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Para os que se interessam pela perspec- tiva dialogica do conhecimento, Marxismo ¢ filosofia da linguagem 6, sem divida, um dos mais conhecidos e citados trabalhos ad- vindos do Cireulo de Bakhrin. primeira traducio para o portugués, feita basicamen: te a partir da versio francesa, foi lancada em 1979, trazendo a assinatura “Mikhail Bakhtin (Volochinov)”. Desde eno a obra no cessou de produzir variadas interpreta~ goes em diferentes dreas das Ciéneias Hu: ‘manas no Brasil, motivando uma maneira inovadora de conceber a linguagem viva, em Agora surge uma nova traducio, feita diretamente do russo por Sheila Grillo Ekaterina Vélkova Américo, as mesmas es tudiosas que trouxeram O método formal nos estudos literérios, de Pavel Medviédev, © Questaes de estilistica no ensino de lingua, de Bakhtin, para © portugués. No estigio atual dos estudos bakhtinianos, as (re) dudes, no Brasil eno exterior, devem-se & conseiéncia de que o pensamento dialog co exige 0 conhecimento dos contextos de producdo e de recep¢io, para melhor situar os trabalhos, sua originalidade, seu didlogo polémico ou nio com outras vercentes do cconhecimento, Nessa busca, acessbilidade as fontes russas, arquivos c bibliotecas pos- sibilita a descoberta de primeiras edi¢des, trabalhos nao publicados, esbogos prepara trios, documentos que atestam a vida pro- fissional ¢ académica dos autores. Na con- fluéncia entre esses dois elementos esto fa- to de que os (re)tradutores sio, hoje, espe- cialistas que se debrugam sobre as Fontes primarias nao apenas para divulgar obras © autores, mas para esclarecer a génese 0 al: ceance do pensamento, E as leituras se am- pliam, enveredando por novos caminhos. Nese sentido, a (rejtradugio de Marxis. ‘mo e filosofia da linguagem traz alguns as- = w Co = hea Valentin Voléchinov Marxismo e filosofia da linguagem Problemas fundamentais do método sociolégico na ciéncia da linguagem Tradugio, notas e glossitio Sheila Grillo ¢ Fkaterina Volkova América Bi Sheila Grillo aio introdutério editoralll34 EDITORA 34 Editora 34 Leda, Rua Hungria, 592 Jardim Europa CEP 01455-000 Sio Paulo - SP Brasil Tel/Fax (11) 3811-6777 www.edivora34.com be Copyright © Editora 34 Ltda., 2017 ‘Traducio @ Sheila Grillo ¢ Ekaterina Vélkova Américo, 2017 Ensaio intcodutério © Sheila Grillo, 2017 a vorocOnia bE QUALQUER FOLIIA DESTE LVR E ILEGAL E CONFIGURA UMA rmoPniAGXo INDEVIDA DOS DINEITOS INTELECTUAIS E PATKIMOSIAIS BO AUTOR A Editora 34 ageadece a Rafael Rocea pela tradugdo e revisio dos trechos em alemao. Capa, projeto grfico e editoracio eletronica Bracher & Malta Producio Grafica Revisio: Cecilia Rosas, Danilo Hora, Beatriz de Freitas Moreira CIP - Brasil. Catalogagio-na-Fonte (Sindicato Nacional dos Editores de Livros, R], Brasil) Vobichinoy, Vaan, 1995-1936 Vidi Marxist eflwa da lingoagen: woblemas fandamentas do mtd soso Ta iénia da igang /Naentia Vooshin tredagdo ove lomo de Sel Gill © taterna Volkova Amedeo ensaio trod fe Shelly Grilo Sao Pl Eatora 34,2017 (7 Edigto 576. Ish 97855 “Tago der Massa flo ia monte problemi sotologutcheskgo Inroa v a oan 1s tinguiica. 2. Cao de Bain. 3 oso da lingsage. 1. Grillo, hs I. Vélhove Amsco, Ekaterloa Mi Til. cop-410 Marxismo ¢ filosofia da linguagem Problemas fundamentais do método sociolégico na ciéncia da linguagem Ensaio introdutério, Sheila Grillo MARXISMO F FILOSOFIA DA LINGUAGEM Introdugao 83 Parte | — A IMPORTANCIA DOS PROBLEMAS DA FILOSOFIA DA LINGUAGEM PARA O MARXISMO. 1. Aciéncia das ideologias ea filosofia da linguagem... 2. 0 problema da relagio centre a base e a superestrutura . 3. A filosofia da linguagem € a psicologia objetiva. a 103 115 Parte II — Os CAMINHOS DA FILOSOFIA DA LINGUAGEM MARISTA 1, Duas tendéncias do pensamento filos6fico-linguistico 2. Lingua, linguagem ¢ enunciado... 143 173 EEE DLC 3. A intera 4, Tema e significagdo na lingua wn. 4o discursiva Parte III — PARA UMA HISTORIA DAS FORMAS DO ENUNCIADO NAS CONSTRUGOES DA LINGUA (EXPERIENCIA DE APLICAGRO DO METODO cos) SOCIOLOGICO AOS PROBLEMAS SIN’ 1. A teoria do enunciado € 0s problemas de sintaxe . 2. Exposigdo do problema do “discurso alheio” 3. Discurso indireto, discurso direto e suas modificagies. 4, Discurso indireto livre nas linguas francesa, alema ¢ russa Anexo Plano de trabalho de Voléchinov.. Glossirio, Sheila Grillo e Ekaterina Vélkova Américo Sobre o autor Sobre as tradutoras .. 241 249 263 291 353 369 371 Marxismo e filosofia da linguagem: uma resposta a ciéncia da linguagem do século XIX e inicio do XX Sheila Grillo" A primeira tradugio brasileira do liveo Marxismo e fic losofia da linguagem (doravante MEL), hoje em sua 13* edi- do, foi realizada em 1979 a partir do francés com consultas A traducdo americana e ao original russo. Apesar de prova- velmente ser a obra mais conhecida ¢ citada do Circulo de Bakhtin entre linguistas brasileiros, ela foi vertida principal- mente do francés; esse fato motivou a decisio de traduzir 0 texto difetamente da primeira edigao russa de 1929.2 com corregdes € pequenos acréscimos observados na segunda edi- go de 1930, disponivel na internet.’ Assim como na tradu- do de O método formal nos estudos literdrios: introducao _ critica a uma poética socioldgica (Contexto, 2012) ¢ Ques- 1 Gostatia de agradecer imensamente & FAPESP, pelo financiamento do meu estigio de pesquisa em Moscou para a coleta da bibliografia ne cessiria & redagio deste ensaio, ¢ aos estudantes ¢ pesquisadores do Gru- po de Pesquisa Dillogo (USPICNPg) pelas sugestoes e eriticas, a saber Pkaterina Vélkova Américo (que também corrigiu as transcrigées do rus- 0 € revisou os trechos traduzidos de obras russas), Arlete Machado Fer- nnandes Higashi, Flivia Silvia Machado, Inti Anny Queiroz, Luiz Rosalvo Costa, Maria Glushkova, Michele Pordeus Ribeiro, Simone Ribeiro de Avila Veloso e Urbano Cavaleante da Silva Filho, 2V.N. Voléchinov, Marksizmifilossdfia iaaka: osnovnie probliémi sotsiologuitcheskogo miétoda v naiike o iaziké, Leningrado, Priboi, 1929, 5 Disponivel em . Acesso em maio-ourubro de 2015. Ensaio introdutério 7 tese € a antitese, ficando fora e além dos seus limites, e ne- gando tanto a tese quanto a antitese, ou seja, representando uma sfntese dialética. Como veremos no capitulo seguinte, as teses da primeira tendéncia também nio resistem a critica. Aqui, chamaremos a atengio ainda para o seguinte fa- to. O objetivismo abstrato, ao considerar o sistema da lingua ‘como tinico e essencial para os fendmenos linguisticos, nega- va o ato discursive — o enunciado — como individual. Nis- so, como haviamos dito certa vez, esté 0 proton pseudos do objetivismo abstrato, O subjetivismo individualista conside~ ra justamente o ato discursive — o enunciado — como tii co € essencial. No entanto, ele também define esse ato como individual e por isso tenta explicé-lo a partir das condigoes da vida psicoindividual do individuo falante. Nisso esté 0 seu proton pseudos. De fato, 0 ato discursivo, ou mais precisamente 0 seu produto —o enunciado— de modo algum pode ser reconhe- cido como um fenémeno individual no sentido exato dessa palavra, e tampouco pode ser explicado a partir das condi- ‘Ges psicoindividuais e psiquicas ou psicofisiolégicas do i dividuo falante. O enunciado é de natureza social. Essa tese sera fundamentada no proximo capitulo. frymereede 5 qaeduite do | ata dant Ling qraante aa Andinokes dvi re 200 (Os caminhos da filosofia da linguagem marxista =. A interagao discursiva®/(a wlroges pve A teoria da expressao do subjetivismo individualista, a critica da teoria da expressio, a estrutura sociol6gica da vi- ‘véncia e da expressio. O problema da ideologia do cotidia- no. O emunciado como base da formagao da linguistica. Os caminhos para a solugao do problema da realidade efetiva da lingua. O enunciado como um todo e suas formas. Como observamos, a segunda tendéncia do pensamen- 10 filoséfico-linguistico est relacionada com o racionalismo co smo. A primeira tendéncia — o subjetivismo individualista — esta ligada yitismo. O romantismo, em grande parte foi uma reagao & palavra alheia e as catego- rias do pensamento condicionadas por ela. De modo mais preciso, o romantismo foi uma reacao A iiltima recidiva do io cultural da palavra alheia, ao Renascimento ¢ a0 classicismo. Os romanticos foram os primeiros fildlogos 52 Optamos por traduzir a expressio russa rietchevdie veaimodiis- tie por “inceragio discursiva”, uma vex que se trata do uso concreto da lingua em uma situagio social mais préxima e em um meio social mais am- plo, resultando no enunciado, Além disso, 0 adjetivo retebev6i (*discursi- yo" ou “de discurso”) € o mesmo que aparece no titulo do famoso texto de Bakhtin Os géneros do discurso (ed. bras: Mikhail Bakhtin, Os géne= ros do discurso, traducio de Paulo Bezerra, Sio Paulo, Editora 34, 2016) (N.daT) ‘A interacio discursiva 201 da lingua materna, os primeiros a tentar reconstruir radical- mente o pensamento lingu(stico na base das vivéncias da li gua materna, vista como medium de formagao da conscién- cia e do pensamento. Mesmo assim, os romanticos permane- cram fildlogos no sentido estrito da palavra. E claro que eles nao foram capazes de reconstruir 0 pensamento linguistico que constitu e se assentou ao longo dos séculos. Apesar dis- 80, @ esse pensamento foram introduzidas novas categorias responsveis pelas particularidades especificas da primeira tendéncia. E caracteristico que, mesmo no presente momen- to, os representantes do subjetivismo individualista sejam em sua maioria romanistas, especialistas em linguas novas (Vossler, Leo Spitzer, Lorck ¢ outros) Entretanto, 0 subjetivismo individualista também con- siderava 0 enunciado monolégico enquanto a tiltima realida- de, isto é, 0 ponto de partida do seu pensamento sobre a lin- guagem. E verdade que eles a abordavam nio do ponto de vista de um fil6logo que compreende passivamente, mas co- mo se fosse de dentro, do ponto de vista do proprio falante que se expressa. O que seria entdo o enunciado monolégico do ponto de vista do subjetivismo individualista? — Como observamos, le é um ato puramente individual, uma expressio da cons- iéncia individual, dos seus propésitos, intengdes, impulsos ctiativos, gostos e assim por diante. A categoria da expres- siio é aquela categoria superior e geral a qual é reduzido o ato linguistico, isto 6, 0 enunciado, Porém, 0 que seria essa expressio? A sua definicio mais simples grosseira &a seguinte: al- Bo que se formou e se definiu de algum modo no psiquismo do individuo e ¢ objetivado para fora, para os outros com a ajuda de alguns signos externos. Desse modo, a expressio possui dois membros: 0 