You are on page 1of 21
Copyrighe © 2004 dos ators Orgericario Mary Del Priore Coorenape de cor (Cala Bassnes Prepaagto Rove Zuanet Paice ‘ue By saga de capa “Dia de Vero", Georgina de Albuquerque, 1926 Mosc Ain Hs AJ Dingemae ihe Ros Revisto LRM - Aseria Ecol Dados Ieracons de Catalogo na Pblicaro (CIP) i. ia dma no Be! Maty Dl Pre fg) Ca asd de esta 7. ~ Si al: Cone 200 log ISBN 9572462564 1. Mars Bail 2 Malbre~ Se ~ Hind. Del Pie, Mary I Bsn Ca 7.9065 cop - «1875 NW P50 Indies para exgo sitet 1 Bra Malbec: Hite Soclogia 30520981 Apoio da ARAPESE Proiide a eprodugio cor ou parcel (Osinfaores sete procesados na forma da zor Todos or dirs den edo teserados 3 Eorrona Conexr0 (Editors Pinsky Ld). Diretor editorial fie Pinky Rus Aenpat, 199 — Alto da Lapa {05083110 ~ Sip Paulo ~ sr taax: (1) 3852 5838 fax: (11) 3832 1043, SUMARIO Apresentacio, 7 Eva Tupinambé, Ronald Raminelli, 11 Aarte da sedugio: sexualidade feminina na Colénia, Emanuel Araijo, 45 Magia e medicina na Colénia: 0 corpo feminino, Mary Del Priore, 78 Homoerotismo ferninino e o Santo Oficio, Ronaldo Vainfas, 15 Mulheres nas Minas Gerais, Luciano Figueiredo, 141 Maternidade negada, Renato Pinto Vendincio, 189 ‘Mulher e familia burguesa, Maria Angela D'Incao, 223 Mulheres do sertio nordestino, Miridan Knox Falci, 241 Mulheres do Sul, Joana Maria Pedro, 278 Psiquiatria e feminilidade, Magali Engel, 322 Mulheres pobres e violéncia no Brasil urbano, Rachel Soibet, 362 PSIQUIATRIA E FEMINILIDADE Magali Engel O CENARIO Fins do século XIX: as transformacdes que a partir da década de 1850 comegaram, lenta e contraditoriamente, a se delinear nos horizontes da sociedade brasileira omnavam-se mais profundas e definidas. As perspecti- vas de reestruturagao das relagdes de trabalho em novas bases, a amplia- (620 e a complexificagdo dos espagos urbanos, a Proclamacao da Repl ‘a, entre outros aspectos, sinalizavam o advento de um novo tempo. Im- punham, de acordo com as expectativas e interesses dominantes, a formu- lagio ea execucio de novas estratégias de disciplinarizaclo e de repres- io dos corpos e mentes sedimentados, por exemplo, sobre uma nova ‘tica do trabalho e sobre novos padrdes de moralidade para os comporta- mentos afetivos, sexuais e sociais. O advento da Repdblica anunciava 0 ‘comeco de um tempo marcado pelo redimensionamento das politicas de controle social, cuja rigidez e abrangéncia eram produzidas pelo reconhe- ccimento ¢ legitimidade dos parimeiros burgueses definidores da ordem, do progresso, da modernidade e da civilizagio, Em meio 4s mudancas consolidava-se o processo de medicalizacdo da loucura, ransformando-a em doenga mental, em objeto exclusivo de uum saber de uma pritica especializados, monopolizados pelo alienista Esse interesse estava esbocado desde meados do século com a criagao da primeira insttuiglo exclusivamente destinada a recolher alienados men- tais, o Hospicio de Pedro ILA insergao da cadeira de Clinica Psiquidtrica ‘nos cursos das faculdades de medicina do Império, em 1879, criou as con- digdes para que a psiquiatria surgisse oficialmente no Brasil como um campo do conhecimento médico especializado e auténomo.? FSIQUUATAA FEDENILDADE Nao foi por acaso que os primeiros tempos republicanos assinalaram as vitrias mais expressivas dos psiquiatras brasileiros na busca obsessiva dde conquistarem para si o monopélio da tinica verdade possivel sobre a Joucura e, portanto, controlar todos aqueles que pudessem ser caprurados ras malhas cada vez mais extensas e emaranhadas da doenca mental.’ Evidenciando 0 comprometimento da psiquiatria com as politicas de con- trole social propostas pelas primeiras administragdes republicanas, o uni- ‘verso temitico privilegiado pelos especialistas brasileiros na construcio da loucura como doenca mental deixa entrever as principais areas de inter ‘venclo das estratégias normatizadoras: 0s comportamentos sexuais, as re- Jagdes de trabalho, a seguranca pUblica, as condutas individuais e as mani- festagdes coletivas de cariterreligioso, social, politico etc. Analisaremos aqui um exemplo que, mais insidioso e menos explic- to, permite cruzar todo este universo em uma Gnica imagem de perigo: a sexualidade feminina AS PERSONAGENS Tudo o que foi possivel saber de M. J., 29 anos, branca, brasileira, casada, *multipara”, provém das sucintas informagdes anotadas em sua ficha de observacio. Internada na Casa de Satide Dr. Eiras em 27 de maio de 1896, M.J. foi submetida & observacio do Dr. Vicente Maia que a diag- nosticou como histero-epiléptica. Os principais sintomas de sua doenga foram buscados pelo psiquiatra nos “antecedentes pessoais" da paciente. Revelando uma “vivacidade precoce” durante a infancia, eve suas “primei ras manifestagoes histéricas e epilépticas” aos 14 anos, quando menstruou pela primeira vez. A partir dos 21 anos, depois de terse casado, apresen- {ou *sensiveis melhoras do estado psicopatico”, revelando “extrema dedi- cacio ao marido", 20 qual, contudo, repudiaria mais tarde, abandonando 0 ‘lar doméstico” ¢ entregando-se *sucessivamente a trés homens de baixa classe”. O médico fez questio de sublinhar: “Esta infidelidade conjugal manifestava-se alguns dias antes do periodo catamenial. [..J Seus corsi- rmentos mensais desde os primeiros, muito abundantes e acompanhados de grande excitacio” ‘Nos tés primeiros dias posteriores a internaco, M. J. apresentava-se 0s olhos do médico “muito loquaz, exaltada”, relatando “em linguagem demasiado livre, 0s seus amores ¢ lamentando a auséncia do tltimo aman- te’. M. J. nao aceitou passivamente a sua reclusio e, em duas cartas en- viadas a0 marido, exigia a sua liberdade e denunciava as condigdes do estabelecimento no qual estava internada. Além disso, a punicao represen- 323 324 pusromt bas MULHERES NO Bast tada pela intesnaco nao foi suficiente para que ela mudasse seu compor- tamento. Continuando a dar livre vazio a seus sentimentos e desejos, lan- Assim, as visitas feitas ao centro espitita teriam conduzido Maria & “loucura’, tor- rnando-a “inconsciente” e ‘possessa”. Nas declaragdes prestadas na delega- cia, “ela nao ligava palavra com palavra ~ s6 dizia frases desconexas’. Pouco a pouco, no transcorrer da reportagem, eram referidos sinais cada ‘vez mais comprometedores da “aparente normalidade” de Maria, evelan- do-se no final que ha alguns anos passados, ela jf tentara matar os filhos, que foram protegidos gracas & “intervencao ripida do mari Por mais que os repérteres (até mesmo os policais) se empenhassem em desvendar as causas ocultas capazes de esclarecer a atitude de Maria, faltava-Ihes um olhar especialmente treinado para descobrir e decifrar os sais imperceptives sinais, eveladores de uma personalidade anormal. Os indicios do “estado mental patol6gico de Maria Tourinho”, observados por olhares nio-especializados, conduziriam no maximo a suspeitas que s6 poderiam ser confirmadas (ou refutadas) pelos peritos no assunto, Assim, (0s médicos Jacyntho de Barros e Miguel Salles, funcionarios do servigo ‘médico-legal da policia, foram designados