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Funk, Sertanejo e Axé - Rafael G. Zincone Braga
Funk, Sertanejo e Axé - Rafael G. Zincone Braga
Resumo
Esse artigo é parte do projeto de pesquisa que pretende observar em gêneros de nossa
música popular massiva - funk, sertanejo e axé - agenciamentos políticos caros a questões
de comportamento e de estética musical. Partindo de um artigo de Vladimir Safatle e de
recente entrevista de Caetano Veloso, faremos uma reflexão em torno da relação produção
musical e política nos dias de hoje vis-à-vis o atual estágio de desenvolvimento das novas
tecnologias de comunicação. Se de um lado o filósofo classifica os três gêneros como
“fim da música” e, de outro, o cantor popular os exalta como uma “Tropicália” ainda
inexplorada, justificamos esta reflexão pela ambivalência do objeto em estudo.
1. Introdução
Em artigo de 2015 para o jornal Folha de São Paulo, Vladimir Safatle atestou “o fim da
música”. Quando o filósofo se reporta às décadas de 1970 e 1980, diz que naqueles anos
nossos músicos populares se transformaram em “expoentes maiores da consciência
crítica” em decorrência de um desenvolvimento econômico que, em suas palavras, teria
levado nosso país a “uma explosão cultural”. No entanto, ao se reportar sobre os últimos
anos, de 1990 para cá, observa o predomínio de um movimento que “vai do É o Tchan,
da era FHC, ao funk e sertanejo universitário do lulismo” que ele, Safatle, associa à ideia
de regressão:
1
O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001.
2
Esse texto é resultado de trabalho final para a disciplina “Capacidade movente da música” ministrada
pelos professores Micael Herschman e Felipe Trotta no Programa de Pós-Graduação em Comunicação e
Cultura da UFRJ.
3
Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação da PUC-Rio.
pura louvação da inserção social conformada e conformista. A música
brasileira foi paulatinamente perdendo sua relevância, para se transformar
apenas na trilha de fundo da literalização de nossos horizontes (SAFATLE,
2015, p.1).
Sobre tal “teoria”, dizem que não há ciência de ponta, mas “variações hiperbólicas
floridas sobre uma espécie de senso comum acadêmico” (idem).
Ela se esquece de levar em conta que o mundo mudou nos anos 1990. Que ao
ruir do muro de Berlim e da Guerra Fria ergueram-se outros muros e
encetaram-se outras guerras. Aqueles mesmos que ele gostaria de ver
construírem este país a ferro e fogo têm seus filhos mortos pelo ferro das Forças
Armadas e seus domicílios incinerados pelo fogo do Estado — mórbida ironia!
Para Safatle, eles não têm cultura (idem).
Disso, perguntamos, no mundo de agora, por que não considerar novas trincheiras
e instrumentos de batalha que não necessariamente correspondam aos dos tempos de
Guerra Fria, ditadura e os CPCsiii da UNE?
III. A Comunicação como campo de batalha e a música pop como relevante instrumento
de guerra.
Diante dessa nova realidade, trabalhamos com a hipótese de que nesses três
segmentos de nossa música popular massiva – funk, sertanejo e axé – há inúmeras
narrativas de confronto e negociação com o hegemônico, sobretudo em questão de habitus
de classe (Bourdieu) e comportamento. Em uma sociedade de comunicação marcada por
maior mediação (Martín-Barbero) - mesmo que os meios (como a própria televisão) ainda
exerça poder central de influência – temos maiores possibilidades de discurso. O jovem
que hoje consome qualquer produto musical como um videoclipe é capaz de dar um
feedback de forma instantânea – para curtir ou trollar basta um clique. Assim, em
contraponto com a análise de Safatle sobre o atual estado de nossa música popular e com
maior adesão ao palpite/provocação de Caetano Veloso, nos interessa, dentre desses
estilos, buscar as agências políticas contra-hegêmonicas nessas narrativas. Não
ignoramos, contudo, o papel modulador da grande indústria, porém, nossa tarefa aqui é
outra. É, de fato, caçar pelo em ovo.