ex- presso (interior) ¢ a sua objetivagao exterior para os outros (ou talvez até para si mesmo). A teoria da expressio, por mais, 202 (Os caminhos da filosofia da linguagem mazxista refinadas e complexas que sejam as suas formas, supde ine- vitavelmente esses dois membros: todo 0 acontecimento da expresso ocorre enitre eles. Por conseguinte, toda a teoria da expressio supde inevitavelmente que o expresso pode de al- gum modo se formar e existir fora da expresso, que cle exis te em uma forma e depois se converte em outra, Pois, caso contratio, se o expresso desde o inicio existisse na forma da expresso ¢ entre eles houvesse uma conversio quantitativa (no sentido de compreensio, diferenciagio etc.), toda a teo- tia da expressio desmoronaria. A teoria da expressio pres- supée invariavelmente um certo dualismo entre o interior e 0 exterior e uma certa primazia do interior, pois todo 0 ato de objetivagio (expressiio) ocorre de dentro para fora. As suas fontes encontram-se no interior. Nao € por acaso que a teoria do subjetivismo individualista, como todas as teorias da expressio no geral, se originou exclusivamente no terre- no idealista e espiritualista. Tudo que é essencial se encontra no interior ¢ o exterior pode se tornar essencial apenas ao se converter em um recipiente do interior, isto é, a expresso do espirito. No entanto, ao se tornar exterior e expressar-se para - fora, o interior muda de aspecto, pois ele é obrigado a do- minar 0 material exterior que possui as suas préprias leis, alheias ao interior. No proceso desse dominio do material, da sua superagio, da sua transformacao em um medium obe- diente da expressio, aquilo que é vivido e expresso muda de aspecto ¢ é forgado a buscar uma espécie de meio-termo. FE. Por isso que, no terreno do idealismo, no qual se formaram. todas as teorias da expressio, pode ocorrer a negacao radi- cal desta, vista como distorgao da pureza do interioz5? Em 5A ideia proferida é uma mentira” (Fiédor Taitchev); “Ah, se Fos- se possivel dizer com a alma sem usar palavras” (Afandssi Ret). Essas afi -magies sio absolutamente tipicas do romantisma idealista, AA interagio discursiva 203 w y todo caso, todas as forcas criativas ¢ organizadoras encon tram-se no interior. Todo o exterior é apenas um material pas- sivo da formulagio interior. De modo geral, a expresso ¢ construsida no interior, e é em seguida convertida pata 0 ex- terior, Disso decorre que o processo de compreensio, inter pretagio e explicagio de um fendmeno ideolégico também deve ser direcionado para o interior; ele deve ocorter na di- artindo da objetivagao exterior, a explicagao deve chegar a suas raizes interiores e organiza doras. E assim que o subjetivismo individualista compreen- regio oposta da expressio: de a expressio. A teoria da expresso que se encontra na base da pr meira tendéncia do pensamento filoséfico-linguistico é incor reta em sua essénci, A vivéncia expressa ea sua objetivagio exterior sio cria- das, como sabemos, a partir do mesmo material. Com efei- to, nao ha vivéncia fora da encarnagio signica. Portanto, des- de 0 inicio, nao pode haver nenhuma diferenga qualitativa entre 0 interior e 0 exterior. Mais do que isso, o centro orga- nizador e formador nao se encontra dentro (isto é, no mate- rial dos signos interiors), ¢ sim no exterior. Nao é a vivén- cia que organiza a expresso, mas, ao contrario, a expressao organiza a vivencia, dando-Ihe sua primeira forma e definin- do a sua diregio. De fato, nao importa qual aspecto da expressio-enun- ciado considerarmos, ele sera definido pelas condigoes reais do enunciado e, antes de tudo, pela situacao social mais pré- xima. Bfetivamente, 0 enunciado se forma entre dois indivi- duos socialmente organizados, e, na auséncia de um interlo- | | cutor real, ele é ocupado, por assim dizes, pela imagem do re. || presentante médio daquele grupo social a0 qual o falante per- i tence. A palavra é orientada para o interlocutor, ou seja, € orientada para quent é esse interlocutor: se ele € integrante 204 (Os caminhos da filosofia da linguagem marxista ou no do mesmo grupo social, se ele se encontra em uma posigiio superior ou inferior em relagio ao interlocutor (em termos hierarquicos), se ele tem ou nao lacos sociais mais estreitos com o falante (pai, irmao, marido etc.). Nao pode haver um interlocutor abstrato, por assim dizer, isolado; pois com ele nao terfamos uma lingua comum nem no senti- do literal, tampouco no figurado. Mesmo quando pretende- mos viver ¢ expressar urbi et orbi, é claro que, na verdade, vemos tanto a cidade quanto o mundo pelo prisma do am- biente social concreto circundante. Na maioria dos casos, pressupomos um certo horizonte social tipico e estavel para © qual se orienta a criagio ideolégica do grupo social e da época a que pertencemos; isto é, para um contemporaneo da nossa literatura, da nossa ciéncia, da nossa moral, das nos- sas leis. ‘© mundo interior ¢ © pensamento de todo individuo possuem seu auditério social estivel, e nesse ambiente se for- mam os seus argumentos interiores, motivos interiores, ava~ liagées ete. Quanto mais culto for um individuo, tanto mais 1 seu audit6rio se aproximard do auditério médio da cria- do ideolégica, mas, em todo caso, o interlocutor ideal nio _ écapaz de ultrapassar os limites de uma determinada classe e época. ‘A importincia da orientagio da palavra para o interlo- cutor é extremamente grande. Em sua esséncia, a palavra é um ato bilateral, Ela 6 determinada tanto por aquele de quem ela procede quanto por aquele para quem se dirige. Enquan- to palavra, ela é justamente o produto das inter-relagdes do falante com o ouvinte. Toda palavea serve de expresso a0 m” em relagio ao “outro”. Na palavra, eu dou forma a ‘mim mesmo do ponto de vista do outro e, por fim, da pers- pectiva da minha coletividade. A palavra é uma ponte que li- 22 0 eu 20 outro, Ela apoia uma das extremidades em mim e a outra no interlocutor. A palayra é o territ6rio comum en- tre o falante e 0 interlocutor. 