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COLEÇÃO CAIUOSCÓPIO

OSKAR BECKER

O PENSAMENTO
/

MATEMATICO
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
Sua grandeza e seus limites
REITOR

Prof. Dr. Lufa António da Gama e Silva

EDITÔRA DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO


COMISSÃO EDITORIAL

PRESIDENTE

Prof. Dr. M drío Guimarães Fm;ri


FACULDADE DE FILOSm'IA, CIJl:NCIAS E Lll:TRAS

MEMBROS

Prof. Dr. A. Brito da Cunha Prof. Dr. C. da Silva Lacaz


FAC. DE FILOS., CIJl:NC. E LJl:TRAS FACULDADE DE MEDICINA

EDITÔRA I-IERDER
Prof. Dr. Miguel Reale Prof. Dr. Walter Borzani SÃO PAULO
FACULDADE DE DIREITO ESCOLA POLITÉCNICA
1965
11

tica. Mais tarde voltaremos a esta linha do pensa-


mento moderno.
Mas perguntamos: tal concepção, que quase
CAPÍ TULO SEGUNDO já se tornou lugar-comum, é verda deira ? Parece-
nos basta r pronunciar a palav ra "astro nomi a" para
refutá-la. Porve ntura a astronomia não é uma
Ciência exa ta da natureza 11 ciência exata da natur eza? Quando foi ela a pre-
! paração para qualquer técnic a? Com as estrêlas,
até hoje, não se pôde fazer experiências; o máximo
que se pode fazer é examinar sua irradiação. Fenô-
menos celestes podemos somente observar, mas
não modificar. Galileu pôde fazer rolar suas bolas
1. O papel da astronomia sôbre um plano inclinado, "com um pêso que êle
mesmo escolh eu" (como Kant diz tão pl~stica-
Freqüentemente se ouve a afirmação que a mente), mas com os astros ninguém pode brincar.
ciência exata da natur eza é, senão uma conse- .r
qüência, pelo menos uma preparação e até um Do ponto de vista histórico a astronomia é
pressuposto da técnica. Afirma-se(l) que a ciência muito antiga. Como ciência exata, baseada em
matem ática recente é um produto do capitalismo métodos matemáticos, existe desde o sécu lo vrn
incipiente; que ela é o produ to de uma concepção antes de Cristo, desde os tempos babilônico-assi-
do mundo segundo a qual o traba lho huma no nos riacos. Desde a metad e do século VIII existem
ofícios e na produção de bens se torno u o modêlo observações sistem áticas dos eclipses; a mais an-
dos fenôm enos naturais e determinou assim nosso
J
tiga, citada por Cláudio Ptolomeu, teve lugar em
conhecimento da natureza; na ciência está sempre 746. O primeiro sistema exato do mundo, baseado
presente a vontade de dominar e subju gar a natu- em observações, é do grego Eudoxo (teoria das
reza. As fórmulas matemáticas da física teórica esferas homocêntricas); um outro, talvez tamb ém
"dom inam " um determinado ciclo de fenômenos, do século IV, é de Herakleides Pontikos(2). O
mas sem "entendê-los", ou querer entendê-los. E mais tarda r no século nr são conhecidos epiciclos
quando Nietzsche afirma que em tôda a vontade e excêntricos (Apolônio de P erge). No decurso do
de conhecer está incluída uma certa crueldade, e período helenístico, tanto no mundo grego co~o
quando u_m neo-romàntico m9derno se queixa de
1
neo-babilônico, se desenvolveu uma astronomia
que a técnica mode rna" rebaixou a grande mãe a es- subtil baseada em observações e cálculos; os
crava", estamos na mesma linha de pensamento. documentos dessa época nos foram conservados
sobre tudo nos escritos de Cláudio Ptolomeu para
li
O próprio Heidegger fala de um desafio mútuo,
de uma "afirmação" reciproca da natureza e do a no "T\meu "
(2) Conforme B. L. van der Wa.riün já se acha exp_re,s
homem, do ser e do homem, nesta nossa era atô- uma t eoria. dos opieiolos para Mero<ir io e Venus (D1e Astronom1e dor
Wetenso h. Afd. Natuur k.
Pytbago reer, in Verhandl. d. K. Nederl. Ako.d. v. ff.).
no. obra: Die Wissens• 1. R. Deol XX Nr. 1 (Amsterdnm, 1051) S. 45
(1) Vid. J,foo: Scheler, "Erken ntnls und Arboit"
formen und die Geselho halt (Leipzig 1920).
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a parte grega, e em numerosos textos cuneiformes, Nesta confluência de duas correntes de pensa-
para a parte neo-babilônica. O que aí encontra- mento, das quais uma trata da mecânica terrestre
mos é, sem dúvida alguma, ciência exata de alto e a outra das leis dos movimentos dos planetas
quilate, baseada no pensamento matemático. O no céu, se operou algo de nôvo: a assimilação í
valor desta ciência pode ser demonstrado pelo fato das leis dos movimentos terrestres e celestes; lan- ·
que seus métodos e resultados foram aceitos por çou-se assim uma ponte por sôbre o abismo exis-
Copérnico sêm restrições. É somente a "Astro- tente entre a terra e o céu, cavado pela tradição
nomia nova" de Kepler (1609) que produz uma clássica antico-medieval, em oposição ao atomismo
reviravolta e traz novidadés que mais tarde tor- democritico-epicureu, difamado como suspeito. Em '
naria possível a mecânica celeste de Newton. princípio, a mecânica dos corpos somente observá-
O próprio Kepler ainda adota dois métodos. veis e não influenciáveis é a mesma que a dos
Suas obras Mysterium cosmographicum e Harmonice corpos terrestres que podemos tocar. Também na
Mundi existem lado a lado com a "Astronomia esfera terrestre existem leis não menos exatas do
nova": de um lado pita_gorismo, de outro obser- que no céu. Com isto se inicia a ciência matemá-
vação empírico-exata. E digno de nota que a tica clássica do Ocidente. É verdade que hoje
terceira lei de Kepler (de significado secundário em dia esta unidade das leis naturais para tôdas
na Harmonice Mundi) juntamente com a deter- as esferas foi de algum modo abalada, já que para
minação feita por Huygens da aceleração centri- corpos muito grandes (no caso, as estrêlas) as leis
fuga se tornou o ponto de partida para a lei de exatas conservam seu valor, enquanto que para
Newton sôbre a gravitação.(3) Huygens de sua as partículas muito pequenas só existem leis esta-
parte se utiliza da analogia entre a aceleração tísticas (teoria dos quanta). Contudo a passagem
centrifuga e a aceleração da queda como a calculara da física clássica de Newton para a fisica mo-
Galileu. Vê-se assim que na teoria newtoniana derna (que se efetivou ai por 1900), não é, apesar
se ajuntam os pensamentos de Galileu e de Huygens de tudo o que se diz em contrário, um passo maior
com os de Kepler para a elaboração da teoria da na direção de um outro modo de pensar do que
mecânica celeste(4). a descoberta da mecânica celeste no século xvn
(elaborada por Newton já em 1666, mas publi-
(3) Conforme a terc,iira lei de Kepler os cubos dos grandes eixos cada somente em 1687).
das trajetórias dos planetas (aproximadamente os cubos [r•) dos raios) silo
proporcionais aos quadrados dos tempos das circunvoluções (T2). Conforme
Huygens a aceleração centrífuga (a) é diretamente proporcional no qua-
drado da velocidade da circunvolução (c2 ) e indiretamente proporcional
ao raio (r); ora a velocidade citada é igual ao comprimento d" circunfe- 2. A "experiência analítica" na Antigüidade
rência (2pir) dividida p elo tempo da circunvolução T; então, n acele-
ração centrífuga a é proporcional a c2/r ou (r2/T')/r ou r/T' e, então, como T•
é proporcional a r 3, conclui-se que está na proporção rfr' ou l/r2 • O cerne
e na Idade Moderna
da lei da graviéaçlío de Newton é, no fundo, igual, no que concerne à cine-
mática.
(4) Deve-se acrescentar ainda que Newton ampliou a teor\a de Huygens
A questão por que a Antigüidade não conseguiu
estendendo-a do movimento circular para o movimento elíptico com aoele produzir uma ciência exata da natureza, no sen-
