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Eu quero a única garota que não posso ter...

Zoe Romero está presa em um contrato de casamento


com o psicopata mais sádico da Kingmakers.

Ela não poderia estar mais fora dos limites.

Roubá-la de Rocco Prince quebraria as regras mais


rígidas do mundo da máfia.

Mas eu tenho que tê-la. Ela é minha alma gêmea. Eu a


quero, ou nada mais.

Eu farei qualquer coisa para salvá-la. Rocco fará


qualquer coisa para destruí-la.

Eu tenho uma chance de alcançar o impossível...


Vintage - Blu DeTiger Just A Lil Bit - 50 Cent
Astronaut In The Ocean - Señorita - Shawn Mendes &
Masked Wolf Camila Cabello
POPSTAR - DJ Khaled, Drake Often - The Weeknd
Money - The Flying Lizards Choke - Royal & the Serpent
Asturias - Marc Lezwijn Unchained Melody - The
Righteous Brothers
Calm Down - G-Eazy
Can't Help Falling In Love -
feel something - Bea Miller Kina Grannis
Everyday - A$AP Rocky Still Don't Know My Name -
Paint It Black - Vanessa Carlton Labrinth

feel good inc. - renforshort Take On Me (MTV Unplugged)


- a-ha
Plastic Hearts - Miley Cyrus
Minefields - Faouzia & John
Drugs - UPSAHL Legend
ZOE

É minha festa de noivado esta noite.

Nunca estive menos animada para comemorar algo.

Minha madrasta Daniela envia sua equipe de especialistas


para garantir que estou em minha melhor forma, para que Rocco
e sua família possam ter certeza de que estão recebendo o valor do
seu dinheiro.

Eles vêm ao meu quarto às três da tarde e passam as próximas


quatro horas esfregando, esfoliando, depilando, hidratando,
pintando e enfeitando cada centímetro quadrado do meu corpo.

A luta começa imediatamente quando eu exijo saber por que


eles estão depilando minha virilha.

— É uma festa de noivado — digo a Daniela. — Não a noite de


núpcias. Eu não espero que alguém esteja checando debaixo da
minha saia.

Eu olho para minha madrasta, que já está no meio de seus


próprios preparativos exaustivos para a noite pela frente. Ela tem
uma máscara de lama no rosto e seu cabelo está preso em rolos do
tamanho de latas de sopa. Longe de parecer ridícula, isso só a faz
parecer ainda mais imperiosa quando os rolos envolvem sua
cabeça como uma coroa, e a máscara obscurece os poucos sinais
de emoção que Daniela sempre trai. Eu não posso dizer se Daniela
realmente carece de todos os sentimentos humanos ou se ela é
apenas muito boa em escondê-los.

Daniela é apenas dez anos mais velha que eu.

Eu tinha nove anos quando minha mãe morreu, e nove e meio


quando meu pai se casou novamente.

Ele usou minha mãe como uma velha esponja, fazendo-a


passar por quatorze gestações - dez abortos, dois natimortos e as
duas vergonhosas chegadas, a minha e a da minha irmã Catalina,
nenhuma das quais gerou um herdeiro homem.

O último natimorto foi a morte dela. Ela teve uma hemorragia


na maca. A parte mais sombria de mim suspeita que meu pai
segurou o médico, permitindo que a vida se escoasse da minha
mãe como punição pelo fato de que mesmo aquele último bebê sem
fôlego era uma menina.

Meu pai ficou furioso.

Não houve conforto para mim e Catalina, nenhum tempo para


lamentar nossa mãe. Em vez disso, ele encomendou vestidos de
floristas.

Ele já estava fazendo arranjos para se casar com Daniela, a


filha mais nova do chefe do clã rival galego. Suas irmãs haviam
gerado dois filhos cada uma para seus maridos, prova aos olhos
de meu pai de que Daniela seria igualmente fértil e útil.

Daniela engravidou na lua de mel, mas um exame anatômico


mostrou que o feto era menina novamente. Meu pai a forçou a
abortar.
Eu só sei disso porque o ouvi gritando com ela por horas,
repreendendo-a para fazer isso. Ela passou várias semanas
doente, pálida e incapaz de andar de cômodo em cômodo sem se
curvar.

Não sei quantas vezes mais ela foi coagida a repetir esse
processo.

Por fim, meu pai parou de confiar no destino e se voltou para


a ciência.

Eles consultaram especialistas em fertilidade. Daniela passou


por várias rodadas de fertilização in vitro, colhendo seus óvulos
com o único propósito de selecionar o sexo com antecedência.

Nenhuma dessas tentativas teve sucesso. Daniela não teve


nenhum filho.

Eu me sentiria mal por ela. Mas a simpatia não seria


correspondida.

Daniela me odeia. Ela também odeia minha irmã.

Sua lealdade é toda para meu pai, não importa o quanto ele
abuse dela. Ela é sua espiã constante, agindo como minha
carcereira e de Catalina, e ajudando a realizar todos os planos mais
insidiosos do meu pai para nós.

Como esse noivado.

Foi Daniela quem intermediou o negócio com Rocco Prince e


sua família. Ela disse à mãe de Rocco que eu era inteligente,
estudiosa, obediente, submissa. E, claro, linda.
Quando eu tinha apenas 12 anos, ela mandou aos Princes
fotos minhas deitada na piscina em meu maiô.

A primeira visita dos Princes logo se seguiu. Rocco tinha treze


anos, apenas um ano mais velho do que eu, mas eu já sabia que
havia algo muito errado com ele.

Ele saiu para o jardim onde eu estava sentada em um banco


sob as laranjeiras, lendo “The Witch of Blackbird Pond”1. Levantei-
me quando o vi se aproximando, alisando a saia de musselina
branca do vestido de verão que Daniela havia escolhido para mim.

Naquela época, eu era inocente o suficiente para ainda ter


fantasias de uma vida melhor. Eu tinha visto filmes como “A Bela
Adormecida” e “A Princesa Encantada”, onde o príncipe e a
princesa eram prometidos pelos pais, mas seu amor era genuíno.

Então, quando soube que Rocco estava vindo me ver, imaginei


que ele poderia ser bonito e doce, e talvez nós escrevêssemos cartas
um para o outro como amigos por correspondência.

Quando ele se aproximou de mim no jardim, fiquei satisfeita


ao ver que ele era alto e tinha cabelos escuros, magro e pálido com
aparência de artista.

— Olá — eu falei. — Eu sou Zoe.

Ele me deu um olhar avaliador, sem responder a princípio.


Então ele disse: — Por que você está lendo?

Achei uma pergunta estranha. Não “O que você está lendo?”,


mas “Por que você está lendo?”.

1
Romance infantil da autora Elizabeth George Speare.
— Você está tentando me impressionar? — ele indagou.

Eu balancei minha cabeça, confusa e desprevenida.

— Eu sempre leio aos sábados — eu disse. — Quando não há


escola.

Não disse a ele que não havia mais nada para fazer em minha
casa – Cat e eu não tínhamos permissão para assistir TV ou jogar
videogame.

Ele pegou meu romance do banco, examinou a capa e, com


desprezo, jogou-o para baixo novamente, perdendo minha página.
Fiquei aborrecida, mas tentei não demonstrar. Afinal, ele era meu
convidado, e eu já sabia que nosso futuro estava entrelaçado.

— Você é bonita — disse ele, desapaixonadamente, olhando


para mim novamente. — Muito alta, no entanto.

Se isso significava que ele não iria querer se casar comigo, eu


já estava começando a achar que poderia ser uma coisa boa.

— Você mora em Hamburgo? — eu perguntei, tentando


esconder minha aversão crescente.

— Sim — disse Rocco, com uma sacudida de seu cabelo escuro


que pode ter sido orgulho ou desdém – eu ainda não sabia dizer.
— Você já esteve lá?

— Não.

— Imaginei que não.

Percebi pequenas manchas pretas no azul de seus olhos, como


se alguém tivesse respingado tinta em suas íris.
— O que é esse barulho? — Rocco exigiu.

Um papagaio grasnava na laranjeira, voando baixo sobre


nossas cabeças e voltando para o galho.

— Ele está incomodado porque tem um ninho cheio de bebês


lá em cima — eu disse. — Ele quer que a gente saia.

Rocco enfiou a mão dentro da jaqueta e tirou uma espingarda


de chumbo. Era pequena, apenas do tamanho de uma pistola.
Achei que fosse uma arma de brinquedo e pensei que era infantil
da parte dele carregá-la por aí.

Ele apontou para o pequeno papagaio verde, seguindo sua


trajetória de voo em sua mira. Achei que ele estava fingindo,
tentando me impressionar. Então ele apertou o gatilho. Eu ouvi
uma forte lufada de ar. O papagaio ficou em silêncio, parou no
meio de um choro, caindo como uma pedra no canteiro de flores.

Eu gritei e corri até ele.

Peguei o papagaio da terra, vendo o pequeno buraco escuro


em seu peito.

— Por que você fez isso? — eu gritei.

Eu estava pensando em seus bebês no ninho. Agora que o


papagaio não estava mais gritando, eu podia ouvir seus pios
fracos.

Rocco ficou ao meu lado, olhando para o pássaro cor de


musgo. Parecia patético em minhas mãos, suas asas dobradas e
empoeiradas.
— Os filhotes vão esperar e esperar — disse ele. — Então,
eventualmente, eles morrerão de fome.

Sua voz era monótona e inexpressiva.

Eu olhei em seu rosto. Não vi culpa ou pena ali. Apenas vazio.

Exceto pela pequena curva ascendente de seus lábios.

Essas pequenas manchas pretas em suas íris me lembravam


de mofo. Como se houvesse algo rançoso nele, apodrecendo-o por
dentro.

— Você é horrível — falei, largando o pássaro e enxugando as


palmas das mãos atavicamente nas laterais do vestido.

Então Rocco sorriu, mostrando dentes brancos e regulares.

— Estamos apenas começando a nos conhecer — disse ele.

Rocco não melhorou em nada. Cada vez que o vejo, eu o


detesto mais.

Espera-se que esta noite eu dance com ele, pendure-me em


seu braço, olhe para ele como se estivéssemos apaixonados. É tudo
uma performance para os convidados.

Ele não me ama mais do que eu a ele.

A única coisa que ele gosta em mim é o quanto eu o desprezo.


Ele gosta muito disso.

Esse é o homem para quem Daniela exige que eu depile minha


boceta.
Eu fico olhando para ela com profunda desconfiança,
perguntando-me o que ela sabe que eu não. Por que ela acha que
é importante que eu esteja perfeitamente lisa do queixo para
baixo? O que ela espera que aconteça?

— Não vou fazer isso — digo a ela. — Ele não está me tocando
esta noite.

Daniela inclina a cabeça para o lado, os olhos se estreitando.

Ela é muito bonita, eu nunca negaria isso. Ela tem a aparência


austera de uma santa em uma pintura. Como uma santa, ela
adora um deus cruel e vingativo: meu pai.

— É melhor você aprender a agradá-lo — ela diz baixinho. —


Será muito mais difícil para você se lutar. As coisas que um homem
pode fazer com sua esposa quando ela está presa com ele, sozinha
em uma casa grande como esta, apenas com seus soldados por
perto...

Ela pisca lentamente de uma forma que sempre me lembrou


de um réptil.

— Você deveria aprender como bajulá-lo. Como ajudá-lo.


Como servi-lo com seu corpo...

— Eu prefiro morrer — eu digo a ela categoricamente.

Ela ri baixinho.

— Oh, você vai desejar estar morta... — ela fala.

Ela acena para sua equipe de esteticistas. Com algo se


aproximando da força, eles me empurram para baixo na
espreguiçadeira, separam minhas pernas e espalham cera quente
por toda a minha boceta, até o meu ânus. Em seguida, eles rasgam
a cera em tiras, até que eu fique careca como um ovo em qualquer
lugar.

Daniela assiste tudo, depois examina o resultado. Ela verifica


minha boceta nua em busca de qualquer sinal de deformidade que
possa atrapalhar seus planos. Então ela acena em aprovação.

— Quando fui apresentada a seu pai, fui despida na frente de


uma dúzia de seus soldados. Eles me avaliaram como um cavalo
em leilão — diz ela. — Fique grata por ser apenas Rocco que você
precisa impressionar.

Ela me deixa com os esteticistas para que ela possa completar


seu próprio embelezamento.

Daniela já escolheu as roupas e joias que vou usar.

As esteticistas cumprem suas ordens, colocando-me em um


vestido sufocante que levanta meus seios e aperta minha cintura
para uma fração de seu tamanho normal. O vestido é longo,
dourado e cintilante, com o tipo de mangas que não são mangas,
mas apenas o tecido drapeado abaixo dos ombros. Meu cabelo está
empilhado na minha cabeça com uma faixa de ouro como uma
tiara.

É tudo inegavelmente lindo, de gosto impecável.

Sou um presente de ouro brilhante.

Uma mortalha negra seria mais adequada. Sinto que vou ao


meu próprio funeral.

Sou como aquelas donzelas que os incas costumavam


sacrificar aos deuses: as virgens do sol. Durante todo o ano, elas
eram alimentadas com iguarias – milho e carne de lhama. Elas
eram banhadas e embelezadas com cocares de penas e colares de
conchas exóticas. E então elas eram carregadas para as tumbas
no topo da montanha, para serem seladas dentro como uma oferta
a um deus que ansiava por sua morte.

Catalina entra em meu quarto, igualmente vestida para a noite


que se aproxima.

Cat2 combina perfeitamente com o nome dela. Ela é pequena


e ágil e se move silenciosamente como um gatinho preto. Ela tem
um rosto bonito em formato de coração, olhos grandes e escuros e
sardas espalhadas pelo nariz. Ela está com um vestido lilás claro.

Mesmo que tenhamos apenas um ano de diferença, ela parece


muito mais jovem.

Ela sempre foi tímida.

Eu posso ver o quão nervosa ela está pela festa, por todos que
estarão olhando para nós. Para a sorte dela, a maior parte da
atenção estará voltada para a minha direção. E ela não precisa se
preocupar em ser amarrada em algum contrato de casamento
odioso, pelo menos não ainda. Isso fazia parte do meu acordo com
meu pai: Cat não precisa se casar antes de se formar na faculdade,
nem eu.

Meu pai e minha madrasta estão permitindo que eu frequente


a Kingmakers por todos os quatro anos, desde que eu concorde em
me casar com Rocco logo após a formatura.

2
Gato(a), em inglês.
Foi uma última e desesperada manobra de minha parte para
atrasar o inevitável.

Eles só concordaram porque Rocco também está na


Kingmakers, assim como muitos dos seus primos e meus, sempre
por perto para me espionar, para ter certeza de que não estou
bebendo ou namorando ou violando qualquer uma das regras do
noivado.

A Kingmakers não é uma escola normal.

É uma faculdade particular para filhos de famílias mafiosas de


todo o mundo, localizada em Visine Dvorca, uma pequena ilha no
Mar Adriático.

Você não poderia imaginar um lugar mais solitário ou isolado.

E, no entanto, quase gostei do meu primeiro ano.

Foi a primeira vez que morei longe do meu pai. O alívio que
senti, sozinha em meu minúsculo dormitório, foi como nada que
eu já experimentei. Quando assistia às minhas aulas, tinha
liberdade para estudar e aprender, e até mesmo fazer amigos sem
julgamento constante, crítica constante.

A Kingmakers é uma fortaleza de castelo, uma cidade em si


mesma. Tão vasta e extensa que eu poderia facilmente evitar Rocco
na maior parte do tempo. Como ele é um ano mais velho do que
eu, não compartilhamos aulas.

O alívio que senti foi doloroso. Porque eu sabia que não poderia
durar.

Provar a liberdade só pode me machucar mais no final.


Eu me senti culpada por deixar Cat aqui sozinha. Eu sei que
foi um ano difícil para ela. Eu posso ver quando ela se senta na
beira da minha cama. Ela tem uma reação vacilante ao barulho
que piorou desde que eu fui embora.

Mas ela deve experimentar a mesma liberdade em breve – ela


foi aceita em Pintamonas e partirá no outono, assim como eu.

Cat é uma artista talentosa. Ela adora desenhar, pintar e


design gráfico. Ela vai florescer na escola.

Quanto mais ela se afasta de nosso mundo, melhor para ela.


Talvez ela escape totalmente, de alguma forma, de alguma
maneira.

— Você está deslumbrante — Cat me diz, com os olhos


arregalados e impressionados.

Cat é tão inocente. Sempre tentei protegê-la das coisas mais


feias de nossas vidas. Como o quanto eu detesto Rocco.

Ela sabe que não estou feliz por ser empurrada para o
casamento. Mas nunca disse a ela o quanto ele me apavora. Isso
iria devastá-la. Não há nada que ela possa fazer para me ajudar.

— Os Princes ficarão muito impressionados com você — Cat


fala com sinceridade.

— Você está linda também — digo a ela.

— Eu fiz isso para você.

Gentilmente, ela coloca uma pulseira na minha palma aberta.


É delicada e intrincada, uma rede de minúsculas contas douradas
amarradas em fios tecidos. Não consigo imaginar as horas de
trabalho árduo para trançar esses fios frágeis.

Isso me faz querer chorar.

Saber que você é amada, realmente amada, por pelo menos


uma pessoa faz toda a diferença no mundo.

Eu coloco meu braço em volta da minha irmã e a abraço forte,


fechando meus olhos ardentes.

— Obrigada Cat — murmuro.

— Vou ajudá-la a colocá-la — ela fala.

Ela a circula em volta do meu pulso, prendendo o pequeno


fecho. Encaixa perfeitamente.

Daniela ficará furiosa se vir que a acrescentei ao meu visual


meticulosamente selecionado, mas não dou à mínima. Não posso
expressar a Cat o quanto significa eu usar algo que realmente
gosto, um bom presságio nesta noite horrível.

— É melhor descermos — digo a Cat.

Mesmo que Cat e eu cheguemos cedo, nosso pai e nossa


madrasta já estão esperando no foyer arejado. Isso mostra como
eles estão ansiosos para fechar este negócio com a família Prince.

Daniela está usando um vestido elegante de bronze profundo,


seu cabelo em um coque elegante. Meu pai está usando uma
jaqueta de veludo preto com um quadrado de bronze no bolso
combinando. Ele é um homem de altura e largura substanciais,
embora Daniela sempre tenha o cuidado de selecionar saltos que
a deixem pelo menos alguns centímetros abaixo dele. Ele tem uma
juba de cabelos grisalhos que o fazem parecer um leão idoso e um
nariz largo e aristocrático. Sua boca é a única característica fraca
nele – seus lábios finos e sem carne, sempre puxando para baixo
nos cantos.

Eles se viram para examinar a mim e Cat enquanto descemos


as escadas. Eu deslizo meu pulso esquerdo nas dobras da minha
saia, então Daniela não vai notar a pulseira.

Daniela franze a testa, descontente com algo em nossa


aparência. Talvez sejam os cachos esvoaçantes de Cat que nunca
podem ser domados, apesar dos melhores esforços dos
profissionais. Talvez ela não ache que minha cintura parece
pequena o suficiente. É sempre algo, e geralmente nada que
possamos realmente consertar.

Meu pai acena em aprovação, então Daniela fica em silêncio.

— Faça uma reverência a Rocco quando o vir — diz meu pai.

Eu esmago a parte rebelde de mim que se encolheu com essa


instrução. Odeio esse desfile formal de falso afeto. Eu odeio ter que
me curvar e sorrir a noite toda na frente de todos esses estranhos
odiosos.

Sigo meu pai para fora de casa até a limusine que me espera.

Vivemos em uma mansão de estilo tradicional em Sitges, na


costa sul de Barcelona. Meu pai comprou este lugar por causa do
terreno invulgarmente grande e da vista desimpedida para o
oceano. O terreno inclui um spa e sauna, banho turco, vários lagos
com peixes exóticos, uma grande área para refeições ao ar livre e
um pomar. Cercado por todos os lados, é claro, por sebes e paredes
de pedra.
Ele gosta de se considerar um cavalheiro, embora sejamos
descendentes de peixeiros.

Os clãs Galegos eram todos pescadores, para começar.

Em seguida, o Golfo da Biscaia tornou-se estéril e eles optaram


pelo contrabando de tabaco. O contrabando era muito mais
lucrativo do que a pesca. As frotas se multiplicaram e os
pescadores enriqueceram com redes vazias e porões de carga
cheios de fumo, haxixe e cocaína.

Os Galegos fizeram contatos na Colômbia e no Marrocos. A


Espanha se tornou o ponto de entrada para a grande maioria da
cocaína de alta qualidade contrabandeada para a Europa.

Eles construíram rotas de distribuição para Portugal, França


e Grã-Bretanha, fizeram alianças com os albaneses e a máfia turca
para trazer heroína também. Eles compraram políticos e
conquistaram o amor do povo patrocinando festivais, escolas e
times de futebol. Os jogadores do Juventud Cambados se
tornaram os mais bem pagos no futebol do país, apesar de serem
de uma pequena cidade, tudo graças ao dinheiro do narcotráfico.

Mas o que havia sido uma operação local entre os unidos clãs
Galegos tornou-se um empreendimento internacional. Os clãs
começaram a brigar. Ressentimentos de longa data explodiram de
novo, desta vez com uma força exponencial por trás deles.

Ameaças se transformaram em sequestros. Sequestros em


torturas e assassinatos. Um ciclo de represálias sangrentas
separou os clãs.

É aqui que o meu pai se encontra agora: preso entre o


poderoso clã Alonso, que se aliou aos britânicos, e a família Torres,
dona do Partido do Povo e do Premier Galego.
Meu pai precisa de um parceiro ou será engolido por um dos
outros clãs. Ou pior, esmagado sob a bota deles. Ele está apenas
se agarrando ao seu império pelas unhas.

É aí que entra a família Prince.

Os Princes possuem a rede de distribuição mais poderosa da


Alemanha. Com nosso produto e a rede deles, todos ficaremos ricos
além da medida.

Pelo pequeno preço do meu casamento com Rocco Prince.

Tenho certeza de que seus pais sabem que estão criando um


psicopata.

Ele circulou por internatos em toda a Europa para abafar os


rumores de sua crueldade, sua depravação, sua violência sem
sentido...

Duvido que haja uma família mafiosa na Alemanha que lhe


daria uma de suas filhas.

Mas um espanhol desesperado... sim, meu pai ficará feliz em


me entregar. Contanto que ele receba a proteção de que precisa.

Enquanto nos sentamos no banco de trás da limusine, meu


pai abre uma garrafa de champanhe gelado. Ele enche quatro
taças, sua mão firme mesmo com o movimento imprevisível do
carro em movimento enquanto entramos na cidade.

— Para garantir nossa fortuna — diz ele, erguendo a taça.

Daniela observa enquanto eu bebo a minha.


Eles costumavam injetar álcool e coca nas virgens para mantê-
las dóceis. Para ajudá-las a aceitar seu destino horrível.

— Tome outra taça, por que não? — Daniela me diz. — Para


seus nervos.

Nós dirigimos até Port Vell, para os Royal Shepard. Os antigos


estaleiros medievais foram renovados em grandes locais para
casamentos e festas de gala. Os vastos espaços que antes
continham os ossos de veleiros agora hospedam a elite da
sociedade espanhola em seus smokings e vestidos, suas risadas
gentis ecoando no alto das vigas.

É quase meia-noite. Em Barcelona nem jantamos antes das


dez da noite. Esta festa não atingirá o seu auge até as primeiras
horas da manhã. Já estou exausta só de pensar nisso.

Meu pai segura meu braço com uma garra de aço e me conduz
implacavelmente para o centro da sala, onde posso ver Dieter,
Gisela e Rocco Prince sendo cortejados por seus muitos
admiradores.

Os Princes parecem tão reais quanto o nome deles. Dieter


poderia ser um Kaiser com seu bigode preto imaculadamente
aparado e seu smoking de estilo militar. Gisela é loira e pálida,
significativamente mais jovem que o marido. Rocco está de pé entre
eles, o cabelo preto penteado para trás, o rosto magro e pálido e
bem barbeado, as bochechas tão encovadas que uma sombra
escura desce de sua orelha até o queixo.

Meu pai me empurra para frente, então sou forçada a fazer


uma reverência na frente de Rocco. Posso sentir seus olhos
olhando para a frente deste vestido ridículo. Ele me faz manter
essa posição por um momento mais longo, antes de colocar seus
dedos frios e finos sob meu queixo e inclinar meu rosto.
— Olá, meu amor — diz ele em sua voz suave e sensual.

Seus dedos são suaves e frios como a cauda de uma cobra. Eu


quero me encolher para longe de seu toque.

Em vez disso, ele me levanta, permitindo que as pontas dos


dedos percorram minha clavícula e o topo dos meus seios
enquanto ele me libera.

Eu faço uma pequena reverência para sua mãe e seu pai.


Dieter Prince pega minha mão e a leva aos lábios em um beijo breve
e seco. Prefiro muito mais sua indiferença ao tormento deliberado
de seu filho.

Gisela Prince brevemente encontra meus olhos, em seguida,


desvia o olhar. Mal falei com a mãe de Rocco, mas se ela sabe
alguma coisa sobre o filho, deve sentir um pouco de culpa pelo
destino que está reservado para mim. Eu presumo que haja uma
razão para os Princes nunca terem tido outros filhos. Eles podem
ter se preocupado com a possibilidade de Rocco estrangular um
bebê durante o sono.

— Vamos dançar? — Rocco diz.

Ele não espera pela minha resposta. Ele pega minha mão e me
puxa para a pista de dança, que já está cheia de casais rodopiando.
A guitarra espanhola suave e cadenciada contrasta com a repulsa
tensa que sinto sempre que Rocco me toca.

Os músicos estão tocando um Arrolo suave, mas assim que


Rocco me tem na pista, ele estala os dedos, ordenando que mudem
para o tango - “Astúrias” de Marc Lezwijn.

— Eu não sei dançar tango — digo a ele, tentando me afastar.


Ele me puxa contra seu corpo, a mão segurando minha nuca,
os dedos cavando na carne vulnerável ao lado da minha garganta.

— Não minta para mim — ele sibila em meu ouvido.

Os dois bandoneons3 tocam sua versão introdutória, seus


dedos voando sobre as cordas. Rocco empurra sua coxa entre as
minhas, mergulhando-me de volta em sua outra perna até sentir
que minha espinha vai quebrar. Em seguida, ele me vira de pé
novamente, nossos corpos pressionados juntos do peito ao quadril,
seu rosto a apenas alguns centímetros do meu. Ele me obriga a
olhar em seus olhos. Ele me força a ver o quanto ele gosta disso.

Ele avança, me empurrando para trás em quatro longos


passos. Rocco é magro, mas terrivelmente forte – não há nada em
seu corpo além de músculos e tendões. Lutar contra ele é inútil,
especialmente quando todos os olhos na sala estão voltados para
nós e eu não posso causar uma cena.

Levantando o braço sobre a minha cabeça, ele me gira como


um pião, depois me inclina para trás novamente, expondo meus
seios para a multidão ainda mais do que já estavam.

Este é o verdadeiro propósito de nós dançarmos juntos – para


que Rocco possa mostrar seu controle sobre mim. Não há paixão
em seu tango, nem sensualidade. Seus movimentos são rápidos e
tecnicamente precisos, mas sem qualquer sentimento. A dança
latina tem tudo a ver com desejo. A música é crua, insistente, toda
calor.

Não há calor em Rocco.

3
É uma pequena sanfona quadrada ou acordeão com botões em vez de um teclado, usado especialmente na
América Latina para música de tango.
Acho que ele nem sente luxúria.

Ele está exibindo meu corpo porque sabe que isso me


envergonha. Todo o seu prazer vem do meu desconforto, meu
desejo de desafiá-lo justaposto com minha total incapacidade de
fazê-lo.

Eu me sinto como uma marionete nas cordas. Na verdade,


gosto de dançar – as poucas vezes que fui capaz de me divertir sem
ninguém assistir. Rocco está envenenando isso, como envenena
tudo. Meu rosto está em chamas, ácido na minha garganta. A
música parece interminável. A multidão ao nosso redor é um
borrão de cores e olhos escuros e fixos.

Finalmente a música para e os convidados aplaudem


educadamente. Esta festa é uma farsa de merda. Ninguém aqui se
preocupa com Rocco ou comigo, ou com nosso casamento próximo.
Todos os presentes estão totalmente focados nos negócios que
planejam fazer esta noite, as conexões e os acordos.

Rocco ainda não me soltou.

— Já chega de dança — digo a ele. — Eu preciso de uma


bebida.

— Claro, meu amor — diz Rocco.

Ele adora fingir ser o noivo apaixonado. Usando esses termos


carinhosos, fingindo que tem os meus interesses no coração.
Quando, na verdade, tudo o que ele faz é em busca de sua própria
diversão.

É por isso que ele me obriga a segurar seu braço enquanto nos
dirigimos para o bar. Ele me quer perto, e ele quer que eu o toque
o tempo todo.
— Só água, por favor — digo ao barman. Já bebi o suficiente
na limusine. Não quero ficar embriagada com Rocco.

— Dois uísques — Rocco me corta.

O barman obedece a ele, não a mim. Ele derrama o licor caro


sobre esferas únicas de gelo, depois nos passa as bebidas.

— Um brinde — diz Rocco, seus olhos azuis fixos nos meus.

Eu engulo a bebida. Quanto mais cedo eu passar por essas


sutilezas – dançar com ele, beber com ele, falar com ele – mais cedo
poderemos nos separar novamente.

— Vamos dar um passeio ao longo do porto — diz Rocco.

— Eu... eu não acho que devemos deixar a festa — eu protesto.

Eu não quero ficar sozinha com ele.

— Bobagem — diz Rocco calmamente. — Espera-se que o casal


feliz queira escapar.

Eu coloquei meu copo no bar, a esfera de gelo girando como


um planeta solitário.

— Tudo bem. Não vou conseguir ir muito longe com estes


saltos.

— Você pode se apoiar em mim — responde Rocco com um


leve sorriso.

Deve haver muitas pessoas no porto a esta hora da noite. As


docas estão repletas de restaurantes, boates e lojas. Ainda assim,
eu sei que ele não está me levando lá sem motivo. Ele sempre tem
um motivo.
Eu olho em volta procurando Cat enquanto estamos saindo,
na esperança de fazer contato visual com ela para que ela saiba
para onde eu fui. Ela está dançando com um dos sócios de meu
pai, um velho safado com uma cabeça careca manchada, que a
está segurando muito perto dele e sussurrando Deus sabe o que
em seu ouvido. O sorriso de Cat parece colado em seu rosto.

Ela não me vê.

Rocco percebe para onde estou olhando e sorri de um jeito que


não gosto nem um pouco.

Ele enfia minha mão na curva de seu cotovelo mais uma vez e
começa a me desfilar pela marina.

— Você é muito próxima da sua irmã, não é? — ele diz.

— Não mais do que o normal.

A mentira é instintiva e automática. Rocco usará qualquer


alavanca que encontrar para foder comigo. Não quero que ele saiba
que a única coisa no mundo com a qual realmente me preocupo é
Cat.

Mas ele já sabe. Ele não faz uma pergunta sem já saber a
resposta. E ele sempre sabe quando estou mentindo.

— Ela fez essa pulseira para você? — ele pergunta, tocando-a


com um dedo indicador longo e fino.

Eu puxo meu pulso de volta, irracionalmente indignada. Eu


não quero que ele manche a pulseira.

— Não — eu minto novamente.


É minha única proteção contra ele – recusar-me a responder
a ele com sinceridade, mesmo nos menores detalhes. Tento
construir um muro ao meu redor, isolando-o de qualquer coisa
genuína. É a única maneira de me manter segura.

Eu odeio mentir. Sou uma pessoa honesta. O engano nunca


tem um gosto bom na minha boca, não importa o motivo. A
maneira como sou forçada a esgueirar-me e esconder-me, por
Rocco e por meu pai e minha madrasta, adoece minha alma.

Rocco gosta de me fazer mentir.

Isso é o que ele quer: me derrubar. Para me torcer e me mudar.

Estamos passando por um restaurante de frutos do mar, o


pátio aberto cheio de clientes apreciando seu vinho e peixes
escaldados.

Mais rápido do que eu posso piscar, Rocco agarra meu braço


e me empurra para o beco estreito entre dois restaurantes. Ele me
empurra contra a parede, o fedor de conchas de mexilhão vazias e
espinhas de peixe enchendo minhas narinas.

Ele agarra meu queixo com a mão, beliscando com força em


ambas as bochechas. A pressão de minha carne contra meus
molares é intensamente dolorosa. Ele me obriga a abrir minha
boca.

— Você não foi muito amigável comigo no ano passado na


escola — ele sibila, seu nariz a centímetros do meu. — Eu quase
senti que você estava me evitando, Zoe.

Minhas costas nuas estão empurradas contra a parede


imunda do beco. Minha mandíbula está doendo e me sinto
absurdamente vulnerável com meus lábios separados. Espero que
ele tente me beijar.

Em vez disso, ele cospe na minha boca.

A saliva fria atinge minha língua. Eu me revolto


instintivamente, puxando meu rosto para fora e batendo nele para
longe de mim enquanto eu vomito. O uísque indesejado vem
subindo e eu vomito no cimento, salpicando meus pés descobertos
nas sandálias douradas.

Meu braço agitado acerta Rocco no rosto. Ele franze a testa


para mim, seja pelo golpe ou pela minha reação extrema à sua
cusparada na minha língua.

Pelo menos ele não quer mais me tocar agora que vomitei.

— Espero que sua atitude melhore em setembro — diz Rocco


friamente. — Do contrário, haverá consequências.

Ele se afasta de mim, deixando-me sozinha no beco.

Minhas pernas estão tremendo tanto que mal consigo voltar


para a festa.

Assim que eu entro no cômodo, Daniela aparece ao meu lado


sibilando: — Arrume sua maquiagem, você parece uma prostituta.

Eu tropeço em direção aos banheiros. Com certeza, meus


olhos estão lacrimejando de vomitar e meu rímel está borrado
como se eu tivesse feito um boquete entusiasmado naquele beco.

Daniela não teve nenhum problema com isso – é o que ela


esperava que eu fizesse. É a falta de cuidado com a minha
aparência que ela não suporta.
A saliva de Rocco na minha boca foi quase tão ruim quanto a
alternativa.

Lavo minha boca na pia, enxaguando continuamente até


recuperar a capacidade de engolir sem arfar.

Não gosto dessa nova exigência de Rocco, mas não vejo como
ele pode fazer com que ela seja cumprida. Eu concordei em me
casar com ele após a formatura. Nunca disse que seríamos
melhores amigos na escola.

Ele me deixa em paz pelo resto da noite, e acho que é tudo o


que ele tem reservado para mim. Acho que me saí relativamente
fácil.

Na manhã seguinte, meu pai e minha madrasta tomam o café


da manhã com Dieter e Gisela Prince, para se despedir deles antes
de voltarem a Hamburgo e, sem dúvida, para discutir os detalhes
de sua nova colaboração.

Não sou convidada. Meu ânimo começou a se animar, sabendo


que não verei Rocco novamente até embarcar no navio para a
Kingmakers.

Quando nos encontrarmos novamente, terei amigos ao meu


redor – Anna Wilk e Chay Wagner, por exemplo, que dividiram o
mesmo dormitório comigo no primeiro ano. Elas são mulheres
formidáveis, ambas Heirs4 adequadas que irão na verdade herdar
os negócios de suas famílias em vez de receber o título apenas no
nome e imediatamente se casar.

Anna comandará a máfia polonesa em Chicago – ela terá uma


dúzia da Braterstwo sob seu comando. Chay é a Heir da divisão de
Berlim dos Night Wolves, uma gangue russa de motociclistas. Com
aquelas duas garotas ao meu lado, não tenho medo de enfrentar
nem mesmo Rocco e seus amigos.

Isto é, até meu pai chamar a mim e Cat para seu escritório.

Eu odeio entrar no escritório do meu pai. Este é um lugar para


o qual nunca sou convidada, a menos que esteja em apuros. O
suor frio brota na minha pele, apenas quando passo o pé além da
soleira.

Cat está ainda mais assustada. Seus dentes estão rigidamente


cerrados para evitar que batam.

Entramos em seu escritório, que é escuro e opressor, as


paredes revestidas de estantes do chão ao teto em madeira de
ébano, a maioria de seus espaços preenchidos com fósseis em vez
de livros. Meu pai tem imenso orgulho de sua coleção, que inclui
várias libélulas preservadas em calcário, a pélvis de um
rinoceronte lanudo e um archaeopteryx5 completo.

Não estou olhando para nada disso porque vejo Rocco Prince
parado ao lado de meu pai. Rocco está vestido de terno escuro e
gravata, com um alfinete de rubi na lapela que brilha como uma
gota de sangue, como se caísse do canto da boca.

4
Herdeiro (a).
5
É considerado o primeiro pássaro da história, além de carregar o título do fóssil em transição entre os pássaros
e os dinossauros.
— Sentem-se — diz meu pai, indicando as cadeiras na frente
de sua vasta e reluzente mesa.

Cat e eu nos sentamos, enquanto meu pai permanece sentado


em sua poltrona e Rocco fica ao lado dele, como um rei e seu
carrasco.

— Seu noivo está preocupado com você — diz meu pai,


olhando para mim por baixo de suas sobrancelhas grisalhas. —
Ele disse que você estava desanimada ontem à noite.

Lanço um olhar rápido para Rocco, tentando adivinhar seu


propósito.

Ele está me punindo por dar um tapa nele ontem à noite. Mas
o que ele quer exatamente?

Não sei responder. Discutir só me causará mais problemas.

— Sinto muito — eu digo.

— Rocco diz que você estava infeliz durante todo o ano passado
em Kingmakers. Ele disse que você parecia solitária.

Meus olhos vão e voltam entre a carranca de meu pai e o rosto


impassível e suave de Rocco.

Que jogo é esse?

Ele está tentando me fazer prometer bajulá-lo na escola?

Ele está tentando me fazer desistir? Não... Rocco ainda tem


mais dois anos em Kingmakers. Ele me quer lá onde possa ficar de
olho em mim, tenho certeza disso.
— A escola era nova e diferente no início — eu digo, com
cautela. — Mas acho que me ajustei eventualmente.

— Seu noivo discorda.

Eu aperto minhas mãos com força no meu colo, minha mente


correndo. Não sei o ângulo de Rocco, então não tenho ideia de
como tentar neutralizá-lo. O relógio do meu pai bate na parede,
com um barulho enlouquecedor.

Meu pai pigarreia, olhando entre mim e minha irmã. — Depois


de alguma discussão, pensei em uma maneira de deixá-la mais
confortável no seu segundo ano.

Tento engolir, mas minha boca está muito seca. — Qual?

— Cat estará frequentando a Kingmakers com você.

Cat dá um grito apavorado no assento ao lado do meu.

Antes que eu possa me conter, eu grito: — O quê? Você não


pode!

O rosto de meu pai escurece e sua cabeça se abaixa como um


touro prestes a atacar. — Desculpe? — ele diz.

Eu vejo o lampejo de um sorriso nos lábios de Rocco. Estou


me jogando direto nas mãos dele. Ao desafiar meu pai, estou
apenas consolidando sua decisão.

Tento voltar atrás. — Eu só quis dizer... que tal Pintamonas?


A Cat já foi aceita...

— Ela irá para onde eu disser para ela ir — meu pai rosna.
— Estou perfeitamente feliz na Kingmakers! Já me ajustei, Cat
não precisa...

— A escola de arte não tem sentido — interrompe meu pai. —


Rocco tem me contado tudo o que está aprendendo na
Kingmakers, a variedade de habilidades ensinadas entre as várias
divisões. Cat é tímida. Até covarde. Seria bom para ela aprender o
verdadeiro trabalho dos mafiosos. Só assim ela conseguirá
apreciar o que o marido dela faz, quando chegar a hora.

Cat me lança um olhar desesperado e suplicante, implorando


para que eu pense em uma maneira de tirá-la dessa situação. Eu
disse a ela como a Kingmakers é desafiadora, como pode ser
brutal. Para mim, é uma distração bem-vinda. Para Cat, será um
inferno na terra.

— Por favor, pai — eu falo — Cat é delicada. Ela pode se


machucar...

— É hora de ela endurecer — diz meu pai implacavelmente. —


Eu tomei minha decisão.

Rocco tomou a decisão, mais provavelmente. Em seguida, ele


manipulou meu pai fazendo-o pensar que a ideia era dele.

Não quero olhar para Rocco, mas não consigo evitar.

Eu viro meu olhar totalmente furioso para ele.

Ele sorri de volta para mim, mostrando seus dentes brancos e


afiados.

— Não se preocupe, meu amor — ele diz. — Eu vou cuidar da


sua irmã...
MILES

Para o lançamento do álbum de Iggy, eu dou a maior festa do


verão em uma antiga fábrica de carvão em Bucktown.

Eu dei algumas festas, mas esta supera todas elas.

Eu peço todos os favores que tenho para conseguir que The


Shakers faça o set de abertura. Isso é crucial para atrair
convidados de alto nível e dar a impressão de que Iggy é ainda mais
famoso do que a banda mais popular de Chicago.

Montei o palco e o sistema de som no telhado, subornando


preventivamente os policiais de plantão para ignorar qualquer
reclamação de barulho.

Em seguida, coloco a lista de convidados com modelos,


influenciadores, músicos e fotógrafos, além de todas as socialites
jovens e sensuais do círculo de meus pais, avisando-os para não
contar a ninguém sobre o evento privado para que eu tenha certeza
de que enviarão mensagens até o último filho da puta que eles
conhecem.

Eu pego as sacolas de brinde a baixo preço, negociando com


amigos que querem colocar seus produtos de luxo nas mãos da
elite de Chicago.
E, finalmente, liberto um vagão de carga de Bollinger6 do pátio
ferroviário, porque quero fontes de champanhe e não há como
conseguir o produto de primeira por um preço razoável.

Não há lugar melhor para uma festa do que uma velha fábrica.
Os vastos espaços abertos, as fornalhas pesadas nos cantos, as
paredes de concreto bruto e as vigas expostas no alto... dá aquela
sensação de autenticidade corajosa que você nunca encontraria
em um centro de eventos. As celebridades querem se sentir como
se estivessem se misturando, e os verdadeiros artistas precisam se
sentir em casa.

Eu tenho quatro dos meus meninos cuidando da segurança.

Por mais que eu queira o aparecimento de uma bacanal fora


de controle, tudo precisa correr bem esta noite. Iggy está prestes a
assinar um contrato de sete dígitos com uma gravadora em Los
Angeles. Eles querem música das ruas, mas nenhuma acusação
criminal de sua mais nova estrela.

Conheço Iggy desde que éramos crianças. Seu pai costumava


ser motorista do meu pai quando ele era prefeito da cidade. Iggy e
eu nos amontoávamos no banco da frente envidraçado, tocando
música e mexendo nas luzes, enquanto meus pais iam atrás,
planejando estratégias para a noite que tinham pela frente.

Iggy é extremamente talentoso. Seus refrões são cativantes e


seus esquemas de rima são tão densos e interconectados que sinto
que preciso ouvir suas canções cinco vezes antes de poder apreciá-
las de verdade.

6
É uma casa francesa de Champagne, produtora de vinhos espumantes da região de Champagne.
Iggy é um amor, mais poeta do que gangster. Sua única falha
de personalidade é sua disposição de confiar nas pessoas erradas.

O que nos leva ao maior arame farpado da noite – o pedaço de


merda do tio de Iggy.

— Declan Poe não passa por esta porta — digo ao meu garoto
Anders, acenando com a cabeça em direção às portas duplas de
aço na entrada. — Se você o vir, você me liga. Não espere que ele
cause problemas.

Anders acena com a cabeça. Beckett e Anders são construídos


como geladeiras gêmeas. Eles poderiam lidar com um pequeno
exército por conta própria.

Dirijo a festa como um maestro na frente de uma orquestra.


Eu distribuo as bebidas, a comida, a música, a iluminação e o
fluxo dos convidados com uma precisão obsessiva, enquanto crio
a ilusão de movimento e escolha livres.

Eu deslizo pela multidão, apresentando modelos sedentos de


fama para produtores desprezíveis, cinegrafistas brilhantes para
representantes de marketing. Cada conexão é um novo favor no
meu bolso, pois consigo conectar as pessoas exatamente com o
que elas precisam.

Eu também animo Iggy. Ele odeia se apresentar, fica nervoso


a cada vez.

— Não é nem um show — digo a ele. — As pessoas estão aqui


apenas para se divertir. Não há pressão.
Há uma tonelada métrica de pressão. Mais pressão do que a
falha de San Andreas7. Mas não adianta nada Iggy ouvir isso.

Tudo está perfeito. Até encontrar outro convidado indesejado.

Ela está parada perto do bar, bebendo uma taça do meu


champanhe roubado extremamente caro, usando um minivestido
que usa menos tecido do que um lenço enorme. Posso ver pelo
menos seis homens diferentes pairando ao redor dela, esperando
pela chance de avançar, enquanto ela conversa com o mais novo
lançador dos Cubs8.

O lançador parece que levou uma bola na cabeça. Ele está


olhando nos olhos de Sabrina com uma expressão atordoada, sem
levar o canudo aos lábios enquanto tenta tomar um gole de seu
coquetel e se cutuca no nariz. Sabrina sufoca uma risadinha,
mordendo o canto do lábio.

Abro caminho no meio da multidão e a agarro pelo braço.

— Com licença — eu digo para o lançador.

Ele balança a cabeça, saindo de seu transe.

— Ei! — ele diz. — Estávamos conversando!

— Ela vai falar com você direto da prisão do Condado de Cook


— eu o informo. — Ela tem dezesseis anos.

O queixo do lançador cai.

7
É uma falha geológica tangencial que se prolonga por mais de mil quilômetros através da Califórnia.
8
Chicago Cubs, time de beisebol.
Sabrina franze a testa para mim, uma expressão que só
consegue deixá-la mais bonita. Minha prima é perigosa pra
caralho.

— Solte-me — ela diz friamente.

— Sem chance. Você está de penetra.