para realizarem o exame de sanidade na ré. Submetendo-a a “um longo estudo”, os médicos legistas claboraram um minucioso laudo pericial que seria publicado no Boletim Policial, por se tatar de um “interessante caso” que certamente contrbui- ria “para 0 enriquecimento dos arquivos da medicina forense brasileira” Maria Tourinho foi criada por uma tia materna, porque sua mie fale- cera quando ela ainda era hem pequena. Apesar de “bastante falhos", os antecedentes familiares da paciente revelaram que seu pai tinba sido um Icoolistainveterado”; informacao fundamental para os médicos, jf que o alcoolismo era considerado como uma ‘causa... de degeneracio mental (psicopatia) e de epilepsia’. Mara seria submetida a um exame minucioso, através do qual os médicos, influenciados pelas concepgdes de Cesare Lombroso ~famoso legista e criminalista italiano e principal expoente da escola criminol6gica positiva de fins do século passado-, buscavam iden- tifcar as caracteristicas fisicas que evidenciassem e comprovassem a sua degeneragao mental. Assim, anotariam detalhadamente informagoes sobre altura, a constituicao, as orelhas, os dados antropométricos, a forga mus- cular, o cabelo, as cicatrizes, a visio, a lingua, os dentes, a sensibilidade (tail, dolorosa, 0 calor e 20 frio) e os rflexos da paciente 325 326 MISTORIA DAS MULHERES NO BRASIL Para construir 0 perfil anormal de Maria, os especialistas Barros Salles reuniram 0 maior ntimero de dados a partir dos seus “antecedentes pessoais", citeriosamente descritos no laudo. Varios fatos de sua vida pes- soal inclusive os de cunho fisioldgico- seriam atentamente observados pelas peritos como sintomas inequivocos de sua doenga: desde os 10 anos tinha fortes dores de cabeca, acompanhadas de tonturas; sua menstruacio “tardia"—a0s 14 anos~ “nunca foi perfeitamente regular’, ora ausente ora abundante, escassa ou retardada;“tinha um medo excessivo, principal- mente da escuridio”; dos 14 a0s 15 anos tinha freqiientes micgBes no leito, Segundo o depoimento da tia, embora Maria possuisse o cardter de uma criatura em geral moderada, tinha pequenas decaidas que a tomnavam incompreensivel: dubiedades, duplicidades, iregularidades ‘nas maneiras, pequenos amuos, itritagdes, que the davam as vezes uma aparéncia moral diversa da que mantinha habitualmente. De acordo com as préprias declaragdes de Maria, a principio, ela esti- ‘mava 0 marido € os primeiros tempos de casamento foram bons. Contudo, pouco depois, “aborreceu-se dele”, mesmo assim, a sua vida de casada transcorra sem incidentes graves até que, desde algum tempo, “comegou a viver em desavenga constante com 0 marido", afirmando que ele a mal- tratava freqientemente e “dava m4 educacao aos filhos". Entretanto, as acusacdes de Maria nio seriam confirmadas pelos depoimentos de sua tia, dos vizinhos e do filho mais velho do casal que, ao contrario, definiam Arthur como um excelente pai e marido exemplar, nunca tendo permitido que sua familia passasse por qualquer dificuldade material. De acordo com a noticia publicada no Correio da Manhd de 17 de julho de 1911, *o Sr. Tourinho era um assiduo serventuario e muito estimado pelos seus cole- gas e superiores, além de ser um étimo chefe de familia". De modo que 0 ‘marido de Maria reunia todas as qualidades que, valorizadas por muitos dos padrdes culturais disseminados pela sociedade da época, aproxima- vvam-no da imagem do homem ideal, bom trabalhador e provedor da fami. H4 muitos anos Maria freqiientava um centro espitita localizado na rua da Serra, em Andarai-Grande, enfrentando a oposicio do marido que, quando estava em casa, impedia que ela fosse 2s sessdes, Maria aproveita- vva as constantes auséncias de Arthur para comparecer regularmente 20 centro espirita, onde desenvolvia sua mediunidade. Os conflitos entre 0 casal teriam se agravado quando Maria tentou convencer Arthur ‘a acompanhi-la as sessdes e nas priticas espiritas’. A partir da reacio do ‘marido, ela teria comecado “a ouvir constantemente de diversos espfritos bons" que “o Tourinho era uma peste, um deménio", “uma coisa ruim" e SIQUIATRA E FEMINLIDADE ‘que, por isso, “era preciso mati-lo”. A seguranga revelada por Maria 20 confessar o crime "sem felutincia” e sem o menor sinal de arrependimento fo considerada importante para a comprovacio de sua doenca. (Os mais relevantes sinais mérbidos da paciente estariam localizados, segundo a avaliagdo dos médicos, na esfera emocional: perda da aetividade em relagao a0 marido e, mais grave ainda, em relacao aos prOpriosfilhos. Como em M. J, 0s desvios da afetividade de Maria encontravam-se intima- mente associados a uma sexualidade andmala, que se evidenciava de for- ma cada vez mais clara aos olhos atentos dos peritos. Nesse sentido, ob- servariam que, apesar de Maria ter afirmado que com o marido era “muito reservada, nao se entregando a excessos sensuais", havia nela um “fundo erético que nao raro se manifestava”. Deixando de lado as ligdes da ética ‘médica, um dos peritos chegou mesmo a alimentar certas reacdes de Ma- ria, fazendo questio de registré-las no laudo como indicios comprobatrios do erotismo desviante da observada: No segundo dia em que a examinamos, disse-nos que |...) chorara ‘com saudades suas’ nos murmurou a0 ouvido, tentando abracar-nos. Sentiase-Ihe 0 desejo de estar a $65 conosco; no correr da conversa, fem mais de uma ocasido, sem que para isso houvesse motivo, acusava © fundo sensual que estava a domini-la, Despediu-se dizendo-nos: “Gostei muito do St Perguntamos: “Mas & mesmo amor” Respondeu: ‘mais, é o comeco de uma paixio, gostei do Sr, no s6 pela beleza, ‘como pelo mais Recatada em rela 20 marido, Maria liberava seus instintos sexuais sem qualquer censura diante de um possivel amante. Seu desejo sexual, além de orientado para um objeto proibido, parecia estar completamente dissociado da finalidade reprodutora. Apesar das qualificacdes positivas veiculadas pelos jornais logo depois do crime, 0 exame mais detido ¢ minucioso dos médicos teria demonstrado que Maria no se ajustava & imagem de mae ideal, afetuosa, para quem nada era mais importante do que os flhos. Desde pequena hava revelado um gosto pelo estudo, apren- dendo as primeiras letras com faciidade antes dos 10 anos; quando moga, fazia ‘com aplicagio, pequenos estudos, guiada por seu tio afim”. Depois de casada ela continuaria a estudar "com a mesma aplicaco que antes no Liceu de Artes e Oficios’, mas pouco depois de um més teve de interrom- per os estudos porque estava grvida. O perfil de Maria ganhava fortes contornos que a dstinguiam da maioria das mulheres de sua €poca. Talvez, profundamente frustrada, viu-se impedida de prosseguir os estudos para Cumprir 0 tinico papel que a sociedade Ihe destinava: ser mae. 327 328 HISTORIA DAS MULHERES NO BRAS Maria manifestava um comportamento ativo, expressava seu desejo om todas as letras. Quem sabe nao se tratasse de uma mulher para quem © projeto de estudlar era mais importante (ou mais urgente) do que o de tomnar-se mae, Na avaliacao dos médicos, os modos de ser