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SANTO ANTÔNIO/SAN ANTONIO NA LÍNGUA,

NA HISTÓRIA E NA MEMÓRIA: REFLEXÕES A


PARTIR DA OBRA AMOR A LA TIERRA, DE
ANTONIA ARRECHEA

Antonio Marcos Myskiw


Clóvis Alencar Butzge
Marilene Aparecida Lemos

Este texto, resultado de uma roda de conversa (e de conversas


para preparar a roda) entre os autores sobre o romance Amor a la
tierra, de Antonia Arrechea (1953), no I Seminário Internacional
de Letras da Fronteira Sul, busca fazer uma abordagem da obra que
articule história, língua e discurso.
Antes de avançar nesse “entremeio”, nessa “fronteira”,
apresentaremos à guisa de introdução alguns detalhes do romance
Amor a la tierra, entendido, em termos bakhtinianos, como um
gênero discursivo (Bakhtin 2011), ou seja, como um enunciado
concreto, sócio-interacionalmente situado. Nessa perspectiva, Amor
a la tierra pode ser entendido como um enunciado resultante da
visão que Antonia Arrechea tinha da sociedade e das línguas da
fronteira entre o Brasil e a Argentina.
Na mensagem “Al lector”, Arrechea define sua obra como
de uma sensibilidade “casi infantil” e uma forma de divulgar

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Misiones, sua “tierra adoptiva”, e que tem por objeto “[...] dar
a conhecer algumas cidades perdidas na selva, que têm uma
fisionomia incomparável [...]”.1 Além disso, a autora dedica a obra
“[...] a todos os homens que lutaram pelo progresso desta terra
[...]” (Arrechea 1953, p. 7).2 Esta ancoragem histórica, assim
como o esboço histórico da primeira seção deste texto, em que
se demonstra que muitos eventos relatados, apesar de não serem
datados, assim como muitos espaços sociais descritos, convergem
para a região da fronteira entre o Brasil e a Argentina da virada do
século XIX para o XX, o que possibilita categorizar a obra como um
“romance histórico”.
Outros aspectos literários que se destacam na obra são: i)
um viés ufanista, já presente no título, que invoca um sentimento
nacionalista e que remete ao romantismo do século XIX, não por
acaso época em que as nações modernas (entre elas Argentina
e Brasil) se estabelecem política e culturalmente; ii) um viés
“epopeico”, na medida em que a narrativa evidencia a saga do
“herói” Antonio Arrechea na busca por progresso; iii) um viés
“autobiográfico”, uma vez que muitas semelhanças entre a biografia
da autora com a personagem Violeta, filha e herdeira “moral” de
Antonio na busca por manter “Los Pinares”, a fazenda da família
em solo argentino; e iv) um viés regionalista, haja vista que a obra
é atravessada pela ideia de nacionalidade e patriotismo, mas o foco
é a região de fronteira, com destaque maior para Misiones, o que
se pode observar, inclusive, na minibiografia da autora, que a
apresenta como natural do Brasil e cidadã argentina, como “mestra”
formada e atuante em Posadas (Arrechea 1953, p. 7).
O movimento da narrativa se dá in medias res, ou seja, inicia
já após a morte do patriarca da família, Antonio, no momento em
que sua viúva Laura, seu filho primogênito do primeiro casamento

1. No original: “[...] hacer conocer algunos pueblos perdidos en la selva, que


poseen una fisionomía incomparable [...]” (Arrechea 1953, p. 13).
2. No original: “[...] a todos los hombres que han luchado por el progreso de
este suelo [...]” (Arrechea 1953, p. 7).

