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PIERRE BRUNEL e YVES CHEVREL (Org.) COMPENDIO DE LITERATURA COMPARADA Tradugdo de Maria do Rosério Monteiro Revisdo cientifica de Helena Barbas SERVICO DE EDUCAGAO E BOLSAS FUNDAGAO CALOUSTE GULBENKIAN DA IMAGETICA CULTURAL AO IMAGINARIO Daniel-Henri Pageaux O estudo de imagens do estrangeiro numa obra, numa literatura — a magologia literdria — suscita actualmente trabalhos interessantes, excepto alvez em Franga, apesar de ter sido precisamente neste pafs que foram angadas as bases para uma tal investigagéio, ha mais de meio século, por Jean-Marie Carré. Enquanto em Franga se continua a ironizar sobre a famosa triade «viagens, imagens, miragens», sobre a indignidade da salavra «imagologia», outros, aqui ou ali, pegaram no archote: Hugo Dyserinck em Aix-la-~Chapelle, Alexandre Dutu em Bucareste, Peter Boerner em Indiana (Estados Unidos), Gustav Siebenmann em Saint-Gall ‘Suiga], Franco Meregalli em Veneza, para citar apenas alguns investi- zadores entre os mais notdveis. E necessério reconhecer que esta «imagologia» teve ilustres inimi- z0s. Desde 1953, num artigo publicado em Yearbook of Comparative and General Literature, René Wellek mostrava-se muito duro em relacdo a 1m tipo de estudos que ele julgava representativo da famosa «escola francesa» de literatura comparada, que o mesmo é dizer erudita, listoricista, ou seja, neopositivista. Dez anos mais tarde, Etiemble, em Comparaison n'est pas raison, estigmatizava trabalhos que «dizem espeito ao historiador, ao soci6logo ou ao homem de estado»; e também >studos cujo género era, parecia, «préspero em Franga», «quase tanto somo os estudos sobre os viajantes islandeses em Madagascar, madagas- -arenses em Kamtchatka ou suecos em Banguecoque»... Prosperidade muito relativa, na realidade! Se atendermos no Répertoire das teses de iteratura comparada defendidas entre 1944 e 1972 (editado por Frangoise Fumat sob os auspicios da Sociedade Francesa de Literatura 134 DA IMAGETICA CULTURAL AO IMAGINARIO Geral e Comparada, em 1974), em 630 teses indexadas podem contar-se apenas cerca de cinquenta teses (doutoramentos universitdrios ou teses de licenciatura, na sua maioria) que se podem pretender constituir, de uma forma ou outra, com um «estudo de imagem...». Temos de conceder que estes estudos de imagem abordaram frequen- temente a «transposicao literéria» de uma imagem, para retomar a formula de Marius-Frangois Guyard na sua tese consagrada a L’ Image de la Grande- -Bretagne dans la littérature francaise (1914-1949). Ao mesmo tempo, eram raros os que se consagravam a estudar, de uma forma ampla e sintética, imagens que constitufam, entre dois paises, duas culturas, um novo capitulo de uma histéria das ideias, no sentido em que a entendiam Femand Baldensperger, Paul Hazard ou Jean-Marie Carré. Citemos, contudo, as teses de André Monchoux, de Claude Digeon, de Michel Cadot, de Simon Jeune que demonstraram, a justo titulo, as miltiplas implicagdes histéricas, sociais e culturais de um estudo imagolégico, mesmo quando este se reclamava, a partida, ser de um ponto de vista literdrio. Este tipo de trabalhos reunia perspectivas sugestivas de investigagdes realizadas por historiadores como René Rémond e Louis Trénard. Interdisciplinar avant la lettre, a imagologia padeceu, especialmente em Franga, de dois excessos: por um lado, uma atengdo excessiva dada a textos literdrios separados da andlise hist6rica e cultural; por outro, um excesso inverso: uma leitura demasiado redutora de textos literarios trans- formados em inventdrios de imagens do estrangeiro. Quem tenha consul- tado algumas «teses» ou trabalhos comparatistas, caricaturados (mal) por Etiemble, conhece os maiores defeitos deste tipo de investigagao: catélogo tematico, listagem dos textos citados, inflagdo de citagdes, pardfrases... Contudo, os defeitos do passado nao deviam ser obstéculo para o desen- volvimento de um eixo de investigagdo que conheceu, ao fim de alguns anos, um interesse renovado. No «livro branco» sobre La Recherche en littérature générale et comparée en France (Paris, SFLGC, 1983), Michel Cadot pode apresentar um balanco bastante optimista deste campo comparatista, na medida em que se mostra convencido da necessidade de uma atitude interdisciplinar e de uma alianga ampla entre a literatura e as investigacdes de ordem social e cultural. Por seu lado, Claudio Guillén em Entre lo uno y lo diverso, primeiro «manual» de literatura comparada em Ifngua espanhola, muito favordvel aos estudos de «poética» e reservado relativamente a toda a abordagem «histérica», sabe, contudo, reconhecer 0 interesse da imagologia se nao actualizada pelo menos renovada. COMPENDIO DE LITERATURA COMPARADA 135 E evidente que a imagologia coincide com um certo nimero de vestigagdes desenvolvidas por etndélogos, antropdlogos, socidlogos, storiadores