— Oh, por favor — ela joga seu cabelo longo e escuro para trás.
— Você está deixando qualquer um entrar aqui. Aquele cara
desistiu de três home runs para o Sox na quinta-feira.

Eu continuo arrastando-a em direção à saída. — Sim. Todos


são bem-vindos, exceto você.

— Por que não?

— Porque eu não quero que o tio Nero corte minha cabeça fora.

Agora Sabrina está realmente chateada.

— Você está falando sério?

— Tão sério quanto a resistência aos antibióticos.

— Miles!

— Sabrina! — Eu a levo até o beco cheio de heras ao lado da


fábrica. — Olha, eu entendo. Você odeia ser tratada como uma
criança, e você só quer dançar e tomar alguns drinques e fazer
aqueles caras se envergonharem para sua diversão. Em uma noite
normal, eu não teria problemas com isso. Mas tenho muito a
ganhar com isso e não posso ficar de olho em você ao mesmo
tempo.

— Eu não preciso de você para tomar conta de mim!


— Sim, sim, eu sei – você pode cuidar de si mesma. Vá fazer
isso em alguma outra festa, porque seu pai já está chateado
comigo.

Eu assobio para chamar a atenção de um táxi deixando outra


carga de convidados.

Sabrina levanta uma sobrancelha para mim. — Você roubou


o carro dele.

— Peguei emprestado para uma sessão de fotos. E eu o levei


de volta.

— Com areia no motor.

Eu a empurro no banco de trás do táxi.

— Boa noite! — falo, batendo a porta na cara dela.

O que quer que Sabrina grite de volta para mim está perdido
no baixo forte que emana da fábrica de carvão.

Com um suspiro de alívio, volto para a festa.

Eu amo minha prima, mas seu pai é um psicopata mal


civilizado e minha noite não precisa de mais complicações.

Além disso, tenho que me concentrar no Iggy. Posso ouvir The


Shakers diminuindo o ritmo, o que significa que ele subirá em
apenas alguns minutos.

Eu volto para o telhado, nos bastidores para o pequeno


camarim que arrumei para ele. Iggy está derramando sobre sua
folha de letras, que parece o diário de um louco, cheia de rabiscos
à tinta, linhas riscadas e pequenas setas apontando para revisões.
Ele olha para cima quando eu entro, tirando seu cabelo
desgrenhado da frente dos olhos e me dando seu sorriso lento e
sonolento.

— A banda parece ótima — diz ele.

— Você vai soar melhor.

— Não há muitas pessoas lá fora?

— Nah — eu minto. — Quase ninguém.

Nas luzes brilhantes do palco, Iggy não verá nada diferente até
que ele já tenha terminado.

— Isso é bom — ele suspira.

A voz normal de Iggy é tão suave e lenta que a transformação


para seu rap rápido me abala o tempo todo.

— Se o seu álbum for do jeito que eu acho que vai, o contrato


com a Virgin é uma coisa certa — digo a ele.

— Vamos descobrir em breve — Iggy fala.

Meu telefone vibra no meu bolso. Pego e vejo uma mensagem


de Anders:

Poe apareceu com três caras, mas eu disse a ele para cair fora.
Acho que ele foi embora.
Bom. Eu sabia que ele não poderia resistir a mostrar sua cara
feia, mas estou feliz que Beckett e Anders foram intimidantes o
suficiente para dissuadi-lo. Se ele voltar, teremos uma conversa
muito menos amigável.

— Problema? — Iggy pergunta.

— Não — eu digo, colocando meu telefone de volta no bolso. —


Você está pronto?

Iggy dobra sua folha de letras e a enfia no bolso. Eu sei que ele
já tem tudo trancado em seu cérebro insano – ele só gosta de olhar
para se tranquilizar.

A multidão grita e comemora enquanto The Shakers fazem sua


reverência.

— Parece muita gente — Iggy diz suavemente.

— Você consegue — eu o tranquilizo.

Eu o acompanho até as escadas que levam até a parte de trás


do palco. O engenheiro de som grava o microfone de Iggy e dá a ele
o portátil também. Os compassos de abertura de “Deathless Life”
começam a tocar. Iggy endireita os ombros e vejo a transformação
tomar conta dele – seus olhos se estreitam, seus lábios se
contraem, seus dedos agarram o microfone.

Em seguida, ele sobe as escadas e começa a gritar com a


velocidade de um leiloeiro:
THEY SAID I was buried

Desiccated and dead

I’ll climb up out the grave

Break the stone on ya head

I’m breathless and reckless

Continually climb

Drink the glass to the bottom

And eat up the lime...9

9 ELES DISSERAM QUE eu estava enterrado

Dissecado e morto

Eu vou subir para fora do túmulo

Quebrar a lápide em sua cabeça

ESTOU sem fôlego e imprudente

Suba continuamente

Beba o copo até o fundo

E devore o limão...
Quando ele chega ao refrão, todo o telhado está gritando a letra
junto com ele. Iggy saberá que a fábrica está lotada, uma massa
de pessoas quebrando todos os códigos de incêndio possíveis, mas
isso não importa agora, ele está no auge.

Disse ao meu garoto Kelly para filmar a coisa toda. Mandarei


isso para Victor Kane esta noite, e maldito seja se ele não assinar
o contrato na hora. Iggy está indo para Los Angeles, onde ficará
livre de seus parentes sugadores de sangue.

No momento em que estou me deleitando com o triunfo, meu


telefone vibra novamente.

Pego e vejo o número de Sabrina.

Minha prima não ligaria apenas para implorar para ser


deixada de volta na festa.

Levo o telefone ao ouvido, já sentindo o que estou prestes a


ouvir.

— Seu segurança precisa de uma lição de boas maneiras —


diz Poe, em sua voz áspera de três maços por dia.

— Ele nunca passou no teste de etiqueta do manual de


treinamento de funcionários — respondo.

— Mas você não, hein? — Poe zomba. — Vocês são todos uma
piada.

— Eu chamaria isso de um escárnio, na melhor das hipóteses.


— Vamos ver como é engraçado quando eu estrangular sua
prima e jogar o corpo dela no beco.

Deixei escapar uma respiração lenta. — Não é uma boa ideia.


Você sabe quem é o pai dela?

— Eu não dou a mínima para quem são seus parentes — Poe


sibila. — Desça aqui e fale com seus malditos seguranças para me
deixarem entrar no armazém.

— É uma fábrica — eu o corrijo. — Mas tudo bem. Estou


chegando.

Estou aborrecido por ter que sair no meio da apresentação de


Iggy. Ainda mais aborrecido por terem arrastado Sabrina para isso.
Ela provavelmente saltou daquele táxi no segundo em que ele virou
a esquina. Ela sempre foi um ímã para problemas.

Quando passo por Beckett e Anders guardando a porta,


Anders diz: — Algo errado, chefe?

— Um pequeno inconveniente — eu falo.

Eu poderia brigar com Anders por não ter me ligado quando


Poe apareceu, como eu disse a ele para fazer, mas isso estava
acontecendo de uma forma ou de outra.

— Espere doze minutos — digo a Anders. — Então saia para o


beco.

Ele balança a cabeça lentamente, seus olhos fixos nos meus.


Posso dizer que ele prefere me seguir agora, mas ele fará o que eu
pedir.

— Tudo bem, chefe.


— Doze minutos. — Eu bato no Breitling10 no meu pulso. —
Use a porta lateral.

Anders dá uma olhada rápida em seu próprio relógio para


confirmar a hora e balança a cabeça afirmativamente.

Eu passo pela longa fila de pessoas ainda esperando para


entrar, todas olhando com inveja para o telhado onde a
performance de arrasar de Iggy está em pleno andamento.

Então eu viro a esquina para o beco estreito onde Poe espera


com seus três capangas.

O beco é realmente muito bonito, a parede da fábrica forrada


com um tapete grosso de hera pendurada e o lado oposto
delimitado por uma cerca de ferro forjado ornamentado. O espaço
estreito canaliza o som para que o show de Iggy soe muito mais
distante do que realmente está, e eu posso ouvir meus passos
ecoando no concreto.

Poe tem um de seus amigos idiotas parado na entrada do beco,


um filho da puta com cara de rato e uma jaqueta de couro enorme.
Ele sorri para mim quando eu passo. Poe e seus outros dois
capangas estão segurando Sabrina no final do beco em frente a um
portão trancado.

O cara maior tem os braços de Sabrina presos atrás das


costas, uma posição que puxa seu vestido minúsculo ainda mais
para cima. Seu amigo – um cara atarracado com lágrimas tatuadas
em ambas as bochechas – está parado um pouco atrás dela para
poder apreciar a vista. Se ele não estivesse tão ocupado olhando
para sua bunda, ele poderia notar o brilho do metal em sua coxa.

10
Marca suíça de relógios.
Sabrina me olha nos olhos. Não há nenhum indício de medo
ou remorso em seu rosto. Fúria pura e ardente.

Não parece que eles a agrediram, então talvez Poe não seja tão
estúpido quanto parece.

Ele parece muito estúpido. Ele é um personagem de desenho


animado ambulante – o bloco de sua cabeça retangular assentado
em um pescoço exatamente da mesma espessura, formando um
longo pilar do crânio aos ombros. Seu rosto é raspado tão alto que
seu pufe de cabelos ruivos se empoleira no topo de sua cabeça
como uma peruca. Adicione a isso um bigode caído e dentes do
Pernalonga.

Mesmo assim, seria um erro considerá-lo cômico. Poe conhece


bem a violência. O homem mais perigoso é aquele que não tem
nada a perder.

Poe é um condenado seis vezes, traficante de drogas e viciado


em fentanil que está prestes a perder seu último vale-refeição. Ele
vai se agarrar a Iggy até que suas unhas se rompam. A menos que
eu acabe com isso de uma vez por todas.

— Você é muito desrespeitoso, garoto — Poe sibila. — Você dá


uma festa para o álbum do Iggy e nem mesmo convida o
empresário dele?

— Você não é empresário dele — eu respondo. — E você está


certo, eu não respeito você. Você é um sanguessuga. Você tem
sangrado Iggy desde que ele postou sua primeira música. Você não
faz porra nenhuma por ele.

— Eu faço tudo por ele! — Poe resmunga, indignado. — Quem


ajudou a pagar o aluguel da mãe dele depois que seu pai morreu?
Quem comprou seus presentes de Natal?
— Você jogou para eles cinquenta dólares aqui e ali para que
você pudesse usar a casa deles para esconder suas drogas — eu
bufo. — E o único Natal de que me lembro de ter visto você foi
aquele quando tinha um monitor de tornozelo e precisava de um
endereço permanente para seu oficial de condicional.

Se alguém pagou o aluguel de Iggy, foi meu pai, que ajudou a


mãe de Iggy a conseguir um emprego como assistente social na
prefeitura depois que seu pai morreu de derrame com apenas 48
anos.

— Eu não tenho que me explicar para você! — Poe uiva, seu


rosto ficando da cor de um nabo. — Você acha que pode levar meu
sobrinho embora? Bem, eu tenho a porra da sua prima. Então você
pode rasgar aquele contrato de merda com a porra do Virgin, ou
vou arrancar seu lindo rosto fora!

Dou-lhe um segundo para recuperar o fôlego. Então eu


respondo, calmamente: — Isso não está acontecendo. Iggy está
indo embora. Você vai ficar aqui. Já está decidido. Mas estou
disposto a discutir os termos – todos podemos sair felizes esta
noite.

— Foda-se seus termos, porra! — Poe ri na minha cara. — Olhe


a sua volta! Há quatro de nós e um de você.

Eu finjo olhar para seus três capangas com algo que se


aproxima de respeito. Sério, estou apenas confirmando suas
posições exatas. E de Poe também.

— Não há necessidade de ficar feio — eu digo.

— Oh, nós já passamos de feios — Poe zomba. — Você acha


que está fazendo um acordo aqui? Vou atirar na cara dessa vadia
só para pôr a mesa!
Ele puxa uma 45 surrada do cós da calça jeans suja e aponta
para Sabrina, engatilhando-a. As narinas de Sabrina dilatam-se.
Acho que tenho cerca de mais dois minutos antes que ela faça algo
louco. O que se alinha perfeitamente com minha própria linha do
tempo.

Poe não quer a cenoura – é hora de tirar o pau.

— Estou feliz que você mencionou armas de fogo, Poe — eu


falo.

Estou caminhando lentamente para frente para poder me


posicionar entre Poe e Sabrina. Poe não se importa – ele está bem
em apontar a arma na minha cara em vez disso. Ele vira o corpo,
o braço estendido, de modo que suas costas fiquem na parede
coberta de hera e os dois capangas de Poe estejam atrás de mim.

— É difícil se livrar de uma arma — eu digo. — Quero dizer,


realmente se livrar disso. Você pode arquivar os números de série
e jogá-la no rio. Mas ela ainda está lá, apenas esperando para ser
encontrada. E às vezes você não quer jogá-la no rio. As malditas
coisas são caras. Às vezes, a tentação de mantê-la é muito forte...

— Que porra você está tagarelando? — Poe diz, contraindo o


bigode.

— Iggy e eu somos amigos há muito tempo — falo. — Como


aquele Natal de que estávamos falando. Passei metade do feriado
na casa dele. Você provavelmente se lembra...

Poe estreita os olhos para mim, o dedo enrolado em torno do


gatilho de sua arma. Eu não amo que ele a esteja segurando dessa
forma. Ele está nervoso o suficiente para atirar em mim por
acidente.
— Iggy e eu tínhamos acabado de começar a fumar maconha.
Acho que tínhamos quatorze, quinze talvez. Tínhamos que
encontrar um lugar para esconder sua droga para que sua mãe
não brigasse. Acabamos tirando a saída de ar e colocando nossos
saquinhos nos dutos. Engraçado, entretanto... não fomos às
primeiras pessoas a esconder algo lá...

Poe tem uma noção de para onde estou indo, mas não acredita
muito.

— Você tinha acabado de sair da prisão depois de assaltar o


7-11 em Kedzie com alguns de seus amigos. Alguém atirou no
caixa... opa. Ele morreu dois dias depois. Os policiais pensaram
que era você, mas não puderam provar pela fita de segurança e
não tinham a arma do crime. Você escondeu a arma. Mas você não
a escondeu muito bem. Tios e sobrinhos pensam da mesma forma,
eu acho, porque Iggy arrancou isso da parede.

— Besteira — Poe sibila. Embora ele esteja balançando a


cabeça, ele dá um passo para trás e fica quase pressionado contra
a hera.

— Receio que não — digo baixinho, — Claro que não sabia o


que era aquela arma na hora, ou de onde veio. Mas quando você
começou a exigir que Iggy pagasse uma comissão de quarenta por
cento... eu desenterrei seu arquivo do caso antigo. Eu verifiquei
qual bala de calibre eles tiraram do pescoço do caixa. E me lembrei
do que encontramos naquele Natal. Só levei uma hora para visitar
a casa de Iggy e verificar a saída de ar novamente.

— Não sei do que você está falando — diz Poe. Sua mandíbula
está obstinadamente rígida e ele está suando.
— Ainda estava lá. Um revólver Magnum A.357 com um
arranhão no punho. Da forma que estava suja... eu meio que acho
que você nem mesmo limpou suas impressões digitais.

— Que porra é essa? — Poe grita desafiadoramente. — Não


significa nada.

— Isso significa muito — eu digo. — Parece-me que a única


evidência de que a polícia precisa é aquela arma. Eles sabem que
você estava no posto de gasolina naquela noite. Eles simplesmente
não podiam provar quem puxou o gatilho. Não há prescrição para
assassinato, infelizmente...

O aperto de Poe em sua arma não é muito firme. Ele está


olhando para trás e para frente entre mim e o idiota desengonçado
que está segurando Sabrina. Espero que minha influência seja
suficiente para que possamos acabar com isso pacificamente. Mas
também estou mantendo os capangas de Poe na minha periferia,
contando os segundos restantes nesses doze minutos...

— Você é um mentiroso do caralho! — Poe grita. — Você não


tem nenhuma...

Ele é interrompido no meio da acusação pela porta de metal


pesado que o acerta nas costas. Ele não a viu logo atrás dele,
coberta pela hera. Anders vem disparado pela porta lateral em alta
velocidade, atingindo Poe com tanta força que ele sai voando para
a frente com as asas abertas na calçada, arrancando várias
camadas de pele de seu rosto.

Como estava esperando exatamente esse momento, tenho


vantagem sobre os outros dois idiotas. Eu ataco aquele com o rosto
tatuado, confiando em Sabrina para lidar com o outro cara por
apenas um segundo.
Meu pai sempre me disse para atacar com inteligência, não
com força. Quando sua adrenalina está alta, a inclinação natural
é entrar na oscilação. Você tem que reprimir isso se quiser ser
estratégico.

Punhos são superestimados – muito fácil quebrar seu primeiro


soco com a mão. Melhor usar joelhos e cotovelos.

Eu chego ao Teardrops11 com um joelho comprido, usando


todo o impulso da minha pressa para enfiar minha rótula
diretamente em seu intestino. Então, quando ele se dobra, baixo
meu cotovelo com força em sua nuca.

Bem ao meu lado, Tall n 'Ugly12 cometeu o erro de soltar os


braços de Sabrina. Talvez ele tenha pensado que ela ficaria ali
indefesa enquanto ele entrava na luta. Ele pensou errado.

Em um movimento rápido, Sabrina desembainha a pequena


faca de prata amarrada à coxa e o corta no rosto, abrindo sua
bochecha da orelha à mandíbula. Ele bate a mão no rosto, o
sangue escorrendo pelos dedos, e Sabrina usa essa abertura para
apunhalá-lo sob as costelas. Ele cai como uma pedra, a faca dela
ainda enterrada em seu lado.

Rat-Face13 percebeu que sua guarda do beco foi malsucedida


e não mais necessária, então ele vem atacando-me, tentando tirar
a arma de sua jaqueta de couro esvoaçante. Eu jogo meu celular
com força em seu rosto, acertando-o na ponte do nariz com um
ruído satisfatório. Eu sigo isso com um cruzado de direita que tira
o resto do engomado dele.

11
Lágrimas.
12
Alto e Feio.
13
Cara de Rato.
Enquanto isso, Anders está lutando com Poe, que conseguiu
segurar sua arma apesar de sua breve partida com a gravidade e
o arranhão em sua bochecha. Poe aperta o gatilho com força,
disparando dois tiros para o alto e um terceiro que por pouco quase
acerta meu ouvido.

— Cuidado! — eu grito.

— Desculpe — grunhe Anders. Ele arranca a arma da mão de


Poe e a usa para acertá-lo no queixo. Um dente voa para fora da
boca de Poe, pousando ao lado do sapato de Sabrina.

— Eca — ela diz.

Eu arranco a arma da jaqueta do Rat-Face, dando-lhe outro


chute no estômago para lembrá-lo de ficar abaixado. Então
examino Tall n’ Ugly.

— Sabrina — eu digo, com um suspiro irritado. — Você tinha


que ir para o fígado? Eu não estava planejando enterrar um corpo
esta noite.

Tall n’ Ugly olha para mim, fazendo uma careta de dor.

— Eu não estou morto — ele implora.

— Você ficará se eu puxar essa faca de você — falo.

Está enterrada até o punho na lateral do corpo e tem as


impressões digitais de Sabrina.

Sabrina o olha com desprezo.

— Você poderia levá-lo para uma das casas seguras — diz ela.
— Ou apenas puxe-a e jogue-a na beira da estrada.
— Eu não vou fazer nada — digo a ela. — Eu tenho que
encerrar essa festa. Você e Anders o levem. Saiam por ali — digo a
Anders, acenando com a cabeça em direção ao portão trancado
com cadeado. — Eu não quero que nenhum convidado o veja.

— E os outros três? — Anders indaga, olhando para os idiotas


gemendo semiconscientes.

— Eles podem ir a pé para casa ou pagar pelo próprio táxi.

Amanhã vou mandar a Magnum para o meu policial corrupto


favorito do Departamento de Polícia de Chicago. Não porque eu
gosto de delatar – eu não gosto. É o princípio da coisa.

Eu estava disposto a dar a Poe um último pagamento, desde


que ele deixasse Iggy em paz depois disso. Eu sempre escolheria
ser um aliado ao invés de um inimigo.

Mas Poe se recusou a fazer um acordo. Então ele tem que


pagar as consequências.

Dando uma última olhada em Sabrina para ter certeza de que


ela está bem, volto para dentro da fábrica. Eu mando Beckett
ajudar Anders com a limpeza, e então eu volto para o telhado bem
a tempo de ver Iggy fazer sua reverência. Pelo que eu posso dizer,
a música estava alta o suficiente para abafar o tiroteio. Ou então
as pessoas pensaram que era parte da música de fundo – é a moda
usar ‘found sound’14 hoje em dia.

O resto da noite passa felizmente em paz. Clipes da


performance de Iggy se tornam virais em todas as plataformas

14
São sons geralmente usados para adicionar elementos percussivos incomuns.
possíveis. Quando seu álbum é lançado à meia-noite, “Deathless
Life” obtém cem mil downloads na primeira hora.

Victor Kane me mandou uma mensagem com uma foto do


contrato de Iggy com sua assinatura rabiscada em tinta na parte
inferior.

Iggy e eu comemoramos tomando banho na fonte de


champanhe.

— Obrigado, cara — diz Iggy, brindando-me com um copo, o


qual ele está bêbado demais para notar que já está vazio.

— Você é o talento — digo a ele. — Eu só tive que apontar um


holofote para você.

Iggy pousou o copo, tentando focar seu olhar turvo em mim.

— Por que você não vai comigo, cara? Vá para LA.

— Eu vou — eu digo. — Mas ainda não. Eu tenho mais dois


anos de escola.

— Para que você precisa de um diploma? — Iggy diz. — Você


já é um gênio do caralho.

— Não é o diploma — falo. — São as conexões.

Por mais próximos que Iggy e eu sempre fomos, não disse a ele
como a Kingmakers é realmente. Não posso contar a ninguém que
não seja mafioso.

A ilha é isolada e restritiva. Cada aluno pode levar apenas uma


mala. A lista de itens proibidos inclui álcool, drogas e a maioria
dos eletrônicos.
Na Kingmakers, faço exatamente o que fiz no ensino médio,
mas em uma escala muito maior: sou um mediador. Eu forneço
contrabando, levando para a ilha através de uma rede de
pescadores e moradores locais.

Tenho me esforçado desde os 12 anos, economizando cada


centavo na busca de meu objetivo final.

Eu quero ser um verdadeiro Kingmaker. O apontador de


estrelas. Criador de música, moda e cinema.

Eu não quero ser Justin Bieber – eu quero ser Scooter Braun.

Não tenho desejo de celebridade. O verdadeiro poder é o


homem por trás da cortina. O produtor no epicentro da cultura
global.

Quero encontrar cem Iggys e quero lançar mil álbuns. Eu


quero produzir a próxima franquia “Avengers”. E quero controlar
os bilhões de dólares em endossos e anúncios associados a tudo
isso.

Há um fator crucial nesse sonho: eu tenho que fazer isso


sozinho.

Estou construindo meu império sem um centavo do dinheiro


dos meus pais.

Quero ficar no topo da montanha sem um único asterisco ao


lado do meu nome.

O sonho americano é ser um homem feito por si mesmo.

E é por isso que comecei minha conta bancária do zero, sem


fundo fiduciário, sem trapaça. Cada dólar que ganho vai para essa
conta – cada movimento, cada negócio. Estou com $9,8 milhões
agora, dinheiro ganho pelo meu próprio trabalho meticuloso,
engenhoso e até imprudente.

A comissão que ganhei com o contrato da Virgin de Iggy me


colocará em quase $10 milhões de dólares.

Acho que $12 milhões é o número que preciso para lançar meu
império em Los Angeles. Tenho tudo planejado – a mansão em
Malibu que alugarei, o escritório na Wilshire Boulevard. As festas
que vou dar e os peixes que vou puxar um por um.

Posso ver tudo perfeitamente em minha mente.

Mais dois anos na Kingmakers, e então me juntarei a Iggy em


“La La Land”15.

O Uber me deixa na casa dos meus pais às 5:20 da manhã.

Parece mais uma loja da Apple do que uma casa – um prisma


transparente de vidro apoiado em palafitas, de modo que metade
do chão se projeta sobre o lago. Dane-se a privacidade, nenhuma
cortina ou persiana bloqueia qualquer uma das janelas. Você pode
ver dentro dos quartos a mobília elegante e moderna de meu pai e
a ousada arte salpicada de tinta de minha mãe nas paredes.

15
Referência a cidade de Los Angeles, pois o filme se passa nela.
Posso ver minha mãe sentada à mesa da cozinha tomando seu
café da manhã, usando sua camiseta favorita e surrada dos Cubs
T, o cabelo preso em um coque com uma caneta espetada para
mantê-lo no lugar.

Ela olha para cima assim que eu entro em casa, seu sorriso
brilhante aparecendo em seu rosto como se ela estivesse acordada
por horas, e não vinte minutos no máximo.

— Há café fresco na cafeteira — diz ela. — A menos que você


esteja planejando dormir em um minuto.

Ela está examinando um monte de documentos que parecem


transações imobiliárias. Provavelmente algum novo
desenvolvimento com o tio Nero. Assim que terminar, ele seguirá
para o próximo.

— Vou querer uma dessas — digo, pegando uma fatia de maçã


de seu prato.

— Parabéns — ela me diz.

— Pelo que?

— A canção do Iggy. Eu verifiquei os gráficos assim que


acordei.

Eu não posso deixar de sorrir. Nunca disse nada à minha mãe


sobre a festa de despedida ou sobre o lançamento do single. Ela é
uma filha da puta sorrateira, assim como eu. Sempre coletando
informações.

— Ele está indo para LA — eu digo.


— Isso é ótimo — minha mãe responde, com verdadeiro prazer.
— Ele é um bom garoto, ele merece. Você deveria estar orgulhoso
de si mesmo, Miles.

A satisfação é inimiga do sucesso. Ficarei orgulhoso de mim


mesmo quando tiver o maldito mundo inteiro aos meus pés.

— Você é um bom amigo — diz minha mãe.

— Recebi uma bela comissão com o negócio — digo a ela,


pegando outra fatia de maçã.

— Eu sei por que você fez isso — responde minha mãe. Ela
está olhando para mim do jeito que sempre faz, como se eu fosse
a melhor pessoa do mundo. Como se ela não pudesse deixar de
sorrir apenas com a visão de mim.

Isso não é merecido. Eu posso ser um idiota egoísta. Um


verdadeiro pedaço de merda. Minha mãe não se importa – ela
sempre escolheria um vulcão ao invés de um agradável riacho na
montanha. Para ela, o único pecado é ser entediante.

— Você fez as malas para a escola? — ela pergunta.

— Quase.

O que significa que não coloquei nenhum item na minha mala,


mas pensei em fazer isso.

Minha mãe bufa, sem se deixar enganar por um segundo. —


Eu comprei alguns uniformes novos para você.

— Que tamanho de calça?

— Trinta e quatro, grande. Você ainda está crescendo.


Ela se levanta para bagunçar meu cabelo. Ela tem que ficar na
ponta dos pés para fazer isso. Eu coloco meus braços em volta da
cintura dela e a abraço, levantando-a do chão. Ela ri e tenta me
abraçar de volta, mas eu a estou apertando com força.

— É um dia sombrio quando seus filhos podem mandar você


para o quarto se realmente quiserem — diz ela.

— Não se preocupe — eu a provoco. — Ainda estou com medo


do papai.

— Graças a Deus — ela diz.

Na verdade, não estou com medo do meu pai. Eu poderia estar


se eu apenas o visse sozinho, com seu olhar elétrico e sua maneira
de latir ordens que parecem chamar a atenção dos homens como
se eles tivessem sido atingidos por um chicote. Mas então minha
mãe se aproxima dele, dando pequenos golpes nele, fazendo-o rir
quando você tem certeza de que ele nunca abriu um sorriso em
sua vida. E você percebe que ele tem uma alma afinal, por mais
que tente escondê-la.

Ele é um bom homem. Minha mãe é uma boa mulher, a melhor


mulher.

Eu ainda não posso esperar para sair daqui.

Porque eu sou uma coisa selvagem, assim como minha mãe


era uma vez.

Não quero ser cuidado e protegido.

Eu quero caçar.
— Certifique-se de dizer adeus a Caleb e Noelle — minha mãe
diz. — Especialmente Caleb.

— Eu vou — eu prometo a ela.

Eu sei o quão chateado Caleb ficaria se eu não o fizesse. Ele


tenta agir como durão, mas ele é um maldito marshmallow por
dentro.

Ser o mais velho é complicado. Seus irmãos são irritantes pra


caralho pela maior parte da sua vida, mas você ainda os ama. Você
não pode evitar.

E eu vou admitir, Caleb não está se moldando tão mal. Ele é


um pouco atrapalhado na escola, um dia desses pode dar a nosso
primo Leo uma corrida por seu dinheiro na quadra de basquete, e
ele pode ser muito engraçado quando trabalha em seu material e
mantém suas anedotas estritas.

Dê ao garoto mais alguns anos e mais alguns centímetros e


poderemos ser amigos legítimos. Por enquanto, ainda posso dobrá-
lo como um pretzel se ele ficar com a boca aberta.

Noelle é uma besta diferente. Ela é inteligente, e quero dizer


assustadoramente inteligente. Ela é como um computador de IA16
que pode descobrir a cura para o Ebola, ou então pode decidir que
a humanidade é o vírus e deve ser varrida da terra.

Muito cedo para contar com ela. Por enquanto, ela parece
muito fofa em um par de tranças e sua camisa Sailor Moon.

16
Inteligência Artificial.
Meu pai entra na cozinha, recém-banhado e vestindo um terno
impecavelmente cortado.

Seu cabelo ficou prematuramente prateado, o que cria um


contraste alarmante com seus olhos azuis brilhantes. Minha mãe
gosta de chamá-lo de White Walker17 quando ela realmente quer
irritá-lo.

— Ele está vivo — meu pai diz quando me vê.

— Aonde você está indo? — eu pergunto.

— Café da manhã com o Tio Nero.

— Não sei se vale a pena se vestir para isso — digo. — Já que


ele provavelmente vai aparecer de macacão.

— Não estou aceitando dicas de alguém que usa botas lunares.


— Meu pai franze a testa, balançando a cabeça para os meus tênis.
— O que diabos são esses?

— Eles são... moda! — Minha mãe diz, fazendo mãos de jazz.

— Eles são o novo lançamento da Nike Air Mag — eu o informo.


— Eles fizeram apenas oitenta e nove pares. Eu poderia vendê-los
por trinta e cinco mil dólares agora. Usados!

— Pago a você trinta e cinco mil dólares se nunca mais tiver


que olhar para eles — diz meu pai.

— Tentador — falo. — Mas se eu continuar negociando, posso


apenas colocar minhas mãos em um par de ovos de ouro maciço.

17
Personagens da série “Game Of Thrones”, possuem o cabelo branco e olhos azuis intensos.
— Por favor, diga-me que você está mantendo pelo menos
parte do seu dinheiro em um IRA18 — diz meu pai.

— Não se preocupe, pai. — Eu sorrio. — A coisa boa sobre


dinheiro... é que você sempre pode fazer mais.

Pegando a última fatia de maçã da minha mãe, eu subo a


escada flutuante para o nível superior. Eu estava planejando me
jogar diretamente na minha cama, mas não posso porque minha
mãe largou minha mala vazia ali, junto com os novos uniformes.

Pegando a dica, jogo o resto das minhas roupas e livros na


mala, bem como um bom maço de dinheiro embrulhado com
elásticos. Esse é o meu capital inicial para o próximo semestre.
Vou espalhar esse dinheiro entre os pescadores e o mais
ganancioso dos funcionários da escola, e logo terei minha própria
pequena Rota da Seda trazendo iguarias exóticas para a ilha que
poderei vender aos meus colegas por preços exorbitantes. Chá e
porcelana não são nada de vodca e ecstasy.

Com a mala completa, fecho-a, jogo-a no chão, tiro o tênis e


rolo para a cama.

Caio no sono contando dólares em vez de ovelhas.

18
Sigla para Individual Retirement Account, que é uma conta de aposentadoria individual.
CAT

Eu parto para a Kingmakers no dia primeiro de setembro.

Continuei orando para que algo acontecesse para me impedir


de ir. Minha principal esperança era simplesmente não ser aceita,
inscrevendo-me tão tarde no ano.

Então, um pesado envelope cinza chegou pelo correio, lacrado


com cera da cor de sangue seco, carimbado com o brasão da
escola: uma caveira coroada. O endereço manuscrito trazia meu
nome legal completo, Catalina Resmella Romero, em uma escrita
que parecia ter cem anos.

Eu já sabia o que dizia antes de abri-lo – ou pelo menos, pensei


que sabia.

Catalina Romero,

Estou escrevendo para informar que você foi aceita na


Kingmakers Academy. Depois de revisar sua inscrição e avaliar
suas qualificações, nós a designamos para a divisão Spy.
As aulas começarão no dia 3 de setembro. Você partirá do cais
de Dubrovnik às 10:00 da manhã do dia 2 de setembro.

A admissão em nosso campus é única e irrevogável. Se decidir


sair por qualquer motivo, você não terá permissão para retornar.
Certifique-se de trazer todos os itens necessários durante o curso.

Em anexo está uma lista de nossas regras e regulamentos.


Assine e devolva o seu reconhecimento do contrato, incluindo a sua
disponibilidade para cumprir o nosso sistema de arbitragem e
punição. A assinatura e impressão de seus pais também são
necessárias.

Estamos ansiosos para conhecê-la. Você entrará para uma


instituição de elite com uma longa e célebre história. Talvez um dia
seu nome seja inscrito na parede de Dominus Scelestos.

Sua irmã se destacou no Quartum Bellum em seu primeiro ano.


Espero ver você fazer o mesmo quando o desafio deste ano se
iniciar.

Sinceramente,

Luther hugo

Necessitas Non Habet Legem – A necessidade não tem lei

Eu reconheci o envelope da carta idêntica de Zoe no ano


anterior. Por sua espessura, presumi que havia sido aceita e que
incluiria a lista draconiana de regras escolares e o contrato
irrevogável em que meu pai e eu teríamos de pressionar nossas
impressões digitais ensanguentadas, concordando que a
Kingmakers tem o direito de disciplinar ou mesmo me executar se
eu transgredir suas leis.

Eu sabia de tudo isso com antecedência.

O que eu não esperava era ser colocada com os Spies19.

Kingmakers tem quatro divisões: os Heirs20, que são treinados


para liderar suas famílias como um general lidera um exército. Os
Enforcers21, que são os soldados. Os Accountants22, que lidam com
os ramos de finanças e investimentos da empresa. E então os
Spies.

Os Spies são a divisão menos numerosa e mais obscura. Seu


trabalho é vigiar e analisar grupos inimigos – tanto policiais quanto
criminosos rivais. Eles preveem ameaças contra a família e às
vezes fazem a ligação com o inimigo. E, acima de tudo, eles
desentocam ameaças de dentro de suas próprias hierarquias.

Não consigo imaginar um trabalho menos adequado para mim.

Os Spies precisam ser ousados e astutos. Implacáveis e


habilidosos.

Sou apavorada com minha própria sombra. Eu choro se


alguém me olha de soslaio. Não tenho nenhuma habilidade, exceto

19
Espiões.
20
Herdeiros.
21
Executores.
22
Contadores.
pintura e desenho, e sou muito boa com computadores. Nunca
briguei e nunca disparei uma arma na vida.

Como um Spy, não há ninguém para protegê-lo. Um passo em


falso e você será torturado e morto.

Sinto-me como um caranguejo arrancado da casca.

Pior de tudo, Zoe e eu nem podíamos viajar para Dubrovnik


juntas. Os calouros começam uma semana depois de todo mundo,
então ela já está no campus, enquanto eu tenho que embarcar no
imponente navio sozinha, em meio à multidão de estudantes de
todo o mundo.

Eu ouço uma babel virtual de línguas no cais, embora todos


tenhamos que falar inglês assim que chegarmos, já que é a língua
franca da Kingmakers.

Tento encontrar o canto mais distante e discreto do navio para


ficar fora do caminho dos marinheiros de aparência carrancuda,
observando meus colegas estudantes à distância.

Todo mundo parece muito mais legal e confiante do que eu.


Muitos deles já parecem se conhecer, talvez porque sejam do
mesmo país, ou porque já se cruzaram antes.

Não reconheço um único rosto. Até que uma garota alegre com
cachos loiros me dá um tapinha no ombro e diz: — Cat? É você?

— Sim? — falo hesitante.

— Eu achei que sim! Sou eu, Perry!

— Perry? — falo inexpressivamente. E então: — Oh, Perry! Oh,


meu Deus, você parece tão... tão... diferente!
Ela ri. — Entrei na natação e perdi muito peso.

Eu nunca a teria reconhecido como a mesma garota que


conheci há três verões em um resort em Mônaco. Eu estava lá com
minha família e Perry com a dela. Nossos pais pareciam amigáveis.
Tenho certeza de que eles tinham o mesmo propósito nas ‘férias’
naquela semana, embora eu nunca tenha ouvido falar sobre o que
era.

Não é apenas o peso que mudou Perry – ela parecia uma


criança quando construímos castelos de areia na praia particular
em frente ao nosso hotel. Agora ela está confiante e estilosa,
vestida com uma boina elegante e uma jaqueta que combinam
perfeitamente com seu uniforme escolar.

Eu me sinto infantil em comparação, com minhas meias


grossas até o joelho, oxfords planos e saia longa demais. Percebo
que o resto das meninas tem suas saias xadrez verdes feitas sob
medida para atingir o meio da coxa, o que é muito mais lisonjeiro.
Eu coro, pensando em todas as regras não ditas que outras
pessoas parecem intuir, que passam direto pela minha cabeça.

— Eu não sabia que você estava vindo para a Kingmakers! —


Perry diz.

— Foi uma espécie de decisão de última hora.

— De qual divisão você é?

— Spy — eu digo, com uma cerrada nervosa dos meus dentes.

— Ohh — diz Perry, as sobrancelhas levantadas. — Bom para


você! Eu sou uma Accountant.
— Não sei por que me colocaram lá — admito. — Talvez tenha
sido um engano...

— Não acho que eles cometam erros — diz Perry. — Você não
pediu isso?

— Não. — Eu balanço minha cabeça. — Definitivamente não.


Eu esperava ser uma Accountant também.

— Eu me pergunto o que aconteceu? — Perry diz


curiosamente.

Eu realmente não tinha pensado nisso, já que parecia apenas


mais uma surpresa desagradável para somar na pilha de merda.

— Bem... — falo hesitante. — Eu sei um pouco sobre


programação...

Na escola secundária, tive uma professora de ciências da


computação que era simplesmente brilhante. Ela despertou meu
interesse por todas as coisas tecnológicas. Ela me disse que eu
deveria trabalhar em programação, mas gosto tanto de arte que
escolhi design gráfico. Não que isso importasse no final, já que
também não estarei estudando isso.

— Pode ser isso. — Perry dá de ombros. — Há muita análise


de sistema de segurança na divisão Spy. Alguns hackers também.
Ou, pelo menos, foi o que meu primo me disse.

— Eu gostaria de estar na sua divisão — falo


melancolicamente.

— Eu também — diz Perry. — Nós poderíamos ter ficado


juntas.
Meu estômago afunda mais do que nunca. Vou dividir o quarto
com uma estranha. Ter aulas com estranhos. Zoe e eu estaremos
na Kingmakers, mas quem sabe o quanto nos veremos. Eu me
sinto tão sozinha e tão intimidada.

Não sei como Zoe navegou por tudo isso sozinha no ano
passado. Ela sempre foi mais corajosa do que eu.

Pelo menos ela me disse onde embarcar no navio e como é a


ilha. Ela ficou totalmente cega. Não temos amigos próximos que
frequentaram a Kingmakers antes de nós – apenas alguns primos
idiotas que evitamos a todo custo.

Estou teoricamente preparada para cruzar a vasta e vazia


extensão do oceano que leva à distante Visine Dvorca. Zoe até me
avisou que a água ficará agitada e revolta à medida que nos
aproximamos, então sinto a mudança na inclinação do navio
muito antes de ver os penhascos de calcário se projetando das
ondas.

— Uau — sussurra Perry ao meu lado. Ela está olhando para


a fortaleza do castelo, como quase todo mundo.

Nunca vi nada assim.

A Kingmakers sobressai diretamente da rocha, esculpida na


mesma pedra calcária pálida que os penhascos. Ela sobe em
camadas como um bolo, áspera e com aparência antiga. Manchas
escuras escorrem das janelas, como se o castelo estivesse
chorando. Tenho certeza de que são apenas as marcas da água da
chuva, mas dá uma estranha sensação de mau presságio que não
é ajudada pelas gárgulas grotescas e demoníacas que ameaçam
cada cornija.
As ondas batem ferozmente contra os penhascos. Zoe me
avisou que a jornada até o porto seria difícil e, com certeza, o navio
balança e rola com tanta força que às vezes parece que os mastros
vão afundar na água.

Uma vez dentro da baía abrigada, no entanto, o mar se acalma


mais uma vez e posso olhar com interesse para a pequena aldeia
que circunda o cais.

É uma pequena cidade bonita, os prédios de madeira


desgastados empilhados contra a água sobre palafitas, com
espaços abaixo para que os barcos a remo possam levar o pescador
até suas portas.

A ilha ergue-se atrás da aldeia – campos e quintas, pomares e


olivais e manchas de densa floresta verde. Então, no ponto mais
alto e distante: as torres da Kingmakers.

O ar carrega o conhecido travo salgado do mar, mas também


cheiros mais nítidos e frios – pinho e pedra. Fumaça e ferro.

Várias carroças abertas esperam para nos levar para a escola.


Eu verifico se minha mala foi descarregada com segurança do
navio, mas há muitos alunos circulando para dar uma boa olhada.

— Vamos! — Perry diz para mim. — Vamos nos sentar!

Eu a sigo até a carroça mais próxima, onde ela nos espreme


em um grupo de pessoas que ela aparentemente já conhece. Eles
são agradáveis e amigáveis, mas uma rápida rodada de
apresentações revela que são todos Accountants ou Enforcers. Eu
não conheci um único outro Spy, o que não está ajudando meus
nervos.
Pior ainda, cada vez que explico minha divisão, sou recebida
com uma expressão confusa. Devo realmente parecer tão
incompetente quanto me sinto.

A divisão dos Accountants é um abrangente usual para os


filhos estudiosos e introvertidos de famílias mafiosas. É o lugar
onde podemos ser úteis. Um trabalho destinado a nos manter
seguros.

Como uma Spy, não serei nada além de um risco.

Estou com medo de nem sobreviver às aulas. Ninguém está


dando socos no combate. Usaremos munição real no tiro ao alvo.
O pior de tudo são as técnicas de tortura.

— Eles conectam você a uma bateria de carro — diz um


Enforcer atarracado. — Vocês fazem isso em pares e se revezam.
Um de vocês precisa puxar o interruptor e o outro precisa levar o
choque. É para dessensibilizar você. Se você pode eletrocutar seu
amigo, não terá nenhum problema em fazer isso contra um
inimigo...

Os amigos de Perry estão compartilhando as histórias mais


bizarras e assustadoras que já ouviram sobre a Kingmakers.

— Ouvi dizer que pelo menos cinco alunos morrem a cada ano
— diz uma garota asiática esguia.

— Besteira — retruca um menino loiro rechonchudo. — Não


podem ser tantos, ou ninguém mandaria seus filhos.

— Pessoas morrem — diz uma garota ruiva com sotaque


francês. — No ano em que meu irmão mais velho esteve aqui, um
Sênior se enforcou na catedral.
— Bem, isso é suicídio — o garoto loiro diz teimosamente. —
Isso pode acontecer em qualquer lugar.

— Ele só fez isso porque eles o impeliram com todas as tarefas


e exames — diz a ruiva, erguendo o queixo.

— Odeio exames — diz Perry, deixando escapar um suspiro


sombrio.

Eu não me importo com testes. Na verdade, às vezes eu os faço


para me divertir, se for algo interessante como um teste de QI ou
um questionário de personalidade. Mas isso é uma coisa nerd de
se dizer, então eu mantenho isso para mim.

— Quem tem irmãos aqui? — Perry pergunta.

Cerca de metade das pessoas levanta a mão, incluindo eu.

— É tão estúpido que eles não nos deixaram trazer nossos


telefones — resmunga um menino baixo e atarracado.

— Não faria nenhum bem para você, de qualquer maneira —


diz a garota ruiva. — Não há internet, nem serviço de celular.

— Também não há banheiro — diz um menino magricela e


sardento. — Você tem que usar um penico.

A garota asiática o encara com horror.

— Ele está fodendo com você — Perry ri. — Eles têm banheiros
normais.

Eu me forço a rir junto com as outras crianças. Honestamente,


nada me surpreenderia quando se trata da Kingmakers.
Pelo menos a ilha é linda. Visine Dvorca não é diferente de
Barcelona por ser ensolarada e verde, com uma agradável brisa do
mar. Acho que fica mais frio no inverno, no entanto, a julgar pela
espessura dos pulôveres e jaquetas de lã que acompanham nossos
uniformes.

Pensar no inverno me lembra que não voltarei para casa por


quase um ano inteiro. Pela primeira vez, sinto um leve arrepio de
antecipação – o alívio de que não terei os olhos penetrantes de
Daniela constantemente fixos em mim, ou o temperamento quente
de meu pai aplicado a mim.

Vários de nossos primos estudam na Kingmakers. Zoe me


avisou que dois em particular – o odioso Martin Romero e o
arrogante Santiago Cruz – estiveram espionando-a e relatando
tudo ao nosso pai. Isso é ainda menos opressor do que viver sob
seu teto.

Aquele vislumbre infinitesimal de esperança se extingue


imediatamente quando passamos pelos portões de pedra
proibitivos para a Kingmakers. Eu juro que a temperatura cai vinte
graus dentro das paredes altas, conforme o tamanho e o escopo do
castelo se tornam aparentes. Vejo dezenas de prédios grandiosos,
torres, estufas, terraços com balaustrada e estruturas que nem
consigo nomear. Sinto como se tivesse sido encolhida ao tamanho
de uma formiga, diminuída pela arquitetura monumental.

