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A relação entre linguagem e realidade:

um panorama histórico

Iran Ferreira de Melo


Doutorando em Filologia e Língua Portuguesa – USP;
Mestre em Linguística – UFPE
São Paulo – SP [Brasil]
iranmelo@usp.br

Em toda história dos estudos sobre a linguagem, grandes ques-


tionamentos foram feitos acerca da relação entre as palavras e o
mundo. Pudemos observar, com isso, a preocupação do homem
em desvendar os liames que separam ou fundem a linguagem
da realidade que o norteia. Este trabalho tem como objetivo dis-
cutir várias concepções sobre a díade linguagem e realidade so-
cial, destacando o quadro teórico de Norman Fairclough (1989,
2001, 2003), considerado um dos principais expoentes sobre o
assunto nos recentes estudos linguísticos, e que defende que a
relação da linguagem com o mundo se dá por meio de uma ati-
vidade dialética entre ambos. Nosso intuito é traçar um panora-
ma sobre as teorias acerca da relação referencial entre mundo e
linguagem, postuladas pelos teóricos supracitados, e sublinhar
a pertinência da perspectiva sociodiscursiva de Fairclough para
os estudos linguísticos contemporâneos, apontando seus con-
ceitos e sua aplicabilidade.

Palavras-chave: Categorização. Construção. Linguagem.


Realidade. Representação.

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1 A relação entre a linguagem e a de sentido ao que se escreve ou ao que se fala não
prática social. Espelhamento ou depende apenas da construção linguística, mas está
construção? profundamente imbricado com fatores de ordem so-
ciocognitiva.
Durante muito tempo, nos estudos sobre a Essas duas formas de identificar a função da
linguagem, grandes questionamentos foram feitos linguagem ante a construção social foram debati-
acerca da relação entre as palavras e o mundo. das por meio de vários postulados epistemológicos
Desde o período clássico, reflexões filosóficas sobre durante os séculos. Assim, incursionar por alguns
como conhecemos o mundo por meio da linguagem desses postulados é de grande pertinência para
verbal estiveram presentes na agenda teórica de todo identificarmos como essa atividade de relacionar a
pensamento ocidental. atividade linguística à prática social foi discutida
Aristóteles (2000) já previa uma relação do em várias épocas; veremos que houve muito mais
mundo com a linguagem. Para ele, essa relação discordâncias que consenso na história das teorias
ocorria por meio de um processo intralinguístico, sobre o assunto.
por meio de mecanismos criados na predicação
verbal – formas de os homens organizarem no
próprio sistema linguístico – todas as coisas exis- 2 Panorama das concepções sobre a
tentes. As palavras, no pensamento aristotélico, representação social por meio da
não possuíam sentido isoladamente, mas apenas linguagem
quando relacionadas a um processo de predicação
verbal, pelo qual atribuímos sentido ao mundo, para Hoje os estudos linguísticos entendem não
o filósofo grego. Conforme o que ele preconizava, ser eficaz tratar da relação língua/realidade
é em razão das predicações que as palavras fazem social como, estritamente, um processo de repre-
referências ao mundo. Para ele, o processo de ca- sentação, e sim como uma atividade de constru-
tegorização do mundo consiste, por excelência, na ção da realidade, mas, até esse posicionamento
imanência da língua. epistemológico se firmar, surgiram diversas pro-
Postulando o contrário da concepção aristo- postas teóricas. Podemos apresentar algumas das
télica, Marcuschi (2004, p. 264) afirma que “[…] mais emblemáticas.
aquilo que damos a entender com nossos usos lin- De acordo com Silva (2004), um dos nomes
güísticos não está previsto de uma vez por todas de maior importância no que diz respeito à relação
no sistema da língua, e sim nas formas de vida”. homem/realidade social foi Emmanuel Kant,
Segundo esse autor, efetivamos o processo de cons- que deu um passo adiante da teoria de Aristóteles
trução de sentido na relação que a linguagem possui quando cunhou o conceito de representação do
com a vida social. De acordo com essa perspectiva, mundo como uma maneira de manifestação da
ele afirma que não é possível nos referirmos à re- atividade do intelecto ordenar as ideias sob uma
alidade social se não for por meio da linguagem, imagem comum. Para ele, o processo de represen-
pois ela é a base de qualquer processo remissivo do tar algo é uma forma de juízo sobre o mundo, de
que existe no mundo. Entretanto, o fornecimento manifestar os conceitos primitivos do intelecto, por

