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Capitulo 2 DISCRIMINACAO DIRETA 1. Introdugao Discriminacao direta, na linha do conceito de discriminagdo juridica geral antes esbocado, ocorre quando qualquer distingao, exclusio, restrigao ou preferéncia, fundados em origem, raca, sexo, cor, idade ou quaisquer outras formas de discriminacao proibidas, tém 0 propésito™ de anular ou prejudi- car o reconhecimento, gozo ou exercicio em pé de igualdade de direitos humanos e liberdades fundamentais, nos campos econémico, social, cul- tural ou em qualquer campo da vida ptiblica. No direito da antidiscrimi- nagdo estadunidense, o combate a discriminacio direta produziu a teoria do disparate treatment. O elemento distintivo entre a discriminacio direta (disparate treat- ment) e a discriminacao indireta (disparate impact) é a intencionalidade. Enquanto a discriminacdo direta atua mediante o estabelecimento de uma diferenciagio com o propésito de prejudicar, a discriminagao indireta produz tal prejuizo por meio de praticas, requerimentos ou medidas neutras e nao-intencionais diante dos aludidos critérios constitucionais proibitivos de discriminacao. A discriminagao direta se configura, portanto, quando hd um tratamento desigual, menos favoravel, e enderecado ao individuo ou ao grupo, motivado por um critério de diferenciacéo juridicamente proibido. Este tratamento desigual, decorrente da adogao de medidas, da pra- tica de atos ou da tomada de decisées, pode ocorrer tanto nos fins almeja- dos pela respectiva medida, ato ou decisao, quanto nos meios empregados para atingir-se algum outro resultado.”" 20 Registro a existéncia de vasta literatura no direito norte-americano discutindo a distincao entre os termos “mativacao” e”“propésito”, inclusive debatendo a possibilidade pratica de escrutinio destes no Ambito legislativo ¢ administrativo. Tal discussdo extravasaria os limites deste trabalho. Para os fins desta pesquisa, tais termos, quando utilizados, so compreendidos como suficiente existéncia de cla- reza quanto aos objetivos da medida diferenciadora, indicando, como costuma fazer a Suprema Corte, a intengio subjacente ao ato. Ver, para uma discussao mais ampla do tema, as referéncias indicadas em “Legislative Purpose and Federal Constitutional Adjudication (note)”, Harvard Law Review, jun. 1970, p. 1889. Ver, para uma aplicagao destes conceitos no direito da antidiscriminacéo em matéria trabalhista, Don Welch, “Removing discriminatory barriers: basing disparate treatmente analysis on motive rather than intent”, Southern California Law Review, mato, 1987, p. 736. a Ver Erich Schnapper, “Two categories of discriminatory intent”, Haroard Civil Rights —Civil Liberti Review, spring, 1982, p. 31 e seguintes. Aphtt~Clnl aberties DIREITO DA ANTIDISCRIMINAGAO 89 Digitalizada com CamScanner ao de uma certa medida, 0 agente, além : a realizacao deve ponderar os meios que em. do, ; : 7 ter em mente 0 objetivo 2 $2r aca seonseqiiéncias derivadas diretament, re 0g ‘ ito, de mor do meio eleito (por exemp) Pe parse soma aquelas decorrentes mte um dado objetivo — Be la mec em mel ‘ > ~ para idir viaj essoa deve ter jiéncias do meio eleito ( ao decidir viajar, a Pp dar) e as conseq eito (qui ee pee eultados distintos e se revelarem desejadas ou ir 0 podem produzi re viagem de descanso, rumo a um nao: imagine-se que © vate f dispondo somente de trés dias), balnedrio a 150 km de distan da mais relevante quando se atenta Para a Esta consideracag © * sovernamentais out de grandes organizacdes, complexidade das medidas a 0s diversos individuos e grupos. No ba. bem como seu impacto perante ntes de cada atividade, sempre haverg lango de ganhos e perdas ee judicados; mesmo quando apa. setores mais ou menos beneficias cee ain tes provavelmente nao se- rentemente todos tém beneficios, para alguns estes p: rao proporcionais a certos prejuizos. : rr Atentar para eventual discriminagao nos fins e nos meios é extre- mamente relevante no direito antidiscriminacao. Imagine-se a decisio governamental de construcao de uma estrada Necessaria