205 A interagao discus Mas quem seria o falante? Pois mesmo se a palavra ndo Ihe pertencer por inteiro — sendo uma espécie de zona limi trofe entre ele e o interlocutor —a sua maior parte ainda é propriedade do falante. Em um determinado momento, o falante 6 0 proprieti- rio indiscutivel da palavra, que € inaliendvel dele. Trata-se do ato fisiol6gico da realizagao da palavra. Todavia, por ser um ato puramente fisiologico, a categoria de propriedade nao po- de ser aplicada, No entanto, se tomarmos nio 0 ato fisiol6gico da reali zacio do som, mas a realizagio da palavra como um signo, a questo da propriedade se tornara extremamente compli- cada. Isso sem mencionar o fato de que a palavra como signo €tomada de empréstimo pelo falante da reserva social de sig- nos disponiveis; a propria constituigio individual desse signo social em um enunciado concreto é determinada integralmen- te pelas relagdes sociais. Justamente aquela individualizagao estilistica do enunciado abordada pelos vosslerianos é 0 refle- xo das inter-relagdes sociais e é em seu ambiente que se cons | tituio enunciado em questao. A situacao social mais proxima || ¢ 2.ambiente social mais amplo determina completamente '\e, por assim dizer, de dentro, a estrutura do enunciado. De fato, nao importa qual enunciado considerarmos: ainda que ele nao represente uma mensagem objetiva (uma comunicagio no sentido estrito), mas uma expressio verbal de alguma necessidade como, por exemplo, a fome, conclui- remos que sua orientagao é inteiramente social. Antes de mais nada, ele é determinado de modo mais proximo pelos parti- cipantes do evento do enunciado, tanto os imediatos quanto os distantes, e em relagio a uma situagio determinada; isto 6, a situagio forma 0 enunciado, obrigando-o a soar de um modo € nao de outro, seja como uma exigéncia ou um pedi- do, seja como a defesa de um direito ou como uma stiplica or piedade, seja em estilo pomposo ou simples, seja de mo- do confiante ou timido e assim por diante, 206 (Os caminhos da filosofia da linguagem marxista Essa situago mais pr6xima e os participantes sociais, imediatos determinam a forma ¢ 0 estilo ocasionais do enun- ‘Giado. As camadas mais, profundas da sua fa sua estrutura so de- terminadas por ligagées sociais mais duradouras ¢ essenciais, das quais o falante participa Se tomarmos 0 enunciado no proceso da sua constitui- cdo “ainda dentro da alma”, a esséncia da questio nao sera alterada, pois a estrutura da vivéncia é tao social quanto a estrutura da sua objetivagao exterior. O grau de consciéncia, de clareza ¢ de constituigao da vivéncia esta proporcional- mente relacionado 4 orientagao social. De fato, mesmo uma tomada de consciéncia simples ¢ imprecisa de alguma sensagio, por exemplo, da fome, nao pode ser expressa para fora sem uma forma ideol6gica. To- da tomada de consciéncia precisa do discurso interior, da en- tonagao interior e do estilo interior embrionario, uma vez que € possivel omar consciéneia da propria fome de modo supli- cante, aflito, irritado, inconformado. E claro que aqui enu- ‘meramos somente as orientagdes mais grosseiras e fortes da entonagaio interior, quando na verdade uma vivencia pode ter ‘uma entonacao bastante sutil e complexa. Na maioria dos ca- 0s, a expressio exterior apenas continua e esclarece a orien- tacio do discurso interior e as entonagoes contidas nela. sentido da entonagao da sensagao interior de fome de- penderd tanto da situagao mais préxima da vivéncia quanto da posigao social geral daquele que passa fome. Com efeito, essa condigdes determinardo qual sera o contexto valorati- vo € 0 horizonte social em que a experiéncia da fome seré concebida. O contexto social mais proximo determinaré os possiveis ouvintes, aliados ou inimigos para os quais a cons- iéncia e a vivéncia da fome iro se orientar, por exemplo, a amargura com a ma sorte e o destino infeliz, consigo mesmo, com a sociedade, com um determinado grupo social ou com ‘uma pessoa etc. F claro que essa orientagao social da viven- cia pode possuir diferentes graus de consciéncia, preciso e A interagio diseursiva 207 diferenciagéo, porém nao pode haver vivéncia sem a0 menos ‘uma orientagao social valorativa. Até o choro de um bebé de colo é “orientado” para a mae. A vivéncia da fome pode pos- sui tons de apelo ou de propaganda, a experiéncia pode se direcionar para um possivel apelo, para um argumento de propaganda, ser concebida como um protesto ¢ assim por diante. Em relagdo ao ouvinte potencial (que as vezes € perce- bido de modo bem evidente}, é possivel distinguir dois polos ou dois extremos entre os quais a vivéncia pode ser concebi- da ¢ formada