das mentalidades, os quais abordam questdes que incidem bre a aculturagao, a desculturagdo, a alienagdo cultural e a opiniao blica face a um elemento estrangeiro, entre outros. O comparatista tem io © interesse em ponderar certas pesquisas realizadas por investi- dores de 4reas préximas, nao para esquecer o estudo literdrio e alargar smesuradamente 0 seu «territério», mas para confrontar os seus méto- s com os dos outros e, sobretudo, a imagem «literéria» com outros stemunhos paralelos e contempordneos (imprensa, paraliteratura, avuras, filmes, caricaturas, etc.). Trata-se fundamentalmente de nscrever a reflexdo literaria numa andlise geral sobre a cultura de uma de varias sociedades. Assim concebida, a imagem «literdéria» € encarada como um njunto de ideias sobre o estrangeiro inseridas num processo de lite- rizacao, mas também de sociabilizacdo. Esta nova perspectiva obriga 0 yestigador a ter em conta nao apenas os textos literarios, as condigdes 1 que estes sio produzidos e difundidos, mas também todo o material Itural com o qual se escreveu, mas também se pensou e viveu. Este tipo trabalho leva o investigador a encruzilhadas problematicas onde a agem tende a converter-se num relevador particularmente iluminador s funcionamentos de uma ideologia (racismo, exotismo, por exemplo, ra atendermos apenas as questdes referentes ao «estrangeiro tal como € ito»). Para tanto, é impens4vel que o investigador comparatista negue a vecificidade do facto literério (geralmente através de relatos de viagem, saios, romances, ficgdes, dramas, mais raramente, poesia). Mas esta pla exigéncia e esta mudanga de horizonte nos estudos de imagens nao ixam de ter consequéncias para uma redefinigdo do nosso campo de restigaco (a imagologia) e da nossa disciplina. A imagem do estrangeiro deve ser estudada como a parte de um njunto vasto e complexo: o imagindrio. Mais precisamente 0 imaginério tial (palavra tomada de empréstimo dos historiadores) numa das suas mifestagdes especificas, a representacao do Outro. Nestas condigées, é cessério definir o que, em literatura comparada, entendemos por nagem». Alguns elementos de definigéo permitirao seguidamente mular principios para os estudos dessa imagem e dar um contetido ‘todoldgico 4 imagologia. Contudo, nao se trata de dotar este campo de 'estigagéo de uma qualquer autonomia. Os princfpios metodolégicos COMPENDIO DE LITERATURA COMPARADA 137 E © que se pode chamar, num plano da histéria das ideias, «opinides», (Q@wides intelectuais a partir das quais so legitimadas e podem desenvolver- ‘= magens de cultura. Estudar estas tiltimas leva 4 sua compreensio e vice- \sersa. segundo a 6ptica do investigador. E por essa razdo que a histéria das j@eias € 0 complemento obrigatério da imagologia e também a base para beds 2 investigaciio sobre o imaginario social que est aqui em questao. As proposigées avancadas podem permitir também abandonar todo == vocabuldrio extrafdo do registo da éptica (percepgao, olhar, prisma, ‘mura, visdo, etc.). Sem duivida que, neste ou naquele caso, 0 uso e a como- ‘Gdade fazem com que se adoptem estes vocdbulos aos quais nés mesmo secorreremos. Mas é um dado adquirido doravante que a imagem é repre- sentagdo, mistura de sentimentos e de ideias de que é importante captar as sessonancias afectivas e ideolégicas. A consequéncia imediata destas peoposigées é a de suprimir 0 falso problema no qual se atulha frequen- ‘®=mente o estudo da imagem: a «falsidade» ou o «grau de fidelidade» de ma imagem relativamente ao pafs «observado», como se a imagem fosse =m analogon do real (daf os erros de «percepeao»). E cair na armadilha da dusio referencial, frequentemente denunciada. A partir de que dado objec- myo pode julgar-se a fidelidade da imagem relativamente ao que designamos por real? De facto, o estudo da imagem deve prender-se menos com o grau de «tealidade» da imagem, com a sua relagdo com 0 real, do que com a sua maior ou menor conformidade com um modelo, um esquema cultural que ihe preexiste, na cultura «observadora» e nao na cultura «observada» e cujos fundamentos, constituintes, funcionamento e fungao social é importante conhecer. A imagem é, até certo ponto, linguagem (linguagem acerca do Outro); nessa qualidade, a imagem reenvia, evidentemente, para uma reali- dade que ela designa e a que confere significado. Mas o verdadeiro problema € o da légica da imagem, da sua «verdade» e nao da sua «falsi- dade». Estudar a imagem 6, portanto, compreender 0 que a construiu, 0 que a autentifica, 0 que a torna, se for caso disso, semelhante a outras ou origi- nal. Vemos ainda nisto como a imagologia literdria se vinculou a histéria das «ideias», das «mentalidades», uma vez que a imagem do estrangeiro é secundaria relativamente aos sistemas de ideias ou ideologias que se instau- ram entre paises, entre