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ENsalos sovvaosaee BT Ered ng 0 15448/1989-427820142 17128, Naturalismo e banalidade em Um canatha (1895), de Figueiredo Pimentel Naturalism and banality in Um canalha (1895), by Figueiredo Pimentel LEONARDO MENDES RENATA FERREIRA VIEIRA rived Fee Rie ano FAPERD- Ro deo Rode eo Br le Restumo: O nome do eseritor Alberto Figueiredo Pimentel (1869-1914) ¢ uma auséneia notivel na historia da literatura brasileira e, principalmente, na historia do naturalismo no Brasil. O objetivo deste trabalho é estudar a trajetoria do eseritore sua relagao com a estética naturalista ‘por meio do estudo de seu segundo romance: Uim canallia, publicado pela Livraria Laemmert 1o Rio de Janeiro em 1895, Adotamos uma concepedo ampliada de naturalism come estética da civilizacto industrial do século XIX, destemida do paradoxo, capaz de acomodat subgeneros, apropriagdes, vertentes e modos de execugdo estranhos & historiografia tradicional, mas que cram reconheeidos como “naturalistas” no momento de sua primeira cireulagao. Ao estudar @ ‘obra do autor, chamamos a atengéo para uma vertente pouco conhecida da estetica, que o critico ‘David Baguley (1990) chamou de “naturalismo da desiiusac”, interessado em retratar o banal, © antichevoico @ o que “ndo acontecia” na vida dos personagens. Palavras-chave: Alberto Figueiredo Pimentel: Naturalism; Banalidade; Romance brasileiro “Abstract: Writer Alberto Figueiredo Pimentel (1869-1914) has been a notable absence in the history of Brazilian history and principally in the history of naturalism in Brazil. This works aims at studying the writer’s trajectory and his relationship with naturalism, having as focus of interest his second novel: Uin canatha, published by Livraria Laemmert in Rio de Janeiro in 1895. We adopt an expanded understanding of naturalism as the aesthetics of nineteenth- century industrial civilization, unafraid of paradox, capable of accommodating subgentes and ‘ends with which historiography is not familiar, but which were considered to be “naturalist” atthe time the works were published. In studying the author's work, we highlight a less known strand of naturalism, that critic David Baguley calls “naturalism of disillusionment”, which ims at portraying the banal, the ant-heroic and what “did not happen’ in the character's live. _Keywords: Alberto Figueiredo Pimentel; naturalism; banality: Brazilian novel 1 ‘mas sua historia como escritor naruralista ainda aguarda para ser estudada. Tendo como foco de interesse a historia de publicagaio € revepeo imediata do segundo romance do autor, Uin canatha, publicado no Rio de Janeiro pela Livraria Laemmert, em 1895, esse trabalho objetiva contribuir para © nome do escritor Alberto Figueiredo Pimentel (1869-1914) € uma auséncia notivel na historia da literatura brasileira e, principalmente, na histiria do naturalistio no Brasil. Atuante nos campos literario © jomalistico do Rio de Janeiro nos anos incipientes da Repiiblica (1890-1910), praticante de varios géneros Textuais, do romance naturalista a0 conto de fadas, Figueiredo Pimentel, entretanto, foi esquecido pelo grande piblico ¢ seletivamente estudado pela historiografia Conhecemos aspectos de sua trajetéria como eronista dda moda churante as reformas urbanas do Rio de Janeiro da década de 1900 (NEEDEL, 1993), assim como autor bem-sucedido de literatura infantojuvenil (LEAO. 2012). essa nova historiografia do naturalismo no Brasil. Como se trata de um conhecimento novo, nossas foutes sero, além dos eseritos do autor ¢ de sua esparsa fortuna critica, 05 periédicos em que trabalhou ¢ nos quais se emitiram. opinides sobre cle ¢ sta obra, disponiveis na Hemeroteca Digital Brasileira/FBN. Adotamos uma concepeto ampliada de naturalisimo como estetica da civilizacio industrial do século XIX, destemida do paradoxo, capaz de acomodar subgéneros. apropriagdes, vertentes © eonastema e bonaiade em im conaina modos de execugdo estranhos @ historiografia tradicional (BAGULEY, 1990), mas que eram reconhecidos como “naturalistas” no momento de sua primeira citculagao. un Alberto Figueiredo Pimentel nasceu em Macaé (R). ‘mas foi em Niterdi, a entdo capital da provincia, que iniciou a carreira de escritor no final da década de 1880. Ingressow ainda jovem no jornalismo, assinando, com, varios pseudénimos, crénicas ¢ folhetins na imprensa local, com destaque para “Chico Botija’, signatdrio da colina “Entre as X @ as XI” no jomal niteroiense Provincia do Rio. Foi nese periddico que cm 1889 cle publicou em folhetins o romance O Artigo 200, com 0 pseuddnimo de Albino Peixoto. Fazendo referéucia a0 artigo do Cédigo Penal do Império que criminalizava 0 aborto, a obra contava a historia de Maricota, uma jovem de dezoito anos de modestas posses, natural de Rio Bonito (RJ) ¢ moradora do baitto de Tearai em Niterbi Maricota era uma moca avancada entre seu grupo de amigas, lia romances naturalistas franceses © sentia-se confortivel com o proprio compo e com a sextalidade. Ao final ela engravidava e morria ao tentar um aborto com, ‘a ajuda do primo, que cra farmacéutica ¢ pai da crianga Supostamente veridico, o caso era narrado com una franqueza inaudita no romance brasileiro, © folhetim causout tanto escindalo que 0 Provincia do Rio se vit. obrigado @ interromper a publicagao antes do final da hist6ria, Houve cancelamentos de assinaturas e