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ercurso, em que investiga a natureza da escrita das mulheres migrantes, lanca indagacées a respelto das nogées de extrateritorialidade, intercultura, desterro, desenraizamento, ambivaléncia, vistas como categorias indispensdveis para a compreensdo e dimensionamento da producéo das autoras migrantes. Além disso, pela prépria natureza de seu objeto de investigacéo, « aulora née consegue fugit 4 discussdo sobre a questéo da identidade dessas utoras, do pais e, conseqiientemente, da literatura or elas produzida. A voz da critica canadense no feminine se encera com o texto “O outro romance familiar: flhas @ pais na fic¢do de escritoras quebequenses dos ‘anos 90", de autoria de Loti Saint-Martin. Apolada na andlise de obras de escritoras como Gabrielle Gourdeau, Ying Chen e Monique LaRue, entre outtas, ensaista aponta para a transformagao da literatura quebequense dos anos 1990 no que tange ao tratamento conterido as relagées entre pal e filha: se em décadas anteriores, especialmente nas manifestac6es feministas dos anos 1970, havia a necessidade de exorcizar a figura do pal, nos anos 1990, o tema 6 redimensionado e dé forma ao que autora nomeia de “o outro romance familiar” Alleltura de A voz da critica canadense no feminino tevela, de um lado, a variedade de vozes, miltiplas e multifacetadas, que marca o ensaio cittico teminino/teminista canadense na contempo- raneidade; de outro, a recorréncia a um tema, presente na quase totalidade dos ensaios, que é 0 debate sobre a questéo da identidade, sobretudo naqueles aspectos por ela assumidos em tempos de és-colonialismo. Mais do que isso, aponta para a tuptura de conceitos ancestralmente aceitos e referendados no dmbito das praticas culturais, em um movimento que, ao recusar 0 homogéneo, Investe no reconhecimento da diferenca e da polifonia como marcas definidoras do discurso artistico contempordneo. Nessa perspectiva, 0 Conjunto de ensaios que integra A voz da critica canadense no feminino transcende as fronteiras de seu pais de origem e contibul para o entiquecimento do debate em tomo de questées relevantes para a compreensdo da escrita literéria na contem- poraneidade, CARLOS ALEXANDRE BAUMGARTEN I Fundacéo Universidade Federal do Rio Grande Mulheres e dote no Brasil O desaparecimento do dote: mulheres, familias e mudanga social em Sao Paulo, Brasil, 1600 —1900 NAZZARI, Muriel. Tradugdo de Lélio Lourenco de Oliveira, Go Paulo: Companhia das Letras, 2001. 361 a © dote 6 uma antiga prética, herdada dos portugueses, que inimeras novelas de época da televisdo brasileira j4 mostraram: 0 pai, poderoso escravocrata, senhor de engenho de cana-de- ‘aguicar ou fazenda de caté, combina o casamento de sua filha com o filho de um outro senhor igualmente poderoso, A moga, chorosa protagonista ‘paixonada pelo mocinho da trama, levaria consigo um dote, em bens ou dinheiro, Moga sem dote cortia © risco de morter sotteira. ANO 10 246 1° semestRE 2002 José de Alencar, no romance Senhora, fol porta-voz da moga pobre condenada ao celibato forgado, ciiticando com veeméncia a prética do dote, Era um ‘puxdo de orelhas’ nos rapazes Interessetros. Na Inglaterra, 0 costume do dote durou até 0 final do século XIX e na Alemanha parece ter persistido até pouco depois da Primeira Guerra Mundial, Na Europa contempordnea |é se extingulu quase completamente, resistindo ainda em pequenas localidades rurais da Grécia, ilanda, tia, Espanha, Portugal e Malta. A india nao o abandonou. Alguns estudos acompanharam o seu declinio em paises da América de lingua espanhola. Um livio recentemente traduzido pela editora Companhia das Letras analisa as transformagées sofridas por essa prética na longa duragéo da histéria de um nicleo urbano especitico: a sociedade paulista, Publicado originalmente em 1991, pela Stanford University Press, O desaparecimento do dote foi um longo trabalho de pesquisa, realizado pela professora emérita de histéria da indiana University, (em Inventétios dos s&culos XVII ao XIX Partindo de uma perspectiva da histéria econémica, a autora mostra como o deciinio dessa pratica esteve condicionado as mudangas econémico-sociaissottidas pela sociedade paulista. Conseqiientemente, o casamento, a familia @ 0 Papel da mulher sofreram profundas moditicagées a0 longo do tempo. Se no século XVII a mulher de elite era peca- cchave do sisterna produto, jd que o dote que trazia consigo era a base da viabilizagéo material da familia, no século XIX @ autora percebeu uma inversao desse papel, pois em um contexto urbano socialmente