culturas, no seio de uma mesma cultura. O Outro € © que permite pensar de... outro modo. Captamos assim uma das caracteristicas complexas desta «imagem» que obriga o investigador a reorientar certas andlises demasiado literdrias. A imagem do estrangeiro fala também da cultura de origem (0 pais 138 DA IMAGETICA CULTURAL AO IMAGINARIO «observador»), 0 que por vezes é dificil de conceber, de exprimir, de confessar. A imagem do estrangeiro pode transpor, para um plano metaférico, realidades nacionais que nao est&o explicitamente definidas e que por isso mesmo podem depender daquilo que alguns designam por ideologia. Deste modo, a imagologia, longe de se prender aos principios Unicos da «transposig&o» literaria, deve ligar-se, mais cedo ou mais tarde, ao estudo das linhas de forgas que regem uma cultura, do sistema ou sistemas de valores sobre os quais podem fundar-se os mecanismos da representagdo, 0 mesmo é dizer os mecanismos ideolégicos. Estudar como se escrevem diversas imagens do estrangeiro é estudar os funda- mentos e os mecanismos ideolégicos sobre os quais se constroem a axiomatica da alteridade e o discurso sobre 0 Outro. «O olhar assegura 4 nossa consciéncia uma saida do espaco que o nosso corpo ocupa.» A proposigéo que Jean Starobinski avanga, nas primeiras paginas de L’Oeil vivant, poderia ser transposta, nio sem precaugdes e algumas nuances, para o plano da cultura observadora e da cultura observada, para retomar o par de vocdbulos grato literatura comparada. Eu «observo» o Outro; mas a imagem do Outro veicula também uma certa imagem de mim mesmo. E impossfvel evitar que a imagem do Outro, a um nivel individual (um escritor), colectivo (uma sociedade, um pafs, uma naco) ou semicolectivo (uma familia de pensa- mento, uma «opinido»), nado apareca também como a negacao do Outro, 0 complemento, o prolongamento do meu pr6prio corpo e do meu préprio espaco. Quero dizer o Outro (frequentemente por raz6es imperiosas e complexas) e, ao dizer 0 Outro, nego-o e digo-me a mim mesmo. De certo modo, digo também o mundo que me rodeia, digo o lugar de onde partiu o olhar e o julgamento-do Outro: a imagem do Outro revela as relagdes que eu estabelego entre o mundo (espago original e estrangeiro) e eu proprio. A imagem do Outro aparece como uma segunda lingua, paralela a lingua que eu falo, coexistindo com ela, duplicando-a de algum modo, para dizer outra coisa. A imagem tem, surpreendentemente, todas as caracteristicas de uma lingua. Bastaria recordar os elementos de defini¢do de uma lingua apre- sentados por Emile Benveniste e aplicé-los, sem qualquer tipo de esque- matismo, a uma imagem: enunciacao (falar é falar de); constitui¢ao em unidades distintas de que cada uma é signo; referéncia para todos os membros de uma mesma comunidade; tinica actualizagao da comunicacao intersubjectiva. A imagem é claramente uma segunda lingua, uma COMPENDIO DE LITERATURA COMPARADA 139 slinguagem». Entre todas as linguagens de que pode dispor uma socie- Gede para se dizer e se pensar, entre todas as linguagens simbélicas ‘pensemos na moda estudada por Roland Barthes), a imagem é uma delas, emginal, que tem por fungo dizer as relagdes interétnicas, interculturais, =s relagdes menos efectivas que repensadas, sonhadas, entre a sociedade que fala (e que «observa») e a sociedade «observada». A imagem, por que é imagem do Outro, é um facto de cultura; de mais a mais nés falamos de imagética cultural. A imagem deve ser estu- dada como um objecto, uma pratica antropolégica e tem o seu lugar e a sua fungdo no universo simbdlico nomeado aqui de «imagindrio», inse- pardvel de toda a organizacio social e cultural, uma vez que é através dele que uma sociedade se vé a si mesma, se escreve, se pensa e se sonha. Voltemos a ideia segundo a qual a imagem é «representagio», isto é, qualquer coisa que ocupa o lugar, para alguém, de algo... de algo Outro. Uma representacdo nao é uma «imagem» no sentido plastico, artistico; 220 € um «icone», mas antes, segundo o vocabulério do investigador, uma adeia, um simbolo, um signo; acrescentemos mesmo, por vezes, um «sinal» puro. Sejamos ainda mais precisos: a imagem nao é uma imagem no sentido analégico (é mais ou menos semelhante a...), mas no sentido referencial (imagem pertinente por referéncia a uma ideia, a um esquema, 2um sistema de valores preexistentes 4 representag4o). Compreendemos por que raz4o a imagem, enquanto representacao, pode ser passivel de uma andlise que se reclame largamente da semiolo- gia, nio unicamente porque, como o demonstrou Charles Peirce na sua obra clissica On sign, a semiologia € 0 dominio da representagio no sentido em que nds 0 entendemos, mas também porque esta representagao € um vector possivel da comunicagao (a linguagem segunda de que falé- vamos mais acima). A imagem tem, para retomar as palavras de Roland Barthes, em Eléments