a redagiio foi inundada por cartas de reclamagao, S6é em 1893 Figueiredo Pimentel lograria publicar a obra completa em. formato de livro, como titulo sensacionalistade O aborto, pela Livraria do Povo, do Rio de Janeiro. O romance fazia referéncias explicitas urina, & menstruagao ¢ a0 sexo, assim como reivindicava, tanto no preficio quanto no corpo da obra, filiago a0 naturalismo e ao romance de Emile Zola (1840-1902). Amunciado nos jomais como “yomance naturalista” ou “romance realista” (a distingao nao era obrigatoria), a obra obteve sucesso imediato, com vendas de seis mil exemplares em alguns meses ~ aiimeros impressionantes para a época (CATHARINA, 2013; EL FAR, 2004). Para um romancista estreante, foi um comeco promiissor, que Ihe trouxe fama ¢ infamia, Em dezembro de 1894, quando, numa nota sem assinatura, o inffuente jomal Gacera de Noricias. do Rio de Janeiro. anunciou o langamento do segundo romance de Figueiredo Pimentel, seu nome aparecia associado tanto ao naturalismo quanto 4 literatura infantojuvenil: “Laemmert & C. compraram, a propriedade de Um canaiha, romance naturalista de Figueiredo Pimentel, autor de O aborto, Contos da Carochinha, Fototipias etc. A obra, excelentemente 7 impressa, saird dentro de pouco tempo” (Gazeta de Voricias, 19/12/1894, p.2). Aos olhos da Gazera, Figueiredo Pimentel era um escritor novato que escrevia ‘em virios géneros, para varios pitblicos, Além dos sonetos, de Fototipias para os amantes da poesia, havia uma ptosa pata adultos — o romance naturalista, muitas vezes confundido com o chamado “romance para homens” ou “romance de sensacio” (EL FAR, 2004), € ainda uma literatura para criancas. A nota revelava que 0 sucesso. de estreia do escritor the abrira as portas de editoras de ‘maior prestiaio, como aLaemmert, com distribuidores em. So Paulo eno Recife, o que cra crucial para acirculacao das obras, A Lacmmert era uma das livrarias-cditoras mais antigas da cidade (HALLEWELL. 1985). Especializada «em livros técnicos e cientificos, publicou por décadas 0 pioneiro Aimanaque administrative, mercantile comercial do Rio de Janeiro, conhecido popularmente como Almanaque Laemmert. A partir de 1890, com a morte de Baptiste-Louis Gamiet (1823-1893), proprietétio da Livraria Gamier (que editava as obras de Machado de Assis ¢ Aluisio Azevedo), a Lacmmert comeyou a explorar o mercado de obras literirias, até entdo dominado pela editora rival. A publicagao do romance naturalista de Figucitedo Pimentel cra prova de que a Lacmmert trabalhava para expandit seu piblico leitor e explorar 0 filo da leitara como entretenimento, em franca expansdo no Rio de Janeiro na década de 1890 (EL FAR, 2004), Fig. 1. Folha de rosto da primeira edigao de Um canalha (1895), de Figueiredo Pimentel, emplar do Real Gabinete Portugues de ture do Re de Jano, 1 Aarndaoemoe & prof Madaloan Var Pinto (ROPLUTERD) por fit © sesso a0 exemplar Nevegaede, Foro Alege. ¥ 7.9.2.0. 116124, hl-oee 2014 ng © romance s6 apareceria em julho do ano seguinte, a trés mil réis — prego médio de um livro de duzentas paginas. A Gazeta de Noticias anunciow a publicagao ‘emt nota na primeira pagina na edi¢ao de 31 de julho de 1895: “O st. Figueiredo Pimentel acaba de publicar um novo romance — Uin canatha, elegantemente editado pela casa Laemmet. obra do jovem escritor merece de certo critica especial, a que nfo nos esquivaremos. Por hoje s6 nos cabe agradecer 0 mimo da oferta”. Aparentemente a critica da Gazera ficou na promessa, pois 0 jornal se limitou a republicar no dia 19 de agosto uma nota saida originalmente num jomal paulista, j4 entéo reproduzida ‘emt O pais, do Rio, no dia 11 do mesmo més ‘Da antiga © conceituada casa Lacmmert, da Capital Federal, com agéncia nesta cidade, 4 rua da Comercio, recebemos: Un canaiha ~ chama-se assim © novo romance do conhecido literato Figueiredo Pimentel, ‘o mesmo que, n2o hi muito, publicou no Rio um livro ‘em demasiarealista e que, escrito em linguagem pouco literia, teve aqui e naquela (dizem-no, pelo menos, 0s tespectivos cartazes), extraordinaria extrasao — ‘meia dizia de milhares de volumes. E grande, porém, a distancia que separa o livro que temos em maos Gaqucle que tanto popularizou o talentoso escritor & original de Sticida. De fato, Um canalla, longe de set um amontoado extravagante de fatos que em nada se secomendam pela moralidade, ¢ um conjunto de quase Guzentas paginas que se leem com agrado, sem nos {atigarem o espirito, tanto ¢ leve e alraente a mancira ‘por que se exprime o autor. Apesar de ressentirse de ‘algumas faltas, o romance do Sr. Figueiredo Pimentel apresentacnos paginas de rara felicidade, ¢ ¢ com prazer que felicitamos o seu autor pela publicagio esse livto, que, incontestavelmente bem superior a O aborto, nos faz esperar ainda muito das qualidades que para esse génera de literatura tem revelada 0 operoso literato (Gazeta de Noticias, 19/08/1895, p.3)7 Embora superficial e enterrada na pagina 3, a nota era simpética a Um canaiha, especialmente porque ele se afastava do naturalismo de escindalo, “demasiado realista”, do romance de estreia. O desconforto do articulista com as audlécias (¢ com a “linguagem pouco literdria”) de O aborto foi sentimento comum entre os homens de letras. Artur Azevedo (1855-1908), em O ilbum, chegou a dizer que nao leria o romance por se tratar de “um livro de escindalo”. De sua posicio de escritor dominante, Artur, 0 “papé literério” (como era conhecido), aconselhou: “Figueiredo Pimentel. faga outro livro, mas deixe-se de escindalos” (O album. 