diferentesde Maria a teriam conduzido ao crime, sendo, pois, aspectos reveladores de ‘um raro caso de degeneracao mental em cujo terreno psicopatico a histe- ria sobreleva”. No final do laudo pericial, a personalidade histérica apresentava-se completamente definida: alucinagdes de sensibilidade auditivas, visuais e olfativas; ptialismo; sugestionabilidade; indiscreto fundo erotico; enfraque- cimento da atengio; pequenas falhas de meméria reprodutiva; profunda perversio da afetividade que, ‘na observada, atingia ao ponto de fazé-la nao ter uma palavra de carinho, de saudade para com os filhos que aban- donara na mais dolorosa das situacdes". Além disso, a auséncia do “senso moral’, comprovada pela “aparente inconsciéncia da monstruosidade do seu crime, e pela faclidade com que julga poder ver-se livre da cadeia, 6 ‘mais um subsidio para o mesmo diagndstico”, ‘A perda do senso moral nao colocaria em primeiro plano a questio ética de que nenhum ser humano tem o direito de tirar a vida de outro, mas sim de que uma mulher cujo comportamento revelasse uma sexualida- de anormal e uma auséncia ou insuficiéncia do amor materno seria his rica e, portanto, potencialmente criminosa. Quanto ao destino que deveria ser dado & Maria que, antes de ser pecadora ou criminosa, era uma doente mental, os médicos Jacyntho de Barros e Miguel Salles nao vacilariam: ‘opinamos, que deve ser recolhida a um hospital de alienados para ser submetida a mais longa observacio e conveniente tratamento”. Quase dois anos depois do crime cometido por Maria Tourinho, no dia 11 de janeiro de 1913, Muito cedo ainda, quando a rua do Mattoso estava completamente ccalma, 0 guarda civil (..) que ali estava de ronda, foi alarmado por um cestampido que ecoou no interior da casa n? 40, daquela rua, Instantes depois, uma mulher com a fisionomia alterada, com os cabe- los em desalinho, correu ao seu enconteo dizendo: = Prenda-me! Prenda-me! Sou uma assassina, Quem a senhora matou? indagou o policial Matei meu marido.” Tratava-se de Hercilia de Paiva Legey, “originéria de uma familia de regular tratamento” ~tinha um imo “altamente colocado na Marinha’ -, ‘mie de quatro filhos, casada com o engenheiro mecinico, José Legey ® De QUATRE ESINILIDADE acordo com a versio de um dos filhos do casal, José, de 12 anos, nico a presenciar o fato, seus pais brigavam constantemente em funcio das des- confiancas alimentadas por Hercilia de que o marido possufa uma amante Na véspera do incidente José Legey comunicara 3 esposa que havia conse- ‘guido emprego a bordo de um navio. Suspeitando se tratar apenas de um pretexto para abandonar a familia, Hercilia iniciou uma violenta discussio ‘com o marido que, “exaltando-se demais, correu ao quarto e apanhou uma pistola Browing”. Travou-se, entao, uma luta violenta entre os dois, inter- rompida com a detonacao do tio que atingiu a cabeca de José Legey. Levada para a delegacia, Hercflia no pode ser interrogada devido 20 estado de forte excitagao nervosa em que se encontrava, sendo enviada 2 A doenga mental, em fins do século XIX, deixa entrever as principais dimensdes da intervengio dda medicina na sexualidade, nas relagdes de trabalho, nas condutas individuais ou coletivas que dissessem respeito 2 questdes religiosas, 329 330 ESTONIA DAS MULBERES NO nkast sede do Servigo Médico Legal onde foi examinada pelo Dr. Jacyntho de Barros ~ um dos médicos que havia examinado Maria Tourinho -, quea encaminhou ao Hospicio Nacional de Alienados. Ao contririo de Maria Tourinho, Hercilia desde o inicio “penitenciava-se" e “mostrava-se arre- pendida” pelo ato que cometera, nao opondo a menor resisténcia a internagao no hospicio. Em seus antecedentes de familia no sio mencio- rnados casos de alcoolismo ou de alienagao mental, embora nos antece- dentes pessoais constasse que desde moca era “acometida por sincopes histéricas’, tendo por vezes “a sensacao de um bolo na garganta, que mui- toa incomodava’ Na manha seguinte 4 internagao, Hercilia conta com clareza e com riqueza de detalhes sua hist6ria 3 enfermeira do pavilhao de observacio do hospicio. Estava casada ha 14 anos com Legey, “um rapaz de condicio inferior sua" que, bem diferente do marido de Maria, ao invés de sustenti- la, fez-se engenheiro mecinico as suas custas. Além disso, “quatro dias apenas depois de casado convidou-a & pratica de atos degradantes” aos quais Hercilia nao quis sujeitar-se e por isso “tem passado uma vida de constantes sofrimentos’: 0 marido a esbofeteava freqiientemente e faziaa passar por diversas outras privacdes. Algumas vezes, ‘pelos mesmos bai- x05 motivos aludidos saia de cast pela manhi, mostrando-Ihe uma carteira conde tinha o dinheiro com que facilmente obteria da amante o que a prd- pria mulher Ihe negava", Mas Hercilia amava 0 marido e “tudo suportava com resignacio”. No dia 11 de janeiro, Legey ameacou abandoné-a e 20s filhos. Ela pegou uma pistola e, tencionando apenas “intimidé-lo”, mos- trou-lhe a arma, “declarando que o mataria se ele abandonasse os filhos & miséria”. A arma teria disparado sem que ela esperasse. O depoimento de Hercilia € idéntico ao prestado pelo seu marido, mas bastante discordante do prestado por seu filho José. Herciia estava arrependida do ato que cometera e sentia-se aliviada por nao ter matado Legey, a quem amava profundamente apesar de tudo; revelava uma clareza extraordinaria no falar, coeréncia perfeita em suas ideias, percepcto facil, atencao pronta e orientacio perfeita, nio ocultan- do qualquer detalhe de sua historia por mais intimo que fosse. Mostrava- se muito amante dos fllhos e ansiosa para vé-los. Todas essas qualidades impediriam que fosse caracterizada como pecadora ou criminosa, mas no 2 livrariam do estigma de doente mental. O diagn6stico do Dr. Jacyntho é rigoroso: “a paciente é uma degenerada, histérica, cujo estado sé vem agra- vando coma série de constantes e profundas emogdes por que tem passa- do”, Contudo, as tais gualidades a salvariam da reclusio & qual Maria Tourinho foi condenada pelo resto da vida, De acordo com a avaliacio do SIQUATRA € FINILDADE legista, a histeria de Hercilia era “compativel com a vida em sociedade, tanto assim que, melhorada, obteve alta do pavilhdo de observagoes do Hospital de Alienados”. E interessante notar que essas mesmas qualidades demonstram que Herciia havia incorporado plenamente o papel de esposa-mae. Contudo, as pequenas servidoes dai decorrentes, como “suportar com resignacao” todas as humilhagdes € maus-tratos aos quais era submetida, mesclavam- se a pequenas rebeldias: negar-se a pratcar “atos degradantes” com o ma- rido. O argumento encontrado para justficara atitude extrema de contes- {aio que teria assumido ao desferir um tro contra o marido seria funda- do, antes de tudo, na manifestagio do instinto materno: Herclia teria amea- «ado matar Legey se ele “abandonasse os filhos 2 miséria". Nesse sentido, ‘0 exercicio da maternidade nio representaria exclusivamente uma pritica de submissio, revelando-se ao mesmo tempo e contraditoriamente uma das mais fortes s6lidas