para o desenvol- vimento de toda a coletividade. A discriminacéo pode-se dar na escolha do tracado da estrada ou na velocidade de sua execugao, conforme o agen- te considerar o impacto racial, por exemplo, numa ou outra vizinhanca. Nesta situagdo, admitida a inexisténcia de Propésito discriminador na decisao da construgao da estrada, ele pode, contudo, apresentar-se Nos meios eleitos. E importante considerar tal distincao, seja porque a discri- minagao é igualmente censurdvel em qualquer destas manifestacées, seja Para evitar 0 comprometimento do Principio da igualdade decorrente da desatencao em face destas tealidades. Ademais, nos dias de hoje, dificil- mente uma medida seré abertamente intencional quanto aos fins, circuns- tancia que reforca a utilidade ea necessidade da distingao. iscre ochnapper propse um teste para aquilatar a existéncia de intencao discriminatéria nos meios eleitos para a execuca ida i: ne ésito disctafee ee cao de uma medida isenta Proposito discriminatério. Para tanto, f i iocinit tendo presente, por exemplo, uma mada, formula o seguinte raciocinio, determinado grupo racial Ab ‘@ que tenha maior impacto num aoe oritério: para aferir a existéncia de discrimi. na¢ao racial no meio eleito Para a real Para aferir a existéncia de discrimi- neutro, deve-se perguntar ‘agao de um obj racialmente ba seo 3€2s0 tal impacto recaisse sobre a eeIO executive teria sido adotado "_ Orequerimenns aaa De fato, para 90 Roger Raupp Fios Digitalizada com CamScanner ato e sobre a intensidade desta vontade de discriminar. Antes de adentrar nestas questdes, abordo as trés modalidades de discriminacio direta, uma vez que, didaticamente, tal exposicao fornece os diversos contextos em que estes desafios se apresentam. 2. Disparate treatment no direito norte-americano No direito norte-americano, a necessidade de intencao discriminaté- ria para qualificar negativamente praticas legislativas ou administrativas resultou na teoria do disparate treatment; uma vez acionada, ela desenca- deia um procedimento de censura constitucional que foi consagrado de modo explicito no julgamento do caso Washington v. Davis. A doutrina e a jurisprudéncia estadunidense, em matéria de discri- minagio direta, visualiza pelo menos trés hipéteses”* a discriminacao ex- plicita (facial discrimination), a discriminacdo na aplicacao da legislacao ou da medida (discriminatory application) e a discriminacao na elaboragao da legislacéo ou da medida (discrimination by design). 2.1. Discriminagao explicita Na discriminacao explicita (facial discrimination), tem-se a mais clara e manifesta hipdtese de discriminacio direta. A discriminacao contra um individuo ou grupo, neste caso, pode estar diretamente estampada no texto instituidor da medida (hipoteticamente, homens nao podem ascender ao ge- neralato nas Forcas Armadas — discriminacdo direta em virtude de sexo) ou pode decorrer de um resultado imediatamente inferido do texto da medida, ainda que o critério de diferenciagao proibido nao tenha sido literalmente empregado (por exemplo} fica proibida a aquisicao de iméveis nesta area a descendentes de escravos - discriminaco direta em virtude de raga). Ademais, mesmo que a medida no afete a todos os membros de um. certo grupo, ainda assim haverd hipstese de discriminacao direta em face de um critério proibido (por exemplo, somente as mulheres acima de 75 quilogramas podem se candidatar para 0 cargo, enquanto nao hé nenhu- ma limitagao para homens - discriminacao direta em virtude de sexo, pois a restrigo 36 atinge o sexo feminino). 3 426 US, 229 (1976). ™ Ver Allan Ides e Christopher N. May, Constitutional Law — Individual Rights, New York: Aspen Law & Bussiness, 1998, p. 170 e seguintes. DIREITO DA ANTIDISCRIMINACAO- 91 Digitalizada com CamScanner 25 no direito norte-americano, a XIII, a XIV oes de discriminacao explicita, especial- revisées constitucionais, especialmente traiu fundamento para a proibicao de atéria de raca ou cor,“* bem como Conforme Laurence Tribe, ea XV Emendas veiculam proibic' mente em termos raciais. Destas p’ da XIV Emenda, a Suprema Corte ex! tratamento diferenciado explicito em mi para desenvolver o strict scrutiny. ' : A nogao de discriminacio direta, praticada de modo explicito (facial discrimination), aparece, portanto, toda vez que a legislacao ou a atividade administrativa explicitamente exclufrem de um determinado regime fa- vordvel um grupo de pessoas, fundado num critério constitucionalmente proibido de discriminagao. Ela pode ocorrer, também, quando a medida nao afete a todos os membros de um certo grupo. 