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Frederick Cooper, Thomas C.

Holt
e Rebecca J. Scott

Além da
escravidão
Investigações sobre raça, trabalho e
cidadania em sociedades pós-emancipação

Tradução de
Maria Beatriz de Medina

LP
CANILIZAÇÃO HRAMITA
rare
TOA
9 EPI
Wc de Jutmros
â0us
COPYRIGHT O 2000 by the University of North Carolina Press
TÍTULO ORIGINAL
Beyond slavery: explorations of race, labour, and citizenship in postemancipation
societies
Sumário
Publicado em língua portuguesa mediante acordo com a University of North
Carolina Press, Chapel Hill, North Carolina, 27515 USA
www.uncpress.unc.edu
CAPA
Evelyn Grumach
PROJETO GRÁFICO
Evelyn Grumach e João de Souza Leite

A Editora Civilização Brasileira agradece a SEPHIS (The South-South


Exchange Programme for Research on the History of Development) o apoio AGRADECIMENTOS 7
para a publicação desta obra.
PREFÁCIO 13
CIP-BRASIL CATALOGAÇÃO-NA-FONTE
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ Hebe Mattos
Cooper, Frederick, 1947-
C788a Além da escravidão: investigações sobre raça, trabalho e cidadania INTRODUÇÃO 39
em sociedades pós-emancipação / Frederick Cooper, Thomas C. Holt,
Rebecca J. Scort; tradução Maria Beatriz de Medina. — Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2005. A essência do contrato 89
il., mapas; A ARTICULAÇÃO ENTRE RAÇA, GÊNERO SEXUAL E ECONOMIA POLÍTICA NO PROGRAMA
Tradução de: Beyond slavery: explorations of race, labour, and
BRITÂNICO DE EMANCIPAÇÃO, 1838-1866 91
citizenship in postemancipation societies
Apêndice Thomas C. Holt
ISBN 85-200-0669-8

1. Escravos libertos. 2. Raça. 3. Cidadania. 4, Escravos — Emancipa- Fronteiras móveis, “linhas de cor” e divisões partidárias 131
ção. 1. Holt, Thomas C. (Thomas Cleveland), 1942-. II. Scott, Rebecca RAÇA, TRABALHO E AÇÃO COLETIVA EM LOUISIANA E CUBA, 1862-1912 133
J. (Rebecca Jarvis), 1950- . II, Título.
Rebecca J. Scott
CDD - 326.809
05-0249 CDU — 326(09)
Condições análogas à escravidão 201
Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução, armazenamento ou IMPERIALISMO E IDEOLOGIA DA MÃO-DE-OBRA LIVRE NA ÁFRICA 203
transmissão de partes deste livro, através de quaisquer meios, sem prévia
autorização por escrito. Frederick Cooper
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EDITORA CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA POSFÁCIO 271
Um selo da
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Impresso no Brasil
2005
IMPERIALISMO E IDEOLOGIA DA MÃO-DE-OBRA LIVRE NA ÁFRICA

Do ponto de vista da década de 1990, a escravidão e o colonialismo


parecem duas formas de opressão, ambas baseadas no conceito de
que certas categorias de pessoas estavam à disposição para atender
às necessidades das que tinham mais poder, mais riqueza e mais
capacidade de determinar que tipo de práticas o público aceitaria
como “normal”. De certa forma, a retórica dos movimentos inter-
nacionais contra o colonialismo na década de 1940 ou 1950 (ou,
mais recentemente, do movimento internacional contra o apartheid)
é lida como uma reencenação das campanhas contra a escravidão
do século XIX, nas quais os males da opressão dos negros pelos
brancos foram bem separados das práticas socialmente apropriadas
e combatidos em nome dos bons princípios e da humanidade. Estes
movimentos nos inspiram a perguntar por que o mal é delimitaao
de determinada forma: por que a escravidão distinguia-se de outras
formas de exploração de mão-de-obra ou o colonialismo de outras
formas de dominação política e social? O que possibilitou a estes
movimentos cruzar fronteiras, fazer com que um mal praticado em
determinado lugar parecesse um ultraje em outros lugares? O que
ligou a mobilização dos oprimidos à mobilização dos interessados
de fora?

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FREDERICK COOPER CONDIÇÕES ANÁLOGAS A ESCRAVIDÃO

Não se pode supor que “escravidão” e “colonialismo” consti- Na década de 1890, a idéia de que escravidão e colonialismo
tuam, por si sós, alvos evidentes da mobilização política ou que as eram análogos faria pouco sentido nos círculos interessados da Eu-
duas formas de opressão sejam consideradas paralelas em contex- ropa. Na verdade, os herdeiros da tradição antiescravista argumen-
tos diferentes.! Contestar as fronteiras do normal e do inaceitável, tavam que a vigorosa intervenção das potências civilizadas na África
dentro e através de diferentes regimes de poder e discurso, está no era a única forma de impedir que os africanos se escravizassem uns
coração da mobilização social. Este capítulo é um estudo destas fron- aos outros. Mais tarde, o lobby contra a escravidão, especialmente
teiras, das maneiras como o discurso político é contido e das ma-
na Inglaterra, permaneceu fiel à sua herança, continuando a criticar
neiras como extravasa suas fronteiras. os governos europeus por não obedecerem a seu declarado objetivo
de dar fim à escravidão africana e por não evitarem, eles mesmos, o
Mar Mediterrâneo recrutamento de mão-de-obra sob coação. A crítica concentrou-se
especificamente nas violações da ideologia da mão-de-obra livre,
evitando, em geral, outras dimensões do domínio colonial. Tratava
os africanos como vítimas em potencial, necessitados de proteção
contra os excessos de zelo explorador ou os lapsos da implementação
do princípio moral pelos europeus, agora retratados como fonte
tanto de possível bem quanto de possível mal.
Dentro deste arcabouço, os casos mais divulgados de explora-
ção de africanos por europeus em condições semelhantes à escravi-
dão (não por coincidência, coisa de potências colonizadoras mais
fracas) foram identificados, investigados e, pelo menos na superfí-
cie, impedidos. Na década de 1920, a Liga das Nações e, mais tar-
de, a Organização Internacional do Trabalho assumiram a campanha
contra a escravidão e seus análogos no lugar de missionários e gru-
pos de pressão humanitários. Mas, como todos os construtos ideo-
lógicos, a noção de mão-de-obra livre levou seus proponentes a
pontos cegos, assim como a idéias sobre uso e abuso do poder numa
situação colonial: definiam escravidão ou coação de forma limita-
Oceano Índico da, dando uma aura de normalidade às outras práticas coloniais.
Há um certo pathos neste esforço de gente bem-intencionada
África colonial francesa para tornar o colonialismo um pouquinho melhor para os africa-
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FREDERICK COOPER
CONDIÇÕES ANÁLOGAS À ESCRAVIDÃO

nos. O esforço neo-abolicionista estava fadado a ser esquecido pela


segurança para voltar à terra natal ou migrar para locais onde a ter-
história quando a história dos últimos anos do colonialismo passas-
ra estava mais facilmente disponível e diversificaram de várias for-
se a focalizar devidamente os africanos como atores de sua própria
mas suas estratégias para combinar a subsistência com proventos
libertação. Mesmo o episódio final deste arcabouço da ideologia da
irregulares em dinheiro.
mão-de-obra livre — a decisão da França de abolir o trabalho for-
Fosse qual fosse o futuro que as autoridades coloniais planeja-
çado em 1946 — mostra a mobilização política africana obtendo
vam para os africanos, os indivíduos para os quais preparavam pro-
sucesso onde os influentes e liberais críticos franceses do império e
jetos tinham suas próprias idéias. Forçaram as autoridades coloniais
os conscienciosos críticos da política de mão-de-obra dentro do
a redefinir sua idéia do que era normal ou politicamente aceitável
establishment colonial tinham fracassado.
dentro de um império ultramarino europeu. Os termos da disputa
Mas concentrar-se nos limites das tentativas de reformar por
sobre a normalidade mudariam mais uma vez — em relação ao tra-
dentro o imperialismo não leva ao fundo da história. Um discurso
balho, à educação, à participação política. Este capítulo mostrará o
reformista estreito poderia ser adotado por outros e alargado até
relacionamento dialético de uma das lutas mais recentes sobre o que
transformar-se numa coisa cujas consegiiências não se pudessem
significaria mão-de-obra livre nas lutas a respeito de quem deveria
confinar com tanta facilidade. Desde os primeiros dias a coloniza-
tomar as decisões da política estatal, um diálogo que foi e voltou
ção foi questionada, tanto em seus interstícios quanto de peito aber-
entre as fazendas cacaueiras da Costa do Marfim e os salões le-
to, começando pelos pontos fracos das instituições e da ideologia
gislativos de Paris nos anos após a Segunda Guerra Mundial. Este
imperiais, forçados aos poucos a se abrir. Em muitas regiões da
África, os escravos obrigaram as autoridades coloniais a ser mais debate é um exemplo importante de arcabouço discursivo que veio
emancipadoras do que gostariam, às vezes aproveitando o enfraque- a se ampliar quando as categorias em que as autoridades desejavam
cimento da autoridade dos senhores para fugir de uma região de conter a controvérsia foram tomadas e viradas do avesso por ou-
plantations ou redefinir os termos de acesso à terra, outras vezes tros atores políticos, que colocaram na mesa questões mais profun-
forçando as autoridades a realizar uma emancipação mais sistemá-
das. O debate na França e na África francesa sobre o trabalho forçado
entre 1944 e 1946 mais os movimentos grevistas de 1946-48 mu-
tica em vez da emancipação desordenada que parecia desenrolar-
se. Ao mesmo tempo, o esforço dos ex-escravos para libertar-se das daram da peculiaridade do africano para a universalidade do traba-
obrigações devidas aos proprietários não significava que estivessem lho assalariado o foco de discussão da política trabalhista. Depois
se transformando nos “trabalhadores livres” da imaginação colonial, que esta questão foi levantada, as próprias autoridades francesas
dependentes do trabalho assalariado para sobreviver. Em vez disso, tiveram de ponderar qual o sentido do domínio colonial quando os
muitas vezes encontraram nichos no mercado de trabalho urbano colonizados não estavam claramente demarcados como distintos e
que podiam contrabalançar a dependência dos proprietários de ter- subordinados.
ras locais, usaram o aumento das possibilidades de deslocar-se em Nestes termos, a transformação do arcabouço da mão-de-obra
livre na década de 1940 num debate mais amplo sobre trabalho,
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distinção social e participação política levanta questões importan- cendentes se confrontarem com um conjunto convincente de imagens:
tes sobre o que viria depois. Que novos arcabouços substituiriam os a idéia de um trabalhador automotivado, autodisciplinado, que faz
antigos e quais eram suas idéias e seus pontos cegos?? As autorida- opções no mercado de trabalho e portanto determinao bem-estar de
des francesas então tentaram impor na África o conhecimento que sua família. Foi difícil para os trabalhadores serem relativistas cultu-
tinham adquirido no controle das reivindicações dos trabalhadores rais e insistir que a pontualidade, a diligência e a obediência eram
da metrópole. Foram imediatamente questionadas dentro do pró- modos de ser peculiares dos europeus. Em grande medida, o poder
prio arcabouço através do qual buscavam recuperar o controle, por de rotular nos debates internacionais percorreu a trajetória oposta e
afirmações do movimento trabalhista de que, se as autoridades es- os hábitos de trabalho do africano é que foram rotulados de peculia-
peravam que os africanos trabalhassem como europeus, deviam res, enquanto a disciplina do mercado foi discutida como norma
pagá-los como europeus. Mas a idéia do africano como “homem acultural e universal.º Nas fazendas e plantations da África e das Ín-
industrial” deixou obscuros tantos problemas — a especificidade das dias Ocidentais, contudo, a luta não foi totalmente unilateral: os pro-
condições sociais das quais vinham os trabalhadores, os arranjos jetos imperialistas afundaram devido à incapacidade dos poderosos
familiares que buscassem fazer, a parte que o trabalho assalariado de transformar os fracos em trabalhadores assalariados disciplinados.
tinha no ciclo da vida — quanto os que parecia esclarecer. Que tipo A primeira parte deste capítulo mostra que o imaginário da liber-
de política social seria imaginável e inconcebível na África “moder- tação dos africanos de várias formas de servidão — para os de fora e
na” e quem estabeleceria tal política? A questão do que havia além entre si — tornou-se, no final do século XIX, uma maneira impor-
das políticas trabalhistas coloniais pesava tanto sobre os movimen- tante de as nações européias transformarem seus vários empreendi-
tos trabalhistas e governos africanos na década de 1960 quanto a mentos colonizadores num projeto moral e coeso. A mão-de-obra livre
questão do que havia além da escravidão pesava sobre os ex-escra- tornou-se um conceito vital para distinguir o colonizador progressis-
vos, ex-senhores e autoridades estatais nas Índias Ocidentais britã- ta do início do século XX dos saqueadores, bandidos, segiiestradores
nicas em 1838 ou nas Antilhas francesas em 1848. e compradores de carne humana que durante séculos representaram
À preocupação deste capítulo é o arcabouço para o entendimen- a Europa no ultramar. Este esquema dependia de uma leitura especí-
to do trabalho que explodiu no final da década de 1940, arcabouço fica das emancipações anteriores. Libertar a mão-de-obra, ao que
este nascido do incômodo “além” que as emancipações do século parece, não levaria, por si só, ao tipo de progresso que os teóricos da
anterior deixaram.? As críticas ao trabalho escravo surgidas no final política liberal visavam na Europa e o imperialismo progressista do
do século XVIII e início do XIX na Grã-Bretanha, e com menos cons- final do século XIX baseava-se no estado intervencionista e no em-
tância na França e em outros estados europeus, foram, em vários as- preendimento missionário que realizaria com toda a força a refeitura
pectos, notáveis por seu alcance, duração e significado. O poderoso da sociedade africana.
universalismo da ideologia da mão-de-obra livre, ligado à realidade A segunda parte do capítulo examina algumas emancipações
do poder militar e econômico europeu, fez os africanos e seus des- efetuadas pelos colonizadores britânicos e franceses na África. Como

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antes, as autoridades encontraram uma realidade complexa que a de como e por quanto tempo se efetuaria a transição, presumindo
dicotomia entre mão-de-obra livre e coagida não esclarecia. Esta ao mesmo tempo que eram as noções africanas que teriam de dar
seção investiga também a questão do casamento e da escravidão e a lugar ao conceito europeu de trabalho como um contrato entre duas
maneira pela qual a visão patriarcal do casamento solidificou-se no partes, como algo realizado num período de tempo definido, como
discurso colonial através de um diálogo desigual mas de mútuo re- uma relação distinta dos laços de parentesco e de comunidade em
forço entre os anciãos africanos e as autoridades distritais britâni- que vivessem os indivíduos. O núcleo desta seção é o estudo de uma
cas, ao mesmo tempo em que a escravidão era expulsa deste discurso. emancipação tardia, o fim do trabalho forçado nas colônias france-
Inclui-se aqui o estudo de um caso de emancipação precoce, a ten- sas em 1946. Aqui se encontra a linguagem da mão-de-obra livre
tativa britânica, por volta de 1900, de aproveitar-se das consegiiên- mobilizada contra o governo francês, que viu-se preso em meio à
cias da cruzada missionária contra a escravidão e o comércio de incerteza de se a impossibilidade de obter mão-de-obra assalariada
escravos na África Oriental para transformar os senhores de escra- poderia condenar a África francesa à estagnação.
vos do litoral em proprietários de terra capitalistas e os escravos em O que distinguiu a emancipação de 1946 das outras foi a parti-
trabalhadores assalariados — tentativa que ia contra a capacidade cipação de atores africanos, não só como rebeldes ameaçadores cujas
de ex-escravos e ex-senhores de redefinir o seu mútuo relaciona- vozes distantes poderiam ser evocadas pelos brancos moderados
mento de maneira diferente. contra a linha-dura pró-escravidão, mas como ativistas políticos nas
À terceira parte do capítulo abre a questão das práticas dos pró- instituições francesas. Nessa época, a questão da mão-de-obra livre
prios regimes coloniais. A política baseada no pressuposto da pecu- enredava-se com questões sobre todo o tecido político e ideológico
liaridade africana — a indiferença aos incentivos do mercado — do próprio domínio colonial. A questão trabalhista, entre outras,
manteve-se em tensão com a ideologia da mão-de-obra livre. Esta vinha sendo reestruturada. O novo arcabouço, como o antigo, limi-
última tornou ilegítimo o uso da força no recrutamento da mão-de- taria o problema a seu próprio modo.
obra, mas a primeira tornava-o necessário. Os regimes coloniais
tentaram atenuar esta tensão de várias maneiras, principalmente
alegando que o trabalho forçado só seria usado por algum tempo IMPERIALISMO MORAL? PROGRESSO COLONIAL E ESCRAVIDÃO AFRICANA
para atingir os objetivos de longo prazo de ensinar aos africanos o
valor do trabalho e construir uma infra-estrutura que trouxesse as A virada pessimista da ideologia da mão-de-obra livre em meados
mercadorias que os africanos quereriam comprar. Entre 1926 e do século XIX — a idéia de que os negros precisariam da supervi-
1930, a Liga das Nações e a Organização Internacional do Traba- são rigorosa de um estado civilizado antes que pudessem embarcar
lho chegaram ao entendimento de que o trabalho forçado, fosse para no “curso natural” da racionalidade do mercado — foi fundamen-
ganho privado, fosse com propósitos públicos, criava “condições tal para possibilitar às potências européias adquirir um senso de si
análogas à escravidão”. Este entendimento não resolveu a questão mesmas como imperialistas progressistas no decorrer da conquista

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da África. Assim como o avanço do capitalismo e da mão-de-obra A continuação do comércio de escravos, com sua violência e
livre na Europa, no século XVIII e no início do século XIX, cami- brutalidade, foi um ponto delicado nos círculos antiescravistas e
nhou lado a lado com a expansão da produção dos escravos nas atraiu a atenção também do grande público. A violência do comér-
colônias, o avanço da participação dos cidadãos na política estatal cio negreiro tornou-se tema central da próspera literatura dos ex-
européia no século XIX caminhou lado a lado com a imposição do ploradores. John Speke viu a conexão entre a escravidão litorânea
poder externo sobre o continente da África. Em ambos os casos as e a violência no interior do centro-leste da África: “Capturar escra-
contradições ideológicas acabaram mostrando-se impossíveis de vos é a primeira idéia de todos os chefes do interior; assim, as lutas
superar, mas durante um bom tempo a colonização pôde ser trata- e a escravidão empobrecem a terra e é por esta razão que a África
da de forma plausível na Europa como elemento de progresso. não melhora e que encontramos homens de todas as tribos e lín-
Na África, o declínio do comércio ultramarino de escravos, que guas no litoral.”é
finalmente tornou-se decisivo na década de 1850, não transformou Foi esta também a região que David Livingstone explorou e seus
o continente, por si só, num paraíso de comércio pacífico. Na ver- relatos na década de 1860 ajudaram a divulgar a imagem de uma
dade, em certas regiões do continente o uso doméstico de escravos África arruinada pela escravidão e pelo comércio de escravos. Seus
na agricultura expandiu-se quando o preço de exportação dos es- argumentos atingiram tanto o mercador europeu quanto seus ami-
cravos caiu e o comércio mundial de produtos tropicais, liderado gos nativos. Ele retratou o comércio de escravos como “barreira in-
pela Europa, expandiu-se. As antigas rotas do tráfico negreiro ali- superável a todo progresso moral e comercial”, destruindo a ordem
mentaram o sistema escravista e, especialmente no centro-leste da necessária para o funcionamento normal do comércio, arruinando
África, o sistema de suprimento de escravos tornou-se mais vigoro- os incentivos ao envolvimento na agricultura ou no trabalho assala-
so e altamente ramificado em resposta à procura de mão-de-obra riado, pressionando os indivíduos a aceitarem formas degradantes
escrava pelo litoral. Em alguns contextos, os escravos constituíram de proteção.”
mão-de-obra adicional para unidades familiares e de parentesco e o Faltara ao abolicionismo francês, depois da abolição abortiva da
poder exercido sobre eles foi racionalizado em termos patriarcais, Revolução e da readoção da escravatura por Napoleão, a constân-
mas em áreas como Zanzibar, o litoral do Quênia, o Daomé e boa cia e o apelo popular da versão britânica. Seu momento chegou em
parte do Sudão ocidental os escravos trabalhavam em grandes uni- 1848, em meio a outro episódio revolucionário na França, quando
dades sob a supervisão dos donos ou eram instalados em aldeias a escravidão nas colônias francesas foi finalmente abolida e a idéia
separadas de cujo excedente os donos se apropriavam. Onde o po- do estado francês como agente de progresso humano, tanto nas ter-
der do estado era limitado e as fronteiras políticas contestadas, foi ras de além-mar quanto na França metropolitana, lançou raízes,
necessário, para manter a disciplina sobre o número crescente de estimulada pela agitação entre os próprios escravos nas Antilhas
escravos, que estes passassem aos poucos por uma gradação de status, francesas.” Nos altos e baixos da política monarquista e republica-
de modo que novos escravos tinham de ser trazidos continuamente. na na França depois desta data, os propagandistas, tanto católicos