idcologicamente, tendendo ora para uma dire- 40, ora para outra. Denominaremos esses extremos conven- cionalmente de “vivéncia do eu” e “vivéncia do nés”. Em sua esséncia, a *vivéncia do eu” tende a eliminacao, isto é, ela perde a sua forma ideolgica a medida que se apro- xima do limite e, por conseguinte, deixa de ser concebida, aproximando-se da reagio fisioldgica de um animal. No li- mite, a vivencia perde todas as potencialidades, todos os ger- mes de orientagao social e, consequentemente, também a stia forma verbal. Algumas vivéneias e até grupos inteiros podem se aproximar desse limite extremo, sendo privados de sua cla- reza e forma ideol6gica ¢ demostrando uma falta de enraiza- ‘mento social da consciéneia.s+ A “vivéncia do nés” nao é de modo algum uma cia gregaria primitiva: ela é diferenciada. Mais do que isso, a diferenciagio ideolégica e o aumento da consciéncia sto di- reramente proporcionais a firmeza e a convieeao da orienta- 40 social. Quanto mais unida, organizada e diferenciada for $* Sobre a possibilidade de um grupo de vivéncias sexuais de um ho- ‘mem ficar fora de um contexto social e a perda da consciéncia verbal em decorréncia disso, conferir nosso livro Freidizm, Guiz, 1927, pp. 136-7. Fd. bras.: Mikhail Bakhtin, O freudismo: um eshoco ertico, trad ‘slo de Paulo Bezerra, Si0 Paulo, Perspectiva, 2001. (N. da T.)] 208, (Os caminhos da filosofa da linguagem marxista a coletividade na qual se orienta um individuo, tanto mais diversificado e complexo sera seu mundo interior. Existem diferentes graus da “vivéncia do nés” e suas for mas ideolégicas podem se manifestar de varios modos. Suponhamos que um faminto tome consciéneia de sua fome em uma multidao desunida de famintos ocasionais (um azarado, um mendigo etc.). A vivencia desse solitario mar- inalizado tera um tom especifico e tender a certas formas ideol6gicas, cuja amplitude pode ser bastante vasta: resigna- ao, vergonha, inveja ¢ outros tons valorativos marcarao a sua vivencia, Esta ird se desenvolver na direcéo das formas ideolégicas correspondentes: o protesto individualista de um miseravel ou a resignacao mistica penitente. Suponhamos que o faminto pertenga a uma coletivida- deem que a fome nao é ocasional e tem um carter coletivo, porém a prpria coletividade de famintos nao possui uma li- gacio firme e material, isto é, passa fome desunida. Na maio- ria dos casos, os camponeses se encontram nessa posigao. A fome é partilhada por todos, porém, como ha desuniio ma- terial e auséncia de uma economia jnica, cada um a vive no mundinho pequeno ¢ fechado da sua economia individual. ~ Uma coletividade assim nao possui um corpo material unifi- cado para uma agao unificada. Nessas condigées prevalece- ra consciéncia resignada, porém nao sem vergonha e humi- thacdo, da sua fome: “Todos aguentam, aguente voce tam- bem”. Nesse terreno se desenvolvem os sistemas filosdficos ¢ religiosos como a nio violéncia e o fatalismo (o cristianismo rimitivo e 0 tolstoismo). O membro de uma coletividade (regimento de soldados; trabalhadores reunidos em uma fabrrica; lavradores assalaria- dos de uma grande fazenda capitalista; e por fim uma classe inteira, a0 amadurecer até a forma da “classe para si”) orga~ nizada em termos objetivo-materiais vivencia a fome de mo- do totalmente diferente. Nesse caso, prevalecerio na viven- cia os tons de protesto ativo e confiante, e no haverd espa- A interagio discursiva 209 wr 0 para entonacoes de resignacio e de submissio. Além dis- 0, 0 terreno sera mais fértil para a clareza ideolégica € 0 aca- bamento da vivéncia.5> Todos os tipos de vivéncias que tiveram suas principais entonagées analisadas por nds carregam imagens c formas correspondentes de enunciados possiveis. A situacao social sempre determina qual sera a imagem, a metafora e a forma de enunciar a fome que pode se desenvolver a partir de dada diregao entonacional da vivéncia. A autovivncia individualista possui um carter especi- fico, Nao se trata da “vivéncia do eu” no sentido exato da palavra, definido acima. A vivéncia individualista € bastante diferenciada e acabada, O individualismo é uma forma ideo- logica especifica da “vivéncia do nés” da classe burguesa {existe um tipo andlogo de autovivéncia individualista na classe da aristocracia feudal). O tipo de vivéncia individua- lista é determinado por uma orientagao social sélida e con- fiante. A autoconfianga individualista, a sensagio do valor préprio nao vem do interior nem das profundezas da perso- nalidade, mas de fora: é a interpretagdo ideolégica do meu reconhecimento social, da garantia dos meus direitos e do apoio e protecao objetivos concedidos por todo o regime po- litico 4 minha atividade econdmica individual. A estrutura da personalidade individual consciente € tao social quanto 0 tipo de vivéncia coletiva: é uma determinada interpretagio ideolégica de uma situacao socioeconémica complexa e es- $5 Um material interessante sobre a questio da expressio da fome encontra-se nos ivros de um lingusta modero famoso da escola de Voss: lee —Leo Spitzer: Italeniscbe Kriegsgefangenenbriefe (Carta italianas de prisioneiros de guerra e Die Umschreibungen des Begriffes Hunger [As parifrases do conceito de fome|. © principal problema abordado nessas bra feild com ques palara se adapts cones de um situagio excepcional Entretanco, 6 autor