2.2. Discriminagao na aplicagao do direito A discriminago na aplicacao (discriminatory application) ocorre quan- do, independentemente das inteng6es do instituidor da medida, a diferen- ciagao ocorre, de modo intencional, no momento da execucao da medida ou da lei. Por exemplo, uma determinada lei de transito, concebida de modo neutro e sem o propésito de discriminar, pode ser aplicada com 0 intuito de prejudicar motoristas negros, sempre que a autoridade de transito delibera- damente aplicd-la exclusivamente quando se tratar de condutor negro.” Outra hipotese de discriminagao na aplicagao, agora na modalidade omissiva™® seria a inexecucio de lei orcamentaria que destine recursos para a construcao de escolas em diversas localidades somente naquelas onde residem majoritariamente grupos minoritdrios. Ocaso classico no direito constitucional norte-americano envolvendo discriminagao na administracao da lei é Yick Wo v. Hopkins. Cuidava-se de uma regulacao neutra e genérica da cidade de San Francisco (California), proibindo o funcionamento de lavanderias senao em estabelecimentos de alvenaria, a nao ser com o consentimento da autoridade administrativa. Todavia, a pratica administrativa municipal deferia sistematicamente per- missao para o funcionamento em estabelecimentos de madeira a todos, 5 Ver L. Tribe, American Constitutional Law, 2 Ed., New York: Foundation Press, 1988, p. 1466. 26 Ver Strauder v. West Virginia (100 US. 303, 1879). 27 Ver, relacionando discriminag&o direta com racial i ” iving Whil , Profle, Jennifer Larrabee, “DWE (Driving While Black) and equal protection: the realities of an unconstitutional ice”, Bsc) and lp ional police practice”, Journal of Law and 28 Paul Brest lembra que a discriminagéo na aplica i Bre \¢do pode ocorrer por ago ou omissdo (por exem- plo, no iltimo easo, pela néo-construcio de unidade escolar em bairre predominante meee Ver, “In defense of an anti-discrimination principle”, Harvard Law Review, nov., 1976, p. 12. 29 118 U.S. 356 (1886). Ver Gerald Gunther e Kathleen Sulli i 5 Fa eS SR Ve Ger ivan, Constitutional Law, 13 ed., Westbury: 82 Roger Raupp Rios Digitalizada com CamScanner nos para OS membros da comunidade chinesa, que até entéo detinha om aior parte do mercado de servicos de lavanderia. A recusa a Yick Wo Pa permissao desencadeou o litigio, resolvido pela Suprema Corte como hipétese de discriminagao na aplicagao da lei. Com efeito, a proteco contra a aplicagao discriminatéria da legisla- goédesuma importancia, especialmente diante da atividade administra- fiva e judic ‘ial. Neste tiltimo 4mbito, destacam-se no direito constitucional norte-americano casos envolvendo selecao de membros para composigao de jéri popular. Outra 4rea sensivel a discriminacio na aplicagao da lei, que costuma gerar bastante polémica, razao pela qual apresenta inegdvel potencial para oescondimento da discriminacao, diz respeito 4 guarda e adogao de crian- cas No caso Palmore v. Sidoti?