A conversa amigável cessa entre os calouros em minha carroça


enquanto olhamos boquiabertos ao nosso redor.

Se eu pensei que meus colegas calouros eram intimidantes,


não é nada comparado a como os veteranos me atingem. Eles são
altos e fortes, caminhando pelo terreno com uma confiança que eu
nunca poderia sonhar em possuir. Eles não se parecem em nada
com estudantes – mais como membros da realeza. Eles são
arrogantes e poderosos, com um toque de ferocidade que,
francamente, me apavora.

Já estive perto de filhos da máfia antes. Mas nunca assim,


nunca em massa. Cada pessoa aqui é um assassino nato.

Exceto por mim.

Não sei por que não peguei esse gene específico. Não há nada
do meu pai em mim.

Eu estico meu pescoço, procurando por Zoe. Ela está longe de


ser vista. As aulas dela começaram há uma semana, então ela
provavelmente está dentro de um dos muitos edifícios,
diligentemente tomando notas sobre a palestra de algum
professor.

As carroças param e os calouros descarregam. Há uma


confusão enquanto tentamos tirar nossas malas da carroça cheia
de bagagem. Depois que todas as malas foram pegas, somos
recebidos por um punhado de veteranos de aparência desdenhosa
que nos separam de acordo com nossas divisões.

Os Enforcers são os mais numerosos e quase inteiramente


compostos por estudantes do sexo masculino. Na Kingmakers, os
meninos superam as meninas em quatro para um. Nem todas as
famílias da máfia se preocupam em enviar suas filhas para serem
treinadas. Meu pai não tinha intenção de enviar Zoe ou eu, antes
de Zoe se recusar a se casar com Rocco Prince, a menos que ela
pudesse ir para a universidade primeiro.

Ela pensou que ele a mandaria para uma universidade


normal. Em vez disso, ele ordenou que ela se juntasse a Rocco na
Kingmakers.
Agora fui empurrada para a barganha do diabo bem ao lado
dela.

Os Accountants são o segundo maior grupo e a única divisão


com uma soma quase igual de meninos e meninas. A maioria dos
que saem da minha carroça vai feliz junto, levando Perry com eles.
Ela me dá um pequeno aceno enquanto eles partem.

Agora apenas os Heirs e Spies sobraram.

Somos semelhantes em número, mas nossa aparência não


poderia ser mais diferente. Se a Kingmakers fosse uma lanchonete
de colégio, os Heirs seriam os garotos legais: confiantes, bem
vestidos, já reunindo seu círculo de admiradores.

Os Spies são, para ser franca, os desajustados.

A dúzia de Spies calouros suspeitos mostra uma tendência


clara para piercings pesados, tatuagens estranhas, cores de cabelo
exóticas e expressões sombrias.

Então há eu. Eu fico lá como um cordeiro entre lobos. Uma


estudante no centro de uma gangue de motoqueiros.

Posso sentir os outros Spies olhando para mim, e não sei como
tirar a expressão estúpida de olhos de corça do meu rosto.

Nosso guia é um veterano alto e esguio, vestindo um colete


superdimensionado de suéter verde-oliva e um par de calças
rasgadas enfiadas nas botas militares. Seu longo cabelo escuro cai
sobre as orelhas e seu brinco de argola o faz parecer um pouco
com um pirata.
Já notei que, embora os alunos da Kingmakers sejam
obrigados a usar uniformes, eles parecem não ter escrúpulos em
estilizar os ditos uniformes de acordo com sua preferência pessoal.

— Sou Saul Turner — diz nosso guia preguiçosamente. — Vou


mostrar a vocês a Undercroft.

Não tenho ideia do que é a Undercroft e não quero ser a única


a perguntar. Eu fico na fila atrás de Saul, puxando minha mala ao
meu lado.

Saul nos leva ao que parece ser o próprio centro do terreno da


Kingmakers, ao maior e mais grandioso dos edifícios.

— Este é The Keep — ele anuncia. — Vocês terão muitas de


suas aulas aqui. Suas aulas de combate serão lá no Armony. —
Ele balança a cabeça em direção a um prédio atarracado com
paredes arredondadas. — E logo depois disso está o refeitório. A
biblioteca é muito lá embaixo. — Ele aponta para o canto noroeste
do campus, onde posso ver uma torre alta e estreita erguendo-se
acima de tudo. — Isso é basicamente tudo que vocês precisam
saber por enquanto.

Eu não estava prestando muita atenção depois da menção de


‘aulas de combate’. Quando exatamente isso vai começar? Só sei
que vou levar um soco na cara logo no primeiro dia.

Meu estômago está pesado como uma pedra.

Saul continua caminhando em direção ao Armony. Seguimos


atrás dele como uma fileira de patinhos obedientes.

— A Undercroft vai até lá — ele aponta para a longa extensão


de gramado aberto entre o Armony e o refeitório.
— Onde? — uma garota de aparência ranzinza com um
piercing no septo exige. Ela olha em volta como se esperasse que
um dormitório se materializasse do nada.

— Bem debaixo de seus pés — Saul ri.

— Estamos dormindo em um porão? — a menina zomba,


cruzando os braços com desdém sobre o peito. Suas longas unhas
são afiadas em pontas, com anéis de prata em cada dedo.

— É mais uma adega — diz Saul. Ele parece imune à grosseria


ou a qualquer outra emoção que possamos enviar em sua direção.
Tenho a sensação de que um de nós poderia ser atingido por um
raio bem na sua frente e ele nem piscaria. — Nós entramos por
aqui.

Nós o seguimos para dentro de um prédio pequeno demais


para abrigar treze alunos. Pelas prateleiras vazias enferrujadas
nas paredes e pelo cheiro forte de uvas fermentadas, acho que isso
costumava ser uma adega.

Não é nosso destino final. Saul nos conduz em direção a uma


ampla escadaria que desce ainda mais fundo na terra, sua
abertura escura escancarada como uma boca.

Não gosto de espaços apertados. E definitivamente não gosto


do escuro.

Meu coração já está martelando contra minhas costelas antes


mesmo de colocar os pés na escada.

Até a garota mal-humorada com o piercing no nariz parece um


pouco nervosa quando ela caminha ao meu lado. Nossos passos
ecoam na pedra enquanto descemos para a Undercroft.
Estou aliviada ao ver uma luz quente ao pé da escada. Ainda
mais aliviada ao ver que a Undercroft, pelo menos, não é apertada.
O telhado abobadado de pedra tem quase seis metros de altura,
com grossos pilares de sustentação descendo no centro do espaço,
formando um conjunto duplo de arcadas.

A primeira parte desse longo túnel é uma espécie de sala


comum, com sofás, uma estante de livros e uma grande mesa com
bancos corridos para estudar. Mais abaixo, o espaço é dividido em
dormitórios separados.

— Dois por quarto — diz Saul. — Só os do meio estão vazios,


porque os veteranos reivindicaram todos próximos do banheiro e
da escada.

Caminhamos pelo corredor, cautelosos à luz fraca da lâmpada.

As portas de fileira dupla são idênticas, mas é fácil dizer quais


foram reivindicadas, já que seus proprietários decoraram a
madeira marcada com adesivos e remendos. Percebo que ninguém
colocou uma etiqueta com o nome. Você não seria capaz de
encontrar um cômodo específico sem já saber o adesivo na porta.

As portas vazias no centro são as que podem ser pegas.

Há uma agitação enquanto os Spies calouros se movimentam


dentro de seus espaços escolhidos. Demoro um momento para
perceber que todos já formaram pares. Eu fico estupidamente no
corredor até que apenas eu e a garota mal-humorada com
piercings estamos sem colegas de quarto.

Ela me encara com uma expressão de desgosto ainda maior do


que quando soube que estaríamos morando no subsolo.

— Você deve estar brincando comigo — ela diz.


Seu desdém me atinge como um tapa.

Sei que não deveria me importar com o que ela pensa de mim,
mas nunca fui capaz de ignorar a opinião de outras pessoas.

Lágrimas humilhantes picam os cantos dos meus olhos.

Ai, meu Deus do caralho, não vou chorar na frente dessa garota.
Não no primeiro dia de aula.

Eu aperto meus punhos com tanta força que minhas unhas


mordem minhas palmas.

— Falta de sorte — falo rigidamente. — Parece que você está


presa a mim.

A garota revira os olhos e pisa no quarto vazio mais próximo.

Preparando meus nervos, eu a sigo para dentro.

Eu esperava que parecesse uma cela de prisão, mas na


verdade nosso dormitório é arrumado e limpo. As camas são baixas
e estreitas, bastante bonitas, com cabeceiras e rodapés em
madeira escura entalhada. Cada uma de nós tem sua própria
cômoda. A sala cheira a cedro, pedra-sabão e terra limpa.
Nenhuma sensação de umidade ou podridão.

Só falta uma janela.

Duas lâmpadas suaves e douradas fornecem a única luz,


porque estamos realmente no subsolo.

Minha nova colega de quarto olha em volta em silêncio,


avaliando o espaço.
— Eu sou Catalina, a propósito — eu digo. Minha voz soa
simultaneamente tímida e alta demais no pequeno espaço
compartilhado. — Meus amigos me chamam de Cat.

A outra garota me encara, como se ela desejasse que eu


entrasse em combustão espontânea.

— Não fale comigo — ela diz.

Ela puxa um livro da mochila e se joga na cama.

Eu começo a desfazer minha mala silenciosamente, dobrando


cuidadosamente minhas roupas antes de colocá-las nas gavetas
da cômoda.

Meu guarda-roupa é fácil de organizar porque todas as peças


do uniforme se misturam e combinam: cinco camisas brancas
impecáveis, seis saias xadrez (três verdes, três cinzas), um pulôver
verde sálvia e outro branco. Dois coletes suéter, um cinza e um
preto. Cinco pares de meias até ao joelho e cinco pares de collants.
Uma jaqueta da academia, também preta, com um brasão no bolso
do peito. Depois, nossas roupas de ginástica.

Eu passo muito mais tempo na tarefa do que o estritamente


necessário, não querendo ficar em um silêncio gelado com minha
companheira de quarto taciturna.

Eu nem sei o nome dela – fiquei muito distraída quando Saul


leu sua lista em voz alta. Um Spy adequado teria prestado atenção,
combinando cada nome com seu aluno correspondente.

Provavelmente é por isso que ela zombou de mim quando me


apresentei – ela já sabia meu nome e o de todos os outros.

Deus, eu já estou estragando tudo.


Dou uma espiada rápida na garota, apoiada em seu
travesseiro com o livro nas mãos.

Seu cabelo escuro está cortado curto, provavelmente por ela


mesma com o tipo errado de tesoura, pois as mechas são
irregulares e desiguais. Ela tem um rosto estreito, olhos escuros
em formato de amêndoa e um pescoço longo e fino.

As páginas de seu livro são finas e coloridas. Pode ser uma


história em quadrinhos. A capa é amarela brilhante com uma
mancha vermelha.

É tudo que me atrevo a observar, com medo de que ela me


pegue olhando para ela.

Eu coloco meus produtos de higiene em cima da cômoda, em


seguida, empilho meus cadernos de desenho e lápis na mesa de
cabeceira. Eu deslizo minha mala vazia para debaixo da cama.

Então me sento em meu colchão fino e estreito.

Pronto. Eu fiz isso. Eu desfiz as malas.

Agora só tenho que passar o resto do ano.


ZOE

Estou surpresa com o quanto gosto de voltar para a


Kingmakers.

Nunca tive a intenção de frequentar uma escola da máfia, mas


não posso negar que o que aprendemos aqui é complexo e
fascinante. Quem não gostaria de saber segredos antigos
transmitidos por gerações de criminosos?

Bem, talvez Cat...

Parecia que ela estava no corredor da morte quando a abracei


em despedida no aeroporto de Barcelona. Eu me sinto tão culpada
por ela ter sido forçada a vir aqui comigo, tudo por causa daquele
sádico Rocco.

Eu sei que ele só a quer aqui para que ele possa usar Cat como
alavanca contra mim – mais uma arma em seu arsenal. Que novo
tormento ele está sonhando, eu só posso imaginar. Essa é a pior
coisa sobre ele: o desconforto constante, como saber que há uma
víbora em sua casa sem realmente poder vê-la. Ouvi-lo deslizar por
dentro de suas paredes. Nunca é capaz de descansar, caso ele saia
de baixo da cadeira e morda seu tornozelo.

Espero que Cat esteja se adaptando tão bem quanto o


esperado.
É difícil para eu ver como ela está, já que não estamos na
mesma divisão ou no mesmo ano. Sou uma Heir, pelo menos no
nome, mesmo que meu pai nunca pretenda que eu assuma o seu
negócio. Isso significa que eu divido o Solar com o resto das Heirs
femininas.

Cat, por outro lado, aparentemente foi enfiada em algum porão


com uma vampira islandesa como colega de quarto. Ainda não
conheci essa colega de quarto, que Cat acha que se chama Rakel,
mas não pode ter certeza porque a garota se recusa a falar com
ela.

Não preciso me preocupar com uma colega de quarto. Tenho o


mesmo armário de vassouras do ano passado. Mal é grande o
suficiente para se espremer entre a cama e a cômoda, mas tenho
uma janela grande e bonita e não preciso compartilhá-la com
ninguém.

Minhas duas melhores amigas estão no final do corredor.


Anna e Chay se dão muito bem, exceto nos momentos em que Chay
tem um sonho interessante e decide acordar Anna no meio da noite
para lhe contar tudo.

Estou pensando que foi isso que aconteceu ontem à noite,


porque Chay desce para o café da manhã já tagarelando a mil por
hora, enquanto Anna parece quase inconsciente e totalmente mal-
humorada, torcendo o cabelo loiro prateado em um coque
bagunçado no topo da cabeça, e vestindo um pulôver escolar mais
buracos do que suéter.

Chay está com o rosto cheio de maquiagem brilhante, ela está


andando por aí com um novo par de botas de couro branco até o
joelho, e ela tingiu seu cabelo de rosa chiclete durante o verão. Ela
se parece com a Jem de The Holograms23.

— Bom dia! — ela gorjeia, deixando cair uma bandeja


carregada com uma quantidade obscena de bacon e salsicha na
mesa.

— Chay... — Anna geme. — Voz interna antes das nove da


manhã, por favor.

— É isso que você está comendo? — eu pergunto a Chay,


olhando sua pilha de proteínas.

— Estou no ceto24.

— Você vai pegar escorbuto25 — Anna diz a ela, mexendo as


várias colheres de chá de açúcar no café.

— E você vai ter diabetes — Chay responde docemente.

Vejo Cat pairando incerta sobre os réchauds26. Eu aceno para


ela para que ela possa ver onde estamos sentadas. Ela
rapidamente enche um prato com frutas frescas e ovos mexidos e
vem se juntar a nós.

— Estas são Anna Wilk e Chay Wagner — digo a Cat, enquanto


ela se senta ao meu lado.

— Olá — Cat diz timidamente.

23
É um filme musical estadunidense.
24
Abreviação de cetogênico, refere-se a uma dieta pobre em carboidratos, mas rica em proteínas. Embora
originado como uma dieta médica, é popularmente associado à perda de peso.
25
Doença causada por uma grave deficiência de vitamina C na dieta.
26
É uma espécia de fogareiro de metal, em prata ou inox, usado para manter a comida aquecida em um buffet.
— Você é tão pequena! — Chay diz alegremente. — Eu pensei
que você seria alta como Zoe.

— Não — Cat diz, corando. — Eu não sou.

Posso dizer que ela está envergonhada, porque, honestamente,


ela parece uma criança em comparação com todos os outros em
Kingmakers. Não ajuda que Cat sempre se incline para roupas
grandes que afogam seu corpo pequeno. Parece que ela está
usando roupas de segunda mão, mesmo em seu uniforme novo.

— Não importa! — Chay acrescenta rapidamente. — Eu


também estou em tamanho reduzido. Eu ainda me mantenho.
Coloca você bem no nível para dar um bom soco nas bolas de
alguém, se for preciso.

— Ótimo — Cat diz fracamente. — Vou tentar me lembrar


disso.

— Você vai se instalar aqui logo — Anna diz gentilmente. —


Todo mundo fica intimidado na primeira semana.

— Mesmo? — Cat diz, olhando Anna com descrença.

Anna não parece que já experimentou intimidação. Mesmo


apenas rolando para fora da cama, ela tem aquele ar indefinível de
não-fode. Talvez seja seu delineador de centímetros de espessura,
ou seu olhar gelado, ou sua voz baixa que sempre soa levemente
ameaçadora, mesmo quando ela está tentando ser legal.

— Mesmo. — Anna acena com a cabeça. — Eu quis vir para cá


toda a minha vida, e ainda estava impressionada no início. Você
vai se acomodar. Zoe estará aqui para ajudá-la. Todas ficaremos
de olho em você.
Ela sorri para Cat do outro lado da mesa. Sinto uma onda de
gratidão por já ter feito um grupo de amigas para Cat. É o mínimo
que posso fazer, depois de colocá-la nessa confusão.

Isso dura cerca de cinco segundos até que Rocco se sente ao


meu lado, com Dax Volker e Jasper Webb bem atrás dele.

Dax e Jasper são seus capangas favoritos. Dax porque ele é


um brigão desagradável – musculoso, com uma cabeça quadrada
e uma mandíbula de buldogue, e Jasper porque ele é quase tão
cruel quanto o próprio Rocco. Ele é alto, com uma compleição
esguia e cabelo longo e ruivo escuro. Por baixo das mangas
arregaçadas de sua camisa social, posso ver tatuagens escorrendo
pelas duas mãos, imitando os ossos por baixo como um esqueleto
sobreposto à pele.

Rocco se senta bem ao meu lado, enquanto Jasper se abaixa


ao lado de Chay e Dax ao lado de Cat, então todos os três nos
cercam como um Triângulo das Bermudas de idiotas. Não há
necessidade de nenhum deles compartilhar nossa mesa – há muito
espaço aberto na sala de jantar. Esta é obviamente a primeira
incursão de Rocco em expandir nossa ‘intimidade’ em Kingmakers.

A temperatura na mesa cai vinte graus, e a conversa amigável


entre nós, garotas, se torna um silêncio pedregoso.

Eu odeio ter Rocco ao meu lado, mas estou ainda mais


consciente do desconforto de Cat quando ela se encolhe contra
mim, tentando recuar o máximo para que ela acidentalmente não
encoste no ombro do tamanho de um melão de Dax ou na coxa de
tronco de árvore esticando os limites de suas calças.

— Obrigado por guardar um lugar para mim — Rocco me diz.


Ele me dá um sorriso fino e arrepiante.
Não consigo descrever a antipatia que sinto cada vez que ele
invade meu espaço pessoal. Cada célula do meu corpo grita para
eu ficar longe dele. Há algo tão desconcertante na maneira como
ele se move – ou esperando muito quieto ou fazendo movimentos
rápidos e imprevisíveis que me fazem querer pular fora da minha
pele.

No entanto, ao contrário de Cat, eu me recuso a me afastar


dele. Eu fico perfeitamente imóvel, tentando não o deixar ver o
quanto sua proximidade me incomoda.

— Eu não guardei — eu respondo.

Rocco faz um som de desapontamento.

— Oh, Zoe — ele fala baixinho. — Achei que tivéssemos


discutido isso. Essa realmente é a atitude que você deseja assumir
ao começarmos mais um ano de escola?

Jasper apoia o cotovelo no ombro de Chay, seus dedos


esqueléticos balançando logo acima do seio dela. Chay não tem
nenhum problema em encará-lo, mesmo com os rostos a
centímetros de distância. Ela foi para um colégio interno com
Rocco e Jasper e está bem familiarizada com suas táticas.

— Bom café da manhã, vadia motoqueira — Jasper diz a ela.


— Eu sempre soube que você gostava de salsicha.

Chay pega uma das salsichas em seus dedos e dá uma


mordida feroz na ponta, mastigando ruidosamente no rosto de
Jasper.
— Eu só gosto de salsichas grandes e grossas — ela diz
friamente. — Pelo que ouvi, você mal conseguiu uma salsicha
Oscar Meyer27.

— Grande o suficiente para sufocar quando a enfiar na sua


garganta, sua puta de merda — Jasper sibila, seu nariz quase
tocando o dela.

— Porra, tente e veja o que acontece — Anna diz furiosamente


do outro lado de Chay.

A mão de Rocco se fecha como um beliscador na parte superior


da minha coxa, apertando com tanta força que as pontas dos
dedos cravam na minha carne.

Do outro lado de mim, posso sentir Cat ficar tensa como se


fosse sua perna em um aperto violento. Seus olhos são grandes e
redondos, e acho que ela está com medo até de respirar, presa no
meio desse conflito repentino que explodiu como um furacão.

— Essas são realmente os tipos de garotas com quem você


deveria se associar na escola? — Rocco me diz, olhando friamente
entre Anna e Chay. — Uma gótica incestuosa e a motoqueira da
escola? O que seu pai diria...

Seus dedos são tensos como aço. Eles parecem duros o


suficiente para perfurarem minha pele. É preciso cada grama de
força que possuo para me sentar rígida e ereta, enquanto minha
coxa está tremendo de dor.

27
É uma empresa americana de produção de carnes e frios, conhecida por seus produtos de cachorro-quente.
— Ele diria que não há nada em nosso contrato sobre quem
eu posso ter como amigo — eu sibilo para Rocco entre os dentes.
— Então, por favor, vá se foder e nos deixe em paz.

Os dedos de Rocco apertam com mais força, até que mal


consigo evitar um grito. Em seguida, ele libera minha perna
abruptamente.

— Você me decepcionou, Zoe — ele diz baixinho. — Falaremos


sobre isso mais tarde.

— Não temos mais nada para discutir — eu digo.

— Oh, meu amor — diz Rocco, estendendo sua mão magra e


pálida para colocar uma mecha de cabelo atrás da minha orelha.
— Isso não depende de você.

Ele se levanta da mesa, escorregando da cadeira com uma


graça enervante. Dax o segue.

Jasper demora mais um momento, ainda envolvido em seu


olhar silencioso para baixo com Chay. Ele estala os nós dos dedos
com uma mão, usando o polegar para puxar para baixo cada junta
estranhamente flexível. Chay estremece com o som perturbador.
Por fim, Jasper pisca lentamente, preguiçosamente, como se ele
nunca se importasse, e se afasta da mesa também.

Só depois que eles se foram é que posso soltar um suspiro


completo.

— Mais um segundo e eu enfiaria meu garfo naquele esqueleto


ambulante — Chay diz, segurando o garfo em seu punho.

Anna balança a cabeça, lenta e irritada.


— Eu odeio ficar sentada assim — diz ela. — Mas eu não quero
tornar as coisas mais difíceis para você, Zoe.

Ela sabe tão bem quanto eu que antagonizar Rocco pode ter
consequências de longo prazo para mim. Não é como se eu pudesse
irritá-lo para cancelar nosso noivado. Ele prospera com a minha
resistência – isso só o leva a um comportamento pior.

Anna não para de franzir a testa até que Leo Gallo se abaixe
ao lado dela, jogando o braço em volta de seus ombros. Anna e Leo
são primos, como Rocco observou sarcasticamente, mas é apenas
por casamento, não por sangue. Depois de um primeiro ano
tumultuado na escola juntos, os dois aparentemente decidiram ser
amantes, além de melhores amigos, e agora estão namorando
abertamente. Ou, pelo menos, tão aberto quanto você pode ser na
Kingmakers, onde tecnicamente não deveríamos namorar.

Assistir Anna com Leo é como ver uma flor se abrir sob a luz
do sol. Ela instantaneamente relaxa contra ele, o estresse deixando
seu corpo como um suspiro. Seu rosto se ilumina e ela fica duas
vezes mais falante.

Eu poderia ter ciúme de Leo e Anna. Leo é tudo o que Rocco


não é – bonito, caloroso, decente, genuinamente afetuoso..., mas é
impossível ver os dois juntos com qualquer coisa além de um senso
de correção. Eles claramente pertencem um ao outro, como sal e
pimenta, ou mar e areia. Além disso, nunca esperei ter algo assim
para mim.

Miles Griffin e Ozzy Duncan depositam suas bandejas


carregadas ao lado de Leo. Miles também é primo de Anna e Ozzy
é seu melhor amigo. Os dois são os maiores encrenqueiros da
escola. Ozzy adora brigar e Miles é o principal comprador de
contrabando para quem precisa.
Miles me deixa nitidamente desconfortável, já que meu
objetivo na vida sempre foi seguir as regras o mais cuidadosamente
possível, enquanto ele parece quebrar todas para se divertir.

Ele tem o privilégio desse tipo de comportamento, pois é filho


de um chefe da máfia irlandesa que se tornou prefeito de Chicago.
Imagino que ele tenha conseguido fazer praticamente tudo o que
gosta durante toda a vida.

Eu particularmente não gosto dele. Há algo de amoral na


maneira como ele vende qualquer coisa a qualquer pessoa – como
um traficante de armas, sem fazer perguntas.

Sem mencionar o fato de que ele aplica seu tipo particular de


sarcasmo como um canivete. Se ele vir à oportunidade de fazer
uma piada às suas custas, ele o cortará sem avisar.

Dito isso, há uma diferença marcante no clima à mesa com


esses três meninos como nossos companheiros nessa refeição, em
vez dos três que acabaram de sair. Chay e Ozzy trocam
alegremente bacon por ovo frito, e Leo diz: — Foi Rocco Prince que
acabou de sair? Ele é um filho da puta assustador, não é? Sem
ofensa, Zoe.

— Você só poderia me ofender elogiando-o — digo a ele.

— Então, considere-nos em bons termos permanentes — diz


Leo, sorrindo.

— Eu não sei — Miles diz, tomando um gole de suco de laranja.


— Ele tem seu charme. Se você já se perguntou como foi conhecer
Ted Bundy.

— Eu nunca imaginei isso — Cat diz calmamente.


— Puta merda! — Miles diz, olhando duas vezes
exageradamente e fingindo olhar por cima da mesa para ela. —
Tem uma criança aí! É o dia de ‘traga sua filha para a escola’, Zoe?

— Essa é minha irmã, Cat — falo friamente. — Ela é uma


caloura.

— Eles ficam menores a cada ano — diz Ozzy, balançando a


cabeça maravilhado.

O rosto de Cat está em chamas. Esta é uma piada que vai ficar
muito velha, muito rápido para ela.

— Tudo bem, parem com isso — eu digo — ela não tem que
ouvir isso.

— Está tudo bem — Cat murmura.

Ela já parece tão abatida, só de um encontro com Rocco e


algumas provocações leves de amigos. Meu estômago afunda mais
do que nunca. Eu realmente não sei como Cat vai sobreviver aqui.
É o primeiro dia de aula dela e as coisas estão prestes a ficar muito
piores. Ela tem Furtividade e Infiltração, Contrainformação e
Combate, e isso tudo antes do jantar.

Eu coloco meu braço em volta dela para dar-lhe um abraço de


lado.

— Você vai se sair bem hoje — digo a ela. — É melhor eu ir –


eu não quero chegar atrasada para o professor Graves ou ele vai
bater a porta na minha cara.

— Diga a ele que eu disse oi — Miles diz.


— Não, obrigada — eu respondo. — De todo o corpo discente,
você está no topo da lista daqueles que ele odeia, e acho que posso
estar naquela minoria que ele pode tolerar.

— Isso é porque você é uma boa menina, não é? — Miles fala,


aquele tom de insulto em sua voz. — Você nunca aborreceria
aquele pedaço de merda pomposo, não é? Você apenas continua
sorrindo e sendo educada, não importa o quão grande idiota ele
seja.

Eu olho no rosto de Miles, realmente olho para ele, o que é


difícil de fazer, porque seus olhos cinza-aço têm um jeito de se fixar
em você como se ele estivesse te deixando nua. É uma nudez da
alma, não do corpo. Miles Griffin pode olhar bem dentro de você e
ver todas as suas inseguranças, todas as suas falhas e fraquezas.
Você pode dizer que ele está contando todas, encontrando o ponto
mais vulnerável para acertá-lo em seguida.

— Nem todos nós somos rebeldes sem causa — digo a ele.

Miles mantém seus olhos fixos nos meus, seu rosto sério.

— Oh, tenho muitas causas — diz ele.

Eu me levanto da mesa. Quando eu faço isso, a carne


machucada da minha coxa dá uma contração dolorosa. Meu joelho
dobra sob mim e meu primeiro passo é mais como um mancar.

Eu me recupero rapidamente, me endireitando e fingindo que


nada aconteceu. Mas eu sei que Miles viu. Seus olhos se estreitam
por apenas um segundo antes de seu rosto se suavizar novamente
em plácida indiferença.

— Vejo vocês em Psicologia — digo a Anna e Chay.


Passo a manhã na aula de Finanças, uma aula quase toda
cheia de Accountants. No ano passado, nos concentramos no
banco internacional, este ano estamos nos dedicando à lavagem
de dinheiro doméstica.

O professor Graves está na frente da classe em sua postura


típica de palestrante, as mãos cruzadas atrás das costas, a barriga
projetada em nossa direção, esticando os botões de seu colete de
tweed. Ele teve sua barba prateada recém aparada para o início
das aulas, e ele parece especialmente satisfeito e pomposo.

O professor Graves é um dos professores menos populares da


escola, porque lhe falta o humor de alguém como o professor
Howell ou o estilo de aula fascinante do professor Thorn. Graves é
rigoroso e meticuloso. Ele odeia ser interrompido até mesmo por
perguntas válidas.

Por outro lado, nenhum professor de Kingmakers é menos do


que um especialista, então ainda há muito a ser aprendido em
suas aulas. Eu consegui ficar longe de sua lista negra. Portanto,
de modo geral, estou de bom humor ao fazer anotações sobre os
três estágios da lavagem de dinheiro.

— Posicionamento, Estratificação, Integração... — entoa o


professor Graves, andando de um lado para o outro na frente de
nossas fileiras organizadas de mesas. — O posicionamento vem
primeiro. Você pega seus ganhos ilegais e os apresenta a uma
instituição financeira legítima, talvez por meio de uma empresa de
fachada, smurfing28 ou lavagem baseada no comércio.

— O que você quer dizer com lavagem baseada no comércio?


— Coraline Paquet pergunta atrás de mim. Ela é uma garota
francesa esguia, de cabelos escuros, amiga da Bratva Paris.

O professor Graves dá um suspiro longo e irritado que


simultaneamente transmite seu ódio às digressões e seu desdém
por qualquer um de nós precisar de esclarecimento.

— A lavagem baseada no comércio — diz ele — como o nome


indica, explora os mecanismos do comércio transfronteiriço.
Faturamento a mais ou a menos, representação falsa de qualidade
e assim por diante.

Ele olha ao redor da sala como se desafiasse alguém a fazer


uma pergunta. Quando todos nós mantemos nossas bocas
fechadas, ele continua:

— Depois de introduzir os fundos no sistema bancário legal


em um ponto vulnerável, você passa para a estratificação ou
estruturação. É quando você corta os fundos em transações
menores para que possam ser transferidos para jurisdições mais
difíceis sem acionar os requisitos de relatórios.

Enquanto o professor Graves explica esse processo, sinto


alguém me observando. Viro minha cabeça e vejo Wade Dyer
recostado em sua cadeira com os braços cruzados sobre o peito
largo. Ele não se preocupa em fazer anotações. Acho que ele não
está ouvindo nada. Ele está apenas olhando para mim.

28
É uma técnica de lavagem de dinheiro que envolve a estruturação de grandes quantias em várias pequenas
transações. Dessa forma, os criminosos usam transações pequenas e cumulativas para permanecer abaixo dos
relatórios financeiros.
Wade é loiro e com corte regular, de aparência agradável, mas
isso não me engana nem por um segundo. Eu sei muito bem que
ele é de Hamburgo, assim como Rocco Prince. Eles são amigos.
Qualquer pessoa que goste da companhia de Rocco tem algo de
errado por dentro, não importa o quão benigno pareça por fora.

Wade sorri para mim, mostrando covinhas em ambos os lados


da boca.

Eu não sorrio de volta para ele. Encaro o professor Graves


enquanto ele fala sobre a Integração, a etapa final da lavagem de
dinheiro.

— Nesse ponto, os fundos se tornam elegíveis para uso — diz


o professor Graves. — Eles podem ser usados para comprar ativos
– bens ou propriedades – que não atrairão a atenção.

Eu olho de volta para Wade.

Ele ainda está me observando. Deliberadamente, ele me olha


de cima a baixo da cabeça aos pés. Não que haja algo para ver –
quando Daniela não está escolhendo minhas roupas, eu sempre
me oculto. Eu odeio ser alvo de olhares maliciosos. No momento,
estou usando uma camisa social de mangas compridas abotoada
até o pescoço, uma saia na altura do joelho e uma meia-calça preta
grossa. Wade não pode ver merda nenhuma, a menos que tenha
um fetiche por juntas.

Eu viro minha cabeça para frente, determinada a não olhar


mais para ele durante a aula.

Os minutos parecem passar lentamente sob a estranha


sensação de escrutínio. Posso ouvir Wade batendo ritmicamente
com a caneta no topo da mesa. Acho que ele está tentando chamar
minha atenção.
Tenho certeza de que Rocco disse a ele para me observar e
tornar isso óbvio.

Ele quer que eu saiba que ele tem amigos em todos os lugares
do campus, que não estou segura dele só porque não temos aulas
juntos.

Bem, eu não dou à mínima. Wade não tem nada a relatar,


exceto que enchi quatro páginas com anotações. Espero que Rocco
ache isso fascinante.

Mesmo assim, logo que a aula acaba, pego meu caderno e o


coloco na bolsa.

Desço correndo as escadas de The Keep, indo para minha


próxima aula no lado sul do campus. Tenho Artilharia com o
professor Knox, que leciona na velha forja anexa às oficinas onde
os habitantes originais do castelo costumavam fazer utensílios de
metal, ferraduras, armaduras, espadas e lanças.

Eu posso ouvir passos pesados seguindo atrás de mim. Uma


rápida olhada por cima do meu ombro mostra Wade Dyer
caminhando atrás de mim, as mãos enfiadas nos bolsos da calça.

Que porra ele está jogando?

Ele não está na minha aula de artilharia.

Eu debato se devo me virar e confrontá-lo ou apenas ignorá-


lo.

Ao passar pela grande torre octogonal que os Heirs homens


usam como dormitório, vejo algo ainda mais desagradável: Rocco
e Jasper descendo as escadas.
Antes que Rocco possa me localizar, eu viro para a direita
bruscamente, atingindo a lacuna entupida de árvores entre a torre
e uma plataforma elevada que pode ter sido usada para
treinamento com armas uma vez.

Passei muito tempo no meu primeiro ano aprendendo as


passagens secretas e os atalhos pelo campus para que eu pudesse
me esconder de Rocco Prince. Eu nunca alegaria conhecer todos,
mas encontrei uma porta escondida atrás dessas laranjeiras que
leva até as muralhas. De lá, posso atravessar o topo da parede e
descer no lado oposto da forja.

Abro a porta enferrujada e rangente, depois subo correndo a


escada estreita fechada na parede. É sempre frio como uma tumba
dentro das paredes de pedra da Kingmakers, mesmo nas partes
mais quentes do ano. Quando saio do topo das muralhas, a luz do
sol me cega e o vento me golpeia, duas vezes mais forte do que na
enseada protegida do castelo.

Eu desço a passagem longa e estreita que corre entre a


Octagon Tower nas minhas costas e a alta e estreita Library Tower
bem à minha frente. Gosto de estar aqui sozinha. É uma das
melhores vistas do castelo, sem nada além de mar aberto ao norte.
Paro por um momento para olhar por cima da borda das muralhas,
descendo a queda vertiginosa dos penhascos de calcário até a água
escura abaixo.

As ondas que atingem as falésias têm provavelmente 2,5


metros de altura, embora, dessa altura, mal se pareçam com rugas
espumosas na água.

Quando me endireito novamente, vejo duas figuras


bloqueando meu caminho: uma de cabelo escuro e uma de
vermelho.
Rocco e Jasper.

Porra.

Eu me viro para correr de volta por de onde vim, mas agora


Wade Dyer está parado ali, exibindo seu sorriso encantador com
covinhas.

Eles se aproximam de mim de ambos os lados, rápidos e


silenciosos como lobos.

Wade não estava me seguindo. Ele estava me pastoreando.


Exatamente para onde Rocco queria.

Eu poderia gritar, mas seria inútil. Ninguém iria me ouvir aqui.


Se eles ouvissem alguma coisa, soaria como uma gaivota gritando
sobre a água.

Jasper agarra o meu braço direito, Wade, o meu esquerdo.


Eles me prendem contra as muralhas, levantados e inclinados
para trás para que eu saiba que eles poderiam me derrubar se
quisessem, me fazendo despencar nas rochas irregulares abaixo.

Rocco está na minha frente, as mãos cruzadas atrás das


costas, assim como o professor Graves quando está prestes a
iniciar uma palestra. Ele parece mais feliz do que eu já o vi, seus
olhos brilhando com malícia.

— Oh, não — ele diz suavemente. — Em que situação difícil


você se meteu, Zoe. Você pensou que era um ratinho astuto, não
é? Sempre escapulindo por escadas e passagens. Você se esqueceu
de que estou nesta escola há mais tempo do que você.

Meu coração está batendo forte contra o meu peito em um


ritmo tão rápido que está pulando a cada três ou quatro batidas,
tropeçando e, em seguida, apertando com mais força do que nunca
para compensar.

Isso é muito, muito ruim.

Rocco se inclina para falar diretamente no meu ouvido. Com


meus braços presos, não posso empurrá-lo para longe. Eu não
posso me proteger. Ele poderia dar uma mordida na minha
bochecha e não há nada que eu possa fazer para impedi-lo.

— Você só vai embora quando eu deixar você ir — ele sussurra.


— Você é um pássaro com uma corrente no tornozelo. Você pode
voar em círculos o quanto quiser. Mas você está ligada a mim, Zoe.
Posso segurar você quando quiser. Em breve, muito em breve,
fecharei você em uma gaiola. Se você quiser comida, você comerá
da minha mão. Se você quiser água, vai beber de meus lábios. Se
você quiser descansar, vai dormir com a cabeça no meu colo. E
você nunca voará novamente.

Ele se afasta apenas o suficiente para me olhar nos olhos.

Olhar para aquelas pupilas pretas é como olhar para um poço.


Não há razão para elas. Sem piedade. Apenas um buraco negro
vazio.

Ele quer dizer cada palavra.

Quando eu me casar com ele, serei sua escrava. Ele nunca vai
se cansar de me atormentar. Até que eu esteja quebrada em mente,
corpo e alma.

— Nunca — eu digo baixinho.

— Nunca é muito tempo — diz Rocco. — Você já fez técnicas


de tortura, não é? Com o encantador professor Penmark? Você é
uma boa aluna, Zoe. Tenho certeza de que você estava ouvindo
quando ele disse que é possível resistir à tortura por um tempo.
Dias, semanas, meses... e no final... todo mundo quebra.

Jasper e Wade têm um aperto de ferro em meus pulsos. Eu


olho entre eles, tentando decidir se algum deles tem a menor
centelha de humanidade. O rosto de Jasper está frio e sem
expressão, seus olhos verdes tão pálidos e translúcidos como o
vidro do mar. Wade está muito mais animado, lutando para conter
o sorriso.

Eu me viro para Jasper.

— Solte-me — eu imploro.

Os olhos de Jasper encontram os meus e talvez por uma fração


de segundo ele considere isso, mas seus dedos nunca se soltam do
meu pulso e seus lábios permanecem firmemente fechados.

— Ele não vai te ajudar. — Rocco dá sua risada estranha que


é pouco mais que uma exalação. — Ninguém pode te ajudar, Zoe.

Ele tira uma faca do bolso e abre a lâmina. O aço brilha à luz
do sol – parece que está pegando fogo.

— Segure-a com firmeza — ele diz.

Os meninos seguram meus pulsos e braços, me empurrando


contra a pedra de forma que mal consigo me contorcer. Eu não
ousaria me debater. A faca está muito perto.

Rocco aponta a lâmina diretamente para meu olho direito. Ele


traz a faca cada vez mais perto, até que sua ponta pontuda
pressione a carne no canto do meu olho.
— Eu poderia cortar seu globo ocular da órbita — diz ele. —
Então você não poderia mais me dar aquele olhar insolente. Você
ainda pode fazer tudo que eu preciso com um olho.

Agora eu sinto os dedos de Jasper se contorcerem em volta do


meu pulso. Ele não está completamente confortável com isso,
provavelmente porque tem medo da Regra de Compensação.

— Você não pode — digo a Rocco, para lembrá-lo.

— Por quê? — Rocco indaga, ainda me cutucando com a faca.


— Por que eu não posso?

— Eles farão o mesmo com você — digo a ele.

Essas são as leis da Kingmakers. Se você machucar outro


aluno – quebrar seu braço, cortar sua mão, cortar sua garganta...
o mesmo será feito com você. É para evitar que uma guerra estoure
entre as famílias. É a velha lei. Olho por olho.

— Isso é verdade — Rocco diz suavemente. — Exceto... você


pertence a mim, Zoe. Seus pais já assinaram o contrato de
casamento. Então, qualquer coisa que eu fizer para você... é como
se eu tivesse feito isso comigo mesmo. Não há compensação.

Não sei se isso é verdade ou não.

Mas eu realmente não quero descobrir.

É claro que Rocco acredita que isso seja verdade.

— Implore-me para parar — diz ele. Ele começa a cravar a faca


na minha carne.

Meus lábios estão pressionados com força.


Eu não vou implorar. Eu nunca vou implorar.

A lâmina me atinge e sinto algo quente e úmido escorrer do


canto do olho, como lágrimas de sangue.

A faca parece uma marca quente. Posso sentir Rocco torcendo-


a, direcionando a ponta em direção ao meu globo ocular...

— Pare! — eu choro.

— Isso não é implorar — sussurra Rocco.

— Por favor, pare!

Agora estou chorando lágrimas de verdade. Eles correm pelos


dois lados do meu rosto, ardendo e queimando quando atingem o
corte do lado direito.

Rocco puxa sua faca. Meu sangue brilha na ponta.

— Assim está melhor — diz ele.

Ele abre a frente da minha camisa, não sendo muito cuidadoso


com a faca. Deixa cortes superficiais no meu peito e no topo dos
meus seios. Ele abre meu sutiã também, então meus seios se
espalham.

Agora, Jasper e Wade estão intensamente interessados.

— Puta merda — Wade diz. — Quem diria que ela tem um


corpo de estrela pornô sob as roupas de freira.

— Eu sabia — diz Rocco, em tom de profunda satisfação.

Três pares de olhos percorrem minha pele nua. Sempre tive


vergonha dos meus seios. Vergonha do meu corpo. Não porque eu
ache feio, mas pela maneira como me trai, chamando a atenção
dos homens que menos quero que me notem.

— Vá em frente — diz Rocco a Wade. — Toque eles.

Wade examina o rosto de Rocco, como se achasse que poderia


ser um truque. — Tem certeza?

— Estou lhe dando permissão — diz Rocco em sua voz suave


e sibilante.

Wade não se preocupa com minha permissão. Ele encara meus


seios. Toda inteligência deixou seu rosto. Suas bochechas estão
vermelhas e não há nada além de uma luxúria maçante e faminta
em seus olhos.

Ele segura meus seios com as duas mãos, levantando-os e, em


seguida, largando-os. Meu estômago está revirando. Nunca fui
mais humilhada.

— Puta que pariu — ele respira. — Você vai se divertir muito


com isso, Rocco.

Vendo que Rocco não vai impedi-lo, ele aperta meus seios com
força em suas mãos, em seguida, belisca os mamilos e me faz
ofegar.

Ele está assistindo Rocco o tempo todo. Ele não dá a mínima


para como eu reajo a isso.

— Jasper? — Rocco diz, oferecendo a seu outro amigo para ter


a sua vez.

Jasper considera, seu rosto impassível.


— Estou bem — ele fala por fim. Ele ainda está segurando meu
pulso direito, mas não com tanta força quanto antes. Não acho que
ele esteja gostando tanto quanto Wade. Não que ele esteja fazendo
algo para impedir.

— E agora? — Wade diz, sua língua saindo para umedecer o


lábio inferior.

— Agora Zoe paga a dívida dela — diz Rocco, olhando para


mim com a cabeça ligeiramente inclinada para o lado. Sob o sol
forte, seus olhos azuis com manchas pretas parecem vidraças
quebradas. — Na noite da nossa festa de noivado, sua madrasta
me prometeu algo, Zoe. Você sabe o que foi?

Tento engolir, mas minha boca está muito seca. O corte no


canto do meu olho ainda queima, e meus seios doem em todos os
lugares que Wade tocou. Eu balanço minha cabeça lentamente.

— Ela concordou que eu era livre para consumar o casamento


— diz Rocco, seus olhos fixos nos meus. — Sempre que eu quiser.

Com os lábios entorpecidos, digo: — Ainda não somos casados.

— Perto o suficiente — diz Rocco, e ele se move para fechar a


lacuna entre nós. Para me agarrar e cortar minha saia, não tenho
dúvidas.

Conforme Rocco avança, Jasper libera meu pulso, dando um


passo para trás para dar-lhe espaço. Wade não está me segurando
de jeito nenhum, tendo me soltado para que pudesse me apalpar
com as duas mãos.

Eu tenho um breve segundo de liberdade.


Rocco desce sobre mim como um vampiro, os dentes à mostra
em sua versão de sorriso.

Eu ajo por instinto, sem pensar ou planejar.

Tudo que sei é que preciso me afastar de Rocco. Eu nunca vou


rastejar por ele novamente, eu nunca vou implorar. Eu nunca vou
deixá-lo me tocar.

Ele diz que serei um pássaro enjaulado – bem, vou voar uma
última vez, pelo menos.

Naquele momento de loucura, eu me jogo sobre as muralhas.


MILES

Estou fazendo a longa e tediosa caminhada da biblioteca de


volta ao meu dormitório quando alguém diz: — Pare!

Isso é estranho, porque não há ninguém por perto para dizer


‘Pare’. Não há ninguém ao meu redor. Estamos no meio do segundo
período e todos os alunos estão acomodados com segurança em
suas aulas.