maneiras encontradas pela mulher de exercer 0 poder dentro de casa? Entre Maria e Hercilia um traco em comum: a histeria. Mas enquanto na primeira a doenga teria sido produzida pela recusa em desempenhar 0 papel de esposa-mie, na segunda a doenga teria origem na presenca de “estigmas fisicos de degeneragao” aliados as presses emocionais decor- rentes do perfeito exercicio do papel de esposa apaixonada pelo marido e extremamente amorosa e preocupada em relacdo aos filhos. A primeira coube a reclusio para sempre no hospicio;& segunda, a vigilincia perma- nente do olhar distanciado do médico, assegurada pelo rotulo de degene: rada bistérica, Observe-se, ainda, que para o assassinato de um homem que cumpria rigorosamente todos os papéis prescritos de acordo com 0 ‘deal do esposo-pai nio haveria qualquer indulgéncia, enquanto a tentati- va de homicidio contra um marido que parecia nin se ajustar a esses pa péis acabaria sendo praticamente perdoada. A URDIDURA DA TRAMA As historias de M. J., Maria Tourinho e Hercilia Legey servirao como ponto de partida para tentarmos compreender os caminhos trilhados por :médicos e psiquiatras brasileiros para defini e difundir no fim do século XIX ¢ inicio do século XX um perfil da mulher histérica. Como veremos, taiscaminhos foram profundamente marcados pelos referenciaisconstrutdos ¢ disseminados pela medicina mental européia, sobretudo a francesa. Lem- bre-se ainda que, conforme mencionamos no inicio do texto, a psiquiatria surgiria como um campo especifico do conhecimento médico no Brasil a 331 332 HISTOR DAS MULKERES NO BEAST. parir dos anos de 1880, consolidando-se ¢ legitimando-se durante as pri- ‘meiras décadas republicanas. ‘A PSIQUIATRIA E A CONSTRUGAO DE UMA FEMINILIDADE ‘Uma das imagens mais fortemente apropriadas, redefinidas e dissemi- nadas pelo século XIX ocidental 6 aquela que estabelece uma associacio profundamente intima entre a mulher e a natureza, opondo-a ao homem identificado 3 cultura. Retomada por um ‘velho discurso” que tentavajus- tificar as teorias e praticas liberais - que, embora comprometidas com 0 principio da igualdade, negavam 3s mulheres 0 acesso a cidadania, através, da énfase na diferenca entre 0s sexos ~, tal imagem seria revigorada a pani das “descobertas da medicina e da biologia, que ratficavam cientifi- camente a dicotomia: homens, cérebro, inteligencia, azo licida, capaci- dade de decisao versus mulheres, coracio, sensibilidade, sentimentos”." Essas consideracdes remetem a duas questoes importantes. Aconstrucao da imagem feminina a partir da natureza e das suas leis implicaria em qualificar a mulher como naturalmente fragil, bonita, sedu- ‘ora, submissa, doce etc. Aquelas que revelassem atributos opostos seria consideradas seres antinaturais. Entretanto, muitas qualidades negativas — como a perfidia ¢ a amoralidade —eram também entendidos como atribu- tos naturais da mulher, o que conduzia @ uma visio profundamente ambi ‘gua do ser feminino."* No século XIX ocidental, a velha crenga de que a mulher era um ser ambiguo € contradit6rio, misterioso e imprevisivel, sintetizando por natu- reza 0 bem e o mal, a virtude e 2 degradacdo, o principio e o fim, ganharia ‘uma nova dimensio, um sentido renovado e, portanto, especifico. Ampla- mente disseminada, a imagem da mulher como ser naturalmente ambiguo adquiria, através dos pincéis manuseados por poetas, romancistas, médi- os, higienistas, psiquiatras e, mais tarde, psicanalistas, os contornos de verdade cientificamente comprovada a pantir dos avancos da medicina e dos saberes afns Vista como uma soma desarrazoada de atributos positivos e negati- vos, cujo resultado nem mesmo os recursos cientifcos cada vez mais sofis- ticados poderiam prever, a mulher transformava-se num ser moral e social- mente perigoso, devendo ser submetida a um conjunto de medidas normatizadoras extremamente rigidas que assegurassem 0 cumprimento do seu papel social de esposa e mie; 0 que garantiria a vitéria do bem sobre o mal, de Maria sobre Eva. Se a mulher estava naturalmente predes- tinada ao exercicio desses papéis, a sua incapacidade e/ou recusa em cum- PsIQUIATRI E FOMNILIDADE pticlos eram vistas como resultantes da especificidade da sua natureza e, concomitantemente, qualficadas como antinaturais Sob a 6gide das incoe- réncias do instinto, os comportamentas femininas considerados desviantes ~ principalmente aqueles inscritos na esfera da sexualidade e da afetividade — eram vistos 20 mesmo tempo e contraditoriamente como pertinentes € estranhos 3 sua propria natureza, Nesse sentido, a mulher era concebida ‘como um ser cuja natureza especifca avizinhava-se do antinatural Todas essas consideragdes conduzem a uma segunda questio funda- mental, a que se refere & especificidade da condigao feminina diante da loucura. Para muitos estudiosos o cerne dessa especificidade situa-se jus- tamente no fato de que enquanto as situagdes que conduzem a mulhera ser diagnosticada como doente mental concentram-se na esfera da sua natureza e, sobretudo, da sua sexualidade, o doente mental do sexo mas- culino € visto, essencialmente, como portador de desvios relativos aos papéis socias atribuidos ao homem ~ tis como o de trabalhador, o de provedor etc. Assim, a predisposi¢ao masculina aos distarbios mentais se- ria relacionada, sobretudo, is implicagdes decorrentes do desempenho desses papéis ou a recusa de incorpori-los. Ademais ¢ preciso considerar que a sexualidade e a afetividade masculinas, ancoradas na construcao de ‘uma natureza especifica do homem, também constituiriam objetos centrais na formulagio das definigdes e dos diagndsticos da doenca mental Lugar de ambigtiidades e espaco por exceléncia da loucura, 0 corpo € a sexualidade femininos inspirariam grande temor aos médicos € 40s alienistas, constituindo-se em alvo prioritirio das intervencées norma- lizadoras da medicina e da psiquiatria. Muitas crengas pertencentes a anti- {gs tradigoes no Ambito dos mais variados saberes ~ muitas das quais remontam & antigbidade classica - seriam retomadas e redefinidas pelo alienismo do século XIX. Entre 0s alienados considerados “rebeldes a qual {quer tratamento, por razes mais morais do que propriamente médicas”, Pinel incluia as mulheres que se tornavam irrecuperiveis por “um exerci- cio nio-conforme da sexualidade, devassido, onanismo ou homossexua- lidade”.® © temperamento nervoso, intimamente relacionado 3 predispo- igo 38 nevroses e nevralgias, era freqlientemente considerado como tip co das mulheres, “cujas funcdes especiais ao sexo, em muito contribuem para 0 seu desenvolvimento”. ‘Assim, no organismo da mulher, na sua fisiologia espeeitfica estariam inscritas as predisposic6es 4 doenga mental. A menstruagio, a gravidez. ¢ 0 parto seriam, portanto, os aspectos essencialmente priorizados na defini- Gio € no diagnéstico das moléstias mentais que afetavam mais {reqiientemente ou de modo especifico as mulheres: 333 334 HISTORIA. DAS MULHERES NO BRASHL © saber alienista retomou a antiga representagio do corpo feminino como um estranho ser ciclico, de fluxos circulares de um sangue mens- {nual impuro e denso de humores perigosos, das ‘evolucdes’ biol6gi- cas de um corpo inquietante desde a adolescéncia e depois em cada arto, nos puerpérios, nos aleitamentos € no climatério que, uma vez superado, indicava enfim sua possibilidade final de pacificagao ~ 20 ‘mesmo tempo que anunciava a morte."