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O crime no Anteprojeto de Cédigo Penal de 1981 Evenarpo pa Cunna Luna Catedratico de Diretto Penal da Facul- dade de Direito do Recife — UFPe. Mem- bro do Conselho Nacional de Politica Penitenciéria, Advogedo Criminaliste, SUMARIO 1 -~ Introdugdo 2 — Relagéo de causatidade 3 — Tentativa 4 — Crime doloso e crime culposo 5 — Erro de fato 6 — Erro de direito 7 — Coagdo trresistivel e obedténcia hierérquica 8 — Exclusio de ticitude 9 — Da imputadilidade penal 10 — Do coneurso de pessoas 1 — Introdugéo © Anteprojeto de Lei que altera dispositivos do Cédigo Penal ¢ da outras idéncias, conforme o texto finai, aprovado em Belo Horizonte, na_reunido de seis de novembro de 1981, pelos trés membros da ilustre Comissio Revisora, ‘Trabalho lido e debatido em Séo Lttis, na Primeira Jornada Maranhense de Diteito Penal, promovida pela Ordem dos Advogados do Brasil, Seg6o do Maranhéo, realizada nos diss 13, 14 € 15 de janeiro do corrente ano. WR. — O Anteprojeto do Codigo Pens! (Parte Geral) foi publicado no Didrio Oficial de 11-3-81 para recebimento de sugestées. Vide Quadro Comparative do Anteprojeto @ do Cédigo vigente in Revista de Informacdo Legistativa, n° 70, abril/junho 1981, p. 305. Ry. Inf. legist. Brasilia a, 19 a, 75 jul/set. 1982 255 Professores FRANCISCO pe Assis ToLEDo, Micury REALE JONton e Jam LEONARDO ‘Lorés, conserva, nas suas linhas gerais, o espirito do Titulo 11 — Do Crime — do Cédigo Penal de 1940, Excegao feita 4 profunda reforma substancial da matéria do erro de direito, as demais alteragdes contidas no Anteprojeto referido, Titulos If, III e IV, que compreendem os arts, 13 a 31, valem como aperfeicoa- mento, ou busca de aperfeigoamento, do Cédigo Penal em vigor. A historia falou alto © bem. No trabalho em prol do aperfeicoamento, algumas vezes 0 Anteprojeto_inspira-se em orientagio doutrindria diferente da doutrina que inspirou o Cédigo Penal de 1940, e, na maioria das vezes, procura uma redagao mais precisa ou, simplesmente, uma terminologia nova. Tentemos uma andlise dos Titulos II, IIT e IV do Anteprojeto de Lei em estudo, conforme a ordem dos artigos, E vejamos se tudo que conserva é de conservar; se tudo que inova é de inovar; e se a inovagdo é sempre feliz e digna de acolhimento legislativo. 2 — Relagdo de causclidade © Cédigo Penal, no art. II, caput, disciplina a relagio de causalidade deste modo: “O resultado, de qe depende a existéncia do crime, somente & imputavel a quem lhe deu causa, Considera-se causa a aco ou omissio sem a qual 0 resultado nao teria ocorrido,” Por sua vez, o Anteprojeto, no art. 13, caput, preceitua: “O resultado, de que depende a existéncia do crime, somente é imputdvel a _guem, por agio, 0 tenha causado ou, por omissio, nfo © tenha impedido.” Duas alteragécs foram feitas. A primeira, de linguagem, consistente na subs- tituigdo do indicativo depende pelo subjuntivo dependa, Assim, em vez de “O resultado, de que depende a existéncia do crime", o menos expressive “O resul- tado, de que dependa a existéncia do crime”. Agora, é de perguntar: por que a substituigéo do indicativo pelo conjuntivo? Sem pedantismo gramatical, sabe- se que o encontro do presente do indicative, como o verbo da oragao principal, com © presente do subjuntivo, como o verbo da oragdo subordinada, seja esta substantiva ou adjetiva, sucede, entre outras hipéteses, quando 0 modo con- juntivo exprime algo futuro e incerto. Assim, “desejo que venhas”, “tenho necessidade de que fagas alguma coisa’. No art, 13 do Anteprojeto, tudo & exposigao, 6 indicagao; logo “o resultado, de que depende a existéncia do crime”, ou seja, 0 resultado de que depende, na apreciagdo pelo presente, a existéncia do crime, 0 resultado real, acontecido, o fato, numa palavra, E nao “o resultado, de que dependa a existéncia do crime”, A redagao do art. 11 do Cédigo Penal, além de mais enérgica ¢ elegante do que a redacdo do art. 13 do Anteprojeto, & a redagio correta. Ainda fazendo finca-pé nesta questiincula de Iinguagem, seja lembrado, nfo de passagem apenas, que o art. 40 do Cédigo italiano, sob a rubrica rapporto di causalita, aonde o legislative foi buscar inspiragdo para 258 R. Inf. legis), Brasilia a. 19 n. 75 jul./set, 1962 redigir o art. 11 do Cédigo Penal, exprime-se no modo indicativo, e desta maneira; “L’evento dannoso o pericoloso, da cui dipende la esistenza del reato”. E nfo de que “dipenda la esistenza del reato”, no modo subjuntivo. O art. 40 do Cédigo italiano € este: "Nessun pud essere punito per un fatto preveduto dalla legge come reato, se evento dannoso 0 pericoloso, da cui dipende la esis- tenza del reato, non € conseguenza della sua azione od omissione.” Afastada, porém, nio esté a possibilidade de um erto de datilografia, que passou despercebido aos eminentes membros da Comissio. A segunda alteracdo diz respeito orientagio doutrinéria. O Cédigo Penal considera a acio e a omissio como causa do resultado. O Anteprojeto considera © agir como causar, ¢ 0 omitir como nao impedir o resultado, E o antigo e atual problema da causalidade da omissio. Aqui nao é o lugar para discuti-lo. Mas, por que mudar o discutfvel pelo igualmente discutivel? Se nenhum progresso para a lei e para a pratica, melhor conservar o art. 11 do Cédigo Penal, cuja redagao 6 melhor do que a do art. 13 do Anteprojeto. Além do mais, pode-se considerar 0 “nao impedir o resultado” como forma de “causar o resultado”, e tudo volta para a estaca zero, Outro caminho é o escolhido pelo Cédigo alemio, que deixa o problema da relagio de causalidade para a doutrina e fixa os limites da omissio punivel. Veja-se que a causalidade é uma relacdo, E observe- se que o Cédigo Penal