carece ser revista, sobretudo, pela instituição escolar que, no tempo
presente, assume a tarefa de superar o legado da razão instrumental,
resgatando as dimensões do desejo, da ludicidade, da linguagem e
do fazer significativo, como abertura para a dimensão das vivências
socioculturais como espaço de construção dos sentidos de ser e estar
no mundo.

Nessa perspectiva, nos reportamos ao papel que a escola vem


exercendo nas sociedades contemporâneas, haja vista que a ela se
atribui, cada vez mais, a tarefa de realizar, junto às novas gerações, os
ideais educacionais propostos pela sociedade como um todo. Por isso,
a despeito dos sentidos que foram atribuídos à educação escolar após
a revolução industrial e do modo como esses sentidos tenham legado
à escola contemporânea um projeto social hegemônico, sublinhamos
que o modo como os professores de filosofia participantes deste estudo
reconhecem a formação humana e integral não só subjaz o papel central
da instituição escolar, como também reafirma que a apropriação do
conhecimento constitui apenas uma parte dos seus fazeres.

A respeito do caráter emancipador que se revela na formação humana


integral, notamos:
O conteúdo da educação – tal como a forma – tem
caráter eminentemente social e, portanto, histórico.
É definido para cada fase e para cada situação da
evolução em uma comunidade. Por conseguinte, deve
atender primordialmente aos interesses da sociedade.
Se esta é democrática, os interesses dominantes
têm que ser os do povo, e se considerarmos um país
em esforço de crescimento, tem que ser o de suas
populações que anseiam por modificar sua existência.
(PINTO, 2005, p. 43).
126 UNIUBE

Por isso, cabe à escola:


(a) transformar a sociedade, de modo a eliminar as
divisões sociais estabelecidas; (b) desbarbarizar a
humanidade, no que concerne aos seus preconceitos,
opressão, genocídio, tortura etc; (c) conscientizar os
indivíduos, tendo em vista uma formação de sujeitos
críticos, autônomos e emancipados; (d) desenvolver
uma educação integral, que permita o desabrochar
das potencialidades humanas; (e) apropriar-se do
saber social, que permita uma socialização ampla da
cultura e apreensão dos conhecimentos e saberes
historicamente produzidos; (f) formar para o exercício
pleno da cidadania. (OLIVEIRA, 2009, p. 238)

Corroboramos, assim, a tese de que o sentido da instituição escolar


implica a complexidade das práticas inerentes ao próprio processo de
humanização. Nesse contexto, as práticas pedagógicas terminam por
circunstanciar questionamentos, reflexões e ideias que evocam hipóteses
e ações, clareiam significados, reelaboram conceitos, interpretam
situações e, bem frequentemente, inspiram e despertam uma relação
intrínseca entre os sentidos e o intelecto.

3.2 O problema filosófico e o problema pedagógico

Ao considerarmos a filosofia como uma atividade de pensamento,


comprometemos-nos com a clássica premissa que acompanha o
fazer filosófico desde a sua origem: de que a philosophia nasce como
admiração ante o desconhecido, como amizade pelo saber e, por isso,
como busca pela verdade. O movimento de ruptura com a mitologia,
como marco da origem histórica da filosofia entre os gregos antigos, nos
permite apontar um duplo e importante registro: primeiro, que ao longo
de toda a sua história, o fazer filosófico como atividade do pensamento
UNIUBE 127

primou pela autenticidade do saber como o resultado de um movimento


de superação da realidade aparente e busca do entendimento do que
as coisas são em sua essência; segundo, que o pensamento filosófico
possui uma característica que excede o consenso de que pensar
filosoficamente é pensar de modo radical, rigoroso e de conjunto. O
pensamento filosófico é também criativo.

Conforme afirmam Deleuze e Guattari (2005), lançar mão deste segundo


registro significa admitir que, como uma potência do pensamento, a
filosofia não só toma para si a atividade de criação de conceitos, mas, em
função de sua condição dialética, torna possível uma atividade intelectual
que produza suas próprias versões de mundo, ou seja, subversões
dos valores políticos, éticos e estéticos que atravessam os processos
históricos e a história particular de cada pessoa.

Segundo Deleuze e Guattari (2005, p. 143), “pensar é experimentar,


mas a experimentação é sempre o que se está fazendo – o novo, o
notável, o interessante que substituem a aparência de verdade e são
mais exigentes que ela”. A experiência do pensamento é a experiência
de fazer filosofia. É, portanto, o próprio fazer filosófico como ato concreto,
permeado pela intencionalidade, pelos desejos, pelos discursos e pela
singularidade dos sujeitos.

Quando afinado com essa perspectiva, o problema filosófico inclui


no horizonte de seu plano a forma do conceito (filosofia), a função do
conhecimento (ciência) e a força da sensação (arte). Para Deleuze e
Guattari (2005), a filosofia, a ciência e a arte constituem as três potências
do pensamento quando “traçam planos sobre o caos” (DELEUZE;
GUATTARI, 2005, p. 260). Ao traçarem seus planos sobre o caos, a
filosofia, a ciência e a arte agem de modo próprio, criando, cada uma ao
seu modo, um conteúdo distinto.
128 UNIUBE

PONTO-CHAVE

A filosofia não é ciência e não é arte e, por isso, não pode ser confundida
ou substituída por elas. Cada uma dessas potências, guardando-lhe o que
é específico, delimita suas fronteiras epistemológicas e suas condições de
existência. Os signos emanados da filosofia, da ciência e da arte convidam-
-nos, então, a experimentar o pensamento de modo intenso e não linear; a
vivê-lo como expressão de um exercício que, permitindo-nos ir além do já
pensado, postula o pensamento como novidade, como movimento e como
ato complexo, singular e criativo.

Ao atravessarmos os campos epistemológicos da filosofia e da educação,


promovendo o corte de um pelo outro, o problema pedagógico ganha
contornos claros e revela a necessidade de que os processos de ensino-
-aprendizado se constituam como espaço privilegiado para a formação do
pensamento crítico.

Para Cescon (2009, p. 11):

A natureza e as características da pedagogia estão


estreitamente ligadas tanto ao que se entende por
educação quanto ao que se entende por saber científico
ou filosófico. Visto que a educação está sempre
conectada às várias formas de vida historicamente
determinadas, todas as concepções pedagógicas, ao
definir os critérios da formação humana e os objetivos
da aprendizagem refletem, inevitavelmente, os ideais,
os valores, os interesses políticos e econômicos do
tempo ao qual se referem.

Por isso:
A pedagogia busca na filosofia um ideal que nutra de
sentido e conteúdo a educação; a filosofia, por sua vez,
é sempre algo mais que ensino e recordação de ideias;
é, desde a sua origem, a vigilância crítica, o espaço do
debate, o impulso à fecundidade do pensamento. Por
isso, a relação entre a reflexão filosófica e o processo
educativo é tão íntima que se este não estiver contido
naquela, a educação formará, no máximo, reprodutores
da ciência, da técnica e dos valores culturais.
(CESCON, 2009, p. 13).
UNIUBE 129

Desse modo, o substantivo pedagogia não se limita ao campo das


ações didáticas e das práticas interventivas de sentido instrutivo. Ao
contrário, consideramos a pedagogia como uma tomada de consciência,
empreendimento de teorização de um determinado projeto educativo,
inscrito no quadro geral de uma reflexão filosófica. Trata-se, portanto, de
assinalar a dimensão metarreflexiva dos estudos que se desenvolvem
a partir do século XX e que se desdobram na busca pelos fundamentos
epistemológicos, sentido, objeto e método da pesquisa educacional.

3.2.1 A Filosofia como elemento do processo de ensino-


-aprendizagem

No contexto do processo de ensino-aprendizagem, a identificação de


uma pedagogia que ensine a pensar “e não só memorizar o que os outros
dizem por mais profundo que seja o pensamento” (CESCON, 2009, p.
18) parece, antes de tudo, responder à disposição que acompanha o
fazer filosófico desde os gregos antigos: estimando que a atividade do
pensamento não comporta prescindir o caráter educativo de que sua
ação se reveste, compreendemos que a formação do pensamento
crítico se desdobra como processo de emancipação. Ora, se entre os
gregos da antiguidade o ideal de educação como paideia atravessava
expressivamente o fazer filosófico, então, temos que, ainda em nossos
dias, educar para a emancipação do pensamento não passe por outros
caminhos que não sejam aqueles que coadunam a formação do homem
como ser integral.

SAIBA MAIS

Ensino é a atividade que torna possível a construção de uma aprendizagem.


Para Souza (2014, p. 77), “pode existir uma aprendizagem sem ensino,
mas não existe ensino que não esteja orientado para um aprendiz”. Dessa
maneira, ensinar e aprender designam ações que não se exprimem de outro
modo que não seja numa relação de interação e interdependência: ensino-
-aprendizagem.
130 UNIUBE

Enquanto fundamento dos processos de ensino e aprendizagem,


a filosofia não só cria ressonâncias diretas sobre a educação e suas
questões como, sobremaneira, recobra a experiência do pensamento
como exercício de multiplicidade. Nesse sentido, o fazer filosófico
como processo de emancipação intelectual retrata a articulação de
movimentos: diz respeito àquele que emancipa, que liberta o outro;
àquele que conquista a sua emancipação; e, por fim, à síntese dos
movimentos anteriores como produto da emancipação. São movimentos
essencialmente educativos. Educação do pensamento como condição
de ruptura com a linearidade, com os processos de conformação
e dominação; ruptura com os lugares-comuns que massificam a
subjetividade. Educação para o pensamento como ato de criação
e imprevisibilidade: são movimentos transversais que promovem a
emancipação de quem ensina e de quem aprende.

O sentido da emancipação ocorre, antes de tudo, como a forma do


trabalho que comporta descobrir veredas, abrir sendas, criar caminhos
alternativos; libertar-se das tutelas intelectuais:
Sendas
“Ousa saber! Tem coragem de fazer uso de
Caminho estreito teu próprio entendimento, tal é o lema do
usado pelos
pedestres ou pelo esclarecimento”, dizia Kant (1974). A conquista
gado de tamanho
pequeno. Atalho, da autonomia ocorre na medida em que somos
vereda, sendeiro.
Rumo, direção, rota. capazes de reconhecer as tensões crítico-criativas
(HOUAISS; VILLAR,
2009, p.1728)
que nos atravessam o pensamento. Por isso, para
Deleuze (1992, p. 167): “Um criador é alguém que
cria suas próprias impossibilidades, e ao mesmo
tempo cria um possível.”

A figura dos movimentos que aqui apresentamos nos remete ao esforço


educativo daquele que, agenciando a formação do pensamento crítico,
permite-se emancipar e colabora sobremaneira para a emancipação do outro.
UNIUBE 131

Em Nietzsche (2003), encontramos um significativo aporte para essa


discussão. Nas Considerações Intempestivas, o filósofo recobra em
Schopenhauer um modelo de educador capaz de conduzir o seu aluno
à superação de sua própria cultura: “Era, então, realmente tomar os
meus desejos por realidades, quando imaginava poder encontrar como
educador um verdadeiro filósofo, capaz de elevar alguém acima da
insuficiência da atualidade [...]” (NIETZSCHE, 2003, p. 146).

Para Nietzsche, a filosofia não pode se desobrigar da tarefa educadora


que lhe é própria; educar o homem contra o seu próprio tempo
(NIETZSCHE, 2003). Algo que só pode se constituir nos atos de
exterioridade do pensamento. A intenção da filosofia como educação
emancipatória não se constitui na privacidade, mas na alteridade, numa
dimensão de reciprocidade em que aquele que educa, termina também
por se educar. O exercício público do pensamento constitui um intenso
fluxo de revezamentos capazes de colocar o pensamento em contato
com o de-fora.

Com efeito, a exterioridade do pensamento filosófico constitue, para


Nietzsche (2003, p. 141), os signos maiores da liberdade proposta pela
filosofia educadora: “[...] teus educadores não podem ser outra coisa
senão teus libertadores”. As Considerações Intempestivas de Nietzsche
atacam, sobretudo, o projeto pedagógico da modernidade. Para o filósofo,
a despeito da criação de singularidades, a educação apequenaria o
homem formando-o unicamente para o serviço do Estado, da ciência
positivista e do mercado. Os textos do “primeiro Nietzsche” denunciam
a forma medíocre com que a educação moderna tende à conformação
dos valores de “rebanho” (NIETZSCHE, 2003).

Em Nietzsche e Deleuze-Guattari, a crítica da filosofia como educação


emancipatória passa necessariamente pela formação política do
pensamento. Trata-se de fazer nascer no pensamento o ato de pensar
como matéria a ser reconhecida, acontecimento, criação de saídas.
132 UNIUBE

Nesse contexto, uma importante questão se destaca: a leitura crítica.


Segundo Cescon (2009), em Crítica do juízo, o filósofo Immanuel Kant
observa haver três condições básicas para a realização de uma leitura
crítica: a) pensar por si mesmo; b) pensar no lugar do outro; e c) ser
consequente.

Pensar por si mesmo significa pensar algo a partir das próprias


premissas, mesmo que o objeto já tenha sido pensado outras tantas
vezes por outras pessoas. Não se trata de subtrair nenhuma ideia à
livre discussão, mas, ao contrário, de promover as condições de
verificação da validade dos argumentos que sejam próprios. Pensar por
si mesmo significa elaborar suas questões sem a imposição de ordens,
de pressupostos; criar problemas e ocupar-se deles mais do que com a
possibilidade da solução.

Pensar no lugar do outro diz respeito à capacidade de colocar-se “do


outro lado” para vivenciar o lugar de fala como experiência de uma visão
de mundo que, naturalmente diferente, justifica a apreciação e a crítica do
outro em relação ao objeto da discussão. Para ilustrar essa perspectiva,
recordamos o filósofo e teólogo Leonardo Boff: “Todo ponto de vista é a
vista de um ponto. Ler significa reler e compreender, interpretar. Cada
um lê com os olhos que tem. E interpreta a partir de onde os pés pisam.”
(BOFF, 1997, p. 9, grifos nossos).

Pensar no lugar do outro exige o abandono das crenças e das


verdades que orientam o modo como compreendemos, interpretamos
e representamos o mundo; o modo como construímos e reproduzimos
o conhecimento. Colocar-se no lugar do outro exige abertura, diálogo e
empatia. Cumpre considerar que cada pensamento exprime o estado das
experiências vividas pelo sujeito, sua visão de mundo e, portanto, seu
lugar de fala. Assim, “é essencial conhecer o lugar social de quem olha.
Vale dizer: como alguém vive, com quem convive, que experiências tem,
UNIUBE 133

em que trabalha, que desejos alimenta, como assume os dramas da vida


e da morte e que esperanças o animam” (BOFF, 1997, p. 10).

Nesse sentido, não se pode aceitar ou rejeitar o pensamento do outro


se não me puser no seu lugar, se não for capaz de um processo de
identificação mínima com o outro. Contrário disso,
a leitura deixa de ser crítica para manifestar uma Deletério

postura de intolerância e negação às diferentes Que possui um


efeito destrutivo,
formas de intepretar e representar o mundo e suas danoso, nocivo.
(HOUAISS; VILLAR,
questões, o que, por sua vez, é profundamente 2009, p. 609)
deletério aos processos de ensino e formação
humana.

Por fim, ser consequente significa que se as consequências necessárias


da tese que defendemos forem insustentáveis ou contraditórias,
deveremos abandoná-la. Trata-se de uma condição extremamente difícil,
pois exige o esforço do abandono: abandonar uma convicção a qual,
muitas vezes, nos ligamos afetivamente para chegar à conclusão de que
a tese que defendíamos, na verdade, não se sustenta. Ser consequente
é fundamental para a formação do pensamento crítico, para avançar na
construção do conhecimento e da autonomia intelectual.

Dessa modo, a leitura crítica se caracteriza não só pela compreensão


e reflexão sobre o que foi lido, mas, especialmente, pela construção
de relação com outros textos, contextos e situações, comparando e
distinguindo os sentidos que emergem do texto. A leitura crítica é, então,
o diálogo e a interação do leitor, sujeito histórico e social, com o seu
tempo e lugar. Enquanto pressuposto da capacidade de pensar por si
mesmo, de formular questões e partir, com autonomia, das próprias
premissas, a leitura crítica implica a formação de um pensamento que ao
mesmo tempo compreenda diferentes ideias e seja capaz de expressar-
-se reflexivamente criando sentidos políticos, éticos e estéticos que
expressem o conteúdo e o valor do objeto da observação.
134 UNIUBE

No contexto de uma pedagogia que ensine a pensar, trabalhar pela


emancipação intelectual do aluno significa movimentar o pensamento
como tentativa de “suscitar acontecimentos, mesmo pequenos, que
escapem ao controle, ou engendrar novos espaços-tempo, mesmo de
superfície ou volume reduzidos” (DELEUZE, 1992, p. 218). Emancipar
intelectualmente esse aluno significa dar-lhe o direito aos seus próprios
problemas e conferir-lhe autorização para criar os caminhos de
descobertas que a cada um singularmente pertence.

A formação que inclui a consciência crítica, a valorização do conhecimento


e o domínio das tecnologias faz parte da escola que pretende contribuir
para a emancipação do ser humano. Educar para o pensamento crítico.

[...] favorece a abertura do espírito, a responsabilidade


cívica, a compreensão e a tolerância entre os
indivíduos e entre os grupos, [...] formando espíritos
livres e reflexivos - capazes de resistir às diversas
formas de propaganda, de fanatismo, de exclusão e
de intolerância - contribui para a paz e prepara cada
um a assumir suas responsabilidades face às grandes
interrogações contemporâneas, notadamente no
domínio da ética. (UNESCO, 1995, p. 13).

Nesse contexto, é imprescindível que não se desvincule a formação técnica


da valorização da cultura própria das comunidades, da conscientização do
uso da tecnologia em favor do bem comum e da vida no nosso planeta.
O importante é que a tecnologia, entre outros benefícios que a ciência
proporciona, alcance os excluídos pela pobreza. Nesse contexto de
domínio das novas tecnologias, Moran (1994, p. 26) escreveu: “o professor
se transforma agora no estimulador da curiosidade do aluno por querer
conhecer, por pesquisar, por buscar informação mais relevante."

3.3 Escola: experiência e memória


A escola ocupa um lugar de fundamental relevância na formação do
homem e do cidadão. Presente na espacialidade das relações sociais,
políticas e culturais, a escola assume o papel de agenciar diálogos e
UNIUBE 135

apurar, por meio de experiências comunicativas, práticas de participação


democrática e política. Corresponde, portanto, a um território permeado
de palavra: ditos e interditos; narrativas: domínio próprio dos sujeitos
que ensinam e aprendem. Ensinar e aprender assumem, então, a forma
imanente por meio da qual podemos pensar um movimento contínuo
de reflexão, pesquisa, ação, descoberta, organização, fundamentação,
revisão e construção teórica dos saberes, metodologias de ensino e
desenvolvimento de projetos pedagógicos e de vida que abalizem a
educação escolar como processo de emancipação humana.

Por isso, entendemos como parte fundamental das reflexões que


propomos neste capítulo, situar os aportes teóricos que nos permitam
pensar a escola como campo de uma experiência que se constitui nos
atravessamentos da história e da cultura. Partimos da seguinte questão:
qual o lugar e o papel da escola num contexto marcado pelo
fenômeno do empobrecimento da experiência?

A ideia de experiência surge de maneira constante na obra de Benjamin


e, quando aparece – ou apenas se insinua –, provoca uma série de
reflexões que se constituem antes como desvios do próprio pensamento.
Confome o autor: “O que são desvios para os outros, são para mim os
dados que determinam minha rota. – Construo meus cálculos sobre os
diferenciais de tempo [...]” (BENJAMIN, 2006, p. 499).

Para Benjamin (1994, 2006), a experiência é algo que se passa entre


pessoas: lugar da construção dos sentidos; ciclos abertos, possibilidade
de construção intercambiada que promove no homem uma profunda
capacidade de comunicação, de aproximação com o Outro. Logo, a
experiência é algo que se constitui no campo dialético: Eu-Outro.

A experiência nos remete ao conhecimento construído num intenso fluxo


de correspondências alimentado pela memória; algo que se passa como
136 UNIUBE

acúmulo e prolongamento. Precisamente por isso, a experiência permite


que o sujeito se integre no universo das linguagens e práticas que se
sedimentam no tempo e associam a vida particular à vida coletiva: é a
condição de um encontro que se impõe ao sujeito e já não lhe permite
mais ser o mesmo. E isto não ocorre no tempo do acontecimento. Pelo
contrário, supõe uma tradição retomada e compartilhada na transmissão
da palavra como condição de continuidade (BENJAMIN, 1994, 2006).

A crítica de Benjamin ao processo de empobrecimento da experiência


possibilita a compreensão habitual do termo como o que diz respeito às
vivências, e, por isso mesmo, ao isolamento do indivíduo em sua história
pessoal como exacerbado apego às exigências de sua existência. “Uma
nova forma de miséria surgiu com esse monstruoso desenvolvimento
da técnica, sobrepondo-se ao homem.” (BENJAMIN, 1994, p. 115). Para
o filósofo, a pobreza da experiência decorre justamente da perda da
capacidade de intercambiar experiências de comunicação, de elaborar
alegorias (allos, “outro, diferente”, e agoreuein, “falar em público, falar
abertamente”): de lançar à luz a palavra como experiência vivida. Por
isso, no campo da educação escolar, a crítica que se destaca coloca sob
suspeita a ideia de formação e de cultura estabelecidas nas sociedades
capitalistas do pós-iluminismo.

Na escola, as consequências do isolamento e da progressiva perda


das capacidades comunicativas como intercâmbio de conhecimentos
e mútua implicação de saberes é desastrosa, pois modificam o domínio
das interações humanas e de construção de aprendizagens significativas
em espaço marcado pelo pragmatismo utilitário que professor e aluno
tendem a suportar no cotidiano de suas relações. O conhecimento
cede lugar à informação, pura e simples, imediata e aplicável. Nesse
sentido, notamos: a pobreza da experiência decorre da supressão das
experiências comunicativas, e supervaloriza os processos de aquisição
de informação em detrimento dos processos de elaboração de sentidos
por meio da palavra, do prolongamento das experiências vividas pelo
aluno e pelo professor.
UNIUBE 137

Neste ponto, uma importante pergunta se impõe: seria possível


resistir ao empobrecimento da experiência? É admissível que a
resposta seja sim, pelo menos se nos orientarmos no sentido de pensar
a educação e suas questões pelo par experiência/sentido (BONDÍA,
2002), e, a partir daí, nos permitirmos as itinerâncias da cria(atividade)
como atos de reconhecimento: estabelecer, entre professor e aluno,
relações que considerem as experiências e as múltiplas referências
culturais que ambos levam à sala de aula. Construir interesses: despertar
virtualidades, relações intensas que ligam pontos, criam conexões
entre-pessoas, entre-coisas, entre-problemas; assumir os riscos dessa
travessia e provocar o que está entre como o que evidencia a relação
pensamento-prática: formação humana como prática social, educação
como práxis: atos de uma micropolítica que se opõe aos mecanismos de
enquadramento da vida e, por isso mesmo, são capazes de produzir uma
outra experiência (linguística, estética, histórica e de liberdade).