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meio dos quais – segundo Kant – o sujeito capta o car “[…]‘teorias’ que os indivíduos têm acerca da
mundo, determina-o e o ordena conceitualmente de natureza dos eventos, dos objetos e das situações
modo igual a todos. dentro de um mundo social” (ABRIL, 2003, p. 53),
Contudo, na primeira metade do século XX, uma forma específica de conhecimento socialmente
essa concepção foi objeto de crítica de Durkheim ao elaborado e partilhado.
apontar lacunas na perspectiva kantiana, afirman- Foram diversos os pontos de divergência entre
do que o pensamento racionalista de Kant reduzia os conceitos postulados por Durkheim e Moscovici.
as categorias a um processo essencialista e imanen- Durkheim procurou dar conta das representações
tista, sem considerar a relação entre o indivíduo e sociais como fenômenos compartilhados social-
o objeto como uma relação social. Para Durkheim mente e que exprimem uma sociedade primitiva,
(apud, SILVA, 2004) as categorias são produzidas como um arqué, que é produto de uma imensa
por fatores sociais primitivos e são reconhecidas no cooperação social, que ultrapassa espaço e tempo.
bojo das teorias sociológicas. Durkheim dedicou-se a trabalhos sobre imaginários
Contrariamente à linha durkheimiana, sociais, mitos e religião. Já para Moscovici, as repre-
surgiu, em meados do século XX, a concepção de re- sentações sociais se constituem no compósito de ex-
presentação social postulada pela Psicologia Social. pressões ideológicas, religiosas, de várias ciências e
Conceito extremamente importante, pois foi ampla- de um ideário coletivo sobre uma realidade.
mente debatido e utilizado por diversos campos das Ainda como crítica à perspectiva de Durkheim,
Ciências Humanas. Ele foi delineado nas investiga- surge a proposta de Harvey Sacks, que, de acordo
ções que se deveram ao pesquisador Serge Moscovici com Conein (2001), retira de foco a ideia de repre-
no seu trabalho publicado em 1961 e intitulado La sentação coletiva social e dá espaço ao conceito de
psychanalyse, son image et son public sobre a so- categorização social, que postula – ao contrário de
cialização da Psicanálise em Paris. Durkheim, cuja abordagem se apresenta na pers-
Moscovici propunha redefinir os problemas e pectiva do pesquisador – a ideia de que as condições
conceitos da Psicologia Social com base na ideia de sociais de uma categoria não são reconhecidas do
representação social, e criticava a perspectiva norte- ponto de vista da Sociologia, mas da própria socie-
americana de análise social vigente, pois, para ele, dade/cultura. Sacks vai constatar isso em trabalhos
se baseava em processos psicológicos puramente in- no âmbito da conversação.
dividuais, sem apontar as relações cotidianas num A discussão sobre processos de categorização
nível social coletivo. da realidade via linguagem permaneceu na ordem
Segundo Moscovici (1984), no processo de do dia durante um bom tempo nos estudos das
construção das representações, os conceitos e as ciências humanas, mas desde que Eleanor Rosch
ideias são transformados em linguagem, o que faz (1978) se iniciou nesse debate, não se admite que
corresponder os objetos do mundo às palavras, e dão seja possível conceituar as categorias como pro-
corpo a um processo de categorização da realidade priedades necessárias e suficientes, ou seja, como
como fonte de consciência da vida social coletiva. propriedades estáveis.
Desde então, o termo “representação social” Rosch (1978) explicou que as categorias são
passou a ser usado por diversos teóricos para expli- protótipos culturais. Para ela o mundo é categoriza-

