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CAPITULO It Cultura da Réverie ¢ Cultura da Evacuagao Lorenzo é um menino de oito anos que se alimenta somente de alimentos liquidos ou batidos. Nao come nada sélido. Na escola, é extremamente inibido, nao tem amigos. Tem outra caracteristica peculiar: pergunta o tempo todo para a mae o “porqué” de cada coisa. A mae de Lorenzo teve dois lutos, um seguido ao outro: quando 0 menino tinha um ano, morreu seu marido, ¢ quando ele tinha dois anos, morreu seu pai (0 avé do menino). Desde entiao vive em uma situagao depressiva intensa, ainda que tenha conseguido, com esforgo, manter seu trabalho de funciondria, por necessidades econdémicas. Na primeira sessio, Lorenzo faz um desenho que representa, segundo ele, uma casa isolada, tristissima, escura e desolada, “tal- ves”, acrescenta, sem portas”. Depois permanece sentado, imével, da a impressao de ter um freio de mao puxado de tanto que esta blo- queado. Porém, quando vé a caixa lidica, parece animar-se. Pergunta se pode usar os personagens, e subitamente se langa num Jogo no qual eles batem um no outro com extrema violéncia; 0 ma terrivel é um personagem chamado de “o cdo que dilacera tudo”. - Ap6s a intervengao “mas esse cachorro deve ter uma fome terri. vel”, pega dois personagens e os faz representar uma mistura de futa e de acasalamento, dizendo que a mulher “ndo deve tirar 0 sutia”. Depois faz o desenho da Figura 1, no qual oe eee nee sauro, uma ave pré-histérica, um foguete e, embaixo, um homenzi- nho em um barquinho. Digitalizado com CamScanner 46 Fatores de Doenga, Fatores de Cura Desde logo, ercio ser claro o drama de Lorenzo: uma mae depri- mida, que € como uma easa triste, na qual talvez nao haja nema pos- sibilidade de entrar, de encontrar a porta. Naturalmente, podemos pensar os personagens que se batem a partir de varios pontos de vista, mas entre todos escolheria aquele do choque entre as necessi- dades proto-emocionais do menino (em outros termos, as identifica- gdes projetivas destas) que colidem contra uma mente fechada, cuja disponibilidade é somente aparente, tamanha é a depressao: é como se as portas fossem em trompe l'oeil desenhado. Isto €, se as “identificagdes projetivas” nao encontram um espa- go de acolhimento ¢ transformagio e se chocam contra uma réverie negativa (Ferro, 1991b, 1992b, 2000a, b, 2001¢; Ferro, Meregnani, 1994, 1998; Ribeiro de Moraes, 1999), retornam aumentadas: ficam no estado de emogées-dinossauro, emogées-foguete. E suficiente encontrar uma mente que compreenda e acolha, ainda que num nivel minimo, para que a fome de relacionamento seja representada por aquela luta-acasalamento, relagdo que deve ser “protegida” porque o outro poderia ser dilacerado. No desenho, aparece também representado 0 inicio de uma fun- ao de continéncia-transformagio no homenzinho que guia o barco (ver Figura 2) Encontrar uma mente aberta da inicio a possibilidade de narrar a prépria hist6ria traumdatica, e pode encontrar lugar também “o cao que dilacera tudo” em relago ao qual a anorexia ¢ a inibicio Digitalizado com CamScanner Cultura da Réverie e Cultura da Bvacungio 47 eram defesas inevitaveis, nao havendo outra forma possivel de lidar com tal monstro. Os freqiientes “porqués” eram naturalmente uma tentativa de abrir, de tornar acessivel a mente da mac. A histéria continuara através de combates de tribos indigenas com esquartejamentos, atrocidades de todo tipo, até a chegada de um “embaixador” que iré ditar as regras do jogo, que se tornard aos poucos um campo de um violento campeonato de riigbi. Gostaria agora de fazer algumas reflexdes. A mente humana necessita da relagéo com 0 outro para se desenvolver. Bion descreve de forma admiravel 0 ascender inicial da mente humana, verdadeiro Big Bang do pensamento, no encontro entre a projegao de angiistias primitivas (elementos B) e uma mente capaz de acolhé-las e trans- formé-las (réverie), que “transmite”, além do “produto trabalhado” (as angiistias bonificadas: os elementos f transformados em ele- mentos «), também, ¢ eu diria especialmente, “o método para reali- zar tais transformagées” (a fungao a) (Bion, 1962, 1963, 1965). Nesta conceituagio, o proprio Inconsciente é algo que se segue a relagdo com 0 outro-disponivel. Uma menina em anilise fez uma vez um desenho que, a parte o