PONTO-CHAVE

Há intrínseca relação entre experiência e memória. Essas dimensões se


articulam no interior do fenômeno educativo na medida em que a memória se
manifesta como a dinâmica própria do relacionamento que o homem mantém
com o mundo. Ora, se a experiência descreve os modos de significação do
homem através da história, a trama de suas memórias não poderia ser outra
coisa senão o território mesmo sobre o qual se desdobram os significados
que ele atribui à sua própria existência. Por essa razão, a educação escolar
deve implicar o sentido mais profundo do engajamento da memória como
espaço da criação da consciência e da identidade de ser-no-mundo, sentido
do relacionamento dialético entre o sujeito, suas memórias e o mundo.

Em O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov,


Benjamin (1994) evidencia o papel da arte narrativa como instrumento
que opera, a partir da trama intercambiada de sentidos, a construção
da consciência, lugar da memória, da sensibilidade, da imaginação e
da inteligibilidade. Por isso, afirma o filósofo: “Metade da arte narrativa
138 UNIUBE

está em evitar explicações” (BENJAMIN, 1994, p. 203). Nesse


sentido, a educação escolar se revela como espaço de comunicação
da experiência histórica do homem e, precisamente por isso, como
a condição mais importante do desenvolvimento da memória e da
identidade. Assumir essa prerrogativa significa admitir um movimento
contínuo de questionamentos e ideias que conjuram hipóteses e ações,
clareiam significados, reelaboram conceitos, interpretam situações e,
bem frequentemente, inspiram outras versões de ensinar e aprender:
subversões; versões outras que permitem interpretar e reescrever a
história de uma forma sempre nova.

A memória exprime o ethos como dimensão comunicante entre o sujeito


e o mundo, entre saber e não saber; a memória faz da experiência do
vivido a substância mesma de que se constitui a história, uma espécie de
comunicação sintagmática, manifestada em entremeios: “ela tece a rede
que em última instância todas as histórias constituem entre si” (BENJAMIN,
1994, p. 211). Por isso é possível ao narrador contar muitas histórias: sua
fala repercute do lugar de quem as viveu e ouviu de outros narradores.
Por isso, inclusive, a arte narrativa é sempre uma experiência de (trans)
formação dos sujeitos: movimento de circularidade que produz entre
narrador e ouvinte novas maneiras de ver, sentir e perceber o mundo.

Na narrativa, afirma Benjamin (1994, p. 201): “o narrador retira da


experiência o que ele conta: sua própria experiência ou a relatada pelos
outros. E incorpora coisas narradas à experiência de seus ouvintes”.
Logo, narrar é construir interlocuções, intertextualidades; é suscitar
espanto e reflexão. Ao conservar suas forças vitais, criativas e plásticas,
a arte narrativa se relaciona direta e intensamente com a produção de
experiências humanas comunicáveis: tessitura de memórias.

É, pois, neste ponto, em que apoiamos a tese de que os processos


educativos se constituam antes como experiências narrativas. Nessa
UNIUBE 139

perspectiva, a construção de aprendizagens significativas passa sempre,


e necessariamente, pelo reconhecimento do mundo como lugar de
tessituras outras: memórias, identidades; ensaio de uma descrição direta
da experiência como ela é: produção de sentidos, ditos e inter-ditos que
fazem da experiência um exercício de coletividade e da tradição oral
uma “lenta superposição de camadas finas e translúcidas que representa
a melhor imagem do processo pelo qual a narrativa vem à luz do dia,
como coroamento das várias camadas constituídas pelas narrações
sucessivas.” (BENJAMIN, 1994, p. 206).

A educação escolar como experiência narrativa se expõe, então, como


campo transcendental, condição do fenômeno possível: uma narrativa
é matéria em movimento, ela conserva pontos fixos a partir dos quais
é possível criar algo sempre novo. Nesse sentido, ensinar e aprender
definem movimentos de circularidade, repetição e diferença: uma nova
história em cada passagem da história. Ademais, se pressupomos que
o homem é, ao mesmo tempo, sujeito que aprende e que ensina, então
esse duplo movimento emprega um processo repleto de significação em
quaisquer direções em que se observe o seu deslocamento. Ensinar e
aprender são, essencialmente, experiências; algo que se passa com os
sujeitos no interior da relação educação/cultura/história.

Por essa razão, a educação escolar deve constituir-se como espaço que
corrobore a elaboração e a circulação de sentidos através das práticas
narrativas como práticas significativas. A escola e seus sujeitos revelam
a plenitude e a constância de uma interlocução em que os dizeres e as
práticas significam condições de uma enunciação concreta.

3.3.1 O papel da escola no contexto político-social brasileiro

Colocar em questão o papel da escola no contexto político-social brasileiro


exige reconhecer de que modo os processos históricos implicaram as
concepções de educação e de organização da educação escolar desde
140 UNIUBE

a chegada dos jesuítas em 1549. Não se trata de uma questão que


se resume ao âmbito das narrativas históricas, mas da compreensão
do modo como os interesses políticos forjaram os diferentes ideais de
homem e sociedade dos quais somos herdeiros.

De acordo com Saviani (2010), a chegada dos Padres da Companhia de


Jesus nas terras da colônia brasileira não aspirava outro propósito senão
a doutrinação dos nativos em conformidade com a fé cristã católica. Ao
catolicismo da Contrarreforma incumbia-se a revitalização da doutrina,
a moralização do clero e a confirmação das tradições em um tempo
marcado pela ascensão do racionalismo cartesiano e o enfraquecimento
da hegemonia política e espiritual da Igreja Católica. A criação das
primeiras escolas e a instalação dos primeiros colégios e seminários,
como cumprimento da demanda política fixada por Dom João III lançaram
as bases da história da educação brasileira, cujo movimento se revela
na forma intrínseca em que se articulam os processos de expansão e
consolidação da colônia, da educação e da catequese.

Há, nesse processo, um importante aspecto a ser considerado: a


centralidade da catequese, meio pelo qual se pôde implantar na “nova”
terra a civilização dos que dela se apropriavam. Nesse contexto, a
instalação das escolas superiores não respondia senão aos interesses
da Coroa Portuguesa que, associada à Igreja, reproduzia a conformação
intelectual e disciplinar necessárias à criação de uma elite erudita,
religiosa e moralmente abancada sobre os princípios e valores do
conservadorismo político europeu (SAVIANI, 2010).

Em termos didático-metodológicos, observamos uma fórmula que, não


obstante sua ambição universalista, se caracterizava também pelo
modo elitista com que a educação se destinava apenas à formação
da elite colonial. É precisamente nesse ponto que a pedagogia dos
missionários jesuítas encontra êxito como expressão de uma doutrina
UNIUBE 141

explicitamente baseada na conformação de uma estrutura social marcada


pela hegemonia político-religiosa e pela desigualdade social. Sua função
hegemônica se vê inteiramente abordada quando os conteúdos do
conhecimento serviam não à formação espiritual do homem por meio da
cultura – como enunciava a pedagogia humanista –, mas à construção
dos consensos sobre os quais se vincularam diferentes códigos de
normas e estratégias políticas.

Nesse sentido, enquanto na Europa a escola aprofundava o caráter


científico, literário e filosófico fundamentais ao humanismo renascentista;
no Brasil, a instituição escolar destacava-se como preâmbulo de uma
formação ao ensino da teologia, sobretudo dos padres catequistas.

O fechamento dos colégios jesuítas por decisão do Marquês de Pombal


em junho de 1759 e, posteriormente, a determinação de Dom João I
pela desnaturalização e proscrição dos missionários da Companhia de
Jesus de todo o território português e das terras de além-mar marcaram
a ruptura do modo como a educação havia sido organizada no Brasil ao
longo dos últimos duzentos e dez anos, e, especialmente, a abertura ao
cientificismo e às novas ideias humanistas e universais do pensamento
ilustrado europeu (SAVIANI, 2010). As reformas daí decorrentes indicam-
-nos o papel e o lugar da educação nesse novo contexto e a forma
como as práticas pedagógicas contribuíram com a articulação entre os
ideais iluministas e a nova organização política portuguesa. Portanto,
são os imperativos da própria circunstância histórica que sinalizam este
novo período para a organização social de Portugal e da colônia, cujo
prólogo, afirma Saviani (2010, p. 77), foi marcado “pelo contraste entre
a atmosfera religiosa, ainda dominante com seu séquito de crendices, e
a visão racionalista pautada pela lógica; entre o anseio por mudanças e
o peso das tradições; entre fé e ciência.”
142 UNIUBE

A frustração do projeto português de promover a economia industrial em


superação de sua estrutura econômica mercantilista levou o Marquês
de Pombal a centralizar a administração da colônia de modo a exercer
sobre ela maior controle e eficiência na exploração de seus recursos.
Nesse contexto, reformar a educação figurava como necessidade de
“criar a escola útil aos fins do Estado e, nesse sentido, ao invés de
preconizarem uma política de difusão intensa e extensa do trabalho
escolar, pretenderam os homens de Pombal organizar a escola que,
antes de servir aos interesses da fé, servisse aos imperativos da Coroa.”
(CARVALHO, 1978 apud PILETTI; PILETTI, 2012, p. 76).

PONTO-CHAVE

Cabe destacar que a reforma pombalina não ocorreu ao mesmo tempo


nem da mesma forma em Portugal e no Brasil. Somente três décadas
após a ruptura com a Companhia de Jesus, a Coroa Portuguesa assumiu,
de fato, o controle pedagógico da educação em terras brasileiras: longo
período entre o completo banimento dos missionários jesuítas e a
desconstrução sistêmica de seu aparelho educacional. Ao passo que
na metrópole se intentava a construção de um sistema público e laico
de ensino, na colônia, a despeito dos inúmeros alvarás e cartas régias,
as reformas educacionais propostas pelo Marquês de Pombal lograram
apenas o desarranjo da estrutura de ensino subsidiada pelos jesuítas.
Ao que se tem notícia, antes de 1772, são notadas apenas algumas
aulas régias de latim em Pernambuco (PILETTI; PILETTI, 2012).

Embora o ideário pedagógico pombalino visasse à modernização da


sociedade portuguesa alinhando-a ao pensamento ilustrado do século
XVIII, as influências de Verney e Ribeiro Sanches deslocaram o foco
da educação como questão pedagógica para o centro das discussões
de economia política. O modo como a sociedade burguesa passou a
encarrar o problema educativo se via retratado na clara distinção dos
propósitos educacionais e do papel que a filosofia assumia no contexto
maior da educação (SAVIANI, 2010). No âmbito de uma sociedade rural,
UNIUBE 143

cuja predominância de uma economia agrária subsidiava a concentração


de riquezas e o fortalecimento dos latifúndios, a extinção das escolas
populares e a transferência da responsabilidade sobre a instrução dos
pobres aos párocos refletia a clareza, as “contradições entre o projeto
civilizatório burguês e as lições do capital.” (LINS, 2003 apud SAVIANI,
2010, p. 103).

Mesmo com a instalação do Vice-reinado de Dom João VI no Brasil,


em 1808, e com a introdução de importantes mudanças no cenário
educacional e cultural brasileiro, o contexto do ensino permaneceu, em
certa medida, inalterado (SAVIANI, 2010).

Da instalação da colônia ao seu declínio, a educação escolar não se


ocupou de outras tarefas que não fossem a substantivação da ordem
política e das bases ideológicas que sustentavam as relações de
dominação ora por interesses da Igreja, ora por interesses da Coroa
Portuguesa. Nesse contexto, destacamos o fato de que as pretensões que
se alinhavam à educação continuaram por reproduzir os interesses políticos
de determinados setores da elite imperial – assim, enquanto a educação
básica era oferecida em escolas instaladas nas cidades e grandes vilas, o
que a tornava, de certo modo, acessível a um número maior de pessoas,
o ensino superior restrito tinha como objetivo a manutenção dos privilégios
da elite, da monarquia e das oligarquias rurais.

O advento da República em 1889 e as grandes transformações que


se seguiram no campo político, econômico e, consequentemente, nos
campos social e cultural, deslocaram a educação para o centro das
questões de primeira ordem. Assim, as primeiras décadas do século XX
marcaram um modelo de educação que, sob a égide das demandas de
expansão e consolidação do capital financeiro e da forte influência da elite
industrial paulista, tinha como objetivo não apenas a formação de mão de
obra qualificada aos ofícios mecânicos, mas, com isso, a conformação de
144 UNIUBE

uma classe de homens proletarizados, cujo distanciamento das questões


de natureza política favorecia a unificação do discurso e interesses da
burguesia industrial.

De acordo com Saviani (2010), foi nesse clima que duas importantes
frentes se destacaram e antagonizaram seus papéis no projeto de
fortalecimento da hegemonia industrial. Se por um lado, afirma o autor,
destacaram-se “as forças do movimento renovador impulsionado pelos
ventos modernizantes do processo de industrialização e urbanização”;
por outro, “a Igreja Católica procurou recuperar terreno organizando suas
fileiras para travar a batalha pedagógica.” (SAVIANI, 2010, p. 193).

Para Saviani (2010), a ascensão das ideias liberais e positivistas


introduzidas no campo educacional brasileiro no final do século XIX
e, consequentemente, a declaração de um Estado laico exporam as
tensões geradas entre os republicanos e a elite católica que contestava
a ruptura com a pedagogia tradicional afiançando sua recusa pelos ideais
progressistas de educação. O resultado dessas querelas provocou um
intenso movimento de busca pela restauração da hegemonia cultural que
outrora pertencia aos grupos religiosos e que, a partir de então, passaram
a se preocupar mais agudamente com a ocupação de espaços culturais.

Conforme Silveira (1994), com a ascenção dos militares ao governo, em


1964, os fatores políticos, econômicos e ideológicos que caracterizam
esse período elucidam esse processo de exclusão. O modelo de
sociedade radicado pelo regime ditatorial de 1964 encontrava-se fixado
sobre a chamada Doutrina de Segurança Nacional que, sob o pretexto
das garantias políticas, econômicas e sociais, legitimavam as ações
militares providas pelo Estado como instrumento de manutenção dos
objetivos nacionais. No cenário de um regime totalitário, parece-nos
claro não haver modo mais adequado ao enfraquecimento do conceito
de subversão que não pelo controle sobre a educação e a produção
UNIUBE 145

intelectual, política e artística livre.

A reforma da educação e o caráter tecnicista que lhe foi impresso retratam


as propriedades políticas e ideológicas do pós-1964: a estabilização do
discurso nacionalista, cujas estruturas de poder centravam-se sobre a
ideia de comunidade indivisa e a conformação de uma classe proletária
capaz de levar a termo o processo de acumulação de capital através da
internacionalização da economia; a ação extenuante dos espaços de
caráter humanista dentro e fora da educação tinha como foco a extinção
das ações contra ideológicas e o treinamento de uma força de trabalho
especializada para atender às necessidades do processo produtivo.

Considerando-se, assim, a tendência tecnicista sobre a qual se


encontrava alicerçada a reforma educacional proposta na nova legislação,
as questões pedagógicas orientaram-se no sentido de responder às
novas exigências de formação imbuídas dos ideais de racionalidade,
organização, objetividade, eficiência e produtividade, tendo em vista as
demandas da sociedade industrial, tecnológica e econômica da época.
O concurso dessas ações se orientava no sentido de que a organização
racional da educação escolar fosse capaz de minimizar as interferências
subjetivas que pudessem pôr em risco sua eficiência do modelo político-
-econômico radicado com o regime militar (SAVIANI, 2010).

PARADA PARA REFLEXÃO

De que modo a escola pode educar para a cidadania e promover o espírito


crítico-reflexivo? De que maneira a experiência com o pensamento e
os saberes produzidos nos diversos campos do conhecimento poderão
transformar o que somos e o modo como pensamos e agimos no tempo/
espaço da nossa existência?
146 UNIUBE

Em que pesem estas questões, há, e isso nos parece claro, um ponto
crucial na relação com o que dissemos anteriormente: o modelo político-
-econômico, que tem nos acompanhado desde a colônia, reforça e amplia
a crise de sentido que se abate sobre a escola em nosso tempo. Romper
com esses processos enuncia uma forma de resistência aos processos
que se efetivam na identificação da aprendizagem como aquisição de
informação, nas representações pragmáticas que os alunos fazem de
suas necessidades intelectuais, na imposição de um currículo prescritivo
que cerceia de professores e alunos a construção de um pensamento
complexo e sistêmico, na centralização didática do professor, na
incompatibilidade entre o atual discurso tecnológico e as tensões de
sua integração como linguagem didática, na burocratização do exercício
docente, na naturalização da violência cotidiana...; processos estes
que ratificam a perda da capacidade de dizer a educação escolar como
“abertura para o desconhecido, para o que não se pode antecipar nem
‘pré-ver nem ‘pré-dizer’” (BONDÍA, 2002, p. 28).

Desse modo, a despeito dos sentidos que foram atribuídos pela


sociedade burguesa à educação escolar no Brasil, e do modo como
estes sentidos tenham legado à escola contemporânea um projeto social
hegemônico, sublinhamos que a importância da escola como espaço
democrático e de formação humana integral; formação de sujeitos
aprendentes e pensantes, capazes de compreender os desequilíbrios
sociais e atuar, de modo consciente, na promoção dos direitos humanos.

Para tanto, é papel da escola criar as condições e os espaços necessários


para que o conhecimento seja reelaborado a partir dos muitos saberes
que o aluno traz consigo. Cabe à escola promover o protagonismo dos
sujeitos que se relacionam no processo de construção de conhecimento.
As práticas pedagógicas da escola devem aproximar o conhecimento
científico à realidade dos alunos, ampliando o interesse pelos conteúdos
ensinados e tornando o fazer pedagógico eficiente.
UNIUBE 147

3.4 Considerações finais

O papel da escola nas sociedades contemporâneas não se resume ao


fecho de transmissora do conhecimento, mas de constituir-se como
espaço de interlocução capaz de despertar no aluno o desejo e a
curiosidade pelo saber. Formar alunos pensantes que não fiquem presos
apenas em conhecimentos produzidos por outros, mas que saibam refletir
e que tenham seus próprios pensamentos, que busquem compreender
a origem dos fatos, selecionando as fontes, fazendo questionamentos.
Formando, portanto, alunos que tenham condições de se posicionar
criticamente diante das questões, mas mostrando sempre que cada
pessoa é diferente e tem um modo de pensar, devendo respeitar o outro,
respeitar as diferentes ideias.

Uma educação cuja principal pauta seja a emancipação humana em seus


diferentes níveis requer a formação de sujeitos que sabiam interagir com
meio em que vivem, que façam uso do conhecimento como instrumento
de transformação e busca de melhores caminhos e alternativas, que
aprendam a ver o mundo com outros olhos, com um olhar de quem
questiona que as coisas não foram sempre do mesmo jeito e não tendem
a ser no futuro como são agora.

Nesse contexto, o papel do professor é fundamental: ele é o mediador


entre os diferentes espaços da produção do conhecimento. Por isso,
inclusive, nos parece uma necessidade imperiosa que o fazer pedagógico
seja continuamente posto em questão: há que considerar o duplo
movimento entre ensinar e aprender como aquilo que é, essencialmente,
acontecimento; devir. Em outras palavras: reconhecer a aula como
matéria em movimento, mapa dos seus próprios problemas e lugar de
multiplicidade; espaços de imprevisilidade que se constituam entre-pontos;
superfície sobre a qual se deslocam os múltiplos processos de construção
dos sentidos que sustentam o ato educativo. Uma pedagogia que ensine
148 UNIUBE

a pensar deve, por premissa, resgatar a ideia de desequilíbrio, de difusão


de movimentos sempre novos e que se interpenetram como espaço de
vivências singulares e construção de sentidos.

Por isso, cumpre destacar: independente de sua área de formação e


conhecimento, cabe ao professor a tarefa de ajudar o aluno a pensar
bem, mesmo porque nos referimos aqui a um processo marcado pela
irregularidade e pela difícil tarefa de abandonar o estado de coisas
relativamente confortável sobre o qual aprendemos estar. É fundamental
preparar o aluno para olhar o seu próprio tempo, percebê-lo de modo
sensível e perceber-se como sujeito que nele se inscreve.

Resumo

O objetivo deste capítulo foi discutir a relação entre filosofia e pedagogia


no âmbito da educação escolar, e, a partir desse ponto, os limites e as
possibilidades dessa relação no processo de formação do pensamento
crítico. A partir dos conceitos de filosofia e educação, destacamos que
toda relação que o homem estabelece com o mundo é mediada por
representações construídas nas diferentes experiências de subjetividade,
e que, precisamente por isso, a escola se constitui como espaço que
implica a complexidade das práticas inerentes ao próprio processo de
humanização. Nesse contexto, destacamos que a formação que inclui
a consciência crítica, a valorização do conhecimento e o domínio das
tecnologias faz parte da escola que pretende contribuir para a promoção
do ser humano. Ao compreender a formação do pensamento crítico como
elemento fundamental à promoção do protagonismo dos sujeitos que se
relacionam no processo de construção de conhecimento, evidenciamos a
educação escolar como espaço de elaboração e circulação de sentidos:
constância de uma interlocução em que os dizeres e as práticas enunciem
concretamente a formação de sujeitos intelectualmente emancipados,
politicamente engajados e socialmente solidários.
UNIUBE 149

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Capítulo
Redes e teias de saber:
cultura, educação
4
e sociedade

Carlos Rodrigues Brandão


Sueli Teresinha de Abreu Bernardes

Introdução

Neste capítulo vamos dialogar sobre a vida humana em suas


inter­‑relações com a cultura que criamos, a sociedade em que
vivemos e a educação que praticamos. Desejamos convidá­‑lo
para uma conversa sobre questões do educar, do ensinar e do
aprender. Os conceitos que fundamentam nossa fala vêm de
nós, mas são também herdados de inúmeros cientistas sociais,
filósofos, artistas e educadores que lemos ao longo de nossa vida
acadêmica e de nossas experiências vividas.

SAIBA MAIS

Ao final dos estudos deste texto, caso queira saber mais, apresentamos
algumas sugestões de livros que discutem a temática aqui abordada.