*' a Suprema Corte invalidou decisao judi- cial estadual que deferiu ao pai (branco) a guarda do filho, retirando-o dos cuidados maternos, ao argumento de que o casamento da mie (branca) com homem negro colocaria a crianga em uma situac4o inaceitével para o paie traria dificuldades para o seu desenvolvimento e insergao social. Ao reverter a decisao, a Suprema Corte admitiu o risco de impacto adverso a que estava submetida a crianca, todavia afirmou que considera- g6es discriminatérias nao podem ser fundamentos para a decisao acerca da guarda: A Constituig&o n&o pode controlar tais preconceitos mas também nao pode tolera-los. Pre- conceitos privados podem ficar além do alcance do direito, mas 0 direito ndo pode, direta ou indiretamente, efetiva-los. O emprego indevido de esterestipos também é fator recorrente em hipéteses de discriminacao direta na aplicagao do direito. Com efeito, na cotidiana simplificagao da complexa realidade social, ocorre uma catego- tizagéo pela qual significados e associagées sao atribuidas aos diversos grupos sociais, reduzindo-se assim a ansiedade e a necessidade de cons- tante aprendizado diante da realidade social, bem como possibilitando-se a classificacao dos eventos e uma reac4o mais rapida diante das diversas Situagdes.* Este processo, especialmente no campo das relacgées sociais, teflete normas culturais e produz, muitas vezes, esteredtipos, ora enten- didos como inclinacées genéricas na categorizacio de pessoas conforme —__ Ver L. Tribe, Op. cit, p. 1483. 466 US. 429 (1984). Ver Gary Blasi, “Advocacy against the stereotype: lessons from cognitive social psychology”, Uni- versity of California Law Review, fun, 2002, onde pili faz um apanhado do estado 2 arte na psico- tegltacerca da construgao social de esterestipos e preconceitos e de sua onipresenca no cotidiano, tando implicagdes deste conhecimento para a solucdo de casos jurfdicos, bem como Elizabeth E. ran, “Free to be arbitrary and capricious: wheight-based discrimination and the logic of American tidiscrimination law”, Cornell Journal of Law and Public Policy, fall, 2001, p. 116. DIREITO DA ANTIDISCRIMINAGAO 93 Digitalizada com CamScanner are caracteristicas facilmente identificdveis (como idade, sexo, etnia, naciona- lidade, ocupacio, orientacao sexual). Quando estes gsterestipos adscrevem equivocadamente a um indi- viduo certa qualidade que se acredita pertinente ao grupo a que este per- tence (so os chamados esteredtipos esta! icos: por exemplo, quando ’ se discrimina uma mulher muito mais forte que noventa por cento dos homens num trabalho que requer forca fisica, com base na presungao de que mulheres sAo mais fracas que homens) ou simplesmente expressam uma falsa crenca a respeito do grupo (estes sao os denominados esteredti- pos falsos: por exemplo, quando se discrimina um homossexual pelo fato de atribuir-se a estes a pecha de imaturos emocionalmente), configura-se uma discriminacdo baseada num erro, cuja presenga é, freqiientemente, fator desencadeante de uma aplicacao discriminatéria do direito. Os esterestipos atuam nao sé diferenciando em virtude da associagao entre uma pretensa e indesejada presenga de certa qualidade no individuo pertinente ao grupo, mas também discriminando pela frustragao de uma expectativa da presenca de certa caracteristica ao individuo (por exemplo, quando uma mulher é rejeitada num proceso seletivo em virtude de nao ser suficientemente “feminina”).”> Esterestipos também podem se manifestar de forma aparentemente positiva, todavia carregando um contetido negativo. Um exemplo recor- rente deste é o esteredtipo positivo de que negros so melhores atletas, que, no entanto, freqiientemente se apresenta num contexto negativo su- bliminar, em que capacidade desportiva é contraposta diante da expecta- tiva de inteligéncia.** O caso Edmonson v. Leesville Concrete Company fornece uma hipdtese da censura judicial efetuada pela Suprema Corte diante de discriminacao : ona aplicagao do direito decorrente e reforcadora de estereétipos raciais. Het Naquele julgamento, 0 tribunal vislumbrou na recusa imotivada de jura- yu * do negro para a composicio de jtiri civel uma hipdtese de perpetuagao e po reforco de esteredtipo racial inconstitucional.*” a Outra hipétese de discriminagao na aplicacao da lei, Ii lente dis- a cutida no direito norte-americano, ocorre no chamadd profiling. \Trata-se 23 Ver Anthony C. Thompson, “Stopping the usual suspects: race and the fourth amendment”, New de uma técnica policial, orientadora dos procedimentos de abordagem e of pas } York University Law Review, out. 1999, p. 985. ' 234 Ver, sobre a distingdo entre as diversas modalidades de esteredtipos, K. Anthony Appiah, “Stereo- Seer de investigagao criminais, através da qual se faz a descricéo de potenciais types and the shaping of identity”, California Law Review, jan. 2000, p. 44 e seguintes. 