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A RaZzao e€ 0 VOTO DIALOGOS CONSTITUCIONAIS COM LUIS ROBERTO BARROSO Oscar Vilhena Vieira Rubens Glezer ORGANIZAGAO AP FGV I ron” Contramajoritario, representativo e iluminista: 0 Supremo, seus papéis e seus criticos Lu’s Roberto Barroso | Introdugao ‘Meu primeiro sentimento ao escrever este posficio &0 de agradecer ao profes- sor Oscar Vilhena Vieira pela iniciativa deste livro, Ao receber meu artigo “A razio sem voto: 0 Supremo Tribunal Federal e 0 governo da maioria’, com 0 Pedido de que o encaminhesse para eventual publicaglo em uma prestigiosa revista, Oscar teve a ideia de organizar este livro, Na sequéncia, elaborou uma lista de colaboradores de primeira linha — com uma ou outra sugestéo mina —, conseguiu que cada um enviasse previamente um texto e comandou um memoravel semindrio de todo o dia na Escola de Direito da Fundacao Getulio Vargas de Sio Paulo, Na ocasido, pude dialogar e debater com todos 0s partic- pantes desta obra, num debate franco, aberto eamistoso, Fcium dia de deleite intelectual e de grande proveito pessoal. Guardo na meméria e no coragao as. discussdes de alto nivel em quea critica sincera — ora favorivel, ora divergen- te — estreitou laos de fraterna amizade académica, Oscar é uma dessas pes- soas diferenciadas, que além de brilhar com luz prépria, lamina 0 caminho ara os outros. Sua integridade, gentileza e modéstia dao um toque de classe _ seriedade cientifica e consisténcia te6rica da sua producio académica. 1 Resposta as crticas ‘Na concepgéo original desta obra, eu deveria, apds a leitura dos textos € da realizagio dos debates, apresentar uma resposta is posig6es divergentes 365 ‘a RazKO £ 0 VOTO: 01.0605 CONSTTUCIONAIS COM LUIS ROBERTO BARROSO langadas pelos participantes. Talvez, em algum lugar do futuro, seja 0 caso de fazé-lo, Por ora, no entanto, pareceu-me proprio deixar aos leitores a pos- sibilidade dialética de avaliar diferentes visdes, sem que 0 autor do texto que originou 0 debate se arrogue o privilégio de dar a ttima palavra. De todo ‘modo, embora abdicando da resposta individualizada aos questionamentos, apresento um comentério geral. Para tanto, extra do conjunto notével de trabalhos que integram este livro trés criticas recortentes & minha visio dos papéis do Supremo Tribunal Federal: 1. ade que eu fornego uma legitimagio mével e aprioristica para qual- quer atuago do Tribunal; 2. orisco democritico de o STB se arvorar em representante da sociedades 3, a impossibilidade de prestagio de uma jurisdicio constitucional de qualidade, & vista do volume de processos apreciados pelo Tribunal. Sdo criticas bem embasadas, que merecem ser enfrentadas com seriedade € rigor cientifico, Nao farei uma defesa analitica de folego das minhas teses, j@ longamente expostas no meu artigo. Porém, alguns breves comentarios podem animar o debate e trazer novas reflexes 20s letores. A primeira critica é a de que meus argumentos transformariam o ST em uum alvo mével, que nunca pode ser atingicio pela critica democratica, jé que Ihe conferi uma legitimidade aprioristica, isto é, “sobredeterminade’. Nessa linha, segue o argumento, se o Tribunal age contramajoritariamente — ie, contra o Congresso —, ele esta legitimado pela defesa, por exemplo, dos reitos fundamentais, Por ontro lado, se ele age no vacuo do Congreso, mas com apoto da sociedade, est legitimado por sua funglo representativa. Por fim, se ele age contra o Congreso e a opiniao publica, mas em nome de um avango civilizatério, est legitimado por seu papel iluminista, Em suma, néo erraria nunca. O argumento é engenhoso, mas a defese da minha posicéo € simples. Esses papéis — contramajoritério, representativo e iluminista — no sio fungiveis. Se 0 Tribunal desempenhar um deles, quando deveria desempenhar 0 outro, sua atuacao sera ilegitima Assim, se 0 Tribunal for contramajoritario quando deveria ter sido deferente, sua linha de conduta nao sera defensével. Se ele se arvorar em ser representative quando nao haja