significado relacional do momento, penso que seja uma excepcional representagio do modelo da formagao do Inconsciente como o entendo hoje (Figura 3). Figura 2 Digitalizado com CamScanner 48 Fatores de Doenga, Fatores de Cura O céu é representado por uma série de fios retorcidos, emara- nhados, que formam redemoinhos policrémicos; o mar resulta cons- titufdo por linhas coloridas, que parecem tecidas com ordem e for- mam uma espécie de trama. Tudo com uma forte idéia de movi- mento fornecida por um barco, colocado no centro do desenho, com trés pessoas dentro e que parece, ao ir de uma margem A outra do papel, tecer as turbuléncias da parte superior nos fios da parte infe- rior... ¢ mais 0 barco vai de um lado a outro, mais parece se expandir a parte de baixo, mas cada vez mais tem de tecer a parte de cima... Em outras palavras, 0 que.importa parece ser a capacidade de tecer dos ocupantes do barquinho... sem ponto de chegada... a nado sera expansao daquilo que pode ser tecido, do tecido em si e da capaci- dade de tecer, ou, fora de metdforas, uma expansio do pensavel, do pensado e das capacidades de pensar exatamente na diregio da céle- bre afirmagio de Bion segundo a qual a psicanilise é aquela sonda que expande o campo que indaga e, por conseguinte, mais penetra- mos no Inconsciente, mais aumenta o trabalho que nos espera. Me parece estar sendo representado como a fungao @ introjetada (fruto da relagéo) permite uma continua transformagao das turbuléncias proto-emocionais em pensamento e emogées pensiveis. O ponto sobre o qual gostaria de refletir sio as qualidades que a mente do Outro deve ter: capacidade de acolhimento, de deixar ficar, de metabolizar, de devolver 0 produto da elaboragao, e espe- Figura 3 Digitalizado com CamScanner Cultura dle Réverie e Cultura da Evacuagao 49 cialmente de “passar 0 método do que 6 devolvido e outro, - Isso se dé através da nao-saturagao @ permissao de ir “aprender na mente” do A primeira operagao é aquela de formar um Pictograma visual, obra absolutamente criativa, original e artistica (0 elemento @); a segunda, colocar em narragao a seqiiéneia de elementos a. Funcdes Sucessivas serao a introjegao da capacidade de tolerar a frustragao, la capacidade de luto, do tempo, do limite. Tudo isso passa através do “mental” que se ativa na relacdo com a mae e com 0 pai; acredito que a réverie possa ser em igual medida materna e paterna (Ferro, 1992b). Creio que o grande problema “cultural” seja que respeito, que espago, que tempo sao hoje reconhecidos a essas operagdes que tém a ver com o desenvolvimento da mente a partir do “mental dis- ponivel do outro” (Guignard, 1996). Em relagao as outras espécies, que possuem uma série de com- Portamentos instintivos, em sua maior parte programados, nés como espécie temos um drama: aquele de ter uma mente, uma mente que se desenvolve através de cuidados prolongados. Se “o processo de desenvolvimento da mente falha”, entéo temos uma série de patologias, que vio desde as alucinagées As doengas psicos- somAticas, aos comportamentos caractereopaticos ¢ criminosos, todas formas de evacuagio e de descarga de angtistias primitivas nao elaboradas. O meu ponto de vista é, portanto, aquele de considerar que naio éa “mente” que governa os instintos e que, portanto, a especifici- dade do homem nao é uma racionalidade que pode governar 0 mundo das pulsGes, mas exatamente © contrario: 0 problema do homem é ter uma mente com suas peculiaridades. E a existéncia de uma mente que nao pode se desenvolver, que cria condutas anti-so- ciais, violentas... a violéncia nao estd no instinto... é uma mente que sofre que atrapalha 0 comportamento harmoniosamente funcio- nante do animal-homem: se o homem nao tivesse a mente, ele seria um primata funcionante. O problema do homem é a mente e a sua condigdo rudimentar, e especialmente o fato de que a mente, para se desenvolver adequadamente, necessita de anos de cuidados. Uma mente que nao funciona leva A violéncia, 4 destrutividade, como “nica forma de evacuar elementos B (Ferro, 1993a, 1996b, 2001a) B Uma mente que funciona é uma mente que continuamente cria imagens (elementos a), a partir das proto-emogoes ¢ proto-sensa- Digitalizado com CamScanner 50, Fatores de Doenga, Fatores de Cure. gdes que metaboliza e transforma cm fatores de criatividade todas as