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Miguel, e sua filha Violeta, discutem sobre a venda da fazenda “Los
Pinares”. A decisão de vender, tomada pelo primogênito, mobiliza
Violeta a escrever um livro com o objetivo de angariar recursos para
comprar a parte dos irmãos. Aí se inicia a saga da família de Antonio
e sua filha Violeta, a qual o leitor é convidado a conhecer: “Caro
leitor, se você quiser conhecer essa história, basta ler este livro,
palavra por palavra” (Arrechea 1953, p. 13).3
Ao aceitar esse convite, nossos gestos de leitura e releitura
da obra Amor a la tierra revelam que língua e literatura se
interpenetram, se articulam. Convocados pela trama das palavras,
nos colocamos à escuta da narrativa, tanto como historiadores ou
como linguistas, analistas de discurso. Profundamente tocados pelos
escritos de Antonia Arrechea, começamos a tecer os primeiros fios
de um (novo) olhar para a fronteira Santo Antônio/San Antonio, que
se constrói no diálogo, na reflexão e na construção coletiva. Desse
modo, as relações entre história, língua e literatura se mostram a nós
como perfeitamente possíveis.
Na sequência, trazemos duas seções, em que o romance
é lido pela perspectiva histórica (Antonia Arrechea e Amor a la
tierra: um breve esboço histórico) e pela perspectiva linguístico-
discursiva (Língua, Fronteira e Identidade Nacional em Amor a
la tierra: Aspectos discursivos) em que buscamos explicitar esses
movimentos de leitura e reflexão.

Antonia Arrechea e Amor a la tierra: um breve esboço histórico

Amor a la tierra, de Antonia Arrechea, é uma obra literária


do gênero romance. Mas, ao estudar a obra e a autora, percebemos
que o romance é, também, um livro de memórias cujo objetivo era

3. No original: “Amigo lector, si quieres conocer esta historia, no tienes más


que leer este libro, palabra por palabra” (Arrechea 1953, p. 13).

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preservar o legado de seu pai, Alfonso Arrechea, como ervateiro
argentino e colonizador das terras na fronteira Brasil-Argentina nas
primeiras décadas do século XX. O esforço, o trabalho e o zelo da
autora em escolher quais memórias deveriam ser acolhidas e outras
tantas esquecidas, bem como a forma de alinhavar a história da
família Arrechea no formato de romance, resultaram na construção
de uma versão da história da fronteira e dos fronteiriços às margens
do rio Santo Antônio. E, neste exercício da escrita, as fronteiras da
História e da Literatura parecem ter sido diluídas. Esta obra também
reacende um antigo debate em torno da verdade, do simbólico, da
finalidade das narrativas histórica e literária, como bem apontam
Jacques Leenhardt e Sandra Jatahy Pesavento:

Ambas [narrativas histórica e literária] visam obter


comportamentos e formas de pensar desejadas, fornecendo
uma exemplaridade e jogando com as estratégias da convicção,
da verossimilhança, da credibilidade e da autoridade da fala.
Neste sentido, literatura e história contribuem para a atribuição
de uma identidade, social e individual, provocando modelos
de comportamento. Traduzindo ambas uma sensibilidade na
apreensão do real - oferecendo leituras possíveis de vida -
história e literatura expressam também o jogo das forças sociais
e do poder. Nesta medida, as duas narrativas têm igualmente por
efeito socializar os indivíduos, criando as condições simbólicas
de coesão social. (Leenhardt e Pesavento 1998, p. 14)

Dito isso, entendemos que Amor a la tierra possibilita


a historiadores e literatos o estudo de distintos aspectos da
representação da história, da memória e da língua da/na fronteira
Brasil-Argentina nas primeiras décadas do século XX, sob o olhar,
a percepção, a compreensão e a escrita de Antonia Arrechea.
Há poucas informações, até o momento, sobre Antonia
Arrechea, cujo nome registrado em cartório é Antonia de Arrechea
Andrade. Nasceu em San Antonio, pequena povoação situada na