de Sémiologie [Elementos de Semiologia], uma «fungdo signo». Porque a imagem é€ representacao, logo substituto em lugar e espago de outra coisa, ela nao poderia ter (ao contrario de certas imagens-fcones ou imagens poéticas) o cardcter teoricamente polissémico que é inerente a todas as composig6es artisticas ou estéticas. Dito por outras palavras: num momento histérico concreto e numa cultura especi- fica nao é possivel dizer, escrever seja 0 que for sobre o Outro. Os textos imagolégicos sao textos em parte programados, alguns mesmo codifica- dos e descodificéveis mais ou menos imediatamente pelo piiblico leitor porque os discursos sobre o Outro nao sao em ntimero ilimitado, mas uma 140 DA IMAGETICA CULTURAL AO IMAGINARIO quantidade determindvel, sequenciavel, para retomar 0 vocabu-lério do historiador. Enumerar, desmontar, explicar estes tipos de discursos, mostrar e demonstrar como a imagem, tomada globalmente, é um elemento de uma linguagem simbélica que se deve estudar como sistem de sentido (Sinnzusammenhiinge para retomar as palavras de Max Weber) € 0 objecto proprio da imagologia. Apesar das definigdes propostas, a imagem permanece uma palav que se adequa a qualquer situagao, um objecto fluido. Por isso é util reflectir sobre uma forma particular de imagem: 0 esteredtipo. Mais uma vez, neste caso, o estudo do estereétipo, encarado como uma forma elementar, caricatural mesmo da imagem, é obscurecido pela questio dai falsidade e dos seus efeitos perniciosos no plano cultural. Talvez haja algo mais a dizer e a fazer. Se admitimos que toda a cultura pode ser considerada, a dado tempo, como um espago de invengao, de produgio e de transmissao de signos (0 que equivale a conceber todo o fenémeno cultural como um processo de comunicagio e todo o processo cultural como polivalente tanto no seu funcionamento como na sua fungdo), 0 esteredtipo apresenta-se nao como um «signo» (como uma possfvel representagdo geradora de significagées), mas como um «sinal» que remete automaticamente para uma tinica inter preta¢ao possivel. O esterestipo é 0 indice de uma comunicagao unfvoca, de uma cultura em vias de bloqueio. Na cultura em questo — ou neste ou naquele sector sociocultural e num qualquer texto — 0 imaginério, isto é, a capacidade morfopoética que supde toda a cultura ou manifestagao cultural, encontra-se reduzida a uma mensagem tinica: o esteredtipo é 0 figurével monomorfo e monossémico. Consequentemente, € dificil de admitir que o esteredtipo publicitério, por exemplo, tenha apenas uma \inica mensagem a transmitir. Seria, entdo, mais justo dizer (e de uma forma muito mais simples do que a que acabou de ser utilizada) que 0 estere6tipo entrega, na realidade, uma mensagem «essencial»; que esse figurdvel difunde uma figura essencial, primordial, primeira e Ultima. Se se reflectir sobre a produgo do esterestipo, apercebemo-nos que obedece a um processo de fabricagaio simples: a confusao do atributo e do essencial, tornando possfvel a extrapolacdo constante do particular para 0 geral, do singular para o colectivo. Num texto, o estereétipo situa-se frequentemente no plano do epiteto, da adjectivagao: é 0 atributo acessério, qualificativo que se torna esséncia. Enquanto a comunicagao (idealmente concebida) supée a simbolizacao que permite a produgio plural de sentido, COMPENDIO DE LITERATURA COMPARADA, 141 unicaciio por estere6tipos situa-se ao nivel do processo de atribuigao. a formulacao mais frequente: este povo é... aquele povo nao €... este @ sabe... aquele povo nao sabe... Enunciada no presente (e, frequen- ite, cortando de forma clara com o tempo da narrativa no passado) o teredtipo é a expressio propria de um tempo bloqueado, de um tempo de cias. Daf a padronizago possivel do esteredtipo, a sua proliferagdo toda a expressiio cultural fabricada em série (a literatura «industrial» do ulo XIX, os folhetins, os melodramas, os antincios, a propaganda, etc.). interesse do esterestipo, neste caso, € evidente: ele transmite uma forma inimal de informagdes para um maximo de comunicagio, a mais mmpacta que é possivel; foi ao «essencial». O esteredtipo é, claramente, espécie de sintese, de resumo, uma expressio emblematica de uma Itura, de um sistema ideoldgico e cultural. Estabelece uma relagéo de formidade entre uma expresso cultural simplificada e uma sociedade: promocao do atributo ao nivel de esséncia exige 0 consenso sociocultural vasto que é poss{vel obter. Portador de uma defini¢ao do Outro, 0 iteredtipo é o enunciado de um saber dito colectivo que se quer valido seja ‘qual for o momento histérico. O esterestipo nao € polissémico; em contra- partida é altamente policontextual, reutilizivel a cada instante. Acrescentemos que se a ideologia se caracteriza, entre outras coisas, pela ‘confusio operada entre uma norma (moral, social) e um discurso, 0 ‘esteredtipo