contribuigdes que recebe: cria pensamento onfrico e deste, so- nhos e pensamentos. Quando uma mente nfo funciona nessas mo- dalidades receptoras-transformadoras-criativas, inverte 0 préprio funcionamento. Creio que o cultural tenha diversos momentos de impacto: hé uma microcultura relacional, microambiental, que cons- titui a parte do “barquinho-fungao a. e fungao edipica da mente” da Figura 3 ¢ da qual depende o desenvolvimento da capacidade de pen- samento de todo “filhote de homem” no seu ambiente. Mas ha tam- bém uma macrocultura social (na qual vivem, em uma espécie de osmose, as microculturas relacionais) em relagdo 4 qual nao pode- mos nos declarar indiferentes. If uma questdo central 0 quanto a macrocultura social da reconhecimento ao mental, ao emocional, 4 importancia vital da relagdo para o desenvolvimento da mente, que espago e que tempo permita em relacdo a poder tornar disponiveis fungdes de réverie, de fantasia, de sonho. Ha sempre 0 risco de uma des-afetivizagdo, freqiientemente em nome de uma suposta cientificidade objetiva. E isso, se é visivel em nivel macrosc6pico no social, eu o vejo também como um sério risco para a psicandlise, que, ao contrario, deveria valorizar a “especifici- dade” do animal homem. Ja Bion, em O aprender com a experiéncia, salienta (no capitulo XVI) 0 fato de que as técnicas usadas por quem tem uma visao cien- Digitalizado com CamScanner Cultura da Réverie e Cultura da Evacuagio 51 Figura 5 Figura 6 tifica deram seus melhores resultados quando se tratava de objetos inanimados; naturalmente, os trés vinculos de base que propdem em relagao X que quer conhecer e Y que quer ser conhecido — XLY, XHY, XKY — “deixam de existir 4 medida que sao introduzidas apa- relhagens inanimadas com o objetivo de substituir o elemento ani- mado” (Bion, 1962). Mas hd ainda um ponto central deserito por Bion (1965), 0 fato de que as emogées que permeiam a mente do outro sao fundamen- tais para determinar o desenvolvimento da mente, e constituem o conectivo no qual se inserem os contetidos mentais e, conseqiiente- mente, a evolugdo em diregao a K ou entao a-K, em diregdo a Po’, ou entao -(?0), Eu pictografaria a cultura da réverie recorrendo A imagem do quadro O amor materno de Tranquillo Cremona (Figura 4). Ao passo que uma réverie que funciona parcialmente me parece bem pictografada pela obra de William Blake (imagens para a Divina comédia, “Inferno”, canto XIX), na qual, independentemente das intengdes do autor, parece que uma mie acolhe uma menina, enquanto aspectos mais primitivos ndo encontram acolhimento e sao projetados fora, dando lugar a cis6es tipo Dr. Jekill e Mr. Hyde (Figura 5). Digitalizado com CamScanner 52 Fatores de Doenga, Fatores de Cura Uma réverie totalmente inadequada, eu a representaria através de uma outra pintura de William Blake (The great red dragon and the woman clothed in the sun), que remete a aspectos monstruosos da mente que nao encontram uma réverie suficiente, mas somente uma fungao materna fragile inadequada (Figura 6). As conseqiiéncias de uma réverie insuficiente, eu poderia pro- p6-las de forma narrativa através da leitura daquele fendmeno litera- rio-social representado pelos trés livros de Thomas Harris, nos quais havia sempre uma histéria violenta de serial killer, que através do homicidio evacuava em atuag6es um sofrimento impossivel de ser contido. No primeiro livro, O dragéo vermelho, a histéria infantil de Fran- cis Dolarhyde é tragica: abandonado pela mae, tem um grave defeito fisico no rosto, por isso nao ousa se olhar no espelho. Uma tentativa de voltar para a mae e para a nova familia dela naufraga miseravelmente, e apés a morte da avo inicia suas carnifici- nas. A histéria continua até que Francis encontra uma moga “cega”, que, nao ficando condicionada pelo aspecto do seu rosto, tem com ele uma relagio afetiva cheia de aceitagao. Isto causa nele uma espécie de cisio entre um aspecto, que nao renuncia a vinganga — “Dragao Vermelho” — ¢ a ele mesmo, que quer salvar a moga, e uma tenra relagdo se iniciou entre eles, Também 0 segundo livro, O siléncio dos inocentes, est4 centrado sobre 0 serial killer James Gumb, que mata mulheres grandes, ¢ ele mesmo tem uma hist6ria de abandonos e traumas. Mata porque quer confeccionar um vestido de pele humana feminina, que seja como “uma nova pele