Outro dia conversávamos sobre o misterioso hiato entre a teoria


antropológica e a educação, enquanto um campo especial de
conhecimento e de práticas sociais. Antropólogos e educadores
não se dedicam a um diálogo profícuo e constante para o estudo
do acontecimento da educação como um momento motivado da
cultura. A opção pelo tema cultura, educação e sociedade partiu
de reflexões sobre o que consideramos uma grande lacuna na
formação de professores.
152 UNIUBE

Gostaríamos, então, de trazê­‑lo para o nosso “bate­‑papo”


pedagógico. Amorosamente o recebemos neste ambiente de
aprendizagem.

Temos um objetivo final e esperamos que você concorde com


ele. Acrescente algum outro se quiser, e se não alcançá­‑lo em
nossa fala procure outros autores, outras fontes para realizar a sua
aprendizagem. Esperamos ajudá­‑lo a identificar que educação,
cultura e sociedade se inter­‑relacionam e esse entendimento é
fundamental para o professor.

Objetivos

Ao final dos estudos aqui propostos, esperamos que você possa:


• compreender as inter­‑relações entre movimentos sociais,
cultura popular e educação popular em determinados
períodos da história brasileira;
• explicar a importância da década de 60 para a concepção
e a prática pedagógica de uma educação popular nos dias
atuais;
• entender o que é cultura e a sua relevância na educação;
• reconhecer o papel do professor como recriador de cultura.

Esquema

Pensamos em uma subdivisão do capítulo em itens para facilitar­


‑lhe a leitura. Afinal, queremos oferecer­‑lhe uma escrita que
possa ser aprendida em pequenos “goles”, como um bom licor de
genipapo. São eles:

4.1 Cultura popular, arte e movimentos sociais


4.2 Educação popular
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4.3 Educação como cultura, educação e cultura


4.3.1 Aprendizes de feiticeiro?
4.3.2 Feiticeiros de aprendizes?
4.3.3 A pedagogia escolar
4.4 Pessoa e cultura
4.5 Professor como recriador da cultura
4.5.1 Quem ensina?
4.5.2 Resumindo nosso diálogo
4.5.3 Antes de nos despedirmos

4.1 Cultura popular, arte e movimentos sociais

Quem viveu a sua juventude ou a sua maturidade na década de 60, ou


dela tem referências, seja por meio de pesquisa ou pela simples e tão
rica transmissão oral, sabe que essa música que apresentamos a seguir
é um símbolo dos anos 60; de seus movimentos sociais, dos festivais
de música e outros eventos culturais e das lutas políticas de setores
organizados da sociedade.

[...]
Louco, o bêbado com chapéu coco
Fazia irreverências mil
Pra noite do Brasil, meu Brasil
Que sonha com a volta do irmão do Henfil
Com tanta gente que partiu
Num rabo de foguete
Chora a nossa pátria mãe gentil
Choram Marias e Clarices
No solo do Brasil
[...]
O bêbado e o equilibrista
João Bosco
154 UNIUBE

PESQUISANDO NA WEB

Se você quiser se encantar ouvindo toda a música na belíssima voz de


Elis Regina, acesse <http://vagalume.uol.com.br/elis­‑regina/o­‑bebado­
‑e­‑a­‑equilibrista.html>. Aproveite a navegação pela Internet e pesquise
canções e poemas das décadas de 1960 e 1970 que se referem à vida
política da época.

SAIBA MAIS

Os versos de O bêbado e o equilibrista são de uma canção que, assim


como as de outros compositores engajados nas reivindicações políticas e
sociais da época, como Geraldo Vandré e Chico Buarque, foram alvo da
censura oficial da época, por sua crítica mais ou menos velada ao regime
político então vigente. A repressão política exercida pelo governo voltou­
‑se violentamente para o meio artístico­‑cultural do país, como o teatro e a
música popular, submetendo­‑o à censura e, além disso, obrigando muitos
intelectuais e artistas a optar pelo exílio. O “irmão do Henfil” é Herbert José
de Souza, o Betinho, sociólogo e militante de esquerda exilado, que liderou a
Campanha contra a fome na década de 1990, mais de 10 anos após o exílio.

O que de tão importante aconteceu nesse período que merece um destaque


histórico especial? E como tudo isso se relaciona com a educação? Vamos
trazer­‑lhe alguns recortes e algumas lembranças da história de nosso país.
Leia, reflita e anote suas reflexões sobre esses fatos.

Pensamos que você fará uma agradável viagem pelo tempo se


procurar saber mais sobre os teatros, os festivais, os encontros dos
estudantes, as organizações populares com a Igreja Católica, os
eventos de cultura popular, mas também a tristeza dos exílios, das
lutas armadas, das perseguições políticas e das torturas nos porões
da ditadura militar.
UNIUBE 155

No campo, o movimento das Ligas Camponesas avançava; ampliava­‑se


a sindicalização rural e, em 1963, era criada a Confederação Nacional
dos Trabalhadores Agrícolas. A classe média urbana, mesmo dividida
ante o temor da instabilidade econômica, engajava­‑se (essa era a palavra
da época) nos movimentos sociais. A União Nacional dos Estudantes
(UNE) discutia com veemência as questões políticas e econômicas.
Ligado a ela, surge em 1961 o Centro Popular de Cultura, que buscava
uma cultura nacional, popular e democrática. Outras organizações
procuravam atrair intelectuais e artistas para desenvolver atividades
de conscientização das classes populares. Um novo tipo de artista,
participante, ativista e revolucionário, começava a atuar junto a favelas,
sindicatos, portas de fábrica, teatros, ruas e paróquias.

Observem o que Carlos Brandão escreveu há décadas passadas, no livro


De Angicos a ausentes: 40 anos de educação popular.

Cultura e cultura popular no Brasil


No começo dos anos 60 uma nova proposta a respeito
da cultura popular surge no Brasil e se difunde por uma
vasta parte da América Latina. Ela pretende ser, ao seu
tempo, um corpo de ideias e práticas renovadoras e
questionadoras em vários planos. Nos seus primeiros
documentos, ela se apresenta como uma alternativa
pedagógica de trabalho político que parte da cultura e
se realiza através da cultura, especialmente da cultura
popular. (BRANDÃO, 2001, p. 27).

Como decorrência dessa nova proposta pedagógica, bastante associada


a projetos do que veio a ser mais tarde a educação popular, foram criados
os primeiros movimentos de cultura popular, em várias regiões do Brasil.
A maioria deles não subsistiu ao golpe militar de 1964, mas a relevância
de suas ideias de origem permanece visível em várias experiências atuais
de educação popular na América Latina.
156 UNIUBE

SAIBA MAIS

Golpe militar de 1964


Movimento político­‑militar deflagrado em 31 de março de 1964, com o
objetivo de depor o governo do presidente João Goulart. Sua vitória acarretou
profundas modificações na organização política do país, bem como na vida
econômica e social. Todos os cinco presidentes militares que se sucederam
desde então declararam­‑se herdeiros e continuadores da Revolução de
1964. Estende­‑se até o final do processo de abertura política, em 1985.
É marcado por autoritarismo, supressão dos direitos constitucionais,
perseguição policial e militar, prisão e tortura dos opositores e pela censura
prévia aos meios de comunicação.
Fonte: www.r2cpress.com.br/?q=node/1760.

Usando a mesma expressão corrente na Europa desde pelo menos


o século XIX, a proposta dos Movimentos de Cultura Popular (MCP)
dos cinco primeiros anos da década de 60 subverte o seu sentido de
uma maneira muito politicamente motivada. Cultura popular deixa de
ser simplesmente um conceito científico transmitido pelos cientistas
sociais dos folcloristas, e herdado por estes dos antidualistas dos séculos
XVII e XVIII, para tornar­‑se a palavra­‑chave de um projeto político de
transformação social a partir das próprias culturas dos trabalhadores e
outros atores sociais e populares.

EXPLICANDO MELHOR

Os projetos dos Movimentos de Cultura Popular pretendiam ir mais além


de uma simples democratização da cultura ou de uma ilustração das
camadas populares por meio de programas especiais de educação de
adultos ou de desenvolvimento de comunidade. Tendo como uma distante
inspiração experiências na França, assim como alguns trabalhos culturais
desenvolvidos nos países socialistas, o propósito de um “trabalho de
cultura popular” foi uma das expressões mais radicais de associação entre
profissionais e intelectuais saídos dos universitários e pessoas das classes
trabalhadoras.
UNIUBE 157

Vários grupos e instituições, apoiados por governos estaduais e


municipais, desenvolveram um movimento cultural e conscientizador
nos bairros mais pobres. É exemplar o Movimento de Cultura Popular
no Nordeste, apoiado em Pernambuco pelo governo de Miguel Arraes, o
qual alfabetizava utilizando o Método Paulo Freire, então em evidência.

Você sabe o que é cultura popular?

Essa mesma proposta de ensinar­‑aprender de Paulo Freire foi adotada


por outros movimentos e pessoas que se assumiam educadoras para
ensinar a ler lendo o mundo. Os integrantes do Movimento de Educação
de Base – MEB (Figura 1), criado entre 1960 e 1961, atuam junto às
classes populares de modo múltiplo, dialógico, compartilhando saberes e
modos de ver o mundo. Assumiam a ideia de que ensinar é ser mediador
do desenvolvimento do aluno, da consciência de si mesmo como uma
pessoa livre, autônoma, crítica e participante.

Observe a interação:

políticos educadores

Movimentos
de Cultura
Popular
artistas
trabalhadores

intelectuais
158 UNIUBE

Reflita sobre o que conversamos até aqui. Que relação existe entre
os participantes dos Movimentos de Cultura Popular sintetizados no
esquema anterior?

Vejamos o que Ferreira Gullar, intelectual militante em centros populares


nessa época de movimentos populares de cultura, nos diz:

Quando se fala em cultura popular acentua­‑se a


necessidade de pôr a cultura a serviço do povo, isto
é, dos interesses efetivos do país. Em suma deixa­‑se
clara a separação entre uma cultura desligada do povo,
não popular, e outra que se volta para ele e, com isso,
coloca­‑se o problema da responsabilidade social do
intelectual [e do artista], o que o obriga a uma opção.
(GULLAR, 1965, p. 1).

Pensamos que é importante salientar que a cultura popular tem um


sentido de arte do povo, mas possui também outra acepção: a de ser uma
arte revolucionária, de conscientizar o povo para lutar pela transformação
social.

Para você, o sentido de cultura popular de que nos fala Ferreira


Gullar é o mesmo que escrevemos neste texto anteriormente?

Se respondeu sim, concordamos com você. A cultura popular não era


apenas a cultura que vinha do povo, mas sim a que se fazia para o povo,
para dar­‑lhes consciência social e política.

Escrevemos há pouco sobre educação de base. Mas o que é essa


educação?

Deixemos Carlos Brandão, que foi integrante do Movimento de Educação


de Base, responder a essa pergunta.

Básico é o que devolve à pessoa humana o que é


essencial para que ela seja, pense, se reconheça e
UNIUBE 159

atue como tal. [...] O Movimento de Educação de


Base procurou pautar o seu trabalho de alfabetização
no diálogo entre todos os participantes do projeto
pedagógico, na conscientização como um suposto
fundador do próprio exercício do aprendizado do ler­‑e­
‑escrever e na motivação à participação consciente
e politicamente responsável, tanto nos trabalhos
locais, comunitários, quanto em projetos amplos
de transformação de toda a sociedade brasileira.
(BRANDÃO, 2001, p. 30).

Acrescentando ao que foi dito: o Movimento de Educação de Base é


um trabalho político, que entende a educação como produção, como
criação, e não apenas transmissão de conhecimento; que se direciona à
liberdade, precondição da vida democrática; que rejeita o autoritarismo
e sustenta o diálogo, a prioridade às necessidades populares e a
participação crítica.

PARADA PARA REFLEXÃO

Você já parou para observar o que acontece na comunidade na qual você


vive? Existe algum trabalho de alfabetização em seu município? Você sabe
como ele é realizado?

Aliada a esses movimentos, existia a participação formal de setores da


sociedade por meio da Juventude Estudantil Católica (JEC), Juventude
Universitária Católica (JUC), e o movimento Juventude Operária
Católica (JOC), organizações leigas, mas vinculadas, acompanhadas e
estimuladas pela Igreja Católica. Sua atuação era política, evangelizadora
e operária no processo de educação popular.

A tudo isso os artistas faziam um coro metafórico. Thiago de Mello,


poeta comprometido com a vida do homem, declara em uma entrevista:

Sempre, desde o meu primeiro livro, fui um poeta


comprometido com vida do homem (a minha de
160 UNIUBE

permeio). Escrevo sobre o que me comove, o que


instiga a minha sensibilidade ou a minha inteligência.
O que me alegra ou me dói. Quando a ditadura militar,
com o seu terror cultural e a indignidade da tortura,
feriu a própria dignidade da condição humana, os meus
versos se ergueram em defesa do homem. (MELLO,
2009, p. 1).

Esse poeta exemplifica o grito dos artistas em reação ao golpe militar de


1964, realizado por meio do Ato Institucional nº 5 (AI-5), que propunha
deixar “o Congresso em recesso por tempo ilimitado”, e que fez calar
(diríamos melhor, deixou na penumbra, nos locais secretos e nas
metáforas) os movimentos sociais, as atividades culturais e o trabalho
de alfabetização inspirado na proposta de Paulo Freire, a maior referência
em educação popular na época e que permaneceu no exílio por muitos
anos.

SAIBA MAIS

Thiago de Mello nasceu em Bom­‑Socorro, Amazonas, quase na fronteira


do Pará, em 1926. “Não fui profetizado. Aconteci.” Estreou aos 25 anos com
o livro de poemas Silêncio e palavra. Rapidamente reconhecido, começou
a participar do círculo dos intelectuais da época, convivendo com Carlos
Drummond de Andrade e Manuel Bandeira. Adido Cultural da Embaixada do
Brasil no Chile, nos anos 60, teve longa amizade com Pablo Neruda. O golpe
de 64 no Brasil decretou seu exílio. Na via­‑crucis aérea: Argentina, Portugal,
França e Alemanha. Só em 78 voltou ao país, tendo sua obra poética,
publicada pela Civilização Brasileira e exaltada como denúncia contra a
opressão. Faz escuro mas eu canto firmou sua vocação humanista. “Não,
não tenho caminho novo./ O que tenho de novo/ é o jeito de caminhar.” Sua
obra mais polêmica é Os estatutos do homem, direitos e deveres líricos,
peça antológica que corre o mundo em sucessivas edições estrangeiras.

Fonte: <http://www.palavrarte.com/entrevistas/entrev_carpinejar_
thiagodemello.php>.
UNIUBE 161

Outro artista que se engajou na luta política contra a ditadura militar:


Chico Buarque de Hollanda. Como Vandré, Elis Regina, MPB4, Maria
Bethânia, Caetano, Gilberto Gil e tantos outros, Chico aproveitava o
espaço dos festivais de música da época e os teatros para dizer suas
mensagens, emoções e utopias. Como em Roda viva:

PESQUISANDO NA WEB

Para ler Roda viva e ouvi-la na voz de seu autor, Chico Buarque e do quarteto
vocal MPB4, acesse: <http://letras.terra.com.br/chico-buarque/45167/>.

Sobre a produção desse artista, vale enfatizar que:


[...] a composição de Chico Buarque originou­‑se em
meio ao turbilhão da instauração da ditadura militar
no Brasil. Ditadura que representava, para a cultura,
simplesmente o fim da liberdade de expressão. Um
meio muito utilizado na época (e, de um modo geral,
em períodos não democráticos, no Brasil e em outros
países) para driblar a censura foi a metáfora, o
despistamento, a linguagem figurada, a cifra. Alguns
escritores e jornalistas falavam aparentemente de flores
e rouxinóis, quando estavam se referindo à situação
político­‑social brasileira. [...] Mas esse ambiente de
tanto mal­‑estar foi filtrado por Chico Buarque com muita
cautela: era preciso despistar a censura, daí a profusão
de rodas e de versos encantatórios; era preciso dizer
a verdade, daí o tumulto e a sensação de frustração
advinda da mesma profusão de rodas. (HOLANDA,
2009, p. 1).

A linguagem poética continuou a expressar os ideais e também a


desilusão pela interrupção dos movimentos populares, assim como os
intelectuais e os homens do povo o fizeram. O retorno à democracia,
sabemos, foi nos anos 80, com eleições para os diversos cargos políticos,
após muita resistência e manifestações populares. As ideias não
morreram, tanto que em nossos dias vemos outros movimentos sociais
como os da luta pela terra, pela moradia, pelo direito dos negros, das
162 UNIUBE

mulheres, dos meninos de rua e pelo meio ambiente, dentre outros, que
inspiram novas faces para a educação popular.

SAIBA MAIS

Uma dissertação de mestrado que desenvolve essa temática da MPB como


crítica ao regime militar é a de Claudio José Bernardo. Em seu trabalho
ele mostra como a música popular brasileira teve um papel fundamental
na disseminação de mensagens contra o sistema político opressor que
vigorou no Brasil entre 1964 e 1985. No período militar, qualquer forma de
manifestação contra o regime vigente era considerada subversiva e seus
veiculadores poderiam sofrer sansões como censura, prisão, tortura, exílio.
Uma das maneiras de fugir ao rigor da censura foi por meio do uso da
linguagem metafórica. Sugerimos que busque na Internet:

BERNARDO, Claudio José. A MPB como recipiente de protestos contra


a ditadura militar: as metáforas carregadas de vozes contra o regime
autoritário. 2007. 104 f. Dissertação (Mestrado em Letras) – Instituto de
Letras, Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2007.
Disponível em: <http://www.bdtd.uerj.br/tde_arquivos/2/TDE­‑2007­‑06­
‑26T110348Z 136/Publico/Claudio%20Jose%20Bernardo%20pre%20
cap%201%202.pdf>. Acesso em: dez. 2009.

Falemos agora algo sobre movimentos sociais de nossa época. Um


deles, que sempre vemos notícias de sua atuação na mídia, é o
Movimento dos Sem­‑Terra.

SAIBA MAIS

O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem­‑Terra, também conhecido


como Movimento dos Sem­‑Terra ou MST, é fruto de uma questão agrária
que é estrutural e histórica no Brasil. Nasceu da articulação das lutas pela
terra, que foram retomadas a partir do final da década de 70, especialmente
na região Centro­‑Sul do país e, aos poucos, expandiu­‑se pelo Brasil
inteiro. O MST teve sua gestação no período de 1979 a 1984, e foi criado
formalmente no Primeiro Encontro Nacional de Trabalhadores Sem Terra,
UNIUBE 163

que se realizou de 21 a 24 de janeiro de 1984, em Cascavel, PR. Hoje o


MST está organizado em 22 estados, e segue com os mesmos objetivos
definidos neste Encontro de 1984: lutar pela terra, pela Reforma Agrária
e pela construção de uma sociedade mais justa, sem explorados nem
exploradores. (CALDART, 2009).

Como nas décadas de 60 a 80, atualmente artistas se voltam para


apoiar, com sua criação, esse Movimento. Um exemplo é o fotógrafo
Sebastião Salgado, que fotografou integrantes do MST e publicou um
livro a respeito, Terra (1997).

SAIBA MAIS

Sebastião Salgado é considerado por muitos o melhor fotógrafo documental


da atualidade. As legendas, de autoria do próprio autor, tecem a narrativa
verbal do drama dos despossuídos e migrantes no Brasil e da luta pela
terra, nas suas diversas etapas. O fio da narrativa visual e verbal se
entrelaça também à cadeia sonora de quatro músicas e respectivas letras,
relacionadas à questão da terra do Brasil, de autoria do mais destacado
compositor brasileiro, Chico Buarque de Hollanda. O prefácio ao livro é
de autoria de José Saramago, o primeiro escritor em língua portuguesa a
receber o Prêmio Nobel de Literatura. O livro é dedicado aos milhares de
famílias sem­‑terra no Brasil, cuja situação Salgado documentou em 1996. A
exposição Terra, igualmente resultante desse trabalho, teve lugar em 1997
em 40 países e em mais de 100 cidades brasileiras. Fonte: <http://www.
landless­‑voices.org/vieira/archive­‑04.phtml?sc=3&ng=p&se=0&th=55>.

O fotógrafo diz no prólogo de seu livro:

[...] os deserdados da terra alimentam a esperança


de melhores dias e uma coisa é certa: não querem
mais fugir para as cidades, que já não podem mais
absorvê­‑los, dar­‑lhes trabalho e condições dignas de
vida. Preferem, pois, resguardando­‑se das ameaças
da deliquência e da prostituição dos grandes centros
urbanos, permanecer nos acampamentos à margem
164 UNIUBE

das estradas e esperar pela oportunidade de ocupar


a terra tão sonhada, mesmo correndo risco de vida.
Seus projetos são idênticos: lavrar um pedaço de terra
finalmente seu, construir uma casa para a família,
assegurar o sustento desta e, por meio da cooperativa
a ser criada, comercializar os excedentes de sua
produção agrícola, garantindo a manutenção de escola
para os filhos. É esse, em síntese, o sonho comum dos
sem­‑terra. (SALGADO, 1997, p. 2).

Outros artistas unem­‑se a Salgado nessa obra: Chico Buarque e José


Saramago (escritor português).

PARADA PARA REFLEXÃO

Você diria que se repete um fato histórico de envolvimento dos artistas


nas lutas populares?

Analise os movimentos sociais da atualidade (dos professores, dos sem


teto, e outros que a mídia sempre noticia) e observe se há o envolvimento
de artistas, de intelectuais, de trabalhadores como há décadas passadas.

O que fazer com o povo? Como trabalhar com ele e para ele? Parecem
ser questões presentes nas mentes dos artistas. Há pintores, poetas,
atores, grafiteiros, desenhistas daqui e de outros países que procuram
comunicar­‑se por meio de sua arte com e para o povo que vive às beiras
da sociedade.

EXEMPLIFICANDO!

Na pintura do Brasil sobressai­‑se a figura de Candido Portinari, talvez porque


ele sabia, como nenhum outro pintor de seu país, transladar o pranto e a
dor de sua gente para suas telas. Essa proximidade e comunicação fizeram
com que os brasileiros se entusiasmassem, identificando­‑se imediatamente
com essas imagens simples e poderosas do homem camponês. Portinari
nunca se afastou do coração do seu povo, das crianças, dos marginalizados.
UNIUBE 165

Propôs uma pintura que expressava o sentimento coletivo, a angústia


existencial e as alegrias do homem comum. Portinari pintou seus temas
humanos e sociais de uma maneira resoluta, sem medos ou restrições,
em um ambiente onde a violência muitas vezes definia os parâmetros de
convivência, e a própria existência. Candido Portinari está entre os grandes
artistas da América Latina e do mundo (Fernando Ureña Rib – Tradução
livre da autora).