rnção dirigida para um dos focos (como exigem n primeira e a eegunda
lei de Kepler) o assim aplicou rigorosamente ns leis keplerianas e solu· tido ·próprio desta palavra, não pode ser respon-
clonou o assim chamado "problema dos dois corpos". dida em poucas palavras. Alguma luz, embora
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bastante unilateral, é atirada sôbre a questão
quando se compreende que a ciência antiga não gênero de experiências, como a de lripaso (12.13)
conhecia a "experibicia analitica". com discos de diferente grossura e com recipientes
mais ou menos cheios de água. Sõmente em época
Não há dúvida que os gregos eram finos obser- mais. recente se praticam ocasionalmente experi-
vadores e pensadores penetrantes , mas tinham um ências sistemáticas, por exemplo, no terreno da
pavor instintivo de analisar artificialmente, por ótica: Claudio Ptolomeu pesquisa a visão binocular
manipulações apropriadas, qualquer fenômeno e . e a refração da luz. Mas mesmo ai o fenômeno
assim destrui-lo em sua integridade. O que se natural nunca é decomposto cm seus componentes,
podia observar diretamente na natureza e aquilo como seja, a lúz branca através de um prisma em
que resultava de atividades práticas pré-cientificas seus componentes colorid,,s.
na guerra e na paz (técnica manual e técnica
guerreira), era considerado como objeto de ciência Ainda mais importante é o fato que a deMm-
posição e a composição das fôrças mediante o tão
('livre". Mas quase ninguém construia aparelhos
conhecido paralelogramo de fôrças é inteiramente
para fins unicamente de pesquisa. desconhecido na Antigüidade; parece que sómente
Tipica, para uma assim chamada "experiência" pelo fim do século XVI foi utilizado por Stevin
na antigüidade helênica, é a descrição que Empé- para explicar o equilíbrio no plano inclinado. Os
docles (B 100, 8-21) nos oferece de uma criada gregos não foram capazes de calcular êsse equilíbrio
que brinca com um elevador de água (klepshydra, (vide uma tentativa falha em Pappus, Coll. math.
literalmente: "ladrão de água"). A clepsidra é vm, 8-9); conseguiu-o, é verdade, no início do
um antigo aparelho doméstico (conservam-se alguns século XVI um discipulo de Jordanus Nemorarius,
exemplares), uma espécie de pipeta que servia para mas sómente pela aplicação do principio dos deslo-
tirar água dos enormes cântaros que não se podiam camentos virtuais, e não pela decomposição dos
fàcilmente levantar ou inclinar. A "experiênci a" componentes. No decurso do século xvu o prin-
descrita no jôgo da criada serve como modêlo cípio do paralelogramo é extensamente aplicado
(que na poesia de Empédocles toma a forma de aos mais variados problemas e a dinâmica newto-
uma parábola homérica) de um processo fisioló- niana seria ininteligível sem êle.
gico. Mas se trata da observação de uma inocente
Não entraremos agora nas particularid ades his-
brincadeira de criada e não de uma experiência tóricas ou nos diferentes experimento s e suas expli-
com fins científicos. cações, mas insistimos no' principio fundamenta l
Algo semelhante encontramos freqüentemente da análise dos fenômenos naturais e na decompo-
entre os pré-socráticos. As homoiomerias de Anaxá- sição dêstes em seus elementos para depois nova-
goras, por exemplo, são explicadas pela mistura mente reuni-los, geralmente (embora não sempre)
(manual) de côres (Anaxágm.:_as B 10 [p. II 37, pela simples superposição dos componentes. O
7-10), B. 21 [p. II 43, 8-12 Diel-Kranz]; sôbre princípio da análise dos elementos foi formulado
a clepsidra: A 69). Igualmente as experiências por Descartes em suas ''Regulae ad directionem
acústicas, parcialmen te verdadeiras, parcialment e ingenii" (1629). Está em estreita relação com a
pretensas, dos antigos pitagóricos pertencem a êste ''Mathesis universalis" que se serve da "Algebra
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speciosa" (cálculo por tneio de letras, descoberta quedos geniais, ''coisas admiráveis que se movetn
por Viete e melhorada pelo mesmo Descartes) e por si mesmas" (Aristóteles, Met. A 2, Pág. 983a,
que pode ser aplicada a tôda espécie de números e 14), que serviam para divertir o público e não
grandezas; está além disto em relação com o ideal para pesquisas. O homem antigo encontrava os
cartesiano da matematicização da física, segundo "modelos" dos fenômenos naturais na própria natu-
a qual tudo se consegue pela elaboração de axiomas reza ou na ocupação manual e não os empregava
e pelo cálculo algébrico. A matemática de Descartes para fins científicos (excetuados mais uma vez os
é assim um modêlo metódico. Na realidade per- modelos astronômicos, as " esferas").
tence à essência mesma da matemática ser fácil e A construção de aparelhos científicos para uso
até trivial em todos os seus passos, pela conexão da pesquisa surge quase repentinamente no século
gradual de figuras sempre mais complexas e argu- xvn; pense-se no telescópio, no microscópio, no
mentos sempre mais intrincados que são difíceis de relógio de pêndulo, no vácuo de Torricelli e na
seguir e compreender. Contudo seu caráter cientí- bomba de ar com que Otto v. Guericke conseguiu
fico provém precisamente desta complexidade estru- tant os efeit os dinâmicos. Mas experiências exatas,
tural. levadas de forma realmente cientifica, não eram
Portanto, um traço característico e fundamental ainda freqüentes; Blaise Pascal constitui uma
da ciência natural exata, a partir do século xvn, honrosa exceção.
é que ela decompõe em seus elementos, muitas O esfôrço para ser exato pressupõe um grande '
vêzes invisíveis, os fenômenos pré-científicos e coti- interêsse por constatações numéricas exatas, o
dianos, para depois novamente reuni-los; por aí que leva a pesquisa numa direção inteiramente
se exerce igualmente uma crítica sôbre a observa- nova. Parece-nos hoje evidente que "o livro da
ção ingênua dos sentidos. Pense-se, por exemplo, natureza está escrito em linguagem matemática"
na ingênua concepção de Aristóteles, e de o_u tros, · (Galileu). Naquele tempo isto era novidade e con-
que velocidade e fôrça motora são proporcionais trário à tradição antico-medieval, excetuada sempre
entre si; a doutrina da física clássica moderna, a astronomia; esta, contudo, com Tycho Brahe
ao contrário, ensina a proporcionalidade da fôrça muito ganhou em exatidão nas suas observações
e da aceleração. O caráter matemático da física (de 10 minutos para 1 minuto e até menos!) .
moderna repousa precisamente sôbre êsse traço Não é por acaso que o mesmo Galileu, para
construtivo, próprio da ciência exata moderna. quem a natureza fala a linguagem da matemática,
Da tendência moderna para a análise segue, aprova o método risolutivo e com'l!ositivo, da mesma
antes cfê mais nada, a construção de aparelhos e forma como Descartes. Isto significa: a maneira ,
seu uso para observações sempre mais exatas. Tal de pensar matemática em certo sentido nada mais
tendência existia na antigüidade sómente no campo é que o método analítico, tanto que o têrmo "Ana-
da astronomia (que necessitava de medições exatas lysis" t em uma justificativa quando aplicado à
de ângulos) e de algum modo no da geodésia (os alta matemática que surgiu no século xvrr.
"Dioptra" de H erão). Ao contrário, os aparelhos l'tste fato não é diminuído por êss~ outro, que
"pneumáticos" de H eron !?-ada mais são que brin- no decurso do século xvn1 se descobriram processos