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margem esquerda do rio Santo Antônio, fronteira Brasil-Argentina,
nos primeiros anos da década de 1920, oriunda do casamento do
argentino Alfonso Arrechea Caballero com a brasileira Laureana
Andrade. Antonia teve nove irmãos, além de outros nove meio-
irmãos, fruto do primeiro casamento de Alfonso Arrechea Caballero
com Antonia Amores Pavon, falecida em 1918.4
Alfonso Arrechea Caballero era um experiente explorador
e negociante de erva-mate em diferentes pontos do território da
província de Misiones/Argentina. Em 1908, estabeleceu uma obraje5
e depósitos de erva-mate no Departamento de General Manoel
Belgrano (nordeste de Misiones), mais precisamente às margens do
rio Santo Antônio, onde, há poucos anos, havia nascido a povoação
de San Antonio. Alfonso Arrechea, com a ajuda de outros ervateiros,
deu fôlego à povoação e, após adquirir uma área de terras contíguas a
San Antonio, mas do lado brasileiro da fronteira (sudoeste do Estado
do Paraná), construiu residência e deu origem à povoação de Santo
Antônio algum tempo depois de casar-se com Laureana Andrade.
A família de Laureana era de Clevelândia/Campo-Erê (Estado
do Paraná) e também estava ligada à extração, ao transporte e à
comercialização do produto para negociantes ervateiros argentinos
em Dionísio Cerqueira (Estado de Santa Catarina).
Antonia Arrechea estudou as primeiras letras na escola de
San Antonio, criada em 1931, e que entrou em funcionamento
em uma edificação da obraje de Alfonso Arrechea. Em 1935, por
não haver professores designados para lecionar em San Antonio,
Antonia Arrechea foi estudar em Posadas, residindo com alguns
de seus meio-irmãos. Em 1942, quando Antonia Arrechea estava
por concluir o ciclo formativo e apta a tornar-se “maestra”, Alfonso
Arrechea adquiriu uma residência em Posadas para cuidar de sua
saúde e ficar mais perto dos filhos e filhas. Em 1943, Antonia

4. A árvore genealógica de Alfonso Arrechea Caballero pode ser encontrada


no site de Árvore Genealógica Mundial GENI (2021).
5. “Obraje” (ou obrage) é o termo utilizado para designar a empresa que fazia
uso de trabalho braçal dos mensús.

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Arrechea passou a lecionar e obteve cidadania argentina. Neste
mesmo ano, faleceu Alfonso Arrechea, em Posadas. Em meados
da década de 1950, Antonia Arrechea contraiu matrimônio com
Gerardo Dei Castelli Ferrari, empresário dedicado à navegação
fluvial nos rios Paraná e Paraguai. Em 1953, ano da publicação
do romance Amor a la tierra, Antonia lecionava como professora
suplente na Escuela nº 3, na Província de Misiones (Arrechea 1953,
p. 7). Segundo informações de um dos filhos de Antonia Arrechea,
com quem tivemos contato via redes sociais, ela faleceu aos 83 anos
(2006?).
Amor a la tierra foi publicado, como dito acima, em 1953,
pela casa editorial Imprenta López, de Buenos Aires. Fundada no
século XIX por José López García, esta casa editorial dedicava-se
exclusivamente à publicação de livros e, desde a década de 1930,
era dirigida por José Manuel López Soto, filho de José López
Garcia. O jovem editor aproximou-se de Attilio Rossi (renomado
artista gráfico italiano), Luis Seoane (tipógrafo) e Silvio Baldessari
(projetista gráfico) e, juntos, promoveram mudanças significativas
na forma de produzir livros, sobretudo no que se refere à parte
técnica e estética. O romance de Antonia Arrechea inseriu-se
no rol de publicações que seguiam um estilo técnico e teórico na
história da tipografia argentina, cujo foco difusor era Buenos Aires.
Portanto, o formato e tamanho da obra, o cuidado com a estética da
capa, do título e das divisões de capítulos, subcapítulos e mesmo as
notas de rodapé explicativas existentes na obra possuem os traços
característicos da tendência proposta por Attilio Rossi.
Nas páginas iniciais de Amor a la tierra, Antonia Arrechea
expõe os propósitos do livro:

Este libro de una sencillez casi infantil, escrito con profundo


agradecimiento a Misiones, mi ‘tierra adoptiva’; tiene por
objeto hacer conocer algunos pueblos perdidos en la selva,
que poseen una fisonomía incomparable. Además, su finalidad
esencial - la de divulgación - encierra una invitación a las

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altas autoridades argentinas a visitarlos, para aplaudir
sus progresos y colaborar en la solución de sus problemas.
(Arrechea 1953, p. 7)

O romance, além de contar histórias de amor entre pessoas,


tem uma meta maior: explicitar o amor da escritora por uma porção da
Província de Misiones, na fronteira com o Brasil, que ela denominou,
em seus escritos, de “Los Pinares” (Os Pinheirais), suposta área
de terras adquirida por seu pai Alfonso Arrechea coberta por uma
extensa floresta com pinheiros (Araucaria Angustifolia). Em torno
desta terra e da obraje montada para explorar erva-mate, nasceram
e cresceram as povoações de San Antonio e Santo Antônio, cujos
habitantes daquela “selva” possuíam fisionomias incomparáveis e
que contribuíram para o progresso da nação argentina, mas estavam
esquecidos pelo poder público. Fisionomias estas, indígenas,
brancas, negras cujas nacionalidades eram brasileiras, paraguaias,
argentinas, europeias e africanas. O romance, além de contar
aspectos da história da família de Alfonso Arrechea na fronteira
(e daqueles que viviam no entorno deles), assumiu um papel de
denúncia ao descaso para com os povos fronteiriços por viverem à
margem da sociedade e da cultura de Misiones e da Argentina. Na
compreensão da autora, esses fronteiriços sentiam a influência da
língua, dos costumes e dos modos de vida brasileiros, tanto é que,
no decorrer do romance, surgem diálogos que sugerem esquecer a
língua portuguesa e os costumes brasileiros para melhor se inserir
na sociedade de Misiones, na escola, nos clubes e na vida cotidiana.
No romance, Antonia Arrechea assumiu a função de
narradora, atribuindo à personagem o nome de Violeta. O pai,
Alfonso Arrechea, era o personagem Antônio; a mãe, Laureana
Andrade, era Laura. São raras as menções às datas e aos
acontecimentos narrados, mas o leitor atento à história da fronteira
não terá dificuldades em perceber o tempo histórico vivenciado nas
narrativas e as relações sociais estabelecidas entre os fronteiriços. Os
aspectos geográficos são abundantes e ajudam, significativamente,

LÍNGUAS E LITERATURAS NA FRONTEIRA SUL 315


a compreender a dinâmica do processo de exploração das terras e
florestas, os processos de povoamento e das migrações fronteiriças
e as formas de funcionamento da economia local e regional em
torno da erva-mate e da madeira. A língua e a cultura local estão
presentes nas expressões utilizadas pela autora no decorrer do texto,
bem como nas narrativas sobre o cotidiano nos espaços domésticos,
nas viagens realizadas pelos campos, pelas florestas e pelos rios, nos
festejos e nos tempos de conflitos armados, nos rituais fúnebres, de
casamento e batizado.
O breve esboço histórico até aqui delineado, em que ficção,
memórias e história se entrecruzam, oferece uma contextualização
que permite avançar, na próxima seção, para uma dimensão
discursiva da obra.

Língua, Fronteira e Identidade Nacional


em Amor a la tierra: Aspectos discursivos

A obra Amor a la tierra marca um discurso sobre o espaço de


fronteira Santo Antônio/San Antonio, trazendo indícios que podem
produzir inúmeros sentidos acerca da constituição desse espaço
e, ainda, permitindo pensar como são significados aspectos como
língua, fronteira e identidade nacional. Para iniciar as discussões
desta seção, vejamos o trecho a seguir:

SAN ANTONIO TIENE ESCUELA

[...]