* De acordo com os valores € padrdes predominantes nos enfoques iquidtricos do corpo e da sexualidade femininos, a mulher estaria mais proxima da loucura do que o homem, Embora tal afirmacio aparecesse, muitas vezes, explicitamente formulada pelos alienistas na transigio entre 0 século XIX € 0 XX, ela nfo deve nos levar a conclusdes simplistas e equivocadas como: a mulher teria sido a maior vitima dos preconceitos ¢ da prepoténcia da psiquiatra. Afinal, iso seria ratficar os prOprios princt pios sobre os quais o poder do psiquiatra estava pautado. Mas se quere- ‘mos mesmo dar uma guinada na historia das mulheres, deslocando-a para tum campo bem mais Fértil instigante da historia dos géneros, € preciso que, entre outras coisas, abandonemos definitivamente essa obsessio em buscar comprovar que a mulher é mais discriminada, € mais explorada, € mais sofredora, & mais revoltada etc, etc. Nem mais, nem menos, mas sim diferentemente. Diferencas cujos significados nao se esgotam nas distin- es sexuais, devendo, portanto, ser buscados no emaranhado miltiplo, Complexo e, muitas vezes, contradit6rio, das diversidades sociais, micas, religiosas, regionais, enfim, cultura, MENSTRUACAO E ALIENACAO MENTAL Tim dos pantos mais valorizados pelos psiqniatras na construct dos ddiagndsticos da doenca mental em individuos do sexo feminino é, sem davida, a menstrvaga0. O inicio e o fim do periodo menstrual seriam, frequentemente, considerados como momentos extremamente propicios manifestacio dos distérbios mentais. As caracterstcas do cilo catamenial —abundante, escasso ou ausente — apareciam aos olhos dos especialistas como indicios fundamentais de alienacio mental. Em seu Esbogo de psi- quiatria forense, Franco da Rocha adverte que as perturbagdes menstruais rio teriam “a importdncia etiolégica que o povo The da”, havendo apenas coincidéncia: “tanto é assim, que muitas vezes a loucura desaparece sem {que volte a menstruacio.* Longe de negara relac3o entre menstruaclo loucura, a adverténcia parece refletir apenas uma preocupacaio no sentido de aprofundar o fosso que deveria separaras verdades cientificas das cren- «as populares, pois o famoso psiquiatra nao apenas inclu as perturbagdes, da menstruagao entre as alteracdes fisicas caracteristicas da loucura, como também as considera bastante freqiientes entre as alienadas. Incorporada em textos produzidos por médicos portugueses no prin- cipio do século XVII, a mistica em torno do sangue menstrual imputava the qualidades magicas e associava-o a loucura ¢ A morte.” Dos médicos de entio aos alienistas do século XIX observa-se o mesmo temor diante do “sangue secreto”, mas com uma diferenga essencial: ele deixava de ser visto como ingrediente basico no preparo de feitcos e bruxarias para ser considerado, sobretudo, fator determinante e indicador da doenga mental O alienismo estreitaria de tal forma a relacio entre loucura e menstruagao que se chegou a falar em loucura menstrual, Em um artigo sobre esse tema publicado no Brazil-Médico, em 1890, o famoso professor da cadeira de Doencas Mentais da Faculdade de Medicina de Paris, Benjamin Ball, afir- ‘ava que a maioria das mulheres apresentava qualquer tipo de perturba- {0 no sistema nervoso durante o periodo menstrual, ainda que fosse uma simples enxaqueca."* Para seu discipulo Séverin Icard, 0 periodo menstru- al predispunha todas as mulheres & loucura e violencia.” Perspectivas similares marcariam profundamente hist6rias de mulhe- res diagnosticadas como doentes mentais. Como vimos,aficha de obser: vaio clinica de M. J. registrava que ela tivera suas “primeiras manifesta- ‘cGes histéricas e epilépticas” aos 14 anos, quando menstruou pela primeira vez. Da mesma maneira, as perturbagdes psiquicas que teriam conduzido Maria ‘Tourinho a assassinar seu marido em julho de 1911 seriam detecta- das pelos peritos que a examinaram através de inimeros indicios, entre os uais 0 de revelar distirbios catameniais: sua menstruaco “tardia” nunca teria sido *perfeitamente regular’. Tanto nas fichas de observacoes clinicas quanto nos relatérios peri- ciais as eferéncias a dstirbios menstruais ou a0 agravamento dos sinto- ‘mas da doenca nos periodos catameniais sio recorrentes. Apenas a titulo de ilustracao, vejamos mais dois exemplos, ambos mencionados pelo Dr. P. A. Novaes em sua tese de 1925. D.M.N,, parda, domestica, 20 anos, brasileira internada no Hospicio Nacional de Alienados, casada hii quase dois anos, inha rixas constantes com o marido, decorrentes segundo ele do “mau génio” da mulher que “foi sempre muito nervosa”, tendo tido varias crises de agitacao durante as, Epocas de menstruago que também “nao eram regulares’. Abandonando ‘omarido, D. M. N. empregou-se como domestica; mas sua patroa,julgan- do-a ‘maluca’, demitiu-a poucos dias depois. Seu “génio violento’, suas “crises de choro ¢ risos alternados” e sua desorientagZo quanto ao tempo, 335 336 ISTOMA DAS MULHERES No BRASIL Jugar e meio levariam-na a permanecer internada no hospicio com o diag- néstico de psicose maniaco-depressiva. Destino do qual ela nio escapatia ‘mesmo tendo afirmado querer bem ao marido, com quem desejavaviver, @ respondido lucidamente as perguntas, compreendendo-as perfeitamente, aapesar de por vezes recusar-se a respondé-las, S.F, branca, 16 anos, solteira, doméstica, encontrando-se “confusa*, foi encaminhada ao Hospicio Nacional de Alienados por um agente poli. cial. Boa cumpridora de seus deveres, segundo informagies obtidas coma familia para a qual trabalhava, S. F. teria cometido “uma série de extrava- ‘gincias” quando “achava-se regrada’, sendo por isso suspensa do traba- Iho. Desde entio, ficava calada, indiferente a tudo, deprimida e, assumin- do uma “atitude alucinada’, deixava-se ficar por horas numa s6 posicao. Esses parcos dados seriam considerados pelas autoridades do hospicio ‘como mais do que suficientes para manté-Ia ali recolhida, com o diagnés tico de confusio mental Vale notar que, em ambos os casos, “nervosismos” e “extravagincias’ associados a posturasindisciplinadas no trabalho seriam vistos como sinto- ‘mas inequivocos da doenca mental, viabilizando e legiimanclo a intemacio de mulheres pertencentes aos segmentos populares em insttuigdes asilares, MATERNIDADE E LOUCURA Se, de acordo com a perspectiva médica, a realizacao da maternidade seria capaz de prevenir e até mesmo de curar os disttrbios psiquicos rela- cionados direta ou indiretamente 3 sexualidade e & propria fisiologia femi- ninas, contraditoriamente a gravider, o parto ¢ 0 pés-parto seriam vistos como momentos extremamente propicios ao aparecimento ou & manifesta- 0 de ais distirbios. A loucura puerperal mereceu uma atencao significa- tiva por parte dos alienistas brasileiros desde o fim da década de 1870; sendo concebida, em chtima andlise, como decorrente de distirbios que se referiam 3 incapacidade fisica ou moral da mulher no sentido de realizar plena e corretamente os designios da maternidade. Apesar das contradi- es e dos impasses dos alienistas diante das ambigiiidades do ser femini- 1o, eles jamais abandonariam completamente a crenca de que a materni- dade constituia um dos remédios mais eficazes ~ senio o mais eficaz — para evitar ou curar as moléstias femininas. Lembre-se o “curioso caso" mencionado por Franco da Rocha em seu Esbo¢o de psiquiatria forense. *..uma alienada, de exctacao maniaca intermitente, que entra em perfeita satide mental quando esta gravida, caindo sempre em perturbacao quando fora da gravidee".