representa, a seu modo, uma fusdo, uma confusdo particular- ‘mhente conseguida e eficaz. Na realidade, 0 esteredtipo coloca, de forma implicita, uma cons- ‘fante hierdrquica, uma verdadeira dicotomia do mundo e das culturas. Dizer que o Francés é bebedor de vinho é um esteredtipo na medida em que esta autodefinigio se opde de forma primeira, essencial, a0 Inglés bebedor de cha ou ao Alemao bebedor de cerveja. E esta oposigao visa, na realidade, estabelecer uma hierarquia a favor do Francés, no interior de uma cultura «francesa». Exemplo simplista que leva a crer que explo- amos a série Asterix e a superioridade bem conhecida dos Gauleses? E esquecer até que ponto a literatura revanchista em Franga, entre 1870 e 1914, em especial Maurice Barrés, soube explorar esta oposigao banal para justificar a oposigao entre civilizagao e barbarie. E que 0 esterestipo existe opondo-se; prova-se no mesmo momento em que se enuncia. Prodigiosa elipse do espirito, do raciocinio, é uma constante petigao de princfpios: o esterestipo mostra (e demonstra) 0 que era preciso demons- trar. Nao é apenas indice de uma cultura bloqueada; desvenda uma 142 DA IMAGETICA CULTURAL AO IMAGINARIO cultura tautolégica da qual toda a aproximagio teérica é doravante excluida em beneficio de algumas afirmagdes de tipo essencialista, discriminatério. Para utilizar uma definigdo pertinente de Gillo Dorfles, em Nuovi riti, nuovi miti, o estere6tipo nao estaria do lado do mitopoético, mas do lado mitagégico (componentes alienantes ou irracionais). Contudo, é ainda necess4rio ver como se constr6i a definig&o de que o estereétipo é portador. Esta opera uma confusao entre duas ordens de factos complementares, mas distintos: a Natureza e a Cultura, 0 Ser e 0 Fazer. Nao nos devemos espantar com a importancia do registo fisico, fisiolégico, na enunciagao do estereétipo (nariz adunco para o judeu, sorriso «dentes brancos» para 0 negro, etc.): a Natureza justifica, cauciona uma situag4o cultural: tal povo sabe... ndo sabe... O estereétipo mantém a tipica confusio da ideologia entre o descritivo (o discurso, por exemplo, este povo é...) € 0 normativo (a norma, por exemplo, tal povo nao sabe...). O descritivo (0 atributo fisico) confunde-se com a ordem normativa (a inferioridade de um povo, de uma cultura). A ideologia racista (nas suas miltiplas variantes) assenta na falsa demonstraco da inferioridade fisica ou a anormalidade fisica do Outro (relativamente 4 norma que é 0 «Eu» que enuncia 0 estereotipo). Seria inttil dissimular até que ponto as presentes reflexGes so deve- doras das ciéncias humanas (a antropologia, as ciéncias hist6ricas, a semiologia...). O fundamental é reorientar os estudos de imagética literdria (entre outros) e de os reinstalar no centro de uma problematica a um tempo social e cultural da qual nunca deveriam ter desertado. Para retomar uma f6rmula esclarecedora de Roland Barthes no seu artigo programético, «Histoire ou littérature» (Sur Racine [Racine], 1960), formula relativamente esquecida por numerosos discfpulos, a obra literéria € simultaneamente «signo da hist6ria» e «resisténcia a essa histéria». Quando interrogarmos os textos literdrios que interessam a imagologia, perguntemo-nos entao, mesmo correndo o risco de algumas hesitagdes ou faltas de habilidade, em que medida essa representagao do estrangeiro pode ser tributéria de uma certa opg%o ideolégica, mistura complexa de ideias e de sentimentos historicamente referencidveis. Identifiquemos no interior do texto, ou se possivel através de investi- gagées hist6ricas, as grandes categorias socioculturais que informam este ou aquele texto, que permitem, sem esquematismos nem generalizagdes, classificar este texto no interior de uma grande «familia» de opiniao cujo conjunto constitui uma sociedade, uma cultura. Perguntemo-nos, por COMPENDIO DE LITERATURA COMPARADA, 143 exemplo, se a filiagdo anunciada de um escritor ao catolicismo pode ou nao inflectir a visio que ele dé de uma cultura como a da Peninsula Ibérica, num dado momento histérico: ou se a pertenga a uma familia politica conotada permite identificar tragos particulares da representagao cultural de um pafs determinado consoante ele est4 ou nao em harmonia com a ideologia deste ou daquele escritor. Ao multiplicarmos este género de perguntas, é possivel, ao comparatista, recompor a partir unicamente dos textos literdrios, um verdadeiro quadro mais ou menos sincrénico das opinides, das atitudes mentais de uma época, de uma sociedade: a imagem é um poderoso reve- lador de opinides, mesmo de clivagens que atravessam e estruturam uma Sociedade. Abandonando a camada e 0 corte sincrénicos, interroguemos 0S textos tomados num processo secular, até mesmo multissecular, e Yejamos, objectivamente, como se organizam as representagdes do estrangeiro em fungao de diversas atitudes mentais