1. 14. abil de 1893, p.107). Com a publicagao de Un canatha, “Emer a nota se refi a Figueiredo Pimentel como autor do romance Suzeia, a bran fora ata publcada en formato devo, ten sido sponse diana on fst o oral nana naga ano Poe, Unreal fo0 so suns roasance do stor pleads po a rane, Noweqagéer, Foro Ae! v7.2.6. 116-124, asx 2014 Mendis L Veta Figueiredo Pimentel aparentemente seguia os conselhos do esctitor veterano: a obta cra “incontestavelmente bem. superior” a O aborio. Até pelo menos 1898 a imprensa antinciow regularmente a disponibilidade do romance em, livrarias da capital e das provincias, UMP CANALHA OMANCE BR ig. 2. Um canalha (romance brasileira) & vende na Livraria Laemmeart portras mil rels, Fonte: Gazeta Tarde, Ro de Jane, 17/08/1895, pt. A obra acompanhava mais ou menos vinte anos da vida do bacharel minciro Dr. Guarani Cardoso, desde 6s tempos de estudante na Faculdade de Diteito de Sa0 Paulo (quando se chamava Manel Anténio Cardoso), até seu stiicidio numa delegacia em Niterdi, aos quarenta € potcos anos, depois de uma carreira nada brilhante, ‘marcada por calotes. traigdes falcatruas. Sua queda final foi resultado da vinganga de um de seus inimigos. A maior parte da narrativa se passava em Macaé, cidade natal do autor, onde 0 Dr, Guarani Cardoso se notabilizou como, iz conrupto, perdulério ¢ exibicionista? Embora fosse também ima ficgao sobre pessoas “imorais”, 0 romance de 1895 nao se permitia as intimidades fisicas do romance de estreia. A historia se passava na década de 1880. Havia mengdes ao crescente movimento abolicionista e alguns clientes do bacharel eram proprietirios de escravos. O romance, entretanto. tinha como foco de interesse uma populacao urbana remediada ou afluente de burocratas advogados, médicos ¢ funcionérios piblicos. Durante 0 segundo semestre de 1895 a obra foi debatida nos prineipais jomais ¢ revistas do Rio de Janeiro. Dentre as apreciagdes criticas, trés se destacam_ pela importincia de seus autores ¢ dos periddicos em que foram publicadas: 1. As resenhas de Valentin Magalhes (1859-1903) no jomal 4 norieta, nos dias 6 © 10 de agosto de 1895: 2, A resenlia de Artur Azevedo na coluna alestra”. em O pats, no dia 9 de agosto de 1895: ¢ 3. A tesenha de José Verissimo (1857-1916) na Revista Brasileira, tomo IV, outubro-dezembro de 1895. Unidos aalgumas notas ¢ comentarios esparsos sobre o romance, publicados em outros veiculos, os textos revelam como jomalistas e homens de letras compreendiam 0 naturalismo na década de 1890, assim como 0 lugar da obra do estreante Figueiredo Pimentel na estética. Os comenttios e as resenhas dio voz a opinides ¢ gostos ccomuns, mas também revelam discordncias sobre o que era (e devia ser) um romance naturalista. De todas as citicas, a de Valentim Magalhaes cra a mais siznificativa porque deu inicio, nas pginas do jomal 4 noticia, a uma polémica entre o critico e o autor que ilumina e expande ‘o debate sobre 0 naturalismo no Brasil Para efeito de organizacdo do argumento, apre- sentaremos © coujunto dos textos a partir de eixos e preocupagdes comuns,ineluindo a réplica de Figueitedo Pimentel, de modo a apreender os termos do debate sobre Un canalha ¢ 0 naturalismo. m ‘Numa nota de primeira pagina em O pais de 12 de agosto de 1895, 0 articulista Magrigo julgou Um canalha “pouco desenvolvido como tentame psicoldgico. sem entergias de escalpelizagio” (O pais, 12/08/1895. p.1). ‘Valentim Magalhaes ¢ José Verissimo coneordavam: faltava aprofundamento na apresentacdo do perfil do Dr. Guarani Cardoso; faltava consisténcia ao “estudo” de Figueiredo Pimentel, Verissimo julgava tao fraca a caracterizagao do protagonista — como compreender seu comportamento? —, que nao se podia falar cm “psicologia do romance” ao se referit a Un canaiha (Revista Brasileira, tomo IV, out.-dez. 1895, p.60). ‘Valentim Magalhies ia mais longe € evocava o método experimental de Zola, a seu ver ausente ua obra: Que teve em mira o autor, criando este bandide vulgar, sem nada de atracnte nem de simnpitico? Estudar um caso de “eriminoso nato”, como o entende Lombroso? Talvez; mas, para isso, devia descrever rigorosamente os estigmas morais deste individuo, acompanhando, desde a infincia, a formagto viciosa, doentia, desse cariterresisterte no meio e educagio e, come faz Zola na Béte Humaine, dando-nes o sentimento ¢ a propria, sensagao da fatalidade do crime nesse organismo, em aparencia perfeito. Nada disso fez, porém, 0 Sr. Figueiredo Pimentel (4 noticia, 06/08/1895, p. 1), Dentro da concepstio de ficgdo naturalista como “romance cientifico”, a cobranca fazia sentido, A adesio 05 prineipios e métodos cientificos era crucial para o romance naturalista, nao por submissao ceza a ciencia, ‘mas por entender que a literatura nfo podia se dar a0 Iuxo de dar as costas para as tecnologias e conquistas da civilizagao industrial. Valentim Magalhfes evoca tm cientista importante do imagindrio naturalista —0 italiano Cesare Lombroso (1835-1909), famoso pelos estudos de perfis criminosos. Lembra 0 método rigoroso de Zola ‘em La Béte Humaine (1890), que acompanhava desde a infincia a formagao de um organismo fatalmente atraido ng pelo crime. Ao passo que em Un canalha, nota Verissimo, © Dr. Guarani Cardoso, de estudante bisonho, econdmico € calado em Sao Paulo, transformava-se sem nenhuma explicagao num juiz perdulério, exibido ¢ expansive em. Macaé ‘Na réplica a Valentim Magalhies, no mesmo jornal A noticia, 09 de agosto de 1895, Figueitedo Pimentel argumentou que 0 comportannento do bacharel era crivel o bastante para qualquer leitor atento: “O distinto escritor no deseobrit no protagonista um degenerado, um. criminoso nato — cleptomaniaco, se assim posso exprimir —Uum sticida-maniaco, porque nao quis, ot nao lew o meu. romance, folheando-o apenas mui ligeiramente” (p.3).O ‘comentario introcuzia a palavra “cleptomaniaco” (que nao aparecia no romance) como traco definidor do personagem e revela que, para 0 autor, a capacidade para o crime do Dr. Guarani era uma heranga biol6gica, anterior e superior ‘a0 meio em que nasceu e viven. Adolfo Caminha (1867. 1897) usou o mesmo argumento para explicar 0 desejo homoafetivo do marinheiro negro Amaro, 0 protagonista de Bom-Crioulo, publicado naquele mesmo ano no Rio de Janeiro (MENDES, 2000), Como o maniaco Dr. Guarani Cardoso, Amaro — que poderiamos chamat, cientes do anacronismo, de um homem gay’ — nascera assim: ele era ‘umm “degenerado nato” (CAMINHA, 1896, p. 41). Apesar da importincia do meio para a ficeao naturalista, havia impulsos naturais que Ihe resistiam e sobreviviam, Para Figueiredo Pimentel, 0 Dr. Guarani Cardoso era um “cleptomaniaco” no sentido de que roubava compulsivamente, como o conto de réis que lesou de um. amigo nos tempos da faculdade, assim como quantias recebidas por clientes em causas advogadas por ele, depois que se formou, As vezes 0 bachare! entrava numa espécie de transe, durante os quais perdia o controle de suas ages ¢ agia como tm automato, gastando dinheiro arodo, metido com agiotas, confabulando grandes crimes, € assassinatos, embora fosse, no fimdo, um covarde. Desde os tempos de estudante, considerava o suicidio como forma de resolucdo de suas angistias e problemas financeiros. A cada nova crise, suscitada pela revelacao iminente de suas canalhices, ele considerava suicidar- se, sempre contando aos amigos e & esposa sua decisao. Quando a revelagao por fim acontece ¢ 0 Dr. Guarani Cardoso vai preso, depois de acumular uma divida de quarenta contos de réis (tma pequena forttma) © muitos inimigos, o suicidio — considerado um ato covarde — foi a saida escolhida pelo “canalhia’. debate contimiou, Na tréplica, no dia seguinte, ‘Valentim Magalhaes insistia na cobranga de rigor na caracterizacao dos personagens, argumentando que essas fabulagdes ndo bastavam para tornar criveis a cleptomania ou a mania de suicidio do protagonista, 0 ctitico explica que tinha em mente a técnica narrativa Nevegaede, Foro Alege. ¥ 7.9.2.0. 116124, hl-oee 2014 120 de Gustave Flaubert (1821-1880), que ele considerava © pai da “escola naturalista, ou naturista, na expresso de Goncourt, ¢ que Zola refinow, exagerando” (p. 1). Magalhiies evocava uma tradigao de ficgao naturalista que emanava de Flaubert, € no de Zola, raramente reconhecida pela historiografia (BAGULEY, 1990). Como ele, alguns intelectuais do periodo julgavam que 0 naturalismo de Zola era uma forma de “exagero” de um metodo naturalista “laubertiano” original, que tinha nos ‘rmaos Goncout seus herdeitos legitimos. Octitico conhecia o livro Lettres de Gustave Flaubert «a George Sand (1884), de cujo preficio, assinado por Guy de Manpassant (1850-1893), ele retira uma citagao para ilustrar de que naturalisiio estava falando quando cobrava ‘mais rigor a0 autor de Un eanaiha: Seu processo de trabalho [de Flaubert] era mais de ppenetragao que de observagao. Em lugar de exibir @ psicologia dos personagens, em dissertagoes explicativas, ele fazia simplesmente apareeer pelos ‘20s atos, O interior era assim revelado pelo exterior, sem nenhuma argumentagso psicolégica. Prim: imaginava 0s tipos; e, procedendo por dedugao, fazia, cesses individuos praticar as agoes caracteristicas que cles deviam fatalmente praticar, com uma légica absoluta, de acordo com os seus temperamentos (A noticia, 10/08/1898, p1). ‘Tratava-se de fazer valer oponto de vistacientifico sem introduzir “argumentacao psicologica” ou “dissertacdes explicativas” na flegao ~ como fez, por exemplo, Jilio Ribeiro (1845-1890) em 4 carne (1888) -, mas pelo desencadear logico do cnredo ¢ do comportamento dos petsonagens, Assim se cumpria 0 objetivo do naturalismo de realizar “estudos de temperaments”. Ao romance naturalista Um canatha, faltava, portanto, segundo os criticos, substincia e amadurecimento. Consequentemente, faltava interesse ao personagem central, concordavam Valentin Magalhdes e Artur Azevedo. Magalhies esperava encontrar um canalha “interessante, original, extraordindrio”, mas deparou-se com “um canalha banal, vulgar, sem imaginagdo, sem inventiva, sem audacia nem cinismo fora do commun” (4 noticia, 06/08/1895, p.1). Na treplica, cle explica que era possivel transformar um canalha vulgar nmi “tipo literariamente curioso”, ed como exemplo a protagonista de La fille Elisa (1877). de Edmond cle Goncourt (1822- 1896), que era “uma fille qualquer; entretanto, como [era] interessante!” (A noticia, 10/08/1895, p.1). Para Artur Azevedo. na mesma linha, o protagonista do romance era “umn canalha vulgar, vulgatissimo, que nao despertalva] 0 minimo interesse, nem deve [devia] ter as honras de uma anlise psicolégica” (O pais, 09/08/1895, p. 1). TalvezoDr Guarani Cardoso servisse como “personagem acessorio”, Noweqagéer, Foro Ae! v7.2.6. 