® Esses casos eram vistos como a confirmacao cientitica PSiQUIATN F FeMinuuDADE das concepcdes defendidas por Lombroso e Ferrero, segundo as quais a maternidade “suaviza a mulher selvagem’, mas “quando muito vivamente contrariada levaria sobretudo & loucura”.® Psiquiatra renomado, Afrinio Peixoto adentrou no mundo da pro- dugao literéria construindo personagens e tramas profundamente im- pregnadas pelas crencas e preconceitos que caracterizavam 0 alienismo das primeiras décadas do século XX, Em As razdes do coragao, roman- Nos laudos periciais realizados por médicos e alienistas, personalidade histérica da mulher definia-se por alucinagoes, sugestionabilidade, discreto fundo erético ¢ falhas da meméria e da afetividade, 337 338 HISTORIA DAS MULHERES NO BRASIL ce publicado em 1925," a personagem Cora, uma senhora pertencente @ alta sociedade carioca, casada com um homem rico ¢ de posicio, acabaria completamente louca. As origens de seus distirbios mentais encontravam-se estreitamente vinculadas ao fato de ter sempre se ma- nifestado contriria & idéia de ter filhos. Submetendo-se a um aborto, tornou-se estéril, passando a dedicar-se inteiramente a seus caes. O comportamento estranho de Cora se agravava dia a dia até que foi to- mada por um citime doentio pelo marido, terminando por “enlouque- cer de vex". Inspirado em concepgdes proximas as expressas por Lombroso e Ferrero, Afranio Peixoto relacionou, de modo claro e dire to, a loucura da personagem com 2 sua recusa radical em cumprir a funcio matemna, naturalmente destinada a todas as mulheres, Essa pers- pectva foi reforcada pelas historias de Regina, protagonista do romance, ¢ de Vivi, sua melhor amiga. Gravida de Camargo, por quem havia se apaixonado perdidamente, Regina casa-se, sem amor, com Vilhena, um homem *bem-sucedido”, embaixador do Brasil em Portugal e bem mais velho do que ela. Suas desventuras e frustracdes afetivas (e sexuais) seriam aplacadas, pelo menos em parte, pela existéncia do filho 20 qual se dedicava por inteio. Assim como Regina, Vivi casaria com um homem a quem nio amava, © que, entretanto, nao a impediria de sentir-se realizada e feliz. Tornando- se mae de cinco filhos, transformou-se, como ela mesma dizia, numa “ver- dadeira matrona’, pasando a acreditar veementemente que o destino na- tural e inevitivel de toda mulher era o de encontrar o pleno sentido de sua existéncia na dedicagio absoluta aos filhos: Ha mulheres bonecas, amantes, festeiras, operiias, sibias, de tudo; isto € porém 0 acidente ou 0 supérfluo |...] 0 que todas sto; ou deve ser, € uma 56 [..1 6 0 que eu sou [..J e 0 que deves ser também, apesat ddas recepgdes ou do protocolo, senhora embaixatriz [..] O que nds somos, essencialmente, tirados todos os incidentes e supérfluos, € isto. kes! ‘A maternidade era vista como a verdadeira essénciada mulher, inscri- ta em sua propria natureza. Somente através da maternidade a mulher po- deria curar-se e redimir-se dos desvios que, concebidos ao mesmo tempo como causa ¢ efeito da doenga, langavam-na, muitas vezes, nos lados do ‘pecado. Mas, para a mulher que nao quisesse ou nao pudesse realizé-la— 4208 olhos do médico, um ser fisico, moral ou psiquicamente incapaz— nao haveria salvacio e ela acabaria, cedo ou tarde, afogada nas Aguas turvas da insanidade. FiQUIATUA € FRMNILDADE O APARELHO GENITAL FEMININO COMO FOCO DE DISTURBIOS MENTAIS A construgio psiquiairica de uma intima associagio entre a fisiologia feminina - em particular, o seu aparelho genital — os distisbios mentais pode ainda ser detectada pelo exame de alguns tratamentos destinados 2s mulheres diagnosticadas como doentes mentais, freqGentemente utiliza- ddos em instituigdes asilares durante o século XIX e principio do XX, Entre os procedimentos terapéuticos que, destinados a controlar as “sexualidades inconvencionais das mulheres”, confundiam-se com os mais rigorosos e cruéis métodos de tortura, figuram a extirpacio do clit6ris e a introdugio de gelo na vagina." Em fins do século passado, a lista desses procedimentos seria ampliada pela introdugo de novas técnicas terapéuticas nao menos violentas. Datam de entio as primeiras experién- cias de submeter mulheres alienadas a intervengdes cinirgicas ginecol6. gicas. A novidade parece ter despertado o interesse de psiquiatras gineco- logistas brasileios, pois em uma tese apresentada na cadeira de Clinica Psiquidtrica da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, em 1901, 0 Dr. Urbano Garcia nao apenas defendeu a eficicia do método, como também referiu-se a algumas experiéncias que vinham sendo realizadas na Casa de Satide Dr. Biras a partir de 1896, Entre elas estava aquela que fora subme- tida M. J. Completamente impregnado das perspectivas organicistas que predominavam nos meios psiquidtricos da época, o autor acreditava que a predisposigo hereditiria constitu‘a o principal fator na etiologia das doen- ‘cas mentais, mas também que “uma lesio orginica grave” poderia originar “uma perturbagio das idéias’ principalmente nas mulheres, cujo aparelho genital tinha uma grande influéncia sobre o estado mental. Mais uma vez parece a idéia de que as fronteiras entre o estado fisiolbgico e 0 patol6gi- co seriam extremamente ténues e nebulosas na mulher: "Mesmo no estado fisiolégico, o aparecimento da menstruagzo se acompanha de alteragdes as mais esquisitas e complexas, nao s6 da inteligéncia como do cariter, do génio, da moral, da vontade € dos atos"” Nos casos patol6gicos, caracterizados por “uma impressionabilidade excessiva” e por obsessbes e ansiedades relacionadas a lesdes dos Grgios genitais, o quadro era mais grave, pois os efeitos da menstruacio, da gra- videz, do parto eda menopausa poderiam ‘mascarar" os sintomas da doenga original, confundindo o especialista, ou ‘provocar a eclosio de novas per- turbagoes inelectuais” Para Garcia, as cirurgias ginecologicas criavam con digOes para que o organismo pudesse “utr contra o delirio e suas mani- 339 340 ISTORIA DAS MULIERES NO BRASIL festagdes perigosas’, prevenindo, ao mesmo tempo, o “esgotamento”, Mes- ‘mo nos casos que nio resultavam na eliminagao do “delitio primitivo" e, portanto, na cura da loucura, esse tipo de intervengo poderia resultar em melhora, permitindo que