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do por nossas experiências de modo prototípico, isto dizer “afro” quando nos referimos a um indivíduo
é, a realidade é traduzida por protótipos que criamos de tez escura. Afinal, o que estaria implícito nessas
com base nas situações específicas pelas quais pas- escolhas lexicais? O uso de um ou outro termo não
samos, e são eles que nos fornecem os sentidos sobre é aleatório, está atrelado a fatores de ordem social,
o que conhecemos no mundo. cultural e cognitiva que permeiam a interlocução
Contudo, de acordo com Marcuschi (in em que tal uso foi feito. Desse modo, é possível as-
mimeo), nem o conceito de representação social segurar que, de acordo com a escolha de um dos
nem o de protótipo se sustentam no atual estágio termos, o processo de atribuição construirá sentidos
dos estudos sobre categorias. Com esses dois concei- diferentes, pois os referentes (os objetos do mundo,
tos, Marcuschi (in mimeo, p.08) afirma que “[…] elementos extralinguísticos) serão identificados
entendemos uma imagem mental instalada a priori diferentemente com os atributos culturais do que
ou pelo menos independente de algum tipo de ati- forem denominados – “negro” ou “afro”.
vidade interativa.”, um componente dado e extrín- Esse tipo de reflexão somente é possível se
seco à ação discursiva. Com isso, Marcuschi (in considerarmos que a linguagem é um fenômeno
mimeo) defende que as coisas não estão no mundo que funciona como um processo intersubjetivo,
da maneira como as enunciamos, mas a nossa pragmático e ideológico e que se manifesta eminen-
enunciação consiste em nossa atuação linguística temente como prática social.
e intersubjetiva sobre o mundo e consequentemen- A reflexão acerca da relação entre a lingua-
te em nossa inserção sociocognitiva nele. Ou seja, a gem e a realidade social como um vetor que emerge
construção dos objetos que enunciamos não é dada dos usos linguísticos e aponta para o mundo, enten-
de modo a representar algo, ou de forma prototípica, dendo a língua como um espelhamento da realidade
mas construída na relação que estabelecemos com social, foi o posicionamento teórico que prevaleceu
o outro por meio da linguagem. Nós estamos, cons- anos a fio nos estudos da Linguística durante o
tantemente, criando o mundo que nos rodeia, a nós século XX e que nos fez crer na produção da lingua-
mesmos e as nossas práticas sociais por meio da in- gem como uma maneira de representar as nossas
teração verbal. ideias e as coisas do mundo e na sua compreensão
O fato é que, ao representar o mundo pela como uma forma de decodificar a representação
linguagem, não estamos apenas espelhando a re- mental do produtor (consequentemente o que este
alidade social, como uma imagem do que existe, via no mundo). A língua servia, portanto, como uma
mas também contribuindo para a formação dessa maneira de retratar o que havia fora dela. Tratava-se
realidade, dando sentido e existência a ela, pois toda de uma postura, essencialmente, dualista acerca da
formação de discurso é uma posição do indivíduo linguagem: de um lado estava a língua e do outro o
sobre o mundo, ou, como preconiza Bakhtin (2004), que ela podia representar.
toda palavra é carregada de ideologia e traz consigo Nos estudos linguísticos estruturalistas era
uma posição axiológica do indivíduo em relação ao comum admitir-se a existência de uma Linguística
que se refere. externa e outra interna (SAUSSURE s/d). A externa
Para o pensador russo, toda palavra é enviesa- consistia nos “[…] fatos relativos à expansão duma
da. Por exemplo, dizer “negro” não é o mesmo que língua fora de seu território” (s/d, p.31) e a interna