nao disciplina relacdes: tipicidade, antijuticidade, culpa bilidade, punibilidade. Em tese, a melhor solugio, pensamos. Como defrontamos, porém, uma tradigao legislativa, que deita raizes no Codigo italiano, e como a doutrina e a jurisprudéncia nacional vém trabalhando, hé quarenta anos, e apontando duvidas e as removendo, e fixando limites, & fazendo esclarecimentos varios, tudo sobre o campo legislativo da relagio de causalidade, pensamos, igualmente, que nio traz prejuizo para a pritica, e para a atividade da justiga penal, o fato de conservar-se, no Cédigo Penal, a disci- plina da relagio de causalidade, mantida, repetimos, a redagéo do art, 11, acrescentando-se, conforme o Anteprojeto, dois pardgrafos, o primeiro, sobre a causa superveniente, acrescido da palavra adverbial relativamente, e 0 segundo, sobre a relevincia penal da omissiio, com as modificagées a seguir propostas € discutidas, Para a superveniénoia de causa independente, 0 Cédigo Penal destina 0 pardgrafo unico do art. Ll, e o Anteprojeto, o pardgrafo 1° do art. 13. O Ante- projeto (na redagdo final), embora conservando a rubrica “‘superveniéncia de causa independente”, acrescenta, no texto do parigrafo 19, o advérbio relativa- mente: causa relativamente independente, A distingao entre causas absolutas e relativamente independentes, em que pese a ser doutrinariamente duvidosa, oferece, contudo, na observagao do Professor Basieu Garcia, interesse pratico que justifica o pardgrafo primeiro do art. 13 do Anteprojeto, que pretende co- locar, na lei, a interpretagso do parégrafo tinico do art. 11 do Cédigo Penal, feita pelo Ministro Nelson Hungria. R, Inf. fegisl. Brasilia a. 19 n. 75 jul-/set. 1982 257 © Cédigo Penal nio estabelece norma para a relevdncia de omissio. O Anteprojeto (na redagio final), acertadamente, o faz, no pardgrafo 2° do art. 13, lesta forma: “A omissio é penalmente relevante, quando o omitente devia e podia agir para evitar o resultado. O dever de agir incumbe a quem: a) tenha por lei obrigacao de cuidado, protegio ou vigilancia; b) de outra forma, assumiu a responsabilidade de impedir o re- sultado; ©) com seu comportamento anterior, criou 0 risco da ocorréncia do resultado.” Cinco observagées queremos fazer. Pela primeira observagio, temos o intuito de pedir ao legislador que medite sobre a possibilidade de ser atenuada, facultativamente, a pena para os casos de omisséo imprépria. Sabe-se que, de modo geral, a ago revela, mais do que a omisso, uma personalidade mais decidida, de mais iniciativa, para a pratica do crime, Por outro lado, verfiea-se que » chamada omisedo propria & apenada com mais suavidade do que os crimes por agio, Para ilustragao, leia-se 0 Cap{- tulo III — Da Periclitagdo da Vide e da Satide —, Titulo 1 — Dos Crimes Contra @ Pessoa —, do Cédigo Penal. E note-se, apés a leitura, que todos os crimes pre- vistos no Capitulo referido — perigo de contagio venéreo, perigo de contigio de moléstia grave, perigo para a vida ou satide de outrem, abandono de incapaz, exposigao ou abandono de recém-nascido e maus tratos —, todos so sancionados com pena mais grave do que a pena que sanciona a omissio de socorro: deten- go de um a seis meses, ou multa de seiscentos cruzciros a quatro mil cruzeiros, Para introduzir no Cédigo Penal a atenuagio da pena para o crime omissivo, © legislador brasileiro dispée de um bom modelo: pardgrafo 13 (2), combi- nado com 0 pardgrafo 49 (1), do Cédigo alemao: “Die Strafe kam nach § 49 Abs. 1 gemildert werden” (A pena pode atenuar-se conforme o § 49). Agora a segunda observagio. No caput do art. 13 e na alfnea b do § 2°, lese inpedit 0 resultado; e no § 2°, Iése evitar o resultado, Para maior eat so, deve-se usar, no caput e no § 2%, ou o primeiro ou o segundo termo: ov impedir ou evitar. O termo evitar parece-nos mais preciso do que impedir. Basta recordar a frase “evitar um perigo”. Jé “impedir um perigo” nfio soa bem, ‘ou nao soa tio bem quanto “evitar um perigo”. Sem divides, © “impedir”, que surge, também, no art. 13 do Cédigo Penal, embora este Cédigo empregue, no art, 20, o “evitar”, resultado da influéncia da leitura doutrindria e Esdigo italiano. A terceira observagéo é esta: em vez de “devia e podia agir para evitar 0 resultado”, basta dizer “devia e podia evitar o resultado”, porque o verbo evitar constitui uma forma de agir. ‘A quarta observagio diz respeito & ordem das alineas a, b e ¢ do § 2° do art, 13 40 Anteprojeto. Entendemos que o que est sob a alfnea b deve passar 258 R. Inf. legisl. Brasilia a. 19 n. 75 jul./set. 1982 para a alinea c, e vice-versa. H4 duas formas especiais do dever de agir: a obrigagao legal e 0 comportamento anterior. Logo a forma geral, ou de outra forma, deve ocupar o ultimo lugar, ou seja, ficar sob a alinea c. A quinta e Gltima observagio diz respeito as palavras risco e ocorréncia, que surgem na alinea c: “com seu jortamento anterior, criou o risco da - cia do resultado”, Assim, em vez de “risco da ocorréncia do resultado”, pode-se dizer, com mais técnica e concisio, “perigo do resultado”. E, se o perigo jf 6 0 resultado, diz-se simplesmente, “evitar 0 perigo”. Com mais técnica, porque “risco” & termo da linguagem do direito privado. No direito , nfio se diz, lo, “risco de vida”, “risco de desabamento”, mas “perigo de vida”, i desabamento”. Com mais concisio, porque manifesta é a eco- nomia de linguagem na expresso “perigo do resultado”. A nosso ver, o § 2° do art, 13 deve ter a seguinte redagio: “A omissio é Ponalmente relevante, quando o omitente devia ¢ podia evitar o resultado, O dever de agir incumbe a quem: a) tenha por lei obrigacao de cuidado, protegao ou vigilancia; b) com seu comportamento anterior, criou © perigo do resultado; ado? de outra forma, assumiu a responsabilidade de evitar o resul- tado,” Com a relevancia penal da omissio contida na alinea c do § 2° do art. 13 do Anteprojeto, alcangam-se praticas omissivas que tém dignidade penal e que escapavam no Anteprojeto Hungria. Deste modo, na alinea ¢ referida, estio HMoluidos os chamados deveres de comunidade, que podem continuar obrigando mesmo que a comunidade continue existindo sem a causa inicial que lhe deu origem. O caso real, por exemplo, do jardineiro que, apés ser despedido, per- manece alguns momentos na rea do jardim e, por vinganga, deixa uma crianca tenra, filha do patrio, afogar-se no pogo em redor do gual costumava recrear-se, pode ser alcancado pela alinea c, porque, mesmo tendo desaparecido o vinculo empregaticio, a comunidade continuou existindo pela Bresenga do jardineiro no jardin e, com a existéncia da comunidade, 0 vinculo do dever de comunidade. Na hipétese, encontramos, com Jmainez pe Asta, um homicidio, e nfo, como pretende SepasriAn Soe, uma simples omissio de socorro, 3 — Tentatiwa © art 14 © pardgafo inico do Anteprojeto reproduz o art. 12 © parigrafo nico do Cédigo Penal, Nenhuma desvantagem enxergamos na disciplina do crime consumado. Como esté, esté bem. O art, 15 do Anteprojeto na redagio final, em lugar de dizer, como diz 0 art. 13 do Cédigo Penal, na matéria da desisténcia voluntéria e arrependimento eficaz, “desiste da consumagio do crime”, expressa-se melhor dizendo “desiste de prosséguir na execugdo”. Para unificagdo de termo, em lugar de “impede R. Inf. tegist. Brasil 19 75 jul./set. 1982 259 que 0 resultado se produza” do art. 18 do Cédigo Penal, e do art. 15 do Ante- projeto, diga-se “evita que o resultado se produza”. No tratamento do crime impossivel, o art. 17 do Anteprojeto reproduz as palavras do art. 14 do Cédigo Penal. & sedacao que acolhe tradicional doutrina. O Anteprojeto suprime a aplicacio de medida de seguranga, yerificada a peri- culosidade do agente, como esté nos arts. 14 ¢ 76, parigrafo tinico, do Cédigo Penal, combinados. Supressio acertada. Periculosidade em crime imposstvel?... Na matéria geral da tentativa, o Anteprojeto introduziu uma novidade legislativa: a que esta contida no art. 16, sob a rubrica arrependimento pos. terior. Trata-se de norma inspirada em costume policial verificado no Brasil inteiro. Costume policial que nfo ¢ inteiramente digno de censura, de lege ferenda, Diz 0 art. 16 do Anteprojeto (na redagio final): “Nos crimes cometidos sem violéncia ou grave ameaga A pessoa, reparado o dano ou restituida a coisa, até o recebimento da denéncia ou da queixa, por ato voluntério do agente, a pena serd reduzida de um a dois tercos.” Anorma é louvavel. Todavia, o lugar dela nao é 0 Titulo II — Do Crime —, mas 0 Titulo V — Das Penas —, precisamente o Capitulo III — Da Aplicago da Pena. A observaciio que estamos a fazer agora, fizemo-la quando de uma das teunides da Comissio de Redacio do Cédigo Penal, & qual comparecemos atendendo ao honroso convite de seus ilustres membros. Sem dela ter tomado conhecimento, observagéo idéntica foi feita pelo Professor Aucwes MUNHOZ Nero, no coléquio realizado em Goidnia, para o estudo do Anteprojeto de Cédigo Penal. Deste modo, néo somente um, mas dois professores de Direito Penal manifestaram-se a respeito da matéria em foco, razo suficiente, cremos, para um reexame da futura posigéo, no Cédigo Penal, do “arrependimento posterior”, Observe-se que o chamado arrependimento posterior difere, substancial- mente, do arrependimento eficaz, nao se devendo sobrepor a identidade nomi- nal a duas realidades distintas. Observe-se, ainda, que o Cédigo Penal e o Anteprojeto, ao contrario do Cédigo Penal de 1969, tratam 0 erro de execugio, a aberratio delicti, no capitulo da aplicagiio da pena, e niio no titulo correspon dente ao crime, onde o erro sobre a pessoa encontra o lugar certo. Deste modo, 0 tratamento unitério do erro, na doutrina, nfo implica o tratamento unitério na lei, Sabe-se que existe um sistema tanto na doutrina quanto no Cédigo, funcionando o sistema doutrindrio conforme a arte da diddtica e a ordem da cigncia, e o sistema legislativo, conforme a técnica da lei e a prética da justiga. Diga-se 0 mesmo, repetindo, quanto ao “arrependimento eficaz” e o “arrepen- dimento posterior”, e com uma ressalva: tanto 0 erro sobre a pessoa quanto © erro sobre a execugio pertencem a dindmica do crime, estio dentro da agéo, da atividade criminosa, o que nao acontece com o “arrependimento eficaz” ¢ o “arrependimento posterior”, uma vez que no “arrependimento eficaz”, embora esgotada a execugdo, o crime ainda néo est& consumado, e no. “arrependi- mento posterior” a consumagiio jé se tinha verificado. 260, R. Inf, legist, Brasilia a. 19 n. 75 julJeet. 1982 4 — Crime doloso e crime culposo O Anteprojeto, no art. 18, Ie II, ¢ pardgrafo Unico, trata do crime doloso e do crime culposo, reproduzindo o art. 15, I e IE, e pardgrafo tinico, do Cédigo Penal. Apenas uma observagdo no art. 18 do Anteprojeto. Ao tratar do crime doloso (I), o art. 18 preceitua: “quando o agente quis o resultado ou assumiu © risco de produzi-lo”. Entendemos melhor a seguinte redacio: “quando o agente quis 0 fato ou assumiu o risco de produzi-lo”. A segunda redagdo, aqui proposta, é mais aberta A discussio doutrinaria, porque, ao dizer-se “resultado”, toma-se a posicao doutrindria de que todos os crimes tém resultado, e, dizendo- se “fato”, deixa-se a questo de crimes com ou sem resultado aos cuidados da doutrina, doutrina esta que é 0 certo e tinico lugar daquela questio. Uma novidade surge, porém, no Anteprojeto, no que respeita 4 disciplina do crime doloso ¢ do crime