Veja suas obras em:

PROJETO PORTINARI. Acervo das obras de Candido Portinari


(1903­‑1962). Disponível em: <http://www.portinari.org.br/ppsite/ppacervo/
obra.asp?contexto=obra>. Acesso em: dez. 2009.

Outro exemplo é o arquiteto Oscar Niemeyer. Com 102 anos de idade,


completados em 2010, do Rio de Janeiro ele projetou obras de rara
beleza. Reconhecido no mundo inteiro, teve seu nome popularizado na
criação de Brasília, ao lado do urbanista Lúcio Costa. É de Niemeyer uma
escultura em homenagem aos sem terra.

PESQUISANDO NA WEB

Sugerimos que visite os sites:

• <http://commons.wikimedia.org/wiki/file:MonumentoMST.jpg> para ver a


imagem do monumento erigido em homenagem aos trabalhadores do
movimento dos sem terra;
• <http://www.niemeyer.org.br/main.html> sobre a obra e a vida de Oscar
Niemeyer;
• <html?rd=POORWORK855&ng=p&sc=3&th=55&cd=&se=0> sobre
Sebastião Salgado.

Acompanhe, a seguir, algumas reflexões sobre educação popular, seus


sentidos e significados.
166 UNIUBE

4.2 Educação popular

A educação popular geralmente é entendida como aquela realizada nos


anos 1960, interligada aos movimentos sociais e de cultura da época. A
grande referência era (é) Paulo Freire. No entanto, ousemos imaginar
uma educação popular anterior aos acontecimentos políticos, sociais,
artísticos e educacionais desses anos.

Os momentos que identificamos um projeto cultural que apresenta um


rosto identitário de educação popular são:

1. As escolas de e para trabalhadores, criadas ao redor das fábricas


em São Paulo, Rio Grande do Sul e Rio de Janeiro, destinadas a
operários adultos e filhos de operários. Isso no final do século XIX e
início do século XX. O saber que se ensinava tinha uma forte feição
ideológica, isto é, transmitiam também as ideias de uma criação
cultural operária de luta política.
2. A partir dos anos 1920, identificamos o segundo momento. Nele
iniciou­‑se a luta pela escola pública, gratuita e laica. Nesse sentido,
buscou­‑se a quebra da hegemonia, isto é, da predominância das
escolas confessionais católicas.
3. Os anos 1960 originaram o terceiro tempo da educação popular, com
Paulo Freire e os movimentos de cultura popular. Havia uma crítica à
educação que não abarcava adultos do campo e da cidade que não
foram atendidos pela escola quando crianças. Dirigiu­‑se, portanto, às
classes populares. Concomitantemente, fazia­‑se uma crítica social
da cultura. Um novo saber foi traduzido em uma cultura popular,
cujas ações tornavam as classes subalternas conscientes de sua
situação de dominadas pela classe abastada, mas igualmente
consciente de alternativas políticas de sua libertação. Paulo Freire,
Osmar Fávero, Miguel Arroyo e eu, Carlos Brandão, somos alguns
dos intelectuais que se somaram na prática de uma educação
libertadora, de uma ação cultural para a liberdade.
4. No quarto momento, entre os anos 1970 e 1980, houve uma
intensa associação entre a educação popular e os movimentos
sociais populares. Outras áreas são abraçadas com uma vocação
UNIUBE 167

popular: pastoral popular, educação popular na área de saúde,


ações ambientalistas, movimentos de gênero (dos homossexuais, de
violência contra a mulher), de etnia (consciência negra), de direitos
humanos (do idoso, da criança), dentre outros. Viu­‑se, do mesmo
modo, a proposta de uma educação pública das administrações
populares dos governos municipais e estaduais.

Hoje, o ideário de uma educação popular continua vigente: em trabalhos


de Educação de Jovens e Adultos (EJA), em formação de educadores
ambientais, em alguns sindicatos, no Movimento dos Trabalhadores
Rurais Sem­‑Terra, em movimentos pastorais, em várias universidades
públicas, em grupos sociais de trabalhadores e em escolas municipais
e estaduais.

PARADA PARA REFLEXÃO

Nós nos esquecemos de alguma outra forma de educação popular?


Alguma que talvez você conheça e/ou e participe?

SINTETIZANDO...

Ao longo de nossa história surgiram vários trabalhos de educação,


tendo em comum o desejo de contribuir para uma sociedade mais
justa e democrática, e voltados para mulheres e homens, jovens e
adultos e, no limite, idosos das classes populares. A partir dos anos
1970 a expressão educação popular passou a ser a mais usada. Há
duas concepções: a primeira defende uma educação popular voltada
para algum tipo de transformação sócia. Esta se origina nos anos
1960, aliada aos movimentos de cultura popular. De outro lado, está
aqueles que propõem uma educação popular como instrumento cultural
destinado a elevar de maneira justa a qualidade de vida das pessoas e
das famílias excluídas, oferecendo um tipo de educação que instaure
o pleno exercício da cidadania.
168 UNIUBE

Gostaríamos de saber agora: você está gostando de nosso diálogo? Há


muitas novidades no texto?

É importante que você dirija seu olhar para outros cenários, além
de seus livros. A sugestão de ouvir músicas, ler poemas e peças de
teatro das décadas de 1960 e 1970 poderá ampliar sua compreensão.
Assim, você envolverá sua emoção, sua sensibilidade nesse processo
de construção de um conhecimento.

Vamos agora conversar sobre o sentido das interações cultura e


educação.

4.3 Educação como cultura, educação e cultura

Imagine um suplemento cultural de um jornal com vários artigos sobre


um mesmo tema. Alguns são mais longos, outros breves, mas todos em
torno da mesma questão: educação como cultura, cultura e educação.
Assim também estamos construindo este diálogo com você em que tudo
refere­‑se a essa questão.

Vejamos uma reflexão a partir de um filme de Walt Disney.

4.3.1 Aprendizes de feiticeiros?

Nos mundos sociais que criamos e vivemos, na trama dos símbolos e dos
significados que criamos e recriamos atribuindo sentido a tudo e a todos
e fora da qual é humanamente impossível viver, tudo se parece bastante
com O aprendiz de feiticeiro – uma lenda poetizada por Johan Wolfgang
Von Goethe, transformada em concerto pelo francês Paul Dukas e que
se tornou muito conhecida depois de adaptada em um filme infantil,
produzido pelo estúdio Walt Disney Pictures.
UNIUBE 169

Um jovem é aprendiz de um bruxo, um feiticeiro experiente. Em troca


dos segredos que aprende, o jovem trabalha duro na casa do mestre.
Um belo dia, o feiticeiro ordena ao aprendiz que lave e limpe todo o chão
da casa. Depois ele sai. O jovem fica e começa o trabalho, pois deve
ter tudo lavado antes do retorno do mestre. Ele havia antes visto como
o mestre, com palavras de sortilégio, ordenava às suas vassouras que
ganhassem vida e que tomassem baldes e os enchessem com a água
de um poço. Ah! Então, mágica, a matéria da natureza transformada pelo
homem trabalha para ele próprio além das funções para as quais fora
inicialmente criada.

PESQUISANDO NA WEB

Você encontrará mais informações sobre o filme Fantasia, da Walt Disney,


no site: <http://www.animatoons.com.br/movie/fantasia/>.
O aprendiz de feiticeiro é um dos oitos segmentos animados de Fantasia.

PARADA PARA REFLEXÃO

Por que não fazer a mesma coisa, ele mesmo? Acaso não aprendera e sabia
de cor as palavras mágicas?

E ele assim faz. E então vassouras e baldes trabalham por ele. Mas
depois de algum tempo, eis que todo o chão foi lavado e está limpo.
Melhor, está encharcado, pois as vassouras não cessam de encher
baldes com a água do poço e de jogar a água pelo chão. E o jovem tenta
em vão fazer parar o feitiço, pois aos poucos a casa se inunda e tudo está
fora de controle. Ele grita ordens, tenta lembrar palavras e se desespera,
pois havia aprendido bem a fórmula mágica do começo, mas não ouvira
do mestre as palavras de autorização para que tudo cessasse. O mestre
chega a tempo, põe ordem na casa e repreende o jovem aprendiz: – Se
você não sabe como concluir uma magia, é melhor não fazê­‑la começar.
170 UNIUBE

IMPORTANTE!

Nós, seres humanos, ousamos começar. A cultura, sobretudo em suas


relações com a educação, talvez não seja mais do que as palavras que
pronunciamos um dia para fazer com que nós próprios e a natureza de
quem somos parte se transformassem no que acabaram sendo os mundos
de coisas, de gestos, de trabalhos e de ritos, de alianças e de conflitos, de
símbolos e de significados em que vivemos, fora dos quais não podemos
existir, e a respeito dos quais sabemos tanto e tão pouco.

A relação entre homem e cultura pode muito bem ser representada pela
história do aprendiz de feiticeiro. Os poderosos baldes, magicamente
surgidos do nada graças ao fiat do homem, adquirem movimento próprio
e independente. E a partir desse movimento continuam a transportar água
de acordo com a lógica imanente do seu próprio ser, até que, finalmente,
só com muita dificuldade, seu próprio criador poderá controlá­‑los até certo
ponto. Como nos conta essa história, também é possível que o homem
encontre, afinal, um poder mágico adicional que lhe permita colocar
de novo sob seu controle as vastas forças que desencadeou sobre a
realidade. Esse poder, entretanto, não seria igual ao que primeiramente
colocou as forças em movimento. E, é lógico, pode, além disso, acontecer
que o próprio homem se afogue na inundação que ele mesmo provocou.

A cultura, relacionada com as mais diversas e convergentes esferas da


realidade humana, e estando vinculada tanto ao orgânico que nos liga de
maneira definitivamente à vida e à natureza, quanto a todos os cenários
e a todos os momentos da vida social, sempre essa cultura aparece
aos seus próprios criadores e seres originais, como algo para além
deles mesmos, isto é, para além de nós próprios. Alguma coisa múltipla,
diferenciada e tão dificilmente decifrável, que parece mesmo uma criação
autônoma que, ao mesmo tempo, nos envolve e vai além de nós.
UNIUBE 171

4.3.2 Feiticeiros de aprendizes?

Se a cultura é o que ela parece ser, então tudo o que é humano é “ela”
e “nela” deságua. Assim pensando, todas as ciências não propriamente
“exatas” e “naturais” entre a astronomia e a biologia deveriam ser alguma
espécie de antropologia. No entanto, de uma maneira afortunada,
convenhamos, nem toda a ciência do humano é antropologia e nem
tudo o que é humano cabe dentro da ideia de cultura, tal como os
antropólogos a investigam e, até hoje, com cuidado, procuram descrevê­
‑la, compreendê­‑la, interpretá­‑la. Pois, tanto na história dos cientistas, em
outros campos do conhecimento humano, quanto no dia a dia do senso
comum, o sentido atribuível à cultura é sempre múltiplo e até mesmo,
algumas vezes, contraditório.

PARADA PARA REFLEXÃO

Vamos ver se estamos sendo claros em nossa reflexão. Procure explicar:


por que as culturas são múltiplas?

As culturas são múltiplas. Foram e são inúmeras nos tempos da história e


nos espaços da geografia humana. Somos a única espécie que, munida
de um mesmo conjunto biopsicológico, ao invés de produzir um único
modo de vida, ou modos de ser muito semelhantes, geramos quase
incontáveis formas de ser e de viver, como tipos de culturas.

EXEMPLIFICANDO!

Falando em “múltiplas culturas”, você assistiu ao filme Dança com Lobos?


Se não viu ainda, nós lhe sugerimos assisti­‑lo. Um oficial da Guerra Civil
americana (Kevin Costner), que é considerado um herói, resolve se afastar
da civilização, indo morar em terras indígenas. Lá o contato que passa a
ter com a natureza e com os índios muda seus conceitos sobre a vida e a
compreensão de outras culturas. O filme foi vencedor de sete Oscars.
172 UNIUBE

Qualquer um de nós que faça por conta própria um levantamento


de escritos sobre a educação, aqui no Brasil ou em qualquer parte,
descobrirá, sem muito custo, que a palavra cultura aparecerá aqui e
ali. No entanto, será rara na maioria dos textos e poderá ser mesmo
inexistente em vários deles. E dos melhores. Mais rara ainda, quase
preciosa, será a citação de livros ou de artigos escritos por antropólogos.

Na verdade, entre escritos antigos e mais recentes, a bibliografia que se


refere a alguns campos convergentes com a educação é fecunda em
estudos de filosofia e, mais ainda, de filosofia da educação. É também
copiosa em vários ramos da psicologia, como o “da personalidade”
e o “da aprendizagem”. Alguns textos se apresentarão mesmo como
escritos de uma psicologia da educação. Da mesma maneira, outros
estão “falando” de uma sociologia da educação, ou de outra dimensão,
vertente ou teoria sociológica cujo proveito para o pensar a educação
poderá ser depressa reconhecido. Vale o mesmo para as familiaridades
entre a história e a educação, nas múltiplas “histórias de educações”,
mas também nos aprendizados que a educação realiza quando põe um
sentido de história no seu próprio pensar.

Entre as suas teorias e a prática da pesquisa de campo, a antropologia


saiu pela porta dos fundos dos cenários onde acontecem a história
social e o cotidiano das trocas de afetos e de saberes, de símbolos e de
significados, de poderes, de conflitos e de alianças, de frustrações e de
resultados do encontro entre pessoas culturalmente situadas de um lado
ou do outro do trabalho de ensinar e aprender, ou seja, da educação.

Por isso resulta estranha esta vizinhança tão distanciada entre a


educação e a antropologia. Uma antropologia que, para não cair no vago
óbvio de ser considerada uma “ciência do homem” (e as outras, o que
são?), preferiu ser identificada como uma “ciência da cultura”.
UNIUBE 173

Mas ainda aqui deve haver lugar para uma pergunta: há algo
propriamente da experiência humana que não seja cultura?

Tal como acontece em outros círculos de vida da experiência humana,


e da mesma maneira como se passa em tantas outras esferas do que
nos acostumamos a chamar de “vida social”, tudo o que existe em
um campo próprio, mas inteiramente interconectado com outros, de
intercomunicações entre pessoas, de interações entre seres humanos
revestidos de iguais ou de diferentes identidades sociais, a que damos o
nome genérico de educação, existe e acontece dentro da, por meio da e
como uma realização da cultura.

Pois entre: “estruturas e processos”, “teorias de”, “políticas”,


“metodologias”, “estatutos e regimentos”, “didáticas” e “técnicas de
ensino­‑aprendizagem”, estamos sempre convivendo com interações
entre pessoas e pessoas; entre pessoas e grupos de pessoas; entre
grupos humanos e outros grupos humanos (de duas equipes de futebol
no recreio a duas equipes de trabalho em uma reunião de professores
ou em um trabalho de alunos em sala de aula); entre categorias dos
sentidos e dos significados culturalmente atribuídos por nós mesmos a
nós mesmos, a respeito de quem somos ao que “significamos” uns diante
dos outros, uns com os outros, uns contra os outros e assim por diante,
infinitamente.

PARADA PARA REFLEXÃO

Se estamos sempre convivendo com interações entre pessoas e pessoas;


entre pessoas e grupos de pessoas; entre grupos humanos e outros grupos
humanos, então podemos afirmar que toda educação acontece em uma,
por meio da e como cultura?
174 UNIUBE

4.3.3 A pedagogia escolar

A pedagogia escolar é um feixe da maior importância em todo este fluxo


de intercomunicações entre a vida – de seu plano mais biológico ao mais
social – e será preciso partir do princípio de que ela não é a única e de
que a escola é apenas um entre os muitos cenários de realização
da vida como conhecimento. Por outro lado, a pedagogia escolar não
deve abrir mão do crescente de seu lugar em uma sociedade aprendente.
Ela deixa de ser algo episódico e algo destinado a um sempre “aprender
para” e se torna uma inevitável e nuclear instância em si mesma. Cada
vez mais aprender terá em si o seu valor e o seu sentido.

Assim também, cada vez mais, a educação deverá deixar de ser


instrumentalizada, para servir ao trabalho, por exemplo, ou ao mercado
de bens e serviços, o que é bem pior ainda, para vir a ser uma das
razões essenciais pelas quais vivemos cada momento de nossas vidas.
Em uma sociedade aprendente – a que irá substituir, não esquecer, a
sociedade do trabalho, pela educação e, de maneira especial, pela escola
– irão passar os elos e feixes de uma múltipla atividade de enlaces e de
criações relacionadas ao conhecimento e ao aprender­‑a­‑conhecer.

PARADA PARA REFLEXÃO

Se a escola é apenas um entre os muitos cenários de realização da


vida como conhecimento, quais são os outros ambientes, os outros
círculos de cultura onde a educação se realiza?
Vamos colaborar com um exemplo: assistindo um jogo de vôlei, aprendemos
o valor de uma atividade compartilhada, solidária, de trocas, de uma vida
em grupo.
Em quais outros cenários você identifica que a educação se realiza?

A educação tem um papel determinante na criação da sensibilidade


social necessária para reorientar a humanidade. Cabe à educação:
UNIUBE 175

interagir o potencial inovador do conhecimento com a própria essência


da vida. Aprender é um processo sem fim. A ideia de que “saber não
ocupa lugar” precisa ser repensada em sua máxima abrangência.
A possibilidade de saber em cada um de nós é ilimitada. O aprender
é um processo criativo, ativo e inovador que se auto­‑organiza. Isto
é, aprender e saber estão destinados a integrar diferentes tempos
e distintos modos de conhecimentos, de saberes, adquiridos e
vivenciados em diversos momentos de nossa vida, e não a acumular
novos conhecimentos. Aprender algo significa saber organizar em uma
esfera cada vez um pouco mais complexa o todo e as partes de todo
o conhecimento vivenciado. O saber cria a sua ordem em cada um de
nós e o conhecimento cria a ordem das relações entre nós. Somos o
conhecimento que aprendemos a integrar de maneira significativa, e não
o que sabemos.

PARADA PARA REFLEXÃO

Aprender algo significa saber relacionar diferentes conhecimentos


adquiridos e vivenciados. Aprender e saber não significam acumular novos
conhecimentos. Você concorda com isso?

Para prosseguir a sua vida e para desenvolvê­‑la, isto é, para realizá­


‑la em níveis qualitativos de integração crescente, todo o sistema vivo
necessita estar continuamente conhecendo algo novo a respeito de seu
entorno, necessita estar em busca da aquisição de novos conhecimentos.
E a integração de novos conhecimentos nos eixos e feixes de saberes
adquiridos em momentos anteriores são processos inevitáveis e essenciais
para a sobrevivência e contínuo equilíbrio de qualquer ser vivo.

Tomada no seu todo e em sua compreensão mais ampla, mais aberta a


uma visão globalizante, a aprendizagem não é, já vimos, um processo
gradativo de aquisição e de acumulação de conhecimento. Ela não é,
desde um ponto de vista neuropsicológico, um processo de reforço de
memória, de capacidade operatória especialmente dirigida a um plano ou
176 UNIUBE

outro do saber. A cada momento da vida a aprendizagem tem a ver com


transformações qualitativas de todo o sistema que constitui um organismo
vivo. Assim, quase se pode dizer que, ao aprender, se sabe “de outra
maneira”, não se “sabe mais”.

Eis uma situação que vivenciamos a todo o momento: um aumento


exterior de quantidade (de saber, de conhecimento, de habilidades,
de integração entre uma coisa e outra) resulta de imediato em uma
transformação da qualidade do todo. Quando uma criança aprende algo
significativo que não conhecia antes, ela não aprendeu apenas “aquilo”.
Através “daquilo” ela alterou de algum modo todo o seu sistema cognitivo.
Isto pode significar que ela modificou qualitativamente a sua vida.

PARADA PARA REFLEXÃO

Todo ser humano precisa estar continuamente conhecendo o que se passa


ao seu redor, no meio cultural em que ele vive e que não é só a escola.
Seus círculos de cultura são todos os grupos sociais que ele frequenta: são
a família, os vizinhos, os colegas de passeio e de brincadeira, o grupo da
igreja, a torcida de seu time. Com tudo e todos, nós, pessoas, precisamos
interagir para conhecer. E com a natureza, você acredita que também
precisamos interagir?

Uma boa metáfora do aprender e do pensar como fluxos, como


movimentos, como processos constantes, seria a de uma bela sinfonia.
Quando ouvimos uma sinfonia do compositor alemão Ludwig van
Beethoven (1770-1827), a menos que sejamos um especialista no
assunto, a quem interessa a análise acurada de cada parte, de cada
fração da música, o que desejamos escutar é o movimento do fio
melódico. Por bela que seja, por evocativa que seja para nós uma de
suas passagens, não devemos reter a música para repetir a passagem
bela, já ouvida. Ela só faz um “sentido de beleza musical” no interior
do todo de toda a sinfonia, em seus três movimentos (Beethoven tem
algumas sinfonias com quatro e até com cinco movimentos).
UNIUBE 177

SAIBA MAIS

Para saber quem é Beethoven, nada se iguala a ouvir uma de suas


sinfonias. Você poderá ouvi­‑las através de vários sites. Um deles é:
<http://www.youtube.com/watch?v=YAOTCtW9v0M&feature=related>.

Retida em uma passagem (como quando o disco “enguiça” e segue


adiante), a melodia da sinfonia se perde, fica “sem graça”, fica irritante,
fica inteligível como uma frase musical dentro do todo. O sentido da
beleza da sinfonia não está, isolado, em nenhum de seus momentos
em si mesmo. Está na intercomunicação sequencial de cada um deles
nos outros. Depois de ouvir a sinfonia completa ou, pelo menos, um dos
seus movimentos inteiros, podemos nos dispor a ouvir tudo de novo. Mas
será então a mesma sinfonia? Acaso ouvimos, vemos ou pensamos o
mesmo, exatamente da mesma maneira, duas vezes? Ao buscar uma
metáfora para o transitório de tudo, lembramos o fragmento do filósofo da
Grécia antiga Heráclito: “para os que entrarem nos mesmos rios, outras
e outras são as águas que por eles correm...”, o que significa pánta reî,
isto é, tudo flui, tudo passa, tudo é devir (HERÁCLITO apud KIRK et
al., 1994, p. 202).

Todas as vezes que ouvimos música, nós não nos apoderamos de um


determinado acorde ou de um determinado verso e pedimos para a
orquestra continuar tocando­‑o o resto da noite. Ao contrário, por mais que
possamos gostar daquele momento musical em especial, sabemos que
sua perpetuação interromperia e mataria a continuidade da melodia. Nós
compreendemos que a beleza de uma sinfonia não está nestes momentos
musicais, senão no movimento completo do começo ao fim.