Eu deveria estar anotando um contrato de território com Ozzy.


Tínhamos todos os nossos livros jurídicos espalhados sobre a mesa
ao nosso redor, prontos para caçar cada consideração e cláusula,
até que Ozzy percebeu que esqueceu a porra do documento real
em nosso dormitório.

Eu me ofereci para recuperá-lo porque Ozzy é altamente


distraído. Se eu esperasse que ele fizesse isso, duvido que voltasse.
Eu o encontraria quatro horas depois, fumando atrás da casa de
gelo ou rondando o Solar para conversar com alguma garota.

E agora estou aqui distraído pelo som inexplicável de alguém


dizendo ‘Pare’.

Depois de olhar em todas as direções, não há outro lugar para


olhar a não ser para cima.
Vejo uma vibração de movimento no alto das muralhas – algo
escuro que pode ser um pedaço de tecido ou a asa de um pássaro.

Mas os pássaros não dizem ‘Pare’.

Então me vejo empurrando as laranjeiras, encontrando a


escada escondida que sobe pela parede.

Sou curioso pra caralho, sempre fui.

Na minha linha de trabalho, informação é moeda. Tenho que


saber tudo o que está acontecendo ao meu redor o tempo todo. O
que as pessoas precisam. Por que elas precisam disso. E como
posso conseguir isso para elas.

Eu subo até o topo da parede com um senso de curiosidade e


utilidade. Sou sempre útil, pelo preço certo.

Quando ergo a cabeça, encontro um quadro desagradável.

Uma menina, mantida no lugar por três meninos.

Não de bom grado.

É difícil ver deste ângulo, mas o mais próximo de mim deve ser
Wade Dyer. Ninguém mais tem aquela constituição de quarterback
da faculdade e aquele corte de cabelo de escoteiro. Ele muda
ligeiramente. Então eu vejo que o cara de cabelos escuros – o que
está segurando a faca – é Rocco Prince.

O que significa que a garota só pode ser Zoe Romero.

Eu chamaria Zoe mais de uma conhecida do que de uma


amiga. Ela é um pouco séria demais para o meu gosto. Não que eu
possa culpá-la – é difícil ficar alegre quando você está noiva de um
psicopata.

Um psicopata que aparentemente gosta de arrastá-la contra


uma parede e abrir sua camisa.

Eu vejo Rocco rasgar a camisa com quatro cortes rápidos de


sua faca. Então ele corta o sutiã dela também.

Meus músculos ficam tensos e os pelos dos meus braços se


arrepiam. Eu realmente não gosto dessa merda. Não há nada de
ousado em três caras se unindo contra uma garota para cortar
suas roupas. É fraco e covarde. Isso me enoja.

Por outro lado, não sou do tipo herói e Zoe não é minha
responsabilidade. Sim, ela é amiga de Anna. Mas Anna não pode
tirar Zoe da armadilha de urso de seu noivado, e nem eu. Quer
Rocco faça isso hoje, amanhã ou na noite de núpcias, é
praticamente inevitável.

Penso em me virar e descer as escadas novamente. Essa seria


a coisa mais inteligente a fazer. Mas algo me mantém no lugar,
paralisado, apesar da agitação nauseante no meu estômago.

Talvez seja a maneira como Zoe os encara, ficando o mais alta


que pode com os braços presos ao lado do corpo. Ignorando o
sangue escorrendo pelo lado do rosto.

Ela é durona, admito.

Aparentemente, com a permissão de Rocco, Wade começa a


apalpar os seios de Zoe.

Bem, isso é surpreendente. Parece que Rocco é pervertido e


fodido da cabeça. Se eu fosse me casar, o que não é o caso,
quebraria todos os ossos das mãos de Wade antes de deixá-lo tocar
minha noiva.

A parte racional do meu cérebro faz essa observação, enquanto


a parte irracional sente uma raiva crescente e fervente.

Zoe não é minha noiva. Ela não é ninguém para mim. Tudo o
que devo sentir é pena dela.

E ainda assim a raiva borbulha dentro de mim, quente e


insistente, me dizendo que eu deveria quebrar as mãos de Wade
de qualquer maneira, e quebrar seus braços para uma boa medida.

Eu o vejo tocar em Zoe e é como assistir um gorila manejando


a Vênus de Milo29. É obsceno um maldito animal como aquele tocar
o que é, objetivamente falando, um corpo perfeitamente esculpido.
Tenha um pouco de respeito, porra.

Wade solta Zoe e eu digo a mim mesmo para me acalmar. Isso


não tem nada a ver comigo.

Jasper Webb está do outro lado de Zoe, sem tocá-la, mas


definitivamente ajudando a segurá-la. Não consigo ver seu rosto
tão claramente quanto os outros três porque seus longos cabelos
estão caindo sobre os olhos. Ele não parece estar gostando tanto
disso quanto aquela merda do Wade.

Wade, Rocco e Jasper não são pessoas que quero como


inimigas. Cada um deles é relacionado, popular – no caso de Rocco,
principalmente por companheiros sádicos, mas o ponto ainda está
de pé – e de família poderosa. Não tenho medo de conflitos, mas
na minha própria família vi as consequências desastrosas ao

29
Estátua da Grécia Antiga feita por Alexandre de Antioquia.
começar uma rivalidade. O ciclo interminável de represálias pode
gotejar por gerações.

Eu deveria ir embora.

Acho que acabou de qualquer maneira. Wade parou de tatear


Zoe. Jasper não parece interessado. Eles provavelmente vão deixá-
la ir.

É o que penso até que Rocco se lança contra Zoe e ela se vira
e pula por cima da parede.

Eu vejo isso acontecer em câmera lenta. Ela se vira,


levantando o pé e plantando-o firmemente na reentrância entre as
ameias. Ela empurra com toda a força, com a intenção de
mergulhar de cisne do penhasco, despencar cerca de 150 metros
na água coberta de pedras abaixo.

Seu cabelo escuro flui atrás dela como uma bandeira, e há


uma expressão de abandono imprudente em seu rosto, uma
determinação selvagem que é instantânea e dolorosamente
familiar para mim.

Isso me lembra de minha mãe.

Minha mãe pularia de um penhasco se fosse necessário. E ela


provavelmente arrastaria Rocco com ela.

Estou em movimento antes mesmo de registrar o que está


acontecendo. Estou correndo sem pensar ou decidir.

Estou muito longe para ajudar Zoe, mas corro em sua direção,
estendendo a mão desesperadamente, embora saiba que é tarde
demais.
É Jasper quem a salva. Ele agarra o tornozelo dela com as
duas mãos. A força da queda de Zoe o puxa para frente, de modo
que ele quase cai sobre a parede também, até que eu o agarro pela
cintura e o arrasto para trás.

Agora somos uma massa confusa de mãos e braços, Wade


Dyer se junta a nós, agarrando a outra perna de Zoe e ajudando a
puxá-la de volta sobre as muralhas.

Rocco, porém. Ele fica olhando.

Zoe está mole e pálida, devido ao choque ou porque bateu com


a cabeça na parede. O sangue escorre de seu nariz, bem como do
lado direito de seu rosto. Ela não consegue ficar de pé – suas
pernas desabam embaixo dela. Tento segurá-la, ao mesmo tempo
que puxo sua camisa fechada na frente.

Jasper dá um passo para trás, parecendo pálido e doente


também.

Os olhos de Wade disparam entre mim e Rocco enquanto ele


espera por instruções.

Rocco dá um passo à frente, levantando suas mãos finas e


brancas como se pretendesse tirar Zoe de mim.

Eu aperto meus braços ao redor de seus ombros e a puxo de


volta fora de alcance.

— Não — eu rosno. — Não toque nela.

— O que você quer dizer? — Rocco diz, sorrindo para mim. —


Essa é a minha noiva, você sabe.
Enquanto o resto de nós está suando e respirando com
dificuldade, Rocco parece tão fresco quanto uma margarida. Você
nunca saberia que ele testemunhou um quase suicídio, muito
menos levou uma garota a fazer isso.

— Não toque nela, porra — eu digo novamente, mantendo


meus olhos fixos nos dele para que ele saiba que eu quero dizer
isso. — Vou levá-la para a enfermaria.

O sorriso de Rocco está sumindo, sua expressão endurecendo


como concreto. Seus olhos disparam entre mim e a garota
atordoada e ensanguentada pendurada contra mim.

Ele parece uma criança que teve seu pirulito roubado.

— Tenha cuidado, Miles — ele diz.

Ele não está falando sobre Zoe. Ele está me avisando para não
foder com ele.

Eu não me importo. No momento, tudo em que consigo pensar


é na mecha de cabelo escuro de Zoe pendurada no meu ombro e
seu coração batendo tão forte contra meu braço que tenho medo
de explodir.

Eu começo a me afastar lentamente. Estou levando Zoe de


volta pela porta mais próxima da Library Tower, porque é perto da
enfermaria e não acho que Jasper vá me impedir, enquanto Wade
está bloqueando o caminho para as escadas do laranjal, com os
braços cruzados sobre o peito... Wade parece quase tão irritado
quanto Rocco, seu belo rosto carrancudo e ansioso por uma briga.

O espaço entre nós parece um painel frágil de gelo.

O menor toque irá quebrá-lo.


Eu continuo recuando, passo a passo.

Rocco fica exatamente onde está.

Ele não está tentando me impedir. Mas posso dizer pela


expressão em seu rosto que ele está muito, muito zangado.

A enfermaria é um prédio longo e baixo perto da biblioteca. Dr.


Cross tem seu apartamento em uma extremidade e, em seguida,
há uma área aberta com várias camas, uma pia industrial e
armários com fachada de vidro cheios de suprimentos médicos.

No momento, o único outro paciente é um estudante magrelo


do segundo ano que aparentemente torceu o pulso na aula de
combate. Dr. Cross acabou de embrulhar o pulso. Quando ele me
vê carregando Zoe pela porta, ele sem a menor cerimônia diz ao
garoto para voltar para a aula.

— Não posso descansar um pouco? — o garoto diz, parecendo


não muito ansioso para deixar a paz e o sossego da enfermaria
imaculada.

— Descanse em seu dormitório — Dr. Cross resmunga para


ele. — Isto não é uma sala de estar.

— Posso conseguir algum tipo de atestado médico? — o garoto


indaga. — Como vou escrever artigos? Sou canhoto.
Ele ergue o braço esquerdo enfaixado desajeitadamente, como
se tivesse se transformado em madeira.

— É bem possível se tornar ambidestro com a prática — Dr.


Cross diz antipático. — Agora saia.

O garoto sai correndo da cama, carrancudo.

— O que está acontecendo aqui? — Dr. Cross franze a testa,


olhando para Zoe com o rosto ensanguentado e a camisa rasgada.

Tirei meu colete e a cobri o melhor que pude, mas ainda é óbvio
que a blusa por baixo foi cortada em tiras.

— Ela caiu nas muralhas — digo a ele. — Acho que ela bateu
com a cabeça.

Não vou contar ao Dr. Cross o que realmente aconteceu.


Depende de Zoe se ela deseja fazer uma reclamação formal ao
Chancellor30.

Em resposta às regras rígidas da Kingmakers, os alunos


mantêm um código de silêncio. Não delatamos uns aos outros,
exceto nas circunstâncias mais extremas.

Dr. Cross me encara com desconfiança. Sem dúvida, ele ouviu


mil desculpas de alunos feridos. A minha é especialmente fraca.

— Deite-a aqui — diz ele, apontando para uma cama limpa. —


Você pode deixá-la comigo.

Isso é o que planejei fazer. Eu ia deixá-la e voltar para a


biblioteca. Mas enquanto coloco Zoe cuidadosamente no colchão

30
Reitor.
estreito e apoio sua cabeça no travesseiro, encontro-me não
querendo abandoná-la tão rapidamente.

— Eu não acho que ela deveria ficar sozinha — eu digo.

— Ela não está sozinha. — Dr. Cross me olha sob as


sobrancelhas cinzentas e desgrenhadas, grossas como lagartas.

— Sem ofensa, doutor — digo, dando-lhe uma piscadela, —


Mas você gostaria de acordar sozinho? Eu acho que ela deveria ver
um rosto amigável.

Dr. Cross bufa.

— Mantenha-se fora do caminho e você pode ficar — diz ele,


lavando novamente as mãos nodosas na pia.

Com surpreendente gentileza, ele lava o sangue do rosto de


Zoe e examina o corte próximo ao olho dela.

— Ferimento de punção — ele murmura, como se para si


mesmo. — Limpo, pelo menos.

Aparentemente decidindo que não são necessários pontos, ele


desinfeta o corte e o cobre com esparadrapo.

Ele apalpa cuidadosamente todo o crânio dela, como se fosse


um frenologista. Encontrando um caroço acima de sua orelha
direita, ele verifica suas pupilas em busca de sinais de concussão.

Nesse ponto, Zoe está se recuperando. Ela ainda parece


atordoada, mas ela não chora ou tenta falar. Ela fica quieta até
que o Dr. Cross está satisfeito.
— Aqui — ele fala, tirando uma garrafa de suco de maçã da
geladeira e me entregando junto com um canudo. — Dê isso a ela
se ela quiser. — Em seguida, para Zoe ele diz: — Este delinquente
é um amigo seu?

Zoe vira seu olhar para mim, ainda nebuloso e sem foco.
Depois de um longo momento, ela acena com a cabeça.

— Você pode ficar por dez minutos — Dr. Cross me diz. —


Então saia daqui para que ela possa tirar uma soneca.

Ele se arrasta de volta para seu apartamento, fechando a porta


atrás de si.

Sento-me ao lado da cama de Zoe, sentindo-me estranho e


deslocado. Nunca estivemos sozinhos em circunstâncias normais,
muito menos em um momento como este.

Nem tenho certeza de por que fiquei. Para checá-la? Para


confortá-la? Ambas as ideias parecem ridículas.

Zoe me observa em silêncio. A nitidez voltou ao seu olhar. Ela


tem olhos verdes, incomuns para alguém com cabelo tão preto. Ela
tem muitas características incomuns. Sobrancelhas e cílios tão
escuros que pareciam pintados com tinta. Um nariz reto e
imperioso, como o de uma imperatriz. Uma boca larga e carnuda.
Há uma elegância em seu rosto que a faz parecer mais velha do
que sua idade, mas também atemporal e eterna.

— Você não precisa ficar — ela diz.

Sua voz é clara e firme. Sem tremores, sem soluços.

— Eu não tenho certeza sobre isso — eu respondo.


Ela franze a testa ligeiramente, uma única linha vertical
aparecendo entre suas sobrancelhas escuras.

— O que isso significa?

— Eu vi você pular — digo a ela. — Acho que estou preocupado


que você faça algo assim de novo.

Aqueles olhos verdes ficam turvos mais uma vez, desta vez
com raiva em vez de confusão.

— Não é da sua conta se eu faço ou não — ela diz friamente.

— Talvez não. — Eu encolho os ombros. — Ainda assim, eu


me sinto preocupado.

— Ah — ela diz, zombeteiramente. — Eu sei o quanto seus


investimentos significam para você. Mas temo que este não valha
a pena.

Ela me surpreendeu com isso. Eu rio um pouco. — O que você


sabe sobre meus investimentos?

— É por isso que você está sempre passando pequenos pacotes


de um lado para outro por todo o campus, não é? — Zoe fala, firme
e sem piscar. — Você não trabalha para nada – eu vi suas notas.
Você deve estar economizando para alguma coisa.

Não sei se já fiquei sem palavras antes.

— Zoe... — falo, um sorriso puxando meus lábios. — Você está


me perseguindo?

Agora ela não pode deixar de sorrir de volta só um pouco,


embora ela não queira.
— Foi você quem me seguiu no muro — diz ela. — O que você
estava fazendo lá?

— Só de passagem.

— Não vou agradecer — ela me informa.

— Eu realmente não mereceria – foi Jasper quem te pegou.

Seu lábio superior se forma em um rosnado, mostrando dentes


brancos e afiados. Ela balança a cabeça com impaciência.

— Eu também não vou agradecê-lo — ela diz.

Há um silêncio desconfortável enquanto o peso não dito sobre


Rocco Prince paira sobre nós.

— Sinto muito — eu digo.

É simultaneamente uma declaração patética e sem sentido,


mas também a única coisa que posso dizer a ela. A única maneira
de expressar minha simpatia por sua trágica situação.

— Não tenha pena de mim — ela diz.

Novamente eu vejo aquele fogo em seus olhos. Aquela centelha


de rebelião que a levou a pular de um penhasco em vez de deixar
Rocco colocar as mãos nela.

— Sabe — digo — sempre pensei que você fosse o tipo de garota


Mozart. Aquilo foi metal pra caralho.

— Isso te impressiona? — Zoe levanta uma sobrancelha preta


como fuligem. — Pular de um penhasco?
— Quero dizer... sim. Supondo que você sobreviva. — Eu
engulo em seco, olhando para ela de perto. — Você vai sobreviver,
não é, Zoe?

Ela fica em silêncio por um momento, então ela solta um


suspiro.

— Sim — ela diz. — Por enquanto.

É a coisa mais próxima de uma promessa que vou arrancar


dela.

E, além disso, quem sou eu para fazê-la jurar que não vai
tentar se matar de novo?

Eu poderia fazer o mesmo se tivesse que me casar com aquele


cadáver ambulante Rocco Prince.
CAT

Minhas aulas são um pesadelo.

Cada uma é pior do que a anterior.

Os professores são duros e impacientes. Eles esperam que


saibamos coisas que eu nunca imaginei, muito menos estudei em
detalhes.

Os alunos que vêm para a Kingmakers são aqueles criados


para a vida da máfia. Eles têm brigado, atirado e planejado desde
que saíram das fraldas. Eles aprenderam a história de seus
ancestrais nos joelhos de seus avós. Eles sempre souberam que
papel assumiriam em sua organização.

Eu sou a única tirada da escola de arte e jogada na cova dos


leões, ignorante como um bebê recém-nascido.

Eu sei que isso é parcialmente minha culpa. Zoe prestou


atenção ao que nosso pai estava fazendo. Eu preferia ficar no meu
quarto, pintando e desenhando, ou às vezes me esgueirando até a
cozinha para ajudar nossa cozinheira a fazer paella e crema
catalana.

Eu amava o nosso pessoal na casa. Nossa cozinheira Celia era


rude, mas uma professora paciente, explicando como adicionar
açafrão à paella para dar cor e sabor ao arroz. Nossa empregada
Lúcia era jovem e gentil. Ela costumava me roubar revistas para
que eu pudesse ver fotos de vestidos de festa, até que Daniela
pegou nosso pai olhando para Lúcia várias vezes e a despediu na
hora.

Tenho pavor de todos os adultos da Kingmakers, desde a


equipe do terreno corpulento, o pessoal da cozinha tatuado até os
professores com sua riqueza de conhecimento sinistro.

O pior de tudo é o Chancellor Luther Hugo. Eu o vi quando ele


nos chamou ao Grand Hall para anunciar os termos do Quartum
Bellum deste ano. Ele estava diante da lareira crepitante, as
chamas selvagens atrás de sua figura escura e imponente fazendo-
o parecer o próprio diabo erguido do chão.

Ele nos lembrou de nosso dever para com nossas famílias, o


que está em jogo em nossas futuras carreiras no mundo do crime
e as terríveis consequências se ousássemos dar um passo fora da
linha na Kingmakers.

Eu poderia jurar que seus olhos negros como carvão me


fitaram o tempo todo. Seu rosto parecia enrugado como couro
velho, mas aqueles olhos eram eternamente brilhantes.

— Lembrem-se — disse ele, olhando para minha alma. — Cada


escolha coloca a mesa. Mais cedo ou mais tarde, todos nós nos
sentamos para um banquete de consequências.

Eu acho que se ele me mandasse pular no fogo atrás dele, eu


poderia ter feito isso. Isso é o quanto aquele homem me apavora.

A informação que se seguiu não foi mais animadora.


O Chancellor explicou que o Quartum Bellum, ou Guerra dos
Quatro, é uma batalha anual entre calouros, estudantes do
segundo ano, do terceiro e veteranos. É um torneio de eliminação
com três fases distintas.

Cada aluno participa – obrigatório, sem desculpas.

Eu já estava me perguntando se poderia usar as novas


informações adquiridas em minha aula de Química para me dar
um caso conveniente de intoxicação alimentar.

Esperei até que o Chancellor nos dispensasse antes de gritar


para Perry: — Como eles esperam que possamos competir contra
os veteranos? Ou os alunos do terceiro ano ou do segundo, por
falar nisso.

— Eles não esperam. — Perry encolheu os ombros. — Você só


deveria tentar. Ninguém acha que vamos vencer.

— Não tenha tanta certeza — Lyman Landry disse a ela. — Os


calouros venceram no ano passado, pela primeira vez.

— Como? — Perry exigiu.

— Leo Gallo — disse Lyman, seu rosto largo e sério brilhando


de admiração. — Ele era o capitão. Ele é um campeão do caralho.
Um deus, até. Ele vai ganhar novamente este ano, você verá.

— Um deus — Perry bufou, revirando os olhos.

Eu podia sentir que estava corando, porque conheci Leo Gallo


no café da manhã, minha primeira manhã na Kingmakers. Ele
parecia um deus. Nunca vi alguém tão bonito – alto, bronzeado,
com olhos cor de âmbar e um sorriso mais brilhante que o sol.
Claro que eu nunca ousaria ter uma queda por ele. Ele está
namorando Anna Wilk, uma deusa da lua por seus próprios
méritos, tão sombria e misteriosa como Leo é brilhante e
ofuscante.

Ele foi bom para mim. Anna também.

Eu gostaria de poder dizer o mesmo dos meus colegas. Não fiz


um único amigo, além de Perry, que quase não divide aulas
comigo.

A maioria das minhas aulas é com Spies e Enforcers. Não sei


o que é pior. Os Spies são implacáveis, sarcásticos e desdenhosos.
Os Enforcers são em sua maioria cabeças quentes e valentões,
como atletas que não querem apenas vencer, eles querem destruir
você, porra.

Odeio a aula de combate acima de tudo. Assim que


enfrentamos nossos oponentes, posso ver a mudança ocorrendo
em meus colegas de classe. Suas pupilas se dilatam, eles se
agacham, sua respiração fica mais lenta. É assim que um predador
se prepara para atacar.

Meu corpo prefere voar em vez de lutar. Minha frequência


cardíaca quadruplica em velocidade e meus músculos gritam
comigo para CORRER, CORRER, CORRER, então tudo que posso
fazer é levantar minhas mãos em sinal de rendição, me abaixar e
me encolher.

Já fui nocauteada duas vezes.

A primeira vez foi por um Enforcer corpulento que parecia


totalmente perplexo quando acordei olhando para ele do tapete.
— Você nem mesmo tentou bloquear meu soco — disse ele,
balançando a cabeça em confusão.

A segunda vez aconteceu hoje, cortesia da minha própria


colega de quarto Rakel. Parecia muito mais pessoal. Sempre que
ela e eu ficamos sem parceiros, posso ver sua fúria fervente de que
alguém possa pensar que ela é tão indesejável quanto eu. Ela me
deu uma chave de braço em cinco segundos e ignorou minha mão
batendo desesperadamente em seu ombro, implorando para que
ela me soltasse.

Acordei com o rosto para baixo nas esteiras, sangue jorrando


do meu nariz.

— Uma sinalização significa que você para — o professor


Howell a informa severamente. Ele é apenas alguns centímetros
mais alto do que eu, mas é magro, em forma e mais rápido do que
um coelho. Quando está de bom humor, é um dos professores mais
agradáveis. Mas quando você o cruza, ele o encara com um olhar
negro que pode coalhar o leite.

— Não a senti batendo — diz Rakel, insolente e impenitente.


Mesmo entre os Spies, Rakel tem uma carranca perpétua que a
torna pouco mais popular do que eu.

— Você sentirá as consequências se tentar de novo — diz o


professor, afiado como um bisturi. — Você vê aquilo ali? — Ele
sacode a cabeça em direção a um cilindro de metal alto no canto
do ginásio. Parece uma Dama de Ferro31 – lisa e sem traços
característicos no exterior, com apenas uma fenda horizontal
envidraçada no nível dos olhos.

31
Instrumento de tortura e execução.
— Sim — Rakel diz lentamente.

— É uma câmara de desoxigenação. Útil para treinar para


grandes altitudes ou para aumentar a resistência, forçando o
corpo a produzir glóbulos vermelhos em excesso. Posso mudar a
porcentagem de oxigênio para qualquer nível que eu quiser. Você
ignora a sinalização de novo, e eu a colocarei lá por meia hora.
Você não vai sufocar. Mas você vai se sentir como se estivesse se
afogando o tempo todo. Você me entende?

— Sim — Rakel diz novamente.

O professor Howell se afasta.

Rakel me encara mais uma vez, puro ódio em seus olhos.


Nenhum indício de remorso. Ela parece tão assassina que quase
quero me desculpar por colocá-la em apuros. Mas eu reprimo esse
pensamento.

— Enfrentem-se novamente — comanda o professor Howell.

Foda-me. Eu esperava que pelo menos trocássemos de


parceiros. Preciso que Rakel esfrie um pouco antes de lutarmos
novamente. Tipo, talvez pelos próximos cem anos.

O professor Howell nos disse para manter nossas mãos


levantadas para proteger nossos rostos e manter nossos núcleos
bem firmes. Eu tento fazer isso, mas assim que alguém vem para
cima de mim, eu me enrolo em uma bolinha.

— Preparar... — o professor diz.

Não. Eu não estou preparada. Eu nunca estarei preparada.

— Vai!
Rakel vem para cima de mim como um morcego saindo do
inferno, mergulhando, me acertando com um soco no olho
esquerdo que joga minha cabeça para trás e faz meu cérebro já
machucado chacoalhar em meu crânio.

Ela balança novamente e eu realmente consigo me esquivar,


por pouco. Estou tão surpresa que não vejo seu próximo golpe
vindo, nem um pouco. Ela me bate na orelha direita e todo o
ginásio gira como um carrossel. Ela vem para um golpe final, o
punho já levantado.

Antes que eu possa pensar, antes que eu possa considerar que


ideia monumentalmente ruim é essa, meu punho acerta o rosto
dela.

Eu bati na sua boca. Seus lábios parecem terrivelmente moles


e móveis sob meus dedos. Meu punho desliza em seus dentes, e
um desses dentes me corta. Eu pulo para longe dela novamente,
dizendo: — Desculpe. Oh, meu Deus, você está sangrando!

Rakel toca seu lábio inferior, que já está começando a inchar.


Ela olha para o sangue vermelho brilhante nas pontas dos dedos
como se nunca tivesse visto nada parecido.

— Tempo! — o professor Howell grita.

Eu não estou olhando para ele. Estou observando Rakel, na


ponta dos pés, porque se ela tentar me estrangular, vou
simplesmente me virar e fugir.

Estranhamente, inexplicavelmente, Rakel não parece mais tão


zangada. Ela limpa os dedos no short de ginástica cinza, deixando
uma mancha escura.
Quando nossos olhos se encontram, ela não está sorrindo,
mas também não está carrancuda.

— Nada mal — ela fala.

Vou para o refeitório para almoçar no horário normal, mas não


vejo Zoe em lugar nenhum.

Eu fico ao lado da mesa de servir, esticando o pescoço para


encontrá-la, até que um aluno do terceiro ano bate em mim e diz:
— Pegue sua comida ou saia do caminho.

Apressadamente, encho um prato com costeletas de porco,


purê de maçã e cenouras.

Não tenho nenhuma reclamação sobre a comida na


Kingmakers. A maior parte vem das fazendas e pomares locais da
ilha, então é tudo fresco e bem-preparado. Eu só queria não ter
que comer tudo sozinha. Zoe geralmente me encontra aqui.

Eu endireito meus ombros e digo a mim mesma para parar de


ser uma porra de uma maricas. Zoe comeu todas as refeições
comigo até agora – não é justo esperar que ela cuide de mim.

Eu olho ao redor da sala de jantar, desejando ter prestado


mais atenção onde todos estão sentados.
Vejo uma mesa de veteranos, tão musculosos e crescidos que
mal cabe um ao lado do outro nos estreitos bancos corridos.
Definitivamente não vou a lugar nenhum perto deles.

Ao lado dos veteranos está um bando de Heirs. Eu reconheço


alguns deles do meu ano e alguns que são mais velhos. Um é
aquele amigo de Miles Griffin que conheci no meu primeiro dia – o
amigo com o moicano e as tatuagens e piercings por todo o corpo.
Acho que o nome dele é Ozzy. Mas eu só o encontrei uma vez, então
não me sinto confortável me sentando ao lado dele.

Vejo um grupo de estudantes franceses, a maioria louros.


Cada um deles parece ter saído de algum editorial de alta moda.
Eu nunca fui capaz de entender como alguns dos alunos da
Kingmakers fazem seus uniformes parecerem tão estilosos.

Uma das garotas está usando uma blusa branca de corte


lindo, com a gola saltada e uma corrente de ouro deslumbrante no
decote. Seu cabelo ondulado com listras de sol cai sobre um ombro
como uma sereia, e sua pele orvalhada parece nunca ter sido
tocada por mãos humanas.

O menino à sua esquerda se parece com ela – cabelo comprido


de surfista, maçãs do rosto salientes e lábios carnudos. Ele tem
um brinco em forma de cruz pendurado em uma orelha e está
mexendo na comida com uma expressão de nojo.

Os estudantes franceses ocupam apenas metade da mesa – o


outro lado está vazio. Eu reconheço a garota sentada na ponta, ao
lado dos assentos vazios. Ela é a ruiva que conheci na viagem de
carroça até a escola. O nome dela é Sadie Grant, tenho quase
certeza.

Eu me aproximo com cautela, pronta para ser rejeitada. Sadie


me dá um sorriso rápido, dizendo: — É Cat, certo?
— Sim — eu respondo aliviada. Eu deslizo para o banco vazio,
sentindo como se tivesse realizado algo importante ao encontrar
um lugar para me sentar.

— Qual o seu nome? — o garoto loiro arrogante zomba. —


Chatte?

— Cat — a garota glamorosa o corrige. — Provavelmente é


abreviação de outra coisa. Não é, Cat?

Ela sorri para mim, mostrando lindos dentes brancos


perolados.

— Sim — eu digo. — Abreviação de Catalina.

— Você é da Espanha? — ela pergunta.

— Barcelona — eu aceno.

— Somos de Paris — ela me diz. — Eu sou Claire Turgenev.


Esse é o Jules. — Ela acena com a cabeça em direção ao menino
atualmente me olhando como um guaxinim fuçando em sua mesa.

— Vocês são todos de Paris? — eu pergunto.

— Majoritariamente. Não é engraçado como nós nos


agrupamos na Kingmakers? Às vezes por divisão, às vezes por
ano... e então alguns de nós percorremos todo o mundo apenas
para nos sentar com as pessoas que conhecíamos em casa. — Ela
ri de si mesma de uma maneira que imediatamente desarma.

— Eu me sentaria com outra pessoa, se houvesse alguém com


quem valesse a pena me sentar — Jules diz, seus lábios carnudos
se curvando em um sorriso de escárnio.
— Você é um esnobe — Claire diz a ele. — Eu encontro pessoas
de quem gosto todos os dias aqui. Eu sou apenas uma criatura de
hábitos.

Embora as mãos de Claire estejam limpas e as unhas bem


cuidadas, posso ver uma sugestão de manchas escuras nas
cutículas e nas fendas ao redor dos nós dos dedos. O mesmo
acontece com minhas mãos quando desenho com carvão ou tinta.
Eu me pergunto se ela desenha. Sou muito tímida para perguntar
a ela.

— Qual é o seu sobrenome? — Jules exige de mim. Eu posso


dizer pelo seu tom que ele vai julgar minha resposta. Eu não ficaria
surpresa se ele me dissesse para levar minha bandeja para outro
lugar se minha resposta não atender aos seus padrões.

— Romero — eu respondo.

Ele considera isso. — Você é irmã de Zoe?

Eu concordo.

— Ela é uma Heir — ele diz a Claire. — Zoe é, quero dizer.

— Zoe Romero... — Claire pensa, tentando lembrar se ela


conhece minha irmã. — Oh, ela é a linda alta com o cabelo escuro
e os olhos verdes. Aquela que está sempre carregando uma
braçada de livros.

— Sim — eu digo, satisfeita com a conexão. Sempre fico


orgulhosa quando alguém conhece Zoe – orgulho de estar
associada a ela.

— Que desperdício — Claire suspira.


— O que você quer dizer? — eu indago, os cabelos arrepiando
na minha nuca. Por mais que eu goste de Claire Turgenev, não vou
deixar ninguém criticar minha irmã.

— Sem ofensa para nenhuma de vocês — Claire diz, em sua


voz clara e encantadora. — É uma pena que uma garota linda como
aquela tenha que se casar com Rocco Prince. Tenho certeza de que
você concorda que ele é repugnante.

Ela olha para o outro lado da sala de jantar para a mesa


distante onde Rocco está sentado com seu círculo de bandidos,
incluindo os dois que invadiram meu café da manhã com Zoe.

Rocco irradia uma energia escura. Simultaneamente, separa-


o dos meninos ao seu redor, mas prende-os ao seu lado como ímãs.
Nenhuma garota se senta à mesa dele. Na verdade, ninguém que
não faça parte de sua gangue se senta em qualquer uma das mesas
ao redor, criando um halo vazio ao seu redor.

— O que você sabe sobre Rocco? — pergunto a Claire em voz


baixa.

Jules lança um olhar penetrante para ela, como se achasse


que ela não deveria responder. Sadie da mesma forma volta sua
atenção para a comida, desligando-se da conversa.

Mas Claire responde, sem hesitar: — Eu sei o que todos


sabem. Que ele não é um criminoso... ele é um assassino.

— O que você quer dizer? — falo, tentando engolir.

— Alguns de nós matamos quando precisamos — diz Claire,


com sua voz calma e hipnótica. — E a maioria de nós vai matar no
futuro. Muito poucos mafiosos chegam ao túmulo com mãos
brancas como lírios. Mas apenas alguns de nós gostamos.
Fico olhando para Rocco do outro lado da sala de jantar, seu
rosto pálido e seus olhos brilhantes como a febre. Ele também não
está tocando na comida. Não sei se já o vi comer. Ele parece preferir
usar o tempo para observar todos ao seu redor.

Como se pudesse sentir o escrutínio, ele lentamente levanta o


olhar para encontrar o meu.

Eu abaixo meus olhos de uma vez, o rosto em chamas.

— Ele foi para a escola por um ano com minha amiga Emilia
Browning — Claire diz, pegando seu copo de água e tomando um
gole. — Ele tinha um grupo de amigos parecido com o que ele tem
aqui. Les tyrans. — Ela procura por palavras. — Valentões. Idiotas.
Eles tinham um menino que os seguia. Uma espécie de parasita.
Eles o usaram como menino de recados – fizeram com que ele
comprasse cigarros para eles, escrevesse seus trabalhos, esse tipo
de coisa. Então, um dia, o zelador encontrou o corpo do menino
jogado no rio atrás da escola. Ele foi torturado e espancado por
horas, disse a polícia. Cigarros apagados em seu corpo. Tímpano
perfurado a lápis. Dentes arrancados.

Sinto que vou vomitar com cada palavra que Claire fala, o peso
se instala em meus ombros. Cada sílaba é outro tijolo adicionado
à pilha.

— Emília disse que Rocco e seus amigos se gabavam disso.


Não havia razão, nenhuma provocação. O menino pensou que eles
eram seus amigos. Houve uma investigação, mas o menino não era
ninguém importante, e Rocco e sua camarilha vinham de famílias
poderosas. Rocco teve que mudar de escola, porém, porque era tão
feio que seus pais não queriam que falassem por muito tempo.
Jules Turgenev faz um som sibilante de nojo. — Selvagens —
diz ele, com um movimento da cabeça em direção à mesa de Rocco.
— Não gosto. Nenhum sentimento.

Eu me sinto muito estúpida por não reconhecer o que estava


acontecendo bem na minha cara.

Desde o momento em que nosso pai assinou o contrato de


casamento, Zoe está afundando cada vez mais na depressão. Eu
sabia que ela não gostava de Rocco. Mas eu não tinha ideia para o
que ela estava realmente sendo forçada.

Tive uma dica disso naquela manhã, no café da manhã,


quando o vi agarrar sua coxa. Ele sempre foi educado, embora um
pouco assustador. Essa foi a primeira vez que vi violência entre
eles.

Não é o fato de ele a ter agarrado que me perturba. É como ele


fazia: embaixo da mesa, secretamente, para ninguém ver. A
maneira como sua expressão nunca mudou por um instante. Não
havia nenhum indício de raiva em sua voz. Ele estava calmo e
controlado enquanto machucava minha irmã.

De repente, a ausência de Zoe ganha um novo sabor.

Eu pulo da mesa, minha bandeja de comida intocada.

— Eu tenho que ir — eu murmuro.

— Sinto muito — Claire diz, colocando a mão no meu braço.


— Eu não queria te chatear. Eu pensei que você deveria saber. Se
seus pais não sabem...

— Obrigada — eu digo entorpecida. — Eu agradeço.


Não sei como dizer a ela que nosso pai não se importaria nem
mesmo se eu contasse a ele essa mesma história, mesmo que ele
acreditasse.

Eu fui uma idiota.

Zoe sempre soube sobre Rocco Prince. Ela sabia que ele era
um psicopata desenvolvido. Ela simplesmente não me contou.
Para me proteger – porque sou muito fraca para lidar com isso.

Saio correndo do refeitório, determinada a encontrar minha


irmã.
ZOE

Dr. Cross me diz que posso ficar na enfermaria o quanto


quiser, mas saio naquela noite, depois de uma longa soneca que
ajudou a aliviar a pressão latejante em meu crânio.

Acho que bati com a cabeça quando Jasper Webb segurou meu
tornozelo. Mas essa não é a única razão para a dor de cabeça
latejante. É decepção também.

Eu não quero estar morta. Não realmente. Mas Deus, eu


queria escapar.

Agora estou de volta ao centro da minha própria vida, e o peso


é sufocante.

Estou exausta de arranhar as paredes, bater minha cabeça


contra as portas trancadas. Para onde quer que eu vire, não há
saída.

Só estou de volta ao meu dormitório há alguns minutos


quando ouço uma batida suave na porta.

— Zoe? — Cat chama baixinho.

Abro a porta para ver minha irmã esperando ansiosamente,


seus olhos escuros enormes em seu rosto delicado.
— Aí está você — diz ela, entrando no meu quarto com um
suspiro de alívio. Então ela consegue me olhar direito à luz da
lamparina e seu rosto se contorce. — O que aconteceu? — ela
chora.

Eu toco a fita no alto da minha bochecha, que eu sei que não


consegue cobrir o início de um olho roxo desagradável.

Abro a boca para dar uma desculpa, para minimizar o que


aconteceu. Em vez disso, começo a chorar.

Eu nunca choro assim. Nunca caí nos braços da minha irmã,


soluçando. Sou muito maior do que ela, quase a derrubo. Estou
instantaneamente com vergonha de mim mesma, mas não consigo
parar. Meu corpo inteiro está tremendo e estou fazendo um som
horrível e animalesco, um uivo áspero.

Eu nunca quis despejar isso em Cat. Mas eu não consigo


parar. Estou chorando e chorando como se minhas entranhas
estivessem se liquefazendo e derramando pelos canais lacrimais.

Depois de muito tempo, percebo que Cat se sentou na cama e


estou deitada com a cabeça em seu colo, enquanto ela acaricia
suavemente meu cabelo.

Isso é algo que eu fiz por ela muitas vezes quando ela estava
doente ou triste. Especialmente depois que nossa mãe morreu.

Nunca estive nesta posição antes.

A sensação de sua mãozinha gentil na minha cabeça é


incrivelmente calmante. É difícil aceitar conforto quando você
sente que deve ser você quem o dá, nunca exigindo nada em troca.
É difícil confiar que não há problema em receber consolo, apenas
desta vez.
Uma vez que meu corpo para de tremer, depois que relaxo, as
palavras jorram de mim como as lágrimas – sem moderação ou
controle. Conto a Cat tudo o que Rocco fez comigo, tudo o que
disse, desde o momento em que o conheci no jardim de nossa villa.
Até o que aconteceu esta manhã nas muralhas.

Cat escuta em silêncio, absorvendo tudo. Posso sentir suas


pernas ficando cada vez mais rígidas sob minha bochecha, mas ela
não me interrompe.

Quando me sento para olhar para ela, seus lábios estão tão
pálidos que mal posso vê-los contra sua pele.

— O que podemos fazer? — ela me pergunta.

— Nada — digo a ela. — Não há nada que possamos fazer.

— Tem que haver alguma coisa! — ela chora.

— Cat — eu digo suavemente. — Para onde eu iria? Aonde eu


iria me esconder? E com que dinheiro? Além do mais... eu nunca
poderia deixar você com eles.

Por ‘eles’ não me refiro apenas ao nosso pai e madrasta. Quero


dizer os soldados de meu pai, os Princes e seus soldados, os
professores da escola e os outros alunos, e todo o vasto submundo
que poderia ser usado para me caçar ou para punir minha irmã
por minha fuga.

— Eu poderia ir com você — Cat diz.

Eu balanço minha cabeça. Eu nunca arriscaria o que poderia


acontecer com ela se tentássemos fugir.

Cat não foi feita para uma vida de medo e incerteza.


O que espero é que ela se case com alguém razoável. Um
homem forte que pode protegê-la. Que apreciará que Cat é linda e
gentil e será uma boa esposa para ele e uma excelente mãe para
seus filhos. Então ela estará segura.

Nem todos os mafiosos são maus. Ela poderia acabar com um


Leo em vez de um Rocco. Ainda há esperança para ela.

Quanto a mim... bem, eu não posso pensar sobre isso.

Olhar para Cat me faz perceber que não sou a única ferida e
machucada.

— O que aconteceu com o seu rosto? — eu exijo.

— Aula de combate — Cat diz, balançando a cabeça


tristemente. — Eu não estou melhorando.

— Você vai — eu asseguro a ela. — Eu poderia praticar com


você na academia, fora do horário de aula. Não sou a melhor na
luta, mas aprendi algumas coisas. Chay é melhor – aposto que ela
ajudaria.

— Tudo bem — Cat diz hesitante, parecendo mais nervosa do


que satisfeita com essa perspectiva. Então, voltando ao assunto
mais importante em sua mente, ela diz: — Quando você tentou
pular da parede... Jasper Webb agarrou você?

— Sim — eu digo. — Jasper e Miles Griffin.

— Mas Miles não fazia parte disso. Ele apareceu no meio


disso?

— Isso mesmo — eu concordo.


— Por que você acha que Jasper te ajudou?

— Não sei. Por instinto. Ou para me impedir de fugir de Rocco.


Ou porque ele estava preocupado que ele próprio pudesse ter
problemas. Não foi por simpatia por mim, posso garantir. Ele não
teve nenhum problema em me segurar para que Rocco pudesse
cortar meu olho de merda da minha cabeça.

Cat engole em seco, pálida e nauseada, e me arrependo de


descrever o que aconteceu com tantos detalhes gráficos.

— Não importa — eu digo a ela. — Fui estúpida em subir


naquele muro para evitá-lo. Terei cuidado para não ir a nenhum
lugar isolado.

Cat morde o lábio. Ambas sabemos que evitar Rocco no


campus é apenas uma solução temporária, na melhor das
hipóteses. Não poderei evitá-lo quando morarmos juntos em uma
casa como marido e mulher.

— O que Miles estava fazendo lá em cima? — Cat me pergunta.

— Eu não sei.

Posso sentir meu rosto ficando vermelho. Contei tudo a Cat,


exceto minha conversa com Miles na enfermaria. Não sei bem como
explicar.

Nunca esperei sentir a bondade de Miles Griffin. E


definitivamente nunca esperei sentir compreensão. Miles e eu não
poderíamos ser mais diferentes. E ainda... por um breve momento
enquanto eu estava deitada no travesseiro, e ele sentado bem ao
meu lado, sem me tocar, mas apenas um ou dois pés de espaço
entre nós... eu senti que ele podia ver dentro de mim. Ele sabia o
que eu estava sentindo e entendeu.
Ainda mais surpreendente, eu me sentia da mesma maneira
por ele. Eu olhei em seu rosto e pela primeira vez não havia
máscara de indiferença. Suas feições suavizaram. Ele parecia mais
jovem. Miles se tornou uma pessoa real para mim, com uma gama
de emoções muito mais ampla do que eu pensava que ele fosse
capaz de sentir.

Ele usa o humor como escudo e arma. Nunca o vi mostrar


nada além de ambição, astúcia e a determinação implacável de
satisfazer seus próprios impulsos.

Quando ele se sentou ao meu lado, as paredes desabaram. O


verdadeiro Miles falou comigo. Eu ouvi compaixão em sua voz.
Interesse. Até respeito.

Foi bizarro. Até inquietante. Eu esperava que a qualquer


segundo ele sacudisse a cabeça, contasse alguma piada e voltasse
ao seu estado de desleixo de sempre.

Em vez disso, ele queria que eu prometesse que não tentaria


me machucar novamente.

Eu poderia dizer que isso importava para ele. Que ele se


importava.

Por que ele deveria se importar, eu não tenho ideia.

Não acho que ternura seja fácil para Miles Griffin.

Para mim também, para ser honesta. A única pessoa neste


planeta que amo de verdade é Cat. Eu nunca tive amigos próximos
até começar a estudar na Kingmakers. Há uma frieza em mim que
não se derrete facilmente. Talvez porque tive que ser tão
cuidadosa, tão rígida, toda a minha vida. É difícil para eu confiar.
Difícil para eu me abrir.
— Miles deve ser decente — Cat diz pensativamente. — Ele é
primo de Leo e Anna.

— Isso não significa nada. — Eu balanço minha cabeça. —


Afinal, veja de quem somos parentes.

As semanas seguintes na escola são tranquilas.

Eu nunca disse ao Dr. Cross o que realmente aconteceu e ele


não me pressionou por respostas. Ele está acostumado a ouvir
mentiras de alunos e provavelmente não quer ouvir isso.