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FREDERICK COOPER CONDIÇÕES ANÁLOGAS À ESCRAVIDÃO

quanto republicanos, viam a tirania e o atraso da África como lugar econômicas para montar redes de agregados e dependentes que
para marcar o destino emancipador da França. Na década de 1880, pudessem servi-los.!º
o cardeal Lavigerie liderou um movimento que foi, de certa forma, Nas décadas de 1880 e 1890 um argumento semelhante ao de
o equivalente católico da cruzada de Livingstone, enquanto a partir Livingstone sobre os efeitos debilitantes do comércio de escravos e
da década de 1870 um setor importante da liderança republicana da escravidão foi utilizado por exploradores e outros que levavam
da França era ao mesmo tempo abolicionista e imperialista.” a África Ocidental à atenção do público francês. O capitão Louis-
Mas o mais importante foi que os minúsculos postos avançados Gustave Binger era simpático aos muçulmanos proprietários de
coloniais da França no Senegal, que se espalharam a partir de pos- escravos da África sudanesa e ao seu tratamento dos escravos do-
tos comerciais, tornaram visíveis, em data precoce, as contradições mésticos, mas o comércio de escravos, para ele, era totalmente “la-
entre a emancipação de 1848, que se aplicava a todos em solo fran- mentável”. Os comerciantes atacavam aldeias, massacravam homens
cês, e a realidade de um frágil movimento de colonização cujo lu- adultos e arrastavam as mulheres e crianças em caravanas. Os
cro e segurança dependiam de não fazer muitas perguntas sobre governantes africanos eram “verdadeiros tiranos, oprimindo o povo
parceiros comerciais e aliados políticos. Muitas vezes as autorida- ou vendendo-o”. Em áreas sujeitas à caça aos escravos, “o negro não
des locais tentaram evitar o problema enfatizando as fronteiras res- supervisionado trabalha pouco ou nada” e o comércio não levava
tritas das colônias e a obrigação da França de respeitar os costumes ao progresso, mas à expansão das regiões pilhadas. Binger concluiu:
de seus vizinhos africanos, mas até uma política formal e legalista “A guerra e suas conseqiiências — a poligamia e a escravidão — só
contra a escravidão poderia abrir caminho para novas ações. Na começarão a declinar quando a Europa exercer efetivamente sua
verdade, os missionários e as ocasionais autoridades zelosas estimu- influência sobre essas pessoas; e para exercê-la, são necessários meios
laram a perseguição dos traficantes de escravos e divulgaram as vio- de penetração” — governo, missionários, comerciantes e ferrovias."
lações da lei de 1848 em Paris, onde os responsáveis pela política Com certeza, as visões européias de partes diferentes da África
estavam menos preocupados com os matizes das alianças africanas estavam mudando e eram contraditórias: o selvagem nobre e a vida
do que as autoridades locais. E os próprios escravos foram impor- simples e natural e também o negreiro violento e o escravo desven-
tantes para forçar a ampliação de uma lei limitada, pois aprende- turado. Nem todas as descrições retratavam os africanos como pre-
ram que a fuga para um posto avançado francês talvez lhes permitisse guiçosos. Alguns observaram extensas relações comerciais, mas
obter documentos de liberdade ou pelo menos um lugar para se raramente se via europeus reconhecerem que os governos africanos
esconder. Os escravos fugidos tornaram-se causas freqiientes de atri- vinham desenvolvendo a capacidade de dirigir a sociedade civil e
to entre os estados africanos e os franceses, fazendo da escravatura, que as economias africanas eram capazes de inovação e crescimen-
repetidamente, uma questão que tinha de ser enfrentada. Em pos- to. Mesmo fora das áreas de comércio escravista, os estereótipos do
tos comerciais como Saint Louis, os mercadores africanos usavam isolamento e do ócio — em especial o ócio masculino — domina-
seu controle das habitações e suas importantes ligações políticas e vam; o mito de que as mulheres faziam todo o trabalho agrícola era

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o contraponto da crença de que os homens africanos passavam O escravos controlado pelos britânicos a partir de 1807. Em meio a
tempo lutando.!? suas rivalidades mortalmente graves, as potências imperiais reuni-
A idéia da África como continente tomado pela escravidão, opri- ram-se em Berlim, em 1884-85, para determinar as regras do jogo e
mido por seus próprios tiranos e mantido fora do caminho da civi- insistiram em que as potências colonizadoras agissem contra o co-
lização, do cristianismo e do comércio, foi fundamental para a mércio africano de escravos. Em outro conclave internacional em
propaganda missionária a partir da década de 1860, o grito de con- Bruxelas, em 1889-90, resolveram formalmente que as potências
vocação das assembléias antiescravistas do restante do século e com- conquistadoras realizariam a supressão sistemática do tráfico de
ponente importante dos conhecimentos sobre a África à disposição escravos, armas e bebidas alcoólicas. Ao conceber-se como potências
do público leitor da Europa. Esta inovação ideológica não foi por si civilizadoras, os imperialistas conceberam os africanos como trafi-
só a causa da nova onda de conquistas, mas permitiu que os defenso- cantes de escravos, desordeiros, incapazes de autocontrole. Iriam
res do avanço imperial identificassem seus interesses com um propó- ajudar-se entre si para criar a estrutura de uma utilização ordeira e
sito mais elevado. O recurso à intervenção estatal] no comércio e na racional dos recursos e da mão-de-obra africanos. Lord Salisbury
produção de além-mar foi coerente com o aumento da intervenção disse que a conferência foi a primeira na história a se reunir “com o
social dos regimes da própria Europa — esforços estatais de transfor- propósito de promover uma questão de pura humanidade e boa
mar o “resíduo” do desenvolvimento capitalista numa classe operá- vontade”.!$
ria “respeitável”. A velha Europa lucrara com a violência africana e Aqui são de interesse as consegiiências deste construto ideoló-
estimulara-a; a nova Europa preferia que a expansão econômica fos- gico quando o domínio europeu se estendeu sobre a África. Isso fez
se previsível e ordeira e que as estruturas sociais pudessem ampliar-se com que os regimes coloniais tivessem de envolver-se com as com-
e reproduzir-se a si mesmas." Estas idéias podem ser encontradas não plexidades da escravidão na própria África. Mas logo teriam de
só na metrópole, na campanha missionária contra a escravidão afri- confrontar os limites de suas próprias ferramentas para compreen-
cana, mas no próprio local, onde a violência africana e seus efeitos der e intervir na sociedade africana.
destrutivos sobre o comércio ordeiro eram parte de debates compli-
cados sobre exatamente onde e como os governos europeus deveriam
intervir para proteger a propriedade e garantir o progresso comer- AS AMBIGÚIDADES DO TRABALHO SOB COAÇÃO
cial.!* O chefe ou rei africano, como o grande fazendeiro das Índias
Ocidentais na década de 1830 (ver a Introdução), mantinha-se ao lado Embora vários líderes coloniais argumentassem explicitamente que
do dono e do comerciante de escravos para impor à África as “difi- o progresso exigia que os modelos econômicos europeus, como a
culdades brutais” e impedir o surgimento das “racionais”. propriedade privada da terra e a mão-de-obra assalariada, fossem
O mais notável nesta visão moral é como era internacional, num impostos às colônias africanas, a realidade imediata que descobri-
sentido muito mais completo que o impulso contra o comércio de ram foi que sua receita dependia da exportação de produtos culti-

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FREDERICK COOPER CONDIÇÕES ANÁLOGAS À ESCRAVIDÃO

vados por escravos e camponeses. Seu frágil domínio político des- (“aldeias de liberdade”) as povoações de ex-escravos e indivíduos
cansava às vezes em alianças com líderes africanos que tinham inte- miscelâneos e desapegados que esperavam utilizar nas forças arma-
resse na escravidão, ainda que o comércio de escravos do qual das e como mão-de-obra. Ao libertar os escravos de seus inimigos,
dependia a escravidão doméstica para sua reprodução tivesse cria- os franceses puseram em andamento um processo no qual os escra-
do, como afirmaram corretamente missionários e exploradores, um vos de seus amigos muitas vezes libertavam-se a si mesmos. Por trás
clima de violência inimigo da paz colonial e do comércio de longa das linhas que avançavam, os escravos aproveitaram a possibilida-
distância. A maioria dos regimes agiu prontamente contra o comér- de de voltar para casa ou de buscar um novo lugar para morar, ou
cio de escravos em sua forma mais violenta mas vacilou quanto à talvez de livrar-se das relações debilitantes de subordinação a um
escravidão em suas formas agrícola e doméstica. senhor para tornar-se dependentes de um novo patrono, como al-
Não puderam temporizar em paz: os lobbies antiescravistas fi- gum dos líderes muçulmanos que vinham aceitando seguidores e
zeram da tolerância à escravidão na África seu principal alvo. A organizando o plantio no cada vez mais próspero cinturão do amen-
“escravidão sob a bandeira britânica” era uma mancha no projeto doim no Senegal. Em certos lugares, principalmente na região
colonial e, em 1901, um governador-geral francês teve de lembrar sudanesa de Banamba, em 1905, o êxodo das fazendas dos senho-
a seus subordinados presos entre a herança de 1848 e a vista grossa res de escravos aconteceu em massa, de forma tão irresistível que o
à escravidão: “Não nos esqueçamos que foi em nome da liberdade frágil regime colonial não pôde detê-lo, apenas tentar coordená-lo.
e do combate a tais costumes bárbaros que as potências européias A conquista francesa do oeste do Sudão foi, nas palavras de John
vieram para os territórios da África.”18 O mais importante foi que a Lonsdale, “quase uma lenta revolta de escravos, mas dificilmente
conquista desorganizou os mecanismos de controle e reprodução uma emancipação”.1º
dos senhores africanos de escravos, e estes, em várias partes da África, Por mais limitadas que fossem as metas do conquistador, sua
logo começaram a tomar as coisas em suas próprias mãos.” Mesmo presença tirou do prumo as relações de poder e dependência nas
antes que a colonização avançasse muito, os escravos desertaram sociedades escravocratas. A possibilidade de sobrevivência fora da
de seus senhores atrás das sedes das missões e dos postos avançados escravidão não só encorajou a fuga como alterou as relações de pro-
europeus. Quando os exércitos europeus avançaram pelo interior, dução daqueles que ficaram. A fuga e a desobediência causaram ten-
um número considerável de escravos passou a fazer parte de sua sões, preocuparam os donos de escravos, contribuíram para a
entourage. Alguns serviram aos soldados franceses; outros foram propaganda antiescravista na metrópole e minaram a utilidade da
aceitos no próprio exército francês, como parte da tropa africana produção escravista nos regimes voltados para a exportação. O
conhecida como tirailleurs sénégalais. Algumas ex-escravas torna- êxodo em massa no Sudão em 1905 foi importante para forçar o
ram-se concubinas de soldados franceses ou africanos; outros es- governador-geral francês William Ponty a deixar claro para os ad-
cravos foram distribuídos entre aliados africanos dos franceses. Estes, ministradores que a escravidão tinha oficialmente acabado e que os
em outro floreio de retórica, chamaram de “villages de liberté” ex-escravos estavam livres para ir aonde quisessem. O que isso sig-

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FREDERICK COOPER
CONDIÇÕES ANÁLOGAS À ESCRAVIDÃO

nificou na prática variou muito, já que as possibilidades reais exis- classes dominantes indígenas”; tentaram acoplar a abolição legal a
tentes para os ex-escravos dependiam muitíssimo das condições mudanças sociais mínimas. Os escravos recorreram à fuga e a ou-
materiais e sociais que determinavam as alternativas. Mas numa vasta tros meios para provocar uma mudança mais substancial de sua
região as relações de dependência foram redefinidas, ainda que não condição. Os ex-donos de escravos tentaram manter as pessoas mais
se rompessem. vulneráveis em situação de dependência e os ex-escravos, obter aces-
Quando os britânicos ocuparam o norte da Nigéria, onde um so mais seguro aos recursos e maior autonomia em relação a seus
forte Estado islâmico presidia uma complexa sociedade comercial e ex-senhores. Esses conflitos persistiram durante décadas, com con-
agrícola e onde muitos escravos labutavam em grandes proprieda- sequências variadas, talvez negando igualmente a ex-escravos e ex-
des enquanto outros transformaram-se, no decorrer das gerações, senhores a segurança que poderia ajudar a criar formas novas e mais
numa população camponesa dependente, a situação foi igualmente dinâmicas de produção agrícola.?º
contraditória. A propaganda britânica antes da conquista acusara Tanto os governantes franceses quanto os britânicos tentaram,
os governantes de ter “degenerado nos dias de hoje até (...) o mas- bem cedo, declarar que estavam resolvidos os problemas que cerca-
sacre ilimitado, a pilhagem e a caça a escravos”, mas os novos vam a emancipação. Fizeram-no definindo a escravidão de forma
governantes temiam que, libertados, os ex-escravos “levassem uma “limitada e legalista e insistindo que os tribunais não reconhece-
vida de vagabundagem”. Os britânicos estavam decididos a preser- riam mais tal condição. Em geral, considerava-se a escravidão um
var a propriedade, a capacidade produtiva e o poder da elite, mes- problema masculino; a ambigiiidade da dependência das mulhe-
mo que ao mesmo tempo extinguissem formalmente a escravidão. res, a menos que o modo de sua aquisição fosse excessivamente
Suas atitudes foram forçadas pelo êxodo de escravos das regiões do violento, foi assimilada pela categoria do casamento.?! Outras re-
estado mais recentemente conquistadas, assim como das áreas cen- lações de subordinação foram assimiladas pelo arrendamento ou
trais. À terra que ficara deserta na época das caçadas humanas foi pela dívida. Os arquivos coloniais encheram-se de evasivas e eufe-
reocupada e houve revoltas de escravos. Nos primeiros anos do novo mismos — os documentos franceses transformaram o que antes
século, o governo teve de agir para resolver uma situação política e era chamado de “esclave” em “captif”, depois “non-libre” e, fi-
ideologicamente insustentável. Tentou conciliar suas metas con- nalmente, “serviteur”. Na verdade, o esforço dos administradores
flitantes com a política de abolir a “condição legal da escravidão”, para definir a escravidão como inexistente tornou difícil aos espe-
recusando-se a reconhecer nos tribunais quaisquer queixas basea- cialistas estudar, a partir dos arquivos, a política francesa, que dirá
das na condição de escravo de algum indivíduo, enquanto esperava as práticas africanas.
que o controle da terra, o patronato e a tributação mantivessem a Mas esses problemas não diminuíram o fato de que a conquista
estabilidade de uma sociedade hierárquica.'” No sudeste da Nigéria, colonial realmente deu fim às versões em grande escala e longa dis-
onde o poder político era mais descentralizado, as autoridades co- tância do comércio de escravos e limitou até as formas mais locali-
loniais ainda estavam “preocupadas em manter sua aliança com as zadas do tráfico. O sistema colonial tornou possível aos escravos

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fugir de um senhor cruel, transferir sua dependência a outros gru- Conquista colonial, emancipação e disciplina do trabalho:
pos ou indivíduos, redefinir as relações de dependência ou tentar um estudo de caso
arranjar emprego nas cidades coloniais, no exército colonial, nas
ferrovias coloniais ou nas escolas coloniais e sedes das missões. Ao Em Zanzibar e no litoral leste africano, as autoridades tentaram sis-
final da primeira década do novo século, os britânicos e franceses tematicamente repetir o que tinham tentado nas Índias Ocidentais:
— e, pelo menos no papel, também os portugueses, belgas e ale- abolir a escravidão e manter a classe de proprietários de terras, ára-
mães — tinham eliminado a existência legal da escravidão na maior bes e africanos, que permaneceria ligada à agricultura exportadora
parte da África e as práticas de escravização, reprodução da popu- e agora empregaria mão-de-obra assalariada.”* Os críticos, princi-
lação escrava e exploração de escravos em grande escala estavam palmente missionários, denunciaram todas as formas intermediárias
em rápido declínio.” de trabalho supervisionado como violação dos princípios da ideo-
As contradições deste período podem ser vistas com clareza no logia da mão-de-obra livre, assim como seus antecessores ideológi-
caso de Zanzibar e do litoral do Quênia, região colonizada pela Grã- cos tinham condenado a aprendizagem (apprenticeship) na década
Bretanha na década de 1890 e conhecida pela intensidade de sua de 1830.
agricultura e pela importância nela dos escravos. Partes desta região, Até os missionários temiam que, caso os escravos fossem liber-
especialmente Zanzibar e o litoral próximo a Malindi, caracteriza- tados mas não submetidos a controle estrito, “tenderiam a produzir
vam-se por grandes plantations (de cravo-da-índia em Zanzibar e uma classe de gente desmoralizada e perigosa, que com certeza, no
cereais e coco no interior), enquanto outras, quer rurais, quer urba- futuro, traria embaraços ao bom governo e atrapalharia a prosperi-
nas, tinham propriedades menores. Em ambas as áreas os escravos, dade do país”. Uma autoridade receava que “se um grande número
que vinham de territórios distantes da África central, foram con- de escravos for libertado de uma só vez, eles podem se descontrolar,
vertidos ao islamismo e eram socialmente definidos como membros saquear lojas e shambas (fazendas) e cometer todo tipo de excesso”.>
inferiores de uma extensa comunidade. No entanto os limites da As autoridades não questionaram se os senhores de escravos
repressão e do paternalismo eram constantemente postos à prova e deveriam manter seus direitos de propriedade da terra e das árvo-
as comunidades de escravos fugidos espalhavam-se pela costa. A res produtivas segundo a lei islâmica. Nem questionaram a necessi-
presença britânica mudou as relações de poder, permitindo tanto o dade de uma classe de administradores para gerenciar a produção:
êxodo das plantations quanto a redefinição das relações de depen- a opção de permitir aos ex-escravos cultivar por conta própria, como
dência nas outras propriedades. Foi exatamente aí que a idéia da camponeses, não foi levada seriamente em consideração. Segundo
o decreto de emancipação de Zanzibar de 1897, os senhores de es-
mão-de-obra livre, da forma pregada pelos missionários mais pu-
cravos receberam indenizações em dinheiro para facilitar a transi-
ristas ou as autoridades mais comedidas, deixou de levar em conta
ção para a mão-de-obra livre. O decreto, contudo, tentou chegar a
a complexidade do sistema social africano.
um meio-termo entre as consegiiências radicais da visão britânica

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CONDIÇÕES ANÁLOGAS À ESCRAVIDÃO
FREDERICK COOPER

da escravidão — de que a mão-de-obra devia ser “livre” — e as da emancipação uma autoridade lamentava-se, de modo típico: “O
consegiiências conservadoras da visão de classe das autoridades — trabalho constante e regular é exatamente o que seu escravo ou es-
de que a boa ordem e a produção exigiam uma classe de proprie- cravo livre menos gosta.”26
tários de terras e administradores. Os escravos libertados pelo de- A produção de cravo-da-índia de Zanzibar foi salva por uma
creto de 1897 perderam as roças que tinham ocupado para sua distribuição do tempo bem diferente da regularidade da disciplina
subsistência e podiam ser acusados de vadiagem, a menos que con- do trabalho assalariado que as autoridades britânicas tentaram ins-
cordassem em fazer um contrato com algum dono da terra. As au- pirar. Os migrantes de curto prazo das áreas das ilhas que não pro-
toridades usaram a atmosfera intimidadora dos tribunais onde se duziam cravo (marginalizadas pela economia escravista) começaram
concediam os documentos de liberdade para impor modelos de a trabalhar na colheita durante apenas algumas semanas por ano.
contrato: os ex-escravos trabalhariam três dias por semana (contra Os migrantes de longo prazo da África alemã, onde o fim do co-
os cinco costumeiros da época da escravidão) o ano inteiro, em tro- mércio de escravos, do comércio de marfim e do transporte braçal
ca de uma roça de subsistência e do lugar para construir uma casa. reduzira o acesso dos jovens a pagamentos em dinheiro, começa-
Muitas vezes os ex-escravos concordavam com os contratos, mas ram a chegar para períodos de dois ou três anos capinando as plan-
não cumpriam necessariamente os três dias de trabalho. Aprovei- tações. Os ex-escravos preencheram as brechas. Assim, a produção
tando-se da nova possibilidade de deslocar-se entre as plantations de cravo na verdade cresceu, ainda que as autoridades lamentassem
para procurar terra vaga não plantada com cravo-da-índia ou tra- o modo como o trabalho era feito.
balho ocasional nas cidades, com freqiiência os ex-escravos conse- No litoral do continente, as autoridades do Quênia hesitaram,
guiam chegar a entendimentos com os proprietários que lhes davam preocupadas com uma revolta liderada pelos senhores de escravos
acesso à terra em troca da vaga responsabilidade de realizar algum e pelos resultados da experiência em Zanzibar. Entretanto em 1907
trabalho e fazer parte da “gente” do proprietário. Os senhores, de- os escravos já tinham feito muito para libertar-se, aproveitando-se
sesperados atrás de algum tipo de domínio sobre os ex-escravos, da presença britânica para minar as sutis relações de dependência
tanto quanto os próprios ex-escravos, subverteram a noção britâni- da sociedade escravista. Agora os indivíduos podiam deixar as gran-
ca de obrigações especificadas em contrato e de trabalho regular. des plantações sem temer por sua vida: a construção de ferrovias e
Faltava às autoridades britânicas o poder e a vontade de realizar outros projetos coloniais tinham criado emprego alternativo. O
expulsões em massa e processos por vadiagem e esta incapacidade êxodo lento mas constante da mão-de-obra escrava provocou um
reforçou a tendência dos proprietários de terras de agir segundo reajuste das condições de trabalho dos que ficaram: os escravos
normas mais conhecidas, cultivando laços de dependência de longo passaram a dedicar mais tempo e espaço a seu próprio cultivo e
prazo em vez de obrigações contratuais. A esperança britânica de menos aos campos do senhor.
que a disciplina do trabalho se manteria na África pela “sanção da O decreto de abolição do Quênia em 1907 permitiu que os se-
demissão” tornou-se cada vez mais irrelevante. Poucos anos depois nhores de escravos exigissem indenização pelos escravos cujos ser-