devidamente identifi- cadas de um ponto de vista ideolégico. Ao introduzir a longa durag4o nos Nossos estudos, é ent&o possivel observar como se afirmam e se esfumam as visdes perturbantes ou tranquilizadoras do estrangeiro, como se enraizam, através de repetigdes, as opinides tradicionais, como pode, ent&o, escrever-se uma espécie de histéria segunda, fazendo alternar em Novas escansées cronolégicas, sociais, culturais, os longos espacos calmos onde se sucedem os clichés, as visdes estereotipadas, onde se anunciam (e pela pena de quem) os momentos de revisdo, de renovacao, us fracturas da meméria de uma ou de varias geragGes, onde se alteram enfim as incessantes relagdes, de uma gerac4o para outra, dos mesmos discursos sobre o estrangeiro. De passagem, hierarquizemos os textos interrogados, nao em fungao do seu possivel interesse literario ou do seu valor estético, mas em fungao do seu impacto ideolégico sobre um dado pliblico. Da bragada emaranhada de testemunhos sobre o estrangeiro, isolemos os textos que conseguiram controlar ou fortalecer uma «opiniaio» sobre o estrangeiro, os que conseguiram fabricar uma atitude mental ou os que se limitaram a reproduzir (os mais numerosos!) uma «imagem» j4 conhecida e identificada. Avancemos ainda mais: nao nos contentemos apenas com os textos literérios e procuremos noutros domfnios (a imprensa, a correspondéncia privada, os textos semiteéricos = prefacios, manifestos, ensaios — os manuais escolares, de importancia capital para a reprodug&o das representagdes) como se repetem ou se alteram as imagens que foram isoladas na literatura de ficgaio. De uma tal 144 DA IMAGETICA CULTURAL AO IMAGINARIO COMPENDIO DE LITERATURA COMPARADA 145 confrontagiio resultardo consolidadas ¢ matizadas as leituras das obras literdrias, como este trabalho levara ainda o comparatista a interrogar-se Sobre questées essenciais que o historiador se coloca actualmente: em que medida se podem estabelecer correlagdes entre as produgées cultu raise as estruturas sociais num dado momento; como se pode estudar 0 mecanismo das relag6es entre infra e superstruturas ou, dito de outro modo, como se articulam o plano das realidades sociais, nas suas formas € nas suas estruturas, e o plano das representagdes ideoldgicas; ou ainda como e€ em que medida o espiritual se repercute no material, para retomar um vocabuldrio caro a Georges Duby e a Fernand Braudel. Nao tenhamos dtividas: é a custa destes alargamentos considerdveis das investigagdes e das apostas que os estudos literdrios, e particularmente 0 dominio de que nos ocupamos, se poderao libertar das leituras redutoras que, de mil formas, nao podem nem querem sair do texto. Nada é mais errado do que este preconceito no que diz tespeito aos textos «imagologi- cos», uma vez que as imagens que eles incluem e que eles veiculam mantém estreitas relagdes com dados de ordem hist6rica, social e cultural Decididamente, em literatura no se convoca de forma impune o Outro essa poderia ser a formula, evidente e falsamente simples, que conviria aprofundar. Mas como? Regressemos a definigao de imagem como texto Pprogramado, como comunicagado programada para distinguir, de forma teGrica, trés elementos constitutivos da imagem que, por necessidades de clareza e eficacia, exporemos segundo uma ordem de complexidade crescente: a palavra, a relagio hierarquizada, 0 cenério. Em cada nivel, a interrogagaio pode desembocar em alguns métodos de andlise que o investigador poder, vontade, combinar ou inverter. Como elemento primeiro, constitutive da imagem que tentamos reconstruir, identificamos um acervo, maior ou menor, de palavras que, numa dada época e numa dada cultura, permitem a difusdo mais ou menos imediata de uma imagem do Outro. Estas palavras, mas também, nos textos, estas constelagdes verbais, estes campos lexicais compéem o arse- nal nocional, afectivo, em principio comum a um escritor ¢ ao publico leitor. Distinguiremos palavras-chave, palavras fantasmas e duas ordens lexicais: as palavras provenientes da lingua do pais observador que servem para definir o pafs observado e as palavras retiradas da lingua do pais obser- vado e transferidas, sem tradugio, para a lingua, para um espaco cultural, Para Os textos do pais observador. E também para o seu imaginario. Para ilustrar o primeiro conjunto e explorar as imagens francesas de Espanha, citemos, ao acaso, «orgulho», «nobreza», «honra», «paixdo», que servem, desde o século XVII, para classificar 0 homem espanhol «visto» pela cultura francesa. Um tal léxico pode suscitar um estudo diacrénico (a longa duracao dos historiadores) e oferecer dados exactos sobre a presenca, a natureza e a fungdo deste Espanhol imaginado, colo- cado em imagens, isto é, em palavras, num imaginério francés plurisse- cular. Em contrapartida «baz6fia», até mesmo «extravagincia» ou «apaixonado» sao palavras que se usaram essencialmente entre 0 século XVI e o XVIII. Identificar estas palavras, recompor as redes lexicais sao outros tantos mergulhos nesse imagindrio social e cultural objecto da nossa reflexdo. A investigaco seré mais fecunda ainda com as palavras nao traduzidas, portanto intraduziveis, porque elas veiculam e significam uma realidade estrangeira absoluta, um elemento inalteravel de alteridade: «hidalgo», «fandango», «sombrero», castanholas, mantilhas, cuja hispanidade 0 afrancesamento nao péde abarcar totalmente. A palavra estrangeira deve ser considerada aqui na problematica que Roland Barthes desenvolveu para a italianidade a partir de um antincio publicitario («Rhétorique de l'image», Communications, n.° 4). Uma vez que é a escrita de e sobre a alteridade que aqui nos ocupa, € importante estar atento ao que permite a diferenciagao (0 Outro versus Eu) ou a assimilagdo (0 Outro semelhante a Eu). Neste segundo caso, vemos as vantagens que um estudo, a partida lexical, pode tirar de nogdes ‘operat6rias tais como a isotopia e, de um modo geral, tudo o que permite passar de uma sequéncia lexical, de um eixo sémico para outra sequéncia, para outro eixo. E, por exemplo, evidente que, em numerosos textos e na opinido de numerosos letrados franceses do século XVII € XVIII, 0 orgulho castelhano, os citimes excessivos, a preguiga incoercivel, a paixio espa- nhola (préxima da loucura quixotesca) opdem-se, ponto por ponto, a uma «imagem» francesa baseada na medida, na reserva, no trabalho, na razao (o verdadeiro, o verosimil, etc.). No texto estudado, a andlise lexical estar atenta a todos os tragos de interacgao, repetigdo, 4 contagem de certas ocorréncias, a qualquer mani- festacdio de automatismo na escolha do vocabulério, respeitando especial- mente A marcagdo dos lugares (espago estrangeiro), os indicadores de tempo (captura cronolégica, histérica, actual ou anacrénica do Outro), léxico da captacdo exterior e interior das personagens, escolha da ono- mAstica (simb6lica dos pronomes preferenciais), em suma, tudo 0 que, ao 146 DA IMAGETICA CULTURAL AO IMAGINARIO COMPENDIO DE LITERATURA COMPARADA. 147 nivel da palavra, permita um sistema de equivaléncias (no sentido neutro do termo) entre 0 Outro e o «Eu». Conviré estar atento a adjectivagio que permite compreender alguns processos de qualificagao. De igual modo, estudar-se-do os processos e as palavras de todos os procedimentos de comparagao que permitem captar as passagens de uma sequéncia seman- tica para outra, compreender como se podem escrever os processos de apropriagio do estrangeiro (redugao do desconhecido ao conhecido, ao elemento «nacional») ou de afastamento, de exotizagao, processos de inte- gragao cultural do Outro ou, pelo contrario, de exclusdo, de margina-liza- cdo. Ultimo ajustamento: a presenga ou a auséncia de notas explicativas, definigdes mais ou menos convencionais de elementos estrangeiros que devem ser «naturalizados» pelo piiblico leitor. Neste estédio, o imagindrio para o qual reenvia esta imagem em palavras ou este léxico imagético é uma espécie de repertério, um diciondrio em imagens: é 0 conjunto de ferramentas nocionais, afectivas de uma ou varias geragdes, de uma classe social ou comum a varios componentes socioculturais. Tal palavra reenviaré prioritariamente para uma nogio religiosa, politica, filos6fica com efeitos acumulaveis e inter- mutdveis; quem poderé prever, em alguns decénios, a sorte tal vez literdria, ideolégica certamente, da palavra «gulag» em Franga e no Ocidente? A «crueldade» espanhola, atributo que passou ao nivel de ess@ncia, serviu indiferentemente (mas com matizes na perspectiva histérica) a opiniao protestante do século XVI, o homem virtuoso do século XVI, 0 filésofo e 0 enciclopedista do século XVIII, 0 romantico ex6tico do século XIX e 0 antifranquista do século xx. Nesta fase, a imagologia é um auxiliar activo da hist6ria das ideias, mas s6 até certo ponto, uma vez que nao se trata de referenciar as ideias dentro de conjuntos ou de sistemas filoséficos e politicos, mas de representagdes num universo mental que também podemos designar de imagindrio. No dom{nio estritamente comparatista, os estudos de recepgao dificilmente podem dispensar estes pontos de refe- réncia lexicais para compreender como se elabora, a partir de alguns vocdbulos, um discurso critico sobre a literatura do Outro. A estes elementos ou redes lexicais correspondem, em geral, proces- sos de semantizag4o bastante simples: a palavra, muitas vezes, nao se afasta, pela sua natureza e funcionamento, do esteredtipo. Ele gera reflexos semAnticos frequentemente univocos: é 0 que designémos supra por descodificagéo mais ou menos imediata pelo piiblico leitor. Mas trata- -se aqui de palavras-chave, autenticadas pela hist6ria e pelo processo cultural de varios séculos. No