omissio do Congreso em atender de- 366, AESPOSTA E COMENTARIOS DE LUIS ROBERTO GAFROSO AS CAITICAS terminada demanda social, sua ingeréncia seré imprépria. Ou se ele agir ‘como vanguarda iluminista fora das situagbes excepcionais em que deva, Por excegao, se imbuir do papel de agente da histéria, nao haveré como validar seu comportamento, Para que nao haja duivida: sem armas nem a chave do cofte, legitimado apenas por sua autoridade mor, se embare- har seus papéis ou se os exercer atrabiliariamente, o Tribunal viverd o seu caso politico. Quem quiser se debrugar sobre um case de prestigio mal exercido, de capital politico melbaratado, basta olhar o que se passou com as Forgas Armadas no Brasil de 1964 a 1985. E quantos anos no sereno € com comportamento exemplar tém sido necessérios para a recuperagao da propria imagem, A segunda critica, presente em diversos dos papers, & referente 20 risco democratico, Nao deixa de ser curioso que a teoria constitucio perado suas anguistias em relagdo & dificuldade contramajoritaria das cortes constitucionais, mas que veja maiores problemas em uma atuacio represen tativa, Aqui cabem duas observacées importantes, A primeira é que o Tri- bbunal no pode se investir de uma pretensio de representagiio metafisica da sociedade, qual um Oréculo de Delfos fora de época, com as respostas certas para todas as afligdes. F necessario que estejam presentes condigBes con- retas e socialmente controlaveis de demanda social nao atendida pelo pro- cesso politico majoritério para justificar uma intervengio, A segunda & que este papel representativo — a representagio argumentativa da sociedade, na terminologia de Alexy — é eventual e necessariamente subsidiério. Por evidente, o érgio de representagao popular por exceléncia é 0 Legislativo. Portanto, aprimorat o sistema representativo € a prioridade mimero um. So- ‘mente nas suas falhas mais graves & que se justifica a representagio supletiva pelo Supremo, Nao hé troca de papéis. E mais: julzes constitucionais néo sio 0s rels ildsofos da Repiiblica de Platao, portadores da virtude e da verdade. Seu tinico poder é o do convencimento racional e moral, Se falharem nesse propésito, nada os salvard. A terceira critica diz, respeito & impossibilidade de prestacéo de uma ju- risdigao de qualidade, a vista do volume de processos. Essa talvez seja a cri- tica mais dificil de responder. Até porque, desde que ingresse. no Tribunal, vesho insistindo, em conversas internas e em manifestagdes pliblicas, na necessidade de se fazerem mudancas profundas, revolucionétias, no modo tena su- 57 | RAZKO € 0 VOTO: DIALOGOS CONSTITUCIONAIS CoM LUIS ROBERTO BARROSO ‘como o Supremo Tribunal Federal atual. A mais radical éa de que o STF nao pode admitir mais recursos extraordindrios com repercussao geral do que possa julgar em um ano, Tudo o mais, que nao tera sido selecionado, tran. sita em julgado. Também tenho proposto que a selegio dos recursos com repercussio geral seja feita por semestre, por um critério comparativo. Feita aescolha, designa-sea data de julgamento daquele processo, Por exemplo: a Repercussio Geral n® I (RG n* 1), selecionada em junho de 2016, serd julga- da na quarta-feira, dia 3 de fevereito de 2017, como primeiro caso da pauta. ARG n®2 seré julgada na quarta-feira, dia 10 de fevereiro de 2017, como primeiro processo da pauta. E assim por diante, No modelo atual, as pautas io feitas &s quintas-feiras, com dezenas de processos para serem julgados ‘na quarta e na quinta-feira seguintes, o que é uma formula péssima, Sem tempo para se prepararem adequadamente, os ministros votam com pouca reflexdo ou pedem vista. Também é procedente a critica de que 0 volume astronémico transforma o process decisério do Tribunal, em mais de 90% dos casos, em uma Corte de decisées monocriticas, ‘Na vida real, o que acontece é que os ministros ¢ o presidente fazem, de ‘modo individual e improvisado, 0 que no resto do mundo é feito de maneira institucional. Cada ministro, com seu gabinete, seleciona © que vai