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viços perderiam e ratificou efetivamente a liberdade que os escra- região, apesar da ajuda considerável das autoridades coloniais. Os
vos já tinham conquistado, legitimando ao mesmo tempo o esforço habitantes do litoral preferiam tornar-se agregados ou trabalhar para
dos proprietários para que os escravos de outros senhores se insta- proprietários de terra nativos, que não faziam exigências quanto à
lassem em suas terras como agregados. O sistema de mão-de-obra jornada de trabalho, enquanto os proprietários europeus insistiam
amarrada à terra cedia lugar à competição entre os proprietários no compromisso com um período que atrapalharia o que era mais
por trabalhadores cada vez mais móveis e os agregados pagavam importante para os trabalhadores: obter acesso à terra de longo prazo
apenas um aluguel modesto ou prestavam serviços vagamente espe- e razoavelmente seguro.
cificados. Os que moravam no interior, por trás do cinturão litorã- O que entrou em colapso nas antigas plantations do litoral do
neo mais fértil, integrantes de nove grupos políticos e comunitários Quênia (e, em menor grau, em Zanzibar) não foi tanto a agricultu-
distintos conhecidos coletivamente, mais tarde, como mijikenda ra, mas sim a fantasia britânica de mão-de-obra agrícola assalaria-
(nove aldeias), começaram a unir-se aos ex-escravos como agrega- da. A troca regional entre áreas diferentes do litoral e entre Mombasa
dos nas propriedades costeiras. Perto de Mombasa, tanto ex-escra- e a área rural circundante tornou-se mais intensa e variada. A ex-
vos como mijikendas criaram uma simbiose de atividades urbanas e portação decresceu, mas a produção de coco e cereais continuou a
rurais, buscando ocupação ocasional, principalmente no porto, que ser enviada para o exterior. Na maioria dos casos, os proprietários
pagasse em dinheiro o dia de trabalho mas não comprometesse a de terras só conseguiam extrair um arrendamento modesto e parte
participação na agricultura. da colheita dos coqueiros de suas plantations; não podiam contro-
Tanto em Zanzibar quanto no litoral do Quênia o governo co- lar o processo de produção. Durante algum tempo, os “figurões”
lonial reconheceu os títulos de propriedade das terras e das árvores das áreas próximas ao litoral se aproveitaram do enfraquecimento
da lei islâmica e, assim, seus donos mantiveram a posse da terra, dos proprietários costeiros para melhorar sua posição no mercado
ainda que não a transformassem em controle estrito sobre a mão- regional de cereais e coco, mas também tiveram dificuldades para
de-obra. As negociações realizadas dia-a-dia nos campos, contudo, evitar que seus súditos se instalassem em terras litorâneas ou fos-
tornavam arriscado para os senhores investir em suas propriedades sem para Mombasa.??
ou, para os agregados, melhorá-la através de seu trabalho. A estag- Periodicamente, as autoridades exprimiram seu desprazer com
nação econômica tornou-se o preço da situação social instável. Em os agregados. O governo temia que sua presença comprometesse o
teoria, o registro dos títulos permitia a transferência da terra a co- sistema de arrendamento individual e desencorajasse novas compras
lonos brancos — o governo do Quênia esperava que isso aconteces- de terras, principalmente por europeus. Até os agregados que vi-
se —, mas esta possibilidade também não deu certo, em parte devido nham recuperando a produção de cereais das terras de antigas
à excessiva especulação, em parte devido à competição da produ- plantations foram acusados pelo governador de levar uma “existên-
ção de outras regiões do Império Britânico e em parte porque os cia inútil e degenerada”.?º No projeto do governo, a zona litorânea
proprietários europeus não conseguiam recrutar mão-de-obra na era para a agricultura em propriedades privadas com mão-de-obra

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assalariada; os migrantes africanos pertenciam à sua terra natal no No entanto as autoridades sentiram-se inquietas, temendo uma
interior, agora rotulada de “reserva”, e só deviam aparecer quando população desligada dos empregadores, espacialmente móvel e re-
tivessem um contrato definido de trabalho. A tentativa do governo sistente à disciplina do tempo. No discurso oficial, a categoria de
em 1914 de expulsar os agregados de uma região fértil ao norte de trabalhador ocasional transformou-se na categoria de vadio ou cri-
Malindi resultou em revolta e fome, que as autoridades foram for- minoso. Mas só no final da década de 1940 fez-se uma tentativa
çadas a aliviar. Pouco tempo depois, os agregados voltaram à região séria de mudar o sistema de trabalho ocasional.
onde suas cabanas tinham sido queimadas e seus campos destruídos Na costa oriental da África, o registro das intenções das autori-
e desta vez as autoridades desistiram. A presença renovada de agre- dades quanto à transformação da mão-de-obra escrava é bastante
gados, bem recebida pelos desventurados senhores árabes da área, claro: para elas, o sucesso significaria transformar os escravos num
levou a uma modesta recuperação da exportação de cereais.” proletariado sem terra, mediado talvez por contratos e arrendamento
O mercado de trabalho urbano de Mombasa desenvolveu-se de de mão-de-obra, mas extinguindo, com certeza, todos os direitos
maneira relativamente trangúila na época da emancipação e da ex- de acesso à terra e provocando o controle dos proprietários sobre o
pansão, mas não o mercado de trabalho rural. Nos dias da escravi- próprio processo de trabalho. Mas não está claro, neste e em mui-
dão, era frequente que os donos de escravos urbanos mandassem tos outros casos, se os capitalistas e as autoridades do início da era
seus escravos procurar trabalho durante o dia, sendo que boa parte colonial tinham muita escolha quanto ao tipo de mão-de-obra que
dos ganhos era entregue aos donos. Na era pós-emancipação, este conseguiriam obter: era difícil isolar do solo a força de trabalho
processo continuou, envolvendo ex-escravos das áreas circundantes africana, fornecida em unidades pequenas. Até em Mombasa, onde
assim como da cidade, com o dono excluído do quadro. O merca- o regime de trabalho funcionava bastante bem, as autoridades se
do de trabalho de Mombasa ajustou-se bem porque os empregado- preocupavam com a falta de controle. O sistema de trabalho ideal
res aceitaram de bom grado a força de trabalho pela unidade básica era um construto cultural das autoridades, não apenas uma série de
que os africanos do litoral queriam fornecer: por dia. Em dez dias estratégias para minimizar o custo, e os membros da elite colonial
de trabalho, os trabalhadores ocasionais do porto podiam ganhar do Quênia viram-se limitados por sua incapacidade de impor a dis-
tanto quanto aqueles com contrato de trabalho não especializado ciplina do tempo do capitalismo europeu. Quando não conseguiram
que não especificava a jornada podiam ganhar num mês. Os ex-es- fazer as coisas a seu modo, as autoridades, como suas antecessoras
cravos e mijikendas descobriram que os períodos de trabalho nas Índias Ocidentais, jogaram a culpa nos escravos: “Um ser hu-
ocasional na cidade complementavam a ocupação como agregado e mano acostumado à escravidão, quando libertado, parece perder
lavrador em áreas rurais. todo incentivo ao trabalho”, comentou a Comissão da África Orien-
Dada a natureza flutuante do transporte marítimo, os emprega- tal em 1925, em sua dissecação da região litorânea.?!
dores descobriram que o trabalho por dia também atendia a seus Foi só depois do fato consumado que as autoridades coloniais
interesses: podiam ajustar a folha salarial às suas reais necessidades. britânicas na África, mais notadamente Frederick Lugard, começa-

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ram a transformar seus fracassos em virtudes. Governante do norte poneses não escravizados de várias regiões da África: seu acesso à
da Nigéria, Lugard via a elite nativa de proprietários de terras como terra fazia com que pudessem escolher entre participar do progres-
intermediários valiosos cuja autoridade devia ser respeitada; insis- so baseado no mercado ou manter-se à parte, Nem os escravos nem
tia que a chave para o futuro agrário próspero seria reforçar seu os camponeses enfrentavam a “dificuldade racional” de optar entre
controle da terra, abolir a existência legal da escravidão e converter o trabalho assalariado e a fome (para usar mais uma vez a expressão
lentamente os escravos em proletários que produzissem sob super- britânica da década de 1830), ainda que os primeiros não estives-
visão direta dos proprietários de terras nativos. Os textos de Lugard sem mais sob a “dificuldade brutal” da escravidão. No norte da
de 1906, quando sua iniciativa começou a ser implantada, revelam Nigéria, no Quênia e em outras regiões, camponeses e ex-escravos
a ideologia progressista por trás até de uma abordagem cautelosa tinham de ser igualmente forçados pelos antigos padrões de autori-
do fim da escravidão: dade e pelas novas restrições coloniais a produzir para outrem.
Nas regiões que empregavam escravos, as consequências con-
Não é raro insistir-se (especialmente aqueles que são novos na África) cretas da abolição mostraram-se muito menos problemáticas do que
que a escravidão é uma instituição bem adequada ao africano, per- o ideal de transição lenta e dirigida pela elite. Muitas vezes os can-
mitindo-lhe condições em que, via de regra, vive contente, e que didatos a capitalistas preferiam usar a sua autoridade e o apoio das
sua superação é um erro. (...) [H]omens pensantes (...) condenam o forças coloniais para extorquir tributos tanto de camponeses quan-
sistema da escravidão (...) Em primeiro lugar, a escravidão não pode
to de escravos. No norte da Nigéria isso levou a mais conflitos do
ser mantida sem um suprimento de escravos, obtidos pelo horror
que o governo britânico dispunha-se a suportar e em outras áreas
das caçadas humanas e transportados com grande perda de vidas
provocou tensos impasses, sem evolução clara rumo a novas for-
desde sua habitação original; isto resulta não só em muito sofrimento
humano como também no decréscimo da população e, conseqiuen- mas de posse da terra e mobilização da mão-de-obra. Os britânicos
temente, no decréscimo da capacidade produtiva do país; em se- acabaram aceitando a importância crescente de várias formas de
gundo lugar, ninguém pode jamais progredir se a iniciativa pessoal arrendamento e produção em pequenas propriedades, das quais o
e a responsabilidade pessoal lhe são negadas. (...) O fato de os es- estado colonial, as elites locais e os mercadores conseguiam extrair
cravos existentes mostrarem-se contentes com seu destino não é excedentes de várias maneiras.”? Mais tarde Lugard adotou as vir-
argumento para a mente de qualquer um que vise ao progresso da tudes do “domínio indireto” e uma abordagem conservacionista da
raça num futuro mais remoto.)? sociedade africana: teve o gênio de definir o fracasso como sucesso.”
A sequência do pensamento britânico é importante aqui e con-
A última frase de Lugard diz muita coisa sobre sua intenção: o ob- tém ecos da década de 1830: um episódio intervencionista seguido
jetivo da emancipação não era melhorar a vida dos escravos. O ar- pelo confronto com a complexidade da situação local e a percep-
gumento de que era preciso levar o progresso a um povo que ção de que a mudança não podia ser dirigida da forma desejada,
necessariamente não o desejava também podia se aplicar aos cam- sucedidos pelo argumento de que a peculiaridade do ex-escravo (e,

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neste caso, também de seu ex-dono) frustrara a aplicação dos prin- desordens e o receio de que o investimento não compensaria.* O
cípios universais de progresso social e econômico ao caso em ques- mito do atraso e da tradição africanos ocultou o fato de que as prin-
tão.3 Nas Índias Ocidentais, na década de 1840, a explicação para cipais potências coloniais não transformaram nem exploraram a
a peculiaridade foi racial; na de 1920, cultural. A forma da explica- África, como supunham suas promessas anteriores.
ção foi semelhante em ambos os casos. Na África colonial os argu-
mentos de que os africanos eram camponeses “naturais”, adaptados Casamento, tradição e o significado social de emancipação
à agricultura e à vida em aldeias e, quando delas removidos, de-
senraizados e vulneráveis, não se aplicava apenas aos ex-escravos, Os escravos, que labutavam sob supervisão em unidades relativa-
embora, como no litoral da África Oriental, às vezes os ex-escravos mente grandes, eram fundamentais para a produção agrícola em
fossem vistos como uma forma extrema de antipatia africana pelo outras regiões além de Zanzibar, do litoral do Quênia e do norte da
trabalho permanente. De qualquer forma, na década de 1920 influ- Nigéria. Boa parte da região do Sahel, na África Ocidental, e zonas
entes pensadores britânicos dispuseram-se a dar à resistência afri- litorâneas como o Daomé destacam-se neste aspecto e em muitas
cana à mudança um selo de relutante aprovação; conservar a outras regiões sistemas menos diferenciados, menos integrados aos
variedade humana e permitir que a mudança acontecesse dentro dos mecanismos globais e regionais de comércio tiveram o potencial de
limites da cultura africana tornou-se a razão de ser do regime colo- se inclinar nesta direção. Era esta a volatilidade da escravização:
nial. A política francesa de “associação” trouxe consigo mudança funcionava cruzando as fronteiras da distância e da cultura, capaz
semelhante: também era um recuo da política de intervenção mais de concentrar os seres humanos e usá-los de maneiras diversas sem
ativa disfarçado de atitude respeitosa para com as culturas africanas. seu consentimento. Mas dizer isso não vai ao fundo do problema
A África “tradicional” era uma ficção, assim como a noção de da emancipação na África recém-colonizada. A questão não é de
que a África era como massa de modelar nas mãos dos engenheiros tipicidade nem muito menos de caracterizar certas formas de escra-
sociais.” Na prática, Os governantes coloniais passaram a conviver vidão como “africanas” enquanto outras podem ser chamadas, por
com a heterogeneidade de sua realização: aceitaram e tentaram exemplo, de “islâmicas”, mudança pela qual Igor Kopytoff, numa
manipular os povos que, por uma ou outra razão, começavam a frase, priva a África de um terço de sua população e consigna os
vender volumes crescentes de produtos de exportação; lucraram com outros dois terços a uma concepção resumida de cultura.” A Áfri-
o fato de que as áreas de estagnação ou profunda pobreza podiam ca, é preciso lembrar, era há muito tempo um continente diversifi-
ser fontes de mão-de-obra irregular mas barata; e tentaram equili- cado e cosmopolita.
brar estabilidade com exploração em zonas de investimento estran- A separação das pessoas de sua terra natal e de seus relaciona-
geiro. Na Grã-Bretanha e na França, os planos ambiciosos de mentos sociais tornava-as vulneráveis, em seus novos lares in-
promover a expansão econômica, que surgiram dentro da burocra- desejados, a várias formas de exploração e dava origem à questão
cia, foram engavetados na década de 1920, em meio a temores de de em que base se entenderiam com a nova estrutura social e as novas

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formas culturais.'º A dinâmica da afiliação e da marginalidade em passaram a preocupar-se menos com o que suas esposas produziam
sociedades que antes absorviam escravos, no contexto do poder nas fazendas e concentrar-se mais na guerra e no mercado, enquan-
imposto e do esforço dos próprios ex-escravos para desviar, redefinir to a insegurança da região tornava as mulheres, objetos especialmen-
ou negar as formas de “fazer parte”, continua a ser uma questão te desejáveis para a escravização, vulneráveis e, deste modo, mais
complexa. dependentes do que antes dos homens guerreiros. Nas sociedades
Um lugar interessante para examinar este problema é a África patrilineares, as consegiiências de um casamento local e de um casa-
Central, principalmente nas sociedades matrilineares. A sucessão mento com escrava não eram tão diferentes, mas ainda assim este
matrilinear provocou problemas específicos numa época de incer- último aumentava a possibilidade de construir um grupo grande
teza e mudança como o século XIX. Um homem que adquirisse rique- de parentesco além das fronteiras dos relacionamentos entre as
za e sucesso militar não poderia passá-los aos filhos; seus herdeiros linhagens.
seriam os filhos de sua irmã. Um sistema desses não dava, necessa- Assim, a emancipação causou um problema de poder e relações
riamente, poder às mulheres, embora em certas condições criasse de gênero. Numa região da Niasalândia britânica (hoje Malauí), Elias
possibilidades para a iniciativa e a ação coletiva femininas, mas apre- Mandala demonstrou que o fim da escravidão e o aumento do co-
sentava um dilema específico quando os grupos de parentesco não mércio de produtos agrícolas que as mulheres podiam controlar deu
tinham relações estáveis entre si e homens ambiciosos queriam cons- por certo tempo algum poder às mulheres, até que, mais tarde, a
truir grupos de parentesco e padrões de sucessão que eles mesmos economia agrícola comercial desgastou-se no período colonial.º* Em
pudessem controlar. Onde havia escravos — e o cinturão matrilinear termos mais gerais, o potentado masculino local perdeu a capacida-
da África Central era ao mesmo tempo vítima e beneficiário do co- de de obter esposas escravas, a capacidade de agir independente-
mércio de escravos — um homem podia resolver o problema com- mente da linhagem materna, sua e das esposas, e o controle dinástico,
prando ou capturando uma escrava e desposando-a. Como ela se além das oportunidades de conquista, escravização e comércio que
transformara numa pessoa sem família, sua linha de sucessão não foram diretamente impedidas pela Pax Britannica.
tinha poder sobre as crianças. O homem, assim, podia expandir seu Os conquistadores britânicos temeram que um excesso de “li-
próprio grupo de parentesco, enquanto casando-se com mulheres bertação” pudesse diminuir em vez de aumentar a possibilidade de
livres expandiria o grupo de parentesco das esposas.*! produção agrícola comercial e desorganizasse a ordem social que
Este processo contribuiu para o crescimento rápido do poder dependia da autoridade patriarcal. Assim, não se envolveram ativa-
dos chefes nesta região. É claro que tais estratégias matrimoniais mente na libertação dos escravos e dedicaram-se a impedir o co-
eram contrabalançadas por outros homens que faziam a mesma coisa mércio e os casos de maus-tratos que não podiam evitar; em geral,
e a relativa descentralização do processo de comércio de escravos e contentavam-se em definir uma das formas mais importantes de
as rotas do tráfico criaram bastante conflito e insegurança.*? As re- escravização na categoria de “casamento” em vez de “escravidão”.
lações de poder entre os sexos foram afetadas quando os homens Ainda assim, houve considerável confusão sobre quem era ou não

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escravo e que tipo de autoridade e por quem podia ser exercida sobre local. Dispunham-se a permitir que os homens mais velhos lhes dis-
as mulheres. Dentro e fora do casamento, as “instituições legais sessem o que significava “costume”, contanto que não constituísse
consuetudinárias” foram usadas para tentar “manter as relações de uma prática bárbara, e a incorporar essas noções num sistema judi-
subserviência entre os escravos e seus antigos senhores”.** cial semiburocratizado que codificasse essas reivindicações de au-
O crescimento da migração da mão-de-obra assalariada nas duas toridade conjugal.
Rodésias e na Niasalândia complicou a questão. Embora o trabalho Assim como nas lutas sobre a mão-de-obra no litoral do Quênia
assalariado nunca tenha se generalizado na região, desenvolveu-se e em Zanzibar, as autoridades coloniais mergulharam num mundo
o bastante (desde as plantations do sul da Niasalândia às minas da social mais complexo do que suas categorias conseguiam explicar.
Rodésia do Sul ou até a África do Sul e, mais tarde, às minas da Ro- Vieram a aceitar como africanas, imutáveis e tradicionais certas
désia do Norte) para que os jovens o considerassem às vezes uma noções novas de relações sociais que eram produto de lutas e de uma
oportunidade de ter acesso a recursos econômicos de forma inde- história que não queriam conhecer.
pendente de seus pais, a serem usados para o casamento. Pior ainda A questão do casamento teve consequências importantes so-
para os patriarcas inseguros, as moças podiam também encontrar bre a questão da mão-de-obra. Quando as minas de cobre da
alternativas nas novas cidades, privando seus pais do dote e da mão- Rodésia do Norte britânica começaram a produzir na década de
de-obra — a sua, a dos maridos das filhas e a das futuras gerações 1920, a ideologia neotradicionalista que os administradores tinham
— que era essencial para que uma família fosse tão abastada quanto então aceitado deixou-os com uma ambivalência profunda: queri-
permitia o sistema colonial. am que os africanos trabalhassem para o capital europeu mas viam
Mas a autoridade masculina não se desgastou com tanta facili- que a ordem e a estabilidade social dependiam da preservação de
dade. Martin Chanock mostra como essas ameaças levaram à união uma estrutura de relações familiares enraizadas na aldeia e na au-
sob o lema das “instituições legais consuetudinárias”. Ele ressalta toridade dos mais velhos. Os próprios rapazes talvez preferissem
que elas faziam parte de uma luta defensiva pelo poder, a tentativa períodos curtos de trabalho assalariado, para que pudessem com-
de tomar o passado ambíguo e transformá-lo em mecanismo de biná-los com a segurança das terras da aldeia e a inclusão em seus
controle dos homens mais velhos sobre os rapazes mais arrogantes arranjos sociais, enquanto os homens mais velhos, assim como as
e as moças mais determinadas. O “costume” da deferência aos mais mulheres mais velhas e mais novas, tentavam levar a combinação
velhos e a rigidez dos papéis conjugais dentro dos padrões de rela- de recursos materiais e sociais em direções diferentes. Os empre-
ção de gênero não foram invenções saídas do nada, mas representa- gadores europeus viram-se presos entre o desejo de maximizar o
vam a transformação de um passado recente e conflitado em costume recrutamento de mão-de-obra e a esperança de não pagar o custo
antigo. As próprias autoridades britânicas, preocupadas com as mu- social total do trabalho numa situação de considerável incerteza.
danças sociais visíveis ou sutis que tinham deflagrado, estavam an- Mas a lente pela qual este conjunto complexo e mutante de possi-
siosas para encontrar regras precisas e um senso claro de autoridade bilidades econômicas era examinado nos círculos oficiais estava