A seguir, vamos conversar um pouco mais sobre a questão da cultura.


178 UNIUBE

4.4 Pessoa e cultura

Não somos intrusos ou apenas uma fração da natureza rebelde a ela.


Somos a própria múltipla e infinita experiência da natureza realizada
como uma forma especial de vida: a vida humana.

Da mesma maneira como boa parte dos animais, somos corpos dotados
da capacidade de reagir ao seu ambiente. De se locomoverem nele em
função de mensagens que captam dele por meio dos sentidos e de atos
por meio dos quais deixam a sua marca momentânea em seu mundo.
Um colibri faz isto. Nós também. Mas, entre todos os outros animais e
nós, existe uma diferença essencial. Com uma enorme variedade de
vivências disto, em todos eles existem formas de uma consciência reflexa
da relação entre o ser vivo e o seu mundo. Eles sentem, eles percebem,
eles lembram, eles sabem, eles agem. Nós também. E nós nos sentimos
sentindo, como alguns deles também. Mas nós nos pensamos sabendo,
e nos sabemos pensando. E sabemos que sentimos e nos sentimos
tomados desta ou daquela emoção, porque aprendemos a nos saber
sabendo. Passamos, assim, da consciência reflexa que compartilhamos
com outros seres da vida, à consciência reflexiva, que acrescenta um
“me” e um “mim” a um “eu”, e que é em nós o sinal eterno do sopro do
amor de Deus.

Um pássaro voa com um par de asas. Nós, com o inacabável das


nossas ideias. No momento exato da morte, a ave fecha os olhos, sente
o coração parar de bater, cai do galho e volta à terra. Nós, humanos,
nos cercamos de ritos e de símbolos. Lembramos uma vez ainda a
vida vivida, falamos a nós mesmos, aos nossos e a Deus, dizemos
despedidas e preces. Somos uma consciência que pensa e se pensa,
somos a aventura, a glória e o terror de termos de viver dentro de três
tempos: o passado, o presente e o futuro, enquanto tudo o que vive à
nossa volta contenta­‑se em viver um só. Um presente momentâneo e
fugaz, vivido como se fosse sem fim.
UNIUBE 179

SINTETIZANDO...

A diferença apontada entre nós, pessoas, e os animais é que somos livres,


somos conscientes do que fazemos e somos, e temos consciência disso.

Observe, a seguir, outra diferença importante.

Dentre toda a imensa variedade de seres da teia da vida, somos


a única espécie que, ao invés de transformar­‑se fisicamente para
adaptar­‑se ao mundo natural, começou a transformá­‑lo de maneira
intencional, para adaptá­‑lo a nós. Castores fazem diques na água.
Formigas constroem cidades debaixo da terra e abelhas realizam, há
muitos milhões de anos, verdadeiros prodígios de arquitetura. Mas, em
todos estes animais e em outros, o “fazer” não é um “criar”. Ele é uma
extensão instintiva das leis de comportamento da espécie impressas
no corpo de cada ser dela. Quando os primeiros seres de quem
descendemos viviam a esmo, na beira dos riachos, já os pássaros
eram construtores de sábios ninhos. Mas hoje os seus seguidores
fazem, da mesma maneira, os mesmos ninhos. Nós inventamos sobre
todos os quadrantes da Terra uma variedade enorme de habitações e
ensaiamos no espaço sem ar e sem gravidade as primeiras moradias
fora da Terra.

IMPORTANTE!

Podemos dar a essa diferença – de que somos a única espécie que


transforma o mundo de maneira intencional – o nome de cultura.

A natureza é o mundo de quem somos e o mundo em que nos é dado


viver. A cultura é todo o mundo que transformamos da natureza, em nós e
para nós. Quando Deus disse “habitai a Terra”, os homens responderam
transformando os seus mundos e a si mesmos. Criando formas de não
apenas colher das árvores e pescar dos rios, mas de lavrar a terra e dar
180 UNIUBE

aos seus frutos, e aos dos rios, nomes. Nomes, símbolos, sentidos e
significados. Pois, para a ave que pousa num galho a árvore é a sombra,
o abrigo e o fruto. Para nós, seres da natureza habitantes da cultura, ela
é tudo isso e é bem mais. É um nome, uma lembrança, uma tecnologia
de cultivo e de aproveitamento. É uma imagem carregada de afetos, o
objeto da tela de um pintor, um poema, uma possível morada de um deus
ou, quem sabe, uma divindade que por um instante divide com um povo
indígena uma fração de seu mundo.

Assim, de duas maneiras podemos entender a criação da cultura pelos


seres humanos.

1. Em uma direção, a cultura representa o processo do trabalho e os


produtos do trabalho, na transformação da natureza dada em um
mundo intencionalmente criado. Trabalho, ciências, tecnologias,
das mais arcaicas às mais atuais, das que praticam as nossas
sociedades indígenas até as criadas mais recentemente pela
empresa capitalista, eis aqui processos e produtos da cultura
humana em contínua interação. A casa construída em qualquer
lugar é um produto do trabalho humano de criar cultura através de
processos culturais que envolvem as mais diferentes tecnologias de
relações com forças, energias e matérias da natureza, fundadas em
princípios de conhecimentos de diferentes ciências. Isto vale para
uma aldeia indígena da Amazônia tanto quanto para uma grande
cidade da Europa.
2. Em uma outra direção, o mais importante trabalho da cultura
é aquele que os seres humanos realizam sobre eles mesmos.
Pois somos a única espécie que transcendeu o domínio das leis
biológicas impressas geneticamente sobre cada um e todos os
participantes de um grupo de seres vivos para criar um mundo de
relacionamentos fundado sobre regras sociais. Somos uma espécie
única de criadores de regras, de códigos de conduta, de gramáticas
de relacionamentos e de contos, cantos, mitos, poemas, ideias,
ideologias, éticas e religiões com o que continuamente estamos
nos dizendo quem somos e quem não somos. Quem são os outros.
Como cada categoria de indivíduo natural, como o macho e a fêmea,
UNIUBE 181

transformados culturalmente em categorias de sujeitos sociais


(homem e mulher, marido e esposa, mãe e filha, jovem e ancião,
nativo e estrangeiro), devem se relacionar.

PARADA PARA REFLEXÃO

Reflita sobre essas duas maneiras de entender a criação da cultura.


Converse com outras pessoas sobre isso. Troque ideias.

A cultura é e está, assim, tanto nos atos e nos fatos por meio dos quais
nos apropriamos do mundo natural e o transformamos em um mundo
humano, quanto nos gestos e nos feitos com que nos criamos a nós
próprios, ao passarmos – em cada indivíduo, em um grupo humano ou
em toda a nossa espécie – de organismos biológicos a sujeitos sociais,
ao criarmos socialmente os nossos próprios mundos e ao dotá­‑los e a
nós próprios – nossos diversos seres, nossas múltiplas vidas e nossos
infinitos destinos – de algum sentido.

Eis por que, em termos bastante atuais, falamos que a cultura está
mais no quê e no como. Nós nos dizemos palavras, ideias, símbolos e
significados entre nós, para nós e a nosso respeito, do que no que nós
fazemos em nosso mundo, ao nos organizarmos socialmente para viver
nele e transformá­‑lo.

Somos uma espécie única que, ao longo de toda a história da humanidade


e também em cada pequenino momento da vida cotidiana, estamos a
todo o tempo criando e recriando as teias e as tramas de símbolos e de
significados com o quê, para muito além dos simples atos dos trabalhos
da sobrevivência biológica, buscamos respostas às nossas perguntas,
estabelecemos sentidos para as nossas vidas, consagramos princípios
para a nossa múltipla convivência e nos impomos códigos e gramáticas
de preceitos e regras para podermos viver no único mundo que nos é
possível: uma sociedade humana e as suas várias culturas.
182 UNIUBE

Foram e são inúmeras nos tempos da história e nos espaços da geografia


humana. Pois somos a única espécie que, munida de um mesmo aparato
biopsicológico, ao invés de produzir um único modo de vida, ou modos
de ser muito semelhantes, geramos quase incontáveis formas de ser e
de viver, como tipos de culturas.

RELEMBRANDO

Já falamos anteriormente, neste capítulo, no início do item “Feiticeiros de


aprendizes?”, que as culturas são múltiplas. Observe que aqui aprofundamos
um pouco mais esse conceito de multiplicidade.

Mas o que é, em síntese, “aquilo” que tornou possível saltarmos do


mundo da natureza­‑de­‑que­‑somos – e da qual afortunadamente nunca
saímos – para os mundos da cultura que criamos?

A resposta deve ser procurada dentro da mente humana, na passagem


da consciência reflexa (saber algo) para a consciência reflexiva (saber
algo sabendo que se sabe, saber algo sabendo que se sabe e sentindo
algo que se sabe por saber que se sabe algo e que se sabe que se sabe
infinitamente). É o movimento do homem para si mesmo, para o seu
pensamento, corpo, emoções, sentimentos.

A resposta deve ser procurada, no diálogo entre nós, ali, no momento e


no lugar onde saltamos do sinal (a fumaça do fogo) para o signo (como
a dança das abelhas) e, finalmente, para além do que nos identifica com
o ser­‑da­‑vida entre os animais, do signo ao símbolo (como a palavra
“dança”, seguida da palavra “abelha”, ou como “a dança das abelhas”,
ou ainda, como www, que a cada dia que dizer tantas coisas entre nós.

O símbolo transforma arrulhos e gemidos, sinais de desejo e de amor,


em atos­‑como­‑gestos, como as palavras trocadas entre dois amantes.
Mas também como toda a gramática de possibilidade e de interdições
UNIUBE 183

que eles devem realizar por viverem o seu amor tanto entre os seus
corpos naturais (como as abelhas, como os sabiás), quanto em cenários
humanos: culturas. Por isso, enquanto entre os macacos existem machos
e fêmeas, entre nós, criamos noivas e maridos, namoradas e amantes,
filhos e sogras, “compadres” e padrinhos.

PARADA PARA REFLEXÃO

Somos seres humanos capazes de criar símbolos. Por isso criamos


cultura.

Observe o mundo em que você vive. Pense em outros exemplos de


símbolos criados por você, pelo grupo que você interage, pela sociedade
em que você vive.

Ao criarmos símbolos, ao criarmos cultura, ao integrarmos saberes,


estamos nos referindo a um trabalho da razão, mas, do mesmo modo,
nos referimos à imaginação criadora.

A seguir, um pouco mais sobre isso.

PONTO-CHAVE

A imaginação
Aprender é integrar novos dados, novos fatos, novas sensibilidades, novos
saberes. E integrá­‑los em um todo interior que se enriquece a cada novo
saber, na mesma medida em que se reintegra e se reequilibra em uma
dimensão mais densa e complexa, a cada conhecimento significativo.
A imaginação (aquilo que antes até se proibia, e ainda hoje mal se tolera
em algumas escolas) quer sempre ir além dela mesma. Se o saber da
ciência empírica e o conhecimento racional não desejam conhecer limites,
a imaginação em absoluto não os tolera. Ela é como um voo de pássaro,
que, uma vez iniciado desde um ponto único num galho de árvore, pode
tomar qualquer direção, mesmo que não possa ir a todos de uma vez. Ela é,
em cada um de nós, a criança ainda não saída da “idade dos porquês”. Ao
184 UNIUBE

lado do pensamento crítico que busca a precisão e a verdade, a imaginação


abre mão de ser justamente isto: precisa, isto é: limitada.
Se essa ausência de limites vale para o pensamento que pensa
racionalmente o real, como o da Matemática, valerá mais ainda quando
ousarmos considerar a imaginação humana como uma forma fértil e
criativamente imprevisível e confiável de pensamento.

E para que serve a imaginação?

Não sendo um aparelho interior de pesquisa objetiva destinado a criar


ideias “reais” sobre a realidade, ela em nada serve para dizer como as
coisas são. Serve para sugerir como poderiam ser, ou como serão, se
vistas, sonhadas e “imaginadas” de outras maneiras não convencionais.
Sendo o “outro lado” da inteligência que pensa o racionalmente objetivo,
a imaginação não serve para contar as coisas. Ela é um convite a cantar
a vida interior de cada coisa e as interioridades das relações imagináveis
realizadas entre elas.

SAIBA MAIS

Imaginação e razão, para [o professor e filósofo


francês] Gaston Bachelard (1884­‑1962), constituem
o pensamento filosófico­‑científico e poético em
sua tencionalidade dinâmica. E se a via racional
propõe uma cisão entre as ideias, os conceitos e
o imaginário, pela via onírica eles se tangem, se
unem mutuamente, não são sobrepostos, mas
complementares em suas diferenças. Esse filósofo
da imaginação criadora percorre o universo dos
sonhos e devaneios buscando apreender o ser
em sua originalidade, iluminar a consciência e
registrar a polifonia dos sentidos que despertam e
se harmonizam no devaneio poético. Nesse sentido,
uma concepção do real que não se interessar pelo
onírico despoja­‑se de alguns dos interesses que
conduzem ao conhecimento [...].
UNIUBE 185

[Um exemplo:] o percurso da ficção Roseana é


atravessado por dois sentidos. Num primeiro,
alcança, no real, verdades invisíveis a olho nu que,
contempladas, forçam rever a própria realidade, pois
“o real roda e põe diante”. Em segundo, desafia a
um empenho da imaginação, norteada pela fantasia.
O seu acreditar é em outras coisas, no “boi voador”
por exemplo, ou seja, naquilo que a imaginação lhe
possibilita.
O que queremos dizer com essas referências? [...]
O mundo mágico de Rosa é real? Pensamos que a
realidade da escrita poética abrange o real e o irreal,
por isso ela é mais completa. O que se “finge”, o que
se sonha, o que se devaneia, o “mundo mágico” são
acepções do real. São os germens do mundo na
imaginação do poeta. E sendo a poesia atemporal,
não importa se o tema dos sonhos, dos fingimentos
está no pretérito ou no porvir, ele se torna realidade
é depois. Após o devaneio, o poeta cria ao devanear
com as imagens poéticas [...]. A realidade que ele
expressa é mais abrangente do que o da ciência,
pois a escrita poética abarca os diferentes cenários
do mundo real, como podemos confirmar em uma
leitura de Guimarães Rosa.
O retratar poético do sertão mineiro, paisagem
reconstituída pela narração, não é apenas a
descrição esmerada de um espaço geográfico, mas
[...] é a re­‑criação do en­‑canto de uma “realidade”
sem confins. As águas são constantes cenários
para as vidas de Diadorim e Riobaldo; perto delas
o sentimento amoroso se manifesta bucólico
e singular. Como este recorte do Grande Sertão:
Veredas, que trazemos para você.
Diadorim e eu, nós dois. A gente dava passeios.
Com assim, a gente se diferenciava dos outros ­–
porque jagunço não é muito de conversa continuada
nem de amizades estreitas: a bem eles se misturam
e desmisturam, de acaso, mas cada um é feito por
si. [...] E estávamos conversando perto do rego –
bicame da velha fazenda, onde o agrião dá flor.
Desse lusfús, ia escurecendo. Diadorim acendeu
um foguinho, eu fui buscar uns sabugos. Mariposas
passavam muitas, por entre nossas caras, e
besouros graúdos esbarravam. Puxava uma
186 UNIUBE

brisbrisa. O ianso do vento revinha com o cheiro de


alguma chuva perto. E o chimm dos grilos ajuntava
o campo, aos quadrados. Por mim, só, de tantas
minúcias não era o capaz de me alembrar, não
sou de à parada pouca coisa; mas a saudade me
alembra. Que se fosse hoje. Diadorim pôs o rastro
dele para sempre em todas essas quisquilhas da
natureza. [...] E eu – mal de não me consentir em
nenhum afirmar das docemente coisas que são
feias – eu me esquecia de tudo, num espairecer de
contentamento, deixava de pensar (ROSA, 2001, p.
44­‑45, apud ABREU­‑BERNARDES, 2008, p. 164).
Se Riobaldo aprende a olhar sensivelmente
o mundo, a encontrar a densidade poética da
matéria e a refletir sobre si mesmo, tudo isso
conduz o pensamento à necessidade do um outro
para a apreensão da realidade exterior e interior,
o que se desdobra em uma completude. O ver do
homem é sempre incompleto, parcial, necessita da
mediação do outro para alcançar além dos limites
(ABREU­‑BERNARDES, 2008, p. 160­‑164).

PESQUISANDO NA WEB

Sugerimos a leitura de alguns sites onde você encontrará informações sobre


o livro Grande sertão: Veredas, obra­‑prima da literatura brasileira, e sobre
o autor, João Guimarães Rosa.

<http://www.cpv.com.br/cpv_vestibulandos/dicas/livros/litobr4101.pdf>.

<http://scholar.google.com.br/scholar?hl=pt­‑BR&q=vida+e+obra+guimar%C
3%A3es+rosa&btnG=Pesquisar&lr=&as_ylo=>.

Após essas reflexões sobre a imaginação, gostaríamos ainda de


dizer­‑lhe que, se o raciocínio lógico deve ser como uma boa fotografia,
a imaginação criativa é um desenho à mão­‑livre. Essa faculdade mais
amorosamente humana do que toda a lógica racional é o limite da
combinação interior de todas as capacidades da pessoa. E o raciocínio
lógico é a possibilidade, em cada um de nós e nas comunidades de ideias
UNIUBE 187

e de imaginários em todos os círculos em que estamos envolvidos, de se


estender o pensamento humano aos seus máximos limites.

SAIBA MAIS

Para conhecer um pouco mais a respeito das relações entre a imaginação


criadora e a professoralidade, sugerimos a leitura do texto:

ABREU­‑BERNARDES, S. T. Moacyr Laterza: a experiência artística na


professoralidade. In: REUNIÃO ANUAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE
PÓS­‑GRADUAÇÃO E PESQUISA EM EDUCAÇÃO – ANPED: 28. 2005,
Caxambu. Anais... Caxambu: ANPEd, 2005. 1 CD­‑ROM. Também disponível
em: <http://www.anped.org.br/reunioes/28/textos/gt08/gt08588int.rtf>.

Nesse artigo, busca­‑se fundamentar uma compreensão da realidade por


meio do devaneio, da beleza e da imaginação, num sentido que emana
da literatura e não dos escritos propriamente pedagógicos. Têm­‑se
como referencial teórico as ideias de Gaston Bachelard, que estuda
fenomenologicamente as imagens poéticas para compreender a polifonia
de sentidos do real.

SINTETIZANDO...

O conceito científico e a poética, unidos pela imaginação criadora,


impulsionam o homem ao movimento ascensional e fecundo, transformando
o ser humano em pura energia de criação. Assim, ele se dirige a um ir mais
adiante, a um ir acima, a uma metamorfose em direção à formação plena
do sujeito.
188 UNIUBE

4.5 Professor como recriador da cultura

Esperamos que uma pequena série de imagens nos sirva para


compreender que o professor recria o saber, não o reproduz apenas,
e que todo acontecimento do aprender­‑e­‑ensinar existe como um
momento motivado da cultura. Para isso, vamos reproduzir aqui algumas
passagens do livro A educação popular na escola cidadã:

Tudo o que a espécie humana criou e segue criando;


tudo o que foi pensado e posto por escrito ou em
alguma outra duradoura forma de comunicação
entre pessoas de uma cultura, em alguma língua;
tudo o que a filosofia e as ciências, as religiões e as
espiritualidades, as artes e os artesanatos geraram
e seguem gerando a cada dia, por toda a parte;
tudo o que é uma realização da complexa e múltipla
experiência das culturas humanas, sob a forma de
saber, de valor, de descoberta... tudo isso, no momento
em que “inventado” ou descoberto, existe em estado de
criação. Existe sob a forma de cultura viva, aqui e agora
se fazendo. Um bolo de aniversário, uma nova cantiga
inventada por uma turma de alunas de quarta série...
tudo isso existe depois como trabalho feito. Existe como
uma forma de cultura realizada e, deixada impressa,
gravada ou como seja, como um momento adormecido
da cultura de um povo.
Está pronta, mas nunca acabada, na forma de um
livro guardado entre outros em uma estante, de
um CD­‑ROM, ou mesmo de um www. Mas também
sob a humilde forma de um álbum de desenhos de
uma professora, de um poema... Está ali, inerte e
à espera. À espera de quê? À espera de ser outra
vez chamada à vida da cultura. Chamada ao lugar
social, qualquer que seja, onde entre uma pessoa e
um livro, entre duas pessoas através de um livro... um
momento de diálogo se instaura...
Um poema lido, mesmo que seja para ensinar algo
sobre “verbos irregulares”, reacende toda a poesia
alguma vez escrita no mundo. E se for lido apenas para
que em algum lugar de uma escola algumas pessoas
vivam a maravilha de conviver entre elas através de um
poema partilhado entre todas, então toda a arte de criar
com as palavras se reacende.
UNIUBE 189

Tudo o que se descobriu, pensou, disse e escreveu


retorna à vida quando em alguma escola uma professora
e uma “turma de alunos” retomam aquilo tirado de um
livro ou do que seja, e trazem de volta à vida o lampejo de
uma ideia (BRANDÃO, 2002, p. 210­‑ 213).

Então, quando um de nós toma um livro e o lê com os


alunos

I – Eu Nunca Guardei Rebanhos


Eu nunca guardei rebanhos,
Mas é como se os guardasse.
Minha alma é como um pastor,
Conhece o vento e o sol
E anda pela mão das Estações
A seguir e a olhar.
Toda a paz da Natureza sem gente
Vem sentar­‑se a meu lado.
Mas eu fico triste como um pôr de sol
Para a nossa imaginação,
Quando esfria no fundo da planície
E se sente a noite entrada
Como uma borboleta pela janela.
[...]
O guardador de rebanhos
Alberto Caeiro (heterônimo de Fernando Pessoa).

Acorda­‑se um poema, pois nós o reinventamos


ao ouvi­‑lo. E, despertando um fragmento da cultura,
acendemos em nós e entre nós uma centelha do gesto
de partilhar o aprender.
190 UNIUBE

PESQUISANDO NA WEB

Sugerimos que visite o site:

<http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/ResultadoPesquisaObraForm.
do?co_autor=&co_categoria=2&co_idioma=&co_midia=2&co_
obra=&colunaOrdenar=DS_TITULO&ds_titulo=&first=50&no_
autor=Fernando%20Pessoa&ordem=null&pagina=1&select_
action=Submit&skip=0>.

E leia outros poemas do grande poeta português Fernando Pessoa.