25 Ver Jocelynne A. Scutt, Women and the Law, Brisbane: The Law Book Company Limited, 1990, p. 50. 236 Ver Barbara Flagg, Was Blind, But Now I See, New York: New York University, 1998, p. 27. 237500 US, 614, 1991. Ver, neste sentido, Jennifer Larrabee, Op. cit, p. 311. 4 : ae Va athe Mandl ee Digitalizada com CamScanner criminosos OW suspeitos, utilizando-se uma série de indicadores, resultan- tes da experiéncia e do conhecimento acumulados pela instituigao policial. Como se pode facilmente inferir, tal processo é muito amplo e vago, po- dendo servir de justificagao para quase qualquer atividade policial, o que enseja uma série de discussées e problemas, particularmente no ambito da discriminacao na aplicacao do direito.* No campo racial, por exemplo, h4 uma infinidade de estudos discu- tindo a legitimidade de fatores raciais nestes procedimentos (racial profile), que demonstram amplamente a discriminacao na atividade policial diante de minorias raciais.*” Trata-se de uma area complexa, seja do ponto de vista policial seja do ponto de vista juridico. Ao analisar tais hipdteses, a Suprema Corte somente enfrentou o tema em litigios discutindo o racial profile diante da IV Emenda,™ tendo assentado como leading case o julgado Whren v. United States.” Nesta oportunidade, discutiu-se se a abordagem de dois jovens negros que re- yuo sultou num flagrante de posse de entorpecentes era valida, na medida fr em que, aparentemente, nenhuma circunstancia justificadora da medida atcks policial estava presente, configurando, em tese, uma situacao de racial profile. C O tribunal, como sublinha a doutrina,# silenciou diante da questo 4, }~ esimplesmente enunciou que a invocada IV Emenda nao é 0 dispositivo gar constitucional adequado para questionar-se a motivacao racial, ape- fae nas protegendo o cidadao, durante a abordagem, de um procedimento ” excessivo ou violador de sua privacidade de modo desnecessario. A Abate ae aoe aN 8 Ver Maria V. Morris, “Racial profile and International Human Rights Law: illegal discrimination in the United Stats”, Emory International Law Review, primavera 2001, p. 236. ®9 Ver, dentre tantos, Milton Heumann e Lance Cassak, “Profiles in Justice: police discretion, symbolic assailants, and stereotyping”, Rutgers Law Review, summer 2001; David A. Harris, Profiles in injustice: ‘why racial profile cannot work, New York: New Press, 2002. ™ Os estudos de criminologia e de técnica policial, diante da necessidade de efetiva investigagio e do perigo de discriminacao racial que a acompanha, apontam para diversas solugées, destacando- se iniciativas conjuntas de instituigdes policiais e organizacdes comunitérias. A questdo é realmente complexa e ndo aceita solugées simplistas, como simplesmente impedir qualquer consideracao racial numa investigacio, como seria aconselhavel diante de uma rede criminosa onde © quesito racial decisivo para a participacao no grupo (por exemplo, grupos neonazistas arianos ou méfias orientais nos Estados Unidos). Ver Brandon Garret, Remedying racial profile”, Columbia Human Rights Law Review, outono, 2001 e Elizabeth A. Knight e William Kurnik, “Racial Profile in Law Enforcement” (brief), West Law Review, verdo, 2001. ™Trata-se da emenda que proibe buscas, apreensOes e investigagdes seno com justa causa, limitando , @atividade investigatéria estatal. *© Decisio undnime, relatada pelo Justice Scalia e proferida em 10 de junho de 1996. *® Ver David A. Sklansky, “Traffic stops, minority motorists, and the future of the Fourth Amend- ment”, Supreme Court Review, 1997, p. 291. DIREITO DA ANTIDISCRIMINAGAO 95 Digitalizada com CamScanner doutrina tem criticado esta diretriz,“ apontando precisamente para as origens da IV Emenda, como garantia juridica destinada a protecao de minorias.