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matemáticos que permitem estabelecer leis de ca- por meio do método cientifico, idéia que é uma
ráter integral e aparentemente teleológico, os cha- conseqüência necessária, senão um pressuposto,
mados "princípios extremais" Oeis integrais). Tra- da moderna técnica. M. Heidegger exprimiu elo-
ta-se do cálculo das variações, concretamente do qüentemente isto ao afirmar que a natureza e o
problema da curva do percurso no menor tempo homem mutuamente se "afirmam" ("Ge-stell"), o
("braquistocrona", de que se ocuparam Leibniz que entretanto não é entendido como cegueira ou
e Jakob e Johann Bernoulli); do principio do
"hybris" do homem, com suas conseqüências trá-
caminho mais curto para a luz (Fermat) e dos gicas, mas como o "destino do ser" ("Seins-Ge-
resultados mínimos (Leibniz e Maupertius). Para schick") de nossa época(5).
Leibniz êsses princípios maximais e minimais têm
uma significação básica, filosófico-teológica: Deus, O limite onde começa êsse "forçar" da natureza
que criou o melhor de todos os mundos possíveis, não é fácil de determinar. Heidegger, por exemplo,
produz o máximo com os menores meios, solve ainda não considera como forçamento o aproveita-
todos os problemas da maneira mais econômica, mento da fôrça do vento pelas velas ou pelos
como Arquiteto perfeito do universo. Mas, mais moinhos de vento nem o aproveitamento do solo
tarde se descobriu que a todos êsses princípios na agricultura tradicional; mas considera força-,
extremais correspondem sistemas de equações dife- mente da natureza a máquina a vapor, a eletrici-
renciais (as assim chamadas "equações de La- dade e o adubamento químico, que supõe uma
grange") e que não têm caráter integral ou teleoló- técnica quimica muito desenvolvida. Mas pode- '
gico. tsses integrais principais extremais geral- se perguntar: 9ual é o principio da distinção? ,
mente possuem duas soluções e têm resultados No século xvn Luís XIV fêz construir as obras
máximos e mínimos e constituem assim as soluções hidráulicas de Marly no Sena, as quais por meio
"melhores" e "piores". Apesar disto é digno de · de bombas acionadas por rodas hidráulicas eleva-
nota, do ponto de vista da história da filosofia, vam a água para as margens do rio a uma altura
que Leibniz t enha tentado conciliar a tradição que lhes permitia alimentar os chafarizes do parque
filosófico-teológica da Idade-Média com a ciência de Versailles. Esta obra tão admirada em seu
exata da Idade Moderna. tempo, extensa e cara, pode ser considerada um
De tudo isto resulta que a experiência analítica forçamento da natureza ? A eficiência desta enorme
e a análise matemática estão em íntima relação obra era extraordinàriamente baixa; fizeram-se os
entre si e expressa-se pelo fato de em ambas se tra- cálculos que o produto de tôda essa imensa maqui~
duzir a tendência construtiva da ciência moderna. naria poderia hoje em dia ser alcançado pelo motor
de um carro médio. Pode-se dizer que as má-
3. "Forçar" a natureza? quinas de Marly constituiam um forçamento muito
débil da natureza, apesar de seu tamanho. Mas
Talvez seja o processo analítico da ciência mate-
mática recente que inspirou a idéia do "força- (5) Vid. M. Heideooer, "Vortraege und AufsMtze" (Pfullingen 1954),
mento" (ou violação) da natureza pelo homem pág. 113 a,. ("Die Frago nach der Tochnik" (1053), pág. 163 ss. ("Das
Ding" (1950); "Identitllt und Differenz" (Pfulliogem 1057), pág. 25 s,.