116-124, asx 2014 Mendis L Veta escreve Artur, mas como “figura principal [era] mito dcficiente”, ‘A questo da banslidade colocava um problema sério para os escritores naturalistas, Num mundo que perdeu contato com a transcendéncia e com 0 sagrado, a banalidade do cotidiano (e dos sujeitos) transformava-se na tnica realidade que existia, adquirindo, por isso, valor por si mesma, Mas como escrever historias sobre pessoas banais — sobre “Jes hommes des choses médiocres” (BAGULEY, 1990, p. 132) — sem que a banalidade desse © tom da narrativa, tornando a leitura enfadonha? No romance naturalista esquecido Lar, de Pardal Mallet (1864-1894), publicado no Rio de Janeiro em 1888, © narrador relata os dezoito anos de vida de Sinha, do nascimento a0 casamento, to banais e rotineiros que a primeira menstruacdo da protagonista era um dos eventos, ‘mais importantes da narrativa (MENDES & VIEIRA, 2012). Nao seria natural esperar que uma ficeo sobre sujeitos banais fosse ela mesma banal e desinteressante? Na téplica a Valentim Magalhies, Figueiredo Pimentel reconhece a vulgaridade de seu protagonista, sobre quem, na sta opinido, havia poucas coisas interessantes a dizer. Por isso o romance se chamava “wn canalha” ~ 0 Dr. Guarani Cardoso nao passava de mais um entre tantos outros canalhas iguais a cle, banais ¢ faccis de encontrar na vida em sociedade, Apesar de reconhecer uma tradigito de ficgto naturalista ligada a Flaubert ¢ aos irmos Goncourt, que subscrevia ao que David Baguley chama de “ortodoxia a banalidade” (1990, p. 124), Valentim Magalhiies nao abria mao da nogao arraigada, com raizes na tradicao da epopeia clissica, de que o romance era 0 lugar do cxtraordinario, do interessante ow do “fora do commun”, Por isso ele pedia a Figueiredo Pimentel que tornasse interessante a banalidade de seu heréi. Para figurar num, romance, até as prostitutas ¢ 05 canalhas precisavam, ‘mostrar que eram “fora do comum”, nem que fosse pela audicia ou pelo cinismo. Artur Azevedo pensava da ‘mesma forma, Para o “papa literario”. faltava “invencao™ no perfil do personagem principal (O pals, 09/08/1895, p.1). Artur eta perspicaz quando dizia que 0 bacharel parecia um “personagem acessétio” (¢ nao o principal), ‘mas a0 mesmo tempo esquccia que o romanice naturalista queria justamente dar status de protagonista a sujeitos periféricos, “acessorios” ott subalternos (BAGULEY, 1990: BUENO. 1992). Nao tinha sido outro o objetivo de seu inno Aluisio ao colocar uma lavadeira—a mulata Rita Baiana — no centro de O cortica (1890), problema de romances naturalistas esquecidos como Um canaiha, de Figueiredo Pimentel, e Lar. de Pardal Mallet, eta que eles rejeitavam a expansividade épica associada a0 romance como género. Pelas paginas dc 0 pais, 0 aticulista Magrico tentou explicar 0 dilema posto pela histéria do Dr. Guarani Cardoso: “A sucessdo dos cpisédios tem a monotonia de um didrio, 0 que & insuportivel nas composigdes deste género, muito ‘embora a vida seja isso mesmo — uma sticessao de dias” (O pais. 12/08/1895, p.1). Nao se podia contar “com imaginagao™ historias sobre sujeitos “sem imaginacto”, ‘mesino sob o risco de tomar a leitura “insuportével ‘ais romances naturatistas eram “epopeias da impoténcia Jnumana”, na expresso de Pardal Mallet (2008. p.236). formas de travestimento do épico ¢ do romance como enero reservado ao relato dos grandes feitos de homens extraordinarios (BAGULEY, 1990), ow ao menos “interessantes’” Desse ponto de vista, cra possivel rebater a acusagaio de inverossimilhanca langada a Ui eanalha, porque no havia nada mais verdadeiro do que uma histéria banal sobre pessoas banais, O articulista da coluna “Sobre a mesa”, do jomal 4 noticia de 28 de agosto de 1895 uusou esse raciocinio para defender e explicar o romance de Figueiredo Pimentel, ainda que pata esse fim fosse necessétio abrir mao do interesse da leiturae, talvez, do reconhecimento do paiblic: Diletante ¢ homens de letras com quem temos conversado sobre a utima produgdo litearia do autor do Suicida, mostram-se surpresos por nao encontraret em Tin canaiha mais do que a relatagao de casos possiveis, crescentando alguns, ¢ por isso censwrando © autor, que a principal figura do romance limita-se ‘uma individualidade de canalha comum, de viveur banal, esses que diariamente acotovelamos nos pontos ‘mais frequentados da vide aaitada. Queremos crer (que, em vez de prestarse a um temo de censura, essa (qualidade tao criticada do live torna-se 0 inverso, ito ,um atestado do seu valor, como trabalho reprodtivo da vida comum, obrigado & maxima verossitilhanga, que foi justamente 0 que 0 autor quis fazer. O que se da, constituindo, parece-nos, a causa desse mal entender & que o livro de Figusiredo Pimentel nao dlesperta pela letura e como leitura, interesse, nem provoea o aplauso, que, no entanto, pela sua vendade de observagio, despertae provosa, [sso sim (4 noticia, 28/08/1895, p.2), No caso de Uin canaiha, orisco de set ignorado pelo piiblico era atenuado pela fama pregressa de Figueitedo Pimentel como autor de O aborto, cujo sucesso de vendas resultava da percepedo de que o romance era umn produto erético. Os antincios do editor Pedro Quarestma colocavam rotineiramente O aborto na categoria de “romance para homens” (EL FAR, 2004), mmuitas vezes a0 lado de flegdes