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FREDERICK COOPER
CONDIÇÕES ANÁLOGAS À ESCRAVIDÃO

subordinada à preocupação da administração provincial com o


de expandir a produção trazia a possibilidade não só de que méto-
sistema de autoridade.
dos duvidosos de obter mão-de-obra fossem praticados como de que
Essas autoridades podiam conceber os africanos trabalhando,
se encontrasse justificativa para eles. Com certeza a primeira possi-
mas não os africanos como operários. Na verdade, o nome preferi-
bilidade se concrétizou e não somente nos primeiros anos da colo-
do para quem partia da aldeia, abandonava a autoridade dos ho-
nização, mas não foi tão fácil criar uma defesa durável para qualquer
mens mais velhos e a regra do casamento consuetudinário era
forma de trabalho sob coação. A internalização do imperialismo na
“africano destribalizado”. Até a década de 1940 a discussão das
década de 1880 — a articulação de uma fachada comum de ideolo-
questões de mão-de-obra ficou encurralada nesta limitação concei-
gia reformista combinada às rivalidades contínuas entre as nações
tual e, para a manutenção deste construto, foi fundamental a idéia
— foi um fator crucial neste aspecto: os estados europeus manti-
de que as mulheres ficariam nas aldeias e que os regulamentos — os
nham olhos vigilantes uns sobre os outros e transformar em exem-
contratos de trabalho e os tribunais consuetudinários — deveriam
plos os membros mais fracos da comunidade colonizadora servia
manter as coisas assim. O povoado mineiro ou a cidade poderiam
de aviso sobre o tipo de colonialismo aceitável nos círculos bem-
ser local de trabalho, mas não de reprodução da força de trabalho.
educados.
Assim, em várias regiões da África a revolução que se seguiu à
emancipação não foi pretendida nem clamorosa, mas, em vez dis-
As regras do jogo
so, provocou uma transformação básica das relações de poder e de
gênero, tratada no discurso oficial como se fosse a manutenção da
A principal prova de sua seriedade aconteceu no Congo do rei
tradição. Este conjunto de categorias não foi melhor do que o con-
Leopoldo. Leopoldo II da Bélgica, um dos arquitetos dos acordos
ceito de mão-de-obra livre para levar à compreensão da dinâmica
internacionais segundo os quais as potências européias repartiram
da África sob o domínio colonial.
a África, concedeu a empresas o direito de coletar a borracha. Elas
o fizeram pelo terror, seviciando as pessoas que não conseguiam
cumprir as quotas. Na década de 1890 missionários e comerciantes
TRABALHO FORÇADO E MENTALIDADE COLONIAL
montaram uma campanha internacional contra estas práticas e, em
1908, Leopoldo foi forçado, finalmente, a transformar seu feudo
A concepção moral do novo colonialismo no final do século XIX
pessoal do Congo numa verdadeira colônia belga e encontrar ou-
implicou não só o dever de salvar os africanos uns dos outros, como
tras formas além do terror de obter progresso econômico. A desis-
também a obrigação das potências coloniais de examinar as práti-
tência formal provavelmente contribuiu menos para o fim da coleta
cas umas das outras. A impossibilidade de cumprir o primeiro de-
forçada de látex que a exaustão das fontes de borracha e o desen-
ver, contudo, tornou o segundo uma questão delicadíssima: dada a
volvimento de outras atividades econômicas menos dramaticamen-
resistência peculiar dos africanos ao trabalho constante, a tentativa
te nocivas.” Mas Leopoldo fora humilhado por causa do que fizera
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FREDERICK COOPER CONDIÇÕES ANÁLOGAS À ESCRAVIDÃO

aos africanos. Seguiu-se a campanha contra o arrebanhamento de fortes demais para que o progressivismo em proveito próprio dos
africanos em Angola para trabalhar nas insalubres e letais planta- pioneiros do capitalismo minerador ficasse vulnerável a ataques.
ções de café da ilha de São Tomé e, na década de 1920, a Libéria A França e a Grã-Bretanha, que, na maior parte da África, en-
tornou-se alvo de outra campanha contra práticas de recrutamento frentavam uma situação em que os africanos podiam distanciar-se
semelhantes.* das “dificuldades racionais” do trabalho assalariado, sofreram crí-
O ataque a Leopoldo, com todos os seus ecos de antiescravismo ticas regulares dos puristas do mercado de trabalho. Com fregiiên-
do século XIX, concentrou-se num mal limitado, ao contrário da cia estes críticos usavam a palavra “escravidão”, juntamente com as
aparência benigna das transações de mercado. Mas isso pressupu- imagens de morte e desumanização que repetiam as da propaganda
nha o que os funcionários de Leopoldo não inferiam: que os africa- antiescravista, para dramatizar as políticas que passavam dos limi-
nos já teriam aceitado o mundo racional do mercado. As companhias tes.*? Todos os regimes defendiam-se evocando objetivos públicos,
produtoras de borracha precisavam mais da mão-de-obra para co- principalmente a necessidade de desenvolver redes de transporte
lher o látex do que os seringueiros precisavam delas. Ao forçá-los a para “abrir” a África, para justificar o uso provisório de trabalho
trabalhar pelo terror, as companhias criaram em torno de suas víti- forçado. As autoridades francesas empregavam uma metáfora mili-
mas uma aura de irracionalidade africana que impedia os europeus tar para o trabalho forçado em obras públicas: a “deuxiême portion
racionais de fazerem negócios, de selvageria dos africanos que jus- du contingent” (“segunda porção do contingente”), ou seja, os ho-
tificava a violência. Alguns dos principais líderes da campanha anti- mens rejeitados pelo recrutamento militar depois de obtido o nú-
Leopoldo eram de casas comerciais que negociavam com os africanos mero desejado de soldados. Cumpriam seu tempo de serviço e
ocidentais.” As questões mais profundas da natureza peculiar da recebiam salário, como os conscritos, mas trabalhavam na constru-
racionalidade econômica capitalista e das dificuldades de transportá- ção de estradas e outros empreendimentos de obras públicas, em
la para a África não foram investigadas. geral submetidos a péssimas condições. Outra categoria ainda de
A crítica reformista do imperialismo que deu errado ajudou a trabalho sob coação foi disfarçada de prestação de serviços de um
definir a normalidade do domínio colonial.*º Enquanto isso, a Áfri- aldeão à sua comunidade e ao chefe local. Mas na verdade o recru-
ca do Sul reduzia os direitos dos africanos à terra, expulsava os agre- tamento forçado oficial de trabalhadores para fins particulares e não
gados e impunha a disciplina aos trabalhadores africanos através da apenas para o serviço público continuou a existir na África francesa
lei do passe, do controle da moradia e por outros meios. A política até 1946.5 Os portugueses também empregaram um sistema de tra-
trabalhista sul-africana tinha, há muito, seus críticos de elevados balho forçado que foi severo, duradouro e maldisfarçado. Os britã-
princípios, mas estes não tinham um ponto de partida seguro para nicos insistiam em que tinham horror ao trabalho forçado, mas ainda
destrinchar a abordagem legalista e sistemática pela qual se tomava assim praticaram-no nas primeiras décadas do século em minas da
pelos africanos a decisão de trabalhar ou não em troca de salários. Costa do Ouro e da Rodésia e reviveram-no extensamente durante
Os sinais visíveis do crescimento econômico da África do Sul foram a Segunda Guerra Mundial. Empregavam-se cuidadosamente pala-

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vras como “recrutamento”, mas os africanos da Rodésia não se dei- relativamente curtos, e não apenas porque era assim que os euro-
xaram enganar: usavam a palavra “chibaro”, que significa “escra- peus queriam. Embora o padrão clássico do desenvolvimento capi-
vo” nos idiomas locais, para os trabalhadores fornecidos às minas talista na Europa impusesse a asserção do controle do tempo dos
pela agência de recrutamento do governo.** trabalhadores pela burguesia, o padrão de recrutamento da força
Mas a maioria dos africanos sofreu mais a pressão indireta. As de trabalho na África no período entre as guerras mundiais veio a
relações entre os chefes e o povo nas aldeias africanas inseriam-se depender mais do controle do espaço pelos estados coloniais.” A
numa rede complexa de afinidade e poder muito mais sutil do que pequena demanda de mão-de-obra exigia um grande número de
a distinção entre mão-de-obra escrava e livre. Como disse uma au- trabalhadores potenciais e funcionava de forma mais previsível quan-
toridade britânica no Quênia, obter de um chefe mão-de-obra em do regiões grandes estavam suficientemente empobrecidas para
benefício dos colonos brancos “dependia de até que ponto ele po- transformar o trabalho assalariado em parte do ciclo da vida.
dia ser induzido a ir além de suas instruções”.ºº Isso significava que Quando as potências coloniais se ajustaram à noção de que suas
as questões básicas relativas à mão-de-obra não podiam ser expos- antigas ambições não seriam atingidas e começaram a louvar a sa-
tas diretamente. O verdadeiro funcionamento do sistema ocorreu bedoria de conservar a cultura africana, a ideologia da mão-de-obra
às ocultas. De seu lado, os proponentes do trabalho forçado costu- livre tornou-se formalista. Mas seus expoentes chegaram bem per-
mavam formular de forma estreita suas críticas ao uso de coação to de apontar contradições fundamentais do domínio colonial, a
oficial para lucro privado ou contra os abusos do recrutamento ponto de seus esforços gerarem controvérsia. A Liga das Nações
governamental e não se aprofundavam nos padrões de usurpação concordou com uma “Convenção sobre a Escravatura” em 1926,
da terra e do poder que na verdade configuravam as condições de que recomendava eliminar das colônias os vestígios de escravidão e
trabalho. comércio de escravos. A Convenção pediu à Organização Internacio-
Na década de 1920 no Quênia— e em outras épocas em outros nal do Trabalho (OIT) que desse um passo a mais e fizesse uma inves-
lugares — a questão da mão-de-obra livre já se destacava menos. tigação sobre “o melhor meio para evitar que o trabalho forçado ou
Chegara-se a um novo equilíbrio, em conseqiiência tanto da mo- compulsório se desenvolva em condições análogas à escravidão”.
déstia crescente das aspirações européias quanto do fato de que os A Liga das Nações passara a admitir a possibilidade de que a
africanos foram forçados, por vários tipos de necessidade, a parti- prática de países-membros de arrebanhar trabalhadores para usá-
cipar do mercado de trabalho e de produtos agrícolas. As áreas de los nalgum propósito que o governo considerasse adequado fosse
onde vinha a maioria dos produtos de exportação eram, na verda- análoga à escravidão.” O problema agora era traçar uma linha que
de, bem limitadas e ali as relações sociais de produção variavam. A definisse onde a mão-de-obra deixava de ser livre. Invocar neste
oferta de mão-de-obra em regiões como as minas da África Central, contexto a tradição já secular do antiescravismo abstrafa a dicotomia
as fazendas dos colonos do planalto queniano ou as plantations da entre trabalho livre e coagido da rede complexa de poder e afinida-
Costa do Marfim vinha de grandes áreas de reserva em períodos de na qual os trabalhadores existiam concretamente. Este processo

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de abstração teria considerável peso ideológico: o que quer que não precisavam de flexibilidade para garantir que fosse realizado o tra-
fosse declarado coação não seria, portanto, análogo à escravatura e balho necessário para o bem do próprio povo; além disso, o povo
conquistaria a distinção de ser absolvido em termos do único crité- se beneficiaria com “um período para habituar-se e educar-se”. As
rio moral que a Liga e a OIT aplicavam ao trabalho colonial. A OIT iniciativas para retardar a implementação e isentar as empresas pri-
indicou devidamente um Comitê de Especialistas para assumir a vadas que trabalhavam em projetos de obras públicas foram vi-
tarefa. gorosamente discutidas e derrotadas. A própria delegação francesa
Seu trabalho resultou na Convenção do Trabalho Forçado da estava dividida, sendo que os representantes do governo e dos em-
OIT, de 1930. A seu modo, este documento foi radical. Estabeleceu pregadores se opunham à proibição incondicional do trabalho for-
como meta a supressão do “trabalho forçado ou compulsório em çado com fins privados e os representantes dos trabalhadores
todas as suas formas no período mais curto possível” e declarou que franceses apoiavam-na.*!
este trabalho não poderia ser usado “em benefício de indivíduos, Talvez as idéias mais reveladoras sobre as pressuposições desta
companhias ou associações privadas”, o que entraria em vigor ime- Convenção tenham sido as de um oponente, René Mercier, que fez
diatamente. Trabalho forçado significava “todo trabalho ou serviço objeções à “identificação do trabalho obrigatório à escravidão”,
extraído de qualquer pessoa sob ameaça de qualquer punição e para perguntando-se, ao mesmo tempo, o que era realmente trabalho li-
o qual a dita pessoa não se ofereceu voluntariamente”. Este traba- vre. A Convenção “visualizou, acima de tudo, o “homem em si mes-
lho poderia ser usado temporariamente com propósitos públicos, mo”, como uma entidade, e não o nativo como ele é, com sua
mas a convenção ditou os termos: os trabalhadores só poderiam herança, sua psicologia, seus costumes, sua vida social, seu “clima'”.2
trabalhar por períodos limitados e recebendo o pagamento costu- Em outras palavras, a proibição do trabalho forçado supunha que
meiro. Os governos membros ficariam com o fardo de implementar havia algo como trabalho livre, que havia indivíduos isolados da
estes regulamentos ao mesmo tempo em que lutavam para abolir a comunidade e da cultura, capazes de existir sozinhos no mercado
prática por completo.*? de trabalho e tomar decisões. Este argumento supunha, embora
O Comitê de Especialistas enfrentou debates acirrados e teve Mercier não dissesse assim, que o capitalismo já refizera a cultura,
votações disputadíssimas em pontos importantes; a Conferência que o acesso dos africanos aos meios de produção estava suficiente-
Internacional do Trabalho de 1930 aprovou a versão final por 93 mente comprometido para que o trabalho assalariado fosse alter-
votos a favor, com 63 abstenções, entre as quais França, Bélgica e nativa preferível ao cultivo por conta própria. Mercier afirmou
Portugal. Os proponentes da medida ressaltaram o princípio uni- conhecer a “realidade colonial”, querendo dizer que sabia que o
versal: a convenção era uma “condenação definida e irrestrita de africano não era o ser universal e isento de cultura que a OIT supu-
todo o sistema de trabalho forçado ou compulsório”. Seus oponen- nha. Ele tinha razão neste aspecto, embora sua conclusão de que a
tes aceitavam o princípio mas insistiam que, ao tratar com indiví- singularidade cultural do africano tornava-o alvo legítimo da coa-
duos “em diferentes estágios de civilização”, os governos coloniais ção se baseasse também em suas próprias suposições duvidosas.

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O governo francês, nada interessado em abordar a questão nes- coagida por empresas concessionárias na África Equatorial fran-
tes termos, recusou-se até 1937, por razões de Estado, a ratificar a cesa (especialmente na extração de madeira) assim como na cons-
Convenção. Fez objeções à intromissão internacionalista no que trução pelo governo de uma ferrovia no Congo francês, que
considerava um assunto militar nacional — a “deuxiême portion du resultou em horrenda mortalidade dos trabalhadores importados
contingent” — ou no caso de sua política de permitir que governantes à força de outro setor da região. O desenvolvimento das plantations
locais (franceses ou africanos) exigissem alguns dias de trabalho local da Costa do Marfim e, mais tarde, da Guiné baseou-se em grande
por ano, como “tributação”. Em outras palavras, as autoridades fran- parte no trabalho sob coação e o projeto de obras públicas mais
cesas não viam isso como trabalho, por mais importante que fosse importante das décadas de 1930 e 1940, o Office du Niger no
na construção de ferrovias ou na manutenção de estradas, mas co- Sudão francês, seria o principal consumidor de trabalho forçado
locavam-no em outra categoria de mobilização legítima de recursos com propósitos “públicos”.
pelo governo. As autoridades de escalão mais alto afirmavam que não havia
O governo britânico, contudo, ratificou prontamente a Conven- recrutamento com fins privados, mas na hierarquia todos sabiam
ção, achando que suas colônias já tinham cruzado a linha divisória que isso era falso. Os colonos brancos da Costa do Marfim, em
entre a coação e seu oposto. As convenções de 1926 e 1930 foram particular, dependiam dos trabalhadores recrutados pelos chefes, sob
usadas, principalmente, para justificar a pressão internacional e a as vistas dos administradores franceses, no norte da Costa do Mar-
intervenção ocasional, sob os auspícios da Liga e da OIT, nos go- fim (conhecido em várias épocas como colônia do Alto Volta, hoje
vernos mais fracos da África cujas práticas eram flagrantemente o país Burkina Faso). Enquanto a OIT ponderava o que veio a tor-
coercitivas e com objetivos privados — em particular, a Libéria e a nar-se a convenção de 1930, o governador-geral Carde observou o
Angola portuguesa. Na França, a convenção afundou ainda mais dilema entre as normas universais e a realidade específica com rela-
a questão da mão-de-obra num mundo oculto onde nem a corres- ção à proposta de proibição do trabalho forçado em empresas pri-
pondência oficial secreta podia discuti-la diretamente e do qual só vadas: “Esta questão é muito delicada; a aplicação estrita desta regra
saiu em 1946.56 poderia, na verdade, ter consegiiências desastrosas para numerosas
empresas estabelecidas na África Ocidental francesa. Assim, é ne-
Trabalho forçado na África francesa, 1930-1946 cessário que nós, embora com respeito pelo princípio aceito, nos
forcemos a evitar os efeitos deploráveis que sua aplicação pura e
O trabalho forçado continuou a existir na África francesa tanto simples não deixaria de provocar.” Uma situação dessas afetaria
na forma de prestação de serviço ou de trabalho pseudomilitar não só a postura pública da administração como também a lingua-
quanto no caso dos trabalhadores recrutados por autoridades do gem de seus debates internos. O silêncio falou mais alto. Um hones-
governo e enviados para trabalhar em locais privados.” Já houve- to e incomum relatório de inspeção descreveu as operações de
ra escândalos na década de 1920 sobre o uso de mão-de-obra recrutamento: “Jamais se endereçou nenhuma instrução escrita aos

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administradores sobre sua conduta neste caso. Ainda assim, todos


o futuro da África além do que concebiam como formações sociais
conheciam os desejos dos chefes, todos temiam por suas promoções e culturais de seu passado.”
e não ousavam formular explicitamente crítica alguma.”?º Mas o novo regime só iria até aí. O trabalho assalariado ainda
O governo da Frente Popular de 1936-38 dispôs-se, finalmente, era necessário para projetos de infra-estrutura e transporte, assim
a ratificar a convenção de 1930, assim como a reduzir o uso da pres- como para as fazendas de colonos existentes, já que eliminar este
tação de serviços.”! Não abandonaria a deuxiême portion e insistiu setor poria em risco parte grande demais da receita de exportação
que a convenção não se aplicava a este tipo de serviço; a coação de que a África Ocidental francesa podia se gabar. Daí a importân-
para projetos públicos através da alegação da analogia com o servi- cia do “apostolat du travail”. Mas nas regiões mais distantes do norte
go militar era defendida tanto pela esquerda quanto pela direita. No da Costa do Marfim, não ficou claro onde terminava o “apostolat
entanto os administradores receberam ordem de desistir do uso de du travail” e começava a coação. Alguns administradores locais ten-
coação em benefício dos colonos.”? Disseram-lhes que se dedicas- taram informar o ministro colonial da Frente Popular de práticas
sem ao “apostolat du travail”, ou seja, a pregar as virtudes do tra- duvidosas, mas seus inquéritos pelos canais oficiais não tiveram re-
balho assalariado. Estas decisões refletiam um governo cônscio de sultado.?s Na verdade, a Frente Popular estava limitada pelo código
sua intenção progressista e sabedor da natureza hipócrita de seu de silêncio desenvolvido por seus antecessores: era difícil localizar
próprio discurso, ponto enfatizado pelo governador-geral Marcel e impedir práticas que oficialmente não existiam. E não era fácil para
de Coppet: “Mentimos na França, na Europa, no mundo inteiro, Dacar ou Paris endurecer a administração territorial: toda a estru-
em Genebra e na Organização Internacional do Trabalho quando,
tura da autoridade colonial dependia de uma hierarquia de admi-
regulamentos e circulares nas mãos, falamos da organização da mão- nistradores que conheciam os nativos e cuja legitimidade não era
de-obra nas obras públicas das colônias. Desonramos nossa admi- questionada. Pelo menos, o arrebanhamento de trabalhadores for-
nistração colonial e desmoralizamos nossos funcionários públicos çados para os colonos tornou-se menos visível sob a Frente Popu-
quando lhes pedimos que apliquem, somente no papel, regulamen- lar. É muito menos visível se essas práticas terminaram.
tos inaplicáveis na prática.”?? Assim que um governo menos agoniado chegou ao poder na
Também foi reconhecido que a violência ia contra seus limites França em 1938 e quando a guerra e a necessidade de aumentar a
políticos, além de impor graves riscos demográficos, numa época
produção surgiram no horizonte, a situação degenerou-se. Às vés-
em que a força de trabalho era bem pequena e que este não era um peras da Segunda Guerra Mundial, a mobilização bélica e a cos-
passo rumo a um futuro mais próspero e menos coercitivo. Os líde- tumeira queixa de que o trabalho voluntário era insuficiente
res da Frente Popular acreditavam que a única maneira de superar
tornaram-se justificativas para enviar sinais pela burocracia de que
os limites de então seria permitir que os camponeses se envolves-
eram necessários mais homens e que se fariam menos perguntas.?é
sem mais em atividades comerciais. Admitindo implicitamente o
Depois da derrota da França em 1940, o regime colaboracionista
fracasso das intervenções francesas, não viam melhor esperança para
de Vichy governou a África Ocidental até o fim de 1942.e o traba-