mais complexo como o paulista, com uma grande malaria de pequenos proprietarios, comerciantes e profisionais liberais, os pais nao dispunham dos recursos semelhantes aos de seus ‘antepassados para dotar suas flhas, de modo que ‘as mogas iam, em boa medida, de maos abanando para o casamento. © declinio do dote desiocou a mulher de elite ara uma posi¢do secundaria no casamento, mas também alterou © préprio sentido do matriménio, 4 que passaram a néo ser mais os atrativos de enriquecimento que levavam 0 noivo ao afar. A familia extensa © 0 poder do patriarca, conseqiientemente, foram diminuindo, com a maior necessidade de autonomia dos filhos para se dispersarem em busca do préprio sustento, ainal nGo havia mals © aceno de um bom dote, ¢ as fransformagdes econémicas ¢ juridicas vividas pela sociedade brasieira viriom a debiltar 0 outrora 160 ‘absoluto pater fail ‘Antonio Candido, em estudo cldssico sobre a familia brasileira’jé havia mostrado, em 1972, como se deu a passagem de uma familia forlemente Pattiarcal para a maior independéncia dos filhos. Sobre o dote, Laima Mesgravis, em 1976, identiicou sua prdtica por entidades de caridade, como a Santa Casa de Misericérdia de Sao Paulo, que até 1836 ainda notificava a dotacéo de uma jovem.* Eni de Mesquita Samara apontou a importancia do dole, no século XIX, como estratégia familiar na transmissGo do legado. Embora a cidade de S40 Paulo passasse por transtormagées econémicas, ocotrendo inclusive um empobrecimento da populag6o, a pratica do dote manteve-se, embora readequada aos recursos disponiveis. Muriel Nazzari, contudo, atenta as conclusdes dessas pesquisas, inovou ao documenta, através de: uma minuciosa investigagéo em inventérios, esse processo na longa duracdo dos séculos XVII ao XIX. Para ela, 0 século XVII foi a fase de transicdo, na qual 0 costume do dote se enfraqueceu bastante, mas ainda era mantido pelas familias que podiam se dat 0 luxo de paramentar suas flhos com recursos, suficientes para atrair um casamento ‘A autora relaciona © declinio do dote na sociedade brasileira, também, ao advento de Pressupostos individualizantes, préprios das socledades modernas burguesas, 0 que tetialevado: {@ uma maior autonomia dos fllhos, ao dectinio da familia patriarcal e ao predominio do casamento baseado no amor. Mas essa é uma conclusao bastante questiondvel, tendo em vista que, em uma sociedade fortemente senhorial e com vigorosa heranga personalista e privada, como a brasileira, esses Pressupostos individualizantes nao parecem ter encontrado ambiente propicio para se desenvolverem plenamente, principaimente no século XIX. ‘A familia patriarcal pode ter se entraquecido na prdtica, mas em termos das estruturas de Pensamento ainda teve vida longa, se é que ainda 1nGo tem. Em uma sociedade como a paulista, com © advento da grande lavoura cafeeira, o dote pode ter deciinado nao pelo avango do individualismo, mas pelo fortalecimento econémico das famflias cateeiras, de modo que o casamento pode ter assado a ser un meio de somar fortunas, nao de rranjar um genro que tocasse 0 empreencimento, da familia da noiva ou a enobrecesse com seu sobrenome. ‘Temas como casamento e familia tém inscrigdo direta no plano cultural de uma sociedade, de modo que a perspectiva essenciaimente econémica da autora a impediu de perceber a especificidade da sociedade brasileita. Mesmo com o declinio da familia petriarcal, ainda parece predominar um toma bem masculino. Mas avancamos, 6 inegavel, embora ainda seja preciso fazer mais. Ao contréio, de nossas afortunadas antepassadias, néo so nossos, pals que decidem sobre nossos maridos, mas continuamos, em boa parte, sendo pega-chave no sustento de nossas familias. E ai de nés se nao frabalharmos para 0 nosso dote de cada dia. LAVRIN, Asuncién, andl COUTURIER, Edith, “Dowsies and Wits: @ View of Women's Socioeconomic Role in Colonial Guadalajara ana Pueblo, 1640—1790°. Hispanic American Historical Review 59, n. 2, p. 280-304, 1979. ARROM, Siva M. ‘anges in Mexican Family Law in the Nineteentn Century: the Civil Codes of 1870 and 1884", Journal of Family History 10, n,3, p.304-17, autumn 1985, CANDIDO, Antonio, “The Brazilian Family". In: SMINH, Lynn, fond MARCHANT, Alexander. (Orgs). Brazil: Portrait of Half a Continent. Westport, Conn: Greenwood Press, 1972. > MESGRAVIS, Laima. A Santa Casa de Misericérdia de $40 Paulo (15597—1884), So Paulo: Conselho Estadual de Cultura, 1976, Denise Aparecida Soares de Moura Ill Universidade de Sao Paulo EstuDos FEMINISTAS 247 1/2002

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