En el mes de julio, se festeja el día patrio en la escuela. Todos


los padres acuden a la fiesta, a saludar a los maestros, pues
todos admiran su valor al radicarse en esas soledades.
Violeta, que ya sabe leer perfectamente, recita una poesía
titulada “A la patria”. Pero una gran desazón la embarga y

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su mirada se pierde del otro lado del arroyo y una voz interior
parece decirle: “Aquella es tu patria”.
Terminada la fiesta, la niña siente un gran alivio al cruzar el
arroyo y pisar “su tierra”. ¿Por qué? se pregunta. Pero no
encuentra la contestación. Es demasiado pequeña aún para
analizar sus sentimientos.

Una de las mañanas, la niña va a pasar el arroyo, en compañía


de varios condiscípulos y éstos observan que Violeta se detiene
en la orilla y mira el agua como si temiese cruzarla.
Todos le gritan:
– ¡Anda! ¡Cruza! ¡No te quedes ahí como una tonta que
llegarás tarde!
Pero ella no contesta ni se apresura. Y con paso lento y
expresión pensativa llega al fin al otro lado. Una idea fija se
ha adueñado de su mente: “Por qué me hacen aprender a leer
primero el castellano? Es bueno conocer todos los idiomas,
pero es necesario saber primero el propio. Yo he nacido en el
Brasil y el portugués es mi lengua. Mis hermanos son felices;
ellos van a la escuela de su patria. Yo, aunque quiero a la
Argentina, no puedo olvidar que el Brasil es “mi Patria” y me
siento desdichada”. (Arrechea 1953, pp. 81-82, grifos nossos)

Levando-se em consideração os recortes selecionados,


podemos observar que a criança brasileira é significada como sujeito-
aluno na escola argentina. Assim, é produzida, através do discurso,
uma injunção de identificação do sujeito e do espaço fronteiriço ao
Estado argentino por meio de suas instituições – e, especificamente
neste caso, por meio da escola. Alguns exemplos são: as festividades
do Dia da Pátria, o ensino da língua espanhola como língua nacional
e os professores argentinos. Cabe lembrar que a escola tem sido,
nas sociedades nacionais, o “lugar por excelência de difusão desta
língua nacional” (Payer 2005, p. 9) – sendo o português legitimado
como a (única) língua nacional no Estado brasileiro e o espanhol
como a (única) língua nacional no Estado argentino.

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Neste sentido, podemos notar como a escola intervém
nos processos de espacialização e, por sua vez, nos processos de
constituição dos Estados nacionais, em que está em disputa uma
definição de nação assentada na chamada “etnicidade” – entendida
como um conjunto de tradições partilhadas – entre as quais a
língua ocupa um papel central. No entanto, dentre esses elementos
também entram os “grandes heróis” e os símbolos nacionais (hino,
bandeira etc.) que participam da nação, mediam e particularizam
a interpelação do sujeito ao Estado. Com isso, é válido destacar a
teorização de Rodríguez-Alcalá (2000, 2004), a qual nos atenta para
o fato de que é através da identificação com a cultura da nação,
“enquanto fenômeno de caráter particular e diferenciado, que os
sujeitos são interpelados para identificarem-se com um Estado,
através de suas leis, e não com outro” (Rodríguez-Alcalá 2004, p. 1,
grifos da autora). Enfim, “a cultura constitui um ingrediente central
no processo de constituição dos sujeitos jurídicos atuais, através de
cuja mediação subordinam-se ao Estado” (Rodríguez-Alcalá 2000,
p. 206).
Poderíamos dizer, ainda, que a criança brasileira, significada
como sujeito-aluno na escola argentina, é interpelada para se
identificar com o Estado argentino através da ideia de nação –
definida em termos linguísticos e culturais. Contudo, observamos
nos recortes trazidos aqui que algo falha no processo de interpelação,
já que a criança não se reconhece na escola argentina, na língua
espanhola, na pátria argentina, no território argentino etc. Os
recortes descrevem o olhar da criança que se perde do outro lado do
rio e algo lhe diz: “Aquella es tu pátria” (referindo-se ao território
brasileiro). De mesmo modo, o trecho em análise descreve que o
português é a língua da criança – que sente um grande alívio ao
atravessar o rio e pisar em “su tierra” – como é posto no texto. Além
disso, a criança ainda se questiona: “[...] el Brasil es ‘mi Patria’”,
“¿por qué me hacen aprender a leer primero el castellano?”; “el
portugués es mi lengua”.
Devemos ressaltar que, como nos diz Revuz (1998, p.
217), “[...] toda tentativa para aprender uma outra língua vem