nfo apresenta uma abordagem verdadeiramente sociolégica. : = 210 (0s caminhos da filosofia da linguagesn marxista tavel projetada para alma individual. Contudo, no tipo de “viyéncia do nos” individualista, assim como no regime cor- respondente, ha uma contradigao interna que mais cedo ou mais tarde romper ao seu acabamento ideol6gico. © tipo de autovivéncia solitéria possui uma estrurura anéloga (“o dom e a forca de ser solitirio em sua verdade”, tipo cultivado por Romain Rolland e em parte por Tolst6i). (0 orgulho dessa solidao também se apoia no “nds”. Esse é uum tipo caracteristico da “vivencia do nés” da intelligentsia atual da Europa Ocidental. As palavras de Tolst6i sobre a existéncia do pensamento para sie do pensamento para o pi blico compreendem apenas duas concepgoes de pablico. Na verdade, a expressio “para si” significa apenas outra concep- io social do ouvinte, propria de Tolstai. Nao existe um pen- samento fora da orientacio para uma expresso possivel ¢, por conseguinte, fora da orientagao social dessa expressio do prdprio pensamento. Desse modo, a personalidade falante, tomada por assim, dizer de dentro, ¢ inteiramente um produto das inter-relagies sociais. Seu territério social no € apenas a expresso exte- rior, mas também a vivencia interior. Consequentemente, to- __ doo caminho entre a vivéneia interior (aquilo que é “expres- 0”) € a sua objetivagao exterior (o “enunciado”) percorre o territ6rio social. Ja quando a vivéncia é atualizada em um cenunciado finalizado, a sua orientagao social adquire uma di- rego para a situacao social mais préxima da fala e, acima de tudo, aus interlocutores concretos. Tudo o que dissemos langa uma nova luz sobre 0 pro blema da consciéncia e da ideologia analisado por né: ‘A consciéncia é uma ficgao fora da objetivacao, fora da encarnacéo em um material determinado (o material do ges- to, da palavra interior, do grito). Trata-se aqui de uma cons- trugio ideolégica ruim, criada por meio de uma abstragio dos fatos concretos da expressio social. Todavia, a conscién- A inceragio diseursiva 2 cia como uma expresso material organizada (no material ideol6gico da palavra, do signo, do desenho, das tintas, do som musical etc.) é um fato objetivo e uma enorme forca so- cial. Entretanto, essa consciéncia nao se encontra acima da existéncia nem pode determind-la de modo constitutivo, pois # consciéncia é uma parte da existéncia, uma das stias forcas © portanto, possui a capacidade de agir, de desempenhar um Papel no palco da existéncia. Enquanto a consciéncia perma- nece na cabega daquele que pensa como um embriio verbal da expressio, ela é apenas uma parte muito pequena da exis ‘éncia, com um campo de agio reduzido. No entanto, quan do ela passa todos os estigios da objetivacao social e entra no campo de forca da cigncia, da arte, da moral, do direito, ela se torna uma forca verdadeira, capaz até de exercer uma influéncia inversa nas bases econdmicas da vida social, F cla- ro, a forca da consciéncia esta na sua encarnagao em deter- minadas organizagdes sociais ¢ na sua fixagao em expresses ideol6gicas estaveis (ciéncia, arte e assim por diante), porém ela ja era um pequeno acontecimento social, ¢ no um ato in- dividual interior, na forma primaria vaga de um pensamen- toe uma vivéncia instantaneos, Desde o principio, a vivéncia esta orientada para uma expressdo exterior bastante atualizada, ¢ tende para cla. Essa expresso da vivéncia pode ser realizada, mas também pode ser atrasada e retardada. Nesse iltimo caso, a vivéncia é uma expressao retardada (nao abordaremos aqui a questao bas- tante complexa da causas ¢ condigaes lo retardamento). Por sua vez, a expressio realizada exerce uma potente influéncia inversa sobre a vivéncia: ela comeca a penetrar na vida inte- rior, dando-lhe uma expresso mais estavel e definida. Essa influéncia inversa da expresso acabada e estivel sobre a vivéncia (ou seja, a expressio interior) possui um enorme significado ¢ deve ser sempre levada em considera- cdo. E possivel dizer que nao é tanto a expressdo que se adap- ta.ao nosso mundo interior, mas nossa mundo interior que 22 (Os caminhos da filosofia da linguagem mars onvraise2 0 w9010a se adapta as possibilidades da nossa expressdo € aos seus pos- caminhos e direcoes. - A todo 0 conjunto de vivéncias da vida e expressdes ex- ternas ligadas diretamente a elas chamaremos, diferentemen- te dos sistemas ideol6gicos formados — a arte, a moral, 0 di reito —, de ideologia do cotidiano. A ideologia do cotidiano € 0 universo do discurso interior ¢ exterior, nao ordenado nem fixado, que concebe todo nosso ato, ago ¢ estado “cons- ciente”. Considerando 0 cardter sociol6gico da estrurura da expressio e da vivencia, podemos dizer que a ideologia do cotidiano, no nosso entender, corresponde em geral aquilo que na literatura marxista é denominado como “psicologi social”, No presente contexto preferimos evitar a palavra =psicologia”, uma vez que tratamos excepcionalmente do contetido do psiquismo e da consciéncia inteiramente ideo- légico e determinado nao por fatores individuais e organicos (biol6gicos, fisiolégicos), mas de carter puramente sociolé- gico. O fator individual-orginico € totalmente irrelevante pa- ra.a compreensio das principais linhas criativas e vivas do conteiido da consei Os sistemas ideoldgicos formados — a moral social, a ciéncia, a arte e a religiao — se cristalizam a partir da ideo- logia do cotidiano e, por sua vez, exercem sobre cla uma for- te influéncia inversa, e costumam dar 0 tom a essa ideologia do cotidiano. Todavia, ao mesmo tempo, esses produtos ideo- Epics foemadoe preeciant constansmans= sisi vval gac%0 organica com a ideologia do cotidiano, nutrem-se da sua seiva ¢ fora dela esto mortos, assim como esto mortas uma obra literdria finalizada ow uma ideia cognitiva fora da sua percepgio avaliativa viva, No entanto, uma obra ideol6- sica existe apenas para essa percep¢ao que se realiza ey lin- guiagem da ideologia do cotidiano. A ideologia do cotidiano insere a obra em uma dada situagio social. A obra passa a ser ligada a todo o contetido da consciéncia e é percebida ape- nas no contexto dessa consciéneia atual. A obra é interpreta- Sivei ncia, 13 A interagto discursiva A ee da no espirito desse contetido da consciéncia (da consciéneia daquele que percebe) ¢ é elucidada por ele de modo novo. f essa a vida de uma obra ideolégica. Em cada época de sua existéncia histérica, a obra deve interagir estreitamente com a ideologia do cotidiano em transformacio, preencher-se por la e nutrit-se de sua seiva nova. Apenas a medida que a obra € capaz de interligar-se ininterrupta e organicamente com a ideologia do cotidiano de uma época, ela & capaz de ser viva dentro dela (é claro, em um dado grupo social). Fora dessa ligacao, ela deixa de existir, por nao ser vivida como algo ideologicstmente significativo. “ __ Devemos distinguir varias camadas na ideologia do co tidiano. Essas camadas sio determinadas pela escala social que mede a vivéncia ¢ a expresso, bem como pelas forgas sociais que as orientam diretamente. Como ja sabemos, o horizonte no qual se realiza uma clada vivéncia ou expressio pode ser mais ou menos amplo. © mundinho da vivéncia pode ser estreito e escuro € a sua orientagio social, ocasional e instantanea, prépria apenas a lum grupo eventual e instavel formado por algumas pessoas. E claro que mesmo essas vivéncias excepcionais sio ideols. gicas e sociolégicas, apesar de ja estarem no limite entre o normal ¢ © patolégico. Essa vivéncia ocasional permanece isolada na vida espiritual de uma pessoa, Ela nao ser capaz de firmar-se ¢ encontrar uma expressao diferenciada e acaba- da, pois, se ela € privada de um auditério socialmente funda- mentado ¢ estavel, de onde surgirio as bases para sua dife- renciagio e acabamento? E menos provavel ainda que essa Vivéncia ocasional seja fixada (por escrito e menos ainda por impresso). Evidentemente, essa vivéncia gerada por uma si- tuagio instanténea ocasional nao teré nenhuma chance de adquiri forga e influtncia Sociais posteriores, Essas vivéncias compoem a camada mais inferior, fluida ¢ rapidamente mutavel da ideologia do cotidiano. Por conse- guinte, a essa camada pertencem todas aquelas vivéncias va- 24 Os caminhos da flosofia da linguagem macxista gas, pouco desenvolvidas, que relampejam na nossa alma, bem como pensamentos ¢ palavras ocasionais ¢ vazios. To- dos eles sio embrides de orientagies sociais, inaptos a vida, “romances sem personage ¢ discursos sem audit6rio. Eles sio privados de qualquer logica ¢ unidade. & extremamente dificil perceber uma lei sociolégica nesses retalhos ideol6gi- “cos, Na camada inferior da ideologia do coridiano é possivel captar apenas a lei estaticas somente uma grande massa de produtos desse género revela as linhas gerais da lei socioeco- némica, Evidentemente ¢ impossivel revelar de modo prati- ‘co as premissas socioecondmicas de uma vivéncia ou expres- sio isolada e ocasional. Ja as camadas superiores da ideologia do cotidiano, aquelas que se encontram em contato direto com os sistemas ideol6gicos, sio mais substanciais, responsiveis e possuem um carater criativo. Flas si0 muito mais ativas e sensiveis do que a ideologia formada; so capazes de transmitir as mu- dancas da base socioecondmica com mais rapidez-¢ clareza. E justamente aqui que se acumulam as energias criativas res- ponsaveis pelas transformagdes parciais ou radicais dos sis- temas ideolégicos. Antes de conquistar seu espaco na ideolo- gia oficial organizada, as novas forcas sociais emergentes pri- meiramente encontram expressio e acabamento ideolégicos nas camadas superiores da ideologia do cotidiano. £ claro, no processo de luta, no processo de penetracao gradual nas formagées ideolégicas (na imprensa, na literatura, na cién- ), esas novas tendéncias da ideologia do cotidiano, por mais revoluciondrias que sejam, sofrem a influéncia de siste- mas ideol6gicos jé formados, assimilando parcialmente as formas acumuladas, as praticas e as abordagens ideoldgicas. Aquilo que é normalmente chamado de “individualida- de criativa” expressa a linha fundamental, firme e constante da orientacio social de um homem. Acima de tudo, ela é constituida pelas camadas superiores e mais acabadas do dis- curso interior (da ideologia do cotidiano), cujas imagens ¢ A interagio discursiva entonagdcs passaram pelo estagio de express, isto é por uma espécie de teste com a expressio. Desse modo, trata aqui de palavras, entonagdes, gestos intraverbais, que passa- ram pela experiéncia da expresso exterior em uma escala social maior ou menor, que foram por assim dizer socialmen- te bastante amoldados