culposo. A novidade encontra-se no art. 19, sob a rubrica agravagdo pelo resultado. Trata-se de velha orientagao doutrindria, que busca, agora, penetrar 0 Cédigo Penal. Alguns comentarios merece 0 art. 19 do Anteprojeto. Tentemos fazé-los, O resultado morte, por exemplo, pode ser produzido por agao dolosa de matar — animus necandi —, ou por acdo culposa (homicidio culposo). Acon- tece que a morte pode ser resultado de uma aco dolosa de lesio corporal — animus laedendi, Na terceira hipétese, alguns autores apontam uma duplicidade de resultados e uma duplicidade de elementos subjetivos: dolo pela lesio ¢ culpa pela morte. Deparamos com a teoria do crime misto de dolo e culpa, que encontrou acolhida no Cédigo sardo e no Gédigo toscano, ¢ no atual “édigo alemio: “§ 18 — Schwerere Strafe bei besonderen Tatfolgen. Kniipft das Gesetz an eine besondere Folge der Tat eine Schwerere Strafe, so trifft sie den Tater oder den Teilnchmer nur, wenn ihm hinsichtlich dieser Folge wenigstens Fahrlissingkeit zur Last falt” (Quando a lei comina uma pena mais grave a um especial resultado do ato, esta sd se aplica ao autor ou ao participe se produziu o resultado ao menos culposamente). imos a doutrina que explica o resultado agravante como exemplo de responded objetiva entro‘do direito penal, porque nos parece ineonoe- bivel que uma sé ago possa ser, a0 mesmo tempo, dolosa e culposa, e também que 0 tesultado menos grave é absorvido pelo resultado mais grave 'Everarpo DA Cunt Luna, “Os crimes qualificados pelo resultado”, in Ciéncia Penal — 3, Bushatsky, Sado Paulo, 1974, pp. 285-315). Sucede que estamos diante de uma doutrina que vem triunfando e penetrando as legislac6es, em que pese As sérias crfticas que vem sofrendo da parte de um pequeno e seleto numero de autores alemfes. (Consulte-se, a propésito, Jescurcx, Tratado de Derecho Penal, Parte General, trad. de Mm Pure y Munoz Conpz, volumen segundo, Bosch, Barcelona, 1981, p. 786, especialmente a nota 45.) E a doutrina esta mresente no Anteprojeto Fredagio inal), art. 19, sob a rubrica agravagdo pelo te : “Pelo resultado que agrava especialmente a pena, sé responde o agente que o houver causado, ao menos, culposamente.” R. Inf. legisl. Brasilia a.-19 n. 75 jul./eet. 1982 261. Nao adianta, neste momento, gastar latim com objegdes. Tudo indica que © art. 19, acima transcrito, incorporar-se-4 ao Cédigo Penal. O mais pritico, portanto, é tentar dizer como deve ser ele interpretado e aplicado. Vejamos. Em primeiro lugar, a culpa referente ao resultado mais grave, indicada no art. 19, no deve ser considerada como a culpa do crime culposo, isto 6, como elemento constitutivo subjetivo do crime, mas como circunstancia judicial subjetiva, prevista no art. 42 do Cédigo Penal sob a denominagao de “padagio da culpa”. Pode, & primeira vista, parecer estranho falar de “gradagio de culpa” em crime doloso. As coisas se aclaram, todavia, desde que seja exigida, para a fixagio de responsabilidade pelas conseqiiéncias do crime, a previsibi- Iidade dessas jiiéncias. O Anteprojeto (na redagio final), no art. 59, sob a rubrica fixagdo em substitui_as expressées “intensidade do dolo” e “gradagio da culpa”, do art. 42 do Cédigo Penal, pelo termo “culpabilidade”, entendida a culpabilidade, a nosso ver, como circunstancia judicial subjetiva para o fim da aplicagéo da pena. Em segundo lugar, deve-se oferecer & teoria da equivaléncia das condigées, para os casos de agravagdo especial pelo resultado em estudo, o corretivo da teoria da causalidade adequada. Para produzir o resultado morte, causa adequa- da, de regra, é uma paulada na cabeca, e causa inadequada, por exemplo, uma lesdo pequena e rasa no dedo da mao. Em terceiro lugar, e isto para evitar o perigo de tratamento desigual na aplicagdo da justiga aos casos concretos, deve-se exigir, como “grau de culpa- bilidade”, a “culpa grave”, a “imprudéncia temerdria”. Em quarto e iltimo lugar, a agravagio da pena, prevista em varios artigos do Cédigo Penal, deve ser modificada em favor do abrandamento. A pena, por exemplo, de quatro a doze anos de reclusio, para a lesio corporal seguida de morte, é indefensdvel. O critério do Cédigo Penal de 1969 é aceitével, podendo servir de modelo a futura reforma da Parte Especial do Cédigo Penal. 5 — Erro de fato © art. 20 do Anteprojeto, sob a rubrica erro sobre elementos do tipo, trata do erro de fato desta maneira: “O erro sobre elemento constitutivo do tipo legal de crime exclui © dolo, mas permite a punigao por crime culposo, se prevista em lei.” Duas observagSes a fazer. A primeira quanto & substituiggo do termo fato, tradicional, pelo termo tipo, modemo. O termo tradicional é o preferivel, no s6 porque tradicional, mas também porque o termo modemo tipo, talvez mesmo por ser moderno, & passivel, em doutrina, de miltiplas interpretagdes. Por tipo ora se entende o conjunto dos elementos objetivos do crime; ora os elementos objetivos, com algumas referéncias subjetivas € valorativas; ora o conjunto de todos os ele- mentos constitutivos do crime, objetivos © subjetivos, fatuais e valorativos. Sem 262 R. Inf. fegisl. Brasilia a. 19 0, 75 jub/eet. 1982 meneionar que alguns doutrinadores falam de “tipo de erro”, “tipo de justifi- cagdo” etc, E termo, portanto, que deve ser reservado A doutrina. Por iltimo, veja-se que 0 proprio Cédigo alemio, no pardgrafo 16, nfo usa, como rubrica, a expressao erro de tipo, que seria Irrtum iiber Tatbestand, mas a expressio erro sobre circunstdncias do fato — Irrtum tiber Tatumstinde, O termo Tatbe- stand, aliés velho termo da legislagio alema, talvez inspirada pela linguagem iornalistica, 6 surge no corpo do artigo 16. ‘A segunda observago, quanto & redagio do