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perturbar, questionar, modificar aquilo que está inscrito em nós com
as palavras dessa primeira língua [...]” (a primeira língua, para a
autora, é chamada materna). Devemos registrar, também, a partir
de Rodriguez-Alcalá (2000, pp. 207-208), que o “‘amor à pátria’,
à nação, [...] deve traduzir-se no assujeitamento ao Estado”. Ou
seja, “na ordem jurídica”, há uma injunção “[...] a ser exercida pela
associação do ‘amor à nação’ com o ‘orgulho nacional’, que deve
levar à ‘lealdade’.” De modo que se produz no discurso uma relação
de pertencimento à terra brasileira, à língua portuguesa, indicando
que algo falha nesse processo de interpelação pelo Estado argentino.
Assim, como há falhas no ritual, o sujeito pode resistir ao discurso
dominante. Como diz Pêcheux (1975[2009, p. 281]), “[...] não há
dominação sem resistência.”
Destacamos, ainda, os enunciados: “del otro lado del
arroyo”, “al cruzar el arroyo”, “va a pasar el arroyo”. É interessante
observar como estes enunciados são construídos e quais discursos
eles produzem e colocam em circulação. O “arroyo”, como
elemento central nos enunciados, produz efeitos de sentido que
sinalizam para uma separação entre os espaços territoriais. O
“arroyo” materializa o “[...] limite entre sujeitos e línguas, cujos
sentidos de limite se associam àqueles produzidos pela demarcação
da fronteira estabelecida entre os Estados (inter)nacionais que se
opera por decisões político-jurídicas” (Lemos 2019, p. 147). Tem-se
a presença do “arroyo” para significar a ausência. A pátria está e não
está ali, do outro lado do “arroyo”, no território brasileiro. Em torno
dos sentidos de “pátria”, tomamos outro recorte da narrativa, relativo
à escola de Posadas, na qual Violeta (aquela criança mencionada
anteriormente) se questiona sobre o que é a pátria:

¿Qué es la Patria?” Y no encuentra respuesta que la satisfaga.


Para ella, es el canto de los pájaros al amanecer, el murmullo
del arroyo en la quietud de la siesta, la figura de los pinares
que se yerguen soberanos y purificadores; es la villa de la
infancia, un grupo de casas perdidas en el corazón de la selva
insondable; es la inocencia, la felicidad, todo eso es su Patria.
(Arrechea 1953, p. 108)

LÍNGUAS E LITERATURAS NA FRONTEIRA SUL 319


Neste trecho, podemos, de imediato, apontar que “pátria”
não está ali, do outro lado do “arroyo”, mas seus sentidos remetem
à infância, à natureza (pássaros, rio, pinheirais, selva), ao espaço
da vila, enfim, ao território brasileiro, numa relação simétrica com
inocência e felicidade. Em outras palavras, os sentidos de “pátria”
remetem à língua falada pela mãe, uma língua que implica uma carga
afetiva (Revuz 1998, p. 223). Nesta direção, com base em Payer
(2005), podemos considerar que há traços de retorno da memória da
língua materna que vão mostrando que esse sujeito se constitui na
“tensão entre a língua nacional e a língua materna” (Payer 2005, p.
5). Ainda, conforme a autora, “participam desta tensão as imagens
ligadas à lei, ao Estado, por um lado, e ao familiar, à infância, ao
comunitário (local) e, sobretudo, ao materno, por outro lado” (ibid.,
p. 4). Isso se evidencia no recorte a seguir:

En Posadas
[...]