assumidamente pomogrificas, como 198 contos de Rabelais, psendénimo do escritor pormgnués Joaquim Alfredo Gallis (1859-1910) — autor, com o proprio nome, de uma série de romances naturalistas do 121 subgénero cientifico, tais como 4 faverna (1903), com ‘um titulo (¢ com a tematica do alcoolismo) claramente inspitados em L‘Assommoir (1877), de Zola. O proprio Figueiredo Pimentel declarou no preficio de O aborto que poutco se importava se fosse “pechado de pomogritico. moral. bandalho” (1893, p.2). j@ que outros escritores naturalistas contemporaneos. como Zola, Eca de Queirds (1845-1900), Aluisio Azevedo e Pardal Mallet, haviam sido assim julgados antes dele. A expectativa de encontrar pomografia em Uin canatha foi assumida tanto por Valentim Magalhaes quanto por Artur Azevedo, Magalhiies confessa que esperava “corar frequentes vezes lendo Um canatha, atento a fama adquirida pelo autor com O aborto”” Ele listava a falta de “cenas picantes” como uma das “decepcdes” do romance (4 noticia, 06/08/1895 p.1). Na réplica, Figueiredo Pimentel devolven: se 0 pliblico pensava como o eritico e queria “outra coisa no género de O aborto, (haviam] de ser servidos, com a graca de Deus” (4 noricia, 09/08/1895, p.3). Valentin, ‘Magalhaes entendeu a itonia e se apressou em esclarecer que no apreciava literatura de escéndalo: “Nao quero absohutamente que o St. Pimentel tenha outro Aborto & nem de leve insinuei 0 desejo desse infortinio, e fag vvotos para que a sta ameaga nao se realize” (4 noticia, 10/08/1895, p. 1), escreveu, sugerindo que o romance era ele mesmo uma obra abortada, De qualquer modo, para ele Uin canatha era “mais casto” e “velado” do que O aborto GA noticia, 06/08/1895, p.1). O atticulista de “Sobre a mesa” concordava, Se 0 aparecimento de O aborto havia ctiado ao redor do nome de Figueiredo Pimentel “um. cordao vigilante de sanidade moral pelos pais cautelosos, «em provcito dos filhos”, em “Ui canalha pod {podiam] pousar todos 05 olhares, mesmos os pudicos olhares de ‘uma educanda de colegio religioso —se € que sejam estes (05 mais pudicos” (4 noticia, 18/08/1895, p.2). Para expressar sta surpresa diante das diferengas centre os dois romances, Artur Azevedo comparou-os duas obras populares da época, A set ver, Um canalha estava para O aborto assim “como 0 Simdo de Nantua [estava] para os Serdes do comvento” (0 pais, 09/08/1895, p.1). Enquanto a Histéria de Simao de Nantua era wm compéndio de textos usados na escola oitocentista com 0 innuito de condenar os vicios ¢ ensinar a moral e a virmde as criangas (NUNES, 2011), Os serdes do convento cram, “classico” da literatura pomogrifica do século XIX (EL, FAR, 2004. p.15). A comparacdo era um exagero, mas deixava claro que até para 0s homens de letras era dificil separar a ficedo naturalista da pomografia. Numa nota favoravel ao aparecimento de Un canalha, os redatores da revista carioca A cigarra, liderados por Olavo Bilac (1865-1918), trilhavam 0 mesmo terreno movedico. ‘Ao mesmo tempo em que exaltavam as qualidades do Nevegaede, Foro Alege. ¥ 7.9.2.0. 116124, hl-oee 2014 122 romance como “estudo de temperamento” (associado ao cicntificismo), chamavam a atengao para 0 “sabor picante de fitto proibido” da histéria, que era uma garantia de boas vendas (4 cigarra, n. 14, 08/08/1895, p.3). Uma bela charge de Julio Machado acompanava a nota BF PIMENTEL, Fig. 3. Figueiredo Pimentel e seu Um canalha em charge de Juligo Machado: Dr. Guarani Cardoso enforcado na pena do escritor Fonte: Revista A Gara n 14, Rio de Jono, De fato, o Dr. Guarani Cardoso estava longe de ser um Simao de Nantua, eo proprio Artur Azevedo reconhecia que Um canalha nao era, afinal, leitara recomendavel “as donzclas mais pudibundas” (0 pais, 09/08/1895, p.1). O romance apresentava uma galeria to variada de personagens “baixos”, que Valentim Magalhies chegou a sugerir a mudanca do tittle de Um canaiha para “Uma penca de canalhas” (4 noticia, 06/08/1895, p.1). Entre as canalhices do protagonista, talvez a mais chocante fosse pedir A propria mulher que se oferecesse ao bardo de Lamego. um capitalista de Macaé, em troca de um empréstimo de vinte contos de réis para saldar dividas. Nem 0 ganancioso bardo, um idoso mulherengo que se maquiava, de “fisico desgracioso ¢ repelente” (PIMENTEL, 1895, p.92), péde crer que o Dr. Guarani Cardoso fosse capaz de tamanha perfidia. Isabelinha, a «esposa, ficou estupefata, mas sua maior preocupacdo era que 0 marido estivesse desconfiado de seus amores com © jovem médico Carlos Soares. Antes dele, Isabelinha tinha sido amante do maestro Renani, unm artista italiano «que se estabelecera em Macaé. e do Afonsinho Sampaio, seu amigo de infiincia, Com vocabulério naturalist, Artur Azevedo julgon que a esposa do Dr. Guarani Cardoso tinha “nas veias 0 mau sangue de madame Bovary”” (0 pais. 09/08/1895, p.1). Para Valentim Magalhaes. Noweqagéer, Foro Ae! v7.2.6. 116-124, asx 2014 Isabelinha era uma “marafona” (4 noticia, 06/08/1895, p. 1) — um julgamento comunente estendido a todas as ‘mulheres dos romances naruralistas que faziam sexo fora do casamento. Como em O aborto, havia em Um canalha poucos personagens admirdveis. Uma excegdo era 0 funcionirio pllblico Candido Ferraz, como notou Valentin Magalies. 