4.5.1 Quem ensina?

Só ensina de fato quem “convida ao saber”. Quem abre portas e janelas


em múltiplas direções. Quem aponta os caminhos e deixa ao outro a
liberdade da escolha. Quem, ao invés de dizer aos seus alunos que já
chegou a um lugar definitivo (do saber, do conhecer, do “dominar os
seus assuntos”) declara que também está incompleto, inacabado. Que
também está estudando enquanto ensina e, portanto, aprendendo com
os outros e não apenas ensinando a eles.

No diálogo em que os protagonistas da sala de aula devem estar sem-


pre criando e recriando, não existe saber algum que possa vir a fazer­
‑parte­‑de­‑nós se não for o despertar de algo novo dentro de nós. Eis
mais um sentido, agora coletivo, solidário, compartilhado, em que todo
o ato de conhecimento é um gesto de criação por meio de uma mul-
tiaprendizagem (um aprender partilhado por várias pessoas que vivem
aquilo­‑que­‑se­‑está­‑aprendendo desde o seu ponto de vista, segundo o
seu ritmo e com uma integração muito pessoal com os seus saberes e
as suas aprendizagens anteriores). Tudo é como um almoço de domingo
em que cada um aporta o seu quinhão de ajuda na copa e na cozinha.
E, depois, cada um vem e faz o prato que escolhe, come no seu ritmo
e digere segundo o seu corpo.

Observe a Figura 2.

É possível imaginar os foliões cantando, não é? Talvez uma cantiga


como esta, do nosso folclore, citada por Welson Alves Tremura em um
artigo A música caipira e o verso sagrado na Folia de Reis:
UNIUBE 191

Figura 2: Folia de Reis, Pirajuba, MG, 2003.


Fonte: Foto de Sueli Teresinha de Abreu Bernardes.

Em nome de Deus começo


Nesta abençoada hora
Pai, Filho, Espírito Santo
Pai, Filho, Espírito Santo
Dê­‑me voz para cantar
E também um ajudante
Para vim me ajudar
Louvado seja meu Deus
Meu coração alegrou
Aqui está o contramestre
Os Três Reis do Céu mandou
Meu divino Santos Reis
Peço agora o ajudante
Na hora que precisar
Sua voz é importante
[...]
Capitão e Coronel
Não repare meu chamar
Se estiverem em condições
Também queiram apresentar
192 UNIUBE

Numa bonita harmonia


Com licença do festeiro
Vamos dar o primeiro viva
Aos Três Santos verdadeiro
Viva Deus primeiramente
Belchior e o Reis Gaspar
São José e Santa Maria
Viva o Rei Baltazar
Viva os Reis do Oriente
E a linda estrela Guia
São José e Nossa Senhora
E o Filho de Maria.
(TREMURA, Toada de Saída, 2004, p. 4­‑5)

PESQUISANDO NA WEB

Se você quiser assistir vídeos de Folias de Reis, acesse, por exemplo, no


YouTube:
<http://www.youtube.com/watch?v=qXp08ZGmn8U&feature=related folia de
reis em Guaxupé­‑sul de minas gerais­‑emotion in the world>.

A Folia de Reis faz parte dos inúmeros festejos religiosos do povo


brasileiro. Como você deve ter lido, é uma das expressões mais
abrangentes realizada, sobretudo, entre as camadas populares da
sociedade. Ela envolve canto, dança, gastronomia, música, poesia,
religiosidade e desenvolve um espírito de partilha, de sacrifício, de fé,
de humildade, de acolhimento, de alegria e de simplicidade.

PARADA PARA REFLEXÃO

Então lhe perguntamos:

Você acredita que por meio da Folia de Reis também se educa?


UNIUBE 193

4.5.2 Resumindo nosso diálogo

Assim como a vida do que é vivo se esgota quando deixa de realizar


trocas neoequilibradoras com o seu meio ambiente, assim também a
vida interior não pode sequer se manter “viva” sem estar a todo o instante
apreendendo. Isto é, internalizando, interiorizando e reintegrando novos
saberes.

Aprender é isso. Esse é também o sentido em que não se “adquire


conhecimento”, da mesma maneira como não se “dá” ou não se “transmite
o saber” (como se faz em uma transfusão de sangue de pessoa a pessoa,
por exemplo). Na verdade, estamos sempre criando situações em que
cada um, a cada momento, à sua maneira, no seu ritmo, e, segundo os
seus modos próprios de interiorização de experiência intersignificativas,
integra em si o seu conhecimento.

Como não “se dá” conhecimento, todo o conhecimento “adquirido” é,


na realidade, uma criação pessoal vivida, em uma relação interpessoal
(mesmo que o outro­‑que­‑me­‑ensina esteja em um livro). Aprender e criar
são sinônimos absolutos. E, mesmo em uma situação pequenina, criar
é como pronunciar pela primeira vez a fórmula mágica que torna real a
própria magia.

Se o aprender não é uma acumulação provisória e utilitária de


conhecimentos dirigidos diretamente ao exercício de habilidades
parceladas, restritas e perigosamente “mecanizáveis”, quando não
subordinadas a uma mente pensante, crítica, ativa, participante e criativa,
se o aprender é, como vimos, uma atividade inerente a tudo o que é vivo
e que responde pela totalização do ser de cada pessoa e pela realização
de cada cultura, então, a função do educador ganha a dimensão de
um verdadeiro agente do processo mais importante de toda a vida:
o aprender.
194 UNIUBE

4.5.3 Antes de nos despedirmos

Queremos dizer agora para você, leitora e leitor: a melhor maneira de


tornar útil e significativa para as questões de hoje, essa viagem de retorno
a uma história de mais de 20 anos, narrada neste capítulo, é considerar
contra o que esses movimentos culturais e populares investiram. É
também considerar em que tipos de práticas e com que tipos de
instrumentos eles procuraram tornar ações as suas ideias.

Esse é o caminho pelo qual tem sentido refletir sobre as relações entre
as invenções da educação e da cultura (popular ou próxima a ela) e a
realidade dos movimentos populares.

Reafirmamos, ainda, que a escola não é o único lugar onde a


educação acontece e a educação não possui uma forma única, nem um
único modelo. Educa­‑se acompanhando uma Folia de Reis; capinando
com uma enxada; observando os afazeres de nossos pais; vivenciando
os círculos de cultura, assim como em espaços onde se realiza o ensino
sistematizado – a escola.

É sobre este assunto que este rascunho de ideias deverá prosseguir até
o ponto de poder constituir uma proposta (entre muitas) de fundamentos
do seu e do nosso trabalho pedagógico.

Resumo

Neste capítulo, apresentamos reflexões sobre cultura popular, movimentos


sociais, educação popular e educação como cultura, sob a perspectiva
teórica da Antropologia Cultural e da Fenomenologia Bachelardiana.
Abordamos a interação entre essas temáticas, explicando conceitos e sua
aplicação no fazer pedagógico. Partimos do pressuposto de que as culturas
são múltiplas. Foram e são inúmeras nos tempos da história e nos espaços
da geografia humana, pois a espécie humana é a única que, ao invés de
UNIUBE 195

produzir um singular modo de vida, ou modos de ser muito semelhantes,


gera quase incontáveis formas de ser e de viver, como tipos de culturas.
A partir disso, discutimos o sentido de aprender como a internalização, a
interiorização e a reintegração criativas de novos saberes. Afirmamos que
se o ser humano está sempre convivendo com interações entre pessoas
e pessoas; entre pessoas e grupos de pessoas; entre grupos humanos
e outros grupos humanos. Então, é possível afirmar que toda educação
acontece em uma, por meio da e como cultura.

Referências

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professoralidade. In: REUNIÃO ANUAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL
DE PÓS­‑GRADUAÇÃO E PESQUISA EM EDUCAÇÃO – ANPED: 28.
2005, Caxambu. Anais... Caxambu: ANPEd, 2005. 1 CD­‑ROM.

ABREU­‑BERNARDES, S. T. Moacyr Laterza. A poética na formação humana:


leituras de uma educadora. 2008. 223 f. Tese (Doutorado em Educação) –
Faculdade de Educação, Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 2008.

ABREU­‑BERNARDES, S. T. Moacyr Laterza. Folia de Santos Reis em


Pirajuba, MG. 2003. Abreu­‑Bernardes, S. T.. 1 fot. color. 18 X 24cm.

APRENDIZ de Feiticeiro. Música de Paul Dukas In: Fantasia 2000. Direção:


James Algar, Gaetan Brizzi, Paul Brizzi, Hendel Butoy, Francis Glebas, Eric
Goldberg, Don Halm e Pixote Hunt. Animação. Burbank, Califórnia, EUA: Walt
Disney Studios Home Entertainment. Dublado (1999. 1 DVD Rip (75 min.).

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ditadura militar: as metáforas carregadas de vozes contra o regime autoritário.
2007 104 f. Dissertação (Mestrado em Letras) – Instituto de Letras, Universidade
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BOSCO, João. O bêbado e o equilibrista. Disponível em: <http:// www2.


uol.com.br/cante/lyrics/Joao_Bosco_­‑_O_bebado_e_o_equilibrista.htm>.
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BRANDÃO, Carlos Rodrigues. De angicos a ausentes: 40 anos de


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com.br/aloescola/literatura/poesias/chicobuarquedehollanda_
rodaviva.htm#chicobuarque>. Acesso em: 3 dez. 2009.
Capítulo
Ética e formação ética
do professor
5

Francis Silva de Almeida

Introdução
[...] Digamos: Ética. E tudo estará dito.
André Comte-Sponville

Giges era um pastor a serviço do soberano da Lídia. Certo dia,


devido a uma terrível tempestade e um terremoto, abriu-se uma
fenda no chão onde pastoreava seu rebanho. Movido pela curio-
sidade, desceu pela fenda e viu, admirado, um cavalo de bronze,
oco, com aberturas. E, ao olhar através de uma das aberturas,
viu um homem de estatura gigantesca que parecia estar morto. O
homem estava nu e tinha apenas um anel de ouro na mão. Giges
pegou para si o anel e foi embora. Mais tarde, tendo os pastores
se reunido para fazer o habitual relatório sobre os rebanhos ao
rei, Giges compareceu à reunião usando o anel. Sentado entre os
pastores, girou por acaso o anel, e, virando a pedra para o lado
de dentro de sua mão, imediatamente tornou-se invisível para os
outros que falavam dele como se não estivesse ali, o que o dei-
xou muito espantado. Girou de novo o anel rodando a pedra para
fora, e tornou-se novamente visível. Perplexo, repetiu o feito para
certificar-se de que o anel tinha esse poder e concluiu que ao virar
a pedra para dentro tornava-se invisível, e ao girá-la para fora vol-
tava a ser visível. Tendo certeza disso, juntou-se aos pastores que
iriam até o rei como representantes do grupo. Chegando ao palá-
cio, seduziu a rainha e com sua ajuda atacou e matou o soberano,
apoderando-se do trono.
200 UNIUBE

A lenda que acabamos de apresentar foi escrita por Platão, e pode


ser encontrada no livro II, de A República. Sua leitura nos chama
atenção precisamente porque se apresenta como um teste para
nossas virtudes: no lugar de Giges, que faríamos nós se achás-
semos esse anel? Uma pergunta semelhante pode ser encontrada
nos versos da música Quatro vezes você (2002), da banda brasilei-
ra Capital Inicial: o que você faz quando ninguém te vê fazendo,
ou o que você queria fazer se ninguém pudesse te ver?

Questões dessa natureza trazem consigo outras tantas interroga-


ções. O que é o certo? O que é o errado? O que é o justo? Como
devemos nos comportar diante de uma determinada situação? O
que é bom para nós, é também para os outros? E as consequên-
cias: somos/seremos capazes de nos responsabilizar? O que é
preciso para agir com retidão? Em síntese, e, por conseguinte, a
pergunta se impõe: a conduta ética depende apenas do medo da
punição?

As indagações acerca do que é bom, justo e correto acompanham


a tradição do pensamento desde a Antiguidade. Em Sócrates, Pla-
tão e Aristóteles encontramos os primeiros fundamentos da ética
e sua postulação como disciplina filosófica. Desde então, somos
chamados a colocar a questão da formação dos valores como par-
te essencial para a organização da sociedade em seus diferentes
âmbitos. Seja na esfera da vida privada, seja na esfera da vida
pública, somos, enquanto seres humanos, impelidos ao exame do
nosso caráter: direção em que nos encontramos com o mundo.

O mundo é o lugar da formação dos valores que orientam o agir


ético. Esses valores são construídos como experiência que se
entretece no interior das relações humanas: atravessamento das
memórias e narrativas, ato intencional e complexo marcado por
inúmeros desdobramentos e permeado de desejo e singularidade;
algo que se passa com pessoas, entre as pessoas e, precisamen-
te por isso, cria relações de aprendizagem.

Por isso, buscamos neste capítulo, realizar as demarcações con-


UNIUBE 201

ceituais que nos permitam compreender as dimensões da ética e


da moral como campos epistemológicos distintos, para, a partir
daí, discutir a formação ética do professor e a importância de sua
atuação como sujeito de uma práxis que, por primeiro, encontre-
-se vinculada ao fortalecimento das relações democráticas e dos
direitos humanos.

Este capítulo se encontra dividido em dois grandes blocos: no


primeiro, são realizadas incursões conceituais sobre ética, moral,
liberdade e consciência, como fundamentos da dialética do Eu-
Outro; no segundo, são tecidas discussões que perpassam a
formação e a atuação docente, tendo em conta a regência da ação
educativa como manifestação do ethos.

Aproveitamos para esclarecer que, em algumas passagens des-


te capítulo, utilizamos trechos retirados de nossa dissertação de
mestrado – Filosofia e fazer filosófico no Ensino Médio: resso-
nâncias e deslocamentos em Deleuze-Guatari – apresentada
ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade
Federal do Triângulo Mineiro (UFTM) no ano de 2016.

Objetivos

Ao final deste capítulo, esperamos que você seja capaz de:

• identificar os conceitos de ética e moral, distinguindo-os


enquanto campos epistemológicos particulares;
• determinar nos entremeios da questão ética; a relação entre
objetividade, intersubjetividade e transcendência como
fundamentos da dialética do Eu-Outro;
• discutir as questões da formação profissional e atuação
docente, tendo em conta a regência da ação educativa como
manifestação do ethos.
202 UNIUBE

Esquema
5.1 Ética e moral: demarcações conceituais
5.2 Ética, liberdade e consciência
5.3 Ética e práxis educativa
5.4 Considerações finais

5.1 Ética e moral: demarcações conceituais

O homem é, por natureza, um animal político (zoón politikón). Ao formular


esta afirmação, Aristóteles (384-322 a.C.) nos chama atenção para duas
importantes questões: a primeira, no que diz respeito ao homem como
sujeito das diferentes formas da convivência comunitária e das relações
de compartilhamento social, destaca-se a tese da radical sociabilidade
do ser humano como negação de uma vida isolada, uma vez que “não
menos estranho seria fazer do homem feliz um solitário, pois ninguém
escolheria a posse do mundo inteiro sob a condição de viver só, já que o
homem é um ser político e está em sua natureza o viver em sociedade”
(ARISTÓTELES, 1973, IX, 9, 1169 b 18/20); a segunda, por consequência
desta, evidencia a razão compartilhada como espaço das virtudes
ético-políticas, isto é: por meio do discurso e do diálogo que o ser humano
atualiza a dimensão do viver junto como condição de sociabilidade e
percepção dos valores morais que fundamentam as relações cotidianas.

Ora, porque vivemos em sociedade, é comum e frequente que, em


nosso dia a dia, nos deparemos com situações exigentes de uma
decisão, dilemas que nos exigem a capacidade de refletir a partir do que
consideremos bom, justo ou correto. A reflexão sobre o que é bom, justo
ou correto, e que implica o âmbito dos problemas que se constituem nas
relações efetivas entre os indivíduos é o que, precisamente, constitui os
campos da ética e da moral.
Embora seja comum que as palavras ética e moral sejam empregadas
UNIUBE 203

como sinônimos (de conjunto de princípios, padrão de conduta), os


sentidos intrínsecos a cada termo definem diferentes domínios do
conhecimento.

A palavra ética encontra radical na palavra grega ethos, de onde podemos


extrair, inicialmente, o ethos enquanto forma primeira da manifestação do
ser ou da sua presença. Para abranger o termo em toda a sua extensão
e, a partir daí, compreender seus fundamentos, recorremos aos escritos
do filósofo jesuíta Henrique Cláudio de Lima Vaz, em Ética e Cultura -
Escritos de Filosofia II:
O termo ethos é uma transliteração de dois vocábulos
gregos: êthos (com eta inicial) e éthos (com épsilon
inicial). É importante distinguir as matrizes peculiares
a cada um desses termos. Por outro lado, se a eles
acrescentamos o vocábulo hexis, de raiz diferente,
teremos definido um núcleo semântico a partir do qual
será possível traçar as grandes linhas da Ética como
ciência do éthos. A primeira acepção de êthos (com eta
inicial) designa a morada do homem (e do animal em
geral). O êthos é a casa do homem. O homem habita
sobre a terra acolhendo-se ao recesso seguro do ethos.
Este sentido de lugar [...] dá origem à significação do
éthos como costume. A metáfora da morada e do abrigo
indica, justamente que, a partir do êthos, o espaço do
mundo torna-se habitável para o homem. [...] A segunda
acepção do éthos (com épsilon inicial) diz respeito ao
comportamento que resulta de um constante repetir-
-se dos mesmos atos. [...] O éthos, nesse caso, denota
uma constância no agir que se contrapõe ao impulso do
desejo (órexis). (VAZ, 2004, p. 13-15).

A habitação humana constituída sobre o êthos é o espaço em que são


localizados os costumes, os hábitos, as normas, os valores e as ações,
como aquilo que é corriqueiro, ou seja, relativos aos modos (genéricos)
de viver. Ao identificarmos a ideia de êthos como hábito ou costume,
reconhecemos o espaço em que o éthos, como caráter, circunscreve
a ação humana ao campo da reflexão e busca pela realização do bem,
que, assim percebido, evidencia o estatuto dos valores morais que nos
permite pôr em questão o termo e os limites das ações humanas.
204 UNIUBE

PONTO-CHAVE

Nesse sentido, quando falamos em ética, nos referimos ao conjunto


dos conhecimentos objetivos e racionalmente produzidos no âmbito do
comportamento humano. Logo, nos referimos a uma ciência cujos saberes
postulam a reflexão do caráter humano em sua integralidade. Para falarmos
com Vásquez (2012, p. 23), “a ética é a teoria ou ciência do comportamento
moral dos homens em sociedade.”

Embora a ética seja a ciência da moral, ela não se confunde com seu
objeto. A ética é essencialmente teórica, ou seja, descreve uma forma
de investigação da experiência humana no que diz respeito aos modos
do comportamento dos homens em sua totalidade e diversidade. Por
isso, inclusive, dizemos que se seu valor reside naquilo que ela explica,
portanto, na forma crítica que se refere ao fundamento e ao valor dos
códigos, princípios, normas e convicções morais existentes em uma
determinada sociedade.

Já a palavra moral encontra a sua origem na derivação da palavra latina


mos, moris, da qual se pode extrair o sentido de um caráter normatizador.
Enquanto conjunto de normas, valores e princípios, a moral diz respeito
às situações particulares e cotidianas, remetendo-se à orientação da
prática das pessoas e, por isso, deve ser investigada levando-se em
consideração o caráter histórico dos fenômenos que marcam as mais
diferentes e complexas formações sociais. De acordo com Vásquez
(2012, p. 66-67), “a moral possui, em sua essência, uma qualidade social.
Isso significa que se manifesta somente na sociedade, respondendo às
suas necessidades e cumprindo uma função determinada.”

Em síntese:
A moral é um sistema de normas, princípios e valores,
segundo o qual são regulamentadas as relações
mútuas entre os indivíduos ou entre estes e a
comunidade, de tal maneira que estas normas, dotadas
de um caráter histórico e social, sejam acatadas livre
UNIUBE 205

e conscientemente, por uma convicção íntima, e não


de uma maneira mecânica, externa ou impessoal.
(VÁSQUEZ, 2012, p. 84).
Embora sejam distintos os campos epistemológicos da ética e da moral,
há entre eles, por intersecção, a formação de outro campo, no qual o
movimento reflexão-ação pressupõe a forma privilegiada para a verificação
da ética como ciência da moral. Por isso, ainda que o ser humano seja
social e historicamente determinado, e os arquétipos de bem e mal se
modifiquem em função da moral efetiva que se materializa em cada tempo
da história, enquanto sujeito moral, ele é plenamente capaz de fazer as
suas escolhas e responsabilizar-se por elas, refletindo sobre seu agir e
orientando sua prática de forma consciente para o que lhe seja significativo,
útil ou funcional.

ÉTICA REFLEXÃO-AÇÃO MORAL

PRÁXIS

ser, dever-ser, dever-fazer

Por isso, inclusive, é fundamental redirecionar a reflexão sobre o agir


humano, buscando demarcar o lugar onde são tecidos os seus princípios,
para, daí, compreender a complexidade da escolha e do limite entre o
dever e o fazer. Nesse sentido, os problemas que se referem à ação
206 UNIUBE

humana perpassam não só a abertura do conceito de pessoa, mas,


especialmente, dizem respeito ao movimento que se entretece nas
relações entre objetividade (considerando a natureza corpórea que
permite ao homem viver a experiência de estar no mundo, de pertencer
ao mundo), intersubjetividade (considerando o homem como sujeito
de relações, capaz de efetivar a realização da própria vida como
sentido pleno na relação com o Outro) e transcendência (considerando
a capacidade que o homem possui de buscar o que está além da
experiência material como forma de interrogar o sentido da existência).

SAIBA MAIS

Pessoa: do latim persona, que diz do papel, do caráter, da dignidade. A


pessoa é uma realidade concreta, carnal e espiritual, membro de todas
as formas de organização social. Diz respeito à pessoa moral, enquanto
ser individual que participa de uma comunidade; à pessoa física, ao
próprio corpo, enquanto este corpo é considerado a manifestação de sua
pessoa moral (mesmo no sentido físico o conceito de pessoa não pode
ser aplicado ao corpo de um animal); e à pessoa jurídica, no que diz dos
direitos e deveres determinados pela lei, e por meio do qual, a pessoa física
é reconhecida como parte de uma determinada comunidade, passando,
assim, à pessoa moral (LALANDE, 1999).

A par dessas primeiras demarcações conceituais, o que identificamos


em nosso tempo é uma abundância de racionalidades que,
como entendemos, parecem não dar conta dessa difícil tarefa de
fundamentação. É possível, partindo de um olhar mais atento, identificar,
no cotidiano das sociedades contemporâneas, um expressivo volume de
significados do termo ética que, em grande parte, encontram-se lançados
no jargão da mídia e, por isso, acabam constituindo um conjunto de
opiniões que retiram do termo ética seu verdadeiro significado, deixando-
-o ligado a algum tipo de sentimentalismo inócuo que, na realidade,
acaba por não significar coisa alguma.
UNIUBE 207

5.2 Ética, liberdade e consciência

Figura 1: Mito de Narciso.