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atribuía à língua valor de “[…]um sistema que enunciar algo, aponta-se para esse algo e se assume
conhece somente a sua ordem própria” (idem). Esta a concepção de enunciação como um processo que
foi a perspectiva que prevaleceu durante a primeira instaura a realidade social.
metade do século XX e que compreendia a ativida- Uma tendência em perceber a realidade
de linguística como um funcionamento imanente, social como constituída pelas práticas linguísticas
por excelência, a um sistema de códigos, cuja única nos permite, hoje, conceber que a noção de língua
relação com sua exterioridade era de apontar e re- como representação da realidade, tal qual era usada
fletir, a realidade circundante. Tratava-se de uma outrora, não é mais aceita nos estudos linguísticos.
concepção de língua como um sistema que repre- Assim, cai por terra o conceito de representação no
sentava a realidade, uma espécie de espelhamento tratamento dado às atividades linguísticas.
do que existe. De acordo com Abril (2003), as representa-
A Linguística externa dava conta da refle- ções sociais podem ser vistas como estereótipos cul-
xão que se fazia sobre o que era exterior à língua turais desenvolvidos na atividade discursiva, ou seja,
e que tinha relação com ela, como, por exemplo, como uma criação de ideias comuns a uma cultura
os costumes culturais de uma nação que repercu- desenvolvidas por meio da interlocução. No entanto,
tiam no uso linguístico. Contrariamente a isso, a segundo essa mesma autora, é, principalmente,
Linguística interna deteve-se a falar do que, de fato, a capacidade humana para a ação discursiva que
o Estruturalismo acreditava ser a linguagem – um permite a formação das representações, que signifi-
sistema de códigos – ou seja, aquilo que era inerente cam uma forma de práxis sobre a realidade, e não,
ao próprio sistema da língua. apenas, um modo de refleti-la.
Após o advento das perspectivas enunciativas Podemos reconhecer, nesse ponto de vista de
e sociointeracionistas nos estudos linguísticos, a Abril, uma concepção puramente pragmática de
noção de língua como um sistema de representação se enxergar a relação entre a língua e a realidade
deu lugar a conceitos que consideravam a atividade social, diferentemente da proposta estruturalista que
linguística não mais como uma forma de retrato da entendia a representação como um espelho.
realidade apenas, mas como uma maneira de cons- Abril (2003) propõe uma teoria das repre-
truir a realidade na interação sociocomunicativa. sentações sociais como uma atuação no mundo,
Para tanto, dispuseram-se campos da Linguística concepção que se aproxima da noção de represen-
engajados numa agenda que privilegia o processo tação preconizada por Fairclough (2001, 2003),
discursivo da atividade linguística, ou seja, muito que entende essas representações, os sistemas de
mais as condições de funcionamento da linguagem conhecimentos e crenças e a formação das identida-
do que o seu sistema estrutural. des como práticas sociais que podem se manifestar
Isso permitiu a mudança de foco sobre a como práticas de linguagem.
língua, de uma abordagem intrínseca que concebia Contudo, por remeter à concepção de repre-
a estrutura linguística como uma forma de refletir/ sentação social como complexo de conceitos que
representar o extralinguístico para uma compreen- relacionam os objetos do mundo às palavras e que
são de que o uso da língua constrói o que é exterior dão corpo a esquemas mentais, o termo represen-
a ela. Ou seja, abandona-se a ideia de que, ao se tação ainda não é o mais feliz para designar o

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modo em que é possível, nos estudos contemporâ- uma atividade, que se constrói no próprio processo
neos da Linguística, compreender como a língua discursivo e na interação cognitiva entre os usuá-
se relaciona com aquilo que lhe é exterior – a re- rios da língua, ou seja, essa atividade faz referência
alidade social. à realidade ao mesmo tempo que a constrói. Desse
Eis que surge um conceito que tenta subs- modo, tal perspectiva assume um posicionamento
tituir totalmente a concepção de representação marcadamente sociocognitivista, entendendo as
como uma imagem mental, previamente instalada práticas discursivas como sociais constitutivas da
e independente da atividade interativa: a noção de realidade social.
categorização discursiva, ou seja, a ideia de que pro- Contudo, o problema da referência na lingua-
duzimos os objetos do mundo pelos mecanismos de gem ainda é altamente discutível. De acordo com
referenciação no interior dos nossos discursos, um Mondada (2005, p.12),
modo de construção das coisas do mundo por meio
da construção de objetos de discurso. […] há hoje em dia uma multiplicidade
Lorenza Mondada (2005; 2004) e Danièle de quadros teóricos diferentes disponíveis
Dubois (2004) foram os principais expoentes dessa para apreendê-la. De uma parte estão as
perspectiva nos recentes estudos linguísticos. abordagens cognitivas que remetem a
A categorização é “[…]um processo dinâmi- gestão das atividades de referenciação de
co e, sobretudo, intersubjetivo, que se estabelece no saberes compartilhados dos quais depen-
quadro de interação entre locutores, e é suscetível dem as escolhas das expressões referen-
de se transformar num curso dos desenvolvimentos ciais adequadas, i.e, a estados cognitivos
discursivos, de acordos e desacordos” (MONDADA, que caracterizam não apenas o locutor,
2005, p.11). A realidade social, desse modo, é criada mas também seu interlocutor a maneira
e interpretada na interação comunicativa e no pro- pela qual são apreendidos pelo primei-
cesso de categorização, que podemos entender como ro e, portanto, podem centrar-se quer no
de referenciação, sem indicar uma forma de apontar sujeito, quer no estabelecimento de uma
o que existe no mundo, mas de construir. intersubjetividade – seja ela tratada em
Como afirma Koch (2004), os referentes de termos de “memória discursiva”, seja de
nosso discurso, isto é, aquilo de que falamos, são cognição distribuída. De outra parte a al-
construídos em nossas ações sociocognitivas e é, ternativa às abordagens cognitivas é cons-
exatamente, a partir dos primados epistemológicos tituída pelas abordagens interacionistas,
das teorias sociocognitivistas, que a Linguística dá decididamente centradas muito mais no
vazão a esse modo de compreender a relação entre a que é publicamente manifestado pelos
linguagem e o mundo. participantes – aquilo que é tornado perti-
O processo de categorização da realidade, nente, reconhecido, inteligível por eles.
segundo essa perspectiva, não é visto mais como um
processo que se situa na relação de espelhamento da É evidentemente possível imbricar as duas
realidade na linguagem, mas significa uma prática perspectivas citadas acima, e é desse modo que
sociocognitivo-discursiva sobre a realidade, isto é, atuam Mondada e Dubois (2004) quando adotam