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Q.

qualquer aparelho produzido pela técnica perfeita em suas causas, e assim a construção de aparelhos '
de nossos dias, como seja um avião a jato, um técnicamente mais perfeitos do que era capaz de
foguete espacial que coloca um satélite em órbita produzir a cultura antiga que "nascia" da natu-
ao redor da terra, ou uma máquina de calcular reza. Foi preciso antes de tudo destruir e decompor
eletrônica (da qual algumas pessoas chegam a os conjuntos naturais para conseguir que as fôrças
afirmar que ê capaz de pensar por si), tem um da natureza agissém segundo a vontade do homem.
efeito bem mais conspicuo e de fato "força" a Em segundo lugar o pensamento matemático
natureza. Existem pessoas que julgam que o ta- não é somente analítico, mas também construtivo,
lento e o esfôrço que o inventor tem de gastar e construtivo de forma inteiramente conseqüente.
na construção de um dêsses aparelhos diabólicos Seu método fundamental, o cálculo, é um processo
exercerá algum dia qualquer ação nefasta sôbre a segundo regras bem determinadas que não per-
humanidade! Ainda que se não tenha em vista mitem exceção, um processo de conseqüências inelu-
o uso e o abuso militar dessas descobertas, as táveis; depois que se escolhem livrcm?nte as regras
reações sociológicas que inevitàvelmente suscita a de um cálculo estamos restritos a elas de modo
técnica sempre mais desenvolvida das máquinas absoluto. ','Na primeira escolha somos livres, na
são de temer, e sem sombra de dúvida já se fize- segunda escravos". Um tal procrsso leva sempre
ram sentir. Os homens perdem aos poucos a liber- mais longe, para novas construções e argum:;ntos.
dade que no decurso da história tão denodada- Em terceiro lugar está ainda a idéia dos extre-
mente conquistaram para serem ah.sorvidos inexorà- mais. Alcançar o máximo com o mínimo de meios,
velmente pelo coletivismo, como uma "engrena- tal era já para Leibniz a lei da ação não só dos
gem" na monstruosa máquina socialista. homens, mas também de Deus. Dêste principio
Pode-se acrescentar que não havia outra es- \ resulta a tendência para um sempre maior aper-
colha. O enorme aumento da população na Eu- ( feiçoamento dos aparelhos técnicos. Um conheeido
ropa no decurso do século xrx obrigou a uma provérbio diz: "0 ótimo é inimigo do bom". Uma
evolução técnica em etapas forçadas, o que teria tal tendência não é tão natural como hoje em dia
s~do evitado apenas se ela se t ivesse conformado a nos poderia parecer. A Antigüidade, por exemplo,
descer até o nível de vida das populações asiáticas, era muito conservadora nas coisas técnicas; e
realmente insuportável. Mas com Heidegger se melhoramentos técnicos de grande estilo, como
pode responder que é precisamente nisto que reside ~eja no tráfego, tais como a estrada de ferro e o
a necessidade inelutável (o "destino do ser") do avião consigo trouxeram, dificilmente são encon-
homem ocidental. tráveis. Na técnica guerreira algumas vêzes apa-
Quando se pergunta como e porquê se chegou a reciam novidades, como os elefantes de guerra,
êsse estado de coisas, será necessário chamar a mas nunca se chegou a mudanças tão radicais
atenção para o papel desempenhado pelo pensa- como a descoberta da pólvora no fim da Idade-
mento matemático. ~ êle que torna possível a Média.
pesquisa analítica dos fenômenos naturais, sua A irrupção de t~ntas novidades no século XVII
decomposição em processos simples e controláveis é algo de notável. Não é preciso pensat· no "apri-