Fonte: Michelangelo Caravaggio 065.jpg (1594)

A Figura 1, mito de Narciso, retratada na obra do renascentista italiano


Michelangelo Amerighi da Caravaggio (1571-1610), nos inspira a
reflexão que realizaremos a seguir. Segundo a mitologia grega, Narciso
era filho do deus-rio Cephisus e da ninfa Liriope, e era um jovem de
extrema beleza. Contudo, a despeito da cobiça que despertava nas
ninfas e donzelas, preferia viver só, pois julgava não haver encontrado
ninguém que fosse merecedor do seu amor. Condenado por Nêmesis
pelo sofrimento causado a uma jovem ninfa chamada Eco, Narciso foi
208 UNIUBE

execrado ao triste fim de amar somente e, sempre, a si mesmo, motivo


que o levou à morte. Segundo a narrativa, Narciso debruçou-se sobre
uma linda fonte de águas claras para banhar-se e viu, surpreso, uma bela
figura que o olhava de dentro da fonte. Admirado pela beleza daquele ser
que, de dentro da fonte, retribuía o seu olhar, apaixonou-se e permaneceu
por dias a admirar sua própria imagem. Esquecido de alimento e de água,
definhou até a morte.

SAIBA MAIS

No âmbito da discussão ética, o que aprendemos com o mito de Narciso?


Partimos da origem da palavra: do grego narkhé, Narciso significa torpor,
entorpecimento. Entorpecido de si mesmo, Narciso só percebe aquilo que
reflete sua própria imagem demonstrando total desprezo pelo Outro, por
aquilo que não é espelho. Paralisado diante de sua beleza, Narciso definha
até a morte. A paralisia diante de si mesmo como referência daquilo que é
bom, justo e correto retira do ser humano a capacidade de colocar-se no
lugar do Outro, percebendo-o como sujeito de relações concretas, síntese
de circunstâncias e tessituras históricas, culturais e sociais. A permissão
do diálogo e da escuta, é, nesse contexto, essencial às questões éticas:
ser-com-o-outro o espaço dialético de construção da existência, da
compreensão do bem como afirmação da vida em suas diferentes formas e
do desenvolvimento das capacidades do homem de autorrealizar-se.

Desdobramos da história de Narciso não só os temas que circulam em


torno da análise da atividade humana em relação ao seu fim último (a
felicidade), mas, sobremaneira, das formas individuais e coletivas de
existir e significar a existência, as questões de ordem ética recolocam as
referências do saber, da concepção do mundo e da própria visão que o
ser humano possui de si mesmo e do Outro: bases de uma reflexão onde
o éthos, como caráter, encontra suas bases mais profundas.

Em Ética a Nicômacos, Aristóteles (1973) afirma que a filosofia ética


encontra o seu objeto de investigação nas ações humanas e estas são
UNIUBE 209

baseadas naquilo que é natural em cada ser humano, o seu caráter. A


ética aristotélica ensina a viver de acordo com o caráter, a disposição
natural presente em cada ser humano, o que torna essencial a busca
constante e o alcance da virtude (areté) conquistada por meio do
exercício da prudência (phronesis).

Para o filósofo, há dois tipos gerais de virtudes: as práticas, baseadas


nos hábitos e nos costumes; e as intelectuais, próprias da alma racional.
Embora as virtudes ligadas à vida prática não sejam dispensáveis a uma
vida feliz – pois estão ligadas às paixões e aos prazeres –, o agir ético
é aquele que se faz em torno das virtudes intelectuais, pois realizam
o que há de mais humano: a racionalidade. As virtudes intelectuais
dizem respeito exatamente ao prazer que o ser racional encontra na
contemplação. Nesse sentido, os prazeres do pensamento são superiores
a todos os outros, e a felicidade é o que provém da ação segundo a
razão.

Corroborando essa perspectiva, Vaz (2004, p. 13-15) afirma que:


entre o processo de formação do hábito e o seu termo
como disposição permanente para agir de acordo com
as exigências para a realização do bem ou do melhor,
o ethos se desdobra como espaço de realização do
homem, ou ainda como lugar privilegiado de inscrição
de sua práxis.

Assim, quanto mais o homem tornar-se capaz de refletir sobre a


finalidade de suas ações, com maior retidão caminhará no seu agir tendo
em vista a prática das virtudes intelectuais que, segundo Aristóteles, têm
na felicidade o maior bem, por encerrar-se em si mesma. É, pois, nesse
ponto, que o movimento reflexão-ação como pressuposto de uma ciência
da moral evidencia um importante aspecto: a ética da intenção. Quem se
destaca na elaboração dessa tese é o filósofo medieval Pedro Abelardo
(1079-1142). Para o filósofo, o erro de uma ação não caracteriza um dado
intrínseco, mas na intenção, no consentimento do agente que tenciona
determinados meios para atingir os fins que deseja.
210 UNIUBE

Abelardo deixa claro que a consciência é e deve ser a fonte e o centro


de irradiação da vida moral e das intenções do agir. Sem a consciência,
uma ação não pode ser moralmente qualificada, de modo que é preciso,
então, distinguir entre o que é natural e o que é intencional. Desse
modo, enquanto as inclinações naturais são consideradas pré-morais, a
iniciativa, as intenções e os propósitos conscientes motivam o julgamento
moral de uma determinada ação.

SAIBA MAIS

A teoria da intencionalidade afirma que a consciência nunca é vazia,


mas, ao contrário, é sempre consciência de alguma coisa. Nesse sentido,
corroboramos em Abelardo a tese aristotélica da formação do hábito como
educação para a virtude (areté). Ora, se para Aristóteles o hábito é uma
qualidade adquirida pelo esforço, como um constante repetir dos mesmos
atos, a boa intenção do agir se contrapõe ao impulso natural como expressão
do domínio que o homem deve ter sobre si mesmo. Esse domínio, como
vimos, decorre da capacidade de refletir o conteúdo das ações tendo em
conta a prática das virtudes intelectuais. Nesse sentido, a interiorização da
vida moral por meio da educação designa um movimento essencial para a
condução da reflexão sobre o que é bom, o justo e correto no âmbito das
ações humanas.

A ética das intenções traz à tona o homem como sujeito pleno de


liberdade. É no advento da modernidade, que se situa, inicialmente,
a ilustração da ideia de ética antropocêntrica, apoio sobre o qual se
colocam as relações existenciais e vivenciais que reforçam os encargos
atribuídos ao sujeito moral e articulam, ainda com mais clareza, as
questões da liberdade e da responsabilidade já postulados pela ética
cristã agostiniana.

Ao reelaborar a filosofia neoplatônica, Santo Agostinho (354-430) lança


mão da ideia de um mundo imaterial de ideias e do bem como princípio
de todo ser, cedendo lugar à ideia de um criador espiritual, causa primeira
UNIUBE 211

de toda criação. Para ele, só Deus é inteiramente real e o mundo criado


é apenas semelhante ao seu criador. Por isso, segundo o filósofo
medieval, o mal não é uma realidade substantiva per se, mas a privação
ou ausência do bem.

A esse respeito, “Procurei o que era maldade e não encontrei uma


substância, mas sim a perversão da vontade desviada da substância
suprema – de vós, ó Deus – e tendendo para as coisas baixas [...]”
(AGOSTINHO, 1996, p. 190). Sob esta perspectiva, tudo o que Deus
criou é bom e o mal só ocorre quando a criação é corrompida em
decorrência da ação livre do homem. O homem é, portanto, responsável
por suas ações e pela geração do mau moral (pecado), quando, não
estando unido a Deus por meio da contemplação espiritual, se distancia
da do Bem Supremo.

A ideia de liberdade compreendida como atributo essencial à condição


humana, cujas bases foram alicerçadas no século XVII, encontrará o
seu maior expoente no pensamento do filósofo francês Jean-Paul Sartre
(1905-1980).

Ao negar a tradição essencialista que atribui ao homem uma natureza


anterior à sua materialidade, Sartre (1999, p. 227) reafirma a licitude das
ações humanas como o resultado urgente da liberdade, pois “se, por
um lado, Deus não existe, não encontramos diante de nós valores ou
imposições que nos legitimem o comportamento”. A liberdade é, portanto,
o domínio em que se situa a ideia de fenômeno sobre a qual apoiamos
o dialogismo entre a consciência e a responsabilidade.

Assim, segundo Sartre (1999, p. 571):


o mundo nos devolve exatamente, por sua própria
articulação, a imagem do que somos. Não que
possamos, como já vimos, decifrar esta imagem, ou
seja, detalhá-la e submetê-la à análise, mas porque o
mundo nos aparece necessariamente como somos;
212 UNIUBE

com efeito, é transcendendo-o rumo a nós mesmos que


o fazemos aparecer tal como é. Escolhemos o mundo
não em sua contextura. Em-si, mas em sua significação,
escolhendo a nós mesmos.

À esteira do existencialismo sartreano, compreendemos que o homem


é livre e está condenado à liberdade que, em sua forma mais pura,
consiste no ato da escolha. Ao realizar a escolha entre uma coisa e
outra, entre isto ou aquilo, o homem encontra-se diante das exigências
e da manifestação da consciência. Contudo, a fim de que possamos
compreender com maior clareza o que se pretende inferir com o termo
“escolhendo a nós mesmos”, faz-se necessário recorrer ao texto da
conferência O existencialismo é um Humanismo. Nele, Sartre argumenta
que, ao fazer uma escolha, o homem constrói uma autoimagem de como
ele deve ser. Essa autoimagem, por sua vez, não ilustra uma dimensão
de singularidade, mas, ao contrário, de universalidade, de identificação
com a humanidade, pois,
quando dizemos que o homem se escolhe a si,
queremos dizer que cada um de nós escolhe a si
próprio; mas, com isso queremos também dizer que, ao
escolher-se a si próprio, ele escolhe todos os homens.
Com efeito, não há dos nossos atos um sequer que, ao
criar o homem que desejamos ser, não crie ao mesmo
tempo uma imagem do homem como julgamos que
deve ser. [...] Assim, a nossa responsabilidade é muito
maior do que poderíamos supor, porque ela envolve
toda a humanidade. (SARTRE, 1978, p. 12-13).

Igualmente, a formulação dos juízos de valor, as escolhas e a liberdade


emergem como ações emaranhadas que implicam um profundo senso de
responsabilidade, uma vez que “estando condenado a ser livre [o homem]
carrega nos ombros o peso do mundo inteiro: é responsável pelo mundo
e por si enquanto maneira de ser.” (SARTRE, 1999, p. 678).

Desse modo, o que resta ao homem é a liberdade como fundamento


único e legítimo de todos os valores, pois, como bem notou Vásquez
(2012, p. 287), “se a liberdade é o valor supremo, o valioso é escolher e
agir livremente.”
UNIUBE 213

A potencialidade do pensamento sartreano nos permite, nos limites das


reflexões que propomos neste capítulo, expandir de maneira substantiva
a relação ética, liberdade e consciência, visto que, sob esse vértice, o
homem se torna plenamente responsável pela produção e justificação
dos valores individuais e coletivos que significam os diferentes modos
do seu estar no mundo.

Em Sartre (1999), a compreensão da realidade passa pelos conceitos


de ser-em-si e ser-para-si. Enquanto o primeiro diz respeito à pura
objetividade, ou seja, aos objetos que já são tudo que poderiam ser, e
que, por isso, existem independente de qualquer consciência; o segundo,
designa o próprio ser humano enquanto ser que se projeta para fora
de si mesmo na busca da construção de sentidos. Cada ser humano
é, em si mesmo, um pequeno universo, pois, carrega consigo o fluxo
de uma intenção subjetiva que o coloca sempre, e necessariamente,
na direção daquilo que existe fora de si mesmo. Sob este aspecto, a
liberdade se evidencia como núcleo da vida coletiva, como expressão do
ethos manifestado no lugar comum do compromisso e da reciprocidade
dos sujeitos e das relações que se articulam no Eu-Outro.

O termo Eu-Outro expressa a dimensão dialética que surge na filosofia


sartreana como processo fundamental para a constituição da consciência e
do autoconhecimento, uma vez que o homem, como sujeito sócio-histórico,
só se define na relação com o Outro. É um Eu-Outro formado numa
espécie de transbordamento subjetivo que assim se revela: o ser para
outro manifesta a dialética humana de ser um com o Outro.

Para compreendermos a extensão do termo Eu-Outro, cumpre realizar,


ainda que brevemente, uma análise do texto Entre Quatro Paredes.
Nessa peça, escrita em 1944, Sartre retrata as relações entre três
personagens: Garcin, Estelle e Inês. Segundo a narrativa, as personagens
encontram-se no inferno, porém, diferentemente do esperado, o inferno
214 UNIUBE

relatado pelo filósofo não se refere a um ambiente de tortura física, mas,


ao contrário, de tortura psicológica, e o sofrimento a que as personagens
se encontram submetidas é dado pela violência do olhar, pela difícil tarefa
de encontrar-se pelos olhos do outro.

SAIBA MAIS

As personagens criadas por Sartre para ilustrar essa dinâmica de interação


subjetiva e relevadora dos diferentes lugares e papéis sociais que atuam
sobre a elaboração do mundo, como elaboração de sentidos, possuem
características distintas. Por meio delas, o filósofo nos chama atenção para
um processo dialético que se encerra na manifestação da consciência, lugar
em que o Outro, voluntária ou involuntariamente, revela um pouco de nós
a nós mesmos.

Garcin era um homem letrado e, mesmo pretendendo ser um herói, foi


apenas um covarde. Seu maior martírio se traduzia no medo de que suas
novas companheiras descobrissem sua condição de covardia. Inutilmente,
lutava para fugir da deformidade do seu caráter. Estelle é uma burguesa de
caráter infantil que ascendeu socialmente pelo casamento e, em nome das
comodidades que lhe conferiam status social, assassinou o bebê que teve
com seu amante e vê este, tomado pelo desgosto, suicidar-se. Na tentativa
de eximir-se de sua culpa, responsabiliza o destino pela matéria de suas
escolhas e torna-se cada vez mais evasiva na busca por paixões que lhe
escapem à realidade. Inês é funcionária dos correios. É homossexual e tem
temperamento agressivo. Entre os demais, é a única que, admitindo suas
culpas, não procura remissão e justificativas que a levem a compreender o
motivo de estar no inferno. Contudo, alimenta-se de um intenso ódio que a
torna sádica e aprazível com o sofrimento dos outros.

Seguindo a narrativa, encontramos as personagens confinadas em uma


sala, sem espelhos e sem necessidade de se alimentar ou dormir, por toda
eternidade. São obrigadas a enxergar-se através dos olhos dos outros; olhos
esses que, dados os diferentes traços de suas personalidades, não teriam
sido os escolhidos para conviverem. Contudo, é no centro dessa dinâmica
UNIUBE 215

intersubjetiva e sem que possam sequer expiar suas faltas, que Garcin,
Estelle e Inês descobrem o horror da nudez psíquica que os outros lhes
evidenciam. Está aí revelado o verdadeiro inferno, já que a consciência
não pode negar o enfrentamento da consciência que a denuncia, que age
como mediadora necessária entre a minha consciência e o meu ser-objeto.

Com efeito, a consciência é movimento, é sempre consciência de


alguma coisa, e, não sendo o objeto ao qual se remete, determina o
direcionamento que dá sentido às formas de ser e estar no mundo
humano.

A esse respeito, Sartre (apud ERCULINO, 2014, p.205-206) assim se


pronuncia:
Eu quis dizer “o inferno são os outros”. Mas “o
inferno são os outros” foi sempre mal compreendido.
Acreditaram que eu queria dizer com isso que nossas
relações com os outros estavam sempre envenenadas,
que eram sempre relações infernais. É outra coisa que
eu quero dizer. Quero dizer que, se as relações com os
outros são torcidas, viciadas, então o outro só pode ser
o inferno. Por quê? Porque os outros são, na verdade, o
que existe de mais importante em nós mesmos, para o
nosso próprio conhecimento de nós mesmos. Quando
pensamos sobre nós mesmos, quando tentamos nos
conhecer, no fundo usamos o conhecimento que os
outros já têm de nós, nós nos julgamos com os meios
outros tem, que eles nos deram para nos julgar. O que
eu digo sobre mim sempre tem o julgamento dos outros
no meio. O que eu sinto de mim, o julgamento dos
outros está no meio. [...] Isso só marca a importância
capital de todos os outros para cada um de nós.

Compreendemos, portanto, que, independente do lugar da realidade, haverá,


sempre, relações de interação entretecidas entre diferentes sujeitos com
distintas percepções de seus papéis sociais. Ora, se a realidade humana
está no mundo, e não é possível concebê-la de outra forma, é nesse espaço,
naturalmente marcado pela dinâmica de interação Eu-Outro, que elaboramos
o mundo e nos elaboramos no mundo, pelo Outro.
216 UNIUBE

PONTO-CHAVE

É nos domínios da subjetividade, que o sujeito constrói a si mesmo como


representação social e cultural. Segundo Fontana (2010), as estruturas que
aí se constituem não se definem como processo, mas, ao contrário, como
drama, pois caracterizam singularidade e significação. Singularidade porque
todos os sujeitos, sendo dotados de características únicas, singularizam as
suas formas de expressão; de significação, porque todo ato humano é ato
significante e constitui um universo simbólico de representações.

Desse modo, o que se coloca em jogo é justamente a criação, produzir


movimentos criativos numa espécie de estética da existência; criar outros
modos de vida, (re)existência: outros modos de existir. Para falarmos
com Foucault (1926-1984), trata-se do cuidado-de-si, de ensaiar-se na
vida como obra de arte. Utilizando-se dos textos cínicos, epicuristas e
estoicos, o filósofo resgata o sentido de epiméleia heautoû explorando
as práticas de cuidado com o corpo e as suas diferentes significações no
universo cultural helenístico-romano, identificando o cuidado-de-si como
uma aplicação concreta e particular da regra vinculada a todo o cuidado
que um indivíduo deve ter consigo mesmo, apontado, por meio da sua
condição corpórea, a evidência da sua relação com o mundo.

Segundo Foucault (2006, p. 15),

com a noção de epiméleia heautoû, temos todo um


corpus definindo uma maneira de ser, uma atitude,
formas de reflexão, práticas que constituem uma
espécie de fenômeno extremamente importante, não
somente na história das representações, nem somente
na história das teorias, mas na própria história da
subjetividade.

A noção de epiméleia heautoû ilustra esse processo criativo precisamente


porque sugere que não se pode separar o sujeito da experiência que lhe
afeta. Nos domínios da subjetividade, o sujeito constrói a si mesmo como
UNIUBE 217

representação social e cultural numa relação “singular, transcendente,


do sujeito em relação ao que o rodeia, aos objetos que dispõe, como
também aos outros com os quais se relaciona, ao seu próprio corpo e,
enfim, a ele mesmo.” (FOUCAULT, 2006a, p. 50).

Essa implicação criativa conjectura uma reflexão ética constante: ensaiar-


-se na vida como obra de arte. Algo que supõe a afirmação da estética
como modos de afirmação da vida, isto é, exercício de ação-reflexão
que permite ao sujeito inventar-se sempre e de diferentes formas: atos
de uma micropolítica ativa que se opõe aos mecanismos coletivos de
inibição e, por isso, são capazes de produzir experiências de liberdade.
Assim, do ponto de vista da ética, o convite à vida autêntica implica uma
crítica radical à genealogia moral e ao senso comum, à predominância da
superficialidade e da massificação do pensamento e da cultura. Ensaiar-
-se na vida como obra de arte requer do homem o reconhecimento do
eterno movimento de volta sobre si mesmo e a permanente tarefa de
tornar-se humano.

PESQUISANDO NA WEB

Para aprofundar essas reflexões realizadas até aqui, sugerimos o


curta-metragem “Tolerantia”, disponível no link http://www.youtube.com/
watch?v=ecsHNhTkYiY.
Produzido na Bósnia e Herzegovina (2008) pelo diretor Ivan Ramadan,
“Tolerantia” utiliza o conflito entre dois gigantes como metáfora para a
necessidade de dominação entre indivíduos, e aponta para questões como a
negação das diferenças, o isolamento social, a individualidade e a dificuldade
de relacionamento como marcas da sociedade contemporânea.

5.3 Ética e práxis educativa

Ao tomarmos a ética como a matéria-prima das reflexões que se


desdobram da atividade humana, nos deparamos com questões
fundamentais no que tange à educação e à relação dos sujeitos no campo
218 UNIUBE

do saber. Nesse quadro, destacam-se: (i) a consciência do professor


sobre o dever-ser da profissão, e de como esse processo se constitui
como um instrumento de expansão da consciência; (ii) a compreensão do
outro em sua integralidade como fundamento das relações baseadas na
tolerância e no respeito à diferença e, (iii) a afirmação do conhecimento
como campo onde os saberes se precipitem da ética e nela encontrem
a sua finalidade.

Ao abordar as práticas de formação docente no Brasil, Gatti (2012) afirma


que os novos ordenamentos estruturais da sociedade e a busca pela
compreensão do papel da escola nas sociedades contemporâneas não
só projetou a revisão das políticas de formação de professores, como
evidenciaram a necessidade de recolocar, no centro deste debate, as
questões relacionadas à representação social e às condições de trabalho
dos professores no contexto das diferentes demandas e frentes de
atuação do profissional da educação.

Segundo a autora, a formação inicial constitui a base essencial para


que o professor possa ensinar e desenvolver com seus alunos as
competências e habilidades básicas para a leitura e a interpretação
do mundo, para a construção de uma consciência crítica e reflexiva e,
ainda, para a formação das estruturas de valor necessárias à autonomia
intelectual e à prática da cidadania. Desse modo, “a formação inicial de
professores tem importância ímpar uma vez que cria [...] as bases de sua
profissionalidade e da constituição de sua profissionalização.” (GATTI,
2012, p. 19).

Desdobram-se, aí, dois problemas fundamentais: o primeiro, diz respeito


à inexistência de conexões entre os conteúdos curriculares voltados
para a formação dos professores e a prática contida nas escolas; o
segundo, refere-se à ausência de uma relação dialógica entre os saberes
acadêmicos e o currículo da Educação Básica. Em ambas as situações,
evidencia-se que a ineficiência aí avaliada corresponde a uma
UNIUBE 219

formação inicial de profissionais apenas como


propedêutica, em forma teórica dissociada de
experiências e conhecimentos adquiridos pela
experiência de trabalho, não corresponde às
necessidades de reconversão profissional que a
contemporaneidade coloca. (GATTI, 2012, p. 17).