e polidos pelas reagies e réplicas, pe- la reprovagio ou apoio do auditério social. £ obvio que, nas camadas inferiores da ideologia do co- tidiano, 0 fator biobiogréfico desempenha um papel essen- cial; porém, a medida que o enunciado se insere em um sis- temi idcol6gico, a sua importdncia torna-se cada vez menor. Consequentemente, se nas camadas inferiores da vivéncia e expressio (do enunciado) as explicagies biobiograficas po- dem possuir algum valor, nas camadas superiores o seu pa- pel é extremamente modesto. O métado sociol6gico objeti- vo tem aqui uma soberania total. Em sintese, a teoria da expressio que fundamenta o sub- jetivismo individualista deve ser dispensada por nés. O cen- tro organizador de qualquer enunciado, de qualquer expres- sio nao esta no interior, mas no exterior: no meio social que circunda o individuo. Somente um grito animal inarticulado € de fato organizado a partir do interior, do aparelho fisiol6- gico de um individuo. Ele é pura reagio fisiolégica, sem ne- hum acréscimo ideolégico. No entanto, o enunciado huma- ‘no mais primitivo, pronunciado por um organismo, é orga- nizado fora dele do ponto de vista do seu contetido, sentido ¢ significagio: nas condigdes extraorginicas do meio social. Qenunciado como tal é em sua completude um produto da interagao social, tanto a mais proxima, determinada pela si- tuagio da fala, quanto a mais distante, definida por todo 0 conjunto das condigoes dessa coletividade falante. Ao contrario do que diz.a doutrina do objetivismo abs- trato, 0 enunciado singular (parole) de modo algum é um fa- 216 (Os camminhos da filosofa da linguagem marxista to individual que, devido a sua individualidade, nao pode see submetido a uma analise sociol6gica. Se fosse assim, a soma desses atos individuais, bem como seus aspectos abstratos (“as formas normativas-idénticas”) nao poderiam gerar ne- nhum produto social. O subjetivismo individualista term razdo ao defender que 6s enunciados singulares so de fato a realidade concreta da lingua e possuem nela uma significagao criativa. No entanto, o subjetivismo individualista nao tem razio em ignorar e no compreender a natureza social do enuncia- do, tentando deduzi-lo como uma expresso do mundo inte- rior do falante. A estrutura do enunciado, bem como da pro pria vivéncia expressa, é uma estrutura social. O acabamen- 10 estilistico do enunciado — 0 acabamento social ¢ 0 prd~ prio fluxo discursivo dos enunciados que de fato representa a realidade da lingua — é um fluxo social. Cada gota nele & social, assim como toda a dindmica da sua formacio. O subjetivismo individualista tem absoluta razdo ao afir- ‘mar que é impossivel separar a forma linguistica do seu con- teiido ideolégico. Toda palavra ¢ ideolégica, assim como ca- da uso da lingua implica mudangas ideol6gicas. O subjetivis- mo individualista, no entanto, r:do tem razdo em deduzir o contetido ideol6gico da palavra das condigdes do psiquismo individual. subjetivismo individualista tampouco tem razio a0 partir, assim como 0 objetivismo abstrato, principalmente do enunciado monolégico. E verdade que alguns vosslerianos esto comegando a abordar 0 problema do diélogo e, por conseguinte, vém se aproximando da compreensio mais cor- eta da interagio discursiva, Nesse sentido é extremamente caracteristico o livro de Leo Spitzer jé citado, Italienische Umgangsschprache (Linguagem coloquial italiana), onde fo- ram feitas tentativas de analisar as formas da linguagem co- Joquial italiana em ligagio estreita com as condigées da fala A interagao discursiva 217 ¢ principalmente com a posigao do interlocutor.** Nao obs tante, o método de Leo Spitzer € descritivo-psicolégico. Ele nio tira as devidas conclusdes sociolégicas da sua anilise. Portanto, para os vosslerianos, 0 enunciado monolégico per- manece como uma realidade fundamental. © problema da interagao discursiva foi colocado com extrema clareza por Otto Dietrich.*” Ele parte da critica da teoria do enunciado como expressao. Para 0 autor, a funcio principal da lingua no €a expresso, mas a mensagem. Isso © leva a considerar 0 papel do ouvinte. De acordo com Die- rich, dois participantes (o falante ¢ o ouvinte) si0 a condi Zo minima de um fenémeno linguistico. No entanto, as pre- missas psicoldgicas gerais de Dietrich so as mesmas do sub- jetivismo individualista. Além disso, os estudos de Dietrich carecem de uma base sociolégica definida. Agora podemos dar uma resposta as questes por nds colocadas no inicio do primeiro capitulo desta parte. A rea- lidade efetiva da linguagem nao é 0 sistema abstrato de for ‘mas linguisticas nem o enunciado monolégico isolado, tam- Pouco 0 ato psicofisioligico de sua realizagao, mas 0 acon- © A propria composigio do liveo, dividide em quatro capitulos, & bastante caracteristica, Bis os seus titulos: I. Eréffaungsformen des Ge speichs, Il. Sprecher und Horer; a) Hoflichkeit (Riicksicht auf den Part net) b) Sparsamieit und Versehwendung im Ausdruck; c) Incinandergrei fen von Rede und Gegenrede. IIL. Sprecher und Situation. IV. Der Abschluss des Gesprichs [I. Formas de introdugio do didlogo, I, Locutore interlo- ceutor: a) Consideragio pelo parceiro; b) Economia e desperdicio na ex- pressio; e) Imbricagao de fala e réplica. Ill. Locutor e situagio. IV. Con:

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