art. 20. O emprego do verbo permitir foi infeliz, Sabendo-se que as normas juridicas sio imperativas, proi- bitivas e permissivas, é evidente que a punigio de um fato como crime emana de uma norma proibitiva e jamais permissiva. A expresso, contida no art. 20, “o erro permite a punigao por crime culposo” padece de dois equfvocos incon- tomnAveis, Primeiramente, 0 que permite nao 0 erro, mas a norma, Em segundo lugar, a permissio contém a idéia de concessio, de faculdade, por isso é que, no direito penal, so normas permissivas, por exemplo, as normas da exclusio de criminalidade, como legitima defesa, estado de necessidade etc. Em sintese, uma norma que incrimina um fato ou é imperativa, ou é proibitiva: jamais permissive. A impropriedade técnica, apontada, pode ensejar, na pritica, a seguinte interpretagio: faculta-se a punigio do erro culposo. Absurda nao a interpretagdo, mas a possibilidade dela. Na redagio final, ao caput do art. 20 seguem-se trés pardgrafos: o primei- 10, sob a rubrica desoriminantes putatioass © segundo? sok a. rubriva erro por terceiro, que reproduz o caput do art. 17 do Cédigo Penal, na parte referente as justificantes putativas, bem como os §§ 1? e 2° do artigo referido; e o terceiro, que reproduz o art. 17, § 3°, do Cédigo Penal, sob a rubrica erro sobre a pessoa, Nao houve modificagdo na estrutura das frases dos pardgrafos, mas na ordem delas: o § 1° do art. 20 do Anteprojeto conser- vou, na sua segunda parte, o § 1? do Cédigo Penal, e acresceu-se da disci- plina das descriminantes putativas, Por que alterar o art, 17, caput, e §§ 19 © 2°, do Cédigo Penal, e alterar, data venia, para pior? A nosso ver, 0 artigo e pardgrafos referidos devem continuar como esiio no Cédigo Penal: erro de fato (art. 17), erro culposo (§ 19), erro determinado por terceiro (§ 2%) e erro sobre a pessoa (§ 3°). Alén de tudo, com a conservacio sugerida, faz-se economia de palavras. 6 — Erro de direito ‘A modificagao mais importante ao Cédigo Penal, contida no Anteprojeto, éa do art. 21 e pardgrafo tinico, sob a rubrica erro sobre a iicitude Bo fato, pela qual se introduz, em nossa legislaggo penal comum, a relevancia do erro le direito. Trata-se de uma solugéo de transagdo e transigiio, que deve ser louvada em sua esséncia e finalidade. Esta a redagio final; “Art, 21 — O desconhecimento de lei é inescusivel. O erro sobre a ilicitude do fato, se inevitével, isenta de pena; se evitavel, poderd diminui-la de um sexto a um tergo. R. Inf. fegisl. Brasilia a. 19 n. 75 jul/set. 1982 263 Pardgrafo viico — Considera-se evitével o erro se o agente atua ‘ou se omite sem a consciéncia da ilicitude do fato, quando lhe era possivel, nas circunstincias, ter ou atingir essa ci ” © art. 21 do Anteprojeto (na redagio final), acima transcrito, inspirou-se no § 17 do Cédigo alemie. A Tubrica, no Cédigo alemao, & erro de proibigdo — Verbotsirrtum —, que o projeto traduz, livremente, por erro sobre a ilicitude do fato. Tradugo livre por tradugio livre, por que nao manter-se a expressio tradicional erro de direitoP Veja-se que a versio argentina da Parte Geral do Cédigo Penal alemio, de autoria de Jouto Cisan Espinoza (Depalma, Buenos Aires, 1976), traduz a rubrica do § 17 — Verbotsirrium — por error de derecho, mantendo, assim, a frase romapista, a frase da latinidade e da romanidade. Agora, no do artigo, a expressio “erro sobre a ilicitude do fato” merece aplauso. Julgamos preferivel o termo ilicitude ao termo anti- juridicidade, antijuricidade, injuricidade, por, no minimo, quatro razSes: 18) é © termo tradicional, na linguagem do direito brasileiro; 2*) é o termo que unifica, lingiiisticamente, um sé e tnico conceito para todos os ramos do direi- to; 3%) & o termo que corresponde, no direito penal, 4 antiga expressio iicito penal; e 4) 0 termo de mais facil promincia e de ortografia defini- tivamente fixada. Sucede, porém, que o Anteprojeto, logo na primeira parte do art. 21, faz um acréscimo desnecessirio ao espirito do artigo referido: “O desconhecimen- to da lei é inescusdvel”. Dizemos “acréscimo”, porque essa inescusabilidade do desconhecimento da iei nio figura no art. LT Bo igo alemio; “Felt dem Tater bei Begebung der Tat die Einsicht, Unrecht zu tun, so handelt er ohne Schuld, wenn er diesen Irrtum micht ver- meiden konnte. Konnte der Tater den Irrtum vermeiden, so-kann die Strafe nach § 49 Abs. gemildert werden” (Se no momento do ato, falta, por erro inevitavel, a consciéncia do ilfcito, exclui-se a culpabi- lidade do autor, Se o autor podia eviter a erro, a pena pode ser atenuada conforme o § 49, n° 1.) Nem podia figurar, Borque 0 tz0 inevitivel sobre a ileitude do fato impli ca, necessariamente, o inevitavel desconhecimento da lei, seja por simples igno- rAncia, seja por errada compreensio. Deste modo, a segunda parte do art. 21 do Anteprojeto — “O erro sobre a ilicitude do fato, se inevitavel, isenta de pena” — anula, irremediavelmente, a primeira parte do artigo referido e mais ‘uma vez transcrita: “O desconhecimento da lei é inescusdvel.” E também porque, se o erro evitdvel sobre a ilicitude do fato ndo isenta de pena, intei- ramente desnecessitio é dizer que “o desconhecimento da lei € inescusivel”. Toda a confusio provém de que o art. 16 do Cédigo Penal — “A ignorin- cia ou a errada compreensio da lei niio isenta de pena” — considera inescusé- vel tanto « desconhecimento da lei sob 0 aspecto formal, isto é, o preceito legal, como o desconhecimento da lei sob 0 aspecto material, isto é, a ilicitude do fato. Para abrandar 0 férreo comando, porém, é que doutrina e jurisprudéncia dissociam, as vezes, os dois aspectos de uma sé ¢ ‘mica realidade juridica, A R. Inf. logicl. Brasilia a. 19 0. 