Não sei se Rocco está certo, se ele tem permissão para me ferir
impunemente. Não adianta relatar o que aconteceu de qualquer
maneira. Ninguém ficou ferido, exceto os cortes no meu rosto e
corpo e o caroço na minha cabeça. Apenas danos graves merecem
uma resposta oficial.

Uma coisa eu fiz: comprei calças de Matteo Ragusa. Ele é um


Accountant do segundo ano e temos quase o mesmo tamanho. Ele
ficou feliz em me vender duas calças de seu estoque de uniformes,
embora eu pudesse dizer que ele estava curioso.

— Para que você as quer? — ele indagou, entregando as calças


recém-lavadas e bem passadas.

— Eu só... não quero mais usar saias — falei.


Não consegui explicar a ele a vergonha que às vezes sinto do
meu corpo. O quanto odeio a maneira como atrai os olhares de
pessoas como Rocco Prince e Wade Dyer. Estou vulnerável em meu
uniforme escolar. Foi muito fácil para Rocco deslizar a mão por
minha saia na mesa do café da manhã. Tive sorte de tudo que ele
fez foi beliscar minha coxa.

— Você não precisa disso? — perguntei a Matteo, segurando a


calça comprida.

— Nah. — Ele balançou sua cabeça. — Eu tenho bastante. E


minha mãe pode enviar mais na minha caixa de Natal.

Isso acabou com todo o meu dinheiro no bolso, mas isso pouco
importa. Não há nada para comprar na Kingmakers, a menos que
eu queira algo ilegal de Miles Griffin.

Estou usando as calças desde então. Elas me dão uma


estranha sensação de confiança. Eu me sinto como Katherine
Hepburn ou Ingrid Bergman, duas mulheres que sempre admirei.
Em um ambiente de saias, as calças são uma expressão de poder.

Ninguém comentou sobre isso, a não ser o professor Graves


levantando uma sobrancelha prateada na primeira vez que entrei
na sala de aula desprezando o uniforme de costume.

Talvez as calças estejam funcionando, porque Rocco tem me


deixado em paz na maior parte do tempo. O mais provável é que
ele tenha percebido que me empurrou longe demais.

Não sou estúpida o suficiente para relaxar. Eu sei que ele está
apenas se reagrupando, planejando seu próximo ataque.

Ele não ficou satisfeito com nossa última escaramuça. Ele não
gosta quando as coisas não saem de acordo com o planejado. Cada
interação entre mim e ele deve satisfazer algum impulso sombrio.
Se eu não o alimentar com o que ele quer, ele só fica com mais
fome.

Rocco não é o único que está me observando. Eu pego Miles


Griffin olhando para mim mais do que antes. Éramos apenas
conhecidos antes, ambos flutuando na órbita de Leo e Anna, mas
raramente interagindo um com o outro diretamente.

Pode ser minha imaginação, mas sinto que Miles está se


sentando para comer conosco com mais frequência, ou nos
interceptando no pátio para caminharmos juntos pelo terreno
antes de partir para a próxima aula.

Talvez ele só queira ter certeza de que ainda não me suicidei.

Parece mais do que isso. Parece que ele está ouvindo minhas
conversas com Anna, absorvendo cada palavra que sai da minha
boca, mesmo enquanto Leo está conversando em seu outro ouvido.

Enquanto ele está me observando, estou olhando para ele.

Miles é muito mais inteligente do que eu imaginava. Eu sabia


que suas notas eram uma merda e ele mal tentava nas aulas,
basicamente fazendo o mínimo para evitar ser expulso. Ele fez
corpo mole no Quartum Bellum. Seu time foi eliminado pela
primeira vez no ano passado e ele dificilmente parecia se importar.
Ele pode até ter desaparecido por metade da partida.

Mas quando está falando sobre um assunto pelo qual é


genuinamente apaixonado, ele parece saber tudo no mundo.

Por exemplo, esta manhã ele está discutindo Bitcoin com Ozzy.
Ele está tão envolvido na conversa que todo o seu rosto se ilumina,
e ele se parece muito mais com Leo, em vez de seu habitual olhar
sardônico.

— Foram os cartéis que criaram o Bitcoin em primeiro lugar!


— ele diz a Ozzy, gesticulando com seus dedos longos e flexíveis.
— É a cesta perfeita para obscurecer transações. Continuo
esperando que o governo regule, recuse a transferência para
dólares americanos, mas eles ignoram.

— Eles não entendem isso — diz Ozzy. — Os políticos não são


programadores.

Temos um intervalo entre as aulas e estamos sentados na


plataforma elevada entre as laranjeiras, aproveitando o último sol
verdadeiramente quente antes do início do outono.

Esta é a primeira vez que venho aqui desde minha briga com
Rocco no muro. O próprio muro contra o qual estou sentada neste
momento, a pedra aquecida pelo sol e agradável nas minhas
costas.

Não posso deixar de olhar para cima, para as muralhas vazias.


Miles me pega, e nossos olhos se encontram em um rápido choque
de compreensão, antes que Ozzy chame sua atenção novamente.

Estamos esparramados com nossas bolsas e livros espalhados


por toda parte: Leo e Anna, Chay, Cat e eu, Miles e Ozzy, então
Ares e Hedeon.

Ares é colega de quarto de Leo. Ele é um gigante gentil – uns


centímetros mais alto ainda do que Leo, com pele profundamente
bronzeada e aquele tom particular de olho verde azulado que você
às vezes vê nos gregos. Ele é quieto e estudioso, então sempre
gostei dele e o achei um bom parceiro de estudos.
Hedeon mora no mesmo andar na Octagon Tower, com todos
os Heirs do nosso ano. Não posso dizer que gosto da companhia
dele tanto quanto da de Ares porque Hedeon é sensível e propenso
a explosões de raiva. Ele seria bonito se não estivesse tão mal-
humorado o tempo todo – ele tem cabelos escuros, está bem
barbeado e bem cuidado. A única coisa que estraga seu rosto
bonito é a ponte ligeiramente torta de seu nariz, como se tivesse
sido quebrada no passado e nunca devidamente curada.

Ele melhorou desde nosso primeiro ano. Acho que Leo e Ares
são uma boa influência para ele, porque nenhum deles consegue
manter o mau humor por muito tempo.

Mas agora Hedeon está com o pior temperamento que eu já vi.


Ele e seu irmão Silas brigaram no café da manhã por causa do
último muffin de mirtilo da cesta.

Não sei como diabos Hedeon se atreve a lutar com Silas. Silas
é um leviatã ambulante. Ele parece esculpido em pedra e é
igualmente emotivo. Eu nunca o vi sorrir, a menos que ele tenha
acabado de bater em alguém na aula de combate.

No entanto, eles se chocam constantemente, com verdadeira


fúria, por causa das provocações mais mesquinhas.

Anna acha que Silas é amargo porque seus pais nomearam


Hedeon como Heir. Se isso for verdade, não sei por que Hedeon
está tão zangado.

Hedeon leva o pior em suas lutas, mas ele nunca desiste. É


como uma crosta que ele não consegue parar de pegar.

— Dê-me um pouco dessa água — ele exige de Anna. Ela tem


um frasco cheio da adorável água fria e mineral que você pode
bombear do poço ao lado do refeitório.
— Não — diz Anna, tomando um gole para si mesma. — Você
já bebeu metade e deveria ter trazido a sua.

Hedeon tenta arrancá-la dela, mas Anna a puxa de volta para


fora de seu alcance. Os seus reflexos de dançarina são tão rápidos
quanto os dos meninos. Exceto, talvez, Leo.

— Não sei por que você está tomando banho de sol — ele diz a
Anna. — Eu nunca vi você pegar um bronzeado mais escuro do
que giz.

Leo franze a testa e abre a boca para repreender Hedeon, mas


Anna o impede.

— Pare de latir para todos nós porque Silas te deu um tapa


bobo — diz ela. — Não é nossa culpa que seu irmão seja um idiota.

Hedeon lança um olhar tão furioso para Anna que até Anna
parece ligeiramente envergonhada.

— Ele não é meu irmão — sussurra Hedeon. — Não há uma


gota de sangue compartilhado em nossas veias.

Um silêncio constrangedor cai sobre o grupo quando todos nós


lembramos que Hedeon foi adotado pelos Greys, e Silas também.
Eles foram criados juntos, mas obviamente não gerou afeto.

Calmamente, Chay pergunta: — Você sabe quem são seus pais


biológicos?

Os lábios de Hedeon estão cerrados, sua mandíbula rígida de


raiva. Eu não acho que ele vai responder a ela.

Então ele diz: — Não.


É uma sílaba distorcida e torturada, como se doesse para ele
soltá-la.

Já vi Hedeon bater no saco pesado no ginásio, uma e outra e


outra vez, até que os nós dos dedos estejam ensanguentados e a
camisa encharcada de suor. Aquelas camisetas brancas ficam
transparentes quando molhadas. As costas de Hedeon são um
mapa topográfico de cicatrizes, em relevo e entrecruzadas,
cicatrizes mais recentes colocadas sobre as mais antigas. Elas
descem pela parte de trás de seus braços também, e sobem pela
base de seu pescoço.

Penso nessas cicatrizes e no nariz ligeiramente torto.

Eu me pergunto quando isso aconteceu. Antes de ser adotado?


Ou depois.

O silêncio é pesado, pois a maioria de nós quer dizer alguma


coisa para Hedeon, mas não sabe o quê. Sua expressão parece
indicar que ele vai arrancar a cabeça da primeira pessoa que
tentar.

Para minha surpresa, é Cat quem fala: — Minha colega de


quarto me deu uma surra na aula de Combate de novo. Mas quase
acho que é catártico para nós. Realmente parece aliviar a tensão
em nosso quarto depois.

Chay não consegue evitar o riso. — Que diabos? Quem iria


querer bater em você?

— Rakel parece realmente gostar — Cat diz perplexa. — Estou


aprendendo a levantar as mãos. E eu a derrubei uma vez hoje,
então isso é progresso.
Com certeza, Cat está ostentando um lábio gordo fresco para
combinar com o hematoma sob o olho de uma sessão de luta
anterior. Isso apenas destaca a inocência de seus olhos grandes e
redondos e seu rosto delicado.

Hedeon olha para ela com uma expressão confusa. Ele ainda
está irradiando raiva, mas em um grau menos radioativo. Mais
amianto do que Chernobyl.

A tensão quebrada, Miles e Ozzy voltam à conversa.

— Não adianta ficar logo abaixo da marca de dez mil dólares


para depósitos — diz Ozzy. — Eles têm algoritmos para rastrear
isso. Você gasta novecentos e quatro a cada três dias, e eles ainda
vão te estourar. Você precisa escrever seu próprio algoritmo para
mantê-lo verdadeiramente aleatório.

— Você pode fazer isso? — Cat pergunta a ele ansiosamente.

— Claro — Ozzy diz surpreso por ela estar se interessando. —


Facilmente.

— Cat tem jeito para computadores — digo a Ozzy.

— Ozzy é um gênio do caralho no teclado — Miles fala. — Cat


não poderia aprender com ninguém melhor.

Mais uma vez, encontro nossos olhos se fixando, e parece que


muito mais intenção está fluindo entre nós do que as simples
palavras dessa frase.

— Bela roupa, por falar nisso — Miles diz, aquele sorriso lento
e preguiçoso subindo pelo lado direito de sua boca, mostrando
dentes brancos contra sua pele bronzeada.
— Obrigada — eu falo, corando um pouco. Estou com as
calças de Matteo e um par de suspensórios emprestados de Chay,
sobre uma camisa social branca, com um par de sapatos oxford
marrom liso. Pareço um jornaleiro, mas Miles parece
genuinamente gostar. Ele também se veste bem, sempre
conseguindo combinações incomuns das peças do uniforme com
sua extensa coleção de tênis da era espacial.

É o mais simples dos elogios. No entanto, sinto-me aquecida


até os dedos dos pés, e não apenas por causa do sol.

Ares verifica seu relógio. — Eu ia terminar aquele artigo sobre


Estrutura Organizacional antes do próximo período — diz ele. —
Você quer vir, Zoe?

Ele sabe que estou sempre disposta a ir à biblioteca. É


provavelmente meu lugar favorito de todos na Kingmakers. Gosto
de ir lá apenas para sentir o cheiro de todo aquele papel e tinta
antigos.

— Claro — eu digo, pegando minha mochila.

Eu levanto minha mão em um aceno, planejando me despedir


de Miles e de todos os outros. Mas Miles não está mais olhando
para mim – ele está olhando para Ares com uma expressão
totalmente inesperada. Carrancudo como Hedeon quando Silas é
mencionado. Ele parece que Ares roubou seu muffin de mirtilo.

Eu pisco, e o momento bizarro passa. Em vez disso, Miles volta


seu olhar para seus tênis caros.

Quando eu falo: — Vejo vocês mais tarde — ele responde com


um movimento rápido de sua cabeça.
Ares e eu seguimos para o oeste ao longo da parede, em direção
ao dedo indicador da Torre da Biblioteca.

Ares tem uma presença calmante. Ele é uma daquelas pessoas


com quem você pode se sentar em silêncio sem nunca se sentir
desconfortável. Quando falo com ele, ele sempre responde com um
sorriso. Mesmo assim, às vezes tenho a sensação de que ele não
está muito feliz.

— Como vai? — ele me pergunta gentilmente.

Cat é a única pessoa com quem falei sobre o que aconteceu na


parede. Estou supondo que Miles disse a Leo, e Leo disse a Ares.
Isso, ou Ares é apenas perceptivo. Pessoas caladas veem muito. E
não é tão sutil que eu esteja totalmente fodida.

Meu impulso automático é dizer ‘estou bem’, como sempre


faço.

Mas há uma coisa estranha em fazer amigos. Não é bom


mentir para eles.

Sempre mantive meus sentimentos trancados. Aos poucos,


Anna, Chay, Leo e Miles estão me trazendo de volta à honestidade.
Fui ainda mais aberta com Cat.

Então, eu não forço um sorriso para Ares.

Eu digo: — Estou muito cansada. Da escola, da merda da


família e desse maldito problema insolúvel sempre pendurado no
meu pescoço.

A mandíbula de Ares aperta. Seus antebraços parecem


estranhamente rígidos onde as mãos estão enfiadas nos bolsos.
— Eu entendo — diz ele.

Eu olho para ele com curiosidade. — Você?

Ele encontra meu olhar por apenas um momento, seu cabelo


escuro e desgrenhado caindo sobre seus olhos. Então ele desvia o
olhar novamente.

— Eu acho que sim — ele murmura. — Você é inteligente, Zoe.


Disciplinada. Fiel. Parece que tem que funcionar para você no
final.

— Isso sempre funciona para as pessoas que merecem? —


pergunto-lhe. — Ou é tudo aleatório e horrível às vezes?

Ele morde o lábio, realmente considerando isso.

— Eu não sei — ele disse finalmente. — Mas vou agir como se


houvesse algum tipo de destino ou carma, ou como você quiser
chamá-lo. Caso contrário, qual é o sentido de qualquer coisa?
Podemos muito bem desistir agora.

— E você não quer desistir? — pergunto-lhe. Às vezes, eu


quero desistir.

— Não. — Ares balança a cabeça com veemência. — Eu nunca


quis isso.

Ficamos em silêncio por um momento, Ares parecendo


desconfortável, como sempre fica quando diz mais de vinte
palavras seguidas.

Ele e eu passamos um bom tempo a sós, mas não sei muito


sobre ele. Só que ele é de uma pequena ilha da Grécia. Que os
Cirillos foram uma das dez famílias fundadoras da Kingmakers,
mas quase não são mais da máfia. Ele cresceu em uma fazenda.
Ele é o mais velho de quatro filhos, e seus irmãos mais novos
sentem uma falta desesperada dele – ele está sempre escrevendo
cartas para eles, pegando suas respostas no pequeno correio da
aldeia.

Sei o que todo mundo quer fazer depois que nos formarmos:
Anna ficará com a Braterstwo polonesa e Leo se tornará o Don
italiano. Juntos, eles governarão a maior parte de Chicago.

Por direito, Miles poderia dominar o território irlandês, mas ele


pretende ir para Los Angeles, para abrir seu próprio caminho no
mundo.

Chay é a Heir dos Berlin Nightwolves, e ela já sabe exatamente


como expandirá sua rede de lojas de tatuagem, boates, casas de
shows, lojas de motocicletas e equipes de corrida.

Até Hedeon foi nomeado Heir do império baseado em Londres


dos Grays, com seu irmão Silas ordenado para atuar como seu
principal tenente. Como eles vão conseguir fazer isso quando não
podem tomar o café da manhã sem tentar matar um ao outro está
além da minha compreensão, mas o plano está em vigor.

Apenas Ares se abstém de falar sobre o futuro.

— O que você vai fazer? — pergunto-lhe. — Depois de nos


formarmos?

— Assumir o negócio do meu pai — ele diz imediatamente.

— Sério? Isso me surpreende.

— Por quê?
— Bem, você é tão bom em tudo aqui. Você tirou algumas das
melhores notas tanto nas aulas práticas quanto nas acadêmicas.
É verdade! — falo, enquanto Ares balança a cabeça modestamente.
— Não pense que ninguém percebe só porque você está ao lado de
Leo o tempo todo. Você realmente quer ser um fazendeiro?

Ares olha para mim, exibindo seu sorriso gentil.

— Você é gentil, Zoe — ele diz. — Não se preocupe comigo.


Gosto de cultivar coisas.

— Tudo bem — eu digo, encolhendo os ombros. — Eu nunca


te diria que não há alegria em uma vida pacífica. Eu aceitaria esse
acordo em um segundo.

Chegamos à Library Tower. Eu já sinto uma onda de felicidade


quando Ares abre a pesada porta com tiras de ferro. O cheiro de
pergaminho e couro nos atinge como um vento frio e seco.
Misturado a isso, uma nota leve e exótica que só pode ser o
perfume da Sra. Robin. Seu apartamento fica logo acima da
biblioteca, no sótão de seu telhado pontudo.

Subimos os degraus de pedra em espiral até o primeiro nível.


A biblioteca inteira é uma enorme espiral, como o interior de uma
concha. As estantes são curvas para se encaixar na parede, e o
chão se inclina para cima como uma rampa longa e contínua.
Plataformas em formato de cunha sustentam as mesas para que
nossos lápis não rolem enquanto estamos trabalhando. É um
design bizarro que faz a biblioteca parecer infinita e interminável.
Os grossos tapetes orientais e as paredes cheias de livros abafam
o som para que você nunca saiba quem pode estar nos andares
acima de você.
À medida que subimos, meu cadarço bate nos degraus de
pedra e me inclino para amarrar meu oxford para não tropeçar.
Ares continua, sem perceber que eu fiquei para trás.

Com o cadarço amarrado, apresso-me para alcançá-lo. Eu


ouço a saudação alegre da Sra. Robin: — Você não deveria estar
na aula? — Ela faz uma pausa enquanto eu corro para perto de
Ares, então diz: — Zoe também! Eu deveria ter adivinhado. Eu não
acho que ninguém passa mais tempo aqui do que vocês dois.

— É quarta-feira — Ares a lembra. — Todo mundo tem um


período livre no bloco da manhã.

— Quarta-feira! — ela chora, balançando a cabeça. — Em


seguida, você vai me dizer que é outubro.

Eu sorrio para mim mesma, certa de que a Sra. Robin está


ciente de que estamos no início de outubro.

Quando conheci a bibliotecária, eu a achei tímida e um pouco


reservada. Ela raramente come no refeitório, embora muitos outros
professores o façam, e eu não a vi em nenhum evento escolar.

Quanto mais eu falo com ela, mais percebo que ela é realmente
muito calorosa e charmosa. Ela está apenas envolvida em sua tese
sobre mosteiros medievais. Ela nunca fica ociosa quando eu entro
aqui, sempre ocupada vasculhando mapas e documentos antigos.

Mesmo agora, posso ver vestígios de tinta nas pontas dos


dedos e uma mancha na bochecha. Seu cabelo ruivo escuro escapa
de seu coque em mechas rebeldes e crespas. Os óculos grossos
tipo da vovó escorregaram até a ponta do nariz. Como é
perpetuamente frio na biblioteca, ela está usando três ou quatro
moletons de tricô sobrepostos, então ela parece rechonchuda,
embora eu suspeite que na verdade ela é bastante magra por baixo
de tudo.

A Sra. Robin é bonita, mesmo sem maquiagem, mesmo com


seus péssimos sapatos ortopédicos. Ela tem uma voz baixa e
rouca. Gosto de ouvi-la falar – embora ela nunca o faça por muito
tempo, sempre voltando direto para seus próprios projetos.

— Acabei de fazer chá — diz ela. — Vocês dois querem um


pouco?

— Não — Ares diz, sendo educado.

— Sim, por favor — falo, porque não sou tão educada e, se a


Sra. Robin quiser se sentar conosco, aceito a oferta.

Ela faz uma longa caminhada em espiral até o último andar,


onde ouço um leve rangido e um baque enquanto ela puxa para
baixo a escada que dá acesso ao seu loft. No momento em que Ares
e eu abrimos nossos livros e papéis, ela trouxe mais duas delicadas
xícaras de porcelana e recuperou o bule de chá fumegante de sua
mesa.

— Eu não tenho açúcar — ela diz, se desculpando. — Eu bebo


puro.

— Isso é perfeito — eu digo.

Ela derrama o chá rico, marrom e fortemente macerado em


nossas xícaras. Tem cheiro de canela e cravo. As especiarias
combinam perfeitamente com o ar antigo da biblioteca.

A Sra. Robin leva sua própria xícara aos lábios e toma um gole.

— Como vai à tese? — eu pergunto a ela.


— Terrível — diz ela sombriamente. — Fiquei muito animada
quando cheguei aqui – os arquivos contêm documentos e
esquemas que você não encontraria em nenhum outro lugar do
mundo. E, no entanto, eles não são categorizados, nem rotulados,
nem organizados. O grande volume de materiais é exatamente o
que me impede de encontrar as informações de que realmente
preciso. Nada disso é informatizado. E, francamente, grande parte
deles foi danificada por mofo e ratos.

— A bibliotecária anterior era velha, não era? — eu digo me


desculpando, como se a bagunça fosse minha culpa.

— Milenar – mas não é culpa dela — diz a Sra. Robin. — A


biblioteca nunca foi uma alta prioridade para aqueles que dirigem
Kingmakers. Por que seria? Durante a maior parte de sua vida,
esta escola foi mais um quartel militar do que uma universidade
propriamente dita.

— É assim que o atual Chancellor administra? — eu pergunto


curiosamente.

— Suponho que não — diz a Sra. Robin. — Afinal, ele me


contratou.

— Você é sobrinha dele, não é? — eu pergunto.

— Removido duas vezes, ou algo parecido. — A Sra. Robin ri.


— Mas sim, há nepotismo em jogo. Ele é muito gentil comigo –
além da vaga descrição do trabalho. Foi uma surpresa aparecer
aqui e perceber isso... bem, que alguns dos meus parentes
provavelmente não eram exportadores de importação, afinal. — Ela
balança a cabeça com tristeza.

Essa é outra razão pela qual a Sra. Robin pode não ser
amigável com os outros funcionários. A maioria deles tem uma
história violenta que horrorizaria um civil normal. O professor
Bruce era um mercenário, o professor Penmark um cobrador de
dívidas conhecido por sua brutalidade. A professora Lyons era
chamada de Bruxa do Arsênico por sua habilidade em
envenenamento sutil quando costumava matar os sauditas por
contrato. Essas são as histórias que todo mundo conhece – mal
posso imaginar o que os professores conversam quando se sentam
em seu canto favorito do refeitório.

Mesmo assim, a Sra. Robin deve se sentir sozinha aqui.

— Você passa muito tempo com o Chancellor? — eu pergunto.

— Um pouco — diz a Sra. Robin. — Ele nem sempre está aqui,


você sabe – ele vai para Dubrovnik às vezes.

— Como ele faz isso? — Ares pergunta.

— Eu não deveria dizer a você — diz a Sra. Robin, com um


sorriso travesso. — Acho que eles querem que todos acreditem que
a única maneira de entrar e sair da ilha é a grande barquantina
que trouxe vocês, ou o navio de abastecimento que vai e vem todo
mês.

— E os barcos de pesca? — eu pergunto.

— Eles não podem fazer a travessia. — Ela balança a cabeça.

— O que então? — Ares pergunta, sua expressão aguçada.

— Ele tem um iate feito sob medida. Coisa linda – não consigo
imaginar o que isso custou a ele. Lutero é rico como Salomão, no
entanto. Os Hugos sempre foram ricos. Eles não têm uma caveira
dourada como brasão por nada.
— Não os Robins, entretanto? — eu a provoco.

Ela ri. — Deus não. Se alguma vez tivéssemos um brasão de


família, o que não temos, seria um Robin bicando uma migalha de
pão.

Ares não parece interessado em nada disso, voltando ao ponto


que despertou sua curiosidade.

— Como você sabe que o Chancellor tem um iate? Eu nunca


vi um.

— Tenho certeza que não. Porque é assim que ele gosta — diz
a Sra. Robin, terminando o que resta de seu chá. — Não tenham
pressa — ela fala ao apontar para as nossas xícaras. — Vocês
podem levar isso para mim mais tarde.

Enquanto a Sra. Robin volta para sua mesa, eu digo a Ares: —


Você pode imaginar ser tão rico que você poderia simplesmente
comprar iates ou jatos ou qualquer coisa que você quiser?

Nunca tive controle sobre uma quantia substancial de


dinheiro e sei que a família de Ares é uma das menos ricas de toda
a escola.

— O dinheiro atrai problemas — diz Ares, voltando aos seus


livros. Então, depois de um momento, talvez pensando que seu
comentário foi desnecessariamente repressivo, ele me dá um
pequeno sorriso e admite: — Eu gostaria de ver aquele iate, no
entanto. Aposto que é rápido pra caralho.

Eu sorrio de volta para ele. — Se eu fosse sobrinha do Hugo,


pediria as chaves emprestadas.
MILES

Sei que Rocco Prince não ficará quieto por muito tempo. Não
tem como ele engolir o insulto de eu interferir no seu abuso à sua
noiva.

É impossível evitarmos um ao outro – somos ambos do terceiro


ano e Heirs, então pelo menos metade de nossas aulas são
compartilhadas.

Tínhamos um relacionamento cordial até aquele ponto – não


amigável, mas ele costumava comprar cogumelos de mim, e uma
vez Ozzy vendeu para ele um velho iPhone carregado de
pornografia bem fodida.

Os iPhones são um dos nossos produtos mais populares.


Compramos modelos antigos super baratos, baixamos
previamente com música, filmes e pornografia e os vendemos para
estudantes por $500 dólares cada. Oferecemos um programa de
troca para trocar seu telefone antigo por um novo conteúdo, mas
na maioria das vezes eles precisam comprar um novo porque
algum professor o confiscou.

Telefones celulares são proibidos na ilha. Também laptops e


iPads. Alto-falantes e iPods são permitidos, desde que a única coisa
que eles façam seja tocar música.
Até mesmo carregar é um incômodo. Quase não há tomadas
no castelo, nenhuma nos dormitórios.

Sem serviço de telefone celular, todas as ligações para a família


precisam ser feitas do banco de telefones de The Keep. Sem acesso
à Internet. Todas as tarefas devem ser escritas à mão.

Claro, essas regras são para a plebe.

Ozzy e eu temos telefones GPS que funcionam em qualquer


lugar e descobrimos como invadir o servidor da escola. Estamos
prestes a garantir uma forma totalmente nova de conexão – nosso
próprio satélite Starlink. Só temos que descobrir onde escondê-lo.

Esse é o projeto desta tarde.

Esta manhã estou lidando com Rocco Prince, Jasper Webb,


Dax Volker e Wade Dyer, que aparentemente decidiram que estão
dispostos a comprometer seu acesso ao mercado negro da escola
em favor de expor suas queixas contra mim.

Estamos todos na aula de Química juntos, em The Keep com


a professora Lyons. Ela se parece com uma assistente de
laboratório comum, parada na frente da classe em seu jaleco
branco e seus óculos de segurança, seu cabelo grisalho em um
corte sensato. Você pode até pensar que ela é uma avó, com seus
olhos sonolentos e seu estilo de aula casual. No entanto, ela tem
uma das maiores contagens de mortes de qualquer ex-assassina,
especializada em venenos indetectáveis e mortes que podem ser
classificadas como ataque cardíaco ou derrame.

Ela nos ensinou tudo sobre esses venenos em nosso primeiro


ano. Como alunos do segundo ano, nos concentramos em
explosivos caseiros. Agora estamos avançando para a fabricação
de drogas pesadas.
— O ópio é uma das drogas mais antigas da humanidade —
diz a professora Lyons, parecendo um pouco como se ela própria
tivesse levado um trago do cano enquanto pisca para nós com
aqueles olhos de pálpebras pesadas. — O uso do ópio, tanto para
fins medicinais quanto recreativos, pode ser rastreado até a antiga
Mesopotâmia. Esse néctar precioso vem da papoula comum –
papaver somniferum, a própria flor que vocês cultivam em seus
jardins, da qual pode extrair sementes para doces ou bagels. A
própria flor que vocês veem em suas mesas agora.

Estamos sentados em mesas largas preparadas com


equipamentos de laboratório. Estou compartilhando com Ozzy,
enquanto Rocco Prince e Wade Dyer estão sentados diretamente à
nossa direita, e Jasper e Dax atrás de nós. Se isso é intimidador,
não é. Dax respira tão alto que não teria chance de me
surpreender, e os olhares sujos de Rocco é um B+ na melhor das
hipóteses depois que você recebeu o olhar mortal do Tio Nero.

Como a professora Lyons indicou, cada mesa carrega uma


papoula vermelha brilhante com um centro preto e uma haste
difusa. Ela nos instrui a colocar nossas luvas de látex para que
possamos cortar o bulbo da papoula para coletar a goma de ópio
espessa e lamacenta.

Rocco pega seu bisturi, mas não toca em sua papoula. Ele
agarra o cabo, a lâmina prateada apontada em minha direção.

— Não seja tímido — digo a ele. — Ou você precisa que eu


segure para você?

Estou provocando-o, eu sei disso. A verdade é que também


estou guardando rancor do nosso pequeno confronto. Se eu
provoquei a animosidade de Rocco, ele com certeza desencadeou a
minha.
Habilmente, sem nem mesmo olhar, Rocco corta o bulbo da
papoula. A seiva branca escorre.

— Eu poderia cortar sua garganta com a mesma facilidade —


ele sibila seus olhos fixos em mim.

— Você poderia tentar — eu zombei. — Você pode ter um senso


exagerado de suas próprias habilidades. Nem todo mundo é tão
lento quanto seu garoto Dax. Ou tão burro quanto Wade ali.

Dax muda seu peso na cadeira, e Wade rosna: — Foda-se,


Griffin. Você não é inteligente o suficiente para cuidar da sua
própria vida, não é?

Sempre que Wade fica bravo, ele me lembra um valentão de


um filme dos anos 80. Tem alguma coisa a ver com sua aparência
agradável, o cabelo loiro e a covinha no queixo. Ele se parece com
Rip de “Less Than Zero”, ou Ace Merrill de “Stand By Me”.

Ozzy diz: — Wade, você não é o cara mais burro do mundo,


mas é melhor torcer para que ele não morra.

Wade leva alguns segundos para descobrir isso e, no intervalo,


Ozzy e eu caímos na gargalhada da confusão em branco em seu
rosto. A professora Lyons nos lança um olhar irritado.

Sob seu olhar reprimido, todos ficamos em silêncio por um


minuto, mas sei que não vai durar. Dax, Wade e Rocco estão todos
irritados, como uma matilha de cães quando alguém arrasta um
pedaço de pau pela cerca. Apenas Jasper parece indiferente, atrás
e à direita na minha periferia. Ele está trabalhando em sua
papoula, suas tatuagens de esqueleto ainda visíveis através das
luvas translúcidas, aparentemente surdo para a tempestade que
se forma ao seu redor.
— Depois de coletar a seiva, usaremos solventes para extrair
a solução de morfina — diz a professora Lyons, escrevendo os
ingredientes químicos no quadro-negro.

— Vou pegar toda essa merda — diz Ozzy, rabiscando a lista


com tinta nas costas da mão para não ter que fazer várias viagens
ao armário de suprimentos se esquecer de alguma coisa. — Você
se masturba com a papoula.

Wade segue Ozzy até o gabinete.

Pego meu próprio bisturi, intensamente ciente de que Rocco e


eu agora estamos armados com apenas meio metro de espaço entre
nós. Segurar uma faca me dá um estranho impulso de cortar a
porra do rosto dele. Ou talvez apunhalá-lo no olho, como ele tentou
fazer com Zoe. Minha mão está tensa e carregada, como se tivesse
ganhado vida própria.

Tecnicamente, sou eu que estou errado. Rocco e Zoe estão


noivos e não tenho o direito de interferir nos negócios deles.

Por outro lado, Rocco é uma merda e quanto mais conheço


Zoe, mais acho trágico para ela ser o joguete desse lunático.

— Você não quer fazer de mim um inimigo. Não seria sensato


— diz Rocco. Sua voz sibilante desenha o ‘s’ em ‘sensato’.

Normalmente, eu diria: — Não tenho interesse em ser inimigo.

Eu vi a destruição que isso causa. A longa e sangrenta batalha


de minha família com a Bratva em Chicago resultou na morte de
meu avô. Tio Dante foi baleado, tio Nero quase morto. O rancor já
dura vinte anos e ainda é mantido nesta porra de escola por Dean
Yenin, o herdeiro da Bratva que tentou afogar Leo no ano passado.
O problema é... eu realmente não gosto de Rocco. Eu não gosto
de nada que ele defenda. A ideia de fazer as pazes com ele tem
gosto de vômito na minha boca.

Então eu digo: — Zoe é a melhor amiga da minha prima. Eu,


Leo, Anna... estamos cuidando dela. Se você não quer ser tornar
um inimigo, mantenha a porra das mãos longe dela.

— Você tem um estranho senso de justiça — diz Rocco, seus


olhos azuis febris. — Eu diria para você não dirigir seu próprio
carro? Ou não comer a comida da sua própria geladeira?

— Você não é casado com ela ainda.

— O contrato está assinado.

— Sim? Onde está a cláusula sobre cortar o olho dela? Você é


muito estúpido para cuidar de sua própria propriedade?

— Não é da sua conta o que eu faço com Zoe. Eu poderia


colocar fogo nela só para vê-la queimar.

Meu estômago se revira com a expressão de diversão em seu


rosto. Não acredito em pessoas boas e más. Mas Rocco irradia um
nível de maldade que nunca encontrei antes.

Sou bom em ler pessoas. Procuro microexpressões – indícios


de medo, ansiedade, desejo, decepção em seus rostos.

Rocco não tem microexpressões. Suas emoções não são


complexas. Suas intenções são simples: ele quer machucar Zoe só
para se divertir. E ele quer que eu pare de incomodá-lo.

— Nós não vamos ficar esperando por isso — eu digo a ele


categoricamente.
— A escolha é sua — diz Rocco. — Este foi o seu aviso. Não
haverá outro.

Ozzy retorna do armário de suprimentos, com os braços


carregados de saquinhos e potes. Com cuidado, ele os coloca na
mesa e desliza para a cadeira mais uma vez. Ele olha para Rocco,
seu rosto largo franzido em uma carranca, verificando se ainda
estamos latindo um para o outro. Rocco sorri para ele, seus lábios
finos como um corte na metade inferior do rosto.

Wade termina de reunir seus suprimentos, seus braços ainda


mais carregados do que os de Ozzy. Ele caminha lenta e
deliberadamente. Ao passar por Ozzy, ele deixa cair um vidro
aberto com um líquido claro em todo o antebraço nu de Ozzy.

Uivando, Ozzy salta da cadeira.

O fluido chia em seu braço, sua carne instantaneamente


vermelha como uma lagosta e até borbulhando em alguns lugares.
Sinto cheiro de cloro.

Ozzy tenta correr para a porta, provavelmente para correr para


a enfermaria, mas eu o agarro pela gola de seu colete e o arrasto
para trás. Puxando a manivela da torneira, agarro o pulso de Ozzy
e coloco seu braço sob o fluxo constante de água fria para limpar
a área.

— O que está acontecendo? — a professora Lyons grita.

— Wade derramou algo no braço de Ozzy — digo. — Acho que


é ácido clorídrico.

A professora Lyons usa uma pinça para levantar o vidro


derramado da mesa e segurá-lo na frente de seus óculos de
segurança. Ela aperta os olhos para a etiqueta encharcada e
borrada.

— Por que isso foi aberto? — ela exige.

— Foi um acidente — diz Wade, tentando entrar na história


antes que possamos acusá-lo. — Achei que fosse benzeno.

— Então você é um idiota — ela rebate. — Vá para o armário.


Traga-me gluconato de cálcio. Tente ler o rótulo desta vez. —
Então, ajustando ligeiramente a torneira, ela me diz: — Você deixa
essa água correr no braço dele por vinte minutos. Não muito forte
– assim.

— Não foi um acidente — digo a ela.

Ela examina a cena com os olhos não mais sonolentos, mas


penetrantes como um falcão. — Como você sabe? — ela diz. —
Wade é um idiota.

— Ele tropeçou — diz Dax atrás de mim. — Miles esticou o pé


de propósito. Eu vi tudo.

— Isso é um monte de merda! — eu rosno.

A professora Lyons ignora meus palavrões. Amaldiçoar é


comum como respirar na Kingmakers.

— Vinte minutos — ela me lembra. — Então vamos aplicar o


gluconato de cálcio.

O rosto de Ozzy é um ricto de dor, seus lábios puxados para


trás para mostrar os dentes cerrados, seu corpo atarracado rígido
e trêmulo enquanto o ácido continua a queimar os nervos expostos
de seu braço. Espero que a água fria o esteja acalmando um pouco.
Assim que a professora Lyons se afasta para descartar o vidro
vazio de ácido, eu sibilo para Wade: — Você está morto por isso.

Ele sorri. — Eles nem vão me punir. São quatro contra dois
sobre eu ser simplesmente desajeitado.

— Pense duas vezes antes de enfiar o nariz onde não pertence


— Dax grunhe para mim, empurrando sua mesa para frente, de
modo que atinja a parte de trás das minhas pernas. Eu o pegaria
pra caralho, mas tenho que continuar segurando o braço de Ozzy
debaixo d'água. Ozzy está tremendo tanto que acho que ele não
conseguiria fazer isso sozinho.

Estou dez vezes mais zangado por Wade atacar Ozzy do que se
ele tivesse jogado essa merda em mim. Tenho certeza de que foi
por isso que ele fez isso – deixar de proteger seus soldados é um
grave insulto em nosso mundo. Ozzy não é realmente meu soldado
– ele mesmo é um Heir, o único filho dos Duncans, com controle
exclusivo da atividade criminosa na Tasmânia. Mas no campus, eu
faço os planos e ele ajuda a executá-los. Como acontece com
qualquer grupo de melhores amigos, um de nós deve assumir a
liderança.

Eu me sinto responsável por isso.

A queimadura é horrível, em carne viva e com certeza deixará


cicatrizes.

— Você vai ficar bem — murmuro para Ozzy.

— Eu sei — ele grunhe, vermelho e suando de dor. — Não é


isso. É a minha cauda.

— Sua cauda? — eu pergunto inexpressivamente.


— Sim. — Ele faz uma pausa, fazendo uma careta, então
continua. — No meu braço. Ela era minha favorita. E agora olhe
para ela.

Eu olho para o local em seu antebraço onde a raposa de cauda


dupla costumava residir. Não é nada além de uma bagunça
vermelha e inchada agora, com apenas uma sugestão de um
contorno onde a tatuagem costumava estar.

— Ozzy... essa era a sua pior tatuagem.

— O que você está falando?

— Era horrível pra caralho, cara. Péssima. Ela parecia um


esquilo. Honestamente, Wade meio que te fez um favor.

Eu falo baixo, porque foda-se Wade se ele pensa que estou


falando sério. Ele vai pagar por isso, a escola o punindo ou não.

Ozzy ri, embora soe mais como um gemido. — A cauda era


meio estranha — ele admite. — Mas é por isso que eu gostava dela.

Quando os vinte minutos passam, a professora Lyons aplica o


gluconato de cálcio no braço de Ozzy. Ela esguicha para fora de
um tubo semelhante a pasta de dente. Parece aliviar um pouco sua
dor. A professora envolve o braço em gaze limpa.

— Leve-o para a enfermaria, então Dr. Cross pode dar uma


olhada nele — diz ela.

— Posso levar algumas dessas papoulas comigo? — Ozzy


pergunta fracamente. — Sinto que preciso de um gostinho do
dragão, sabe o que quero dizer, professora?
— Você pode perguntar ao Dr. Cross sobre os analgésicos —
diz ela sem compaixão.

— Vamos — eu digo, agarrando a mochila de Ozzy.

Tenho certeza Dr. Cross ficará emocionado em me ver


novamente.

Ozzy passa a noite na enfermaria. Quando ele retorna para a


aula no dia seguinte, sua mão esquerda está rígida e inchada e
todo o braço está enrolado, pendurado em uma tipoia para ajudar
a protegê-lo de empurrões. Ozzy me disse que a carne ainda está
crua. O menor contato, mesmo sobre a gaze, é agonizante.

Estou furioso que isso aconteceu com Ozzy por minha causa.
Eu o coloco com alguns dos nossos melhores alimentos para
relaxar, mas preciso de algo melhor do que isso para animá-lo.
Então eu me levanto bem cedo na manhã seguinte e me esgueiro
para a Gatehouse.

A Gatehouse é onde os Enforcers têm seus dormitórios. Os


quartos são limpos e uniformes, tendo sido usados antigamente
como quartel de soldados. Quase nenhuma estudante é Enforcer,
exceto Ilsa Markov, que, admito, é uma vadia fodida e durona.
Há um cheiro distinto de testosterona e meias sujas no ar.
Além disso, o opressor Aqua Di Gio32 que Wade sempre usa. Eu
seria capaz de encontrar seu quarto mesmo se já não soubesse
qual era o seu.

Pelo que tenho observado, ele gosta de acordar bem cedo para
ir à academia no Armory antes do início da aula. Ele faz parte da
multidão das 6h, junto com Dax, Dean Yenin e o resto dos
masoquistas.

Eu espero do lado de fora de sua porta, ouvindo-o farfalhar


enquanto veste suas roupas de ginástica e aqueles tênis brancos
imaculados dele. Eu ouço três borrifadas distintas enquanto ele se
encharca de colônia, que invade minhas narinas alguns segundos
depois, quando o cheiro forte penetra pelas frestas ao redor da
porta.

Estou esperando à direita da dita porta, telefone na mão


esquerda, mão direita enrolada em volta do meu isqueiro para um
pouco mais de energia.

As dobradiças rangem e eu me preparo.

No momento em que Wade abre a porta, eu me afasto e o soco


no nariz com todas as minhas forças. É um soco nojento,
totalmente inesperado, e não algo que eu normalmente faria. Mas,
neste caso, é totalmente merecido.

Wade aperta o nariz com as mãos, o sangue jorrando como um


foguete, jorrando por entre os dedos.

— Sorria vadia — eu digo.

32
Perfume masculino.
Eu levanto meu telefone e tiro uma foto rápida de seu rosto
uivante. Então eu saio correndo de lá antes que o resto dos
Enforcers acordem e façam algo como uma luta justa.

Apresento a foto a Ozzy durante o café da manhã. Ele ri tanto


que lágrimas brotam de seus olhos.

— Isso foi esta manhã? — ele indaga. — Onde ele está? Eu


quero ver pessoalmente.

Ele olha ao redor da sala de jantar, na esperança de ver Wade


caído sobre suas panquecas com alguns absorventes internos
enfiados no nariz. Sem sorte – ele ainda deve estar escondido no
banheiro tentando parar o sangramento.

— Você acha que está quebrado? — Ozzy pergunta


esperançosamente.

— Eu espero que sim — eu digo.

Wade não aparece em nossa aula de Organização Estrutural,


embora Rocco e Dax devam ter ouvido falar da retaliação, porque
estão nos encarando pior do que nunca.

Estou indo contra minha política usual de redução da


escalada, mas não dou à mínima. Fui um bom menino nos
primeiros dois anos em Kingmakers, relativamente falando. Já era
hora de me divertir um pouco.

— Você está pronto para instalar aquele satélite? — eu


pergunto a Ozzy.

— Sim — ele diz. — Eu só tenho um braço, então você vai ter


que fazer o trabalho pesado.
A antena parabólica Starlink é pequena e compacta, com
menos de 60 centímetros de diâmetro. Ela precisa de uma linha de
visão clara para o céu e, quanto mais alto a subirmos, melhor.
Acima de tudo, não pode ser localizada – foi um pé no saco
contrabandear essa coisa para a ilha. A última coisa que preciso é
de algum funcionário da escola rasgando-a logo depois de colocá-
la.

Precisamos dela próxima, então a escolha óbvia é uma das seis


torres da Kingmakers. A Octagon Tower na qual temos nossos
quartos seria ideal, mas está repleta de Heirs do sexo masculino.
Até o sótão está ocupado. A Library Tower foi destruída por causa
da Sra. Robin. Ninguém mora no sótão da torre dos Accountants –
todos os quartos ficam nos andares mais baixos. Mas seria
estranho eu e Ozzy andarmos por aí com um pacote suspeito
debaixo do braço.

A Dungeon Tower33 está vazia, mas as portas estão sempre


trancadas quer haja um prisioneiro dentro ou não com parafusos
eletrônicos modernos, não as velhas fechaduras enferrujadas que
eu praticamente poderia abrir com uma unha. E a Bell Tower34
nunca foi reconstruída depois de ter sido devastada por um
incêndio cem anos atrás. Aquela pilha instável de pedras parece
prestes a cair a qualquer momento – estaríamos arriscando nossos
pescoços apenas ao entrar pela porta.

Isso deixa a Rookery. É a torre menor, situada na extremidade


norte da catedral. Está cheia de penas e cocô de pássaro, mas acho
que vai servir aos nossos propósitos.