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a teoria sociocognitivista e interacional, para a qual lista crítico, Norman Fairclough (1989, 2001, 2003),
o mundo não nos é dado, mas o formulamos num para quem a análise do discurso pode interessar às
fluxo de classificação e memória constantes. Trata- várias ciências humanas, e as questões da análise
se de uma “[…] cconcepção segundo a qual os su- textual podem ser utilizadas como de pertinência
jeitos constróem, através de práticas discursivas e mais ampla.
cognitivas social e culturalmente situadas, versões Partindo do pressuposto de que não existe um
públicas do mundo” (MONDADA e DUBOIS, 2004, método de análise linguística que seja teoricamente
p.17). Esse processo de referenciação se enquadra adequado e viável na prática, Norman Fairclough
como uma atividade de realização do mundo na (2001) desenvolve sua teoria, para investigar a
linguagem, e não a partir dela. mudança da linguagem como sociocultural.
Enquanto o projeto de representação pressu- Sem o intuito de fazer análise do discurso
põe uma estabilidade das entidades no mundo e na como procedimento epistemológico sobre a língua,
língua, é possível, de acordo com a teoria sociocog- mas como instrumento político contra a injustiça
nitivista e interacional, reconsiderar essa proposta social, Fairclough (1989) propõe que os linguistas
teórica de enxergar os problemas das entidades da organizem pesquisas que exerçam ações de contra-
língua, do mundo e da cognição, e passar a focar poder e de contraideologia, práticas de resistência à
o processo que as constitui, para, assim, entender opressão social. Para ele, os analistas críticos, não
que “[…]o problema não é mais, então, de se per- podem ficar isentos de expor seus pontos de vista,
guntar como a informação é transmitida ou como sob pena de não poderem ser considerados habili-
os estados do mundo são representados de modo tados para desempenhar essa função. Eles devem-se
adequado, mas de se compreender como as ativi- opor às injustiças sociais em suas pesquisas e serem
dades humanas, cognitivas e lingüísticas, estru- agentes de transformação, pois, para esse autor, a
turam e dão um sentido ao mundo” (MONDADA neutralidade, diante das estruturas sociais, numa
e DUBOIS, 2Essa proposta de referenciação como pesquisa, torna o pesquisador cúmplice dessas
um processo categorial configura uma perspectiva mesmas estruturas.
dialética e dialógica da relação mundo-linguagem Fairclough (2001) busca identificar algumas
e lida com a noção de um sujeito sociocognitivo tendências abrangentes de mudança discursiva que
que constrói o mundo e é, ao mesmo tempo, cons- afetam a ordem societária contemporânea do dis-
tituído por ele no desenvolvimento de suas práticas curso e relacionar essas tendências às direções mais
discursivas, entendidas, também, como sociocog- gerais da mudança social e cultural. Para tanto, o
nitivas, por se realizarem no intermédio entre a autor conjugou estudos da Linguística com pesquisas
troca simbólica dos indivíduos em suas interações da Sociologia e dos Estudos Culturais. Entre os pri-
comunicativas, seus conhecimentos semânticos e meiros incluiu trabalhos da Pragmática, da Análise
pragmáticos compartilhados. do Discurso de linha francesa e da Linguística
Outra vertente teórica preocupada com a Sistêmico-funcional.
relação entre a linguagem e o mundo – de cunho De acordo com ele, os estudos linguísticos são,
estritamente crítico – é a perspectiva de estudos da por si, reticentes, do ponto de vista social, em muitas
Teoria Social da Linguagem desenvolvida pelo ana- de suas abordagens, pois deixam de focar os proble-