as pacientes retomassem “por algum tempo seu papel social” SEXUALIDADE FEMININA E HISTERIA ‘Vimos até aqui algumas das principais estratégias que nortearam as tendéncias predominantes do saber aliensta na construcaio da especificidade da condigio feminina diante da loucura. Como estabelecer as fronteiras entre 0 normal e o patoldgico no mundo da sexualidade feminina que, definido nesses termos, revelava-se to profundamente incerto? Os médi- cos do século XIX tomariam para si essa tarefa baseando-se em dois pres- supostos: a normalidade ocuparia o espaco de uma pequena ilha cercada pela imensidao ocednica da doenca; entre a agua e a terra os limites seriam {Ao vagos € méveis quanto os definidos pelas proprias ondas. Se, por um lado, havia um certo consenso nessa tese, por outro, @ qualificagao do contetido da natureza da sexualidade feminina seria obje- to de controvérsias, cujo ponto central situava-se em torno do reconhec mento ou da negacio do prazer sexual & mulher. Em meados do século XIX, o médico William Acton tornou-se um dos mais conhecidos defenso- res da idéia da anestesia sexual feminina: “A maioria das mulheres (feliz- mente para elas mesmas) nao se incomoda muito com sentimentos sexuais de qualquer espécie. O que os homens sentem habitualmente,s6 raras vezes atinge as mulheres’. Para esse médico, tais mulheres constitufam aberragdes ninfomantacas, apresentando-se, portanto, como um contin- gente potencial para as haspicias onde deviam ser confinadas No final do século XIX, tais concepgdes adquiriam uma legitimidade cada vex mais lida nos meios cientficos, 4 medida que eram reafirma- das, fundamentadas e justificadas por especialistas de renome como Kraft- Ebing, Cesare Lombroso e Guglielmo Ferrero. Pania-se do principio de que, por natureza, na mulher, o instinto materno anulava o instinto sexual e, conseqiientemente, aquela que sentisse desejo ou prazer sexual seria, inevitavelmente, anormal. Entretanto, a auséncia do desejo e do prazer, ue muitas vezes poderia provocar na mulher a repulsa pelo ato sexual, nao deveria conduzi-la a recusa desse mesmo ato, pois a impediria de se realizar com a maternidade. Mais do que a razao de ser de sua existéncia, ser mie era considerado, mesmo pelos adeptos da frigidez natural femini- 1a, a nica via para salvar a mulher do perigo, sempre iminente, de cair no FSIQUATRA E FeAMNULDADE pintano insondavel das doencas,cujas origens e efeitos eram caracteriza- dos pelo entrelacamento de elementos fisicos, psiquicos e moras. ‘Aidéia de que o destino de toda mulher estava (ou deveria estar) fadado a maternidade acabaria por fundamentar uma outra perspectiva presente no pensamento médico do século XIX até 0 inicio do XX, que reconhecia nio apenas 2 existéncia do desejo e do prazer sexual femini- ‘no, mas também a necessidade ~ ¢ em alguns casos o diteito ~ da mulher de realizi-los. Presente em outros tempos € em outros lugares, expresso por diversos saberes ~ assumindo, no entanto, significados profunda- ‘mente especficos e distntos entre si, apesar de recobertos pela mesma finalidade reprodutora -, o reconhecimento da necessidade do prazer sexval feminino seria retomado por algumas correntes da medicina do século XIX. No final de 1840, o médico e oficial reformado francés, Dr. ‘Auguste Debay, que havia se tornado um autor bastante popular, publi- cava um estudo sobre a higiene e a fisiologia do casamento no qual afirmava que o celibato produzia “...uma influéncia tio funesta sobre as faculdades intelectuais da mulher que, em todos os asilos para lunticos, miimero de mulheres solteiras € absolutamente desproporcional 3 po- pulacio em geral".” ‘A partir das tltimas décadas do século XIX seriam realizadas algumas pesquisas médicas acerca do comportamento sexual feminino, cujos resul- {ados colocavam em xeque os pressupostos, defendidos e compartlhados por muitos cientistas da época, que definiam a mulher como um ser por hatureza assexuado ou anestesiado sexualmente. Em 188, 0 Dr. J. Matthews Duncan, conceituado ginecologista escocés, divulgava em varias confe- rncias proferidas na Academia Real de Medicina os resultados da pesqui- sa sobre experiéncias erdticas femininas que, apesar de no permitirem *generalizagdes verdadeiramente canclusivas’, apontavam para aspectos essenciais que viabilizavam a percep¢io de que “nas mulheres 0 desejo 0 prazer estio sempre presentes, ou pelo menos podem ser trazidos 3 tona aravés de estimulos apropriados”.* ‘Alguns anos depois, o relatério elaborado pela Dra Celia Duel Mosher, baseado numa pesquisa desenvolvida a pani de 1892 sobre os sentimen- {os € habitos erdticos de cerca de 50 mulheres americanas, conduziria a conclusbes muito proximas 2s do Dr. Duncan. Em seu estudo sobre a moderna vida erética, publicado em 1907, o sexologista alemao Dr. Iwan Bloch afirmava que todas as “mulheres cultas” entrevistadas teiam “decla- rado que a teoria de uma menor sensibilidade sexual da mulher € incorre- 1a; varias delas julgam-na até mesmo maior € mais persistente que a do homem".® 341 2 STOMA DAS MULHERES NO Haast Embora a idéia de que a mulher seria um ser assexuado ou frigido tena sido bastante difundida entre os médicos brasileiros do século XIX, alguns deles reconheciam, explicitamente, a existncia do desejo e do pra zer sexual na mulher. Entre os muitos desdobramentos decorrentes da trans- formacio do casamento em uma insttuigao bigiGnica, temos nao apenas o reconhecimento, mas até mesmo o estimulo & sexualidade feminina.® Para (9s médicos, a auséncia ou a precariedade da vida sexual poderiam resultar em conseqiéncias funestas para as mulheres: como o habito da masturbacio = causador de esterilidade, aborto- ou o adultério. Assim como a auséncia ou insuficiéncia de vida sexual, os excessos ou perversbes na realizacao do desejo e do prazer conduziriam as mulhe- res fatalmente aos mesmos temidos destinos. Assim, a sexualidade s6 iio ameacaria a integridade fisica, mental e moral da mulher, caso se mantives- se aprisionada nos estreitos limites entre o excessoe a falta e circunscrta 20 leito conjugal. Ademais, ao priorizarem 0 cumprimento dos deveres da ‘maternidade (gesta¢iio, amamentaco etc.) como caracterstica indispens: vel da mulher saudvel e incompativeis com o pleno exercicio da sexuali- dade, os médicos restringiam a disponibilidade feminina para as praticas € prazeres sexuais, criando um impasse que acreditavam resolver afirmando a existéncia do gozo sexual através da amamentacio: |A natureza, previdente, teve a sabedoria de colocar o prazer, onde 0 exercicio de uma funcio € indispensivel a vida e 8 dor quando suas leis sio desprezadas. A mae que cria sente correr com delicia o leite através dos canais que o devem levar a boca de seu filho; como no ato dda reproducio ela tem muitas vezes eretismo, voluptuosidade: basta somente que ele Ihe estenda os ternos bracinhos para que os seus seios se ingurgitem € que © leite seja ejaculado com forga.