Como si despertara de un sueño, se dirige a la fila y junto con


sus compañeras cruzan la calle y llega a la casa de estudios.
Una vez allí, después del “Saludo a la Bandera”, se van a los
hogares.
Cuando está con Clara, comienza a hablar en portugués,
aunque a su hermana le desagrada.
– Violeta, no hables más en portugués – le pide Clara.
– No puedo dejar de hablar mi idioma – contesta la niña.
– Se lo contaré a Rodolfo, ya sabes que te lo tiene prohibido
– insiste Clara.
– No seas mala – suplica Violeta.
Al llegar a la casa, se lavan las manos y se disponen a tomar
el té.
Una vez sentados, Clara dice a su cuñado Rodolfo:
–¿Sabes que Violeta ya ha hablado otra vez en portugués?
– ¡Que no vuelva a suceder! – increpa el hombre –. ¿No
comprendes que es mejor para ti? Así progresarás más en tus
estudios. Quedas en penitencia. Durante diez días, no hablarás
con ninguna de tus amiguitas y si esto se repite, tendrás un
castigo peor. (Arrechea 1953, pp. 103-107, grifos nossos).

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Neste recorte, notamos a referência à saudação à bandeira,
reafirmando a interpelação do Estado argentino por meio dos símbolos
nacionais, como apontado anteriormente. Nessa direção, é possível dizer,
ainda, que o português aparece como uma língua que está proibida,
que não se pode falar e, se for falada, desagrada, merece penitência,
castigo; ou seja, o português produz sentidos de uma língua interditada,
que não atende ao imaginário que o Estado argentino impõe.
Já o espanhol, embora ausente no texto, está presente por
um efeito de pré-construído, significa o que há de melhor para a
criança, representa o êxito nos estudos e a conformidade a uma
certa concepção de progresso. Podemos observar que, como efeito
de pré-construído, há uma língua considerada melhor que a outra e
um espaço mais “desenvolvido”, mais “equipado”, mais “civilizado”,
coincidindo “[...] em termos de limite formal territorial com aquilo
que é da Argentina” (Lemos 2019, p. 152). Mesmo assim, o sujeito
resiste à interpelação ideológica e, desta maneira, língua nacional e
língua materna passam a disputar pelo lugar do possível, conforme
a afirmação da criança: “No puedo dejar de hablar mi idioma [...]” –
um “[...] ponto onde um ritual ideológico vem se quebrar no lapso”
(Pêcheux 2014, p. 15). Sobre isso, Pêcheux ressalta: “Tomar até o
final a interpelação ideológica como um ritual, supõe reconhecer que
não é um ritual sem falha, falta e rachadura” (Pêcheux 2014, p. 15).
A partir da pesquisa de Lida (2012), a respeito da língua
nacional argentina,

[…] las naciones modernas, en su preferencia por un


determinado idioma nacional, terminaron por someter a
centenares de otras lenguas que no llegaron a alcanzar aquel
mismo rango al casi indigno puesto de dialecto. (p. 99)

E complementa,

Aquel que no hablara la lengua nacional quedaría rebajado


al estatus de ciudadano de segunda; en cambio, aquel que
realizara su aprendizaje, podría ver alcanzada con más facilidad
cualquier expectativa de ascenso social. (Lida 2012, p. 99)

LÍNGUAS E LITERATURAS NA FRONTEIRA SUL 321


Como observamos nas análises anteriores, os efeitos
de sentido desses discursos se materializam nos enunciados
apresentados. Lida (2012, p. 99) também afirma que

Una lengua nacional tiene prestigio por el solo hecho de


serlo: está en los libros de texto que se enseñan en la escuela.
Mientras tanto, las demás quedan relegadas, por más que sean
habladas por poblaciones numéricamente significativas. (Lida
2012, p. 99)