75 julfeet, W982 dizendo, por exemplo, que a ignordncia da lei no isenta de pena, mas a cons- ciéneia “do ilcto integra o dolo. Puro expediente pritico para, fugindo da letra do Cédigo Penal, melhor servir a justiga material, mais nada. Sucede, ainda na matéria do erro de direito, que 0 Anteprojeto (redagio final), no elenco das circunstancias atenuantes, inclui, entre tais circunstdncias, “o desconhecimento da lei” (art. 65, II). A nosso entender, aqui o desconheci- mento da lei implica o conhecimento da ilicitude, porque, se assim nio fora, teriamos 0 erro de direito evitavel, ou inevitavel, j4 previsto no art. 21. Deste modo, o art. 65, II, do Anteprojeto conduz A seguinte interpretacgéo: quando. © agente, ou omitente, pratica o fato com a consciéncia da ilicitude e sem er a lei que o define como ilicito, a pena deve ser atenuada. Num pats, como 0 Brasil, de analfabetismo crénico reinante, a regra é o desconhecimento da lei, ou do artigo de lei, Entao, o reconhecimento da circunstancia atenuan- te, em estudo, passa a ser a regra geral. Pelo menos, sob o ponto de vista peda- ico, nfo somos favordveis A presenga de tal circunstincia, porque a finali- fe educativa da lei deve visar, em primeiro lugar ‘a formar, nos espiritos, 0 tespeito pelo direito, a0 conhecimento material, daquilo que deve ou nao deve ser, O conhecimento da lei, em relagao ao conjunto das pessoas, ocupa o segun- do plano, ressalvada a classe dos especialistas cm leis, ou seja, os homens de direito, que tem a obrigagdo, por dever profissional, de conhecer os meandros legais. Como, porém, assunto puxa assunto, e as palavras vivem rcalmente, o conteiido da circunstancia atenuante, em estudo, sugere-nos nao outro cami- nho, mas 0 mesmo caminho apontado, com distancia diminuida. Sabe-se que, muitas vezes, o agente, on o omitente, pratica o fato com a consciéncia de sua ilicitude, conhecendo que aquilo que faz “néo esta direito”, nfo é aprovado pela sociedade em que vive, e, contudo, age, ou omite, na plena conviegio de gue mio est praticando um crime, alguma coisa que desperta a policia e “da cadeia”. Com a convicgio de que esta praticando uma simples irtegu- laridade, digamos, uma simples irregularidade administrativa. Assim, por exem- plo, o funcionario publico que permanece no exercicio do cargo apés com- pletar os setenta anos de idade, e que, embora sabendo que a Constituicado nfo © pemmite, fica realmente surpreendido quando alguém o informa que aquela sua permanéncia indevida no cargo, além de ofender o interesse da adminis- tragio, constitui o crime de exercicio funcional ilegalmente prolongado, pre- visto na segunda parte do art. 324 do Cédigo Penal. Uma circunstancia assim deve atenuar a pena, razio pela qual sugerimos que se dé ao art. 65, II, do Anteprojeto a seguinte redagao: rt. 65 — Sto circunstancias que sempre atenuam a pena: I — omissis; II — 0 desconhecimento da lei penal.” Um segundo acréscimo existe no caput do art. 21 do Anteprojeto, que reputamos feliz: ¢ a fixagdo do quantum para o efeito da diminuigio da pena — um sexto a um tergo, quando o erro é evitdvel. Feliz a fixagio; o R. Inf, legis. Brasilia a. 19 n. 75 jul./set. 1982 265 quantum, nio tanto, Por que nao fixar os limites da diminuigao, ou redugio, da pena, na hipétese em estudo, de modo a unificar as redugdes especiais da pena contidos no Titulo II e Titulo IIL, Parte Geral, do Cédigo Penal? Ou seja, um a dois tercos (art. 12, pardgrafo tnico; art. 20, § 29; art. 22, pardgrafo ‘unico, e art. 24, pardgrafo tnico)? Veja-se que, mesmo assim, a pena é muito mais grave do que a que sancionaria o crime culposo. E o erro evitdvel é, na esséncia, um erro culposo. O pardgrafo tnico do art, 21 do Anteprojeto é também, com referéncia aa Cédigo alemao, um acréscimo. Tivemos a honra de colaborar, através de correspondéncia, com o Coordenador da Reforma Penal, o eminente Professor e Procurador da Repiblica Francisco pr Assis Touepo, na redagdo do pard- grafo referido, Depois, verificamos ser desnecesséria uma definigio legal da evitabilidade, Evitdvel é tudo que nao for inevitdvel: tentar conceituar, na lei, a evitabilidade & como tentar conceituar, também na lei, a imprudéncia, ou a negligéncia. A definigGo, ou a fenomenologia, da evitabilidade deve ser tarefa da jurisprudéncia e da doutrina, Além do mais, suprimindo-se o pardgrafo nico do art. 21 do Anteprojeto, ganha-se em economia de linguagem. 7 — Coagéo irresistivel e obediéncia hierdrquica O art, 22 do Anteprojeto, que disciplina a coagio irresistivel e a obedién- cia hierarquica, reproduz o art. 18 do Cédigo Penal, Trata-se de causas de exculpagio, além das quais nada se pode acrescentar, a nfo ser, na exclustio da ilicitude, implicito no art, 23, pardgrafo tmico, do Anteprojeto, 0 excesso sem dolo e sem culpa, ou seja, a exclusdo da ilicitude subjetiva (estado de necessidade subjetiva, legitima defesa subjetiva, estrito cumprimento de dever legal subjetivo ¢ exercicio regular de direito subjetivo). A chamada inexigibili- dade de outra conduta, modernamente, como demonstra Jesciecx, na obra acima citada, II, pp. 686-889, no pode ser entendida como causa geral de excul- pagio supralegal, constituindo, no méximo, para certas hipéteses, um principio regulativo, 8 — Exclusdo de ilicitude No art, 23, IMI, do Anteprojeto, em lugar do “em estrito cumprimento do dever legal”, deve-se pér “em estrito cumprimento de dever legal”, assim como esta dito “no exerefcio regular de direito", e nfo “no exercicio regular do direi- to”. Além da unificagio da linguagem das duas frases, 0 emprego da preposi- do de de melhor técnica do que o emprego da contragao “do”. Sabe-se que a riqueza de sinonimia é virtude