Ozzy fica de vigia enquanto eu abro a fechadura na base da


escada. Escorregamos para dentro, passando por degraus

33
Torre do Calabouço.
34
Torre do Sino.
salpicados de guano branco empoeirado. Pequenos pedaços de
penugem flutuam no ar parado.

Dezenas de pombos-correio costumavam empoleirar-se aqui.


Falcões também nos níveis inferiores. O fedor de amônia é de dar
água nos olhos, mas não importa. Não vamos passar muito tempo
aqui. Assim que tivermos o satélite instalado, podemos configurar
nossa própria rede privada, insondável e indetectável, a menos que
você já saiba o nome. Ozzy e eu teremos internet na velocidade da
luz enquanto relaxamos em nosso dormitório.

Supondo que ele possa voltar a usar sua mão para poder
digitar novamente. FODA-SE Wade Dyer, e Rocco Prince também.

Ozzy deve estar pensando a mesma coisa. Enquanto organizo


as ferramentas para fazer um buraco no telhado inclinado, ele diz:
— Mal posso esperar para colocar isso funcionando.

— Que bom que você fez isso — eu digo. — Eu não sou ruim
com essa merda, mas você é muito melhor.

— Muito melhor — concorda Ozzy, sorrindo.

— Que bom que nenhuma garota gostou de você, então você


teve muito tempo para praticar.

Ele dá uma risadinha. — Elas não deveriam gostar de mim,


mas por algum motivo gostam. As garotas simplesmente não
sabem o que é bom para elas.

— Sim, nem os caras — eu digo, pensando em Zoe novamente.

Ela vem ao meu cérebro várias vezes ao dia. Quando estou


perto de Anna e Leo, Chay e Zoe, não consigo tirar meus olhos
dela. Eu não sei o que é. Ela não é tão barulhenta quanto Chay,
nem tão chamativa quanto as outras garotas da escola.
Ultimamente ela tem se vestido como um menino em seus oxfords
e calças. De alguma forma, isso só a torna mais sexy. Talvez porque
eu sei o que está sob essas roupas agora. Eu não deveria estar
pensando em sua figura – eu nunca deveria ter visto isso em
primeiro lugar. Mas que merda, não consigo esquecer. Nunca vi
um corpo assim, em lugar nenhum.

E não é apenas sua aparência. É o jeito que ela não fala com
frequência, mas quando o faz, tudo que ela diz é inteligente e bem
fundamentado. Ela tem essa dignidade tranquila que me atrai,
mesmo quando sei que ela é a pior candidata possível para uma
paixão.

— Sim, nós somos tão burros quanto — Ozzy ri. — Eu tenho


um plano realmente estúpido para o fim de semana.

— Oh, sim? — Eu sorrio. — O que é?

— Vou dar outro golpe em Chay.

Eu balanço minha cabeça para ele. — Essa seria o que, a


quinta vez?

— Sexta — diz Ozzy.

— Talvez ela vá foder com pena de você agora que é um


aleijado.

— Você acha? — Ozzy diz esperançosamente.

Tenho certeza de que Ozzy está planejando fazer sua jogada


na festa de Halloween. Se Chay vai estar lá, pergunto-me se Zoe
também estará? Ela nem sempre vai às festas porque seus primos
idiotas a delatam para o pai. Mas se eu não deixar os primos
entrar...

— Tudo bem — digo a Ozzy — estou pronto para começar a


cortar. Você está com os óculos de segurança?

— Sim — Ozzy diz, me passando um par. — Enfiei no bolso


antes de Wade flambear meu braço, felizmente. Porque, sendo
honesto, eu não iria me lembrar depois.

— Sim... bem, ele não vai se lembrar de como era o nariz dele
também.

Rindo, começamos a serrar o telhado.

Ozzy e eu vamos dar uma festa de Halloween nos velhos


estábulos. Estamos cobrando uma cobertura de cinquenta dólares
com a promessa de ponche alcóolico. A cobertura não faz dinheiro.
É a tonelada métrica de ecstasy que todo mundo compra quando
está bêbado e dançando.

Dar uma festa tem tudo a ver com criar um clima. Contratei
dois Accountants calouros para fazer mil morcegos de papel preto
pendurados nas vigas. Em seguida, acendo algumas luzes
vermelhas assustadoras, cerco as tigelas de ponche com gelo seco
fumegante, cortesia do laboratório de química, e coloco na fila uma
lista de reprodução matadora.
Eu amo música, sempre amei. Isso faz alguma coisa no meu
cérebro. Quando tenho a batida certa e uma melodia complicada
no topo, sinto que posso pensar dez vezes mais rápido, como se
minha mente estivesse indo a um milhão de quilômetros por
minuto.

Convido Leo e Anna, informando a Anna que Martin Romero e


Santiago Cruz não passarão pela porta.

Anna ergue uma sobrancelha desenhada a lápis escuro.

— Isso é para o benefício de Zoe? Você se tornou tão...


prestativo.

— Sim. Eu sou um cara legal.

— Desde quando? — Ela ri.

— Apenas diga a ela — eu falo, tentando soar indiferente. —


Eu nunca gostei desses idiotas de qualquer maneira. Portanto,
nenhuma perda aí.

Não sei se Zoe planeja vir, mas estou estranhamente nervoso


quando as pessoas começam a entrar pela porta, algumas delas
vestidas com o tipo de fantasias improvisadas que você pode
montar com as merdas que por acaso você tem em mãos.

Kasper Marka vestiu-se como um espartano, usando apenas


sua cueca e uma cortina de veludo vermelho estendida sobre seus
ombros como uma capa. Isabel Dixon bagunçou o cabelo e se
cobriu de carvão, para parecer eletrocutada, enquanto seu
namorado Hiram Stokes pendurou um raio de papel em volta do
pescoço.
Todo mundo se juntou para comemorar o feriado. A festa está
bombando dez minutos depois de eu abrir as portas. Ozzy está
cobrando as despesas de cobertura o mais rápido que pode com
apenas um braço, e estou fingindo dar as boas-vindas a todos,
enquanto na verdade mantenho meus olhos abertos para as
pessoas que quero ver, bem como aquelas que podem voltar para
seus dormitórios.

Anna chega vestindo suas roupas mais esfarrapadas, com


uma maquiagem de zumbi impressionante em todo o rosto. Ela fez
o mesmo com Leo, mas seu sorriso ofuscante o faz parecer vivo
demais para ser morto-vivo.

— Parabéns — digo a ele.

Leo acabou de ser escolhido como capitão do segundo ano do


Quartum Bellum. Era praticamente certo que aconteceria, depois
da vitória sem precedentes dos calouros no ano passado, mas
agora é oficial.

— Obrigado — ele diz. — Não posso dizer que estou tão


animado desta vez – sabendo o que estou enfrentando.

— Não pode ser pior do que no ano passado — diz Ozzy.

— Sempre pode ser pior. — Leo faz uma careta.

— Sim – como ter Simon Fowler como seu capitão — Ozzy


reclama.

Simon é um Heirs do terceiro ano com uma grande opinião


sobre si mesmo e um saldo generoso de seus pais. Ele deu dinheiro
abertamente para ganhar votos para a Capitania. Eu não dou a
mínima, porque eu não me importo com o Quartum Bellum. Mas
não estou exatamente ansioso para receber ordens de alguém que
chuparia seu próprio pau se fosse flexível o suficiente.

— Só vocês dois esta noite? — indago a Anna.

— Relaxe. — Ela sorri. — Zoe está vindo com Chay.

— Eu só estava perguntando. Para o couvert35 — eu digo


rapidamente.

— Você não vai nos cobrar! — Anna chora indignada.

— Absolutamente eu vou. Leo pode engolir uma tigela inteira


de ponche sozinho.

— Qual é o desconto para a família? — Leo diz.

— Dois pelo preço de dois.

— Eu vou pagar — Leo diz. — Mas só porque o pobre Ozzy está


tendo uma semana daquelas. Ele merece.

— Obrigado — diz Ozzy, pegando a nota de cem dólares de Leo


e colocando-a diretamente no bolso. — Não poderia ir para uma
causa melhor.

Quando me viro novamente, estou diante de um anjo.

Zoe está usando um vestido branco diáfano que parece flutuar


em torno de seu corpo. Em seus ombros, asas intrincadamente
cortadas feitas de papel e arame. Seu cabelo escuro está solto e
brilhante. Sua pele brilha ao luar.

35
Taxa de entrada.
— Jesus... — eu falo.

— Não. — Zoe me dá um pequeno sorriso. — Apenas um de


seus amigos.

Chay está ao lado dela, vestida como o diabo em um macacão


vermelho apertado.

Ozzy dá um assobio apreciativo.

— Diga-me quem eu tenho que matar para ir para essa versão


do inferno — ele diz, olhando para ela de cima a baixo.

Chay sorri. — Se você ocupar a calçada inteira com seus


amigos e andar bem devagar para eu não conseguir sobreviver...
tormento eterno. Se você misturar muito o guacamole, até ficar
pastoso... forcado, direto na sua bunda.

— Continue... — Ozzy diz, parecendo excitado.

Cat segue atrás das meninas mais velhas, vestindo um pulôver


preto enorme e pequenas orelhas de gato pretas, com bigodes
desenhados no rosto. É a escolha óbvia de fantasia para ela, mas
também é adorável pra caralho. Ela realmente se parece com uma
gatinha fofa, especialmente com seus cachos negros selvagens ao
redor de seu rosto.

— Você está ótima — digo a Cat. Ela parece alarmada por eu


tê-la notado.

Chay estende um maço de dinheiro. Eu aceno para longe.

— Sem custo — eu digo.

— Tem certeza? — Chay pergunta.


— Eu nunca cobro de amigos.

— Que diabos! — Leo chama de volta por cima do ombro, ainda


ao alcance da voz dessa hipocrisia.

— Exceto ele — eu digo a Chay. — Ele pode pagar.

Posso sentir Zoe me observando. Meu rosto está


estranhamente quente.

— Vão em frente — falo para as meninas. — Divirtam-se.

Chay e Cat entram, mas Zoe faz uma pausa ao passar por
mim.

— Onde está sua fantasia? — ela pergunta.

Eu me viro para que ela possa ver a parte de trás da minha


camisa. — Número 23 — eu digo. — Eu sou Jordan.

— Eu pensei que Leo era o jogador de basquete — Zoe diz.

— Oh, sim, ele é muito melhor do que eu — eu admito. — Eu


só queria usar os sapatos. Air 7s – os mesmos que Jordan usou no
Dream Team nas Olimpíadas de 1992.

Zoe admira meus tênis, algo que geralmente me deixaria


extremamente feliz, mas agora não estou pensando nos meus
sapatos. Estou olhando para o rosto dela. Nunca vi uma pele tão
lisa e clara. Isso me faz pensar na pele perfeita por todo o resto do
corpo. Eu afasto esse pensamento com força. É desprezível, algo
em que o próprio Rocco pensaria – uma vista roubada de Zoe sem
o consentimento dela.

— Eu gosto de vintage — Zoe diz.


— Oh, sim?

— Sim. Especialmente coisas de filmes e programas de TV


antigos. Como se eu fosse comprar um vestido para mim, adoraria
comprar um como Marilyn usou em Gentlemen Prefer Blondes.
Você sabe o que eu quero dizer?

Uma multidão de alunos está tentando passar pela porta atrás


de nós. Estou bloqueando seu caminho. Mas eu quero falar com
Zoe, então digo a Ozzy: — Você consegue? — e Ozzy diz: — Sim, vá
em frente, cara.

— Deixe-me pegar uma bebida para você — digo a Zoe, como


uma desculpa para mantê-la bem perto de mim.

Eu a levo até a tigela de ponche. — É bom, eu prometo. Não


uma merda misturada de vaso sanitário – licor de qualidade.

— Eu confio em você — ela diz, sorrindo para mim.

Essas palavras enviam uma emoção por todo o meu corpo.

Eu sirvo um copo de ponche para ela, com cuidado para não


espirrar uma única gota em seu vestido branco como a neve.

— Conte-me sobre o vestido Marilyn — eu digo.

— Era rosa choque. Perfeitamente ajustado. Com luvas


compridas combinando. Eu nem fico bem em rosa, mas a cor era
tão viva e poderosa... você não acha que o rosa é poderoso, mas
pode ser. Na pessoa certa.

— Eu não acredito em você — eu digo.

— O que você quer dizer?


— Eu não acredito que você não fica bem de rosa.

As bochechas de Zoe ficam um pouco mais claras do que seus


lábios, e eu digo: — Veja – você está rosa agora e está melhor do
que nunca.

Zoe me fixa com aqueles olhos verde-claros, que sempre


parecem ter uma tempestade atrás deles.

— Você está flertando comigo, Miles? — ela pergunta.

Eu considero negar. Mas Zoe é tão honesta que exige o mesmo


de mim.

— Sim — eu digo simplesmente. — Eu definitivamente estou.

— Você acha que é uma boa ideia?

— Não. E eu não dou à mínima. Vou continuar fazendo isso, a


menos que você me diga para parar.

Eu observo seu rosto de perto, para ver sua reação a isso.

Ela considera.

— Não quero que você pare — ela diz.

— Bom. Porque eu não ia.

Ela ri.

Não sei se já ouvi Zoe rir antes deste ano. É um som cativante,
baixo e íntimo, destinado apenas a mim.

— Eu sabia que você era um problema — ela fala.


— Você não tem ideia — digo a ela.
CAT

Minha primeira festa na Kingmakers é minha primeira festa


em qualquer lugar – sem contar os eventos tediosos que tínhamos
que comparecer com meu pai e Daniela de vez em quando.

Sempre me senti como um pônei de exibição, vestida por


Daniela e arrastada para um propósito específico. Normalmente,
para dançar com algum parceiro de negócios horrível de meu pai,
que invariavelmente me dizia que eu o lembrava de sua filha antes
de tentar deslizar sua mão da minha cintura até a minha bunda.

Essa foi a primeira vez que me arrumei com amigas, rindo e


brincando o tempo todo, depois que me ofereceram um drinque
pré-festa de Chay, que aceitei porque estava fascinada com a pera
balançando por dentro, inteira e intacta, como um navio em uma
garrafa.

— Como diabos ela conseguiu entrar aí? — eu perguntei a


Chay. — É uma pera de verdade, não é?

— Sim. — Ela acenou com a cabeça. — Eles prendem o frasco


de vidro vazio a um galho enquanto a pera é minúscula e cresce.
Ela cresce até a maturidade dentro da garrafa, então cortam o
caule da fruta e enchem a garrafa com licor. É muito popular na
Alemanha, muito comum.
Ela estava fazendo a maquiagem de Zoe enquanto explicava a
bebida para mim, já tendo terminado seus próprios lábios
vermelhos laqueados e espirais de delineador escuro ao redor dos
olhos.

Eu deveria estar terminando minha fantasia de gato, mas o


conhaque de pera já estava fazendo efeito em mim, e eu não tinha
certeza se seria capaz de desenhar meu bigode de gato em linha
reta.

— Espere — Chay disse a Zoe. — Vou pegar minha outra


paleta de sombras.

Ela correu até o guarda-roupa para vasculhar. Aproveitei a


oportunidade para perguntar a Zoe: — Tem certeza de que está
tudo bem nós irmos até isso? Papai já está furioso com minhas
notas...

Ele me escreveu uma carta mordaz depois que nosso primo


Martin me delatou por meu péssimo desempenho em todos os
exames práticos que fiz até agora. Se a tinta fosse ácida, as
palavras teriam queimado direto na página.

— Foda-se ele — Zoe disse friamente. — E foda-se as cartas


dele.

Vestida como um anjo, seu rosto brilhando com o glitter e suas


asas de papel flutuando atrás dela, a crueza de Zoe me fez rir.

Zoe riu também. Ela pegou minha mão e apertou, dizendo: —


Vamos para a festa e teremos uma noite perfeita. Quem sabe
quantas outras nós teremos, mas teremos esta.

— Você está linda — eu disse a ela.


Eu fiz as asas para ela. Eu mal tive tempo para fazer qualquer
coisa artística desde que vim para a Kingmakers, e eu sentia falta
disso mais do que sentia falta de qualquer coisa de casa. Cortei as
penas com um bisturi roubado do laboratório de química.

Foi a primeira vez que roubei alguma coisa também. A


Kingmakers está cheia de novidades para mim. Meu coração
estava tão acelerado que pensei que fosse vomitar, mas enfiei o
bisturi na manga mesmo assim, as mãos suando, pensando que o
professor iria me pegar enquanto eu corria para a próxima aula.

Fiquei acordada até tarde para trabalhar nas asas enquanto


Rakel dormia na cama em frente, ouvindo sua horrível música de
metal em seus fones de ouvido. Eu podia ouvir isso vazando,
bateria implacável, guitarras e gritos. Não sei como ela dorme com
aquela raquete assaltando seus tímpanos, quando mal aguento o
pouquinho que ouço, mesmo com um travesseiro na cabeça.

Cortei cada pena individualmente. O processo meticuloso foi


incrivelmente calmante, melhor do que ioga ou meditação. Cada
pena tornou-se seu próprio universo, perfeito e preciso, e
totalmente sob meu controle. Ao contrário de tudo o que acontece
na escola.

Devo dizer, pelo menos tenho gostado das minhas aulas de


informática. Os únicos laptops permitidos no campus são os do
laboratório de informática. Colocar meus dedos no teclado é quase
tão parecido com voltar para casa quanto trabalhar naquelas
penas de papel. Embora eu nunca tenha feito nada como
transações de Bitcoin, segurança digital ou ataques DDOS, estou
aprendendo muito mais rápido do que qualquer coisa que aprendi
nas minhas outras aulas.

Então, tenho sobrevivido bem na Kingmakers.


É com Zoe que estou preocupada.

Ela me contou o que aconteceu no dia em que ela sumiu do


refeitório. Ela disse que Rocco tentou agredi-la e Miles Griffin
ajudou a salvá-la.

Miles está dando a festa hoje à noite, o que me faz sentir um


pouco melhor sobre ir. Mas também um pouco pior, porque sei que
isso só deixará Rocco mais furioso.

Contei a Zoe o que Claire Turgenev compartilhou comigo, o


que Rocco fez em sua antiga escola.

Zoe não pareceu surpresa.

— Eu sei o que ele é — ela disse. — Não há nada que eu possa


fazer sobre isso.

— Por quê? Por que não podemos pelo menos tentar?

— Olhe ao seu redor — ela me disse. — Olhe para este lugar.


Tem setecentos anos. Quantos alunos passaram por aqui? Mostre-
me aqueles que traíram suas famílias, que foram embora e viveram
uma vida feliz. Mostre-me eles. Mostre-me as pessoas que
resistiram a tudo isso e venceram.

Ainda assim, embora Zoe tenha me dito que não havia


esperança, eu vejo um novo nível de rebeldia nela. Eu poderia dizer
que ela estava animada enquanto se vestia para a festa, e ainda
mais animada quando cruzamos o terreno escuro e aberto em
direção aos estábulos distantes.

A festa já estava a todo vapor, os alunos faziam fila do lado de


fora para pagar o couvert.
Eu convidei Rakel. Ou, devo dizer, contei a ela sobre a festa
em um dos raros intervalos em que ela não estava usando fones
de ouvido e parecia que não me apunhalaria por ter ousado falar
com ela.

— Quem está dando? — ela indagou.

— Miles Griffin.

Não houve necessidade de explicar mais nada. Todos no


campus conhecem Miles.

— Talvez eu vá — disse Rakel, como se estivesse conferindo


um grande favor a mim.

Eu deixei por isso mesmo, nem mesmo corajosa o suficiente


para lançar um ‘vejo você lá’.

Rakel e eu não nos tornamos amigas mais próximas nos quase


dois meses em que dividimos o quarto. O centro do nosso
dormitório é um Muro de Berlim invisível que não tenho permissão
para cruzar, e nunca caminhamos juntas, mesmo quando estamos
saindo da Undercroft para ir para a mesma classe ao mesmo
tempo.

O mais próximo que ela esteve de ser amigável foi em nossa


última aula de Sistemas de Segurança, quando consegui
decodificar com sucesso o misterioso pendrive USB entregue pelo
professor Gillespie. Ele não nos deu nenhuma instrução. Consegui
criar uma imagem do pendrive USB e começar a investigá-lo. Era
TAILS36, com partição criptografada por LUKS37. O professor nos

36
Sistema operacional que tem como objetivo manter a privacidade, o anonimato e a segurança do utilizador,
além de burlar a censura de conteúdos em países.
37
Abreviação de Linux Unified Key Setup. Em português significa Configuração Unificada de Chaves do Linux, e
é uma especificação de criptografia de disco.
proibiu de usar a computação em nuvem ou qualquer sistema
externo, então tive que usar força bruta na senha.

Fui a primeira a terminar, o que o professor Gillespie nos


informou ser um tempo recorde.

Rakel se recostou na cadeira para ver melhor a tela do meu


computador.

— Como você resolveu isso? — ela exigiu.

— Eu executei hashcat38 contra a senha LUKS — falei,


mostrando a ela todas as etapas que fiz.

— Como você sabia fazer isso? O professor nunca disse.

— Só estou tentando coisas diferentes — eu disse. — Eu acho


que... às vezes, quando você sabe que não sabe de nada, pode
encontrar uma solução que outra pessoa pode ignorar. Tentando
até mesmo as ideias que parecem estúpidas.

No desafio seguinte, Rakel foi a mais rápida a terminar.

— Legal! — falei, verificando sua solução em troca. — Isso foi


inteligente.

Por um momento, parecia que ela iria sorrir de volta para mim.
Ela não fez isso, mas também não estava carrancuda.

Não vejo Rakel enquanto Zoe, Chay e eu entramos na fila do


lado de fora dos estábulos. Eu vejo um garoto alto com cabelo loiro
branco caminhando da biblioteca em direção ao Armory. Ele faz
uma pausa, examinando os alunos amontoados do lado de fora
das portas em nossas fantasias improvisadas. Música ressoa pelas

38
Software de recuperação de senha.
portas abertas, bem como feixes de luz vermelha fraca e fumaça
artificial.

A luz vermelha atinge o rosto bonito do menino, iluminando o


lado esquerdo enquanto o direito permanece sombreado.
Enquanto ele observa, seu olhar de irritação se transforma em
uma expressão de pura fúria. Ele enfia as mãos nos bolsos e segue
em frente, seu corpo tão tenso que todos os músculos de seus
braços se contraem.

— Quem era aquele? — eu sussurro para Zoe.

— Quem? — Ela não está olhando na mesma direção que eu,


toda a sua atenção fixada apenas dentro das portas dos velhos
estábulos.

— Aquele garoto ali – o loiro.

Eu aponto, mas é tarde demais. Ele desapareceu na escuridão.

— Eu não sei — Zoe diz, parecendo distraída.

Estamos próximas de entrar. Vejo Leo e Anna já esperando por


nós, com Hedeon Gray alguns metros além deles. Miles e Ozzy
estão cuidando da porta.

Miles nos cumprimenta calorosamente, recusando-se a nos


deixar pagar nossa taxa de couvert.

— Eu disse a ele para não cobrar de você — diz Ozzy, piscando


para Chay. — Não o deixe levar o crédito por isso. Ou por isso
também.

Ele desliza para Chay um saquinho que ela imediatamente


enfia no bolso.
— Ozzy! — ela diz. — Você está tentando ser charmoso?

— Depende. — Ele sorri. — Está funcionando?

Ozzy não é bonito, não comparado a Miles, Leo ou Ares, mas


ele tem um sorriso brilhante com covinhas nos dois lados. Isso
toma conta de todo o seu rosto e faz você pensar que ele pode ser
bonito, afinal.

Chay parece pensar o mesmo ao dar um beijo rápido na


bochecha de Ozzy. Infelizmente, o efeito dura apenas até que ela
coloque os olhos em Ares, encostado em um dos antigos pilares de
madeira ao lado de Hedeon.

Ares não é tão chamativo quanto Leo ou Miles. Ele se veste


com as roupas mais simples e baratas, e seu cabelo escuro e
desgrenhado sempre parece que precisa ser cortado. Ele é
reservado e modesto. Mas ele tem uma espécie de força silenciosa
que é poderosa do mesmo jeito. Muitas vezes me pego olhando para
ele, sem nenhum motivo particular. Quando ele fala, sua voz é
profunda e ressoante. O tipo de voz que vibra em seus ossos.

Chay é atraída por ele como uma borboleta por uma flor. Eu
não posso dizer se Ares gosta dela em troca. Ele me parece alguém
que mantém um controle rígido sobre suas emoções o tempo todo.

Ele me lembra de Zoe, na verdade. Cuidadoso. Responsável.


Nunca agindo por impulso.

Acho que é por isso que sinto que o entendo, embora mal
tenhamos nos falado.

Você pode aprender muito sobre as pessoas apenas


observando.
Não estou desinteressada só porque sou tímida. Na verdade,
gosto de estar rodeada de pessoas, quando ninguém está me
incomodando. Gosto de ver os pequenos flashes que passam entre
as pessoas, os indicadores ocultos de quem elas são, o que estão
pensando e como se sentem umas pelas outras.

Adoro ver como Leo sempre verifica a reação de Anna sempre


que ele diz algo engraçado ou ultrajante. Gosto de como Anna o
toca continuamente, a mão pousando brevemente em seu braço
ou coxa, as costas apoiadas em seu peito, como se para se
assegurar de que ele ainda está lá.

Eu amo como Chay está sempre tão consciente de que todos


sejam incluídos no grupo. Ela me puxa para o centro de nosso
grupo de amigos, dançando comigo até que ela tenha certeza de
que me sinto confortável, então muda para Hedeon, que a princípio
balança a cabeça de uma forma taciturna, mas então cede e até
abre um sorriso quando Chay tenta girá-lo.

Gosto de como Ares é atencioso, verificando se alguém quer


uma bebida antes de pegar uma para si mesmo.

Eu amo como minha irmã está linda, mesmo ao lado de


garotas tão lindas como Anna e Chay. As boas qualidades da
minha irmã brilham em seu rosto: sua inteligência, sua
honestidade, sua determinação ao fazer o que acha que é certo,
mesmo quando é difícil, mesmo que seja impossível.

Nunca tive um círculo de amigos como este, que me faz sentir


segura e aceita. Eu sei que eles são amigos de Zoe na verdade, mas
eles me receberam de braços abertos, como se eu fosse tão
importante e interessante quanto ela, embora eu não seja.

A Kingmakers ainda me apavora. Estou coberta de hematomas


e cortes, de várias classes.
Ainda assim... eu não odeio isso aqui. Eu poderia até imaginar
um momento em que poderia gostar. Talvez no dia da minha
formatura, se de alguma forma eu aprender a lutar até lá, e parar
de me envergonhar a cada dois dias. Coisas estranhas
aconteceram.

Falando nisso, vejo Rakel no lado oposto dos estábulos. Ela


não está usando uma fantasia, embora pareça que sim, porque
está vestida com suas roupas normais de civil, que incluem
correntes e alfinetes de segurança suficientes para detonar
detectores de metal em um aeroporto inteiro.

Eu seguro a bebida que Ares me trouxe em uma espécie de


vivas.

Para meu choque total, Rakel levanta sua bebida em troca.

Não é muito, mas em comparação com o primeiro dia de aula,


parece que percorri um longo caminho.
ZOE

— Espera aí — Miles diz.

Ele está olhando para a porta por onde Dax Volker e Jasper
Webb estão tentando entrar.

— Deixe-me me livrar dos penetras — ele me diz. — Vá em


frente com Chay e Anna, se quiser – eu vou te encontrar em um
momento.

É difícil localizar minhas amigas na aglomeração apertada de


alunos, com apenas luzes vermelhas fracas iluminando meu
caminho. As festas de Miles são sempre mais agitadas e mais bem
organizadas do que as reuniões aleatórias combinadas por outros
alunos. Estou continuamente surpresa com o que ele consegue
fazer sob todas as restrições da ilha – ele é tão engenhoso.

Os professores sabem muito bem que damos festas nos


estábulos e não parecem se importar, contanto que o caos não se
espalhe para outras áreas do campus.

Mesmo nos dias mais frios do inverno, é bastante quente aqui,


especialmente quando todos começam a dançar. As luzes
vermelhas lançam sombras selvagens e demoníacas dos corpos
giratórios e das pilhas de móveis antigos amontoados na outra
extremidade do espaço.
Eu sei que Anna e Chay vão dançar, porque é a coisa favorita
delas de fazer. Na verdade, também adoro dançar, embora não
tenha tido tantas oportunidades a não ser em festas formais com
meu pai e Daniela, ou em meu próprio quarto.

Encontro as duas garotas com Cat entre elas e Leo, Ares,


Hedeon e Matteo Ragusa completando o círculo.

Eu gostaria de ser tão graciosa quanto Anna, ou tão desinibida


quanto Chay. Eu me sinto um pouco tensa no início, até que o
ponche de Miles toma conta e eu começo a relaxar. A música está
batendo forte, e o peso de todos os nossos corpos sacudindo as
largas tábuas do assoalho.

Drugs — UPSAHL

Depois de um minuto, Ozzy se junta a nós.

— Quem está cobrindo a porta? — Anna pergunta, olhando


bruscamente para a entrada.

— Miles está pagando Kasper Markaj para fazer isso — diz


Ozzy. — Não se preocupe, sem idiotas esta noite. Ou, pelo menos,
nenhum de que não gostemos.

Ozzy está tentando se aproximar de Chay, lembrando-se de


seu braço machucado, mas Chay está dançando o mais perto
possível de Ares, então ela não está prestando atenção nele.

Hedeon parece ter decidido que, na falta de garotas, ele


poderia dançar com Cat. Cat fica confusa com isso no início e
continua tentando se afastar dele, então Hedeon agarra as mãos
dela e a gira. Eu tenho que sufocar uma risada com a expressão
apavorada no rosto de Cat. Hedeon pode ser mal-humorado, mas
não é um mau dançarino. Ele é surpreendentemente paciente
quando Cat pisa em seu pé algumas vezes antes de entrar no ritmo
dele.

Anna é definitivamente a melhor dançarina de qualquer um de


nós. Ela entra e sai dos braços de Leo, às vezes dançando com ele,
às vezes com Chay e eu. Chay tomou algumas doses antes de
descermos, então ela está bastante solta, se esfregando em Matteo
até que seu rosto esteja mais vermelho do que sua fantasia, então
voltando sua atenção para Ares.

Ares permite que Chay se aproxime de seu peito largo, mas


quando ela tenta colocar as mãos nos quadris, ele apenas as
mantém ali um minuto antes de soltá-las novamente.
Decepcionada, Chay finalmente dá a Ozzy a atenção pessoal que
ele tanto anseia.

Ares é um mistério para mim. Ele nunca flerta, o que não me


surpreende, já que ele é quieto e reservado. Mas eu mal o vi olhar
para uma garota, mesmo uma tão bonita e obviamente interessada
como Chay.

Não tenho a sensação de que ele é gay. Claro, isso é apenas


um palpite – nem sempre é fácil dizer.

Acho que o verdadeiro problema é que ele sabe que nenhum


relacionamento na Kingmakers iria a lugar nenhum, a longo prazo.
Especialmente se Ares planeja voltar para Syros. Espera-se que as
filhas da máfia em nossa escola façam as combinações mais
vantajosas possíveis – o que não inclui o filho mais velho de uma
família que perdeu toda a sua antiga glória.
É lamentável, mas é verdade. Ares é realista, e eu também.

Isso não me impede de sentir um arrepio de prazer quando


Miles se junta a nós.

— Ei — ele rosna em meu ouvido, empurrando seus cachos


escuros para fora de seus olhos com a palma da mão. — Espero
que você já não tenha se cansado.

Posso sentir seu hálito quente em meu ombro nu e o calor


irradiando de seu corpo. Pressionados juntos na pista de dança,
estamos mais perto do que estivemos desde que ele me carregou
para a enfermaria.

— Não. — Eu balanço minha cabeça. — Não estou nem um


pouco cansada.

— Bom — Miles diz, seus dentes brancos brilhando em seu


rosto bronzeado. — Vamos começar a dançar, então.

Ele puxa um pequeno controle remoto do bolso e clica para


mudar a música. Instantaneamente, os alto-falantes mudam para
algo mais lento e sexy, com uma batida lúdica e insistente.

Just A Lil Bit — 50 Cent

Miles me puxa para seus braços, colocando minhas mãos em


volta de seu pescoço e suas mãos grandes e quentes em meus
quadris. Ele facilmente me puxa para seu ritmo, que é sem esforço
e escandalosamente suave.
Nunca vi ninguém se mover para a música como Miles pode.
Seu corpo flui como se ele fosse um líquido sob suas roupas. Ele é
brincalhão e criativo, me fazendo rir enquanto mistura pequenos
floreios idiotas em uma dança que é, acima de tudo, extremamente
sexy pra caralho.

Apesar de Miles expulsar qualquer pessoa ligada a Rocco,


ainda há muitos alunos aqui que poderiam me dedurar por dançar
com ele. Rocco com certeza ouvirá sobre isso, e meu pai também.

Mas agora, no centro de todos os meus amigos, sinto uma


sensação de segurança que nunca senti antes. Estou livre para rir,
dançar e curtir a música, livre como nunca estive antes em minha
vida. Cat está bem ao meu lado, rindo enquanto Hedeon a gira e a
abaixa, quase derrubando Chay e Ozzy, que estão dançando costas
com costas para que Chay não se esfregue em seu braço
machucado.

Miles folheia música após música, cada uma melhor do que a


anterior. Ares dá a todos nós outra rodada de ponche. Estamos
com calor, suados e embriagados, mas nenhum de nós quer parar.

— Qual é seu tipo favorito de música? — Miles me pergunta.

— Oh, eu não sei — eu digo. — Eu gosto de tudo isso.

— Você gosta de dança latina?

— Claro. Quer dizer, eu aprendi crescendo.

Ele troca a música para “Señorita” de Shawn Mendes, que não


é exatamente uma música latina, mas quando ele me puxa para
uma salsa sem esforço, não consigo deixar de rir.

— Por que você é melhor nisso do que eu? — eu exijo.


— Eu não diria isso — Miles rosna, seu rosto muito perto do
meu, meus dedos enrolados nos dele, nossos corpos pressionados
juntos. — Eu diria que ninguém nesta pista de dança parece
melhor do que você.

Não sei se eu era uma boa dançarina antes de hoje, mas Miles
está tirando o melhor de mim. É tão fácil acompanhar seu ritmo,
seguir sua liderança. A sensualidade de seu corpo parece estar
extraindo a mesma coisa do meu, então nossos pés se movem
perfeitamente juntos, nossos quadris, nossas coxas, cada parte de
nós entrelaçada. Nunca senti nada assim. Estou derretendo nele,
dançando sem pensamento ou esforço, apenas puro prazer.

Dançamos por horas. Nunca me canso disso. Eu nunca quero


que isso pare.

Anna e Leo, Chay e Ozzy, Hedeon e Cat, e o pobre Matteo


sozinho, eles vêm e vão ao nosso redor enquanto renovam suas
bebidas ou fazem uma pausa para sentar e conversar no sofá de
veludo empoeirado no canto.

Apenas Miles e eu ficamos exatamente onde estamos,


completamente envolvidos um no outro, incansáveis e
incansavelmente motivados a continuar dançando para que este
momento não acabe.

O sofá se enche de alunos meio bêbados. Em vez disso, Cat


tenta se empoleirar em uma pilha de caixas de arquivo. As caixas
tombam e ela cai no chão, os papéis se espalhando por toda parte.

Eu corro para ajudá-la a se levantar.

— Estou bem — Cat diz, o rosto tão escarlate quanto o ponche.


— Você continua dançando. Não estou ferida, apenas desajeitada.
Eu a ajudo a colocar os papéis de volta nas caixas, embora
isso pouco importe. Tudo naquele lado do estábulo é lixo, pelo que
posso ver. Armazenado e esquecido, sem chance de ser recuperado
novamente.

Depois de limpar a bagunça, Cat diz: — Estou muito cansada.


Acho que vou voltar para a Undercroft.

— Eu levo você — eu digo.

— Eu posso ir sozinha. — Cat balança a cabeça. Seus bigodes


mancharam seu rosto, então ela parece mais um limpador de
chaminés do que um gatinho, mas ainda assim completamente
adorável.

— Não, eu vou com você. Não é seguro ficar sozinha no escuro


— falo com firmeza.

Eu sei que Cat está abrindo caminho na Kingmakers o melhor


que pode, mas é tarde da noite, e Rocco e seus amigos podem estar
à espreita, chateados por terem sido banidos da festa.

— Vou levá-la — Hedeon diz inesperadamente. — Eu vou para


a cama também.

— Tem certeza? — eu pergunto. Hedeon não é do tipo que


oferece um favor, em geral.

— Sim, tenho certeza — diz Hedeon, irritado. — Eu não teria


dito de outra forma.

Eu olho para Cat para ver se ela está confortável com isso.

— Tudo bem, obrigada — ela diz a Hedeon.


Anna e Leo ainda estão dançando, embora Anna esteja bêbada
o suficiente para parecer mais estar balançando, com Leo meio que
a segurando. Ozzy e Chay desapareceram. Matteo desmaiou no
sofá verde empoeirado.

Agora que fui puxada de volta à realidade, estou percebendo


que provavelmente deveria ir para a cama, antes que minhas
inibições afundem ainda mais.

— Acho que vou sair também — digo a Miles.

— Vou acompanhá-la — ele responde, sem tentar discutir


comigo.

Partimos ao lado de Hedeon e Cat, nós quatro permanecendo


juntos até chegarmos ao ponto de junção onde Cat precisa ir para
o sul em direção à Undercroft, e eu vou para o norte, para o Solar.

O ar noturno é fresco e sem vento. Apenas algumas luzes


brilham nas janelas da Kingmakers, permitindo que o cobertor de
estrelas se destaque denso e brilhante. Hedeon olha para o céu
melancolicamente, ignorando Cat agora que eles não estão mais
dançando.

Cat está tão exausta que mal consegue andar em linha reta.
Suas aulas são difíceis para ela. Ela não está acostumada com esse
nível de atividade todos os dias. Além de Combate, Furtividade e
Adaptação Ambiental, que podem ser extremamente físicos, as
aulas de condicionamento exigem que façamos longas corridas de
cross-country nos fundos do rio, bem como exercícios exaustivos
na academia. Até as aulas de tiro são extenuantes – minhas mãos
e braços doem depois de uma longa sessão de tiro.

Dou um abraço rápido em Cat enquanto nos separamos,


dizendo: — Durma até amanhã, se puder.
Ela acena com a cabeça sonolenta.

Eu vejo Hedeon e ela se afastarem, garantindo que Hedeon


fique bem ao lado dela.

Então somos só eu e Miles, sozinhos no campus escuro e vazio.

De alguma forma, isso parece ainda mais íntimo do que dançar


juntos.

Estou tímida de repente.

Miles quebra o silêncio entre nós.

— Você fez isso? — Ele acena com a cabeça em direção às


minhas asas de papel, compostas por centenas de penas cortadas
individualmente, cada uma com seu próprio design único, como
um floco de neve.

— Sem chance — eu digo. — Isso tudo foi Cat. Ela é tão


artística. Ela deveria ir para a escola de arte este ano, antes que
eu estragasse tudo.

— O que você quer dizer?

Conto a ele sobre a festa de noivado e a visita surpresa de


Rocco à minha casa.

Estamos subindo em direção ao Solar, devagar, porque


nenhum de nós está com pressa. O gramado grosso abafa nossos
passos.

— Isso não é culpa sua — Miles diz, franzindo a testa.


— É, no entanto. Quando eu desobedeço ao meu pai, ele
sempre desconta na Cat. Eu sabia disso de antemão. Quando eu
me rebelo, ela sofre.

Lembrar desse fato imutável me faz perceber que estou


cometendo o mesmo erro novamente. Passei a noite na festa,
dançando e bebendo com Miles, sem me importar com as
consequências que poderiam vir.

Lendo meus pensamentos, Miles pega minha mão. Sua mão é


grande, forte e extremamente quente.

— Seus primos não estavam aqui esta noite — diz ele. —


Nenhum dos amigos de Rocco, também.

— Eles ainda vão ouvir. Todos falam.

Miles não se preocupa em negar isso – ele sabe que é verdade.

— Conte-me sobre o seu contrato de casamento — diz ele.

— Eu nem li isso — eu admito. — Eu não fiz parte das


negociações.

— Você sabe o que seu pai está ganhando com o negócio? O


que há para a família de Rocco?

Explico-lhe da melhor maneira que entendo, começando pelas


guerras entre os clãs Galegos e terminando por tudo o que sei
sobre os negócios do meu pai e dos Princes.

Miles absorve tudo, ocasionalmente fazendo perguntas


esclarecedoras. Isso é algo que notei sobre Miles – ele é um coletor
de informações. Ele é bom em fazer as perguntas certas para
descobrir o que realmente está acontecendo.
Quando termino de falar, ele fica quieto por um tempo,
pensando.

— Existe um elemento pessoal do lado de Rocco, não é? — ele


me pergunta.

— Você quer dizer, ele está apaixonado por mim? Eu não


chamaria isso de amor.

— Ele está fixado — diz Miles.

— Sim. Estamos noivos desde que eu tinha doze anos. Ele está
planejando o que fará comigo quando nos casarmos há oito anos.
Ele é mais do que fixado – ele está obcecado.

A expressão de Miles é séria enquanto ele olha para mim. Na


enfermaria, percebi que Miles tem olhos de uma cor que nunca vi
antes – um cinza puro e claro. Sob a luz das estrelas, eles brilham
quase prateados, muito mais claros do que sua pele
profundamente bronzeada.

— Conte-me mais sobre sua obsessão por Marilyn — ele diz,


mudando de assunto abruptamente.

Presumo que ele não queira mais falar sobre Rocco, porque
esse assunto é deprimente. Honestamente, eu sinto o mesmo.

— Eu amo filmes e programas de TV antigos — eu digo. — Eu


sempre amei. Eu assistia na casa da minha Abuelita – não
tínhamos televisão em casa. Minha madrasta é muito rígida.
Minha Lita não era rígida. Ela nos dava todas as guloseimas,
aconchego e tempo na tela que queríamos, toda vez que íamos
visitar. Ela fazia lecher frit39 e assistíamos “White Christmas”40,
“Seven Brides for Seven Brothers”41, “Singin 'in the Rain”42, “Some
Like It Hot”43, “West Side Story”44... todos os filmes de Alfred
Hitchcock, esses era seus favoritos. Acho que ela os assistiu
quando era jovem para aprender inglês, e nunca parou.

— Eu costumava assistir “Peaky Blinders”45 com minha avó


Imogen — diz Miles. — Ela disse que não era preciso – a gangue
Peaky Blinders nunca foi tão organizada. Mas ela gostou mesmo
assim, só de ouvir os sotaques irlandeses e ver as ruas que ela
conhecia.

— Era o oposto para Lita – ela queria ver os lugares que ela
nunca iria visitar, como Nova York ou Oklahoma.

— Ela sempre ficou na Espanha? — Miles pergunta.

— Sim. Íamos vê-la todas as semanas, Cat e eu. Aí meu


Abuelito morreu e meu pai não precisou mais nos mandar lá. Eles
eram os pais da minha mãe. Enquanto Tito estivesse vivo, ele
poderia pressionar meu pai a nos deixar visitá-lo. Depois que ele
se foi... não havia nada que Lita pudesse fazer. — Eu engulo em
seco. — Ela morreu ano passado. Eu não a vi nos últimos quatro
anos em que ela estava viva.

39
É um doce espanhol típico do norte da Espanha. É feito cozinhando a farinha com leite e açucar até engrossar
e formar uma massa firme, que depois é repartida, frita e servida com uma cobertura de açucar e canela em pó.
40
Filme de comédia musical, “Natal Branco”.
41
Filme de romance musical, “Sete Noivas para Sete Irmãos”.
42
Filme de romance musical, “Cantando na Chuva”.
43
Filme de comédia, “Quanto Mais Quente Melhor”.
44
Filme de romance musical, “Amor Sublime Amor”.
45
Série de drama.
— Sinto muito — Miles diz. Posso ouvir em sua voz que ele
está falando sério.

Chegamos ao Solar. O vento aumenta, farfalhando as penas


de papel das minhas asas de anjo.

— Eu não deveria ter mantido você aqui por tanto tempo —


Miles diz, olhando para meus braços nus. — Você deve estar com
frio.

Eu deveria estar com frio, indo do calor dos estábulos lotados


para o ar fresco e aberto. Mas eu não estou. Nunca sinto frio perto
de Miles – meu coração está sempre batendo muito forte, o sangue
trovejando em minhas veias.

— Seu corte está quase curado — Miles fala, tocando


suavemente o lugar próximo ao meu olho onde Rocco cavou sua
faca.

Quando Miles me toca, ele inflama cada nervo sob a ponta de


seus dedos. Essa parte do meu corpo se torna mais sensível do que
qualquer outra parte da pele combinada.

Não acho que ele queira me beijar.

Mas uma mão no meu rosto se torna duas, e então ele me puxa
em sua direção, nossos lábios se unindo em um movimento suave.
Os lábios de Miles são cheios e quentes, firmes e macios contra os
meus. O beijo é gentil no início, e então se torna mais profundo,
sua língua deslizando entre meus lábios, acariciando-os.

O gosto de sua boca transforma atração em luxúria. Meu


coração bate tão forte que parece uma pulsação contínua. Eu me
joguei em seus braços. Estamos agarrados um ao outro, nos
beijando com uma espécie de desespero que parece selvagem,
imprudente e totalmente viciante.

Beijar Miles é como dançar com ele. Estamos perfeitamente


sincronizados. O tempo se esvai. Eu não me canso disso, eu não
consigo parar. O vento golpeia minhas asas de papel, fazendo um
som como mil sussurros, levantando-me ligeiramente como se eu
pudesse voar para longe.

Lentamente, percebo que estamos a céu aberto na base do


Solar. Mesmo na escuridão, qualquer pessoa olhando pela janela
pode me ver com meu vestido branco.

Eu me afasto de Miles.

— Sinto muito — eu digo. — Eu não deveria ter feito isso.