Foi possível observar, no recorte apresentado, como o


português vai sendo significado como uma língua relegada, posta à
margem, dado o “prestígio” do espanhol como língua nacional. De
acordo com Payer,

[...] em seu próprio estatuto, uma língua nacional se constitui


regularmente como um importante elemento através do qual
o Estado Nacional realiza seu ideal de unidade, propagando
a ideia de unidade linguística e realizando a homogeneização
tanto da língua quanto da população. (Payer 2005, p. 4)

Por fim, na tentativa de estabelecer um fecho a esta análise,


podemos dizer que os recortes analisados possibilitam mobilizar
discursos que, de um lado, materializam as condições de produção
de um processo de constituição dos Estados nacionais e de suas
fronteiras – processo este que apela para a cultura, para a questão
da língua e para a importância da escola no que diz respeito à
implantação de determinada linguagem. Por outro lado, os trechos
revelam o processo de significação dessa nacionalização que o Estado
argentino vai produzindo sobre o sujeito (no caso a criança brasileira,
que fala português), como aquele que não responde “adequadamente”
à pátria argentina. Isto produz uma divisão/fronteira das línguas, dos
sujeitos e do espaço, numa relação dissimétrica, hierarquizada. Além
disso, a partir de Payer (op. cit., p. 5), foi de fundamental importância

322 EDITORA MERCADO DE LETRAS


considerar que a língua silenciada pelo Estado argentino é a língua
materna do sujeito (da criança brasileira). E, ainda nesta perspectiva,
cabe salientar como foi extremamente significativo observar que,
mesmo sendo interditada no território argentino, a língua portuguesa
se mantém, de algum modo, na prática oral de linguagem, na fala da
criança: “No puedo dejar de hablar mi idioma”, o que mostra que
se a língua nacional constitui o sujeito, a língua materna também o
constitui (ibid., p. 10).

Considerações finais

A fronteira Brasil-Argentina tem sido objeto de nossas


pesquisas acadêmicas há muitos anos e essa afinidade temática nos
mantém em diálogo contínuo e interdisciplinar. Amor a la tierra tem
sido um excelente propósito para estreitar ainda mais as reflexões em
torno da fronteira (tendo em vista a narrativa construída por Antonia
Arrechea), porque abriu a possibilidade de pensar a história (vivida
e imaginada), as memórias (preservadas, deturpadas, silenciadas)
e as linguagens (jogos de palavras, expressões, simbolismos) que
deram corpo ao romance, para tratá-lo como fonte documental,
como objeto de pesquisa. Entre os historiadores este romance pode
ser compreendido como um “arquivo histórico”, pois, nas linhas,
parágrafos e capítulos que compõem a obra, muitos aspectos da
vida cotidiana da população fronteiriça (sobretudo as povoações de
San Antonio e Santo Antônio, nas primeiras décadas do século XX)
foram preservados na forma escrita. Hoje, quase 70 anos após a
publicação da obra, podemos cruzar tais narrativas com documentos
históricos de outras naturezas (como fotografias, relatos de viajantes
e depoimentos orais de outras pessoas que viveram naquele tempo
histórico) para refletir com profundidade a literatura (neste caso, um
romance) como testemunho de um tempo histórico e, por extensão,
as aproximações e divergências entre História e Literatura.

LÍNGUAS E LITERATURAS NA FRONTEIRA SUL 323


Ainda, tomar a obra Amor a la tierra como objeto de
análises discursivas significou considerá-la como parte da relação
entre sociedade e história e refletir sobre essa relação. Nesse
sentido, pensar a obra Amor a la tierra na perspectiva discursiva
nos possibilitou refletir sobre a constituição da língua portuguesa
e espanhola enquanto língua nacional, em sua relação com a
formação da sociedade no espaço de fronteira, sobre os sujeitos
que nele habitam e sobre a(s) língua(s) que se constitui/constituem
juntamente com o espaço de fronteira Brasil/Argentina.

Referências

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