e identidade”. Mata estas jovens mulheres para construir — exatamente como um alfaiate — um invélucro. Nos dois romances, uma figura constante é 0 Dr. Lecter, um psi- quiatra, por sua vez serial killer, mantido Prisioneiro em um cércere de seguranga maxima, dentro de uma jaula. O agente Starling, do segundo romance, é a heroina que se langa a caga do killer, auxiliada pelo Dr. Lecter, que estabelece com ela uma relagdo quase prote- tora, como aparecerd no terceiro romance — Hannibal —, que é também o Dr. Lecter, que torna-se o Protagonista principal do livro. Neste so descritas as tentativas do agente Starling de prender Han- nibal, uma vez que este havia escapado da prisao. Mas especial- mente, para além das vicissitudes do género horror-policial, é nar- rada a hist6ria infantil do Dr. Lecter: perdeu uma irmazinha muito Digitalizado com CamScanner ¢ Cultura da Evacuagio 53 Cultura da Réveric a irmazinha foi vitima de atos de caniba- amada em tenra idade, es: lismo, foi comida por um grupo de bandidos que, esfomeados, haviam invadido a fazenda na qual viviam e, nfio havendo nada para do — na ausénela dos pais —, além de um comer, tinham devor misero veado, justamente a menina, Parece que 0 trauma sofrido precisa ser repetido de forma “ativa": uma vez adulto, o Dr. Lecter por sua vez se torna canibal; quer inverter 0 curso do tempo ¢ fazera irmazinha reviver; quer um tempo néo-linear; 0 agente Starling parece poder ser, em parte, um substituto, em parte um possivel “depésito” da irmazinha, se o tempo pudesse se inverter ¢ a irmazi- nha voltasse a viver... A cena de canibalismo se repete até uma terri- vel situagaio onde um homem a seus olhos culpado — ele mesmo que nao havia podido salvar a irmazinha — 6 operado no cérebro e parti- cipa, acordado, a refeigio do proprio eérebro, que é fatiado, nos lobos frontais, cozido e comido, assim como ele mesmo se corréi o cérebro pelo sentimento de culpa, Pergunto se nao é possivel ver 0 que acontece na auséncia de “alimento para a mente”, na auséncia de réverie: as partes tenras, afetuosas (a irmazinha, a capacidade de 9), sio destrufdas por par- tes violentas que acabam por “canibalizar” a propria mente, 0 que depois é feito expiar aos outros que se tornam as vitimas. Se tivesse havido alimento, réverie, a irmazinha poderia ter vivido, os afetos, as emogées teriam o seu lugar e 0 Dr. Lecter nao seria vitima e carni- fice devorado pela culpa e anjo vingador ao mesmo tempo. Os crimi- nosos da parte inicial da histéria podem ser pensados como os ele- mentos B, que, nao encontrando réverie e transformagao (por parte de uma fungio a), canibalizam a mente. Assim, podemos identificar o serial killer do primeiro livro com a necessidade de evacuar as emogées ligadas ao trauma em atuagGes com contetidos violentos em busca de continente que revela-se ina- dequado. Os maus objetos perseguidores impdem a Francis vin- ganga; até que encontra a tenra moga; af h4a cisdo entre a parte psi- cética e a “parte capaz de relagio”. Aquilo que nao é acolhido € transformado gera loucura e perseguigdo, assim como no segundo livro, onde hé uma tentativa de encontrar uma pele psiquica, um continente capaz de “conter dentro”(um ? capaz de dar lugar a). Por ultimo, aparece o personagem mais inquietante — Lecter —, verdadeiro “diretor” de todas essas hist6rias, 0 psiquiatra louco, ver- dadeiro Superego arcaico, que tudo devora com sentimentos de Digitalizado com CamScanner 54 Fatores de Doenga, Fatores de Cura culpa intoleraveis até levar A agio desesperada, lesiva, autolesiva. A seqiiéncia dos trés livros me parece um admiravel mito moderno sobre a auséncia de cuidados primarios e as suas conseqiiéncias: o serial killer, a tentativa de autocura (a pele), a culpa persecutéria. Naturalmente, néo somos socidlogos, e o que nos interessa é refletir sobre esses fendmenos de “minikilleragem”, representados pela inversao do fluxo normal das identificagdes projetivas (de crian- ga para adulto, de paciente para analista) e pelas réveries negativas — verdadeiros assassinatos das possibilidades de desenvolvimento da mente e da espécie —, e que podem ser feitos também pelos pais nao culpados, mas sofridos, ou por analistas por sua vez nao culpa- dos, mas “fanaticos”. Digitalizado com CamScanner

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