38 39
sionamento" de grandes fôrças naturais nas má- tirar a água das minas da Inglaterra não foi um
quinas, que então nem sequer tinham sido cons- fato decisivo; elas simplesmente su bstituiram os
truídas com êxito (embora o plano de Huygens homens e os animais em seu trabalho. Mas já
de uma máquina a pólvora pode ser considerado as primeiras locomot ivas a vapor trouxeram con-
predecessor dos motores a explosão), mas em sigo uma verdadeira revolução nos transportes e
descobertas tão simples como o telescópio e o na velocidade das viagens, que só se pode com-
microscópio. A simples justaposição de lentes, parar com a introdução do avião intercontinental
conhecidas há tanto tempo (vidros de aumento já de nossos dias. Igualmente a descoberta do navio
havia na Antigüidade e óculos já se usavam no a vapor possibilitou a renovação de tôda a técnica
' século xv), abriu mundos novos, macrocosmos e naval. Estas duas invenções transformar am costu-
microcosmos inteirament e desconhecidos até en- mes e hábitos milenares que se criam imutáveis.
tão. (O telescópio foi descoberto por práticos ho-
landeses desconhecidos; Galileu imediatamente os Nestes exemplos vemos claramente o que Hei-
usou para fins astronômicos e Kepler formulou a degger chama de forçamento recíproco (o "afir-
teoria que os rege, ainda que não tivesse desco- mar-se") do homem e da natureza. O homem
berto a lei dos senos, mas somente uma aproxi- arrancou da natureza mistérios de cuja existência
mação da mesma para o cálculo dos ângulos muito nem se suspeitava e libertou suas fôrças secretas
pequenos). (pensemos na eletricidade e na energia atômica!),
as quais por sua vez reagem sôbre o homem, seus
De nôvo perguntamos: O telescópio e o micros- hábitos e sua posição na sociedade; e isto de ma-
cópio representam um "forçament o" da natureza, neira irresistível. Não no sentido que a natureza
enquánto que a lupa e os óculos não o são ainda? se vingaria do homem, mas que aqui se nos revela
Ou o limite é ultrapassado somente pelo t elescópio uma influência necessária de uma sôbre o outro.
gigante de Monte Palomar, ou talvez já pelo
Não se pode negar que em tudo isto o pensa-
grande instrumento de F. W. Herschel? mento matemático t eve uma participação decisiva.
Está-se tentado a ver o critério do "forçamento" Somente êle torna possível o "forçament o", e
da natur.eza no fato de que novos instrumentos isto de maneira paradoxal, pela renúncia, como
abrem um mundo inteiramente nôvo; assim pelo agora queremos explicar.
telescópio de Galileu ficaram visíveis as luas de
Júpiter, de cuja exist ênciá antes ninguém jamais
sonhara. Não entraria nesta clÉl,S$e, contudo, o teles- 4. "Naturam renuntiando vincirnus"
cópio náutico que não trouxe consigo uma revira-
volta na navegação maritima; como tal deveria Foi Francis Bacon que forjou o aforisma: Na-
ser c.ons~derado o cronômetro náutico que se desen- tura non nisi parendo vincitur; uma variante en-
volveu a partir dos relógios construídos por Huy:- contramos neste outro princípio: Naturam renun-
gens. tianda vincimus: pela renúncia vencemos a natu-
Voltando para o terreno das máquinas, vemos reza. Por mais paradoxal que isto pareça, o processo
que- o uso das primeiras máquinas a vapor para para arrancar à natureza seus mistérios e pôr suas
4()
41
1
fôrças a nosso serviço é renunciar ao conheci- ~ste fato aparecerá de forma particularmente
mento de sua "essência". Esta idéia já se encontra clara quando se tomam em consideração as dife-
em Galileu. Tendo trabalhado a princípio em Pisa rentes "teorias da relatividade" que no decurso
como discípulo dos terministas parisienses (esco- da longa história da física viram a luz do mundo.
lásticos do século XIV, dentre os quais os mais Estas teorias sempre afirmam que certas coisas
conhecidos são Buridano e Oresme), em Pádua (a não podem ser concebidas de maneira "absoluta"
partir de 1592) se afastou desta tradição medieval, e que sôbre elas nada se pode em princípio afirmar
renunciando a investigar as causas do movimento de absoluto. Daí se segue que as leis fundamentais
da queda e do tiro, para se limitar inteiramente da natureza devem ser invariantes relativamente
ao decurso dêsses fenômenos. Embora tal renúncia a determinado grupo de transformações. E isto
fôsse em sua mente só provisória, trata-se contudo significa que deve haver simetrias correspondentes
de um acontecimento de grande significação. Pois na estrutura das leis naturais e nas fórmulas mate-
êste método paradoxal de penetrar nos segredos máticas que as exprimem. E isto de nôvo nos
da natureza mais e mais porfundamente, renun- leva ao ponto de partida de nossas considerações
ciando a responder às questões que sempre tinham que expuseram a tese básica dos pitagóricos.
s1'do propostas (pense-se nas numerosas " causas"
de Aristóteles), sempre de nôvo se mostrou fru- Tal modo de pensar já se encontra no exemplo
mais antigo que temos de raciocínio matemático,
tuoso. Uma tal atitude favoreceu o conhecimento
isto é, na relativização dos conceitos "em cima" e
teórico e não só a prática. É isto que é notável,
mas fàcilmente compreensível se se olhar de mais "em baixo", de Anaximandro. Como já vimos,
segundo êle a terra paira no centro do mundo e
perto.
"em cima" significa o que se afasta "da terra"
Aqui está o ponto em que a maneira especifica- e "em baixo", o que se aproxima da terra em
mente matemática de pensar desempenhou seu direção radial. Esta afirmação vale ainda hoje e
papel. A !'renúncia" tem por conseqüência uma permanece imutável quando se representa a terra
limitação de respostas possíveis sôbre a natureza. como girando em redor de um eixo que passa pelo
Em muitos casos esta limitação, a impossibilidade seu centro.
de dar diversas respostas, se deixa precisar matemà- Esta concepção nos é hoje em dia tão evidente
ticamente. Resulta daí que as possibilidades estru- que raras vêzes refletimos no fato que ela não é
turais de formular matemàticamente as leis da clara assim. Na Antigüidade pensadores como
natureza são igualmente limitadas. A fórmula é Demócrito e Epicuro não partilharam desta opinião
sempre determinada e em casos extremos absoluta- mas falaram de uma "queda" de átomos no sen-
mente imutável. Não é como se somente o pro- tido absoluto, e durante a R enascença os antípodas
cesso, e não a causa, de um fenômeno fôsse repre- pertenciam ao reino da fantasia e eram represen-
sentável pelos meios matemáticos, mas que outros tados como sêres fantásticos agarrados na beirada
conhecimentos a que se renunciou podem ser do mundo, como cefalópodos e semelhantes.
conhecidos positivamente por métodos matemá- Anaximandro, portanto, elaborou uma "teoria
ticos. da relatividade" para os conceitos "em cima