* Reconhecendo ou negando a existéncia do desejo € do prazer na mulher, os alienistas estabeleciam uma intima associacio entre as pertur- ages psiquicas ¢ os distirbios da sexualidade em quase todos os tipos de doenca mental. Detenhamo-nos na andlise de um dos exemplos mais expressivos neste sentido: 2 histeria A partir do final do século XVIII, a histeria, ao lado da hipocondria, passara a figurar “sem problemas, no brasio da doenca mental". Entre 0s aspectos que marcaram a complexa trajet6ria desse proceso de integracio, destaca-se a preservagao de uma intima associacio entre a histeria € a mulher, cujo corpo, frdgilejlacido, seria concebido como “mais facilmen- te penetravel” do que o espaco interior masculino.* SIQUIATAIA FEDANILDADE [Aviabilidade ¢ os signficados da concepglo segundo a qual a histeria seria em sua propria esséncia uma doenga feminina encontram-se profunda- mente vinculados &tradigdo que~ presente na medicina hipocriica, passan- do pelos médicos medievaisidentifcava o *mal histérico” a “sufocacao da madre”. Para os antigos, “o mal histérico’ seria um mal provocado pelas imanifesiagdes independentes de um ttero que agiia como um animal, oculto no interior do organismo”.* No inicio do século XVI, Liebaud (1609) ainda se mantinha, apesar de certasreservas, partidrio da “dia de um movimen- toeespontineo da matri2" como causador da histeria,Ideia que passaria a ser comtestada por quase todos os médias da Idade Classica, sem que se pro- dluzisse uma ruptura completa entre a histeria € a matriz No anoitecer do Século das Luzes, a histria seria incorporada defini- tivamente ao mundo da loucura, completamente assimilada as doencas mentais. Mas nem mesmo as novas interrogacdes suscitadas pela histeria romperiam com a tradigao de associé-la as especificidades do corpo da mulher, a0 titero e, portanto, 3 sexualidade feminina, ainda que lhe confe- rissem novas dimensbes e novos significados. ‘Quando, em 1859, o médico Briquet definia a histeria como uma “neuro- «se do encéfalo”, reforgava-se o vinculo entre a doenga e as qualidades naturais ‘da mulher sensbilidade, emocionalidade e sentimentalismo. A inovacio, lon- ge de romper o elo entre a histeria e a sexvalidade/afetividade feminina,tor- nava-o mais forte, aproximando os contornos de diferenciaglo entre o normal € 0 patoligico: “A mulher tende para esta enfermidade especifica devido a0 Conjunto do seu ser; paga um pesado trbuto a doena pelos mesmos motivos ‘que fazem dela uma boa esposa e mie” Cabe lembrar que entre as estratég- as que fundamentariam a construgao de uma ciéncia sexual a0 longo do sécu- Jo XIX figurava a bisterizacio do corpo da mulber, desqualificando-o como corpo excessivamente impregnad de sexvalidade.® Entre 0s alienista brasileiros, os caminhos percorridos pelo tema da histeria seguiram bem de perto a mesma trajet6ria, circunscrevendo-se em tomo de duas questdes-chave: a associacio entre a histeria e 0 ser femini- no; e a relacio entre histeria e sexualidade e/ou afetividade, Em 1838, 0 Dr. Rodrigo José Mauricio Jiinior defenderia a primeira tese sobre histeria apresentada na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro,” definindo-a ‘como uma ‘moléstia, de que o ttero € a sede" e, portanto, como “uma afece2o exclusiva da mulher’. Entre os aspectos predisponentes mais im- portantes, 0 autor menciona 0 onanismo e o abuso dos prazeres venéreos, ‘Tratava-se, portanto, de um tipo de vesinia (distdrbio mental) profunda- mente vinculado & sexualidade. Crenca reafirmada na alusio ao periodo compreendido entre a puberdade ea menopausa, ou seja, nos limites fixa- 38 a HISTORIA DAS MUMMERES NO BRAS dos pelo médico entre o inicio eo fim da vida sexual da mulher, como 0 ‘mais propicio ao aparecimento e agravamento dos ataques histéricos, Por outro lado, o perfil da mulher predisposta 3 histeria,tragado pelo refetido médico, ilustra de modo exemplar as pretensdes de se fixar os padrdes definidores de um tipo bistérico diretamente referido a um tipo feminino. ‘As mulheres nas quais predominar uma superabundiincia vital, um siste- ‘ma sangilineo, ou nervoso mul pronunciado, uma cor escura, ou verme- Tha, olhos vivos e negros, Kibios dum vermelho escarlate, boca grande, dentes alvos, abundancia de pélos e de cor negra, desenvolvimento das partes sexuais, estio também sujeitas a sofrer desta neurose. ‘ais concepcdes seriam quase que literalmente reafirmadas numa ou- tra tese apresentada 3 Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro uns vinte anos depois. Em seu estudo sobre o histerismo, 0 Dr. M. L. Cordeiro 0 definia como “uma neurose dos 6rgios genitais da mulher’,® estabelecen- do, assim, como 0 Dr. Mauricio Jinior, uma rigida associacao entre histe- ria, Gtero e mulher. Para o Dr. José Goncalves, a histeria manifestava-se em ambos 0s sexos, “porém com muita especialidade do feminino’. Essa postura recorrentemente se reafirmava através da utilizacio de designa ‘0es como a bistérica, a doente, para ilustrar caracteristicas gerais das ma- nifestacoes da moléstia. Além disso, entre as causas predisponentes figura- vva “0 sexo feminino por si so” e entre as determinantes ‘a supressio das regras". Segundo o autor, os ataques histéricos castumavam “coincidir com as proximidades da época da menstruacio”, estabelecendo-se, portanto, ‘uma intima relag2o entre a fisiologia feminina e a histeria. A partir da segunda metade do século XIX as teorias em torno da histeria, formuladas por alicnistas curopcus, sobretudo franceses, torna ram-se cada vez mais sofisticadas e, ainda que suscitando intimeras con- trovérsias, a maior parte delas tendia ase circunscrever num universo co- ‘mum, relacionando a sede e a natureza da molésta 20 sistema nervoso, 20 cérebro e a degenerescéncia. Essas perspectivas seriam cada vez mais di- fundidas entre 0s alienistas e médicos brasileiros, sobretudo a pantir dos anos de 1870. A anilise da produc desses especialistas revela, contudo, que a ruptura com as concepgdes que destacavam o titero na defini¢io da moléstia nao implicaria numa dissociac3o absoluta e completa entre histe- ‘e mulher, jé que a primeira continuaria sendo concebida como uma doenca eminentemente feminina (Os Drs. José Celestino Soares e Manoel Francisco de Oliveira, basea- dos na teoria de Jaccoud, um importante médico francés, definiam a histe- SIQUIATRI E FEMISIDADE ria como uma “ataxia cérebro-espinhal’, comum aos dois sexos.* Oliveira chegaria mesmo a admitir que, embora as origens da histeria nao estives- sem localizadas unicamente no aparelho titero-ovariano, este apresentava- ‘se 1a maioria dos casos como o ponto de partda da “irritacio patogenica’, concluindo que a moléstia era “uma afecclo especial a0 sexo feminino’ Observa-se que, pelo menos para alguns médicos, era bastante dificil dissociar a histeria dos mistérios que, no imagindrio masculino, revestiam esse Grgio feminino, despertando, 20 mesmo tempo, fascinio ¢ emor. As mulheres, segundo o grande especialista Pinel, ficavam loucas jnrecuperiveis com o seu exercicio inadequado da sexualidade, devassidio, propensio a0 onanismo ¢ homossexualidade.

You might also like