levar a Plenétio, cabendo ao presidente fazer a pauta. De modo que julgamentos efetivos em Plenério sio cerca 100 ou 200 processos por ano (julgamentos em lista néo contam), 0 que nao destoa quantitativamente de outros paises. Mas, de fato, o volume de processos ea pouca antecedéncia da pauta com- prometem a qualidade da atuacio do Tribunal e motivam os controvertidos pedidos de vista, apelidados, em alguns casos com justa razo, de “pe dos de vista’, De modo que os que professam essa critica podem se juntar a mim no esforco de transformar o Tribunal, reduzindo a voracidade terceiro- -mundista de tudo julgar, na crenga equivocada de que competéncia é poder, ‘mesmo que mal exercida. II Minhas ideias centrais Parece-me bem, antes de encerrat, reiterar de modo sintético algumas das ideias essenciais do meu texto. 36a el | FAESPOSTA E COMENTARIOS DE LuIs ROBERTO BARROSO AS CRITICAS 1.As trés almensées da democracia contemporénea A democracia contemporinea apresenta trés dimensGes, Na sua dimensio de entocracia representative, o elemento essencial & 0 volo €0s protagonistas sio © Congresso Nacional ¢ 0 presidente da Republica. Hi problemas diversos na dimensio representativa da democracia brasileira, sobretcdo no tocante a elei- ‘40 para a Camara dos Deputados. Nela, um sistema eleitoral proporcional e de lista aberta cria um modelo em que mais de 90% dos deputados nao sio eleitos com votacio propria, mas mediante transferéncia de voto partidaio. Nessa fr- mula, 0 eleitor nao sabe exatamente quem o clegeu ¢ o parlamentar néo sabe ‘exatamente por quem foi eleito. Como consequénecia, eleitores no tém de quem cobrar € 08 eleitos no sabem a quem prestar contas. Nac ha legitimidade de- mocritica que possa ser adequadamente satisfeila por ume equagso como essa. A segunda dimensio éa da democracia constituctonal, Para além do com- ponente puramente representativo/majoritario, a democracia € feita tam- bém, e sobretado, do respeito aos direitos fundamentais. Sao eles precon- digoes para que as pessoas sejam livres e iguais, e possam participar como parceiros em um projeto de autogoverno coletivo. Tivemos muitos avancos nessa dea; iberdade de expressio, de associagéo e de reuniio assinalam a paisagem institucional brasileira, Ao lado delas, foram agregadas conquistas importantes em temas de direitos sociais, como educacao e satide, e avancos nas liberdades existenciais, com o reforgo na protegio dos direitos de mulhe- res, negros e homossexuais, O protagonista dessa dimencao da democracia é © Judiciério e, particularmente, o Supremo Tribunal Federal A terceira dimensio da democracia contemporanea identifica a democra- ia deliberativa, cujo componente essencial é a apresentacko de razées, tendo por protagonista a sociedade civil. A democracia é nao se limita ao momen- to do voto periddlico, mas é feita de um debate piiblico continuo que deve acompanhar as decisbes politicas. Participam desse debate todas as instin- cias da soctedade, o que inclui o movimento social, imprensa, universidades, sindicatos, associagbes, cidadios comuns, autoridades etc. A democracia de- liberativa significa a troca de argumentos, 0 oferecimento de razdes e a jus- tificagio das decisdes que afetem a coletividade. A motivacio, a argumenta- 40 € 0 oferecimento de razdes suficientes e adequadas constituem, também, ‘matéria-prima da atuagZo judicial e fonte de legitimacao de suas decisées. 369 ‘»RAZRO € 0 VOTO: DIALOGOS CONSTITUCIONAIS COM LUIS ROREATO BARROSO 2.08 trés papéis do Supremo Tribunal Federal Supremas cortes e tribunais constitucionais em todo o mundo desempe- ham, a0 menos potencialmente, trés grandes papéis: contramajoritirio, representativo e iluminista, Também assim 0 Supremo ‘Tribunal Federal. O papel contramajoritario identifica, como é de conhecimento geral, 0 poder de as cortes supremas invalidarem leis e atos normativos, emanados tanto do Legistativo quanto do Executivo. A possibilidade de juizes nfo eleitos sobreporem sua interpretagio da Constituigio & de agentes