6 tinico amigo do Dr. Guarani Cardoso, que o salvou mais de uma vez da faléncia e do oprébrio. Quando. nas rodas da fortuna, foi a vez de Cindido Ferraz pedit-the que adiasse uma cobranca, o bacharel, insensivel, nao hesitou ‘em privé-lo de todos os bens, incluindo a casa em que ‘morava com a familia em Niteréi. De resto, era a vida das, aparéncias,interessada em saber quem morava na melhor ra, quem era a moca mais bonita de Macaé, quem dava as melhores festas, ¢ quem era amante de quem. A intriga cera onipresente, Sobre a cidade de Campos — onde o Dr. Guarani Cardoso passou alguns anos antes de terminar seus dias em Niterdi — escreveu em carta Candido Ferraz: ‘A bisbilhotice reina aqui como em parte alguma, e chovem intrioas e mexericos, transmitidos pela boca dos criados. Tasquinhs-se enormemente a vida alheia: todo o mundo sabe o que se passa em casa do vizinho, fo que ele bebe, o que ele come, o que ele faa. A carta andnima e os pasquins, metidos & noite, por debaixo das portas, além dos letreiros e dizeres injuriosos, eseritos nas paredes a caro, alps, atinta, a giz.eaté com. exeremento humano (1!!) sto armas favorita, comumente usadas (PIMENTEL, 1895, p.127). Talvez 0 comentario nio chocasse as “donzelas pudibundas” de Artur Azevedo, mas causow a fitria de ccampistas. Na réplica a Valentin Magalhaes, Figueiredo Pimentel conta que vinha recebendo cartas de “uns mincitos indignados ¢ patriotas campistas”, por ter feito 0 canalha nascer em Minas ¢ morar em Campos, Houve até ameacas andnimas em repidio 4 publicagao de Un canalha, sugerindo que 0 romance foi vendido € lido. Na devolugio, Figueiredo Pimentel diz que ele foi especialmente mal recebido pelos advogados: “..e a andnimos que me ameacam, [garanto] que nao talhei para eles a carapuca, Parece que ha muito Guarani por este mundo de Cristo!” (4 noticia, 09/08/1895, p.3), Por fim, havia a questo da linguagem “pouco literdria” do autor —acusacao feita tanto a O aborto quanto a Un canalha, Para Magrigo, 0 romance de 1895 fora escrito “sem escripulo de forma” (0 pais, 12/08/1895. p.1). 14 o atticulista de “Sobre a mesa”, em A noticia, detectou em Um canatha descuidos de redagao e “frieza na escrita” —“o assunto exigia ser tratado a fio, € verdade, ‘mas 0 trabalho podia ser mais comunicativo pela frase” (4 noticia, 28/08/1895, p.2). José Verissimo compartithava da mesma opinito: Do estilo © da lingua do Sr. Figueiredo Pimentel, iret apenas que me parece nao ter ele se preoeupado nem de um nem de outa, Se o tivesse feito estou certo que nao escreveria frases destas: ‘estrangular- the a garganta’(p. 43), ‘examind-los em conhecedor’ (p. 47), ‘passava o dia as moseas’ (p. 62), e teria cvitado a repetigio de explicativas desnecessirias calado, falando pouco”, “pobre, sem fortuna’ (p. 152), ‘ora estéril, sem nunca ter concebido’ (p. 145), & uum repetido emprego do verbo ‘falar’ no sentido de dizer, conforme o provincialismo mineiro e paulista io impréprio ¢ deselegante © outros quejandos senoes (Revisia Brasileira, tomo TV, out~lez. 1895, p.6061). Reunidas, as criticas ao estilo se bascavam no pressuposto de que para ser chamada de “romance”, uma narrativa ficcional precisava ser elegante e bem-feita com “escripulo de forma” — o traballio de tomar a frase “mais coumunicativa’, embora sem exageros e repetigdes. Alguimas variagbes linguisticas regionais eram malvistas Quando Artur Azevedo lamentou que os fios narrativos da primeira parte de Um canatha ficavam sem resoluao —“os estudantes desaparecem no quarto capitulo e nunea ‘mais aparecem” —, ele partia da mesma concepeio organica de obra, cujas partes interagiam para criar wm todo harménico, Ao final da resenha, o escritor vetetano aconselhava o autora “nao desanimar e seguir em frente” (Opais, 09/08/1895, p. 1), deixando claro que o romance de 1895 ainda nfo chegara li Por tris das criticas ao estilo de Figueiredo Pimentel havia um conflito entre dois regimes textuais —o liteario 0 jomalistico—, que era crucial para entender a literatura do século XIX (THERENTY, 2007). Tanto 0 autor de Um canatha quanto sens criticos tinham forte presenca nos jomais. Alzns, como Olavo Bilac ¢ Artur Azevedo, ram as principais atragdes dos peri6dicos da capital (@ das provincias). Os escritores viviam uma condigao peculiar ao século XIX: a “coincidéncia essencial” entre dois sistemas profissionais, que fazia com que as imesinas pessoas cisculassem nos campos jomalistico e litetétio (THERENTY, 2007. p. 18). A questio era que muitos escritores importantes nao viam isso com bons othos. Escritores como José Verissimo (¢ muitos outros) consideravam os géneros jomalisticos formas inferiores de escrita, ¢ 0 trabalho nos jornais, um mal necesséo. Havia um esforgo dos homens de letras para impedir que 2 literatura fosse “contaminada” pelos géneros jomalisticos Poder.se-ia compreender as eriticas a0 estilo de Figueiredo Pimentel como uma resisténcia dos escritores dominantes a essa “contaminagdo”, José Verissimo apontou o vinctlo de Uin canailia com a literatura de jomal 123 ‘Hii neste romance uma curiosa mistura de aptido para © género que os franceses chamam roman feuilleton € da preocupagao evidente em fazer psicologia segundo a maneira naturalista, © inicio do romance, a descoberta do roubo praticado por Manuel Antonio, 0 “canalha” que dé nome ao livro,¢o final, a sua pristo, 1 vinganga de Leia Ferraz ¢ o suicidio, de Manuel “Antonio, transformado entdo em Dr. Guarani, s40 puro Gaborias, Montepin ou Richebourg, como a mesma escola pertencem outras cznas desse livro, em que se sente uma imaginacdo viva, excitada, embora sem -verdadeira originalidade (Revista Brasileira, tomo IV, ‘out-de2. 