da prosa artistica. Na lin- guagem da lei, porém, a multiplicidade, ou a dualidade, de sindnimos & desa- conselhavel nio sé estilisticamente, como porque pode trazer dificuldades para a boa interpretagio. Deste modo, quando o ‘ojeto, no art. 94, que dis- ciplina 0 estado de necessidade, preceitua “Considera-se em estado de neces- sidade”, deve empreger o mesmo verbo considerar no art. 25, que disciplina a 266 R. Inf, legisl. Brasil 19 nm. 75 jus ima. defesa, dizendo, em lugar de “Entende-se em legitima defesa”, “Con- a-se em legitima defesa”. Por que preferir considerar a , quando ambos os verbos podem ter a significago de julgar? Porque “considera-se em” 6 mais eufénico do que “entende-se em”, frase esta em que o som /en/ ouve- se, ecoando, trés vezes seguidas, sem falar na subseqiiente palavra quem. Aliés, como se sabe, a dualidade sinonimica encontra-se no Codigo Penal, pelas pa: Javras que iniciam os arts. 20 ¢ 21. Do mesmo modo que na exculpagio, néo existe na exclusio de ilicitude justificagio supralegal. A excludente do exercicio regular de direito abrange todas as possiveis hipéteses de exclusao de ilicitude nao abrangidas pelo estado de necessidade, pela legitima defesa e pelo estrito cumprimento de dever legal. O direito penal é um hortus clausus que esté aberto, no campo da licitude, ou da justificagdo, a todos os ramos do direito, ou melhor, ao direito como um todo. 9 — Da imputabilidade penal A imputabilidade penal ocupa o Titulo III, Parte Geral, do Anteprojeto, compreendendo os arts. 26, 27 ¢ 28. © art. 26 do Anteprojeto (na redagao final) reproduz 0 art. 22 do Cédigo Penal, substituindo, porém, a rubrica Irre: por Inimputdveis, e, no caput, 0 adjetivo criminose por iicito, melhorando a redagéo vigente. O parégrafo unico do art, 26 do Anteprojeto (na redagao final) também reproduz 0 parégrafo Ynico do art. 22 do Cédigo Penal, substituindo igual- mente a tubrica — em ver de redugdo facultativa da pena, coloca redugdo de pena — e substituindo também o adjetivo criminoso por ilicio, melhorando a redago vigente. No parigrafo em estudo entendemos que a frase “nio possufa, ao tempo da acio ou da omisséo, a plena capacidade de entender © cardter ilfcito do fato” etc. (redagdo idéntica & do Cédigo Penal) deve ser substitufda pela frase “no era inteiramente capaz de entender o cariter ilfcito do fato” etc. E isto porque a capacidade, ou incapacidade total ou parcial, de entendimento e determinagio, a rigor, no se possui. Deste modo, alguém é, ou era, capaz ou incapaz, Trata-se de uma qualidade, anente ou transitéria, da propria pessoa, E é por isso que a imputabilidade é, ao mesmo tempo, pressupostot e clementot da culpabilidade. Pressuposto, porque pode existir antes, ao tempo e depois do crime; elemento, porque existe na dindmica do crime, enquanto o crime é executado, Teremos, entio, no art. 26, que alguém “era inteiramente incapaz”, e, no pardgrafo tnico, que alguém “nio era inteiramente capaz”, Estes argumentos valem para os §§ 1° e 2° do art. 28 do Anteprojeto, sobre o qual temos algo a sugerir, logo depois de ligeira apreciagao do art, 27, sob a rubrica menores de J8 anos, que substitui o termo irresponsdveis pelo termo inimputdveis, Lé-se, no art. 27 do Anteprojeto, que “os menores de dezoito anos sio penal- mente inimputéveis”. A nosso ver, a Tigor, esses menores no sio “penalmente R. Int. legis. Brasilia a. 19 n. 75 jul./set. 1982 267 inimputdveis”, porque os seus atos, materialmente tipicos, nio sio sancionados com medidas juridico-penais, mas ‘com medidas de natureza pedagégica, edu- cativas ou reeducativas. Diz-se, com razio, que os menores estéo fora do Direito penal. Mas, se sdo considerados inimputAveis, sdo trazidos para dentro do Direito penal, porque a imputabilidade é uma categoria juridico-penal. Com © apoio de tais argumentos, entendemos que o termo “irresponsveis”, do art. 23 do Cédigo Penal, é de técnica mais precisa do que o termo “inimpu- taveis”, do art. 27 do Anteprojeto. Voltemos ao art, 28, precisamente ao inciso II, que, sob a rubrica embria- guez, preceitua, repetindo o inciso II do art. 24 do Cédigo Penal, o que segue: “Art, 28 — Nao excluem a imputabilidade penal: 1 ~ omissis; U-a cmbriagucr, yoluntaria ou culposa, pelo alcool ou substdn- cla de efeitos andlogos.” ‘A mbriaguez completa, voluntiria ou culposa, 6 um exemplo de respon- sabilidade objetiva no Tireito penal e que até a data presente continua incon- tomdvel. Aqui, cede o dogma da culpabilidade. ‘A seguranca, por excegdo, sobrepéc-se 4 justica material, Deparamos com uma antinomia no campo do Direito penal. Os Anteprojetos Huncma e Soter procuraram vencé-la, mas lutaram em vio. Da luta, porém, algo péde resultar. Sugerimos que o crime praticado em estado de embriagnez culposa seja sancionado com pena reduzida. Guardando a unidade das redugdes de pena, contidas nos Titulos II e III, Parte Geral, do Anteprojeto, a redugZo ial da pena, na embriaguez culposa, pode ser de um a dois tercos. Se considerada muito avangada, achamos justa a redugiio de um sexto ¢ um terco, a semelhanca. da “participacio de menor importincia”, disciplinada no art. 29, § 1°, Titulo IV, do Anteprojeto, E se, porventura, o espirito conservador predominar sobre o espirito de vanguarda, que seja criada, pelo menos, uma nova circunstincia legal atenuante, a figurar no elenco do art. 65, que pode ser redigida assim: “Art. 65 — Sdo circunstancias que sempre atenuam a pena: I — omissis; II — omissis; III — ter 0 agente: a) omisss; b) omissis; ¢) omissis; d) omissis; 2) omissis; f) cometido o crime em estado de embriaguez completa e culposa.” 