pablicos elei- tos foi apelidada por Alexander Bickel como “dificuldade contramajoritari’ ‘Como assinalado, esse é um dos temas mais estudados na teoria constitucio- nal. A despeito da subsisténcia de visbes divergentes, entende-se que esse é um pape! legitimo dos tribunais, notadamente quando atuam, em nome da Constituigdo, para protegerem os direitos fundamentais e as regras do jogo democrético, mesmo contra a vontade das maiorias. Em segundo lugar, cortes constituctonais em geral, e 0 Supremo Tribu- nal Federal em particular, desempenham, em diversas situagdes, um papel representativo. ss0 ocorre quando atuam (i) para atender demandas sociais que ndo foram satisfeitas a tempo ¢ a hora pelo Poder Legislativo, (i) bem como para integrar a ordem juridica em situagdes de omisséo inconstitucio- zal do legislador. No texto, citei os exemplos da protbigdo do nepotismo, da imposigdo da fidelidade partidéria e da regulamentacio da greve no servigo piblico. Numa situago um tanto intermediéria em relagao ao papel contra- majoritirio e representativo posicionam-se as decisbes que interferem com a ‘execugdo de politicas piblicas. Nessa linha, ha julgados envolvendo o tema da concretizagio de direitos sociais, nas quais se determinam providéncias como fornecimento de medicamentos, melhoria das condiges de hospitais e esco- las, realizagio de obras de saneamento e reformas de presidios, entre outras. or fim, em situagdes excepcionais, com grande autocontengao ¢ par- cimOnia, cortes constitucionais devem desempenhar um papel iluminista, Vale dizer: devem promover, em nome de valores racionais, certos avancos civilizatérios ¢ empurrar a hist6ria. Sao decis6es que néo sio propriamente contramajoritérias, por néo envolverem a invalidacao de uma lei especficas nem tampouco sio representativas, por no expressarem necessariamente © sentimento da maioria da populagio. Ainda assim, so necessérias para 570 RESPOSTA € COMENTARIOS DE LUIS ROBEATO BARAOSO AS CRITICAS 4 protecio de direitos fundamenisis e para a superagio de discriminagées € preconceitos, Conforme registrado no texto, situam-se nessa categoria a decisio da Suprema Corte americana em Brown v. Board of Education, deste- gitimando a discriminago racial nas escolas piiblicas, ea da Corte constitu- ional da Africa do Sul, proibindo a pena de morte, No Brasil, foi este 0 caso do julgado do Supremo Tribunal Federal que equiparouas unides homoafe- tivas és unides estveis convencionais, abrindo caminho para o casamento de pessoas do mesmo sexo. Gostaria de enfatizar um iltimo ponto antes de erunciar minha con- clusio. Desde que cheguei ao Tribunal, em junho de 2013, tenho procura- do, em certos casos, estabelecer um didlogo institucionél com 0 Congresso. Embora, do ponto de vista formal, caiba a Suprema Corte a dltima palavea sobre a interpretacio da Constituicio, tal competéncia nao deve significar supremacia nem muito menos arrogdncia judicial. Em mais de um caso em que havia omissao do legislador ou vacuo decorrente da declaragio de in- constitucionalidade de alguma lei, propus uma solugao que deveria ser apli- cada a partir de 180 dias ou um ano, para que o Congresso pudesse dispor sobre a matéria durante esse tempo, se assim desejasse. A ideia ainda nio se tornou dominante, mas acho que tem tuma chance razodvel de ser adotada em algumas situagées. Conelustio © Brasil enfrenta muitos problemas que vém de longe. Conseguimos avan- ‘gar muito, mas ainda estamos atrasados e com pressa. Por essa razio, é pre- ciso ir buscar solugdes e respostas originais, fora da caixa O debate de ideias deve ser universal, mas as solugdes devem ser particulares. Nem tudo 0 que cu penso ¢ disse pode ser universalizado, Cada povo carrega a sua propria historia, as suas circunstancias ¢ os seus desafios, Porém, na frase feliz de Al- bert Einstein, “ndo podemos resolver nossos problemas pensando do mes- ‘mo modo como pensivamos quando os criamos’ Brasilia, 7 de dezembro de 2015. sm

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