42 43
em baixo" e lhes deu uma definição invariável Quanto à relatividade do próprio movimento,
relativamente às rotações da terra (onde o centro o problema foi muito discutido em nossos dias e
fica firme). Ao mesmo tempo todo o mundo, consi- pode ser suposto como conhecido. As leis mecâ-
derado da terra, recebe uma estrutura radial- nicas de Newton são invariáveis no movimento
simétrica. uniforme retilíneo, mas não nas rotações por causa
Outro exemplo temos na relatividade do lugar do aparecimento da fôrça centr~fuga. Contudo a
e do movimento3 0 espaço. Não nos é possível rotação "absoluta" no espaço vazio não se pode
entrar nos pormenores desta questão que já existia representar concretamente. A dificuldade que dai
na Antigüidade (sobretudo nas teorias do eleata surge já foi discutida no século xvn (por Huygens
Zenão). Chamamos a atenção sômente para o e Leibniz) e depois no século xvm (por Euler e
assim chamado principio de relatividade de Galileu Kant) e no século xrx (por Mach e Andrade) sem !
(embora não fôsse ainda plenamente formulado que se tenha chegado a uma resposta satisfatória.
por Galileu, e mais tarde fôsse usado por Huygens Einstein em sua "teoria da relatividade geral"
na dedução que dai fêz de suas leis sôbre o choque), no século xx tratou do problema de maneira ra-
a célebre discussão entre Leibniz e Clarke (que dical e formulou matemàticamente as leis invari-
defendia a Newton) e as discussões posteriores antes da natureza que lhe dizem respeito. Mas
entre Euler e Kant. esta teoria tão ampla não está ainda inteiramente
Na polêmica entre Leibniz e Clarke não se esclarecida.
trata da invariança das leis mecânicas no movi- Com isto não chegamos ainda ao fim da evolu-
mento retilíneo uniforme de todo o sistema em ção. Na física atômica apareceram novos limites
consideração, pois sôbre êste ponto todos estavam no conhecimento da natureza, os quais não podem
concordes; mas, entre outras, da questão, que ser interpretados simplesmente pelas teorias da
hoje nos parece um pouco grotesca, se Deus poderia relatividade. As assim chamadas relações de inde-
ter colocado o mundo real em outro lugar do espaço terminação de Heisenberg excluem a possibilidade
absoluto e vazio ou se ainda agora pode mudar de determinar ao mesmo tempo e exatamente lugar
o lugar do universo. Leibniz declarava a questão e velocidade (o impulso) de uma partícula elemen-
tôda como absurda; não tem sentido, falar de um tar. A dupla concepção de tal "partícula" como
lugar absoluto do mundo no espaço vazio. Clarke corpúsculo e onda é a conseqüência necessária.
(e Newton) é de opinião inteiramente contrária. Também estas relações de inexatidão impõem às
Constatamos que a posição de Leibniz encerra leis fundamentais da natureza limitações que levam
uma teoria da relatividade do lugar; todos os a condições de simetria nas equações diferenciais
lugares no espaço vazio são iguais e impossíveis que as exprimem.
de distinguir, e portanto as leis da natureza são Outra coisa ainda se acrescentou nos tempos
invariáveis com a mudança de lugar, o qual deve recentes: referimo-nos à existência de um "com-
ser entendido não como um movimento concreto primento mínimo" (a partir de I0-13 cm), abaixo
no tempo, mas como uma mudança de posição do qual não mais é possível a medição, de modo
abstratamente concebida. . que estruturas de dimensões menores de certa

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forma não podem mais ser consideradas como exis- dão. Não podemos expor em tôda a sua extensão
tentes do ponto de vista físico(6). Esta limitação a velha controvérsia entre realismo e idealismo, já
de conhecimento leva igualmente a uma "relação que hoje em dia esta questão parece estar de pre-
de simetria" nas derradeiras equações básicas. ferência restringida à questão da "existência inde-
(Comparar com o que dissemos no cap. primeiro pendente" de outros homens ("outros eus"). Para
sôbre a "Fórmula do mundo" de Heisenberg-Pauli). nós êste problema é de importli.ncia só enquanto
Não é aqui o lugar de apreciar criticamente tem conseqüências para a ciência da natureza.
tôdas essas teorias. O que mais tarde de tôdas Não tomaremos, portanto, nosso ponto de partida
elas ainda subsistir como integrado na história da da problemática "filosófica", mas daquela que re-
ciência e o que será superado por novas teorias sulta de tôda a evolução da física (no sentido mais
no futuro, não sabemos ainda. Mas queremos amplo).
apontar aqui para um traço que lhes é comum e Como vimos, a ciência exata da natureza se
que é muito significativo: tôda negação de certo originou de diferentes fontes. A astronomia, pri-
conhecimen to traz consigo a conseqüência de impor
meira ciência exata, desde o comêço se ocupou de
às leis matemáticas fundamentais da natureza rela-
objetos - os astros - que não fazem parte do
ções de simetria, explicando- as desta forma sempre ambiente imediato do homem, que portanto não
mais plenamente. Isto significa que a tão freqüen- possuem um caráter real tão imediato como as
temente afirmada contingência das leis da natureza
coisas com que lidamos todos os dias. Não pode-
cede lugar a uma espécie de necessidade, que se mos tratá-los como tratamos uma mesa ou uma
poderia chamar de necessidade pitagórica. O mundo cadeira, chapéu, manto, arado, barco, espada e
se parece assim, não com uma "flor", como se escudo. A grandeza e a distli.ncia dos corpos ce-
diz nos belos versos de Platen sôbre a visão do lestes só dificilmente pode ser comparada com a
mundo de Schelling(7), mas com um cristal. grandeza e as medidas de nosso próprio corpo e
Com isto já tocamos num outro problema, o com as distâncias que nos são familiares.
da realidade.
Em poucas palavras: os objetos que constituem
5. O problema da realidade na física clássica o campo de pesquisa da astronomia (sol, lua, es-
trêlas) são puros fenômenos e como tais estão ao
Não nos incumbe entrar aqui nos pormenores nosso alcance, mas não podemos vê-los e tocá-los
do problema da "realidade" em tôda a sua ampli- com as mãos. As coisas que nos cercam e com
que lidamos todos os dias, que estão ou que podem
(6) Poder-se-ia apontar neste contexto pare. a assim chamada "idade
do mundo" (que segundo alguns seria de4 -ó bilhões de anos, ou de 8 bilhões estar ao alcance de nossas mãos, que estão "pre-
segundo outros). Antes dllste t empo, conforme alguns físicos, não só não
havia mundo nem acontecimentos. mas nem sequer tempo: seguindo a
sentes", estão ai como sendo nossas, ou ao menos
Agostinho (que dependia do "Timeu" do Platão) afirmam que o tempo como atingíveis.
foi criado juntamente com o mundo.
(7) Em um soneto dedicado a Schelling diz o autor: Só muito mais tarde e com muito maiores difi-
"Wenn wir •crstueckelt nur die W elt empfangen, culdades a ciência exata começou a se ocupar das
Siehst du sii aanz , wie von deB B eroes Spitze,·
Wa• wir •erpjlueckt mit unaerm armen Witze, coisas que nos estão próximas. A Antigüidade
Da, i at al, Dlum• vor dir auJoeoanoen". clássica conseguiu alguns resultados sómente no