1895, p.60). © critico chama a atengao para a presenca, em Un canatha, além da anélise psicolégica proposta pela estética naturalista, de uma série de temas e estratégias tipicamente folhetinescas: 0 roubo, atroca de identidades, avingancaeefinalmenteo suicidio. Verissimo complement que a tinica qualidade “desta casta de romances” & saber interessar 0 leitor, deixando claro que a seus olhios essas, caracteristicas enftaqueciam a obra, situando-a na classe malvista dos textos que 0 ctitico francés Sainte-Beuve (1839) chamou de literanura industrial. romance-folhetim foi o produto mais notério do casamento da literatura com a imprensa no século XIX. (MEYER, 1998). Era uma natrativa que gravitava “entre a ficgdo e a informagao” (THERENTY, 2007, p.127). Ele demandava um novo regime de escrita: a escrita com prazo, feita nas redagdes de jomais, destinada a informar, entreter e fidelizar leitores. © novo regime entrava em conflito com a concepgdo romantica dominante do escritor como artista auténomo que criava de forma espontinca c desinteressada (ABREU, 2003). Escrever folhetins podia ser visto como uma forma de rebaixamento para o escritor. E esse julgamento podia ser estendido aos outros génetos jomalisticos, como a cronica © o fait divers. ‘Ao contrario de José Verissimo e de Artur Azevedo (ou mesmo de Aluisio Azevedo). Figueiredo Pimentel nio tinha uma carreira de escritor antes de ingressar na imprensa, Desde O aborto, que foi publicado em. folhetins, sua prosa era impregnada pelas técnicas e pelo linguajar jomalistico. A “frieza” do estilo, a linguagem “pouco literiria",o linguajar popular ¢ regional, os temas. escandalosos — aborto, suicdio, roubos, traigdes —davam_ aos romances 0 tom objetivo (€ por vezes lacénico) de uma longa reportagem (ou crénica) criminal. 0 dado de que as historias de Figueiredo Pimentel seriam baseadas em fatos reais confirma o estatuto ambiguo das narrativas, que etam a0 mesmo tempo noticia e ficedo. como os folhetins. mas também, como os romances naturalistas, baseadas na observagto direta da vida em. sociedade Nevegaede, Foro Alege. ¥ 7.9.2.0. 116124, hl-oee 2014 124 Vv © estudo do romance Um canalha nos convida a expandir nossa concepedo de romance naturalista para além do “romance cientifico” ou “romance experimental”, ligado a Zola, A cigneia era flndamental para uma visio naturalista de mundo, mas 0 chamadlo “romance cientifico” ‘era apenas um subgénero de uma variedade de apropriacdes € sentidos possiveis que a palavra “naturalismo” podia acomodar no segundo oitocentos. Flavia “cientificismo” nas obras de Figueiredo Pimentel, mesmo que Uin canalha nto atendesse is exigencias de um “romance experimental”, como quis Valentim Magalhaes. © romance era cientifico no sentido de que fazia uma narrativa “ftia” (que evitava jjulgar) da trajetéria de um tipo faciimente reconhecivel na vvida em sociedade, Ele era, a seu modo, um “estudo de temperamento” Outro sentido que a palavra “naturalismo” podia addquirir era 0 de literatura pomogrifica. Nao s6 0s leitores, comuns € os editores associavam a fle¢do naturalista 4 pomografia, mas também os homens de letras tinham dificuldade de separar uma da outra, Nao importava que os scritores naturalistas dissessem que seus livros nao tina, esse fim, O fato & que as obras eram amumciadas, vendidas € lidas como historias sobre sexo. As excelentes vendas de O caborto resultavam dessa percepeao. Tal eraa fama de autor pomogrifico do Figueiredo Pimentel escritor naturalista, ‘que Valentim Magalhiies confessou sua decepetio com a falta de “cenas picantes” em Um eanallia. Mesmo assim, como assinalow a revista cigarra, as traigdes ¢as baixezas dos personagens do romance davam-lhe um “sabor picante de fiuto proibido”, que era garantia de boas vendas. Por fim, havia uma acepeaio de naturalismo como estética da banalidade, a partir de Flaubert, que a his- toriografia pouco explorou. David Baguley chama essa vertente pouco conhecida de “naturalismo da desilusio” (BAGULEY, 1990). Ligado a uma concepsdo crepuscular do modemo, 0 naturalismo desiludido rejeitava as raizes do romance no épico, buscando, ao contério, retratar 0 banal, o anti-hetoico ¢ o que “nao acontecia” na vida dos petsonagens. A banalidade das situagdes, dos sueitos ¢ dos, espagos sociais, assim como o fracasso dos protagonistas, era tuma marca tanto de O aborto quanto de Um canaiha. © banal era por definicao despido do “interesse” que 95 criticos julgavam esscncial para que wma historia ‘merecesse ser contada ¢ lida, Dai a impresstio de Magrico, do jomal O pais, de que se lia Um canaihta como quem. folhteava um “dirio” ~ monétono, banal, breves registros comentados, em linguagem “fia”, sobre acontecimentos nada grandiosos. Entretanto, como notot 0 articulista da ccohuna “Sobre a mesa”, do jomal 4 noricia, 0 romance, na sua propria incapacidade de despertar interesse e provocar aplauso, era o mais vetossimil “trabalho reprodutivo da vida comum’” Noweqagéer, Foro Ae! v7.2.6. 116-124, asx 2014 Mendis L Veta Referencias ABREU, Marcia. Letras, Belas Letras, Boas Letras. In BOLOGNINI, Caimen Zink (org). Mistévia da literatura: 0 dliseurs fundador. Campinas: Mercado de Letras, 2003,p. 11-69. BAGULEY, David. 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