Quando nos atentamos a três segmentos musicais como o axé, o funk o sertanejo
universitário, tendo como parâmetro duas análises que remetem à era dos festivais e ao
tropicalismo, temos que atentar para um risco: a possibilidade de cairmos em
anacronismo. Se Safatle observa a trajetória da produção musical no Brasil vis-à-vis os
processos de desenvolvimento econômico do país entre o último e atual século, devemos
marcar algumas diferenças entre o “surto” desenvolvimentista dos anos da Tropicália em
relação aos últimos resquícios de desenvolvimento dos anos 2000. Disso, cremos poder
falar melhor – quando o assunto é música – sobre quem produz, quem consome e quem
participa.
A economista Laura Carvalho (2018) denomina o período do governo Lula entre
os anos de 2006 e 2010 de “milagrinho”. Diferentemente do “milagre”, cujo início é
coetâneo ao tropicalismo musical, o “milagrinho” se caracterizou por um crescimento que
mexia na base da pirâmide social – resultado em boa parte das políticas de transferência
de renda e do aumento do salário mínimo. O “milagre econômico” do período 1968-73
da ditadura militar teve taxas mais altas de crescimento do que as do “milagrinho”, mas
acompanhadas de um acirramento das desigualdades. Nesse círculo virtuoso, cresceram
setores de bens industrializados mais sofisticados (como linha branca, automobilística)viii.
A espiral da desigualdade se originava do padrão de consumo das famílias e se
desdobrava para a estrutura produtiva e de emprego na economia.
Segundo Carvalho (2017), o mesmo nexo causal é encontrado no período entre
2006 e 2010. Porém, dessa vez o crescimento maior trouxe consigo uma maior redução
das desigualdades.
As transferências de renda via Bolsa Família, a valorização mais acelerada do
salário mínimo e a inclusão no mercado de consumo de uma parte significativa
da população brasileira levaram à expansão de setores cuja produção
demandava uma mão de obra menos qualificada. É o caso de muitos setores de
serviços e da construção civil, que cresceram de forma expansiva no período.
Como esses setores empregam muitos trabalhadores menos instruídos, o
grau de formalização e os salários da base da pirâmide subiram mais
ainda, reforçando o processo (p.23, grifos meus).
O disco do Dream Team do Passinho, lançado em 2015, traz duas canções que
discutem a heteronormatividade na música. “Batom com batom” e “Kiss me”
narram, respectivamente, um caso de amor entre duas meninas e o
relacionamento entre dois meninos. O que Safatle chama de “regressão”
causou nos últimos dois anos acalorados debates no campo do feminismo.
Valesca Popozuda, entre outras funkeiras, protagonizaram com seu papo-reto-
quase-descompromissado e com seus corpos descolonizados um
embaralhamento do dualismo colonial/moderno (idem).
Referências
CAMPOS, Augusto de. Conversa com Caetano Veloso. In: CAMPOS, Augusto de.
Balanço da bossa e outras bossas. 4. ed. São Paulo: Perspectiva, 1986.
SAFATLE, Vladimir. O fim da música. Folha de São Paulo. São Paulo. 9 out. 2015.
Folha ilustrada, coluna. Disponível em:
https://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrada/235828-o-fim-da-
musica.shtml?loggedpaywall#_=_. Acesso em 19 jun. 2018.
*
Trabalho apresentado no GT 2 – Estudos da imagem e do som durante o XV Poscom PUC-Rio, de 6 a 9
novembro de 2018.
i
O artigo está disponível em: http://tropicalia.com.br/en/eubioticamente-atraidos/reportagens-
historicas/que-caminhos-seguir-na-mpb/. Acesso em 16 de jul. 2018.
ii
Segundo Renato Ortiz (1985), a ideia de “nacional” era diretamente associada à ideia de “popular” para
grande parte dos intelectuais de esquerda no Brasil. Por esta razão, estilos musicais brasileiros afinados, de
uma forma ou de outra, à estética estrangeira, como a jovem guarda e o próprio tropicalismo eram vistos
de forma suspeita por esses segmentos.
iii
Centros Populares de Cultura.