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lho forçado nesta região chegou a níveis sem precedentes..Cerca todas as expectativas. Em tais condições, é impossível pensar em
de 55.000 recrutas por ano foram postos a trabalhar na Costa do implementar um programa de desenvolvimento baseado apenas no
Marfim, 39.000 na Guiné. Como a França não queria ou não po- princípio da mão-de-obra livre.”78
dia enviar bens manufaturados desejáveis à África, havia pouco in- Era esta a situação em fevereiro de 1944, quando as autorida-
centivo para os africanos trabalharem. Sob Vichy, contudo, a des da França Livre reuniram-se em Brazzaville, no Congo, para
compulsão ficou mais ostensiva e, na França, as autoridades colo- debater as novas direções da política colonial no pós-guerra. Este
niais ridicularizavam quem demonstrasse escrúpulos sobre o alis- foi outro momento em que as autoridades ficaram bem conscientes
tamento da mão-de-obra africana em prol do poderio nacional. da necessidade de articular uma política progressista. Não só as
Às quotas de recrutamento foram discutidas abertamente e o go- denúncias de infrações durante a guerra da “autodeterminação”
vernador-geral de Vichy, Pierre Boisson, sofreu críticas por argu- ainda soavam em seus ouvidos como as próprias autoridades,
mentar que o nível de recrutamento atingira o limite do que a África surgidas da débâcle francesa durante a guerra, precisavam de uma
Ocidental francesa poderia suprir.” visão positiva de seu papel. A conferência de Brazzaville foi uma
Mesmo depois que os Franceses Livres assumiram o controle da vigorosa reafirmação da moralidade do império, agora justificado
África Ocidental francesa, os imperativos da produção de guerra, pelo papel da França na supervisão do desenvolvimento econômico
agora para o lado oposto, e a crença de que a escassez de mercado- e social. Os participantes queriam dar voz nas instituições francesas
rias em tempo de guerra exacerbara a aversão africana ao trabalho aos africanos que seguissem as regras; como resultado destas deli-
assalariado manteve em seu lugar o trabalho forçado. Na verdade, berações, houve eleições em outubro de 1945, com direito de voto
os altos e baixos da confiança dos franceses na coação esconde e ao limitado, e mais de vinte representantes coloniais foram enviados a
mesmo tempo reflete uma atitude frente aos africanos que, em boa Paris para participar da elaboração de uma nova constituição fran-
extensão, era comum entre proponentes e opositores do trabalho cesa e para exercer funções legislativas.”
forçado na década de 1930 e início da de 1940: os africanos seriam Enquanto essas decisões eram tomadas, as autoridades também
seres peculiares com hábitos profundamente entranhados. Para al- debatiam o trabalho forçado. A conferência de Brazzaville ouviu o
guns, isso significava que o progresso econômico só viria através da novo governador da Costa do Marfim descrever os seus horrores.
compulsão. Outros insistiam em que os africanos eram e sempre Os participantes concordaram que era um desastre demográfico e
seriam camponeses e as autoridades teriam de adaptar-se a este fato econômico, além de moral; temiam o êxodo dos habitantes da co-
e ajustar devidamente sua abordagem da expansão agrícola. As prin- lônia francesa do Alto Volta, limitada em território mas populosa,
cipais autoridades do novo governo acreditavam que o trabalho para a colônia britânica da Costa do Ouro, para fugir aos caçadores
forçado era ao mesmo tempo perigoso e necessário: “Pouco habitua- de cabeças da administração. Mas as autoridades estavam tão
dos a jornadas fixas de trabalho, pouco interessados em melhorar convencidas de que os africanos não trabalhariam por salários que
sua situação com uma disciplina desagradável, facilmente fogem a deram a si mesmas cinco anos para acabar com o trabalho forçado.

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O nível de recrutamento seria reduzido em 20% ao ano até chegar uniram o famoso poeta e deputado das Índias Ocidentais Aimé
a zero no último.*? Césaire e outros, logo apresentou adequadamente um projeto de
De qualquer modo, o trabalho forçado foi definitivamente eli- lei cujo principal artigo dizia, simplesmente: “O trabalho forçado
minado em dois anos, não em cinco. O cronograma de Brazzaville ou obrigatório está proibido, da forma mais absoluta, nos territó-
desmoronou na conjuntura extraordinária de 1946. As colônias rios ultramarinos.” Era este o principal objetivo da representação,
africanas eram agora sede de campanhas políticas e havia africanos ainda que minoritária. Os legisladores teriam de examinar suas cren-
ocupando cadeiras na legislatura em Paris. Em dezembro de 1945, ças num fórum público.*
começou uma greve de dois meses no principal porto da África A lei proposta passou por um comitê encabeçado por Hou-
Ocidental francesa, Dacar; as autoridades só conseguiram levar os phouêt-Boigny, que logo divulgou um relatório ressaltando os abu-
grevistas de volta ao trabalho com grandes aumentos de salário e, o sos provocados pelo trabalho forçado e as perigosas consegiiências
que é ainda mais importante, pondo em prática todo o aparato de políticas, sociais e demográficas de obrigar os homens a abandonar
relações industriais usado na França — em resumo, agindo como se suas aldeias para trabalhar em áreas distantes. Este documento tam-
os grevistas fossem modernos operários industriais.” Em meio a isso bém invocava a imagem da escravidão e da corvée, ou trabalho duro,
tudo, os caçadores de homens ainda trabalhavam. do ancien régime da França. Houphouêt-Boigny, citando seu pró-
prio exemplo, sustentou a possibilidade de os produtores africanos
“A escravidão que ainda é praticada na África negra” darem uma contribuição muito maior às exportações do que os
colonos brancos e ofereceu aos deputados a oportunidade de “pro-
Os delegados africanos em Paris obrigaram os legisladores france- var ao mundo que a França dos direitos do homem e do cidadão, a
ses a declarar em público se queriam ou não que o trabalho forçado França da abolição da escravatura, permanece fiel a si mesma e não
fizesse parte da sociedade francesa no pós-guerra. Em fevereiro de poderia contestar nem limitar a liberdade de qualquer indivíduo que
1946, um grupo liderado por Felix Houphouét-Boigny, cuja base viva sob sua bandeira”. Os deputados aproveitaram a oportunidade
política era um conjunto de produtores africanos de cacau da Costa e aprovaram sem discussão a lei que se tornou conhecida como “lei
do Marfim, escreveu ao ministro colonial: “Milhões de homens nos Houphouêr-Boigny”.**
mandaram aqui e nos deram o mandato específico de lutar com toda O ministério colonial, que não se opusera ao projeto de lei, re-
a nossa força para abolir a escravidão que ainda é praticada na Áfri- cebeu, sem dúvida, sua aprovação com alívio. Voltar atrás do plano
ca negra por homens, funcionários públicos e civis, que são traido- de cinco anos representou uma mudança significativa da concep-
res da França e de sua nobre missão civilizadora.” Astutamente, ção oficial. Ainda no verão de 1945, o governador-geral da África
vincularam sua retórica âquela com que a França defendia a mo- Ocidental francesa ponderara se a produção poderia manter-se sem
ralidade do imperialismo, enquanto levavam a analogia com a es- o trabalho forçado; não tinha certeza de que a mão-de-obra livre
cravidão a uma justaposição desabonadora.*? Este grupo, ao qual se fosse, afinal de contas, uma coisa boa para os africanos, já que per-

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FREDERICK COOPER CONDIÇÕES ANÁLOGAS À ESCRAVIDÃO

deriam “o contato ancestral com a terra e isso significaria a criação, a ver que a SAA lhe dava uma nova carta no jogo e chegou a acom-
cheia de riscos, de um proletariado nativo, que perdeu seu senso de panhar Houphouêt-Boigny numa “viagem de propaganda” pelas
propriedade da terra (no sentido usual), contando apenas com o populosas regiões do norte da Costa do Marfim, onde se procurava
salário para viver”. O governador-geral ainda estava preso ao ar- mão-de-obra, agora voluntária, para uso no sul mais fértil. Mais tarde
gumento da peculiaridade do africano, apesar das afirmativas de que Houphouêt-Boigny contou o prazer que teve ao ouvir um velho
o desenvolvimento social e econômico era a razão de ser de todo o chefe, que há muito servia aos franceses, dizer: “Queremos, com
projeto colonial. Houphouêt, tentar a experiência, porque para nós é muito doloro-
A mudança do pensamento oficial aconteceu principalmente so recrutar à força todo ano 6.500 dos nossos rapazes, dos quais a
devido à iniciativa africana. Em termos específicos, foi o crescimento maioria não volta.”3?
da organização política e agrícola africana que apontou a saída da Depois de anos de recrutamento intenso em prol dos colonos, a
confusão contraditória das autoridades entre aspirações moderni- região mais vitimada estava tensa. Para escapar dos caçadores de ho-
zantes para o futuro e o temor do peso do passado africano. Duran- mens, muitos fugiam para o território britânico vizinho da Costa do
te alguns anos, a maior parte do café e do cacau que saiu da Costa Ouro para aceitar empregos em fazendas africanas (com condições
do Marfim foi cultivada por grandes fazendeiros africanos, apesar que, na verdade, serviram de modelo para as oferecidas na Costa do
do fato de que os colonos brancos vinham recebendo a maior parte Marfim pela SAA). O governador Latrille notou que, se pegos e en-
da atenção e da mão-de-obra recrutada. As autoridades passaram a viados para as fazendas dos colonos, os trabalhadores tinham de su-
ter mais interesse por esse grupo após 1944, quando o governo, portar condições de “semi-escravidão”; podiam ser disciplinados por
depois de admitir explicitamente os males do trabalho forçado mas meios coercitivos, como suspender a alimentação, “maus-tratos”, reter
sempre disposto a fazer concessões no processo de aboli-lo, foi en- os salários devidos, já que ser demitido seria uma bênção, não um
curralado pelos colonos, que recusaram qualquer medida que lhes castigo.*! O novo nisso tudo era que agora acontecia no contexto da
cortasse o suprimento de mão-de-obra fornecida pelo governo. mobilização rural por uma organização africana e em face de campa-
Os produtores africanos, liderados por Houphouêt-Boigny, ti- nhas políticas e eleições iminentes (realizadas pela primeira vez em
nham se organizado silenciosamente na Société Agricole Africaine outubro de 1945 e que enviaram Houphouêt-Boigny a Paris), não na
(SAA), em 1944, e criaram sua própria rede de recrutamento de mão- escuridão subterrânea onde a questão da mão-de-obra residira antes
de-obra. Seu procedimento padrão era um tipo de arrendamento da guerra. À situação no norte da Costa do Marfim ficou tão tensa
do trabalho, chamado em geral de métayage: o trabalhador recebia que o recrutamento ali teve de ser suspenso em janeiro de 1946.ºº
um terço do valor do café colhido e/ou dois quintos do valor do Quando Houphouêt-Boigny e seus colegas apresentaram seu
cacau, com a garantia de um mínimo mensal, mais alimentação e projeto de lei na legislatura de Paris, não muito depois que a greve
transporte gratuito para o trabalhador e sua família. O governador geral de Dacar abalara o senso de controle das autoridades sobre
André Latrille, que não tinha muito amor pelos colonos, começou outra dimensão da questão trabalhista, parece que o ministério per-

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FREDERICK COOPER CONDIÇÕES ANÁLOGAS À ESCRAVIDÃO

cebeu que lhe ofereciam a saída de uma situação impossível. Não Mas dentro do setor de mão-de-obra assalariada, o mito da pe-
teria de assumir todos os riscos políticos de ir sozinho contra o con- culiaridade do africano não desapareceu, apenas mudou. Os inspe-
selho dos governadores ou os desejos dos colonos. tores do trabalho, que eram a vanguarda de uma nova abordagem
Depois da aprovação da lei de emancipação em abril de 1946, a da questão trabalhista colonial, ainda comentavam a força de tra-
SAA assumiu boa parte do fardo da transição na Costa do Marfim. balho “indolente” e “instável” e consideravam a instabilidade e a
Quando as empresas européias que forneciam lenha à ferrovia pa- disciplina “doenças infantis” ou “crise da puberdade” (metáforas
raram de derrubar árvores, provavelmente para demonstrar sua desenvolvimentistas não são lá muito exatas) da nova mão-de-obra.
necessidade contínua de trabalho forçado, a SAA organizou opera- Um relatório comentava: “O africano primitivo ainda não adquiriu
ções de derrubada e redes para fornecer a mão-de-obra. Na agricul- o gosto pelo trabalho e não se sente muito tentado a abandonar seu
tura, quando os trabalhadores zangados e hostis abandonaram seus ambiente, assim como seus campos que lhe geram renda suficiente,
empregadores brancos, os produtores africanos aproveitaram a para ir para um local de trabalho onde a disciplina e a obrigação de
oportunidade. O governo fez seu papel triplicando o salário mínimo, constante esforço físico são contrárias aos seus hábitos.”? O go-
atitude que pretendia fazer os colonos perceberem pelo choque que vernador Latrille tentou expulsar da mente oficial até esta visão da
seu mundo mudara e também melhorar o suprimento de mão-de- particularidade africana: “[A] antiga calúnia de que o africano era
obra (e que não afetaria o pacote-padrão de arrendamento de mão- um preguiçoso incorrigível, incapaz de trabalhar a não ser sob coa-
de-obra da SAA). O governo disponibilizou aos ivoiriens estoques ção, foi negada pelos fatos. Afinal, o africano não foi feito de modo
especiais de tecido, o item de consumo importado mais importante diferente do resto da humanidade. Sabe apreciar a dignidade do tra-
e cuja oferta era pequeníssima, através de cartões de racionamento balho realizado livremente e vem oferecer seus esforços sempre que
emitidos pelos empregadores e, assim, disponíveis somente para se lhe oferecem preços remuneradores.”?3
trabalhadores assalariados. A oferta de mão-de-obra estabilizou-se Essa era uma projeção imaginosa das normas européias, tanto
em poucos meses, enquanto os fazendeiros africanos tornavam-se quanto a linha contrária era uma velha calúnia. Mas sob o impacto
cada vez mais importantes como produtores e empregadores.” de novos desafios, como a mobilização dos trabalhadores em Dacar
Os colonos logo se mostraram uma parte eminentemente digna e o apaziguamento da questão do trabalho forçado, era uma decla-
de esquecimento na economia da Costa do Marfim. Na década pos- ração clara da direção que surgia na política trabalhista. A insistên-
terior a 1946, a exportação de cacau e café do país disparou e a cia na estabilidade e a tentativa de transferir recursos especificamente
Costa do Marfim ultrapassou o Senegal como principal economia para os trabalhadores assalariados assinalaram o início de um es-
exportadora da África Ocidental francesa. A história do grande su- forço para defini-los como classe e tentar afastá-los das peculiari-
cesso da agricultura africana no pós-guerra estava sendo escrita pelos dades da cultura africana. Dificilmente alguém acreditara na antiga
fazendeiros africanos e pelos trabalhadores-meeiros que trabalha- ladainha de que o trabalho forçado “ensinaria” aos africanos as vir-
vam para eles.?! tudes do trabalho; em vez disso, ele representou a aceitação de fac-

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FREDERICK COOPER CONDIÇÕES ANÁLOGAS À ESCRAVIDÃO

to de que os africanos agarravam-se às suas próprias noções de vida também deixou muita coisa nas sombras. Parte da mobilização ba-
econômica e só se afastariam delas temporariamente e de má von- seava-se nos fundadores dos movimentos políticos que se postavam
tade. Agora, as autoridades começavam a agir com base na suposi- como libertadores no sentido mais universal da palavra. A lei
ção de que alguns africanos poderiam ser atraídos para uma vida
Houphouêt-Boigny tornou-se a pedra fundamental do mito da
assalariada e aprenderiam novos modos de vida. emancipação na África Ocidental francófona. A mobilização política
O que realmente aconteceu em 1946 não foi que de repente os era tão específica em sua vinculação às redes sociais e aos idiomas
africanos se tornaram seres econômicos racionais sujeitos às leis
da afinidade quanto os métodos de recrutamento de mão-de-obra
universais do mercado, mas que a SAA organizou um sistema de da SAA. Houphouêt-Boigny transformou a rede de produtores afri-
trabalho muito específico. Os líderes relativamente prósperos e bem- canos de cacau numa máquina política e mostrou-se um mestre da
relacionados da SAA tinham seus contatos nas regiões populosas da política do clientelismo; Léopold Senghor tomou o cetro da políti-
Costa do Marfim e algo bem diferente do trabalho assalariado co- ca senegalesa com sua construção de um movimento intimamente
mum a oferecer a seus recrutas: uma forma de arrendamento da mão- ligado às irmandades islâmicas, com seu apelo aos ex-súditos que
de-obra que dava aos trabalhadores controle considerável sobre o buscavam tornar real sua admissão à categoria de cidadão e com a
ritmo do trabalho e a forma como usariam o esforço da própria
ampliação da retórica emancipacionista que atraía a imaginação dos
família, assim como incentivos para aumentar a produção. Adapta- rapazes e moças instruídos. Em termos políticos, econômicos e so-
ram para a Costa do Marfim uma forma de mobilização da mão- ciais, o uso do universal era bastante específico.
de-obra criada na Costa do Ouro no final do século XIX com a qual As autoridades francesas livraram-se do análogo da escravidão
o povo do principal “reservatório” de mão-de-obra da Costa do
quase um século depois que a própria escravidão fora abolida nas
Marfim tivera experiência considerável quando buscou, pela migra-
colônias francesas; deram fim à contradição de defender o domínio
ção, alternativas ao regime de força na África francesa.%
colonial como força econômica e socialmente progressista enquan-
As autoridades francesas notaram, de forma condescendente, que
to mantinham uma instituição que, ao mesmo tempo, supunha e
a métayage era mais adequada aos hábitos africanos que a discipli-
perpetuava o atraso; libertaram seu próprio funcionalismo público
na e os salários com base no tempo dos empregadores europeus.
da tarefa desmoralizadora, da qual os funcionários menores sem-
Mas em 1946 não fizeram muitas perguntas sobre isso nem sobre
pre se queixaram, de supervisionar as caçadas humanas; e desven-
os métodos de recrutamento da SAA. Um relatório fez uma vaga
cilharam-se de uma situação politicamente perigosa. Livres do fardo
alusão ao recrutamento que ainda estava “longe da mão-de-obra livre
de intervir diretamente no mundo ambíguo da organização social
que queríamos instaurar na Costa do Marfim”, mas não indicou
rural, podiam assumir um papel ativista na transformação do mun-
quem, se é que alguém, fizera pressões, sutis ou não, contra quem.
do mais limitado do trabalho assalariado, em especial o trabalho
Se a idéia de mão-de-obra livre lançou pouca luz sobre a especifi-
cidade da organização real do trabalho, o início da política eleitoral assalariado urbano.