268 R. Inf, legisl. Brasilia a, 19 nm, 75 jul./eat. 1982 Por sua yez, deixaré de ser circunstancia legal agravante, & semelhanga do. que aconteceu, no passado, com a premeditagao, o “ter o agente cometido © crime em estado de embriaguez preordenada”. A embriaguez preordenada aria a funcionar, juntamente com a embriaguez voluntiria, como circuns- fancia judicial, 10 — Do concurso de pessoas O concurso de pessoas ocupa o Titulo IV, Parte Geral, do Anteprojeto, compreendendo os arts, 29 a SI. TTemos apenas uma sugestio a fazer. B que o art. 29 do Anteprojeto reproduza, fielmente, o art, 25 do Cédigo Penal: “Act, 29 — Quem, de qualquer modo, concorrc para o crime incide nas penas a este cominadas.” A frase final “na medida de sua culpabilidade”, colhida no Cédigo alemao, nao tem por que figurar no Cédigo Penal. Vejamos. Tomamos a liberdade de repetir, aqui neste trabalho, as palavras finais de nosso trabalho anterior, intitulado “O erro de direito € o concurso de pessoas no Anteprojeto de Cédigo Penal de 1981”, e apresentado e debatido no Semi- nario sobre a Reforma Penal, realizado em junho de 1981, na Faculdade de Direito da Universidade Federal de Goiés, por iniciativa do Professor Lichvio Lat. Bannosa(*), Com as referidas palavras finais, encerramos o presente trabalho, A cléusula “na medida de sua culpabilidade”, do art. 29 do Anteprojeto, foi inspirada pelo § 29 do Cédigo alemio: “(...) Selbstindige Strafbarkeit des Beteiligten, Jeder Beteiligte wird obne Riicksicht auf die Schuld des anderen nach seiner Schuld bestraft” (Penalidade pessoal do participe. Sem conside- raglo pela culpabildade dos demais partiipes, cada um deles sera. punido segundo a sua propria culpabilidade). Perguntamos, agora: qual o funda- mento do § 29 do Cédigo Penal alemao, acima transcrito? ° afo em exame, que reproduz o espfrito da reforma penal alemi de wee um especial fandamento, safastar diivida, diante da lei, entre acessoriedade estrita e limitada. E, ao fazé-lo, deu preferéncia A acessorie- dade limitada, ou seja, aquela que exige, para a existéncia da acessoriedade, no que a acio do autor principal seja culposa, mas que seja tipica e antijuri- dica, pelo que representa, dentro do espirito da reforma penal alema de 1975, um reforco dos §§ 26, 27 © 28 (ScHNSNKE-ScundpER, Strafgesetzbuch Kommen- tar, Miinchen, 1976, pp. 330 e ss, e 376; Lackner, Strafgesetzbuch mit Erldin- terungen, Miinchen, 1978, p. 141). Dessa forma, se 0 autor ou co-autor (*) Trabalho publicado na Revista de Injormago Legislative n° 72, outubro/dezembro 1981, p. 173, R. Inf. legisl. Brasilia 2, 19 n. 75 jul/set. 1962 269 a sem culpabilidade, os instigadores e os cimplices serio punidos sua culpabilidade. E ge 0 autor age sem culpebilidado, os co-autotes (so exis tirem), os instigadores e os ctimplices serio castigados por sua culpsbilidade, Ora, se 0 jeto de 1981, dentro de nossa tradigio legislativa , adota férmula unitisia do concur, que equipara, em abstrato, para fim de ig4o, todos os que concorrem no crime, admitindo, porém, em concreto, ferentes graus de pena, dentro dos mites legais do minimo e mAximo, para cada um dos participes na lade de sua soal, icly ena um eons contra dsm psa preenn 2 acessoriedade limitada? Pensamos que nenhuma. E isto pela simples razo de que 0 Anteprojeto mantém a doutrina do concurso unitério, Pode-se dizer que, no Anteprojeto, a cléusula “na medida de sua culpa- bilidade” funciona néo como fixacio, na lei, da acessoriedade limitada, mas como reforgo, no concurso unitdrfo, do prinefpio de que a equiparacdo dos partcpos temporada pela indvadualagto dt pens SO rnesino soo pods dae em relagio ao Cédigo Tipo para a América Latina, dose a “medida da culpabilidade” como “medida de valoragiio” e como medida do que “exista de subjetivo no objeto valorado” (Ennrqve Ramos Mgyta, “El incipio de Ia culpabilidad en la legislactén penal argentina’, fn Jomnadas Internacionales de Derecho Penal Argentino, Buenos Aires, 1973, p. 146). Essa possivel resposta merece dois reparos. Vejamos. Em primeiro lugar, no Cédigo Penal alemao, como dissemos acima, o fun- damento primeiro do § 29 é estabelecer 0 princfpio da acessoriedade limitada, segundo a qual rege o principio da indey cia da culpabilidade, Deste modo, se 0 referido pardgrafo funciona como fundamento da medida da culpabilidade, © faz combinado com os pardgrafos que disciplinam a aplicagio da pena a autores, instigadores e clmplices. Observe-se a essencial ligagao do § 29 néo s6 no que respeita a acess ada, mas também mo que toca & medida da culpabilidade, com os parigrafos que disciplinam a instigacio, a cumplicidade ¢ as especias caract Pesos (2%, 27, 28), (Jouannes Wessets, Strafrecht Allgemeine Teil, Hei eberg Kasatuhe, 1978, pp. 76-77 e 108; Hans-Hewricu Jescuscx, Lehrbuch des Strafrechts Allgemeiner Teil, Berlin, 1978, pp. 380-383 e 537-538, Em segundo lugar, pensamos que 0 preceito, contido no art. 30 do Ante- projets, sobre a incomunicabilidade das circunstincias de cardter pessoal, bem como o preceito do art. 62, sobre agravantes no caso de concurso de agentes, e o elenco de todas as circunstAncias @ judiciais do Antepro- jeto dispensam uma referencia especial 3 culpabilidade de cada pertici- pe porque a culpabilidade 6, em diltima instincia, uma circunstancia de,cardter pessoal Diante das razées, acima oxpostas, sugerimos 2 no art, 29 do Anteprojeto, da cl4usula “na medida de sua culpabil ", permanecendo a redagiio do art. 25 do Cédigo Penal. A doutrina do concurso unitério dispensa @ présenga na lei da cléusula referida, cliusula que pode complicar, ao invés de melhor esclarecer, a drdua matéria do concurso de pessoas. m0 R. Inf. legisl. Brasilia a. 19 0, 75 jut/set. 1982

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