iv
Conforme Cláudia Regina Paixão em sua dissertação de mestrado, a música adequou-se aos formatos da
televisão ao longo da década de 1960. O banquinho e violão da bossa-nova daria lugar ao canto impostação
e variações jazzísticas do gênero (performance que caberia em um programa de auditório). A difusão dos
happenings tropicalistas foram possibilitados também pela então nova tecnologia de comunicação. Ver
PAIXAO, C. R. Televisão e Música Popular na década de 60: as vozes conflitantes de José Ramos
Tinhorão e Augusto de Campos. 146 f. Dissertação (Mestrado em Comunicação). Faculdade de Arquitetura,
Artes e Comunicação, UNESP, Bauru. 2013.
v
Ver ZINCONE, Rafael. Parabolicamará: Tropicália e a politização do cotidiano na TV. Dissertação
(Comunicação). Programa de Pós-Graduação em Mídia e Cotidiano. Universidade Federal Fluminense.
Niterói-RJ, 2017.
vi
Conforme Dunn (2009), as letras tropicalistas eram, a princípio, aprovadas com maior facilidade por
censores em relação àquelas de cunho militante pelo fato de aderirem a uma estética pop (a princípio
inofensiva ao regime autoritário). No entanto, uma vez que estivessem nos palcos dos programas de
televisão – na época transmitidos ao vivo – os artistas valiam-se de performances secretas e repentinas
como forma de agenciamento político (os chamados happenings).
vii
Argumento central do livro de Christopher Dunn, que trata a Tropicália como uma contracultura À
brasileira.
viii
Toca-discos e fonogramas inclusive. Durante o milagre, a indústria fonográfica apresenta relação
simbiótica com o modelo de desenvolvimento da ditadura quando gravadoras nacionais eram incorporadas
por majors internacionais crescendo, voluptuosamente, em níveis de produção. Ver VICENTE, Eduardo.
Organização, crescimento e crise: a indústria fonográfica brasileira nas décadas de 60 e 70. In: Revista de
Economia Política de las Tecnologias de la Información y Comunicación, nº 8, v. 3. Aracaju: 2006 e
ZINCONE, Rafael. Aqui é o fim do mundo: Tropicália e desenvolvimento dependente no Brasil. Rio de
Janeiro: Editora GZ, 2017.
ix
“De acordo com as ideias de Straw, uma cena cultural é uma forma de cartografar consumos culturais em
territórios, locais ou globais, que nos ajuda a compreender que certas práticas culturais significativas são
organizadas territorialmente e reconhecidas como práticas significantes de um determinado discurso”.
(VLADI, 2018, p. 2).
x
Instrumento de madeira sólida com captadores magnéticos e afinação em quintas.
(https://www.nexojornal.com.br/expresso/2016/02/04/Por-que-o-Baiana-System-é-a-grande-banda-do-
Carnaval-2016)
xi
Carnaval de 2017.
xii
Tire as construções da minha praia/Não consigo respirar/As meninas de minissaia/ Não conseguem
respirar/Especulação imobiliária/E o petróleo em alto mar/Subiu o prédio eu ouço vaia/Lucro/Máquina de
louco/Você pra mim é lucro/Máquina de louco. (Russo Passapusso / Mintcho Garrammone, álbum Duas
Cidades, 2016).
xiii
Para darmos um exemplo, Gustavo Alonso (2011) nos conta que duplas como Victor e Leo fazem 200
shows por ano e têm carreira digital de peso. Tiveram, por exemplo, a música para celular mais vendida de
2009, o maior número de downloads do ano e um aplicativo para Iphone que foi o mais baixado no país
por duas semanas.
xiv
“Quando trata-se da presença feminina na música sertaneja, podem ser citadas Inezita Barroso com
uma música mais tradicional, que seria hoje o que conhecemos por sertanejo de raiz, Roberta Miranda
com “bolerões dor de corno” noa anos 1990 e Paula Fernandes e Maria Cecília nos anos 2000, as quais
sempre tiveram em suas letras predominantemente o amor idealizado” (MACEDO, LACERDA, SOARES,
2017, p.1).
xv
FRITH, Simon. Performing rites: on the value of popular music. Massachusetts: Cambridge: Harvard
University Press, 1996.