Foi Miles quem me beijou, mas eu não deveria ter deixado. Não
é apenas perigoso para mim a quebra do meu contrato com Rocco.
Na verdade, é ainda mais perigoso para Miles. Os Princes podem
buscar retribuição.

— Fui eu — Miles diz, olhando para mim atentamente. — E eu


não sinto muito.

— Não podemos — digo a ele.

Nós dois sabemos que não podemos, mas eu me permiti fingir


o contrário. Eu curti a fantasia de poder conversar com um garoto
de quem gostava, flertar com ele, dançar com ele. Eu me permiti
experimentar a sensação de realmente me apaixonar por alguém,
deleitando-me com essa sensação de atração mútua. Eu nunca
havia sentido isso antes. Foi inebriante.
Mas agora eu cruzei a linha. E foi muito bom. Tão bom que
fico apavorada com o que vou acabar fazendo se não parar agora.

— Não posso mais te ver — digo a Miles.

Ele está olhando para mim, o rosto impassível, sem responder.

Eu não posso dizer o que ele está pensando. Não consigo ler
Miles tão bem quanto ele me lê.

— Você vai me ver amanhã — ele diz.

— Eu não vou.

— Você vai. — Seus olhos cinzas estão mais brilhantes do que


nunca, fixos nos meus com uma intensidade que nunca vi em
Miles antes. Ele age como se não se importasse com nada. Mas eu
sempre soube que isso não poderia ser verdade, porque ele está
muito longe de ser relaxado. Ele está sempre apressado, sempre
trabalhando em um ângulo.

Finalmente estou vendo como é quando Miles está


perseguindo algo que deseja.

— Eu não posso mais beijar você — eu digo. — E eu não posso


ficar sozinha com você.

— Eu não vou discutir com você, Zoe — Miles fala, seus olhos
queimando nos meus. — Eu também não vou parar.

Antes que eu possa dizer outra palavra, ele se vira e se afasta


de mim, atravessando o terreno escuro.

Estou olhando para ele, de boca aberta, meus lábios ainda


latejando onde ele me beijou.
MILES

Eu acordo com Ozzy entrando em nosso quarto, seu moicano


completamente desgrenhado e suas roupas ainda piores, a tipoia
faltando em seu braço e o envoltório de gaze imundo.

Ele está sorrindo como um louco, praticamente dançando no


lugar enquanto tira sua camisa manchada de grama, revelando a
estrutura robusta e musculosa por baixo, e ainda mais de suas
horríveis tatuagens amadoras.

— Onde você esteve? — eu pergunto, já suspeitando da


resposta.

— Com Chay — Ozzy diz, radiante de alegria.

— Como foi?

— Espetacular pra caralho. Tudo que eu sonhei e muito mais.

— Mesmo com o braço todo fodido?

— Cara, eu não estava no comando daquela foda. Ela é


insaciável. Tudo o que pude fazer foi relaxar e tentar pensar sobre
o código binário para não enlouquecer em dois segundos.

— Então, quanto tempo você durou? — eu o provoco. —


Quatro segundos?
— Primeira vez – talvez um minuto. Na segunda vez, tive muito
mais sucesso. Pela terceira vez...

— Tudo bem — eu digo — eu entendi. Estou muito feliz por


você.

— Agora é a parte difícil, no entanto — diz Ozzy.

— O que você quer dizer?

— Ela vai tentar foder e me chutar, como sempre faz. Mas ela
não vai se livrar de mim tão fácil. Posso não ter estamina46 na
cama, mas quando se trata de perseguir Chay... eu sou o maldito
Lance Armstrong47.

— Boa sorte com isso — eu digo, balançando minha cabeça


para ele.

— Você acha que tem uma chance melhor?

— Com o que?

— A princesa proibida.

Eu considero mentir para Ozzy, dizendo a ele que não vou


atrás de Zoe. Mas é inútil. Ele é meu melhor amigo. Ele soube que
eu gostava dela desde o momento em que ela chamou minha
atenção. E a partir daquele momento ele começou a me dizer que
ideia terrível era chutar aquele ninho de vespas em particular.

46
É a força ou a capacidade de fazer um exercício aeróbico ou exercício anaérobico por períodos relativamente
longos.
47
Ex-ciclista profissional, ficou famoso por ter vencido o Tour de France sete vezes seguida, um recorde absoluto
nessa prova.
— Eu poderia — eu digo.

— Você vai se matar.

— Muitas pessoas me dizem isso. Ainda não aconteceu.

— Leva apenas uma vez. — Ozzy sorri.

— Esse braço está melhor? — eu pergunto a ele para mudar


de assunto.

— Sim, está. Esse é o poder de cura de Chay.

Eu reviro meus olhos. — Eu aposto.

Vou para o chuveiro antes de ouvir mais sobre os poderes


mágicos da boceta de Chay.

Há um banheiro compartilhado em cada andar da Octagon


Tower. Quatro andares no total, com todos os herdeiros do terceiro
ano residindo no meu andar, incluindo Rocco Prince.

Portanto, não é totalmente surpreendente quando Rocco


interrompe meu bom banho quente.

Eu não me preocupo em me cobrir. Não tenho nada do que me


envergonhar.

Rocco está lá em seu roupão, olhando para mim. Há algo de


desumano na maneira como ele inclina a cabeça, seus olhos
passando rapidamente como uma espécie de raptor – inteligente,
mas sem a faixa normal de emoção.

Demora muito para me irritar. Ainda assim, até eu sinto uma


pontada de desconforto, estando vulnerável e nu sob a água.
Não vou deixar Rocco me ver me contorcer, no entanto. Nem
por um segundo.

— Continue olhando e vou cobrar de você por uma assinatura


do Only Fans48 — aviso.

— Apenas avaliando a concorrência — diz Rocco. —


Perguntando-me o que era tão atraente para minha noiva na noite
passada.

— Não sei do que você está falando — minto.

Eu gostaria de esfregar na cara de Rocco que eu estava


dançando com Zoe a noite toda, mas meu desejo de protegê-la é
mais forte.

— Não finja ser estúpido — diz Rocco. — E certamente não


finja que eu sou.

Ele tira o roupão, revelando seu corpo – magro, pálido,


razoavelmente em forma. Não há nada disforme nele. Mesmo
assim, sinto uma onda de repulsa, como se virasse uma pedra e o
encontrasse embaixo dela.

— Você está pensando que poderia me vencer em uma luta?


— Rocco diz, ligando seu chuveiro. — Talvez você possa. Você é
mais alto, mais pesado. Mas acho que falta uma certa maldade. A
vontade de ir além da linha. Além do que você pode considerar
desonroso, imoral e até nojento. Não tenho linha, Miles. Nenhuma
mesmo. Não há nada que eu não vá fazer.

48
É uma rede social onde qualquer pessoa pode criar um perfil e cobrar pelo acesso ao seu conteúdo, seja por
assinatura mensal ou por venda avulsa. Os usuários e influenciadores publicam conteúdo desde apoio
nutricional, aulas de música, ioga, consultoria de moda até conteúdo adulto.
Ele fica sob o jato de água do chuveiro, a água achatando seu
cabelo escuro de forma que gruda em seu crânio, sua pele cerosa
fazendo-o parecer mais do que nunca uma espécie de autômato de
plástico branco.

— Você acha que é a primeira pessoa que tentou me ameaçar?


— eu digo.

— Não — responde Rocco. — Você é um traficante, certo Miles?


Um negociador? Você acha que pode manipular as pessoas. Fazer
com que façam o que você quiser. É assim que você sente uma
sensação de poder – não pela violência, mas dobrando os homens
à sua vontade.

Apesar do banho quente, sinto um frio terrível nas entranhas.

— Você gosta da ideia de tirar Zoe de mim porque gosta de


zombar da autoridade. A escola, seus pais, meus pais, nosso
contrato de casamento. Você gosta de torcer o nariz para tudo isso.
E, no fundo, você tem um pouco daquele complexo de herói que
aflige tanto seu primo Leo. Você quer salvar Zoe porque tem pena
dela.

— Eu não tenho pena dela — eu rosno. — Eu a respeito.

— Respeita? — Rocco diz zombeteiramente.

Esse é um conceito estranho para ele. Duvido que ele respeite


seus próprios amigos ou mesmo sua família. Ele admira apenas a
si mesmo.

— Sim. Eu a respeito — eu digo. — Você não tem ideia. Você é


como uma criança limpando sua merda na Mona Lisa. Você não
poderia ser mais ignorante sobre o que ela vale.
— Você está errado aí — diz Rocco baixinho, seus olhos
brilhantes fixos em mim. — Eu vejo as qualidades de Zoe. Se ela
fosse fraca, se ela estivesse disposta, então não haveria nenhuma
diversão nisso. É o desafio de quebrá-la. A alegria de desconstruí-
la, peça por peça, depois reconstruí-la do jeito que eu quero que
ela seja. Reformando-a como vidro derretido. É claro que sempre
há uma chance de o vidro se estilhaçar..., mas se não, vou fazê-la
exatamente do jeito que eu quero.

Minhas entranhas estão agitadas. Eu quero rasgar a porra da


garganta dele, mostrar a ele como é ser rasgado em pedaços como
ele imagina fazer com Zoe. Eu conheci homens que eram
gananciosos, violentos, insensíveis. Mas nunca conheci alguém
tão destrutivo. Rocco tem alma de incendiário. Se ele tem alguma
alma.

Naquele momento, eu tomo uma decisão.

Vou salvar Zoe de Rocco. Não sei como, mas vou fazer. Não
para ser um herói. Vou fazer porque isso é errado pra caralho e
não pode acontecer. Ela nunca pode pertencer a ele.

Rocco vê a centelha de decisão em meu rosto. Ele é perceptivo,


admito.

Isso o irrita.

— Eu nunca deixei de conseguir o que eu quero Miles — ele


sibila. — Eu não sou como os outros homens que você enfrentou.
Eu não como. Eu não durmo. Eu não desisto. Eu não posso ser
ameaçado. Eu não posso negociar. Nenhum dos seus truques vai
funcionar em mim.

Eu fecho a água com um movimento brusco, sacudindo as


gotas do meu cabelo. Pego minha toalha e a enrolo na cintura,
lenta e deliberadamente, recusando-me a quebrar o olhar de laser
de Rocco.

— Você fala muito — eu digo a ele. — Você se acha inteligente


ou convincente. Acho que você é limitado. Raquítico. Patético,
muito honestamente. Você nem sabe o que não sabe.

Manchas de cor entram em seu rosto, borradas e aleatórias.

Rocco pode ler as pessoas, mas eu também posso.

Eu sei que o que ele quer mais do que qualquer coisa é ser
temido. Ele quer parecer formidável. Ele se acha mais inteligente e
mais forte do que todo mundo, simplesmente porque não está
sujeito às regras usuais de justiça ou compaixão.

Bem, eu também não dou a mínima para as regras.

Se Rocco acha que não vou jogar sujo, ele tem outra coisa
vindo.

Eu o enfrento sem nenhum traço de medo, cortando aquela


energia profana da qual ele se alimenta.

— Você acha que me entendeu, porque o quê? Gosto de fazer


negócios para conseguir o que quero? — Eu ando na direção dele
com passos rápidos, fechando a lacuna entre nós em alguns
passos. — Você acha que estou brincando, porque é isso que eu
permito que você pense. O que você precisa entender é que, se eu
decidir que você vai perder, é melhor escrever nas porras das
tábuas de pedra. Se eu voltar minha ira contra você, não vou parar
de chover fogo do inferno até que você e todos que o conhecem
terminem. Farei acordos que arruinarão sua vida e qualquer vida
potencial que você poderia ter. Você acha que é o único aqui que
fará algo psicopático? Vou arrancar sua garganta com meus
dentes e não vou perder uma única noite de sono por causa disso.
Você não tem ideia de até onde eu irei.

Rocco dá um passo assustado para trás. É instintivo,


compulsivo. Ele pretende se manter firme, mas não consegue.

Eu rio bem na cara dele. Porque eu sei que é isso que mais o
atormentará.

— Você é uma formiga do caralho para mim — eu digo.

Eu me viro e me afasto, deixando-o no silêncio ecoante de sua


própria raiva indefesa.

De volta ao meu quarto, visto minhas roupas, carregado com


um tipo de energia que nunca senti antes.

Eu estava pronto para estrangular Rocco ali mesmo. Deus, eu


queria fazer isso. Se ele tivesse dito uma palavra para mim, eu não
teria sido capaz de me conter.

E agora tenho esse fogo em mim, essa agressão não resolvida.

Tenho que fazer algo com isso, antes de explodir.

Ainda falta uma hora antes do início da aula.


Eu poderia ir para o refeitório. Mas tenho a estranha sensação
de que o que estou procurando não está lá. Na verdade, acho que
sei exatamente onde encontrar.

Desço as escadas da Octagon Tower, indo de dois em dois


degraus. Estou correndo pelo campus, certo de que essa
compulsão é baseada em algo real. Corro até o canto noroeste do
terreno e abro a porta da biblioteca.

Uma sensação bizarra de destino se apodera de mim. Nada


nem ninguém podem ficar no meu caminho. Olhando para a mesa
da Sra. Robin, já sei que estará vazia, que ela estará nos arquivos
remexendo nos mapas.

Eu procuro o que estou realmente aqui para encontrar. Eu


procuro pela biblioteca, as pupilas dilatadas na luz fraca da
lamparina, o sangue trovejando em minhas veias, até mesmo meu
olfato se intensifica, de modo que consigo sentir o cheiro daquele
doce perfume de âmbar antes mesmo de vê-la.

Zoe está na metade da rampa em espiral, sua mochila e uma


pilha de livros didáticos espalhados em uma mesa aberta. Ela está
parada nas prateleiras, na ponta dos pés, tentando alcançar um
livro encadernado em couro que está fora de alcance.

Deve ser o dia da lavanderia, porque ela está de volta com uma
saia xadrez depois de uma semana de calças. Enquanto ela se
estica o mais alto que pode para enganchar o livro com o dedo
indicador, sua saia sobe, revelando uma longa extensão de coxa
nua.

É sangue na água49.

49
Expressão usada para alguém que está prestes a atacar. Faz referência a tubarões e seu frenesi alimentar
quando o sangue é derramado na água.
O efeito sobre mim é totalmente desproporcional.

Alimentado pela agressão reprimida e uma insanidade recém-


descoberta, agarro Zoe por trás, um braço em volta de sua cintura
e uma mão tapando sua boca para que seu grito não traga a Sra.
Robin correndo de volta para cima.

Eu a agarro e jogo na fenda entre duas estantes, prendendo-a


no lugar com meu corpo preso na abertura. Eu a beijo com uma
ferocidade que nunca conheci. Em vez disso, toda a fúria que
prometi a Rocco é derramada sobre Zoe.

Eu destruo sua boca, envolvo minhas mãos em seu cabelo


preto sedoso, inalo aquele cheiro de seu pescoço, que me enrolou
aqui como uma isca brilhante e brilhante. Minhas mãos estão por
todo o rosto, seu corpo, até mesmo sob a saia para agarrar os
globos firmes de sua bunda.

Quando me afasto por um segundo, vejo seus olhos


arregalados e assustados, e seus lábios inchados se abrem em
confusão.

— Miles, que diabos? — ela engasga.

Eu mergulho novamente, beijando-a ainda mais forte. Após o


primeiro choque, sinto Zoe desistir. Seus braços envolvem meu
pescoço, seu corpo se esfrega contra o meu. Agora ela está na
ponta dos pés por um motivo diferente: pressionar cada centímetro
de seu corpo contra mim com todas as suas forças. É como se ela
estivesse se afogando e o único ar que ela consegue respirar é o
dos meus pulmões.

Ela é tão selvagem quanto eu, talvez até mais. Ela está se
deixando levar, total e completamente, talvez pela primeira vez em
sua vida. Ela morde o lado do meu pescoço com seus dentinhos
afiados, cravando as unhas nas minhas costas através do tecido
fino da minha camisa.

Eu acaricio seus seios através da blusa, aqueles seios fartos e


perfeitos que eu não consegui tirar da minha mente desde aquele
dia na muralha. Eles estão queimados em minhas retinas como o
clarão de um raio. Seus mamilos cutucam duramente através do
sutiã e eu tenho que soltá-los. Eu abro um botão, depois dois, em
seguida, abro o terceiro, puxando para baixo a frente do sutiã para
deixar seus seios derramarem em minhas mãos.

No momento em que toco seus seios, Zoe fica mole contra a


parede, como se eu tivesse assumido o controle dela. Ela solta um
gemido longo e torturado que sufoco com minha mão esquerda,
enquanto seguro e aperto seu seio com a direita.

Sua carne é macia e firme, o mamilo de uma delicada cor


bronzeada, ficando mais escuro a cada toque dos meus dedos. Eu
curvo minha cabeça para pegar seu seio em minha boca, e ela
morde minha mão cobrindo sua boca, gemendo impotente.

Depois que eu começo a descer, não quero parar. Eu caio de


joelhos e pego suas coxas, colocando-as sobre meus ombros.
Enganchando meu dedo sob o elástico de sua calcinha, eu a puxo
para o lado e enterro meu rosto em sua boceta.

Zoe está presa à parede, levantada com as pernas sobre meus


ombros. Meu rosto pressionado com força contra ela. Eu como sua
boceta como se estivesse morrendo de fome.

Nunca provei nada tão doce. Zoe já está encharcada. Minha


língua desliza entre seus lábios, então todo o caminho dentro dela.
Encontro seu clitóris e sugo suavemente e giro minha língua em
torno dele, até que Zoe faz um som que é quase como um soluço,
e posso dizer que ela está cobrindo a própria boca agora, tentando
abafar seu gemido com as duas mãos.

É impossível. Sua boceta está quente e latejante, e ela está


ficando cada vez mais molhada enquanto deslizo meus dedos
dentro dela e provoco seu clitóris com a minha língua. Ela esfrega
contra meu rosto, suas coxas apertando minhas orelhas. Ela não
vai conseguir segurar por muito tempo, vou fazê-la explodir como
nada que ela sentiu antes.

Eu lambo seu clitóris com a minha língua, uma e outra vez,


firme e forte. Meu rosto inteiro está manchado com sua umidade
e eu não dou a mínima, ninguém nunca cheirou ou provou melhor
do que essa garota, eu tomaria um banho de merda em sua boceta
se pudesse.

Eu encontro aquele lugar sensível dentro dela e o acaricio com


meus dedos enquanto lambo e giro seu clitóris com minha língua.
Quando eu encontro aquela combinação perfeita onde ela começa
a apertar em torno dos meus dedos, onde ela não está no controle
de seus quadris ou sua respiração ou qualquer outra coisa, então
eu bato de novo e de novo enquanto ela goza em cima de mim.

Agora não há como ficar quieta. Todo o corpo de Zoe treme


como se ela estivesse possuída. Ela solta um grito estrangulado
por entre as mãos, que é o som mais sexy que já ouvi na minha
vida.

Continuo lambendo-a, um pouco mais suavemente agora, até


ter certeza de que cada choque de prazer passou por ela, e todo o
seu peso desabou sobre meus ombros.

Então eu a coloco no chão suavemente, e me levanto para tirar


seu cabelo suado do rosto. Zoe está chorando, chorando de
verdade, uma trilha dupla de lágrimas escorrendo pelos lados de
seu rosto. Sinto uma pontada de culpa como se tivesse feito algo
errado. Limpo minha boca na manga e pego seu rosto em minhas
mãos para beijá-la, dizendo: — Você está bem, Zoe?

— Eu... eu... eu nunca... nunca senti nada parecido — ela


gagueja, seus dentes ainda batendo juntos, e arrepios percorrem
seu corpo em ondas.

— Foi bom, entretanto? — eu pergunto.

— Bom nem começa a descrever — diz ela.

Eu ainda a tenho presa entre as estantes – não para prendê-


la agora, só porque é quieto e escondido, e eu quero que ela se
sinta segura, quero que ela sinta que somos as únicas duas
pessoas no universo.

Zoe se aninha no meu peito, seu rosto pressionado contra meu


pescoço. Eu mantenho meus braços em volta dela e acaricio suas
costas com a palma da minha mão, tentando acalmá-la,
acalmando os tremores.

Eu não pretendia ter esse efeito sobre ela.

— Sinto muito — a voz abafada de Zoe vibra contra meu peito.


— Eu estou envergonhada. Eu não choro, normalmente.

— Eu sei que não — eu digo, inclinando seu queixo para cima


para fazê-la olhar nos meus olhos. — Não tenha vergonha. Você
pode ser o que quiser na minha frente, Zoe. Eu gosto de você de
todas as maneiras. E isso foi sexy pra caralho, a propósito. Eu
quero fazer de novo agora.

Zoe ri fracamente. — Não sei se conseguiria sobreviver a isso.


Ficamos exatamente onde estamos mais alguns minutos,
sussurrando e rindo juntos. Então, quando Zoe pode se levantar
novamente, eu a ajudo a juntar seus livros para ir para sua
primeira aula.

— Oh, Deus — ela murmura. — Tenho certeza de que a Sra.


Robin ouviu isso.

— Ela não estava por perto quando eu entrei — falo.

— Mesmo assim — Zoe diz, seu rosto rosa. — Eu gostaria de


ter um saco de papel para colocar na minha cabeça.

— Vamos — eu digo, pegando sua mão. — Vou distraí-la


enquanto você foge.

Ando um pouco à frente de Zoe, verificando se a barra está


limpa.

A Sra. Robin está realmente de volta à sua mesa, e pelo jeito


que ela olha por cima dos óculos para mim, tenho certeza de que
ela ouviu algo.

— Sra. Robin — eu digo — Você poderia verificar se alguém


colocou um livro de tributação internacional nos achados e
perdidos? Acho que deixei o meu aqui.

A Sra. Robin me dá uma piscada lenta que é muito mais


atrevida do que eu esperava da nossa bibliotecária tímida e, em
seguida, diz: — Certamente, Miles. — Ela se vira para revistar o
compartimento de achados e perdidos atrás de sua mesa.

Enquanto ela está ocupada, Zoe passa apressada, calada em


seus sapatos baixos no tapete grosso. Tenho a sensação de que a
Sra. Robin pode ouvir Zoe de qualquer maneira, porque ela passa
um tempo anormalmente longo curvada sobre a caixa, fingindo
vasculhar a pilha de objetos bem-organizada e facilmente
percorrida.

Endireitando-se de mãos vazias, a Sra. Robin verifica se


estamos realmente sozinhos, então diz: — Eu não sou uma idiota,
Miles.

Dou a ela um meio sorriso, as mãos enfiadas nos bolsos. —


Desculpe, Sra. Robin. Tenho certeza de que você se lembra da
imprudência da juventude. Eu não acho que você está muito longe
disso.

Ela sorri levemente em resposta, mas dura apenas um


momento antes de dizer: — Espero que você saiba o que está
fazendo, Miles. Este não é um jogo para ela.

— Não é para mim, também. Eu te prometo isso.

Ela me examina com aqueles olhos escuros que contrastam


fortemente com seu cabelo ruivo vivo. Os óculos escorregaram por
seu nariz novamente. Ela não precisa deles para me dar um olhar
de raio-x.

— Eu acredito em você — ela diz finalmente. — Seja cuidadoso


do mesmo jeito.

— Eu vou — concordo.

Eu pretendo ser cuidadoso.

Mas não posso prometer ser seguro.


CAT

O primeiro desafio do Quartum Bellum acontece no final de


novembro. É uma carnificina – provável que fisicamente seja dia
mais horrível da minha vida.

Todos nós sabíamos o que estava por vir, porque por semanas
vimos a equipe de jardinagem construindo a pista de obstáculos
fora do castelo: uma máquina Rube Goldberg50 com cordas,
roldanas, pilares, paredes, trincheiras, redes e peças móveis. No
entanto, foi feita para sermos as bolas rolando. Esta máquina foi
projetada para nos cuspir, não nos guiar ao longo do caminho.

Os requisitos são simples: uma corrida do início ao fim. Cada


membro de cada equipe precisa passar por isso antes que seu
tempo seja contado.

Ainda magoados com a virada do ano anterior, está claro que


os veteranos planejam jogar sujo. A partir do momento em que o
professor Howell dispara sua pistola para o ar e todos nós saímos
da linha de partida, os alunos do terceiro e quarto ano não têm
problemas para derrubar os alunos mais novos das paredes e nos
chutar para a lama. Eu esperava que a antipatia deles fosse
dirigida à turma do segundo ano de Leo, mas eles parecem

50
Espécie de máquina que executa uma tarefa simples de maneira extremamente complicada, geralmente
utilizando uma reação em cadeia. Essa expressão foi criada em referência ao cartunista americano e inventor
Rube Goldberg, autor de diversos dispositivos com essa base de funcionamento.
igualmente determinados a garantir que os calouros fiquem onde
nós pertencemos: em último lugar.

Não ajuda que tenha chovido toda a semana anterior. A terra


revolvida é um mar de lama. Em minutos, a lama cobre cada um
de nós da cabeça aos pés, até que eu mal consigo distinguir amigo
de inimigo.

August Prieto foi eleito capitão dos calouros. Ele é um herdeiro


brasileiro de uma família de narcotraficantes. Ele é popular em
nosso ano porque é bonito e atlético. Acho que os calouros
esperavam que ele fosse nossa versão de Leo Gallo. Rapidamente
fica claro que August não possui as habilidades de liderança
necessárias. Ele leva o calouro mais rápido e forte através do
percurso com velocidade impressionante, mas abandona o resto
de nós para lutar por conta própria, uma façanha impossível
quando vários dos obstáculos não podem ser concluídos sem
ajuda.

Por outro lado, Leo fica atrás de seu grupo, garantindo que
nenhum retardatário seja deixado para trás. Quando ele vê um
obstáculo, ele coordena seus companheiros de equipe mais fortes
para ajudar os mais fracos, para que alguém como Matteo Ragusa
seja fisicamente levantado e atirado contra a parede por Silas
Gray.

Eu faço o meu melhor para acompanhar. Como camada após


camada de lama cobre meu corpo, mal consigo levantar meus
braços e pernas. Estou ficando para trás e posso ver que muitos
alunos terminaram o curso enquanto estou apenas na metade.

É humilhante. Não sei o que farei se for à última a terminar.


Posso perder o desafio para todo o time de calouros.
Enquanto tento rastejar por um longo e plano trecho de lama
com arame farpado pendurado no alto, recebo um choque terrível
– literalmente. O fio está carregado. Cada vez que toca minha pele
nua, uma onda de eletricidade rasga meu corpo, fazendo meus
dentes baterem juntos.

Isso é pior para os alunos mais volumosos que não conseguem


evitar tocar nos fios. Sou pelo menos pequena o suficiente para
deslizar sob a maioria deles sem fazer contato. Um calouro
musculoso está praticamente em lágrimas enquanto é sacudido
novamente e novamente e novamente.

Acho que essa é a pior parte até chegar ao rolo compressor,


um labirinto de pêndulos oscilantes, toras rolantes e plataformas
inclinadas projetadas para nos jogar no mar de lama lá embaixo.
Cada vez que somos lançados na lama, temos que começar a seção
novamente. Sou derrubada três, quatro, cinco vezes, até que mal
consigo reunir forças para rastejar para fora da lama.

Apenas uma dúzia de alunos permanece atrás de mim.


Limpando a lama dos meus olhos, juro para mim mesma que vou
sobreviver. Tento parar de me concentrar em um pedaço do rolo
compressor por vez e, em vez disso, vejo o padrão geral de
movimento. Tem um ritmo, um movimento regular.

Com as mãos em carne viva, meu corpo inteiro latejando como


um hematoma gigante, corro, agacho-me, pulo e deslizo, até
chegar ao outro lado. Eu poderia chorar de alívio.

A última parede tem seis metros de altura. Sem cordas, sem


apoios para os pés. Não há como superar sem ajuda.

Anna e Zoe ajudam o último dos alunos do segundo ano.

— Cat! — Anna grita. — Por aqui!


Ela está no topo da parede, estendendo o braço pálido e
coberto de lama para mim.

Eu corro e pulo o mais alto que posso, mas meus dedos ficam
aquém dos dela.

— Espere! — ela diz.

Ela pula a parede de volta, caindo do meu lado.

— Sinto muito — digo — nem estou no seu time.

— Quem se importa? — ela diz. — Suba nos meus ombros.

Ela me levanta e Zoe ajuda a me puxar.

Eu corro com elas até o fim.

Os calouros terminam em último e são eliminados da


competição. Pelo menos não é minha culpa – outros oito ficaram
atrás de mim.

Os alunos do segundo ano ficam em segundo lugar, atrás dos


veteranos. Os alunos do terceiro ano terminam em terceiro lugar,
a salvo de eliminação, resultado que parece incomodar Miles e
Ozzy, pois significa que eles terão que continuar competindo na
próxima fase. Eles não caem no entusiasmo feroz em torno do
Quartum Bellum, especialmente quando se trata de sujar tudo.

— Vou tirar lama dos meus dentes por uma semana — Miles
diz amargamente, cuspindo na grama.

— Não acredito que me fizeram participar quando ainda sou


um aleijado! — Ozzy reclama, olhando para seu pobre braço
enfaixado, com cinco centímetros de lama.
— Não é suposto que lama seja bom para a sua pele? — Chay
diz, fingindo massagear a sujeira em suas bochechas com a ponta
dos dedos.

— Bom ponto — diz Ozzy. — Você quer esfregar em qualquer


outro lugar?

— Eu gostaria que você pudesse me ajudar — Chay diz,


fingindo fazer beicinho. — Mas, como você disse, você mal
funciona...

— Acho que você sabe que isso não é verdade — Ozzy rosna,
agarrando-a com o braço bom.

Chay ri e solta seu aperto, dançando para longe dele, mas não
muito longe.

Minha irmã me disse que Chay ainda se recusa a namorar


Ozzy. Por outro lado, ela tem desaparecido por um período suspeito
de tempo, voltando para os dormitórios corada e bagunçada,
recusando-se a dizer onde esteve.

Não tenho perspectivas românticas no horizonte, e certamente


não estou procurando por nenhuma.

No entanto, estou satisfeita que meu relacionamento com


minha colega de quarto Rakel tenha progredido para conversas
inteiras.

Tudo começou quando pedi emprestada sua história em


quadrinhos.

Foi uma incursão ousada da minha parte, já que, até aquele


ponto, eu tinha certeza de que Rakel não me emprestaria seu
dióxido de carbono, muito menos seu livro favorito.
Eu estava lendo a autobiografia de Benjamin Franklin como
parte da minha aula de Líderes, Governantes e Ditadores quando
me deparei com esta citação:

“Tendo ouvido dizer que um legislador rival tinha em sua


biblioteca um certo livro muito raro e curioso, escrevi uma nota para
ele, expressando meu desejo de examiná-lo, e solicitando que ele me
fizesse o favor de emprestá-lo para mim por alguns dias. Ele o
enviou imediatamente, e eu o devolvi em cerca de uma semana com
outro bilhete, expressando fortemente meu sentimento de favor. Na
próxima vez que nos encontramos em House, ele falou comigo (o que
nunca havia feito antes), e com grande civilidade; e desde então ele
manifestou disposição para me servir em todas as ocasiões, de
modo que nos tornamos grandes amigos, e nossa amizade
continuou até sua morte.”

Parecia paradoxal que pedir um favor a alguém faria com que


gostasse mais de você, mas Franklin disse: “Aquele que uma vez
lhe fez uma bondade estará mais disposto a fazer outra do que
aquele a quem você mesmo agradeceu”.

Achei que o velho Ben provavelmente sabia do que estava


falando.

Então, pedi a Rakel que me emprestasse a história em


quadrinhos, aquela que a vi lendo em nosso primeiro dia de aula
e muitas vezes depois.

Ela me encarou, seus olhos escuros afiados e desconfiados,


suas unhas pontudas tamborilando irritadamente na cama.

Então, para minha surpresa, ela tirou o livro da mesa de


cabeceira e o colocou em minhas mãos.

— Não amasse as páginas — disse ela.


Li tudo naquela noite. Isso me sugou instantaneamente. Era
sobre um bando de super-heróis chamados “The Watchmen”. Eles
não eram realmente heróis. Na verdade, a maioria deles eram
completos idiotas. E o vilão tinha um plano que era não ser
totalmente razoável, pelo menos voltado para o bem maior.

Na manhã seguinte, Rakel disse: — O que você achou?

Conversamos sobre isso por mais de uma hora, até o refeitório


onde tomamos café da manhã juntas pela primeira vez.

No dia seguinte, ela perguntou se eu queria emprestado seus


quadrinhos de “The Walking Dead”.

Falar sobre histórias em quadrinhos se transformou em falar


sobre filmes e música.

Eu pergunto a Rakel sobre seu death metal, confusa sobre


como aquele som caótico pode ser realmente agradável.

— Não é death metal, é black metal — diz ela. — Há uma


diferença. E não é apenas música, é uma religião para mim. É
sobre misticismo, mortalidade e imortalidade... os concertos
podem durar horas, com velas e incenso e ofertas cerimoniais. Nós
a chamamos de Ulfsmessa, a Missa do Lobo.

Ela toca algumas das músicas para mim. Não posso dizer que
gosto delas exatamente, mas posso ver que elas têm mais
complexidade do que eu imaginava. Elas podem ser assustadoras
e até mesmo emocionantes.

— Tudo vem de viver na terra de escuridão sem fim. E pior do


que isso, o sol da meia-noite — diz Rakel. — Você não pode
imaginar a insônia no verão. É por isso que gosto daqui. — Ela
acena com a cabeça em direção ao nosso telhado de pedra
arqueado e nossas paredes sem janelas. — É sempre noite quando
eu quero dormir.

Acima de tudo, nós nos conectamos por meio de nossas aulas


de hacking. Rakel me disse que toda a razão pela qual ela veio para
Kingmakers foi para obter instruções explícitas em técnicas de
dark web. Ela está extremamente frustrada com nosso acesso
restrito à tecnologia.

— Eu odeio ser capaz de praticar apenas durante as aulas.


Quero meu próprio laptop e acesso à internet — ela ferve.

Hesito, não tenho certeza se devo dizer a ela que isso seria
possível.

— Você conhece Miles Griffin e Ozzy Duncan? — indago.

— Claro. — Ela acena com a cabeça.

— Eles podem ser capazes de ajudá-la com isso.

Ao sairmos de nosso quarto, encontramos Hedeon Gray.

— O que você está fazendo aqui embaixo? — eu digo surpresa.

Hedeon me olha carrancudo. — Que porra é da sua conta?

— Só perguntando. — Eu encolho os ombros.

— Bem, vá se foder em vez disso — diz Hedeon, passando por


mim a caminho das escadas.

— Encantador — Rakel diz depois que ele sai.

— Ele é sempre assim — falo, embora, na verdade, tenha sido


extremamente rude, mesmo para Hedeon.
Atrás de nós, Saul Turner sai de seu quarto, também indo para
as escadas.

— Ei, meninas. — Ele nos dá um aceno de cabeça ao passar,


desleixando-se com as mãos enfiadas nos bolsos.

— Você acha que Hedeon estava no quarto de Saul? — eu


pergunto a Rakel em voz baixa.

Ela encolhe os ombros. — Pode ser. Não sei por que ele estava
tão irritado com isso – nenhuma regra contra visitar outros alunos.

Enquanto subimos as escadas e saímos da velha adega no


nível do solo, posso ver o corpo longo e esguio de Saul indo na
direção da biblioteca. Hedeon desapareceu.

— Vamos lá — diz Rakel, puxando o suéter bem apertado em


torno dela para tentar bloquear o vento. — Vamos correr para a
aula – está congelando pra caralho.
ZOE

Miles e eu temos nos visto regularmente desde aquele dia na


biblioteca.

É difícil porque não podemos ser vistos sozinhos. Mesmo


quando estamos em um grupo com Leo e Anna, Ares, Hedeon,
Chay, Ozzy e Cat, tenho que ter cuidado para não me sentar perto
de Miles com muita frequência, para não olhar para ele muito
obviamente. E especialmente não o tocar, não importa o quanto eu
queira fazer isso.

Às vezes, um cacho escuro cai sobre seu olho e a tentação de


limpá-lo do seu rosto é quase irresistível. Quando sua mão está a
apenas alguns centímetros da minha na mesa da sala de jantar,
eu quero tanto sentir seus dedos quentes envolvendo os meus. É
uma dor física, um desejo mais forte do que qualquer outro que
experimentei por comer ou dormir.

Então, quando finalmente estamos sozinhos e eu posso ceder,


seu toque na minha pele está muito além do prazer – é todo o
caminho para a necessidade. Eu tenho que ter isso. Quanto mais
eu consigo, mais eu quero.

Nós não fizemos sexo. Nós dois sabemos que isso seria cruzar
um limite sério. Meu contrato de casamento estipula que chegarei
virgem em minha noite de núpcias, e não acho que os Princes serão
tolerantes nesse ponto. Então, dançamos em torno disso, beijando
e tocando um ao outro, com Miles frequentemente repetindo o que
fez comigo na biblioteca, às vezes três ou quatro vezes até todo o
meu corpo vibrar como uma nota musical, e até mesmo o ar contra
a minha pele parecer orgástico como sua língua entre minhas
pernas.

Não é apenas físico – quanto mais escapamos juntos, mais


viciada em sua companhia eu me torno.

Não sei como imaginei que seria namorar, nunca tendo feito
isso antes. Suponho que pensei que fosse sexo ou conversas
formais durante o jantar. Nunca imaginei que pudesse ser
divertido e lúdico, como estar com Cat ou Chay e Anna, mas
melhor ainda, porque o riso e a conversa são amarrados com esse
fio brilhante de atração, com um interesse raivoso um pelo outro
que é inebriante, que faz o tempo derreter como o açúcar na água.

Às vezes, nós nos encontramos com Leo e Anna para tocar


música e dançar juntos como se estivéssemos formando nossa
própria boate.

Às vezes, mostro a Miles o projeto em que gosto de trabalhar


nas horas vagas, aquilo que nunca mostrei a ninguém antes, nem
mesmo a Cat.

É uma história. Só que é escrito como uma peça, com diálogo.


Também há longas passagens descritivas. É sobre uma garota que
vê o futuro, mas não consegue mudar o resultado dos
acontecimentos, não importa o quanto ela tente.

Fiquei com vergonha de mostrar a ele. Só o fiz porque ele me


perguntou sem rodeios, dizendo: — O que é essa coisa que você
está sempre escrevendo?
— O que você quer dizer? — falei, honestamente não pensando
na história. Eu não teria pensado que Miles tinha notado que eu
estava trabalhando nisso.

— Naquele caderno verde — Miles disse. — Eu sei que não é


trabalho escolar, porque você nunca olha seus livros e sempre se
inclina sobre isso como se fosse segredo.

Meu rosto ficou quente, percebendo do que ele estava falando.


Não havia como negar quando eu estava corando tanto.

Mostrei a história a ele, falando: — É bobagem, só trabalho


para desabafar. Eu nem sei o que é.

Miles leu vinte páginas, focado e sem sorrir, até que eu não
pude mais suportar o suspense e o arranquei de suas mãos.

— Isso é o suficiente. Como eu disse a você, é bobo.

— Não é bobo — Miles disse, fixando-me com seus olhos cinza


claros. — É fascinante. Você é talentosa, Zoe.

Eu balancei minha cabeça, incapaz de continuar olhando para


ele. — Não é nada. Nem mesmo uma história adequada.

— Não é uma história — disse Miles. — É um roteiro.

— Como um roteiro de filme? — Eu ri. — Algo tem que se


tornar um filme antes que possa ser um roteiro.

— Isso é ao contrário. — Miles sorriu para mim.

— Quero dizer... tem que haver alguma intenção para que seja
um filme.

— Deveria ser um filme — Miles disse. — Eu assistiria.


— Você está apenas me lisonjeando.

— Não, eu não estou. — Ele estava sério de novo, pegando o


caderno de volta de mim, querendo ler mais. — Eu sei quando algo
é bom e quando não é. Eu não mentiria para você.

Seu elogio significou mais para mim do que qualquer um que


eu já recebi antes. Eu acreditei em Miles quando ele disse que não
mentiria. Eu acreditei que ele era um bom juiz.

Ele é esperto. Inteligente pra caralho. Eu não tinha percebido


isso antes. Eu só tinha visto pedaços de Miles, nunca quando ele
estava engajado em seus interesses reais. Eu só tinha visto o Miles
que estava entediado com suas aulas, ou relaxado no Quartum
Bellum. Quando ele realmente se preocupa com alguma coisa, ele
tem um foco incrível.

Agora ele está voltando seu foco para mim, e é quase


assustador. Eu descobri essa pessoa completamente diferente que
me intimida.

Ele me conta tudo sobre seus negócios paralelos.

Sua rede de distribuição de contrabando é chocantemente


complexa. Não é tão fácil quanto subornar os pescadores e os
costeiros para contrabandear coisas nos navios de abastecimento.
Ele tem toda uma rede interligada de trocas, incluindo contatos
em Dubrovnik, Tirana e Bari, que fornecem os itens e lidam com o
pagamento para as centenas de pessoas envolvidas.

— Como você mantém o controle de tudo isso? — eu indago.

— Honestamente, eu não sei — Miles diz. — É assim que meu


cérebro funciona. Posso ver o sistema como um todo, com todos os
pequenos pontos de junção. Cada um desses pontos é uma pessoa,
cada uma com um problema e uma solução. Quando você os
interconecta perfeitamente, o sistema se alimenta sozinho.

O que acho fascinante sobre os métodos de Miles é o quão


poderoso eles o tornam. Sem ameaças ou violência ou um exército
de seguidores, Miles é uma das pessoas mais influentes da ilha.
Todo mundo o conhece. Todo mundo lhe deve favores. Ninguém
quer foder com ele porque arriscaria de ter acesso às coisas que só
ele pode fornecer.

Todo mundo exceto Rocco, é claro.

Ele é a única pessoa que não está interessada no que Miles


tem a oferecer. O que Rocco quer, Miles se recusa a lhe dar.

Os conflitos de Rocco, Wade Dyer, Jasper Webb e Dax Volker


contra Miles e Ozzy continuam e aumentam. Quase não passa um
dia sem algum tipo de desentendimento. Isso me assusta porque
parece que está se preparando para algo pior. Eventualmente,
essas lutas vão estourar os limites do que pode ser escondido dos
professores, e então haverá consequências de um tipo totalmente
diferente.

Esse não é o único conflito com o qual estamos lidando.

Leo e seu primo Dean ainda estão se desentendendo.

Houve um curto armistício no início do ano letivo. Achei que


Dean percebeu que tinha ido longe demais tentando afogar Leo.
Até pensei que ele poderia sentir algum sentimento de gratidão por
Leo não ter contado às autoridades da escola.

Se Dean sentiu qualquer obrigação a esse respeito, ela se


dissipou assim que ele teve que assistir Anna e Leo namorando
abertamente.
Ele está ficando cada vez mais sombrio a cada semana, e está
atacando todos ao seu redor. Seu pequeno grupo de amigos,
incluindo Bram Van Der Berg e Valon Hoxha, tornaram-se quase
tão temidos quanto Rocco e seus amigos. Eles são cruéis sem
razão. Eles intimidam qualquer pessoa de quem não gostam. Uma
vez que isso inclui principalmente qualquer pessoa amiga de Leo,
isso colocou Dean e Leo em um conflito quase constante.

Esta tarde estamos na aula de Combate no Arsenal. É


principalmente Heirs e Enforcers, mas Matteo Ragusa também
está aqui.

O problema começa quando Dean deliberadamente forma


pares com Matteo para treino, ordenando que o amigo de Matteo,
Paulie White, seja parceiro de Bram.

— Desculpe — Paulie murmura para Matteo, com muito medo


de recusar.

Matteo enfrenta Dean, seus punhos envoltos desajeitados no


final de seus braços magros. Ele está curvado e já estremecendo,
sabendo que Dean não tem intenção de pegar leve com ele.

Dean o persegue com uma graça fácil que seria linda se não
fosse tão cruel. Sempre me impressionou como Dean e Anna são
parecidos, ambos pálidos e belos com a sutileza de uma dançarina.
Dean é o que Anna seria se nascesse homem, despida de toda sua
bondade e humor.

Anna pode estar pensando a mesma coisa. Ela observa Dean


inquieta, esquecendo que ela e eu deveríamos estar lutando.

Dean brinca com Matteo, lançando fintas leves em sua


direção, fazendo Matteo tropeçar em seus próprios pés tentando
fugir dele. Então, sem aviso, Dean varre a perna de Matteo debaixo
dele e agarra seu braço no caminho para baixo, puxando-o
violentamente para cima atrás de suas costas até que Matteo grita.

Dean o solta, mas Matteo está segurando seu braço, com


lágrimas nos olhos. Seu rosto redondo está rosa brilhante, e posso
dizer que ele está tanto envergonhado quanto magoado, tentando
não sucumbir à dor.

Isso não satisfaz Dean nem um pouco.

— Levante-se — ele late para Matteo. — Vamos novamente.

— Não! — Leo se encaixa, caminhando pelos tatames. —


Deixe-o em paz.

— Aí vem o Doberman para proteger seu cachorrinho — Dean


zomba. — Você limpa a bunda dele também, Leo?

— Ele está aqui para aprender a lutar — diz Leo. — Não ser
seu saco de pancadas.

— Ele não aprendeu, no entanto — Dean sibila. — Ele não


aprendeu porra nenhuma. Olhe para ele. Ele é tão patético quanto
no primeiro dia de aula.

— Ele está bem — Leo fala, agarrando o braço bom de Matteo


e ajudando-o a se levantar.

— Nós não terminamos — Dean ataca Matteo, olhos estreitos.


— Temos mais duas rodadas.

— Eu vou lutar com você então — Leo diz, olhando de volta


para ele.
— Gostaria de poder — Dean zomba. — Mas nós lutamos
ontem. O professor Howell diz que precisamos passar por todos os
parceiros.

— Eu farei isso, então — Ares diz.

Ares estava emparelhado com Leo e até agora tinha assistido


ao confronto em silêncio. Sua voz baixa corta Dean de uma forma
que faz com que todos fiquem em silêncio.