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FREDERICK COOPER CONDIÇÕES ANÁLOGAS À ESCRAVIDÃO

Além do trabalho forçado Então veio a greve. Começou em dezembro de 1945, no porto
de Dacar, e logo se espalhou de um a outro grupo de trabalhadores,
O fim do trabalho forçado foi parte da notável conjuntura de 1946 levando a rápidas concessões e à rápida reivindicação de concessões
que fez a questão trabalhista sair do arcabouço estreito da ideologia semelhantes. Durante doze dias, em janeiro, uma greve geral bem
da mão-de-obra livre e abalou o esforço do governo francês de organizada paralisou Dacar e surgiram greves em outros pontos do
redefinir seu papel imperial no pós-guerra. A lei de emancipação de Senegal. O lema mais importante da greve foi “pagamento igual por
abril divide os refletores com dois eventos importantíssimos: a gre- trabalho igual”, reinterpretação notavelmente concreta das decla-
ve geral em Dacar de dezembro de 1945 a fevereiro de 1946 e alei rações francesas em prol da unidade do Império Francês. A greve
do Parlamento francês em maio que aboliu a distinção entre súdito foi mais um conjunto de movimentos sobrepostos e coordenados
e cidadão. do que um único movimento, com trabalhadores comuns em busca
Em março de 1946, quando o ministro colonial Moutet respon- de um salário que lhes permitisse viver, os trabalhadores do comér-
deu à carta de fevereiro dos deputados africanos sobre o trabalho cio um salário mínimo equivalente ao dos trabalhadores europeus e
forçado, já aceitara que os termos da discussão tinham mudado. Não os funcionários públicos igualdade total de benefícios para todas as
proferiu uma palavra para contradizer o poderoso argumento dos categorias. No início de fevereiro, os trabalhadores conquistaram a
deputados, que comparava o trabalho forçado à escravidão. Na mais importante de suas reivindicações. Os efeitos da greve foram
verdade, agradeceu-lhes por apresentar a questão em termos tão poderosos: as autoridades temeram que o recurso à violência colo-
respeitosos à idéia da França como uma nação libertadora. Moutet nial expulsasse os trabalhadores de Dacar e, assim, importaram di-
tinha em mente duas questões relacionadas: a proposta de um códi- retamente da metrópole especialistas e técnicas de organização do
go trabalhista para os territórios ultramarinos franceses e a greve trabalho.
geral que acabara de ocorrer no Senegal. Aqui os africanos agiram de acordo com a idéia do trabalhador
O código trabalhista, que regulamentava a jornada de trabalho “universal”. Aqui os cidadãos (aqueles africanos historicamente as-
e o salário mínimo, os contratos e as regras de organização e nego- sociados às antigas colônias francesas) e os súditos (migrantes re-
ciação coletivas, fora proposto em meados de 1945, de forma du- centes do Senegal rural) fizeram greve lado a lado. E aqui o governo
pla: um código para “súditos”, outro para “cidadãos”. Houvera francês teve de aceitar uma nova realidade, admitir que os trabalha-
objeções a isso no Senegal, com base que qualquer coisa além de dores africanos e suas famílias precisavam de renda e benefícios do
um código unitário seria racialmente discriminador. O código já fora mesmo tipo que os trabalhadores franceses e reconhecer que a ne-
suspenso com os debates sobre o artigo que proclamava que o tra- gociação ordeira com sindicatos reconhecidos era vital para a ma-
balho devia ser voluntário: discutia-se se deveria entrar em vigor nutenção da ordem e da produção constante. Nos meses que se
no cronograma de Brazzaville (em 1949) ou dentro de um ano, como seguiram à greve, os inspetores do trabalho encarregados da gerên-
defendera Houphouêt-Boigny.” cia das relações empregado-empregador se tornariam fortes defen-
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CONDIÇÕES ANÁLOGAS

Além do trabalho forçado Então veio a greve. Começou em dezembro de 1945, no porto
de Dacar, e logo se espalhou de um a outro grupo de trabalhadores,
O fim do trabalho forçado foi parte da notável conjuntura de 1946 levando a rápidas concessões e à rápida reivindicação de concessões
que fez a questão trabalhista sair do arcabouço estreito da ideologia semelhantes. Durante doze dias, em janeiro, uma greve geral bem
da mão-de-obra livre e abalou o esforço do governo francês de organizada paralisou Dacar e surgiram greves em outros pontos do
redefinir seu papel imperial no pós-guerra. A lei de emancipação de
Senegal. O lema mais importante da greve foi “pagamento igual por
abril divide os refletores com dois eventos importantíssimos: a gre-
trabalho igual”, reinterpretação notavelmente concreta das decla-
ve geral em Dacar de dezembro de 1945 a fevereiro de 1946 e a lei
rações francesas em prol da unidade do Império Francês. À greve
do Parlamento francês em maio que aboliu a distinção entre súdito
foi mais um conjunto de movimentos sobrepostos e coordenados
e cidadão. +» do que um único movimento, com trabalhadores comuns em busca
Em março de 1946, quando o ministro colonial Moutetr respon-
de um salário que lhes permitisse viver, os trabalhadores do comér-
deu à carta de fevereiro dos deputados africanos sobre o trabalho
cio um salário mínimo equivalente ao dos trabalhadores europeus e
forçado, já aceitara que os termos da discussão tinham mudado. Não
os funcionários públicos igualdade total de benefícios para todas as
proferiu uma palavra para contradizer o poderoso argumento dos
categorias. No início de fevereiro, os trabalhadores conquistaram a
deputados, que comparava o trabalho forçado à escravidão. Na
mais importante de suas reivindicações. Os efeitos da greve foram
verdade, agradeceu-lhes por apresentar a questão em termos tão
poderosos: as autoridades temeram que o recurso à violência colo-
respeitosos à idéia da França como uma nação libertadora. Moutet
nial expulsasse os trabalhadores de Dacar e, assim, importaram di-
tinha em mente duas questões relacionadas: a proposta de um códi-
retamente da metrópole especialistas e técnicas de organização do
go trabalhista para os territórios ultramarinos franceses e a greve
trabalho.*?
geral que acabara de ocorrer no Senegal.
Aqui os africanos agiram de acordo com a idéia do trabalhador
O código trabalhista, que regulamentava a jornada de trabalho
“universal”. Aqui os cidadãos (aqueles africanos historicamente as-
e o salário mínimo, os contratos e as regras de organização e nego-
sociados às antigas colônias francesas) e os súditos (migrantes re-
ciação coletivas, fora proposto em meados de 1945, de forma du-
centes do Senegal rural) fizeram greve lado a lado. E aqui o governo
pla: um código para “súditos”, outro para “cidadãos”. Houvera
francês teve de aceitar uma nova realidade, admitir que os trabalha-
objeções a isso no Senegal, com base que qualquer coisa além de
dores africanos e suas famílias precisavam de renda e benefícios do
um código unitário seria racialmente discriminador. O código já fora
mesmo tipo que os trabalhadores franceses e reconhecer que a ne-
suspenso com os debates sobre o artigo que proclamava que o tra-
gociação ordeira com sindicatos reconhecidos era vital para a ma-
balho devia ser voluntário: discutia-se se deveria entrar em vigor
nutenção da ordem e da produção constante. Nos meses que se
no cronograma de Brazzaville (em 1949) ou dentro de um ano, como
seguiram à greve, os inspetores do trabalho encarregados da gerên-
defendera Houphouêt-Boigny.”
cia das relações empregado-empregador se tornariam fortes defen-
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sores da cooperação com os sindicatos africanos e do desenvolvi- davam destaque à educação e à condição social (barreiras, mas não
mento de um arcabouço previsível de relações trabalhistas. Os ins- imutáveis) e a divisão diferenciada de assentos nos órgãos represen-
petores, em nome da organização racional, tornaram-se fortes tativos. Formular os termos específicos da cidadania dentro da União
defensores de um novo código trabalhista, enquanto os sindicatos Francesa exigiria muito mais debate do que fora necessário para
exigiam o código em nome da igualdade. aceitar o princípio depois da guerra: o sufrágio universal só viria
Enquanto isso, o trabalho forçado ainda era legal na África Oci- cerca de dez anos depois; a distribuição de assentos legislativos de
dental francesa. Pode-se compreender por que Moutet, em março acordo com a população, nunca.”
de 1946, ficou feliz de deixar que os deputados resolvessem o de- A questão trabalhista revelou a mesma tensão entre o princípio
bate do governo sobre a capacidade dos africanos de se tornarem geral e a especificidade colonial: depois que o campo de aplicação
trabalhadores livres; já enfrentava a realidade dos trabalhadores do código trabalhista tornou-se universal, o investimento em cada
como atores políticos e seres sociais. Moutet estava tão pouco inte- um dos seus textos foi altíssimo. Provisões como a semana de 44
ressado em defender a distinção entre cidadão e súdito, que se mos- horas ou as férias pagas se aplicariam a trabalhadores de qualquer
trara sem sentido na crise social do Senegal, quanto em defender o origem e o código foi discutido linha a linha durante seis anos, sen-
trabalho forçado. Queria a ajuda de Houphouêt-Boigny, Senghor e -do aprovado em 1952 depois de mais uma mobilização na África e
seus colegas para redigir um código trabalhista que se aplicasse a em Paris. Na legislatura francesa, Senghor e outros deputados afri-
todos os trabalhadores, brancos ou negros, de qualquer condição canos defenderam, em 1952, a aplicação vigorosa do princípio da
social, nas colônias francesas, e disse-lhes que a rejeição do sistema equivalência — que todos os trabalhadores fossem tratados igual-
jurídico que separava súditos de cidadãos estava sendo estudada. mente — enquanto os conservadores insistiam que a natureza espe-
Em abril, portanto, a assembléia votou a favor da emancipação cífica do trabalhador africano tornava difícil aplicar medidas como
dos trabalhadores forçados e, em maio, declarou que a condição de- férias pagas e salário-família. Quando se olha a cidadania e o traba-
gradante de “súdito” não mais existia. Todos os habitantes do terri- lho juntos, vê-se exatamente como era dinâmica a situação no pós-
tório reivindicado pela França eram cidadãos. Em ambos os casos, os guerra, como era básico o questionamento da hierarquia estabelecida
deputados africanos tomaram a iniciativa de levar as propostas à provocado pela aplicação de conceitos como igualdade e universa-
Assemblée Nationale Constituante, organismo eleito para redigir a lidade a lutas específicas.
nova constituição e, enquanto isso, legislar sobre questões importan- As leis de abril e maio de 1946 marcaram o fim de uma longa
tes. Ambas as medidas repudiaram formalmente o colonialismo de história, desde os debates sobre a aplicação dos direitos do homem
aparência atrasada do passado e sugeriram que a França permanece- à questão da escravatura em São Domingos, em 1791, à abolição da
ria imperial e se tornaria progressista ao mesmo tempo. escravatura em todas as colônias francesas em 1794 e sua readoção
A voz dos cidadãos seria mediada pelos regulamentos de insti- em 1802, sua abolição final em 1848 e a extensão da cidadania às
tuições complexas, tais como as limitações do direito de voto que “antigas” colônias, as medidas suspensivas contra a escravidão afri-

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cana nos primeiros anos do século XX, as convenções da Liga das mação cultural, coerente com a “tendência centralizadora e uni-
Nações e da OIT em 1926 e 1930 e a tentativa abortada de reduzir ficante” da política francesa; ia contra a noção encontrada em mui-
o trabalho forçado em 1936, citando as iniciativas dos deputados tas sociedades africanas de que o poder era pessoal, enfatizando,
coloniais desde a época da Primeira Guerra Mundial para forçar seus em vez disso, que o cidadão fazia parte de uma estrutura institucional
colegas a discutir de forma coerente o significado de cidadania na que funcionava de acordo com regras. Thiam tinha consciência do
república francesa.'ºº Alguns debates pareceram definitivamente pensamento individualista intrínseco à história da cidadania fran-
resolvidos em 1946: todos os habitantes da União Francesa seriam cesa: “Dizer a um africano ou malgaxe que ele é um cidadão fran-
cidadãos e ninguém estaria sujeito ao trabalho forçado. Talvez de cês não é a mesma coisa que pedir-lhe, em certo sentido, que crie
forma definitiva demais: os governantes da França logo começaram uma nova pele, que descarte a soma das tradições que formam sua
a ponderar no que tinham feito quando os cidadãos coloniais co- personalidade?”
meçaram a usar o arcabouço da cidadania para questionar todo tipo Mas para Thiam a questão não era retórica: ele também sabia
de desigualdade no que já fora o Império Francês e se tornara a União que o significado cultural da União Francesa estava em discussão.
Francesa. Citou a insistência de Senghor nas assembléias constitucionais de
A defesa do império pelo governo francês vinculava-se agora a que as civilizações só existiam no plural: cada pessoa enfatiza as-
um universalismo que vinha se transformando em exigência de igual- pectos diferentes da condição humana. A nova Constituição, defendia
dade em todas as esferas da vida social, apresentada publicamente Thiam, significava que os direitos individuais tinham de conciliar-
na Assemblée Nationale em Paris e nos jornais, sindicatos e outras se com estatutos legais distintos e sensos distintos de “nação” den-
instituições agora protegidas pela constituição.!º! Pode-se ainda ar- tro da União Francesa; por exemplo, uma pessoa não era menos
gumentar que os novos debates ocorreriam em termos definidos pela cidadã por casar-se e transmitir a propriedade segundo a lei islâmica
Europa. Esta é a essência, como observado na Introdução deste livro, (questão ainda contestada na época na Argélia). A relação entre os
de boa parte da “crítica pós-colonial” a conceitos como cidadania. tipos diferentes de direitos “modernos” e “tradicionais, consuetu-
Na verdade, estas questões foram levantadas na época pelos parti- dinários”, concluiu ele, “não é simples”. Thiam defendia uma con-
cipantes do debate. Para Senghor, por exemplo, o compromisso com cepção mais social de cidadania que levasse em conta o que o “mundo
a França significava que os africanos deviam assimilar o que consi- ultramarino” tinha a oferecer à civilização francesa; queria encon-
deravam útil na política e na cultura francesas, em vez de “serem trar mais “pontos de contato” a se desenvolver dentro da cidadania
assimilados” pelo modo de vida da metrópole. As consequências da francesa e esperava ver “a perda de homogeneidade” dentro das
política dentro de um arcabouço de cidadania foram abordadas numa concepções francesas de cidadania.'? Sem dúvida ele estava certo
profética tese legal publicada em 1951 por um estudioso da África ao afirmar que essas questões seriam alvo de debate e se complica-
Ocidental, Doudou Thiam. Como os teóricos pós-coloniais, ele riam; continuou a ser assim nos limites territoriais da França mes-
concordava que a cidadania era um agente poderoso de transfor- mo na década de 1990. Mas seria um erro supor que a causa de

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Thiam estava perdida desde o princípio; cidadania é um conceito Assim como Senghor, Houphouéêt-Boigny e outros manipularam
dinâmico, cujos significados não são intrínsecos ao construto mas astutamente o discurso sobre a Revolução Francesa e a emancipa-
configurados pelo debate e pelo confronto político, social e cultural. ção no debate sobre o trabalho forçado, a política trabalhista pós-
As leis de trabalho livre e cidadania de abril-maio de 1946 expan- 1946 envolveu a capacidade dos sindicatos e políticos africanos de
diram-se rapidamente num debate que se desenvolveu até a aprova- invocar idéias sociais européias e transformar o que as autoridades
ção de um código trabalhista inclusivo em 1952 e prosseguiu de várias pensavam ser uma ideologia de controle na base de suas reivindica-
formas depois disso. À justificativa oficial do trabalho livre e da cida- ções. A idéia do universal poderia ser usada para defender não só o
dania não podia manter-se simplesmente formal, simplesmente legal; modelo específico do capitalismo europeu como também os inte-
existia também em relação a um domínio social. A tensão entre os resses específicos dos trabalhadores africanos.
princípios abstratos de equivalência e as questões concretas em jogo A mudança dos termos da questão trabalhista ocorreu também
— salários e férias pagas — foi importante para que as autoridades em nível internacional. Em 1944, a Organização Internacional do
francesas refletissem sobre o significado de manter colônias no con- Trabalho afastou-se cautelosamente de sua antiga posição de que a
texto político do pós-guerra. Em 1952, descobriram que a equiva- questão da mão-de-obra livre era a mais importante nas colônias
lência fazia com que os assalariados de qualquer origem em toda a enquanto uma ampla variedade de questões sociais era vital para
União Francesa tinham direito à semana de 44 horas, a férias pagas, regulamentar o problema trabalhista nos países “metropolitanos”,!%
a um salário mínimo suficiente para cobrir as necessidades básicas e a Naquele ano, uma resolução sobre “padrões mínimos de política
outros benefícios; o direito dos trabalhadores de se filiarem a sindi- social em territórios dependentes” manifestou a idéia de que a le-
catos e a fazer greve era garantido por lei. !03 gislação social da metrópole deveria ser aplicada às colônias. Na
No fim das contas, cidadania, igualdade e universalismo mos- época, a Grã-Bretanha vinha enfrentando ondas de greve em seu
traram-se idéias fascinantes demais — atraentes demais para os império e tentava resolvê-las de modo semelhante ao que fora usa-
movimentos sociais e difíceis demais para as elites francesas repudia- do pela França em 1946, embora mais caso a caso. Em 1947, a OIT
rem. Em meados da década de 1950, com o início da guerra argeli- adotou uma convenção formal sobre a extensão da legislação social
na e o começo dos esforços para devolver o poder a representantes ao ultramar. Nos anos seguintes, de modo comparável ao papel
eleitos nas colônias africanas, a experiência de imperialismo mo- desempenhado pelas conferências de Berlim e de Bruxelas nas dé-
dernizador fracassara. Impusera um custo demasiado, provocara cadas de 1880 e 1890, a entidade tornou-se o local de expressão do
conflitos demais e fora derrubada pela contradição insolúvel entre consenso internacional sobre a necessidade de “estabilizar” a mão-
o universalismo da ideologia da Quarta República e o particularismo de-obra: todos os trabalhadores deveriam receber salário e/ou adi-
do domínio colonial. Pouca gente preveria em 1946 que o estado cionais por membro da família suficientes para sustentar famílias
francês repudiaria a unidade de seu próprio império, mas foi isso sem acesso a recursos rurais, todas as pessoas deveriam gozar de um
que o governo veio a aceitar uma década mais tarde. padrão de vida acima de determinado nível mínimo e todos os tra-

266 267
FREDERICK COOPER CONDIÇÕES ANÁLOGAS À ESCRAVIDÃO

balhadores tinham direito de organizar-se e fazer greve. O traba- ALÉM DO IMPERIALISMO


lhador universal passara a existir como coisa mais complexa que um
indivíduo “livre”."ºs A história da emancipação de 1946 revela muito mais do que a
A ideologia da mão-de-obra livre ainda tinha influência: a idéia inadequação de uma concepção neo-abolicionista da liberdade que
de que os trabalhadores sul-africanos não eram realmente livres foi
suprime aos poucos a coação. Ilustra como se transformam as defini-
uma imagem poderosa na luta contra o apartheid, assim como a
ções do que é politicamente possível no processo de envolvimento
crítica às formas de trabalho sob contrato e de trabalho infantil hoje
político. O trabalho forçado, antigamente defensável e comum no
em dia. Mas não se deve supor que a dominância de normas como
contexto colonial, tornou-se impensável, e o que antes era inima-
um padrão de vida mínimo global ou um salário familiar faça parte
ginável — o africano como operário, adquirindo habilidades, sus-
de uma história linear de progresso contínuo. O ataque ao “viés
tentando a família e participando de sindicatos — tornou-se a norma
urbano” na década de 1970 e os argumentos em prol da “flexibili-
aceita. Quando a Grã-Bretanha e a França tentaram aproveitar o
dade” do mercado de trabalho característicos do neoliberalismo das
momento do pós-guerra e criar para o domínio colonial um pro-
décadas de 1980 e 1990 constituem uma rejeição do consenso da
grama progressista e voltado para o desenvolvimento, rapidamente
OIT dos anos 1950. Hoje os Estados africanos são acusados de pa-
gar demais aos trabalhadores urbanos e muito'pouco aos fazendei- descobriram que não seriam eles a determinar este programa. À
ros, de não dar atenção às leis universais do mercado; o argumento França, notadamente, não pôde impedir que sua declaração da ci-
de que os africanos se comportam de maneira peculiar surgiu sob dadania universal respingasse na política de equivalência social e
nova forma. econômica, nem impedir que sua adoção do “progresso” social res-
O consenso da década de 1950 foi importante tanto pelo que pingasse no aumento das reivindicações de transferência do poder
deixou de fora — qualquer tipo de trabalho que não fosse assalaria- político.
do — quanto pelo que incluiu. Uma categoria como o “setor infor- Por mais que as potências coloniais tentassem usar as categorias
mal”, por exemplo, é na verdade um apelido para formas de trabalho de cidadão e trabalhador para conter as aspirações dentro do con-
excluídas de sistemas reguladores como o código trabalhista fran- ceito europeu do que deveria significar “universal”, os sindicalistas,
cês de 1952.1% Essas categorizações têm conseqiiências importan- líderes políticos e trabalhadores e cidadãos comuns da África usa-
tes: o código de 1952 aplicava-se a formas de trabalho executadas ram, manipularam e redefiniram estas categorias ao vivê-las. O po-
em grande parte, na época, por homens, deixando um domínio der de definir os termos do debate sobre questões internacionais não
considerável de atividades econômicas realizadas por mulheres fora é igualitário, mas os movimentos antiescravista, anticolonial e con-
da definição legal de trabalho; esta exclusão sexual teria impacto tra o apartheid impuseram mudanças profundas aos tipos de pro-
fundamental sobre o tipo de oportunidade que as pessoas teriam, cesso político que seguiam as normas universalistas e aos que não
tanto no trabalho assalariado quanto no comércio. as seguiam.'?” As raízes ocidentais das categorias destes movimen-

268 269
FREDERICK COOPER

tos não são o único aspecto, nem necessariamente o mais impor- Posfácio
tante, da história do significado atual destas mobilizações. É mais
importante se o debate do significado e das conseqiiências da cida-
dania e do trabalho ainda pode continuar.

O ano de 1848 testemunhou a abolição da escravatura. Quem


pode me dizer a data da abolição da humilhação?