Há, ainda, no contexto do discurso expresso pela autora, que considera


imperativa a desconstrução da concepção de prática de ensino como
reprodução e resgatar essa ideia de prática como espaço de criação e
reelaboração dos conhecimentos a partir da relação do professor com
as diferentes experiências entre os sujeitos no campo do saber. Neste
sentido, afirma Gatti (2012, p. 29),
no que concerne à formação de professores uma
verdadeira revolução nas estruturas formativas e nos
currículos da formação é necessária. [...] A formação de
profissionais professores para a educação básica tem
que partir de seu campo de prática, com seus saberes,
integrando-os com os conhecimentos necessários
selecionados como valorosos, em seus fundamentos e
com as mediações didáticas necessárias [...].

Nesse sentido, é essencial que sejam modificadas as visões de mundo,


cultura e ciência, postuladas no advento da modernidade, a fim de que
seja possível superar um modelo de formação de professores que se
apresenta estanque, disciplinar e fragmentado, consonante ao olhar da
ciência moderna, dirimindo a lacuna entre a formação de base específica
e a formação didático-pedagógica.

Corroborando essa perspectiva, Saviani (2009) aponta o dilema posto à


formação inicial dos professores como o problema que se configura no
distanciamento entre as dimensões cognitivas e didáticas de um processo
que deveria, por seu estado próprio de limitação epistemológica, formar
profissionais na ótica das competências cobradas a uma prática de
ensino que revela a unidade articulada no atravessamento do saber
específico e do saber escolar. No entanto,
220 UNIUBE

a ênfase nos conhecimentos que constituem a matéria


dos currículos escolares leva a dar precedência ao
modelo dos conteúdos culturais-cognitivos. [...] Tudo
indica que na raiz desse dilema está a dissociação entre
os dois aspectos indissociáveis da função docente: a
forma e o conteúdo.” (SAVIANI, 2009, p. 151).

A superação do dilema posto pelo distanciamento das dimensões


cognitiva e didática na formação docente se expõe na recuperação
da indissociabilidade inerente a este processo. Neste sentindo, é
fundamental compreender “o ato docente como fenômeno concreto, isto
é, tal como ele se dá efetivamente no interior das escolas.” (SAVIANI,
2009, p. 151).

Garcia (1991) revela que a formação inicial do professor configura


um importante campo na problematização da forma e dos fatores
que influenciam o docente a se tornar um profissional capacitado
para responder às diferentes demandas didático-pedagógicas e de
ressignificação do escopo do que significa ensinarem face às exigências
do novo século.

Trata-se, nesse sentido, de redesenhar, por meio de uma prática


educativa voltada para o protagonismo, uma estilística do saber que
constitua espaços sempre novos entre os sujeitos e os objetos do
conhecimento. Nesse contexto, o professor assume novas tarefas e
responsabilidades, uma vez que a construção de conhecimentos técnicos
e científicos voltados para o domínio das competências e habilidades
necessárias ao exercício do ofício docente se confirma, na forma do mais
eficiente instrumento, com a democratização do acesso das pessoas à
cultura, à informação e ao trabalho.
UNIUBE 221

EXPLICANDO MELHOR

O termo estilística, empregado neste texto, diz respeito às formas


próprias e aos modos particularizados de produção e apropriação do
conhecimento em face às diferentes experiências sócio-históricas e
culturais dos sujeitos com os objetos. Trata-se, pois, de uma apropriação
do conceito criado pela linguística para enunciar a natureza afetivo-
-expressiva do processo de construção do conhecimento, revelando o
caráter descritivo-interpretativo e pedagógico-escolar da relação dos
sujeitos com os objetos, bem como dos sentidos que esses sujeitos
produzem no campo dos saberes.

A formação inicial do profissional docente deve cumprir, basicamente,


três funções que atravessam o processo de preparação e formação do
especialista de determinada área do saber: articular o conjunto teórico e
epistemológico construído a par da geração das competências didático-
pedagógicas necessárias à prática profissional; passar pela certificação
legal para o exercício da profissão; e, por fim, chegar ao duplo registro em
que se inscreve o ofício de ensinar. E esse duplo registro diz respeito à
militância intelectual como processo transformador numa práxis coletiva da
educação e ao diálogo socializador, de consolidação dos princípios éticos
e de reelaboração dos valores estéticos e culturais (GARCIA, 1991).

É, pois, neste quadro, que as questões relativas à formação ética do


professor ganham forma e enfatizam importantes reflexões acerca das
condições da responsabilidade moral que permeiam todo o complexo
campo da ação educativa e da relação entre os sujeitos que ali se
inscrevem.

A despeito das críticas formuladas por Louis Althusser (1918-1990) a


respeito da função ideológica da escola, notamos que papel social que a
ela se dirige tem sofrido, ao longo dos dois últimos séculos, consideráveis
222 UNIUBE

transformações. Seguindo a crítica formulada pelo filósofo francês,


compreendemos que, de espaço de reprodução dos conhecimentos e de
instrução científico-cultural modeladora de comportamentos adequados
aos estratos sociais historicamente produzidos, incumbiu-se à escola a
responsabilidade pela formação do homem como sujeito integral e plural,
isso no princípio da pedagogia realista.

SAIBA MAIS

Reconhecido como o teórico das ideologias, Louis Althusser estabelece o


seu conceito de ideologia no dialogismo das teorias freudianas e marxistas.
No ensaio Ideologias e Aparelho Ideológico do Estado (1971), Althusser
afirma que a ideologia é a relação imaginária, transformada em práticas, a
fim de reproduzir as relações de poder e produção. As estruturas ideológicas
atuam tanto como aparelhos de repressão e de reprodução dos estratos
sociais. Como um organismo institucional, a escola caracteriza-se como um
AIE, revelando uma visão monolítica e acabada de uma organização social
rigidamente planejada e definida pelo Estado, cujo fim é a manutenção das
estruturas do poder político e econômico.

PONTO-CHAVE

O século XVII marcou o surgimento da pedagogia realista, estabelecendo


a transição entre a pedagogia do Renascimento e a pedagogia iluminista
do século XVIII. Fortemente influenciada pelo empirismo britânico, pelo
racionalismo de René Descartes e pelo movimento científico de sua época, a
pedagogia realista tencionou a substituição do conhecimento verbalista pelo
entendimento do mundo tal como ele se manifesta à consciência. Para tanto,
supõe uma nova didática e reafirma a ênfase na individualidade do sujeito,
na ordem social e moral advogando em favor da tolerância, do respeito às
diferenças e da fraternidade entre os homens.

À espreita do caráter plural da condição humana, a pedagogia


contemporânea determinou a complexidade da ação educativa e do
UNIUBE 223

desenvolvimento integral do homem, endossando em defesa desta


prerrogativa, que o estudo da ética deva emergir como conteúdo básico
na formação de professores. Isto porque a expansão e o amadurecimento
dos espaços democráticos de uma sociedade encontram-se
trespassados, diretamente, pela consolidação de uma cultura de respeito
e pela promoção de condutas guiadas pelos valores da liberdade e da
responsabilidade. Segundo Vásquez (2012, p. 109), “o problema da
responsabilidade moral está estreitamente relacionado, por sua vez,
com o da necessidade e liberdade humanas, pois somente admitindo
que o agente tem certa liberdade de opção e de decisão é que se pode
responsabilizá-lo pelos seus atos.”

Logo, o desafio posto à formação de professores, no que diz respeito


à constituição dos valores éticos essenciais à prática docente, parece
desvelar-se na intermediação burocrática e disciplinar que caracteriza
o currículo das licenciaturas em detrimento do acesso ao conteúdo
humanístico abrangente concebido já no iluminismo.

A demanda pela formação ética do professor traduz, em nosso tempo,


uma realidade emergente que tende a evidenciar não só o contexto
de fortalecimento da profissão, como, sobremaneira, os esforços pelo
fortalecimento das relações humanas e sociais, pois “a complexidade do
mundo requer o estabelecimento de juízo moral autônomo, sustentando
uma capacidade analítica e reflexiva, bem como o “raciocínio moral” para
resolver conflitos e diferenças através do diálogo.” (MACEDO; AMARAL,
2015, p. 74).

Por esse motivo, Rios (2002, p. 108-109) afirma que:


para um professor competente, não basta dominar
bem os conceitos de sua área – é preciso pensar
criticamente no valor efetivo desses conceitos para
a inserção criativa dos sujeitos na sociedade. Não
basta ser criativo – é preciso exercer sua criatividade
na construção do bem-estar coletivo. Não basta
224 UNIUBE

se comprometer politicamente – é preciso verificar


o alcance desse compromisso, verificar se ele
efetivamente dirige a ação no sentido de uma vida digna
e solidária.

Nesse contexto, a formação ética do professor se insere no conjunto dos


esforços elucidativos em favor de uma prática de ensino comprometida
com os valores coletivos, como exercício público de ações reflexivas que
revelem o compromisso ético com a democracia e os direitos do homem.

As práticas pedagógicas tecidas na contemporaneidade exigem a


desconstrução das relações verticais de ensino e o reposicionamento dos
sujeitos do conhecimento numa horizontalidade. Por isso, os primeiros
passos para a compreensão de uma postura pedagógica em que a práxis
confirme o espaço dialético constituído da relação Eu-Outro, perpassam,
diretamente, pela constatação de uma conduta profissional que se
estabeleça numa relação de tolerância e respeito entre esses sujeitos.

No que concerne à desconstrução das relações verticalizadas de ensino,


vale ressaltar a perspectiva dada por Michel Foucault ao papel da escola
no regime biopolítico. A esse respeito, o filósofo afirma que no regime
biopolítico a escola opera uma espécie de ação analítica sobre o bios,
sobre a vida. As técnicas de poder, controle, norma e castigo empregadas
no exercício da docência, da pedagogia e da relação entre professores
e alunos, têm como objetivo a manutenção do aparelho do Estado,
das relações de produção [um corpo dócil é também um corpo útil],
dominação e efeitos da hegemonia, afinal, afirma o filósofo, “já não se
trata de pôr a morte em ação no campo da soberania, mas de distribuir
os vivos em um domínio de valor e utilidade.” (FOUCAULT, 1987, p. 157).

A par de Foucault ter designado por biopolítica a entrada do corpo e da


vida nos cálculos do poder, coube a Deleuze explicitar que ao poder
sobre a vida [biopoder] deveria responder o poder da vida [biopotência],
ou seja, a potência política da vida na medida em que ela faz variar suas
UNIUBE 225

formas e reinventa suas coordenadas de enunciação. Desse modo, na


análise das novas políticas educacionais, os conceitos de biopolítica e
governamentalidade surgem como ferramentas de suma importância,
tanto porque demonstram as descontinuidades acerca do projeto
disciplinar, quanto porque indicam as novas configurações das políticas
educacionais contemporâneas. Neste contexto, a reformulação dos
conceitos de biopolítica e governamentalidade indicam um novo modelo
de análise que pode ser definido em termos de sociedade de controle.

O conceito de sociedade de controle, criado por Gilles Deleuze


(1925-1995) e encontrado no ensaio Post-scriptum sobre as sociedades
de controle (1992), revela o esgotamento da sociedade disciplinar, e
por sua vez, a falência das instituições disciplinares, como a escola.
De acordo com o filósofo, os confinamentos da disciplina eram moldes
produtores de subjetividades, ao passo que, os controles operavam como
uma modulação. Entretanto, as antigas instituições, como a fábrica, o
hospital, a prisão e a escola, transformam-se, no auge no século XX, em
empresas, modificando toda uma gramática que havia sido produzida
pela sintaxe disciplinar e que agora se torna obsoleta na sociedade de
controle (DELEUZE, 1992).

No caso da escola, especificamente, as práticas pedagógicas


transformaram-se e foram, paulatinamente, adaptadas à ideia da
empresa escolar. Tais práticas, sejam elas novas ou reapropriadas,
em sua grande maioria, situam-se nos termos de uma reciclagem das
práticas pedagógicas progressistas e revolucionárias e podem ser
observadas tanto no discurso pedagógico oficial quanto nas práticas
cotidianas escolares, especialmente nas avaliações continuadas e nas
reformas curriculares que tendem sempre a responder demandas estatais
no campo da economia.

Por isso, torna-se imperativo lançar um novo olhar sobre o cotidiano


escolar, suas práticas pedagógicas e os saberes educativos, sobre
226 UNIUBE

a estrutura das instituições de ensino e, sobretudo, das políticas que


deliberam sobre a elaboração dos currículos, os tempos e espaços da
aprendizagem, a formação inicial, a prática e a profissionalização do
professor.

O desafio de estabelecer relações de ensino-aprendizagem sobre bases


fortemente éticas aponta para a necessidade de compreender o outro
em sua inteireza. Nesse cenário, o confronto com os desafios postos
pelo dever e pelo fazer demonstrou-se extremamente difícil e trabalhoso,
considerando que o homem vive, em nosso tempo, um relativismo
generalizado de valores que, por consequência, o torna um indivíduo
isolado, atomístico e marcado apenas pelos inúmeros interesses e
impulsos que precisam ser atendidos. Trata-se, em última análise, dos
sintomas de uma sociedade que tende a legitimar-se utilitariamente,
degenerando a dimensão ética e a extensão semântica que sinaliza para
as condições de possibilidade para a efetivação de uma vida mais justa,
pois, como bem notou Comparato (2006, p. 618), “os indivíduos podem
viver isoladamente em função de seu interesse particular. [...] Mas a
convivência política exige o respeito superior ao interesse comum de
todos os membros do grupo social (‘o estado civil’).”

Sob este viés, compreendemos que a vida para o ser humano excede
o plano da existência biológica, alcançando os caminhos pela busca da
felicidade, que se revela no viver para o bem, uma vez que “o verdadeiro
sentido da vida humana é manifestamente ético” (COMPARATO, 2006, p.
695). Por isso, toma-se como exigência das novas relações de saber, o
resgate do ideal grego de Paideia, como programa de uma educação em
que o conhecimento se origine da ética e nela encontra a sua finalidade.
A reflexão ética nas práticas docentes visa uma profunda transformação
dos indivíduos, transformando os interesses particulares e contingentes
em interesses racionais e coletivos.
UNIUBE 227

Desse modo, as histórias pessoais que permeiam as experiências dos


profissionais da educação são fundamentais no que tange à criação de
um inventário de experiências, saberes e competências que direcionem
a formação de competências científicas e humanas. Nesse sentido, é
válido que professores e alunos troquem conhecimentos, mas que, de
modo fundamental, preservem o espaço das subjetividades, haja vista
que ambos são sujeitos ativos e participativos que tendem a crescer
intelectualmente.

A esse respeito, Fontana reitera a importância de considerarmos a


aproximação com o vivido, a fim de promover a participação do Outro e
com o Outro, numa dinâmica de interações permeada pelas relações de
poder, de jogo de lugares e papéis sociais que produzem significados e
constituem os indivíduos, pois,
singularidade e significação não se oferecem como
comportamentos a observação direta. Antes, inscrevem-
se nos gestos dos indivíduos, deixando marcas em
seus corpos. Entremeiam-se a suas palavras e a seus
silêncios, deixam indícios em seus dizeres. Marcas
e indícios significam mais que explicação, requerem
compreensão (FONTANA, 2000, p. 105).

E ainda, que
para nos acercarmos das relações interpessoais de
indivíduos que vão se constituindo em condições sociais
específicas, mostram-se insuficientes as observações
e análises objetivas que excluem as situações
pontuais, efêmeras e contraditórias de dor e alegria,
de serenidade e enfrentamento, de assentimento e
de desobediência, ou os sentimentos de emoção, de
angústia, de raiva, que são experimentados pelos
sujeitos envolvidos em nossas indagações (FONTANA,
2000, p. 106).

Nesse sentido, a escola deve constituir-se como espaço de uma dinâmica


interativa que corrobore diretamente a elaboração e a circulação de
sentidos através das práticas discursivas como práticas significativas.
228 UNIUBE

É precisamente este o movimento pelo qual a escola assume seu papel


fundamental: o de constituir-se como campo crítico-criativo capaz de pôr
em questão as relações discursivas que se entretecem nos entremeios
das relações de poder e produção de subjetividades. Assim posto, a
escola e seus sujeitos devem revelar a tenacidade de uma interlocução
em que os dizeres e as práticas significam condições de uma enunciação
concreta: dizer e dizer-se; contrariar os espaços estriados, métricos
e mensuráveis de aprisionamento dos corpos, do pensamento e da
sensibilidade; pensar a educação escolar e suas práticas, seus sujeitos
e subjetividades como criação de saídas. (Re)existência: existir de novo;
de outras formas, de diferentes maneiras, em espaços e experiências
outras. Algo como o que se assinala o pensamento de Foucault: novos
modos de existir, de ensaiar a vida.

Para tanto, há que se compreender os novos paradigmas educacionais e


reconhecer que o papel da educação escolar não pode ser simplesmente
o de transmitir os conhecimentos técnicos e científicos que concorram um
modelo de formação especialista e de adaptação do sujeito ao mundo.
Nesse sentido, é imprescindível considerar o saber de experiência, algo
que se passa entre o conhecimento e a vida humana. E, considerando-
-o, arrogar ao mesmo tempo o que está fora, existindo antes do sujeito,
e o que está dentro, nos domínios de sua sensibilidade. Trata-se de
fazer surgir na educação escolar outros modos de uma existência que
confronte a perda da capacidade de as pessoas intercambiarem seus
conhecimentos, de trocarem seus saberes.

No âmbito das questões éticas, a educação escolar como experiência


narrativa se expõe, então, como condição do fenômeno possível: uma
narrativa é matéria em movimento, ela conserva pontos fixos a partir
dos quais é possível criar algo sempre novo. Nesse sentido, ensinar e
aprender definem movimentos de circularidade, de repetição e diferença.
Ademais, se pressupomos que o homem é, ao mesmo tempo, sujeito
UNIUBE 229

que aprende e que ensina, então esse duplo movimento emprega um


processo repleto de significação em quaisquer direções em que se
observe o seu deslocamento. Ensinar e aprender são, essencialmente,
experiência; algo que se passa com os sujeitos no interior da relação
educação/cultura/história. Assumir essa prerrogativa significa admitir
um movimento contínuo de questionamentos e ideias que conjuram
hipóteses e ações, clareiam significados, reelaboram conceitos,
interpretam situações e, bem frequentemente, inspiram outras versões
de ensinar e aprender.

A aprendizagem como experiência narrativa supõe a reconciliação do


narrador com suas memórias: dimensões sobrepostas, ou, mais do que
isso, interdependentes. Nesse contexto, professor e aluno são, ao mesmo
tempo e em diferentes medidas, narradores cujas palavras conservam
a forma da aprendizagem como "ensinagens", construção de sentidos
e exercício público da memória: imagem de uma experiência coletiva.

5.4 Considerações finais

Dos desafios que se apresentam à modernidade, notamos de maneira


cada vez mais marcante a tendência à relativização dos valores universais
e o desencadeamento de uma crise de sentido que se apresenta,
sobressaidamente, como uma crise ética. Essa crise se encontra
estruturada no centro da vida humana e se refere, principalmente, à
constituição das razões fundamentais do viver e os fins capazes de dar
sentido à existência. Por isso, a compreensão racional de um ethos que
se supõe vivido pela comunidade encontra grandes desafios para se
fazer presente em vários níveis da sociedade.

No âmbito da escola e das práticas educativas não é diferente. Colocar


a questão dos pressupostos éticos que orientam a formação do caráter
moral no interior das relações de ensino requer algumas demarcações. A
primeira, diz respeito à natureza social que marca a experiência humana
230 UNIUBE

de estar no mundo: ser-aí-no-mundo, tal como postulava o filósofo


alemão Martin Heidegger (1889-1976). Nesse sentido, o ser humano
não só realiza sua existência no contato com os outros seres humanos,
como, a partir desse movimento de interesses (como o que se passa
entre pessoas), coloca em evidência desafios da convivência cotidiana
no enfrentamento dos dilemas que se põe à exigência da escolha: ou
isto ou aquilo.

Depois, no que concerne justamente ao caráter democrático da


sociedade e do modo como os valores políticos atravessam as relações
que se entretecem no chão da escola. Nesse sentido, não se considera
a democracia apenas como habitus de uma sociabilidade que permite a
expressão de diferentes visões de mundo, mas, para além disso, como
condição de uma vivência concreta dos valores que implicam a prática
educativa como processo de humanização. Por isso, os indivíduos que aí
se inscrevem não podem ser compreendidos fora de seu contexto, uma
vez que são eles os sujeitos de sua própria formação e se desenvolvem
nos desdobramentos contínuos da reflexão sobre seu lugar no mundo.

É, pois, nesse sentido, que a intersubjetividade presente nas relações


de ensino encontra-se ancorada sobre elementos psicológicos que
permeiam o alcance não só do saber, mas da relação que se constitui,
cotidianamente, entre os sujeitos. Nesse campo, a afetividade e o desejo
merecem especial atenção, pois, através dessas duas vias, são formadas
as representações sociais dos sujeitos, seja em termos da apreensão do
conhecimento ou da consolidação da identidade moral.

A fundamentação ética das práticas pedagógicas supõe uma práxis


que estimule reflexões e vivências capazes de produzir movimentos de
emancipação. Nesse contexto, o papel do professor como mediador do
conhecimento não é outro senão fomentar e desenvolver as competências
que permitam ao aluno tomar parte na construção de atitudes baseadas
UNIUBE 231

no diálogo, na tolerância e na solidariedade. Desse modo, a construção


de aprendizagens significativas passa sempre, e necessariamente, pelo
reconhecimento do mundo como lugar de tessituras outras: memórias,
identidades; ensaio de uma descrição direta da experiência como ela é:
produção de sentidos, ditos e interditos que fazem da ética um exercício
de coletividade.

Resumo
O objetivo deste capítulo foi ensaiar um exame da formação ética do
professor e dos desafios éticos que constituem a atividade de ensino
no tempo presente. A investigação aqui realizada sedimenta-se,
teoricamente, sobre duas bases: na primeira, partindo da temática
filosófica de Sartre (1978, 1999), Foucault (1987, 2006), Vaz (2004) e
Vásquez (2012), foram construídas reflexões em torno da finalidade
da ética enquanto aporte essencial da tessitura das relações que se
constituem em âmbito sócio histórico e existencial; na segunda, a par
das contribuições de Saviani (2009), Fontana (2000), Rios (2002) e Gatti
(2012), foram analisados os aspectos teóricos da formação docente que
nos permitiram, por fim, questionar a formação ética do professor e a
complexidade das relações entre os sujeitos no campo do saber.

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