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terreno da física estática e um pouco no da ótica Ccmo acabamos de ver, na Antigüidade fos-
e acústica (neste somente na doutrina s6bre a har- tam"n te os objetos "tc-rrenos", tão acc·ssfvds aos
monia musical). A "física" de Aristóteles era pouco homons e de cuja realidade nc·m a filosofia peri-
inclinada a pesquisas quantitativas exatas; a cate- patética, nem a estóica ou a epicúrica jamais du-
goria da quantidade aí aparecia ao lado de outras vidaram, estavam subtraídos à prsquisa exata.
categorias, (como substância, qualidade, relação), (Por esta razão algumas opiniões éticas da Anti-
ocupando um lugar bem modesto. No mundo que güidade não têm importância para a nossa ques-
estava abaixo da esfera da lua, as leis da natureza tão). O terreno da astronomia, o único a que se
não tinham valor exato e preciso, mas eram tão aplicava a ciência matemática exata, é, ao con-
somente regras estatísticas, dificilmente determi- trário, problemático quanto à espécie de reali-
náveis, "assim como as coisas freqüentemente, ou dade que se lhe deve atribuir. Para Platão e
em geral, são". Somente no século xvn com a Aristóteles os astros são uma espécie de sêres di-
mecânica de Newton, que tanto vale para os pro- vinos cuja "matéria" é distinta da dêste mundo.
cessos terrestres como para os celestes, a física se Havia também outras opiniões como as de Anaxá-
tornou uma ciência universal; somente então o goras, Demócrito e Epicuro; mas estas não podiam
pensamento matemático perpassa todo o mundo e ser formuladas de maneira satisfatória do ponto
o faz objeto da pesquisa exata. de vista da matemática e por isto não constituíam
Quanto à teoria do conhecimento, na Antigüi- sérias teorias concorrentes(8).
dade nunca se chegou a formular uma teoria idea- A realidade própria dos astros era, portanto
lista no sentido moderno da palavra. Nem a duvidosa. Isto teve como conseqüência que na
explicação dos eleatas nem a de Platão sôbre as astronomia antiga e medieval se formaram duas
coisas sensíveis como sendo meros fenômenos, que tendências: uma, puramente matemática (melhor:
não existem no sentido próprio, nem o ceticismo cinemática), que se limitava a analisar os com-
dos tempos helenísticos, podem ser interpretados plexos movimentos dos planetas no céu, compostos
como sendo idealismo. Descartes foi o primeiro de movimentos circulares uniformes (anàlogamente
que começou a raciocinar de um ponto de vista ao desenvolvimento de uma função em série trigo-
subjetivista, com sua célebre meditação sôbre a
(8) B. L. van der Waerden expOs longa.mente por que a. concepção
dúvida metódica; mas acabou por decidir-se pelo plat6i:iico-a.ristotélica., que em última análise depende dos pitagóricos, é
realismo. Berkeley é o primeiro idealista genuíno superior do ponto de vista matemá.tico à concepção ana.xagórico-democrltica.
(Die. Aslronomie der Pythagoree,·, pág. 13-15). Anaxágoras decompõe o
com o seu "esse est percipi"; sua atitude diante movimento anual do sol (e a.nàlogamente o da lua) numa componente
paralela ao equador celeste e numa que é paralela ao eixo celeste. Isto
da ciência exata de seu tempo é só parcialmente é posslvel do ponto de vista cinemático, mas sem consequências astronô-
negativa. Em seu escrito ''.De motu" êle critica a lllloas. De fato, ambas as componentes sSo explicada.a de maneira dife-
rente do ponto de vista din!hnico: a primeira pela revolução do éter, a.
doutrina de Newton sôbre o espaço absoluto do outra pela resistência oferecida pelo ar frio do Norte que obriga o sol a.
ºvirar-se ''. isto é, voltar para. n proximidade do equador. Não se explica.
ponto de vista empirista e no "The Analyst" como os movimentos das duas componentes se relacionam entre si. isto é,
critica violentamente o cálculo do fluxo. o fato de o ao! depois de um ano voltar, não para a mesma. órbita., ma.e
ta.mbé"! para. o mesmo signo do zod!a.co. A concepção pitagórica, ao
Voltemos à ciência exata e perguntemo-nos sôbre contrário, pelo fato de afirmar que o sol possui movimento próprio na
eliptioa. de oeste para. leste (isto é, contrário ao movimento diário das
o conceito de realidade que está na sua base. estréias fixas), explicava os f.enômenos corretamente.