Mulher anônima da Martinica, declaração núm seminário


realizado no 150º aniversário da abolição da escravatura
nas colônias francesas, citada em
Le Monde, 15 de abril de 1998

Faz pouco mais de 150 anos que a França, em meio ao seu próprio
trauma revolucionário em 1848, aboliu a escravidão em suas colô-
nias. Muitas reportagens sobre este aniversário observaram como
este evento esteve ausente das discussões francesas do passado. Re-
conhecer a emancipação significaria reconhecer a escravidão, prin-
cipalmente o fato de que a escravidão ainda era legal meio século
depois da Revolução de 1789, comemorada todo ano como ponto
de partida da tradição republicana francesa e da idéia de cidadania.
A Revolução, na verdade, aboliu a escravidão em 1794, ainda que
sob pressão das revoltas escravas e das invasões estrangeiras nas ilhas
de plantations, mas Napoleão a restaurou em 1802. .
Em 1998 o presidente da França Jacques Chirac buscou avançar
além da antiga desatenção ao lado colonial da tradição emancipadora
da França. Para isso, enfatizou que os escravos emancipados de 1848
passaram diretamente para a categoria de “cidadãos”. Aparentemen-

270
271
NOTAS NOTAS

y única abolición de la esclavitud”, Anuario de Estudios Americanos 43 nar-se inconcebível em outra e aquilo que considera impossível pode tor-
(1986): 333-51. nar-se normal. O que mantém e o que transforma os limites do politica-
149. Sou grata a Louis A. Pérez Jr. pelas constantes discussões do “silêncio da mente imaginável (e a definição da comunidade que imagina) éum problema
raça” em Cuba depois de 1912 e a Alejandro de la Fuente por suas investi- amplamente reconhecido, por exemplo, na literatura geral sobre a relação
gações das brechas deste silêncio. Ver de la Fuente, “With All and For AM”, entre estrutura e ação, assim como na teoria do arcabouço, na teoria da
Ver também Ada Ferrer, “The Silence of Patriots: Racial Discourse and Cuban prática e em boa parte da teoria do movimento social. Mas talvez seja um
Nationalism”, em José Martí's “Our America”: From National to He- pouquinho cínico demais insinuar que, no nível teórico, a solução deste
mispheric Cultural Studies, org. Jeffrey Belnap e Raúl Fernández (Durham, problema não vai muito além da afirmação de Marx de que o povo faz sua
Carolina do Norte: Duke University Press, 1998), 228-49. própria história, mas não do modo como gostaria.
150. No entanto a nacionalidade foi politizada e criaram-se várias leis para esta- Tratei em detalhes o novo arcabouço das décadas de 1940 e 1950 em De-

ta
belecer quotas de preferência de trabalhadores cubanos entre 1910 e 1925. colonization and African Society: The Labor Question in French and British
Os empregadores, apoiados pelos Estados Unidos, opuseram-se à sua apro- Africa (Cambridge: Cambridge University Press, 1996).
vação para que sua liberdade de ação se mantivesse. Ver Pérez, Cuba under Um estudo esclarecedor do choque entre visões diferentes do trabalho é
the Platt Amendment, 153-64. Keletso Atkins, The Moon Is Dead! Give Me My Money!: The Cultural Origins
151. Citado em Tunnell, Crucible, 173. ofan African Work Ethic, Natal, South Africa, 1843-1900 (Londres:
152. Ibid., 193-94. Heinemann, 1993).
153. Ver o depoimento de Eduardo Vilar, 12 de agosto de 1904, Claim 97 (Cen- 5. Para uma visão geral da cronologia da escravidão no continente africano,
tral Teresa), Pt. 1, U.S./Spain Treaty Claims, Entry 352, RG 76, USNA. ver Paul E. Lovejoy, Transformations of Slavery:A History of Slavery in Africa
(Cambridge: Cambridge University Press, 1983), e, sobre o século XIX,
Robin Law, org., From Slave Trade to “Legitimate” Commerce: The Co-
Condições análogas à escravidão
mmercial Transition in Nineteenth-Century West Africa (Cambridge: Cam-
bridge University Press, 1995). A reprodução da população escrava pela
1. Há um exemplo do vaivém entre a escravidão e o colonialismo como obje- captura e pela compra constitui o núcleo da interpretação de Claude
tos praticamente intercambiáveis da “resistência” em James Scott, Do- Meillassoux, The Anthropology of Slavery: The Womb of Iron and Gold,
mination and the Arts of Resistance: Hidden Transcripts (New Haven: Yale
trad. Alide Dasnois (Chicago: University of Chicago Press, 1991).
University Press, 1990). Meu relato também diverge do de Scott em minha
6. John Harming Speke, Journal of the Discovery of the Source of the Nile
ênfase na forma como os discursos dos poderosos e dos fracos configuram-
(Edimburgo: Blackwood, 1863), xxvii. Speke fez diretamente a conexão
se um ao outro, enquanto Scott tende a isolá-los. O conceito de resistência
com o imperialismo: “They require a government like ours in India; and
é criticado em Sherry Ortner, “Resistance and the Problem of Ethnographic
without it, the slave-trade will wipe them off the face of the earth” (“Eles
Refusal”, Comparative Studies in Society and History 37 (1995): 173- 93,
precisam de um governo como o nosso na Índia; e sem isso, o comércio de
e Frederick Cooper, “Conflict and Connection: Rethinking Colonial African
escavos varrê-los-á da face da terra”) (39).
History”, American Historical Review 99 (1994): 1516-45.
7. David Livingstone, Narrative of an Expedition on the Zambezi and Its
2 Os especialistas invocam vários conceitos — “formação discursiva”, “mol-
Tributaries; and of the Discovery of the Lakes Shirwa and Nyassa, 1858-
dura”, “hábito”, “comunidade epistêmica” — para indicar as fronteiras pro-
1964 (Londres: Murray, 1865), 595. O explorador Joseph Thomson, que
fundamente entranhadas na linguagem e nas convenções sociais que limitam
não era missionário, culpou de forma semelhante o comércio de escravos
as possibilidades imagináveis em qualquer contexto histórico. Ainda assim,
aquilo que uma comunidade ampla vê como normal numa época pode tor- por bloquear a “mutual dependence or exchange of services” (“dependência

316 317
NOTAS NOTAS

mútua ou troca de serviços”). O comércio era perigoso demais para o afri- York: Oxford University Press, 1984), 279-84, 298-306. O uso do con-
cano e, “cut off from the outr world, he retains his primitive barbarism” ceito de “resíduo” na metrópole e na colônia é discutido em Gareth
(“isolado do mundo exterior, ele mantém seu barbarismo primitivo”). Joseph Stedman Jones, Outcast London: A Study of the Relationship between
Thomson, To the Central African Lakes and Back (1881; reimpressão, Lon- Classes in Victorian Society (Oxford: Clarendon, 1971), e Cooper, From
dres: Cass, 1968), 1:162. Slaves to Squatters, 28-29, 38-39,
8. Marcel Dorigny, org., Les abolitions de I'esclavage de L. F Sonthonax à V. 14. K. Onwuka Dike, Trade and Politics in the Niger Delta (Oxford: Oxford
Schoelcher, 1793, 1794, 1848 (Paris: Presses Universitaires de Vincennes e University Press, 1956); A. G: Hopkins, “Property Rights and Empire
Editions UNESCO, 1995). Building: Britain's Annexation of Lagos, 1861”, Journal of Economic History
9. A conexão entre levante doméstico e resistência dos escravos, de um lado, 40 (1980): 777-98, e An Economic History of West Africa (Londres:
e a abolição colonial é um dos pontos-chave enfatizados em Robin Bla- Longman, 1973), 124-66.

ckburn, The overthrow of Colonial Slavery, 1776-1848 (Londres: Verso,


15. Suzanne Miers, Britain and the Ending of the Slave Trade (Nova York: Afri-
cana Publishing Corporation, 1975), xi, citando Salisbury. Como observa
1988). Ver também William B. Cohen, The French Encounter with Africans:
Miers (261), o rei Leopoldo fez bom uso da linguagem contra o comércio
White Response to Blacks, 1530-1880 (Bloomington: Indiana University
de escravos em conferências para reafirmar suas pretensões ao poder no
Press, 1980); François Renault, L'esclavage Africain et "Europe, 1868-1892
Congo — que usaria mais tarde de forma tão tirânica e brutal que retórica
(Paris: Baccard, 1971); Dale Tomich, “Liberté ou Mort: Republicanism and
semelhante seria lançada contra ele.
Slave Revolt in Martinique, February 1831”, History Workshop Journal 29
16. Para exemplos das versões britânicas deste gênero, ver Frederick Lugard,
(1990): 85-91; e Alice Conklin, A Mission to Civilize: The Republican Idea
“Slavery under the British Flag”, Nineteenth Century (fevereiro de 1896):
of Empire in France and West Africa, 1895-1930 (Stanford: Stanford
335-55; Joseph Pease, How We Countenance Slavery (Londres: British and
University Press, 1997), 96-99. Foreign Anti-Slavery Society, 1895); e o Anti-Slavery Reporter durante a
10. A atenção e a desatenção ao problema da escravatura na África francesa surge década de 1890 e os primeiros anos do século XX. A citação francesa é de
de forma complexa e elaborada em Martin Klein, Slavery and French Colo- William Ponty, Circular de 1º de fevereiro de 1901, em Klein, Slavery, 127.
nial Rule (Cambridge: Cambridge University Press, 1998). Quanto ao ajus- 17. Este é um resumo esquemático de um processo complexo, cujas variações
tamento dos mercadores donos de escravos, ver Mohamed Mbodij, “The podem ser visualizadas com mais facilidade nos estudos em Suzanne Miers
Abolition of Slavery in Senegal, 1820-1890: Crisis or the Rise of a New e Richard Roberts, orgs., The End of Slavery in Africa (Madison: University
Entrepreneurial Class?”, em Breaking the Chains: Slavery, Bondage, and of Wisconsin Press, 1988).
Emancipation in Modern Africa and Asia, org. Martin Klein (Madison: 18. John Lonsdale, “The European Scramble and Conquest in African History”,
University of Wisconsin Press, 1993), 197-211. em Cambridge History of Africa, org. Roland Oliver e G. N. Sanderson
11. Louis-Gustave Binger, Esclavage, Islamisme et Christianisme (Paris: Société (Cambridge: Cambridge University Press, 1985), 6:723. O estudo mais
des Editions scientifiques, 1891), 20, 80, 92, 100. abrangente e detalhado deste processo hoje é Klein, Slavery. Ver também
12. Para um estudo dos estereótipos, ver H.Alan C. Cairns, Prelude to Im- Conklin, Mission to Civilize; Denise Bouche, Les villages de liberté en Afrique
perialism: British Reactions to Central African Society, 1840-1890 (Londres: noire française, 1887-1910 (Paris, 1968); Richard Roberts e Martin Klein,
Routledge e Kegan Paul, 1965). “The Banamba Slave Exodus of 1905 and the Decline of Slavery in the
13 Essas ligações são discutidas em Frederick Cooper, From Slaves to Squat- Western Sudan”, Journal of African History 21 (1980): 375-94; Myron
ters: Plantation Labor and Agriculture in Zanzibar and Coastal Kenya, Echenberg, Colonial Conscripts: The Tirailleurs Sénégalais in French West
Africa, 1857-1960 (Portsmouth, New Hampshire: Heinemann;, 1991); e
1890-1925 (New Haven: Yale University Press, 1980), cap. 2, e, em ter-
Lovejoy, Transformations in Slavery, 246-68.
mos mais gerais, em David Brion Davis, Slavery and Human Progress (Nova

318 319
NOTAS
NOTAS

19. Trechos de African Review (1904) e Frederick Lugard, Northern Nigeria Annual and Smallholder Agriculture in Northern Nigeria”, Slavery and Abolition 3
Report, 1900-01 (1901), citados em Paul E. Lovejoy e Jan S. Hogendorn, (1982):111-39; Lovejoy e Hogendorn, Slow Death.
Slow Death for Slavery: The Course of Abolition in Northern Nigeria, 1997- 34 Frederick Lugard, Dual Mandate in British Tropical Africa (Londres:
1936 (Cambridge: Cambridge University Press, 1993), 28, 38. Blackwood, 1922).
20. G. Ugo Nwokeiji, “The Slave Emancipation Problematic: Igbo Society and 35: Encontra-se uma discussão paralela sobre a sequência na África Oriental e
the Colonial Equation”, Comparative Studies in Society and History 40 Ocidental em Cooper, From Slaves to Squatters, e Anne Phillips, The Enig-
(1998): 328-55. ma of Colonialism: British Policy in West Africa (Bloomington: Indiana
21. O melhor estudo da idéia de abolir a “existência legal da escravidão” como University Press, 1989).
meio de limitar mais estreitamente as questões de poder e exploração numa 36 Conklin, Mission to Civilize.
situação colonial é Gyan Prakash, Bonded Histories: Genealogies of Labor 37 Terence Ranger, “The Invention of Tradition in Colonial Africa”, em The
Servitude in Colonial India (Cambridge: Cambridge University Press, 1990). Invention of Tradition, org. Eric Hobsbawm e Terence Ranger (Cambridge:
A questão dos sexos é ressaltada nas áreas britânica e francesa da África Cambridge University Press, 1983), 211-62.
sudanesa por Lovejoy « Hogendron, Slow Death, 111, e Klein, Slavery, 194, 38 Stephen Constantine, The Making of British Colonial Development Policy,

.
227, 250. 1914-1940 (Londres: Cass, 1984); Jacques Marseille, Empire colonial et
Klein, Slavery, 242. capitalisme français: Histoire d'un divorce (Paris: Albin Michel, 1984).
Ver os estudos reunidos em Miers e Roberts, End of Slavery in Africa.
Edo

39 Igor Kopytoff, “The Cultural Context of African Abolition”, em Miers e


O que vem a seguir baseia-se em Cooper, From Slaves to Squatters. Roberts, End of Slavery in Africa, 493.
De W. E. Taylor a Henry Binns, 26 de julho de 1895, PB, 1896, LIX, 395:18; 40. O cálculo de marginalidade, limiaridade e absorção em relação às estrutu-
de Piggott a Hardinge, 1º de agosto de 1895, Foreign Office Confidential ras sociais predominantes em sociedades africanas diferentes é a principal
Prints 6761, 262. contribuição de Igor Kopytoff e Suzanne Miers, “African “Slavery” as an
26 District and Consular Report on Pemba (Londres: Foreign Office, 1900), Institution of Marginality”, em Slavery in Africa, org. Suzanne Miers e Igor
12. Kopytoff (Madison: University of Wisconsin Press, 1971), 3-81. No entan-
27 Justin Willis e Suzanne Miers, “Becoming a Child of the House: In- to eles escrevem sobre esses fenômenos, descritos principalmente em ter-
corporation, Authority and Resistance in Giryama Society”, Journal of mos do trabalho de campo etnográfico recente e de fontes da época colonial,
African History 38 (1997): 479-96. como se fossem atemporalmente africanos, em vez de parte de uma histó-
28 De Belfield a Harcourt, 4 de maio de 1914, CO 533/136, PRO. ria confusa.
29. Ver também Cynthia Brantley, The Giriama and Colonial Resistance in Kenya, 41 Edward A. Alpers, “Trade, State and Society among the Yao in the Nineteenth
1800-1900 (Berkeley: University of California Press, 1981). Century”, Journal of African History 10 (1969): 405-20; Elias Mandala,
30 Ver também Justin Willis, Mombasa, the Swahili, and the Making of the Work and Control in a Peasant Economy: A History ofthe Lower Tehiri Valley
Mijikenda (Oxford: Oxford University Press, 1992). in Malawi, 1859-1960 (Madison: University of Wisconsin Press, 1990). Em
31. East Africa Commission, Report (Londres: HMSO, 1925), 37. termos mais gerais, sobre questões de escravidão e sexo, ver Claire Robertson
32 Frederick Lugard, Instructions to Political and Other Officers (1906), exem- e Martin Klein, orgs., Women and Slavery in Africa (Madison: University
plar da Harvard University Library (as outras edições deste livro não são of Wisconsin Press, 1983).
tão completas). Sobre as justificativas para a inação contra os senhores 42. Esta insegurança foi muito bem retratada na obra de Marcia Wright, Strategies
muçulmanos de escravos, ver Lovejoy, Transformations, 261-68. ofSlaves and Women: Life-Stories from East-Central Africa (Boston: Barber
33. Louise Lennihan, “Rights in Men and Rights in Land: Slavery, Wage Labor, Press, 1993). Ver também Landeg White, Magomero: Portrait of an African

320
321
NOTAS
NOTAS

Village (Cambridge: Cambridge University Press, 1987), e Mandala, Work


in the Gulf of Guinea, 1870-1914”, em Klein, Breaking the Chains, 150-
and Control. O modo como os missionários e autoridades britânicos, em
70; Ibrahim Sundiata, From Slavery to Neoslavery: The Bight of Biafra and
parte através de suas políticas antiescravistas, se enredaram nas complica-
Fernando Po in the Era of Abolition, 1827-1930 (Madison: University of
ções da política regional, com conseqiiências muitas vezes imprevistas, é
Wisconsin Press, 1996).
analisado em César Solá-García, “Slave Emancipation and Colonialism: The
Michael Taussig, Shamanism, Colonialism, and the Wild Man: A Study in
British Missionary and Military Campaigns and African Responses in
Terror and Healing (Chicago: University of Chicago Press, 1987), esp. 54,
Northern Malawi, 1875-1900” (dissertação de Ph.D., University of Mi-
« Um ativista contra o trabalho forçado argumentou: “É exatamente porque
chigan, 1999).
aceitamos a justiça geral e abstrata da colonização que desejamos, neste caso
43. Mandala, Work and Control.
específico e concreto, purificá-la de tudo que a macula.” Este argumento
44. Martin Chanock, Law, Custom and Social Order: The Colonial Experience
em prol da moralidade da colonização de um importante escritor social
in Malawi and Zambia (Cambridge: Cambridge University Press, 1985),
católico apoiava-se no fato de que Deus dotara as colônias de ricos recur-
169. Para outro ponto de vista das mulheres rurais da África central, ver
sos e o dever da humanidade era usá-los de forma produtiva e progressista.
Elizabeth Schmidt, Peasants, Traders, and Wives: Shona Women in the
À intervenção se justificava, mas somente de maneiras que servissem a inte-
History of Zimbabwe, 1870-1939 (Portsmouth, New Hampshire: Hei-
resses amplos. Joseph Folliet, Le travail forcé aux colonies (Paris: Editions
nemann, 1992).
du Cerf, 1934), 104.
45. Chanock, Law. As autoridades sequer pensaram em conceder o direito à
Sobre o segregacionismo coma “ideologia modernizante”, ver Paul Rich,
terra às mulheres, de origem escrava ou não, porque fazê-lo complicaria o
Race and Empire in British Politics (Cambridge: Cambridge University Press,
que viam como “sistema adequado de posse da terra”. Martin Chanock,
1986), 56, e John Cell, The Highest Stage of White Supremacy (Cambridge:
“Paradigms, Policies and Property: A Review of the Customary Law of Land
Cambridge University Press, 1982).
Tenure”, em Law in Colonial Africa, org. Kristin Mann e Richard Roberts
Ver, por exemplo, John H. Harris, Africa: Slave or Free? (Londres: Student
(Portsmouth, New Hampshire: Heinemann, 1991), 73.
Christian Movement, 1919); André Gide, Travels in the Congo, trad.
46. Essas questões são discutidas em Cooper, Decolonization; George Chauncey
Dorothy Bussy (Nova York: Knopf, 1929); e Folliet, Le travail forcé.
Jr., “The Locus of Reproduction: Women's Labour in the Zambian Cop-
Babacar Fall, Le travail forcé en Afrique Occidentale Française (1900-1946)
perbelt, 1927-1951”, Journal of Southern African Studies 7 (1981): 135-
(Paris: Karthala, 1993); Hilaire Babassana, Travail forcé, expropriation et
64; e Jane L. Parpart, ““Where Is Your Mother?': Gender, Urban Marriage,
formation du salariat en Afrique Noire (Grenoble: Presses Universitaires de
and Colonial Discourse on the Zambian Copperbelt”, International Journal
Grenoble, 1978).
of African Historical Studies 27 (1994): 241-72.
54. Jeanne Marie Penvenne, African Workers and Colonial Racism: Mozambican
47. Ruth Slade, King Leopold's Congo (Nova York: Oxford University Press,
Strategies and Struggles in Lourenço Marques, 1877-1962 (Portsmouth, New
1962); Robert Harms, “The End of Red Rubber: A Reassessment”, Journal
Hampshire: Heinemann, 1995); Clarence-Smith, “Cocoa Plantations”;
of African History 16 (1975): 73-88; Adam Hochschild, King Leopold's
Charles van Onselen, Chibaro: African Mine Labour in Southern Rhodesia,
Ghost: A Story of Greed, Terror, and Heroism in Colonial Africa (Boston:
1900-1933 (Londres: Pluto, 1976); Leroy Vail e Landeg White, Capitalism
Houghton Mifflin, 1998).
and Colonialism in Mozambique: A Study of Quelimane District (Min-
48. James Duffy, A Question of Slavery (Cambridge: Harvard University Press,
neapolis: University of Minnesota Press, 1980); Kenneth Vickery, “The
1967); Ibrahim Sundiata, Black Scandal: America and the Liberian Labor
Second World War Revival of Forced Labor in the Rhodesias”, International
Crisis, 1929-1936 (Filadélfia: Institute for the Study of Human Issues, 1980);
Journal of African Historical Studies 22 (1989): 423-37; L. L. Bessant,
William Gervase Clarence-Smith, “Cocoa Plantations and Coerced Labor
“Coercive Development; Land Shortage, Forced Labor, and Colonial