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mas da relação de poder e das diversas lutas sociais apenas atestam seu caráter de aparelhamento, re-
vigentes. Já os trabalhos de ordem sociológica, para produção e assujeitamento.
ele, abandonam o viés que considera a linguagem O linguista britânico considera que o termo
como objeto de investigação para perceber os proble- discurso traz uma carga de significados muito
mas sociais. O que, então, Fairclough (2001) deseja variada, podendo se referir a uma mostra amplia-
é fazer confluir os dois direcionamentos em apenas da da fala, para alguns; uma mostra ampliada
uma orientação, algo que sofreu interferências, do texto para outros; um tipo de linguagem ou
durante muito tempo. Segundo ele, para que essa domínio discursivo, de acordo com algumas ver-
análise sociocrítica integrada, pudesse se realizar, tentes; um tipo de estruturação de áreas de co-
ocorreram diversos percalços, como, por exemplo: nhecimento e práticas sociais, conforme outras
a posição estanque da Linguística enquanto disci- perspectivas; etc. Para ele, o discurso é uma en-
plina das ciências Humanas; o paradigma formal tidade-chave para posicionar os sujeitos sociais e
dos estudos linguísticos e o desinteresse das ciências funciona, ao mesmo tempo, como uma prática
discursiva, social e textual, como pudemos obser-
sociais pela linguagem.
var no gráfico acima. Isso significa que o estudo
Segundo Fairclough (2001), nessa abordagem
da Linguística, sobretudo da Análise do Discurso,
integrada entre as práticas discursivas e as sociais,
constitui um estudo das propriedades intrínsecas
os discursos refletem as relações sociais e as cons-
do texto, do funcionamento discursivo (produção,
troem ou constituem e qualquer evento discursivo
organização e consumo do texto) e do que esse
é considerado um texto, uma prática discursiva e
texto representa socialmente (se ele significa um
social. Simultaneamente, o autor chama de pers-
instrumento de poder, por parte de quem, em que
pectiva tridimensional do discurso: a dimensão
instância social e em que período histórico).
textual (objeto da análise linguística estritamente);
Partindo desse pressuposto, Fairclough (2001)
a da prática discursiva (objeto de uma análise do
expõe o cerne de sua Teoria Social do Discurso, apre-
processo interacional – produção e consumo de
sentando-o como um arcabouço teórico que salienta
textos); e a da prática social (objeto de uma análise a alteração das práticas discursivas como forma de
das circunstâncias institucionais e organizacionais provocar mudança na prática social, ou seja, levanta
da sociedade). o véu da naturalização feita das relações de poder
Fairclough (2001) afirma ser dialética a na- abusivas que se materializam discursivamente em
tureza social do discurso, ou seja, por um lado, as várias esferas sociais. Para tanto, ele aborda três ten-
práticas discursivas constituem a realidade social e, dências da mudança discursiva na contemporanei-
por outro, refletem essa realidade. Para ele, o mundo dade, que se configuram como processos complexos
é constituído pela atribuição de sentido dos atores na produção das práticas sociais: a democratização,
sociais ao próprio mundo. Ele acredita que as pers- a comodificação e a tecnologização dos discursos.
pectivas adotadas por outras análises do discurso A democratização do discurso consiste na eli-
sejam falhas porque não dão conta da “face” de minação de desigualdades e assimetrias dos discur-
resistência do discurso, da natureza da mudança sos, retirada das obrigações e do prestígio discursivo
social que as práticas discursivas carregam, mas e linguístico. Alguns exemplos são:

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1. a inserção de normas linguísticas pela escola como “cliente”, termo específico do dis-
não-padrão nas esferas prestigiadas curso mercadológico e que sugere a participação da
socialmente; relação de compra e venda, mas que, nesse caso,
2. o acesso da grande população a tipos deve ser de ensino-aprendizagem.
de discurso de prestígio; Por fim, a tecnologização do discurso, que
3. a eliminação de marcadores explíci- pode ser entendida quando tomamos por base as
tos de poder em tipos de discurso ins- teorias de biopoder desenvolvidas na Sociologia,
titucionais com relações desiguais de sobre as quais Fairclough (2001) discute algumas
poder – formas assimétricas de tra- peculiaridades, como o domínio de gêneros de dis-
tamento (senhor, professor, doutor), curso que determinam contextos contemporâneos
diretivos diretos (imperativos), uso de de nossa vida social: entrevistas (a aprovação num
vocabulário inacessível (uma forma emprego), publicidade (a sedução para a compra de
de assimetria implícita é quando um produto), entre outros.
uma só pessoa formula ou resume o As tecnologias discursivas, segundo o autor,
que se disse numa interação e, cons- criam realidades ilusórias que dão a impressão de
tantemente, oferece sua versão sobre conferir poder a quem as usa, pois, muitas vezes,
o que aconteceu), entre outros casos; são usadas de modo a criarem simulações do
4. o uso de femininos e masculinos ao real, como é o caso de algumas relações constru-
se referir aos dois gêneros, negando ídas num ambiente empresarial, quando se usam
a padronização para o masculino, alguns termos para denominar os empregados,
pois, para ele, toda padronização é como “associado”, palavra que carrega semanti-
um silenciamento, uma atitude an- camente o valor de associação, relação de seme-
tidemocrática. lhança entre pessoas. Fairclough interpreta esse
uso como uma maneira de maquiar as relações de
A comodificação do discurso é o proces- poder que existem nesse domínio.
so pelo qual os domínios e as instituições sociais, Para Fairclough (2001, p.40), “[…]produzir
cujo propósito não seja produzir mercadorias para um discurso faz parte de processos mais amplos
venda, vêm a se organizar e se a definir em termos de produção da vida social, das relações sociais
de produção, distribuição e consumo mercadológi- e das identidades sociais[…]”, não é um fim
co. Fairclough usa como exemplo a instituição de em si mesmo. Por essa razão, sua Teoria Social
ensino particular, que funciona como uma empresa do Discurso serve de base principal para a nossa
e marca isso discursivamente por meio da lexi- pesquisa, pois dimensiona os estudos linguísticos
calização. Para o autor, o uso de termos de dadas numa função investigativa, “[…]para opor-se às
ordens do discurso mercadológico colonizam outros injustiças sociais, assim como participar das lutas
discursos, como o pedagógico, esse é um processo de poder empreendidas pelos diferentes segmentos
de reificação discursiva. Por exemplo, “aluno”, que da sociedade” (VIEIRA, 2002, p.161), verificando
é um termo do discurso pedagógico e, portanto, sem como, por meio da escolha linguística, é possível
vínculo com qualquer relação comercial é tratado analisar a construção da sociedade.

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3 Considerações finais aqui, que ratificamos a sua pertinência no que
já foi e no que será produzido sobre o assunto.
Diante de toda essa abordagem sobre
alguns vieses que investigaram a relação entre
linguagem e realidade social, ressaltamos que Referências
todos eles aqui apresentados foram formas dos
cientistas – da língua ou não – exporem suas ABRIL, N. P. Análisis crítico del discurso y
representaciones sociales: un acercamiento a la
inquietações sobre a díade incontestável em tela,
comprensión de la lectura. In: BERARDI, L. (Org.)
que se constitui, ao mesmo tempo, também o ser
Análisis crítico del discurso: perspectivas latino-
humano. Seja sob uma ótica estruturalista, seja americanas. Santiago: Frasis Editores, 2003. p. 51-75.
sob uma perspectiva funcionalista, antropoló-
ARISTÓTELES. Categorias. Trad. Maria José Figueiredo
gica ou sociocognitivista, tal estudo sempre se Lisboa: Instituto Piaget, 2000.
revelou instigante para a humanidade, portan-
BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem. 11
to, é com a certeza de essa história não terminar
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recebido em 1º abr. 2009 / aprovado em 16 set. 2009

Para referenciar este texto:


MELO, I. F. de. A relação entre linguagem e realidade:
um panorama histórico. Dialogia, São Paulo, v. 8,
n. 2, p. 217-227, 2009.

Dialogia, São Paulo, v. 8, n. 2, p. 217-227, 2009. Artigos

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