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nométrica(9), sem se importar do mecanismo físico Trata-se, portanto, da realidade física dos corpos
que tornasse possível aquêles movimentos; a outra celestes e de seus movimentos. A se11aração funda-
tendência se orientava mais no sentido físico e mental entre o mundo terrestre e o mundo celeste
tentava descrever o mecanismo físico e as cau~as está definitivament e superada; a mesma matéria
dos processos, descritos pelos matemáticos do ponto constitui as estrêlas e a nossa terra, as mesmas
de vista puramente cinemático: êstes, portanto, leis mecânicas valem para todos os corpos. Mas
se preocupavam com pesquisas dinâmicas. O pri- surge uma nova dificuldade que diz respeito à
meiro método é empregado por Cláudio Ptolomeu natureza das fôrças que movem os planetas em
no "Almagesto", o segundo na "Hypothesis pla- suas órbitas e fazem cair os corpos pesados na
netarum" do mesmo autor. terra. Trat a-se da fôrça centrífuga e da gravitação
Esta dupla concepção, que tornava fácil falar (resp. a gravidade terrestre). A fôrça centrífuga
em "hipóteses" astronômicas no sentido do pri- é uma fôrça aparente que resulta da inércia da
meiro método, pelo qual se podem calcular tabelas mat éria, como explicou Huygens. A gravítacão,
de planetas em cuja verdade não se precisa acre- contudo, é uma fôrça distante que opera insta~tâ-
ditar, teve sua importância ainda durante a Idade neamente, e como tal é explicada por Newton em
Média e mesmo nos séculos xvr e XVII. Assim seus "Prmc. ípros
. " . Sua natureza permaneceu enig-
por exemplo Osiander, editor póstumo da obr~ mática e ninguém dentre os contemporâneos de
principal de Copérnico "De revolutionibus", con- Newton (como Huygens e Leibniz) e nem sequer
cebia o sistema heliocêntrico dêste como simples o próprio Newton se contentavam com a concepção
hipótese. Tycho Brahe, Kepler e Galileu, ao con- da gravitação como fôrça distante, apesar da utili-
trário, estabeleceram sistemas que deviam também dade que do ponto de vista mat emático daí pro-
ter valor físico. No precesso de Galileu isto teve vinha, como brilhantemente o demonstrara Newton.
sua importância: O Cardeal Belarmino lutou sem . Huygens em todo o caso foi o único que estabeleceu
resultado por uma interpretação hipotética do uma teoria quantitativamente determinada de ação
sistema(l0). O progresso ulterior das ciências no de contato da gmvidade, pelo menos da gravidade
século XVII mostrou, pelo sistema da mecânica t errestre, teoria genial que já como a teoria dos
celeste de Newton, que a tendência "hipotética" turbilhões de Descartes (que entretant o não fora
não mais correspondia ao espírito do 'tempo. elaborada a ponto de poder ser traduzida em têr-
mos de matemática) reduzia a gravitação à fôrça
(9) Havia ainda os métodos "lineares" dos babilônios (tempo hclenfs- centrífuga de uma matéria muito subtil que gira
tico), empregados igualmente por astrônomos gregos, como se pode ver em redor da terra (e dos outros astros respectiva-
no "Anaphorikos" do H ipsikles e no "Tetrahiblos" do Ptolomeu. tstes mente).
são szm ~lhantes aos nossos métodos de desenvolvimento em séries do
potências.
. Não podemos agora entrar em pormenores; o
(10) Vid. n exposição de E. J. Dijksterhuis no livro "Die Mechani-
sieru~g _des We!tbildes" (Berlim-Goettingen-H eidelberg 1956), págs. 69-77 importante é que vejamos o motivo que domina
(Antigoda.de), 236s., 230-243 (ldade Média), 304 ss. (Renascença), 320 ss. esta t eoria da ação de contacto, como também a
(Copérnico), 334 ss. (Tycho), 337 ss. (I(epler, s obretudo págs. 343-349),
424-•!29 (Galileu). Vid. igualmente O. N euaeba.ucr, Tho Exnct Soiences in teoria de Huygens sôbre a luz (a luz é um movi-
Antiquity (Providence, [Rhode Island] 21957), págs. 204-206. mento ondulatório longitudinal, o que torna com-

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preensível a dispersão das fontes luminosas): todos
êsses fenômenos são reduzidos à pressão e ao cho- rava todos os conceitos de outra origem. Ignorou
que de corpos que se tocam. (Huygens mesmo
portanto, também, o conceito de fôrça como sendo
depois da tentativa fracassada de Descart;s conse-
guira de_d~zir as leis cei:tas do choque, do "p~·incípio primário e fundamental; era concebido como depen-
de relatmd~de de 0~hleu"(ll). Pressão e choque dente das sensações subjetivas do esfôrço mus-
eram concertos familiares a todos e pareciam não cular, a partir de onde era formado. Natural-
necessitar de ulterior explicação. Parecia que de mente também os princípios "metafísicos" básicos
fenômenos até então inexplicáveis se poderia fa- de Aristóteles, potência e ato, bem como as quali-
bricar modelos mecânicos nos quais não haveria tates occultae dos escolásticos eram desprezados.
nada mais de misterioso. Por mais que Newton tentasse libertar-se da
Esta teoria da ação de contacto fôra elaborada tradição medieval não o conseguiu inteiramente
com o auxílio de diferentes corpúsculos e surgiu como é fácil demonstrar por uma critica dos funda~
então a questão sôbre a espécie de realidade dessas mentos de sua mecânica do ponto de vista mo-
partículas e com isto da própria matéria. Chegou- derno.(12) Julgava insatisfatórias as teorias meca-
se, assim, a começar por Galileu e Descartes e nicistas extremistas de seu tempo, como a de
pela ressurreição das idéias dos antigos atomistas Huygens, pois trabalhavam com corpúsculos desco-
à distinção de duas espécies de qualidades chama: bertos "ad hoc" e não observados, e apelavam
das mais tarde por Locke de "primárias" ~ !'secun- para teorias complexas para "explicar" os fenô-
dári~s". Número, extensão (grandeza), forma e menos, teorias que s6 serviam ao fim intentado.
movimento sã? qualidades primárias, enquanto que No "Scholium generale" acrescentado aos "Prin-
côr, som, cheiro e gôsto são secundárias. Deter- cipia" estabeleceu a célebre sentença": "Hypo-
mináveis (mensuráveis) com exatidão são somente theses non Jingo", aludindo à.s hipóteses forjadas
as _Pr~márias que r~p~esentam também aquilo que pelo espírito cartesiano. Já no início de seus "Prin-
propnamente é obJetivo nas coisas materiais. As cipia" (livro I, definição 8) afirmara considerar
qualidades secundárias, ao contrário são uma es- as fôrças aceleradoras da gravitação como "fôrças
pécie de engano dos sentidos, sujeit~s às proprie- não no sentido físico, mas matemático"; não quer
dades de nossos órgí!,os sensitivos e, pbrtanto sim- explicar "o modo e a maneira de sua ação, nem
plesmente subjetivas. Partindo desta distin~ão a sua causa física". Bastava-lhe poder deduzir de
extremada tendência mecanicista do século xvn suas leis universais do movimento e da lei da gravi-
representada sobretudo por Descartes e o "carte~ dade os movimentos observados dos planetas e
.
s1ano " H uygens, recebeu uma espécie de funda- das marés.
mento filosófico. Esta física totalmente mecânica Apesar disto Newton não elaborou um conceito
se contentava com as qualidades primárias e igno- ''nominalista" de fôrça; nem definiu a fôrça
como produto de massa e aceleração. Chegou
(lp Vid. Dijksterhui•, loo. cit. pág. 461 s. (teoria de Descartes aôbre
o turbilhão dos planetas), 614-518 ,Teoria de Huygens sôbrc a luz e a até a chamar de "absurdo" a admissão de uma
a:ravidade), 416-420 (Leis do choque de Huygene),
(12) Vid. Dijkstorhuis, loo. oit. págs, 519-533.
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