322
323
NOTAS NOTAS

Development in Colonial Zimbabwe, 1938-1940”, International Journal governo português) e 315 (delegado do governo francês). Ver também
of African Historical Studies 25 (1992): 39-66. Ainda em 1947 o secretário Folliet, Le travail forcé, 153-62. Um dos defensores do uso francês de
colonial do Partido Trabalhista, que há muito se opunha às práticas coerci- trabalho forçado era um importante político africano do Senegal, Blaise
tivas de trabalho, dispôs-se a obrigar os africanos a participar de projetos Diagne, que invocou sua própria raça para mostrar que o coração da França
para a conservação do solo, na crença de que a força salvaria os africanos estava no lugar certo e que o uso do trabalho forçado pretendia apenas
de sua própria ignorância. Arthur Creech Jones, Circular Despatch, 22 de “elevar e favorecer o futuro” das raças africanas (International Labour
fevereiro de 1947, CO 852/1003/3, Public Record Office, Londres. Conference, 290-91).
55. “(...) depended on bow far he could be induced to exceed his instructions.” 62. René Mercier, Le travail obligatoire dans les colonies africaines (Paris:
Do Assistant District Commissioner Kilifi ao Provincial Commissioner, 18 Imprimerie Nouvelle, 1933), 198-203, 207, 217-18.
de outubro de 1918, Kenya National Archives, Coast Province Deposit, 38/ 63. Seu argumento não era muito diferente da afirmativa de Marx sobre a mão-
582. Quando em 1919 o governo do Quênia, de forma pouco judiciosa, de-obra livre no capitalismo: o trabalhador estava livre da servidão a al-
disse que “encorajaria” os africanos a trabalhar para os colonos, deflagrou gum senhor de terra, mas também “livre” do acesso aos meios de produção
uma tempestade de críticas e teve de voltar atrás da palavra, mas não neces- e, portanto, não tinha nada além de sua própria força de trabalho para ven-
sariamente da política. der. O uso que Marx fez da palavra “livre” foi irônico; Mercier falava a
56. Ver a crítica missionária da política trabalhista do governo queniano em PB, sério sobre a ausência do segundo tipo de liberdade.
1920, XXXIII, 81:8-10, e outra mais profunda, embora ainda na lingua- 64. Antes de tornar clara sua defesa do trabalho obrigatório, as altas autorida-
gem da ideologia antiescravista, em Norman Leys, Kenya, 4º ed. (Londres: des francesas pediram a opinião das autoridades locais, que invocaram tan-
Cass, 1973), e John W. Cell, org., By Kenya Possessed: The Correspondence to o objetivo de fazer o africano avançar quanto uma profunda falta de
of Norman Leys and J. H. Oldham, 1918-1926 (Chicago: University of confiança na capacidade dos africanos de fazer alguma coisa sozinhos. O
Chicago Press, 1976), esp. 91-102. governador do Daomé, por exemplo, concluiu que “uma certa pressão, uma
57. Devo esta distinção aos comentários de Gillian Feeley-Harnick num coló- certa restrição ainda são necessárias para esta obra de libertação”. Carta ao
quio no Woodrow Wilson Center, Washington, D.C., S de junho de 1986. governador-geral, 31 de dezembro de 1929, K 62 (19), Archives du Sénégal.
58. Em Jean Goudal, Esclavage et travail forcé (Paris: Pedone, 1929), há um Sobre os debates, ver Cooper, Decolonization, cap. 2, e as declarações na
relato de alguém da OIT sobre os passos que levaram a esta convenção e às época de um opositor da OIT, Mercier, Le travail obligatoire, e um partidá-
iniciativas posteriores da entidade. rio, Folliet, Le travail forcé.
59. O argumento da analogia com a escravidão também surge numa condena- 65. Duffy, Question of Slavery; Sundiata, Black Scandal.
ção radical do imperialismo escrita em Moscou por um comunista nascido 66. As convenções da OIT sobre as colônias limitaram-se a questões contidas
na África do Sul e seus colaboradores russos. Ver A. T. Nzula, 1. 1. Potekhin na ideologia da mão-de-obra livre, ao mesmo tempo que a organização abor-
€ A. Z. Zusmanovich, Forced Labour in Colonial Africa, org. Robin Cohen dava o trabalho nos países metropolitanos de forma mais complexa: os pa-
(Londres: Zed, 1979), 82-83. drões que propunha e que os governos deveriam pôr em prática cobriam
60. Convenção nº 29 de 1930, relativa ao trabalho forçado ou compulsório, tópicos como a duração da jornada semanal e as condições de segurança
Organização Internacional do Trabalho, Conventions and Recommendations, em ocupações perigosas. À OTT via-se ajudando a domar o conflito de clas-
1919-1981 (Genebra: Organização Internacional do Trabalho, 1982), 29- ses e garantindo que todos os competidores teriam de obedecer aos mes-
36. mos padrões, de modo que os empregadores mais brutos em estados sem
61. Conferência Internacional do Trabalho, 1930, sessão de 25 de junho de regulamentação não eliminassem os empregadores progressistas de estados
1930, citações de 269 (assessor do governo britânico), 276 (delegado do que faziam cumprir os regulamentos. Em contraste, as questões além do

324
325
NOTAS
NOTAS

trabalho forçado que a OIT abordou em relação às colônias diziam respei-


rico do ministério, Robert Delavignette, eram
to principalmente ao uso de sanções penais pelos governos para fazer cum- ambos de regiões rurais da
França e projetaram na África uma fantasia bucólic
prir os contratos privados de trabalho e ao próprio sistema de contrato. a. Ver, especialmente,
Robert Delavignette, Soudan-Paris-Bourgogne (Paris:
Em ambos os aspectos, os contratos eram vistos como abandono temporá- Grasset, 1935). Sobre
os limites do trabalho assalariado e do futuro do
rio da liberdade — o trabalhador não podia exercer a opção de largar o camponês, ver “Pour la
Commission d'Enquête, Note sur la colonisation
emprego durante a vigência do contrato — e, portanto, necessitados da re- européene et la colonisa-
tion indigêne en Afrique Noire Française”, 1936,
gulamentação governamental no interesse do trabalhador. Só em 1944 a Fonds Moutet, PA 28/5/
152, ANSOM, e Moutet, discurso na Chambre des
OIT começou a considerar os trabalhadores das colônias como parte de um Deputés, Débats, 15 de
dezembro de 1936, 3626.
processo social que podia ser investigado em si mesmo.
75 Quase ao mesmo tempo que entrava em vigor
67. Esta seção baseia-se em grande parte no material dos Archives Nationales, a nova política, o governa-
dor da Costa do Marfim passou a garantir a um
Section Outre-Mer (ANSOM), da França, principalmente dos arquivos governador-geral meio
cético que a mão-de-obra era recrutada com sucesso
Affaires Politiques (AP) e Inspection Générale du Travail sem uso de força,
(IGT), e dos Reproduzido em Costa do Marfim, Inspection
Archives du Sénégal (AS), arquivo Travail (K). du Travail, Relatório Anu-
al, 1937, AS. Ver também Rapport de Mission du Gouverneur
68. Gilles Sautter, “Notes sur la construction du Chemin de Fer Congo-Océan”, Tap,
Inspecteur du Travail, sur la Côte d'Ivoire, julho-
Cahiers d'Etudes Africaines 7 (1967): 219-99; Catherine Coquery-Vi- agosto de 1937, K 217
(26), AS. A insistência repetida do governador de
drovitch, Le Congo au temps des grandes compagnies concessionaires, 1898- que tudo ia bem dava
ao governador-geral e ao ministro pouca opção,
1930 (Paris: Mouton, 1972); Fall, Le travail forcé. descartado o confronto,
além de aceitar as declarações e insistir ao mesmo
69 Governador-geral Carde, Circular aos Governadores, 11 de outubro de tempo em que a políti-
ca de mão-de-obra livre fosse mantida. Do minist
1929, K 95 (26), AS. ro ao governador-geral,
16 de outubro de 1937, K 197 (26), AS. Para mais
70 Relatório do Inspecteur Maret, Costa do Marfim, nº 125, 25 de maio de detalhes, ver Cooper,
Decolonization, 77-88.
1931, AP 3066, ANSOM.
76. Os despachos oficiais misturam a insistência
71. Para uma visão geral do pensamento da Frente Popular, ver Nicole Bernard- de que “seria extremamente
incômodo que uma parte da força de trabalho fisica
Duquenet, Le Sénégal et le Front Populaire (Paris: Harmattan, 1985 ). mente capaz e disponí-
vel permanecesse insuficientemente empregada”
72 Governador-geral, Circular aos vice-governadores, 3 de novembro de 1936, com declarações de que
“propaganda ativa” era tudo o que se fazia. Do
K 191 (26), AS. governador-geral Cayla,
Circular aos Governadores, 2 de maio de 1940,
73 Do governador-geral ao ministro, 25 de janeiro de 1937, K 8 (1), AS. O K 186 (26),AS. Os funcio-
nários subalternos tentaram informar às autoridades
debate sobre a Convenção da OIT, assim como os relatórios de inspeção da mais graduadas em Paris
que na prática havia uma caçada humana em
Costa do Marfim, abriram um pequeno espaço para as autoridades locais andamento, mas nem o ex-
ministro Moutet conseguiu alguma coisa com seus
alertarem para as consequências do recrutamento — despovoamento das inquéritos. De Robert
Delavignette a Moutet, 28 de março de 1939,
áreas onde era feito, migração para o território britânico vizinho para fugir Documentos de Mouter, PA
28/8/143, ANSOM, correspondência inclusa
aos arrebanhamentos de mão-de-obra, problemas de saúde e doenças. Houve dos administradores da Costa
do Marfim; do governador, Costa do Marfim,
também indícios de que as autoridades locais estavam se desmoralizando ao governador-geral, 20 de
março de 1939, e do governador-geral ao ministr
com seu papel de caçadores de homens para os colonos; isso é claramente o, 1º de julho de 1939,
AP 2807/3, ANSOM.
insinuado na carta de Coppet aqui mencionada. Esses relatórios são cita- 77. Quanto à opinião de Boisson, ver seu Contri
dos em Cooper, Decolonization, 37-42. bution à Poeuvre africaine
(Rufisque: Imprimerie du Haut Commissariat
74. O primeiro-ministro da Frente Popular, Marius Moutet, e o principal teó- de PAfrique Occidentale
Française, 1942). Pode-se encontrar parte do debate
entre Boisson e as au-

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327
NOTAS NOTAS

toridades de Vichy na correspondência em K 277 (26) e K 296 (26), AS. 85 Trechos da carta de 26 de julho de 1945 do governador-geral ao ministro,
Há um tratamento extenso da questão trabalhista na África Ocidental france- AP 960, ANSOM. Os governadores ainda argumentavam em dezembro de
sa durante os regimes de Vichy e da França Livre em Cooper, Decolonization, 1945 que a transição rápida para o trabalho livre era impossível e o novo
141- 66. inspetor-geral do trabalho, embora impressionado com os argumentos de
78. Do governador-geral, África Ocidental francesa, ao ministro, 3 de setem- Houphouêt-Boigny sobre a emancipação imediata e a extensão dos danos
bro de 1945, K 324 (26), AS; governador, Costa do Marfim, discurso no causados pelo recrutamento, não conseguia decidir-se, naquela data, a in-
Conseil de Gouvernement, 20 de dezembro de 1943, em Procês Verbal du sistir na ação rápida. Do Inspecteur Général du Travail, África Ocidental
Conseil du Gouvernement de |" Afrique Occidentale Française (Dacar, 1944), francesa, ao Inspecteur Général du Travail, Paris, 6, 17 de dezembro de 1945 ,
49-53. Um caso interessante em questão é o de Félix Eboué, governador- IGT 75/1, ANSOM.
geral da África Equatorial francesa, que se opunha a esquemas agrícolas em 86. Quando, mais adiante em 1944, o governador Latrille tentou implementar
grande escala que dependessem de mão-de-obra assalariada, via os africa- o plano de Brazzaville de acabar em cinco anos com o trabalho forçado, os
nos como camponeses presos à tradição e não se dispunha a abrir mão do colonos insistiram em que era impossível. “Conheço o “Negro”, procla-
trabalho forçado. Ver suas intervenções nos debates de Brazzaville, discuti- mou o líder dos fazendeiros brancos. Latrille retardou a eliminação em troca
dos a seguir. da promessa dos fazendeiros de que se esforçariam por recrutar voluntaria-
79. D. Bruce Marshall, The French Colonial Myth and Constitution-Making in mente. Do secretário-geral Digo ao governador-geral, 22 de dezembro de
the Fourth Republic (New Haven: Yale University Press, 1973). Como a 1944, K 321 (26), AS.
legislatura estava politicamente dividida, este pequeno grupo podia ter in- 87 Depoimento de Houphouêt-Boigny, 31 de maio de 1950, em Rapport nº
fluência. Os deputados coloniais também davam atenção apaixonada a ques- 11348 sur les incidents survenus en Côte d'Ivoire, anexado aos trâmites da
tões que, para a maioria, eram secundárias. sessão de 21 de novembro de 1950, Assemblée Nationale, reimpresso pelo
80. La Conférence Africaine Française (Brazzaville: Editions du Baobab, 1944), Partie Democratique de la Côte d'Ivoire, 1: 9; Costa do Marfim, Inspection
55; “Rôle et place des européens dans la colonisation”, e “Programme général du Travail, Relatório Anual, 1944, AS; A. J. Lucas, “Enquête sur la condition
de la Conférence de Brazzaville”, artigos preparados para a conferência de des travailleurs en Côte d'Ivoire”, s/d. [meados de 1945], K 363 (26), AS.
Brazzaville, AP 2201/4 and 2201/7, ANSOM; transcrição da sessão de 2 de 88. “Rapport sur la Régime clu Travail Indigêne, par le Gouverneur Larrille”,
fevereiro de 1944, AP 2295/2, ANSOM. Esta última fonte inclui as opiniões 20 de fevereiro de 1945, AE 576/23, ANSOM.
de Félix Eboué, assim como seu La nouvelle politique indigêne pour l'Afrique 89. Secretário-geral do governo geral em Dacar, “Note relative à la main d'oeuvre
Equatoriale Française (Paris: Office Française de "Edition, 1945). en Côte d'Ivoire” (rascunho), s/d. [janeiro de 1946]; do governador-geral
81 Frederick Cooper, “The Senegalese General Strike of 1946 and the Labor ao diretor de Obras Públicas, 18 de março de 1946, K 363 (26), AS. Quan-
Question in French Africa”, Canadian Journal of African Studies 24 (1990): do o governador Larrille estava de licença, seu substituto criticou a SAA,
165-215. Mais sobre a greve a seguir. achando que estava usurpando a autoridade administrativa e bloqueando
82. Cópia da carta dos deputados ao ministro colonial, 22 de fevereiro de 1946, as iniciativas dos colonos para recrutar mão-de-obra, mas o governador-
AP 960/Syndicalisme, ANSOM. Para a resposta do ministro, ver adiante. geral observou: “A União Agrícola é um ótimo trabalho, contanto que per-
83 Annexe nº 565, Documents de |'Assemblée Nationale Constituante, sessão maneça sob vigilância e respeite limites fixos.” Do governador Mauduit ao
de 1º de março de 1946, 554. governador-geral, 6 de novembro de 1945, com anotação lateral do gover-
84 Annexe nº 811, Documents de |" Assemblée Nationale Constituante, sessão nador-geral (sem data), 17G 146, AS.
de 30 de março de 1946, 780-83; Débats de l'Assemblée Nationale Cons- 90. Cooper, Decolonization, 196-98.
tituante 2 (5 de abril de 1946): 154. 9%. Quanto às opiniões oficiais sobre os meses cruciais da transição, ver Mission

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NOTAS
NOTAS

Berlan, Compte Rendu, setembro de 1946, K 363 (26), AS; África Ociden- vários construtos para definir as qualificações da partici
pação ativa. Levou
tal francesa, Inspection du Travail, Relatório Anual, 1946, AS; África Oci- mais de 150 anos, depois da Revolução Francesa, para
que as mulheres me-
dental francesa, Direcrion Général des Affaires Politiques, Administratives tropolitanas pudessem votar. Ver Pierre Rosanvallon,
Le sacre du citoyen:
et Sociales, “La main d'oeuvre en Côte d'Ivoire”, dezembro de 1946, K 363 Histoire du suffrage universel en France (Paris: Gallim
ard, 1992). Sobre os
(26), AS; Relatório Combier, julho de 1946, K 450 (179), AS; Inspection debates constitucionais do final da década de
1940, ver Marshall, French
Général du Travail, Relatório, novembro de 1946, AP 960, ANSOM. Colonial Myth; Rudolf von Albertini, Decolonization:
The Administration
92. “Inspection Côte d'Ivoire, Mission Bargues, 1946-47”, AP 950, ANSOM; and Future of the Colonies, 1919-1 9260, trad. Francis
ca Garvie (Nova York:
África Ocidental francesa, Inspection du Travail, Relatório Anual, 1946, AS; Holmes and Meier, 1971).
do Directeur des Chemins de Fer de ["'A.O.F. ao governador-geral, 3 de julho 100. G. Wesley J ohnson, The Emergence of Black Politics
in Senegal: The Struggle
de 1946, K 363 (26), AS. for Power in the Four Communes, 1890-1920 (Stanfo
rd: Stanford University
93. Discurso no Conseil Général de la Côte d'Ivoire, 13 de janeiro de 1947, Press, 1971); Conklin, Mission to Civilize.
Journal officiel de la Côte d'Ivoire, 15 de janeiro de 1947, em Agence France 101. A disposição do Estado francês de envolver-se com certo
Outre-Mer 393, ANSOM.
tipo de interlocutor
neste período, contudo, incluía sua recusa de
envolver-se com outros. A
94. Esta ruptura do pensamento oficial francês e britânico sobre a África na violência de sua resposta à luta que passava de certos
limites, como a re-
década de 1940 é o principal assunto do meu Decolonization and African pressão sangrenta da rebelião de Madagascar em 1947,
a exclusão rigorosa
Society. de um partido político radical em Camarões em meados
95. Este sistema de trabalho tem conseqiiências sociais, econômicas e políticas da década de 1950
e, mais dolorosas do que todas, as ações francesas
na Argélia, revela o ou-
bem diferentes, tanto a curto quanto a longo prazo, da divisão de trabalho tro lado da forma relativamente prudente como o Estado
francês conduziu
clássica do capitalismo, questão esclarecida em Jean-Pierre Chauveau e sua interação com o movimento trabalhista da África
Ocidental francesa.
Jacques Richard, “Une peripherie recentrée: A propos d'un systême d'écono- 102. Doudou Thiam, La porte de la citoyennáte française dans lós territoires
mie de plantation en Côte d'Ivoire”, Cahiers d'Etudes Africaines 17 (1977):
485-523. d Ouinemir tona de doutorado em Minmitos Université de Poitiers (Paris:
Société d'Éditions africaines, 1951), citações das pp. 48, 81, 97, 130 e 174.
96. Costa do Marfim, Relatório Político, 1946, AS. Anteriormente, uma auto-
103. Cooper, Decolonization, cap. 7.
ridade dos distritos de recrutamento comentara: “Não se pode dizer que
104. NOR também agiu antes da guerra para dar fim às sangies penais por viola-
este recrutamento foi puramente voluntário, porque os chefes usaram sua
ção do contrato de trabalho e para regulamentar amigração e os contratos
influência e foi imposta a duração do contrato de um ano pelo menos; mas
e trabalho ei longo prazo. Ambas as questões eram eita exten-
observamos que o contingente está retornando no fim do contrato satisfei-
sões da posição da OIT onira o trabalho forçado; as sanções penais, por
to com o tratamento que recebeu; muitos declaram querer voltar quando
que envolviam o uso da coação pelo Estado para fazer cumprir contratos
tiverem, segundo o costume, restabelecido o contato com sua gente por um
prtlicilanes; os contratos de longo prazo, porque privavam o trabalhador
período mais ou menos longo.” Relatório ao governador do Administrateur do direito de preferir largar o trabalho assalariado por algum período.
Supérieur, Haute Côte d'Ivoire, incluído em despacho do governador ao
105. Ver as transcrições publicadas da 26º Conferência Internacional do Traba-
governador-geral, 28 de fevereiro de 1946, K 363 (26), AS. lho, OTT, Filadélfia, 1944, e “Recommendation
nº 70 Concerning Minimum
97. Do Ministre des Colonies a Senghor, 11 de março de 1946, AP 960, Standards of Social Policy in Dependent Territo
ries”, em OTT, Conventions
ANSOM, and Recommendations, 875-95. Para uma discussão
98. Cooper, “Senegalese General Strike”. mais ampla, ver Cooper,
Decolonization, parte 3.
99. A própria cidadania na metrópole não significava direito universal de vo- 106. Senghor envolveu-se, como personagem central
, na redação da definição
tar, já que a França distinguia entre cidadania passiva e ativa, mobilizando de mão-de-obra assalariada no código de 1952: era
trabalhador quem ven-

330
331
NOTAS

desse seus serviços a outrem em troca de salário e trabalhasse sob a auto-


ridade daquela outra pessoa. Senghor queria uma definição que não men- Índice remissivo
cionasse a condição pessoal do trabalhador e garantisse que os trabalhadores
de longo ou curto prazo no setor assalariado estivessem incluídos sempre
que trabalhassem. Para ele, não importava que todas as outras formas de
trabalho ficassem de fora. Ver Cooper, Decolonization, cap. 7.
107. Margaret E. Keck e Kathryn Sikkink, Activists beyond Borders: Advocacy
Networks in International Politics (Ithaca: Cornell University Press, 1998);
Audie Klotz, Norms in International Politics: The Struggle against Apartheid
(Ithaca: Cornell University Press, 1995).

Posfácio abolição. Ver Emancipação 206, 211, 254, 260, 263, 269;
abolicionismo. Ver antiescravista, mo- emancipação (1848), 214, 218,
vimento 271
1. Le Monde, 14 e 25 de abril de 1998.
Ação coletiva: de libertos, 53, 134, África do Sul: mão-de-obra na, 82-84,
2. Há uma discussão sobre esses lares em Rebecca J. Scott, “Reclaiming 168; pela cidadania, 74-79; na 268; emancipação na, 83; política
Gregoria's Mule: The Meanings of Freedom in the Arimao and Caunao
Louisiana, 133-134, 136, 302; e trabalhista na, 240-241, 290-291;
Valleys, Cienfuegos, Cuba, 1880-1899”, Past and Present, a sair.
raça, 195 movimento contra o apartheid,
África: emancipação na, 42, 282; mão- 269, 273; particularidade do afri-
de-obra na, 43-44, 217, 237, 256; cano na, 291
ea economia da, 85-86, 217-218; africanos: discussões da peculiaridade
durante a Segunda Guerra Mun- dos, 70, 79-88, 127, 210, 231-
dial, 86-87, 249; movimentos tra- 232, 238, 239, 249, 253, 256;
balhistas na, 208, 266, 33 1; poder como traficantes de escravos, 80;
estatal na, 212; escravidão na, estereótipos masculinos, 215, 318;
211-217,218; agregados na, 227- na legislatura de Paris, 238, 260,
228; “tradicional”, 232; sucessão 263, 328; no mercado de trabalho,
matrilinear na, 234. Ver também 242. Ver também libertos: na
libertos: na África; África france- África
sa; escravidão, africana; socieda- África Ocidental francesa, 86, 248,
des, africanas 251, 257, 258, 263; mão-de-obra
África Central: 234, 322 na, 250-251; greves na, 251, 255,
África Equatorial francesa, 247 256, 260-261
África francesa, 218, 250, 251, 253, África Oriental britânica, 44, 241, 319
266, 318; mão-de-obra na, 43-44, afro-cubanos, 74-77; no movimento
85-87, 207, 241, 246-259, 261, nacionalista, 167, 168, 171-176;
324; emancipação (1946), 87, repressão dos, 166, 193; 307; e as

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