*5 A aplicagao discriminatéria do direito, envolvendo o racial profile efetivamente, causa uma série de danos, nao importa o ponto de vista que se adote:*” sujeita o cidaddo a uma abordagem policial téo-s6 em virtude de sua raca ou cor, ofende-lhe a dignidade, conduz a perda de legitimida- de do aparato legal diante das populagées discriminadas, acirra as rela- gOes entre a policia, o grupo hegeménico e as comunidades prejudicadas, gerando turbuléncia social e violéncia. A discriminagao direta na aplicacao (discriminatory application) tam- bém no é estranha as praticas nacionais, configurando uma violagao da igualdade juridica em sua dimensao formal. Com efeito, sempre que uma norma, embora concebida e redigida de forma neutra, é aplicada de modo discriminatério, ha discriminacio direta, ofendendo a proibicao constitu- Icional de discriminacao com base em critérios ilegitimos. 2.3, Discriminagao na concepcao A discriminacao pode ocorrer ainda na concepsio da legislacao ou da medida (discrimination by design), ainda que do seu texto nao se possa inferir, literal e diretamente, a diferenciacao. Isto ocorre quando a medida adota exigéncias que, aparentemente neutras, foram concebidas, de modo intencional, para causar prejuizo a certo individuo ou grupo. Pode-se citar, exemplificativamente, uma regra instituidora de uma exigéncia de escolaridade superior num dado con- curso ptiblico com o propésito de excluir pessoas negras, uma vez que os indicadores escolares variam substancialmente em prejuizo da popu- lagao negra. Outro exemplo mais cotidiano da realidade brasileira foi a utilizagao, por largo tempo, da referéncia “boa aparéncia” em antincios de emprego, objetivando, na concepcio, a exclusao de negros. £ importante ressaltar aqui que, nao obstante a neutralidade aparente da regra, ela foi 24 Quanto a viabilidade da identificagdo de um propésito discriminatério no profiling, ver Randall Kennedy, Race, Crime, and the Law, New York: Pantheon Books, 1997, 45 Ver Anthony Thompson, Op. cit, p. 991. 6 Os estudos voltam-se, principalmente, aos casos de inspecdes de transito racialmente despropor- cionais, tendo em vista, inclusive, o reconhecimento do problema por agéncias oficiais norte-ame- ricanas. Tal procedimento, conforme salienta Jennifer Larrabee (Op. cit, p. 314), ficou conhecido no jargudo jurfdico como DWB (driving while black), violando simultaneamente a igualdade por ser ‘overinclusive (afeta muitos individuos inocentes) e underinclusive (nao atinge muitos brancos que co- metem crimes), 7 Ver Maria V. Morris, Op. cit, p. 242. 96 Roger Raupp Rios Digitalizada com CamScanner concebida com o Propésito de excluir do certame ou do emprego pessoas negras, donde a sua classificacio como hipotese de discriminagao direta. ‘A Suprema Corte teve oportunidade de examinar uma hipétese de discrimination by design no caso Griffin v. County School.#® Cuidava-se de le- gislagao do condado de Prince Edward (Virginia) que, apés ordem judicial federal de desegregacéo do sistema escolar, determinou o fechamento de todo o sistema ptiblico de educagao e instituiu beneficios fiscais e sociais para os cidadaos matricularem seus filhos nas escolas Privadas da regio, que, quase na sua totalidade, incorriam em praticas segregacionistas ra- ciais. Analisando a motivacao do ato legislativo estadual que autorizara o aludido condado a fechar as escolas puiblicas, o tribunal vislumbrou discri- minacao direta, consubstanciada na manutencio da segregacao escolar. Nas palavras do voto condutor, proferido pelo Justice Black: Um Estado, 6 claro, tem ampla discri¢ao ao decidir se as leis deverdo atingir todo seu territério ou somente certos condados, tendo a legislatura em mente as necessidades @ desejos de cada um. Um Estado pode desejar, para sugerit como Maryland fez no caso Salsburg, que ha raz6es por que um condado nao teve que ser tratado como 0 outro. Mas os autos do presente caso no poderiam ser mais claros no sentido de que as escolas. pUiblicas de Prince Edward foram fechadas e as escolas privadas operadas em seu lugar com assisténcia publica por uma razo, somente uma: para assegurar, através de medidas tomadas pelo condado e pelo Estado, que riangas brancas e negras em Prince Edward nao iriam, sob ‘qualquer circunstancia, 4 mesma es- cola. Quaisquer que fossem os fundamentos Ndo-raciais que pudessem suportar uma permisséio estadual para 0 condado abandonar as escolas publicas, seu objeto deveria ser constitucional, @ fundamentos raciais e oposicao & desegregacao nao se qualificam como constitucionais, O caso Palmer v. Thompson,” apesar do insucesso da demanda peran- te a Suprema Corte, também ilustra esta situacdio.