caso de «palavras fantasma», os semas virtuais sao, por assim dizer, mais numerosos, os efeitos de sentido mais complexos, desenhando campos semfnticos mais vastos. E que a palavra fantasma nao serve apenas para a comunicagao directa, a da linguagem; serve também a comunicacg4o simbdlica. Citaremos, ao acaso, palavras como « do texto e confrontd-lo com explicag6es fornecidas pelos historiadores. A compreensao da fungao de um texto imagolégico (e j4 nao apenas do seu funcionamento) passa por um «desvio» pela Histéria, particular mente a histéria das mentalidades. Quando Michel Vovelle definiu este ramo da histéria como «o estudo das mediagGes e da relagiio dialéctica entre as condigdes objectivas da vida dos homens e a forma como eles a narram para si mesmos e também como eles a vivem», compreende-se até que ponto este desvio pode ser esclarecedor. Por seu lado, Georges Duby mostra 0 interesse que ¢ necessario dar as «representagdes mentais» quando levanta a seguinte hip6tese de trabalho: «O sentimento que experimentam os individuos e os grupos acerca da sua posi¢io respectiva e as condutas ditadas por esse sentimento nado sio imediatamente determinadas pela realidade da sua condigao econémica, mas pela imagem que elaboraram dela, a qual nunca é fiel, mas sempre inflectida pelo jogo de um conjunto complexo de repre: sentagdes mentais.» A «representagdo» particular que é a imagem do estrangeiro participa desta problemética complexa que obriga o investi gador a reflectir sobre as articulagdes que existem entre os dados multi plos da histéria. Contudo, nao se trata de esquecer a especificidade de uma representagao que permanece «literdria». A partir de palavras, de relagdes hierarquizadas, a imagem vai desen volver-se em temas, em sequéncias, em cenas, no duplo sentido, narrativo e dramattirgico do termo. Um cenério vai inscrever-se num texto e pode confundir-se com a totalidade do texto estudado. Tomemos 0 caso simples em que 0 cendrio tende a ser uma série programada de sequéncias narra. tivas, de sequéncias obrigatérias e reconhecidas por um ptiblico, na medida em que as imagens veiculadas se registaram de forma estavel COMPENDIO DE LITERATURA COMPARADA. 153 lanente, na cultura observadora e onde estao, como dizem os sociél- s, Socializadas. Para muitos viajantes, ensafstas, romancistas, «dizer» Espanha, escrever sobre a Espanha, foi durante muito tempo alinhar ‘obrigatoriamente, programaticamente, sequéncias sobre um albergue ‘Mediocre, a m4 cozinha, os assaltantes da estrada, etc. Talvez reconhega Nesta descrigio também o inicio da novela de Mérimée, Carmen {Carmen}, texto que por sua vez seria a base do libreto que contribuiria ‘para propagar um tipo social e cultural; melhor, um verdadeiro mito, 0 da mulher fatal. Constatamos que nao hd nenhuma solugao de continuidade entre um esteredtipo e um mito a partir do momento em que um ‘estereétipo tornado narrativa, em imagens, num cendrio se converte no inicio possivel de um mito. Vale a pena notar que a palavra utilizada, «cendrio», reenvia, com ‘efeito, para um dos elementos da definigao do mito: nado h4 mito sem Nequéncias de uma hist6ria a narrar. Lembremo-nos outras trés caracteris- ticas do mito j4 expostas e que Ihe conferem toda a sua dimensao cultural: mito é saber, autoridade; 0 mito é hist6ria do grupo; o mito é a histéria @lica que tende a dar coeréncia ao grupo que a produziu e ao qual se ilirige. Na realidade, cada elemento desta definigdo pode servir para carac- terizar certas imagens quando ganham, para o escritor ou para um grupo, Ou para toda uma colectividade, um valor explicativo, normativo, ético, em determinadas condigGes hist6ricas e culturais. D. Quixote contra os moinhos de vento, «Um olho negro te observa», ‘ fidalgo pobre e orgulhoso sao outros tantos esteredtipos que servem para ‘A definigdo, para a hierarquizagdo e a difusdo de um espago hispanico fepresentado na cultura francesa (e também noutras culturas). Porém, Stes elementos memorizados, arquivados, sao susceptiveis de se convert- rem em histéria exemplar, com valor ético, reunindo um conjunto de valores explicativos: 0 Louco generoso (servird de elemento constitutivo u Dostoievski para o seu O Idiota), a mulher fatal, a paixdo até 4 morte ou 0 Maitre de Santiago de Montherlant. Palavras, conjuntos de relagdes, um cendrio foram objecto de um Verdadeiro investimento. Mas o imagindrio nao se apodera de uma histéria ‘ou de um cendrio quaisquer. Tratam-se de referéncias culturais, de autori- dlades, seja para o escritor que as escolheu (valor explicativo que faz da imagem retida um mito pessoal, até mesmo obsessivo), seja para o grupo {hist6rias que, por convengio cultural, hist6rica, sio susceptiveis de ser -feactualizadas, reactivadas a todo 0 momento). A imagem como duplo

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