-Na cidade de Jackson (Mississippi), apés ordem judicial para a desegregacio dos servicos pti- licos, foi aprovada legislacéo _determinando_o fechamento do sistema riblico de piscinas, numa medida neutra racialmente, uma vez que apa- rentemente atingiria brancos e negros. Todavia, do contexto era possivel inferir a motivacao claramente racista da medida, pois que era uma reacao a ordem judicial de desegregacao evitando, assim, a integragao racial, es- pecialmente considerando-se que a populacao branca continuou a contar com 0 acesso ao sistema de piscinas privado local. Conforme aponta a doutrina*” trata-se de legislacao discriminatéria €m sua concepcao, pois, apesar da inexisténcia de qualquer elemento ra- cial em seu texto, aparentemente neutro, percebe-se a motivacdo racial de modo evidente.®" >————_ 7377 US. 318 (1964). % 403 US. 217 (1971). * Ver L. Tribe, Op. cit, p. 1481; G. Gunther e K. Sullivan, Op. cit, p.751. 1403, US. 217. DIREITO DA. ANTIDISCRIMINAGAO. 7 Digitalizada com CamScanner Nas palavras do Justice White, que capitaneou os quatro votos dissi- dentes, Jackson, Mississippi, fechou suas piscinas quando um juiz distrital enfrentou a tradigo da cidade de segegnto nos servigos municipais @ deixou claro sua expectativa qhe os equi. i dhe : 7 ine amentos puiblicos seriam integrados. As circunstancias envolvendo. esta G80 ea ausénci feoutas raz6es criveis para o fechamento deixam pouca divida que o fechamento das pis- Cinas no foi nada mais nada menos que a expressao mais efetiva da politica oficial segundo ‘@qual a negros e brancos ndo devem ser permitida entrada em contato quando da utilizaco dos servigos colocados pela cidade. Examinadas as modalidades de discriminacao direta no direito esta- dunidense, detenho-me na andlise da respostas juridicas a esta forma de discriminacao no direito brasileiro. 3. Discriminagao direta no direito brasileiro O ordenamento juridico brasileiro sanciona, de modo claro e direto, a discriminacao na sua forma direta, intencional. Intimeras normas cons- titucionais sao expressas neste sentido, sendo de se ressaltar a vedacao de discriminagao fundada nos diversos critérios elencados no artigo 3°, IV,da Constituicdo da Republica de 1988. A par destas hipoteses explicitas de censura, encontra-se no catélogo de direitos fundamentais a proibigio, em grau intenso, do racismo; den- tre os direitos fundamentais sociais, proibicdes de discriminagao quanto a salarios, exercicios de funcGes e critérios de admissao por motivo de sexo, idade, cor ou estado civil’ bem como diante do trabalhador portador de deficiéncia.** Outra proibigao constitucional explicita de discriminagao situa-se na Ordem Social, determinando que se coloquem a crianga e 0 adolescente a salvo de qualquer forma de discriminagao.*> A legislacao ordindria, por sua vez, contempla uma série de normas objetivando combater a discriminaco e 0 preconceito. Nesta seara, 0 di- ploma legal mais relevante é a Lei Ordindria Federal n° 7.716, de 1989, que define os crimes resultantes de discriminagao ou preconceito de raga, cor, etnia, religido ou procedéncia nacional. 252 artigo 5°, XLII. 253 Artigo 7, XXX. 25 Artigo 7, XI. 255 Artigo 227, *6 Para um comentario dos tipos penais previstos nesta legislac4o, ver José Silva Jinior, “Preconceito racial (racismo): Lei 7.716, de 5 de janeiro de 1989”. In Leis Penais e sua interpretacdo jurisprudencia, org. José Silva Jinior, Sao Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. 98 Roger Raupp Rios Digitalizada com CamScanner

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