Dean sorri, não se intimidando com o tamanho de Ares.

— Ainda melhor — diz ele.

Eles se enfrentam, Dean quicando levemente em seus pés, e


Ares parado com as esteiras profundamente recuadas sob seu
peso. Dean é um pouco mais baixo que Ares, mas todos nós
sabemos o quão rápido e selvagem ele é. Ele era um lutador de
boxe em Moscou, lutando nos túneis abandonados do metrô sob a
cidade. Segundo ele, nunca perdeu uma luta. Quando ele e Leo
entram em conflito, como em várias ocasiões, é inevitavelmente
confuso e sangrento, sem um vencedor claro.

Ares não é pacifista – ele se envolveu em uma briga com Bram


e Valon no ano passado. Mas ele não gosta de lutar, e mesmo na
aula de Combate ele é cuidadoso e contido, nunca perdendo a
paciência.

Dean claramente vê isso como mais uma oportunidade de


irritar Leo, dando uma surra em um de seus amigos. Ele circula
Ares com óbvia intenção de ferir.

Ele vai duro, chovendo um ataque implacável de socos quase


rápido demais para meus olhos seguirem. Ares mantém os punhos
erguidos, mas a chuva de golpes o atinge com força nas costelas,
ombros e na lateral de sua cabeça. Ele bloqueia o pior, embora eu
tenha certeza de que ainda dói.

A maioria dos outros alunos parou de treinar para assistir. Até


o professor Howell muda de posição ao redor da borda do tatame,
seu apito levantado aos lábios para interromper a luta se
necessário, mas seus olhos escuros fixos nos meninos com
interesse vigilante.

Insatisfeito com seu ataque inicial, Dean ataca ainda mais


forte, balançando o punho como martelos diretamente na cabeça
de Ares. Ele dá um golpe forte sob o olho de Ares. Ares responde
com um cruzado de direita que joga Dean para trás. Eu posso ver
a surpresa no rosto de Dean, e o novo nível de cautela enquanto
ele circula, tentando pegar Ares sem equilíbrio.

Dean acerta Ares no corpo de novo e de novo, cada baque alto


e distinto no ginásio quase silencioso. A mandíbula de Ares está
tensa, seu rosto rígido. A cada golpe que o atinge, as manchas
coloridas nas bochechas de Ares ficam cada vez mais escuras.
Tenho a estranha sensação de que ele está permitindo que Dean o
acerte. Mas toda vez que Dean força, algo se constrói dentro de
Ares. Algo muito parecido com fúria.

Dean ataca sua cabeça novamente, esbofeteando Ares com


socos que são rápidos e fortes, indo para ele em uma enxurrada
de todas as direções. É implacável, furioso, muito além do nível de
agressão que devemos mostrar no treino.

O professor Howell não os impede. Ele quer ver como Ares vai
responder, tanto quanto o resto de nós.

Finalmente funciona – Ares se encaixa. Com um uivo de raiva,


ele ataca Dean com força total. Ele balança seus socos com toda a
sua massa atrás deles, e todos os benefícios de seu longo alcance.
Ele bate os punhos em Dean de lado, acertando-o no nariz e na
mandíbula.

Longe de acalmar Ares, os golpes acertados apenas o


enfurecem ainda mais. Ele perdeu totalmente o controle, rugindo
como um animal enquanto acerta Dean novamente e novamente
com os dois punhos.

Dean atira de volta, acertando Ares no lábio inferior.

Ares o acerta de volta com a mesma rapidez, um soco tão forte


que Dean cambaleia e cai de joelhos, algo que nunca vi antes.

Com o rosto corado, os olhos selvagens, Ares ergue o punho


novamente, pronto para torcer a cabeça de Dean com um golpe
final.

O apito de prata frio corta o ar entre eles, avisando Ares para


parar.

Ares deixa cair os punhos, o peito arfando com respirações


pesadas. Ele me lembra Hércules, enlouquecido por um momento,
balançando a cabeça enquanto volta a si. Ele parece chocado e um
pouco horrorizado. Assustado também – com medo de como ele
perdeu o controle.

Dean pula de pé, olhando para Ares com uma expressão


calculista. Longe de ficar chateado com a reviravolta
surpreendente da luta, ele parece estranhamente satisfeito
enquanto cospe sangue no chão.

Leo vai até Ares e coloca a mão em seu ombro, fazendo Ares
pular.

— Ei. Você está bem? — Leo pergunta.


— Sim. Estou bem — Ares responde.

Sua expressão quase voltou ao normal. Mas posso ver suas


mãos embrulhadas tremendo.

— Que porra foi essa? — Anna murmura para mim.

— Você conhece Dean — eu digo a ela. — Ele irrita todo


mundo.

— Isso ele faz — Anna concorda. Ela ainda está olhando para
Ares, franzindo a testa.

Eu entendo o que ela está pensando.

Eu notei a mesma coisa.

Por um minuto, Ares não se parecia com ele mesmo. Ele era
uma pessoa completamente diferente.

O Natal está chegando. Sempre gosto dessa época do ano na


escola, porque o refeitório é decorado com ramos de abeto fresco e
os professores fazem uma pausa no currículo usual para nos dar
aulas que podem até ser consideradas divertidas.

A professora Lyons nos mostra como fazer doces de LSD, que


ela nos convida a provar. Por mais desconfiada que eu seja para
aceitar qualquer tipo de comida da envenenadora mais famosa da
era moderna, pego dois pedaços do bolso pensando que talvez
tenha coragem de experimentar um dia.

O professor Holland apaga todas as luzes de sua sala de aula


e atua como o Narrador para o jogo Máfia, dizendo que é uma
ilustração útil de intenção e engano. Como o professor bebeu de
um cantil a tarde toda, não tenho certeza se ele realmente acredita
que isso nos ensinará alguma coisa, mas todos gostamos do jogo
de qualquer maneira.

Nem todos os alunos gostam de ficar presos na escola quando


preferem estar em casa com suas famílias. Este é o momento de
pico das saudades de casa, especialmente entre os calouros, que
não estão acostumados a ficar tão isolados.

Felizmente para mim, a única família que quero ver está aqui
na escola comigo. Cat e eu passamos horas juntas fazendo cartões
de Natal para nossos amigos.

Os cartões da Cat são, é claro, infinitamente mais bonitos que


os meus. Ela pinta paisagens da Kingmakers: a catedral, a
Octagon Tower, a vista do Solar e assim por diante.

Eu escolho desenhos simples e alcançáveis, como um floco de


neve ou um ramo de visco. Como os meus são mais fáceis, termino
antes dela e passo o resto do tempo trabalhando na minha
história, ou no meu ‘roteiro’ como comecei a pensar, por mais
pretensioso que pareça.

É extremamente agradável rabiscar enquanto ouço o barulho


do pincel de Cat e a música tocando no alto-falante de Anna.
Comemos laranjas embrulhadas em papel trazidas do refeitório e
caramelos feitos à mão comprados na aldeia.
Estamos trabalhando no quarto de Chay e Anna porque é
maior que o meu. Cat e eu mal cabemos no meu quarto ao mesmo
tempo, e definitivamente não haveria espaço para materiais de
arte.

Quando ouço uma batida na porta, presumo que seja Chay ou


Anna voltando da aula. Em vez disso, encontro Miles parado ali,
parecendo elegante em uma camisa social perfeitamente ajustada
com as mangas arregaçadas para mostrar seus antebraços
bronzeados. Miles sempre parece bronzeado, mesmo quando não
temos sol há semanas. Seu rosto está recém barbeado, revelando
a pequena fenda em seu queixo e as linhas quadradas de sua
mandíbula. Seus cachos escuros estão úmidos.

— O que você está fazendo aqui? — falo, tentando não sorrir


muito.

Miles dá uma rápida olhada no quarto para verificar quem está


presente antes de responder. Ele sempre é cuidadoso dessa forma,
o que eu sei é mais para meu benefício do que para o dele.

— Eu preciso ver você hoje à noite — ele diz. — Eu tenho uma


surpresa para você.

— Não gosto de surpresas — digo a ele.

— Você vai gostar ao vir de mim — diz ele, mostrando aquele


sorriso torto que tem um efeito irresistível em mim.

Uma bola de calor se expande dentro do meu peito. E é cada


vez maior a cada momento que Miles fica na minha frente. Apesar
do que disse sobre surpresas, estou animada para passar algumas
horas em sua companhia.

— Nove horas — Miles me diz. — Eu te encontro atrás do Solar.


— Eu estarei lá — eu confirmo.

— Até mais, Cat — Miles grita por cima do meu ombro.

Cat levanta a mão respingada de tinta em um aceno.

Miles lança um rápido olhar para o corredor, depois me beija


tão rapidamente que mal tenho tempo de sentir sua boca antes de
ele ir embora. Meus lábios queimam mesmo assim, por muito
tempo depois.

Eu gostaria de ter algo para dar a Miles no Natal. A única


pessoa que poderia me vender um bom presente seria o próprio
Miles, e eu quase não tenho dinheiro. Meu pai nunca deu a mim
ou a Cat uma mesada generosa.

Eu fiz uma pulseira de couro para Miles. Cat me mostrou como


fazer. Não é tão profissional quanto teria sido se Cat tivesse feito,
mas eu estava determinada a fazer o trabalho sozinha e acho que
ficou muito bom.

Miles tem um senso de estilo distinto, então espero que ele


goste ou pelo menos não se sinta obrigado a usá-la se não gostar.

Enrolo a pulseira em papel colorido e escrevo uma nota para


Miles no cartão de visco.

Depois, passo muito tempo me vestindo, imaginando qual


seria a surpresa.

O que eu disse a Miles era verdade – nunca gostei de


surpresas. Mas isso é porque geralmente são desagradáveis. Já o
conheço bem o suficiente para presumir que talvez realmente goste
de seus planos para a noite. Na verdade, provavelmente vou. Eu
só tenho que deixar de lado essa necessidade de estar preparada,
aquele desejo desesperado de controle que sempre senti, apesar de
nunca ter realmente tido nenhum controle significativo em minha
própria vida.

Quando sua vida é um acidente de carro em câmera lenta, você


tenta compensar controlando coisas estúpidas e insignificantes.
Para mim foram as notas. Em Barcelona não pude escolher o meu
horário nem os meus amigos, mas pelo menos consegui uma nota
perfeita nas provas. Isso me rendeu elogios de meus professores e
até mesmo ocasionalmente de meu pai.

Tentei ser perfeita para agradá-lo e aplacar Daniela. Nunca


funcionou.

Sempre me vesti bem, sapatos engraxados, cabelo penteado.


Eu mantive meu quarto impecável, roupas organizadas por cores,
livros alinhados perfeitamente na estante com todas as lombadas
precisamente na mesma profundidade. Eu sempre cheguei na hora
certa. Eu nunca fumei ou xinguei.

Ações inúteis tornam-se cruciais, até compulsivas.

Na verdade, eu vejo um pouco disso em Dean Yenin. Vejo como


ele alinha seus cadernos e lápis na mesa. Como suas roupas e sua
pessoa são sempre esfregadas e limpas. Como ele lava as mãos
repetidamente após as aulas de pontaria ou química.

É gesso sobre rachaduras. Eu vejo e reconheço. Não sei quais


são os danos, mas vejo como ele tenta consertar seu universo,
desesperado e ineficazmente. Eu teria pena dele se ele não fosse
um idiota.

Mesmo no meu primeiro ano em Kingmakers, tentei muito


seguir as regras.
E para quê? Eu acreditava, no fundo, que meu pai teria pena
de mim e me libertaria de Rocco?

Eu sei que ele não vai.

Entra Miles Griffin. Ele não é apenas um quebrador de regras,


ele é um quebrador de regras. Ele subverte todas as ordens, dança
em torno das barreiras como se elas nem estivessem lá.

Eu deveria estar horrorizada com ele.

Em vez disso, me sinto como um homem das cavernas que


acaba de ver uma fogueira pela primeira vez.

Miles pega o proibido e usa-o em seu proveito – usa-o como


uma ferramenta.

Eu o admiro. E, Deus, como eu o invejo.

Eu espero atrás do Solar por Miles, vestida com uma saia e


salto alto emprestado de Chay, uma blusa emprestada de Anna e
minha própria jaqueta da academia. Está frio esta noite – quieto e
sem vento, com uma mordida dura e gelada no ar. A grama está
fresca e cintilante sob meus pés.

Eu não sou a única que se arrumou e escapuliu esta noite.


Tenho certeza de que Chay tem visto Ozzy às escondidas desde o
Halloween. Ela não vai admitir que eles estejam namorando, mas
nas duas ocasiões em que a vi se esgueirando de volta para o
dormitório com o cabelo de quem acabou de ser fodida, ela admitiu
que eles ficaram juntos novamente e foi o melhor sexo de sua vida.

— Ele é tão pervertido — ela gemeu, tentando pentear os nós


de seu cabelo. — Ele faz coisas comigo que eu nunca tinha ouvido
falar antes.

— Então você gosta dele? — eu disse.

— Bem... — Ela encolheu os ombros. — Ele é doce e


engraçado. Inteligente também. Apenas me imaginei com um tipo
mais para Henry Cavill.

Chay certamente é bonita o suficiente para prender quem ela


quiser. Mas eu me sinto mal por Ozzy do mesmo jeito, porque em
outros aspectos – humor, inteligência, persistência - ele seria um
grande par para Chay.

Ele não é feio – apenas único. Chame-o de Adam Driver ou


Benedict Cumberbatch, se não de Cavill.

A atração é uma coisa engraçada. Sempre pensei que Miles era


bonito. Mas a cada dia que passa, todo mundo parece desaparecer
e ele se torna o padrão de perfeição. Não gosto mais de olhos azuis
ou castanhos. Eu só quero olhos que pareçam nebulosos pela
manhã e prateados ao luar. Eu só quero 1,88 m com um sorriso
torto e uma risada perversa.

Eu coloco meus braços em volta do meu corpo, saltando na


ponta dos pés para me manter aquecida.

Usei a saia porque queria me vestir bem, mas se Miles planeja


sair para uma caminhada fora do terreno, ou se sentar em algum
lugar ao ar livre, vou congelar.
Eu não tenho que esperar muito. Miles chega antes das nove,
correndo sobre a geada crocante. Ele parece estiloso sem esforço
de uma forma que é rara para um homem. Os homens nem sempre
parecem compreender o ajuste e o caimento das roupas, as
melhores maneiras de destacar suas características mais
atraentes. O pulôver de Miles e sua calça verde-salva grudam em
seu corpo em todos os lugares certos, sobre o peito, os ombros e a
protuberância de suas coxas.

— Vamos lá — ele me diz, fazendo menção de pegar minha


mão e, em seguida, lembrando-se de que não deve fazer isso
enquanto ainda estivermos do lado de fora, onde alguém possa nos
ver.

— Aonde estamos indo? — eu pergunto.

— Por aqui — diz ele, seu sorriso brilhando à luz das estrelas.

Ele me leva para o oeste através do campus, passando pela


velha adega que leva até a Undercroft, passando pela enfermaria,
a biblioteca e o Rookery. Eu sei pelo que Miles me mostrou que ele
tem um satélite escondido no telhado do Rookery, dando a ele
acesso total à internet sempre que quiser. Por um momento, acho
que ele vai me levar de volta pelos degraus daquela torre, até que
ele me puxe para dentro da catedral.

Quase espero que Anna esteja aguardando por nós lá dentro.


Ela é quem vem aqui com mais frequência – é seu lugar favorito
para praticar balé.

Em vez disso, o espaço cavernoso está vazio e ecoando, a fraca


luz das estrelas filtrando-se em padrões coloridos dos vitrais, e o
piso de ladrilhos ondulou em alguns lugares com raízes de árvores
que se projetaram por baixo. Uma romãzeira brotou na capela-mor
e as trepadeiras circundam os pilares de sustentação.
Não há religião na Kingmakers. A catedral foi
intencionalmente permitida a cair em ruínas. É a única parte da
escola onde o telhado não é consertado ou as janelas não são
consertadas após as tempestades de inverno. É uma rejeição
deliberada de um dos muitos sistemas de autoridade aos quais as
famílias da máfia não se curvam.

Até os outros alunos evitam este lugar. Anna é uma das


poucas que acha a catedral relaxante, em vez de desagradável.

Há pouco para entreter alguém dentro dessas paredes. A


catedral está fria e escura, sem aquecimento e sem eletricidade.

Não sei por que Miles me trouxe aqui. Até eu ver que ele se
dirige para o sofá de veludo verde dos estábulos, aquele que
repousava no escritório do Chancellor até sua ignominiosa
aposentadoria na pilha de móveis, arquivos e caixas descartados e
amontoados na extremidade dos estábulos.

O sofá de veludo não é a única adição. Miles trouxe cobertores,


bebidas, salgadinhos e um maquinário que não reconheço –
atarracado e retangular, colocado em uma pilha de engradados.

— Foi muito difícil encontrar um desses que funcionasse com


bateria — diz Miles.

— O que é? — eu pergunto.

— Sente-se e eu mostro a você — ele fala, apontando para o


sofá verde.

Sento-me, impressionada ao ver que Miles até consertou o


problema da perna do sofá que está faltando, apoiando o sofá em
um bloco de madeira para que ele não balance mais.
Miles me entrega uma tigela de pipoca. A pipoca é recente e
crocante, regada com verdadeira manteiga derretida e sal marinho.

Eu rio. — Onde você consegue essas coisas? Como você


estourou isso?

— O pessoal da cozinha me ama — diz Miles. — Ninguém gosta


mais de drogas do que cozinheiros.

Miles mexe na pequena máquina, girando os botões na lateral.


Ela ganha vida, lançando um feixe de luz brilhante em todo o
espaço aberto. A parede oposta se ilumina, o espaço onde o altar
estaria se transformando em uma ampla e brilhante tela de
cinema.

Eu suspiro quando a montanha da Paramount Pictures pisca


na tela. Os créditos de abertura anunciam que vamos ver
“VistaVision” pela primeira vez. Mesmo antes de a trilha sonora
icônica de Irving Berlin começar, eu já sei que o filme é “White
Christmas”.

— Miles! — eu choramingo. — Eu não posso acreditar em você!

Ele cai no sofá ao meu lado, passando o braço em volta dos


meus ombros. Ele puxa um cobertor sobre nossas pernas, dizendo:
— Eu também tenho Milk Duds. Eles foram uma merda para
encontrar, mas eu queria que você tivesse a experiência completa
de teatro.

A sequência de abertura começa com Bing Crosby e Danny


Kaye em seus uniformes de guerra. A última vez que assisti a esse
filme foi na casa da minha Abuelita. Em vez da pipoca e do cheiro
empoeirado da catedral, a música dos velhos tempos me lembra o
perfume de Lita, as flores de laranjeira em seu jardim e os pestiños
com crosta de açúcar que ela fritava em sua antiga frigideira de
ferro fundido.

Quando Rosemary Clooney e Vera Ellen aparecem na tela,


cantando seu famoso dueto, lembro-me de Lita colocando os
braços em volta de Cat e de mim, puxando-nos contra o seu lado,
dizendo: — Irmãs vejam, assim como vocês duas. Vocês devem
sempre ajudar e proteger uma a outra. Irmãs primeiro, tudo o mais
vem depois.

Sou atingida por uma onda de culpa, sabendo que, neste


momento, não estou colocando Cat em primeiro lugar, de forma
alguma. Estou arriscando a proteção frágil que consegui negociar
por ela, tudo para que eu possa passar mais tempo com Miles.

Miles, sempre perceptivo, pega meu queixo entre o polegar e o


indicador, levantando meu rosto para examiná-lo.

— O que há de errado? — ele diz. — Você estava esperando


por “Rear Window”51 em vez disso?

Eu balanço minha cabeça, minha garganta muito apertada


para falar.

Ninguém nunca fez algo assim por mim, nem mesmo Cat. É
um presente impossível, algo que ninguém, exceto Miles, poderia
ter conseguido. O filme é mágico. Este momento é perfeito. E não
posso aproveitar, porque tenho medo do que isso vai me custar
mais tarde. Ou o que vai custar Cat.

— Você está com medo — Miles diz.

51
Conhecido também como “Janela Indiscreta”, é um filme de mistério de 1954.
Eu aceno minha cabeça.

Eu nunca teria admitido isso antes. Eu odeio mostrar


fraqueza.

Não posso mentir para Miles, no entanto. É inútil. Ele sempre


vê a verdade.

Miles me beija, primeiro suavemente, depois com mais força.

Ele se afasta para olhar para mim, seu rosto iluminado pela
luz do projetor, seus olhos brilhantes como prata.

— Eu vou te livrar dele, Zoe — ele diz.

Tento balançar a cabeça porque isso é impossível, mas Miles


mantém meu rosto firme com as duas mãos.

— Eu vou — ele rosna. — Eu vou encontrar uma maneira e eu


farei isso. Você acredita em mim?

Eu olho em seus olhos.

Nunca estive tão errada sobre uma pessoa. Achei que Miles
era indolente e egocêntrico. Achei que ele não se importava com
nada além de sua própria diversão.

Eu não poderia estar mais errada. Ele é a pessoa mais


determinada que já conheci. Quando ele diz que vai fazer isso, eu
acredito nele. É absurdo e inimaginável, mesmo assim confio nele.

— Eu acredito em você — eu digo.

Miles me beija de novo, sem reservas dessa vez. Ele me beija


como se já tivesse cumprido o que prometeu. Como se ele me
possuísse agora, total e completamente.
Ele para apenas para pausar o filme, mudando para a música,
“Often” de The Weeknd.

A luz vintage da tela de cinema cintila em sua pele, iluminando


seus cachos escuros e brilhantes. Ele seleciona a música que
deseja sem sequer olhar para o controle remoto portátil que opera
o alto-falante. Miles faz tudo como dança: com coordenação rápida
e perfeita. Eu nunca o vi tropeçar ou hesitar.

Ele está sempre três passos à frente de todos os outros,


incluindo eu. Eu me pergunto se ele consegue ver o futuro, como
a garota do meu roteiro. Ao contrário dela, Miles parece ter todo o
poder para atingir seus objetivos.

A música é sensual e intensa.

Miles me olha com uma expressão que passei a conhecer bem.

O olhar que ele dá quando decide seu plano. Quando nada o


desviará de seu curso.

— Tire a roupa — ele ordena.

Eu engulo em seco.

— Eu... não sei se devemos...

— Você confia em mim? — ele diz.

— Sim.

— Então faça o que eu digo.

— Eu... tudo bem.

— Fique lá. Na Luz.


Fico na luz refletida do projetor, tremendo um pouco, mas não
de frio. Minha pele queima com o calor do olhar de Miles.

— Tire a roupa — ele repete. — Devagar.

Eu começo a desabotoar minha blusa. Meus dedos estão


formigando, tão duros que minhas mãos parecem pertencer à
outra pessoa. Talvez de Miles...

Estou hipnotizada por seu olhar. Eu sinto que são suas mãos
fazendo isso, como se eu não estivesse agindo por minha própria
vontade, mas puramente de acordo com sua vontade.

Solto os botões um por um, abro a blusa e deixo o tecido


sedoso deslizar pelos meus braços e cair no chão.

A batida da música vibra sob minha pele. Encontro-me


balançando nos sapatos de salto alto de Chay, meus quadris se
movendo ligeiramente com a música. Eu me viro de costas para
Miles, então lentamente abro o zíper da saia, revelando um pedaço
de fio dental e nádegas.

Eu posso ouvir as molas antigas do sofá rangendo enquanto


Miles muda de posição.

Lentamente, eu deslizo a saia para baixo sobre a minha


bunda, curvando-me um pouco enquanto ela também cai e forma
uma poça ao redor dos meus pés. Eu me afasto da saia.

— Mantenha os saltos — Miles vocifera.

Eu olho por cima do meu ombro para ele. Seus olhos brilham
na luz pálida. Ele se recosta nas almofadas, os braços apoiados
nas costas do sofá. Ele parece um rei examinando sua concubina.
Longe de me sentir degradada por isso, sinto uma onda de calor
entre minhas pernas.

Eu me viro novamente, vestindo apenas uma calcinha preta


rendada e sutiã agora.

Os olhos de Miles vagam pelo meu corpo. Eu o observo,


sentindo-me igualmente excitada por sua admiração por mim.
Finalmente minha figura é minha amiga, porque está prendendo a
atenção de quem eu realmente quero. Nunca me senti tão sexy
como neste momento, me vendo refletida em seus olhos.

Eu chego por trás das minhas costas para abrir meu sutiã.
Meus seios caem de sua posição levantada. Apenas aquele
movimento, aquele salto, faz meus mamilos pularem em atenção,
e me dá uma dor profunda e desesperada na parte inferior da
minha barriga.

Eu tiro o sutiã.

— Toque seus seios — Miles ordena.

Eu deslizo minhas palmas sob meus seios, levantando-os e


deixando-os cair para experimentar aquele choque requintado
novamente. Eu corro meus dedos sobre meus mamilos, fingindo
que é Miles me tocando. Beliscando meus mamilos tão forte quanto
eu acho que ele faria. Cada toque envia faíscas pelo meu corpo.

— Agora a calcinha — Miles diz.

Sem hesitar, coloco meus polegares no cós da minha calcinha


e a empurro para baixo. Estou encharcada. Minha calcinha gruda
nos lábios da minha boceta antes de se afastar. Eu mantenho
minha boceta aparada, mas não raspada totalmente. Por um
momento, eu me pergunto se Miles gosta desse jeito – eu nunca
perguntei a ele, nas vezes que ele fez sexo oral em mim. Isso me dá
uma pontada de ansiedade. Mas então eu vejo a luxúria nua em
seus olhos e todos os meus medos se dissipam. Ele me quer
exatamente assim. Eu sei que ele quer.

Miles abre o zíper da calça, deixando seu pênis livre. Eu o


toquei em suas roupas, e uma vez eu deslizei minha mão por sua
calça e agarrei-o na palma da minha mão. Eu sabia que era grosso
e duro. Mas eu nunca vi isso abertamente. Nunca retribuí o favor
com oral, nervosa por fazer um péssimo trabalho.

Seu pau é maior do que eu esperava. Muito alarmante, na


verdade. Mais duro do que nunca, fica de pé, rígido e agressivo.

Eu quero fechar minha boca em torno disso. Estou tão


excitada que não estou mais com medo – quero tentar.

Antes que eu possa agir de acordo com esse impulso, Miles


diz: — Toque-se. Esfregue essa boceta para mim.

Estou corando, mas o constrangimento é distante. Tudo o que


posso ver é Miles na minha frente, seu olhar ardente e suas
sobrancelhas escuras e carrancudas, e sua mandíbula apertada
que parece com raiva, mas eu sei que não é raiva, é foco. Cada
pedaço de sua consciência está focado em mim.

Eu me abaixo para tocar minha boceta, fazendo isso por ele,


dando um show para ele. Meus dedos deslizam facilmente sobre
os lábios e sobre o pequeno pedaço do meu clitóris que se projeta
entre eles, inchado e latejante. Eu me toco, não do jeito que eu
normalmente faria na cama, mas do jeito que Miles me toca – com
firmeza, confiança. Conhecendo-me melhor do que eu mesma.
Ele observa cada movimento, sua mão acariciando seu pênis
em conjunto. Seu pênis parece enorme, mesmo em comparação
com a grande mão de Miles.

— Prove como você é doce — diz ele.

Levo meus dedos aos lábios.

Ele tem razão – o sabor é suave e ligeiramente adocicado. Ele


não estava mentindo quando disse o quanto o amava.

— Agora venha aqui — diz ele.

Eu ando até ele, instável nos calcanhares porque todo o meu


corpo está quente e fraco, minhas juntas parecem feitas de
borracha.

Eu caio de joelhos na frente de Miles, deslizando entre suas


pernas. Eu quero ver aquele pau de perto. Eu quero tocá-lo.

Eu o pego das mãos de Miles, correndo meus dedos levemente


pelo eixo. A pele é lisa e sedosa, a carne latejando quente. Quando
toco a cabeça, todo o seu pau se contorce como se tivesse vontade
própria.

Eu corro minha língua da base à ponta, assim como fiz com


meus dedos. Ele sacode ainda mais forte desta vez. Sua carne é
como chá quente, o mais quente que poderia ser sem queimar
minha língua.

Eu fecho minha boca sobre a cabeça, e seu pau preenche o


espaço perfeitamente, como se os dois fossem feitos um para o
outro. A cabeça pesa na minha língua, preenchendo o arco no céu
da boca. A saliva inunda, então posso deslizar meus lábios alguns
centímetros para cima e para baixo no eixo.
— Isso mesmo. Desse jeito, deixe-o bem molhado — Miles me
instrui.

Minha técnica é estranha, o ritmo é espasmódico. Miles pega


minha cabeça entre as mãos e me direciona, usando seus quadris
para empurrar em minha boca. Ele empurra um pouco longe
demais e a cabeça de seu pau atinge o fundo da minha garganta.
Eu me engasgo e recuo.

— Você está bem? — ele fala.

Eu aceno, passando as costas da minha mão na minha


bochecha, onde as lágrimas escorrem.

Estranhamente, gosto da sensação de engasgo. Gosto do


tamanho do pau dele, gosto do desafio de tentar encaixá-lo na
minha boca.

Eu tento de novo. Desta vez, estou pegando o ritmo,


descobrindo como dançar minha língua na parte inferior de seu
pênis enquanto deslizo meus lábios para cima e para baixo no eixo.

Miles geme de prazer, sua cabeça inclinada para trás contra a


borda do sofá. O som é altamente gratificante. Isso me faz querer
fazer isso a noite toda.

Miles tem outras ideias.

— Suba — ele ordena, pegando meu pulso e me colocando de


pé.

Ele empurra a calça o resto do caminho para baixo, chutando-


as para fora. Seu pênis fica de pé novamente, impossivelmente
ereto. Eu monto seu colo, equilibrando meus joelhos no sofá,
perguntando-me como diabos isso vai funcionar.
— Abaixe-se — diz ele. — Vá tão devagar quanto você precisar.

Ele posiciona a cabeça de seu pênis na minha entrada. Está


muito quente, úmido com minha saliva, mas tão grande que sinto
que estou prestes a me empalar em um taco de beisebol.

Miles agarra meus quadris entre as mãos, ajudando a me


firmar.

Ele me beija. Então ele inclina a cabeça para o lado e leva meu
seio à boca. Ele chupa meu seio, rolando o mamilo em sua língua.

Minha umidade derrete na cabeça de seu pênis, ajudando-o a


deslizar dentro de mim. Aos poucos, Miles me abaixa.

Eu fico esperando por uma sensação de estalo ou rasgo, mas


nunca vem. Eu deslizo para baixo e para baixo o que parece ser
trinta centímetros de pau, mas de alguma forma eu continuo me
alongando para acomodar isso. A sensação não é dolorosa – muito
pelo contrário. É extremamente gratificante. Tudo o que sempre
quis.

Por fim, minha bunda desce até suas coxas e ele está
totalmente dentro de mim. Sinto-me cheia de uma forma
indescritível. Eu me sinto inteira e completa.

Miles solta meu seio para me beijar novamente, sua língua tão
profundamente dentro da minha boca quanto seu pau está no
fundo da minha barriga.

Sua boca tem um sabor novo e erótico, nossa excitação um


sabor tão palpável quanto baunilha ou mel. Eu quero comer sua
língua e seus lábios. Eu quero consumi-lo inteiro.
Miles agarra meus quadris e começa a me balançar contra ele.
Eu não tinha percebido que ainda não estávamos nos movendo.
Este novo atrito é tão intenso que minha boca se afasta da dele
porque não consigo me concentrar em nada, exceto na sensação
de seu pau deslizando alguns centímetros para dentro e para fora
de mim. Meu clitóris esfrega contra seu corpo. A combinação de
sensações, por dentro e por fora, é a melhor coisa desde pasta de
amendoim e geleia. Algo tão bom e tão certo que todas as outras
metáforas empalidecem em comparação.

O sentimento dentro de mim é assustadoramente intenso. É


tão poderoso que sei que não posso controlá-lo. Tenho medo de me
molhar, ou chorar, ou algo ainda mais constrangedor.

— Miles! — eu suspiro. — Eu não consigo parar!

— Eu não quero que você pare — ele rosna. — Estou te dizendo


para não fazer isso.

Suas mãos poderosas me agarram com ainda mais força, e ele


me esfrega contra seu corpo como se ele fosse papel e eu fosse uma
borracha. Ondas de prazer irradiam do meu umbigo, grossas e
quentes. O clímax aumenta e aumenta, cada golpe mais agradável
do que o anterior. Está ficando muito forte, se tornando muito.
Estou com medo, mas não poderia parar, mesmo que quisesse.
Posso estar no topo, mas Miles controla isso. E Miles não para por
nada.

— Oh... Oh... OH, MEU DEUS! — eu grito, enquanto o orgasmo


me rasga.

É uma explosão. Uma detonação. Uma erupção do Krakatoa.

É tão intenso que acho que posso realmente ter me


machucado. Não há como meus ovários sobreviverem a isso.
Miles apenas ri, sua risada tão profunda e calorosa quanto sua
voz. Eu desabo contra ele, sentindo o estrondo em seu peito
vibrando contra o meu.

— Você gosta disso, baby girl? — ele diz.

O clímax não diminuiu minha excitação de forma alguma.


Miles me dando ordens, Miles me chamando de baby, ainda é uma
excitação intensa.

— O que você quer agora? — eu sussurro em seu ouvido.

— Você realmente quer saber? — ele indaga.

— Sim — eu digo, lambendo meus lábios. — Diga-me como te


agradar.

— Fique onde está — ele fala. — E monte esse pau para mim.

Apoiando-me com minhas mãos em seus ombros, eu rolo


meus quadris, deslizando para cima e para baixo em seu pau. É
estranho no começo, mas logo pego o ritmo. Ainda estou sensível
e inchada, quase dolorosamente. Enquanto eu continuo me
movendo e esfregando nele, o prazer supera a dor, e parece melhor
e melhor a cada minuto.

— Você confia em mim? — Miles diz.

— Sim — eu aceno.

Miles estende suas mãos grandes e as fecha em volta da minha


garganta. Ele o faz suavemente, aplicando apenas uma pressão
leve e uniforme. Mesmo assim, minha cabeça começa a girar.

— Continue cavalgando — ele ordena.


O poder que Miles tem sobre mim é inebriante e assustador.
Ele literalmente segura minha vida em suas mãos. Eu sei que se
ele quisesse cortar meu ar, não haveria nada que eu pudesse fazer
para impedi-lo.

Meu sangue troveja mais forte do que nunca, concentrando-se


na minha boceta enquanto minha cabeça flutua alta e leve.

Quanto mais forte eu o monto, mais intensa a sensação se


torna. Os olhos de Miles estão fixos nos meus, suas mãos
poderosas apertando minha garganta, aplicando a quantidade
certa de pressão para me colocar totalmente sob seu controle.
Estou tonta e com calor, e não consigo parar, estou empurrando
meus quadris, sentindo aquele calor intenso e pressão na minha
barriga de novo, aquela sensação de que vou explodir. Nada nesta
terra pode pará-lo.

Eu gozo de novo, ainda mais forte do que antes. Meu cérebro


dispara e eu estou delirando, flashes brilhantes de cores
aparecendo na frente dos meus olhos. Miles solta um rugido que
mal consigo ouvir em meio ao meu próprio êxtase. Seu pau se
contrai e pulsa, batendo bem fundo dentro de mim, forçando uma
última explosão de prazer para ele e para mim.

Quando volto para a terra, não consigo ver nem falar. Eu


respiro profundamente, o oxigênio tem gosto de ar puro e fresco da
montanha em meus pulmões.

— Mas que... porra... — eu gemo.

— Você gostou disso? — Miles pergunta.

— Foi inacreditável.

Miles me agarra e me beija, mordendo meus lábios.


— Você é minha — ele rosna. — Toda minha.

— Eu só quero ser sua — eu soluço. — Não deixe ele me levar.

— Eu prometi a você — Miles diz. — Eu não faço promessas


facilmente. E eu nunca as quebro depois.

Ele me aperta contra seu corpo, me segurando com tanta força


que tenho certeza de que ele nunca vai me deixar ir.

Toco minha garganta com a ponta dos dedos. Espero que fique
inchada ou dolorida, até mesmo com hematomas, mas está tudo
bem. Mesmo com a febre de sua excitação, Miles nunca perdeu o
controle. Ele teve o cuidado de não me machucar, nem mesmo de
deixar uma marca.

Eu fico em seu colo por um longo tempo, enrolada contra ele,


ouvindo seu coração disparado contra meu ouvido.
Eventualmente, sua pulsação fica mais lenta, tornando-se um
metrônomo estável.

As horas passam. É tarde da noite.

Mesmo assim, ficamos juntos.

Quando Miles finalmente muda, sinto uma pontada de


decepção.

Que acalma quando ele diz: — Não quero levar você de volta
ainda. Vamos ficar mais um pouco.

— Sim, por favor — eu concordo.

Miles pega o controle remoto novamente, mudando a música


para algo mais lento e romântico. Ele me puxa do sofá e me abraça
calorosamente. Nós balançamos juntos, nus, mas não com frio,
querendo que cada centímetro de pele se toque.

Unchained Melody — The Righteous Brothers

— Isso também é de um filme — diz ele. — Você conhece?

Eu balanço minha cabeça.

— Vou exibir para você da próxima vez.

Eu olho para o rosto dele.

— Quantas próximas vezes haverá?

— Infinitas — diz ele.


MILES

Ao longo de janeiro e fevereiro, planejo uma estratégia para


quebrar o contrato de casamento de Zoe.

O método mais simples seria assassinar Rocco Prince.

Eu considerei isso. Muitas vezes. Mas seria arriscado por


vários motivos.

Em primeiro lugar, Zoe e eu seríamos os suspeitos óbvios.


Apesar de nossos melhores esforços para sermos sutis, é
amplamente conhecido que temos sentimentos um pelo outro. A
Kingmakers nem sempre impõem suas regras quando se trata de
delitos mesquinhos, como brigas e encontros, mas algumas regras
são sacrossantas. A mais rígida é a Regra da Compensação.
Qualquer lesão grave ou morte é punida da maneira antiga: olho
por olho. Dente por dente. Vida por vida.

Mesmo que pudéssemos evitar a punição da escola, os Princes


buscariam vingança. Rocco, por mais desagradável que seja, é seu
único filho e herdeiro.

Não quero começar nossa vida juntos com um ciclo de


retribuição.
Quero fazer o que faço de melhor: resolver o problema de uma
vez por todas.

Preciso fazer um acordo com os Romeros e os Princes. Algo que


deixará todos felizes.

Zoe me explicou o que seu pai e os Princes têm a ganhar com


o contrato de casamento e o acordo comercial que o acompanha.

Eu tenho que oferecer a eles algo melhor.

Algo muito melhor.

Eu gostaria que fosse tão simples quanto dinheiro.

Eu tenho 10,4 milhões agora. O saldo total do meu capital


inicial que planejava levar para Los Angeles depois de me formar.

Se eu achasse que os Princes e os Romeros aceitariam um


cheque, limparia minha conta hoje. Mas eles podem ganhar muito
mais do que cinco milhões cada um com o seu negócio.

Tenho que pegar esses dez milhões e transformá-los em algo


mais valioso. Tenho uma ideia de como poderia fazer isso, com a
ajuda de Ozzy. Mas preciso de outro jogador. E provavelmente cada
centavo de dinheiro que puder reunir.

Eu trabalho no meu plano a cada minuto livre, sempre que


não estou na aula ou escapando para ver Zoe.

Está começando a tomar forma, pouco a pouco.

Apenas uma falha permanece intratável e irascível. Mesmo se


eu convencer os Princes e os Romeros, a única pessoa que nunca
convencerei é o próprio Rocco. Ele é o espinho no meu lado. A
única ameaça que não posso remover totalmente.

Eu reviro o problema na minha cabeça repetidamente, mas


nunca consigo pensar em nada que irá satisfazê-lo. Nada além de
Zoe.

Eu sigo em frente de qualquer maneira, confiando que mesmo


que Rocco esteja com raiva, ele terá que acatar o que seus pais
decidirem.

Rocco sabe que estou me encontrando com Zoe, por mais que
tentemos esconder. Ele sabe, e sua incapacidade de evitar isso o
torna cada vez mais furioso.

Eu avisei Zoe para não ir a lugar nenhum sozinha no campus.


Ela tem o cuidado de ficar perto de Anna e Chay.

Rocco revida desabafando sua raiva em mim em vez disso. Sou


um alvo mais fácil, já que compartilhamos as aulas e o mesmo
espaço de convivência na Octagon Tower.

Rocco e seus fantoches invadiram o dormitório que divido com


Ozzy. Eles destruíram tudo por dentro, rasgando nossos
uniformes, rasgando nossos livros e mijando em nossas camas.

Ozzy descobriu a bagunça. Ele está tremendo de fúria quando


me junto a ele no meio do caos.

Ele segura o cobertor de tricô que sua mãe fez para ele, que
ele teve durante toda a sua vida, rasgado em pedaços e encharcado
de urina.

— Eu vou matá-los, porra — ele sibila.


É preciso muito para deixar Ozzy louco. Mas quando você o
faz, ele fica com um temperamento terrível enterrado nas piadas e
no sorriso.

— Posso ficar em outro lugar até que tudo isso esfrie — digo a
Ozzy, sentindo-me culpado por trazer isso para sua cabeça.

— Foda-se — diz Ozzy, descartando a ideia de uma vez. — Isso


não é mais apenas entre você e Rocco.

É verdade – neste ponto, Ozzy e Wade Dyer se odeiam quase


tanto quanto Rocco e eu.

Wade assumiu uma estranha obsessão por Ozzy que vai muito
além de seguir as ordens de seu chefe. Ele alfineta Ozzy
constantemente, acertando seu ombro toda vez que eles passam.
Eles quase brigaram uma dúzia de vezes, impedidos apenas pela
presença de professores ou funcionários.

Wade zomba da altura de Ozzy, sua aparência, seu sotaque,


sua família e seus interesses. Ozzy parece incapaz de ignorar como
sempre faria, talvez porque Wade seja alto, louro e bonito, a
epítome do que Ozzy acredita que Chay preferiria.

Ozzy e Chay ainda estão namorando. Não sei se é bom para


ele. Ele parece doente toda vez que a vê conversando com algum
outro cara, rindo e sorrindo para eles em seu jeito de flerte usual.
Seus sentimentos por ela se aprofundam a cada dia, mas não
parece ser correspondido, e isso o está deixando louco.

A tensão me corrói, o sigilo e o esforço para encontrar uma


maneira de sair disso. O conflito com Rocco parece um elástico
esticado ao máximo. Não há dúvida de que vai estourar. A única
questão é quando.
Meu único alívio é fugir para ver Zoe.

Não é apenas para sexo. Amo essa parte, é claro, mas mais do
que qualquer coisa, quero a liberdade de falar com ela, plena e
abertamente, sem ninguém ouvir.

Eu li todo o seu roteiro agora, e acho que é brilhante. Ela tem


um jeito incrível com as palavras. Ela me lembra Aaron Sorkin ou
Greta Gerwig, os seus personagens são extremamente articulados
e ousados em falar o que pensam.

Isso me dá uma ideia de como seria a própria Zoe, sem medo


de ameaças, espiões ou represálias.

Ela está trabalhando no final. Às vezes ela me pede ideias e


tento dar sugestões, embora não saiba porra nenhuma sobre
escrita. Às vezes, até fazemos pequenas partes disso, rindo de
como nós dois somos horríveis em atuar.

Nunca fiz nada criativo antes. Eu me considero um facilitador,


não um artista. Surpreende-me o quão divertido é mapear o
conflito e a resolução dentro de um quadro ficcional, onde as
apostas são baixas e Zoe e eu somos os deuses daquele mundo,
capazes de orquestrar os eventos exatamente como os queremos.

Trabalhamos bem juntos, Zoe e eu.

Ela está deitada no meu colo em uma tarde de domingo, no


sofá verde, que eu devolvi aos estábulos para que Anna possa ter
seu espaço de balé limpo novamente. Estou brincando com o
cabelo de Zoe, penteando suavemente os fios longos, pretos e
sedosos com meus dedos. Ela está com o caderno apoiado nos
joelhos para que possa acrescentar algo enquanto conversamos.

— O final deve ser trágico? — ela indaga. — Ou feliz?


— Feliz, é claro.

— Mas a questão toda foi que ver o futuro não permite que
você o altere. É um paradoxo – o que você está vendo não é
realmente o futuro, se você pode mudá-lo.

— Eu sei. Mas ninguém gosta de finais trágicos.

— Romeu e Julieta discordariam — Zoe me provoca. — Ou


Titanic.

— O fim do Titanic é a reunião de Jack e Rose.

— Na morte.

— É uma catarse emocional da mesma forma. Você tem que


dar ao público o que ele quer.

— Então... você acha que, uma vez que nossa protagonista


perceba a natureza de suas visões, isso deve dar a ela poder sobre
os resultados. Ela aprende como manipular o sistema. Como em
“Matrix”.

— Talvez — eu digo. — Acho que meu ponto é que não acredito


em cenários sem vitória.

— Há sempre uma saída? — Zoe diz, olhando para mim.

— Sim — eu concordo. — Você apenas tem que ser inteligente


o suficiente para encontrá-la.

Zoe se senta, as cortinas escuras de seu cabelo caindo sobre


os ombros, macias e brilhando por causa das minhas mãos.

Ela me olha com aqueles olhos lindos, verdes claros com cílios
grossos e pretos ao redor. Sempre que ela olha para mim assim,
de frente, nossos rostos a apenas alguns centímetros de distância,
fico impressionado com o quão adorável ela é. Impossivelmente
adorável. Uma espécie de beleza que só aumenta quanto mais de
perto você a examina.

— Qual é a nossa saída? — ela me pergunta.

— Estou trabalhando nisso — eu digo.

— Eu sei que você está. Eu quero que você me diga. Eu quero


te ajudar, como você me ajudou com o roteiro. Eu quero trabalhar
nisso junto.

Eu considero isso, não relutante, mas surpreso.

Nunca envolvi outra pessoa em meus planos. Mesmo com


Ozzy, são apenas os detalhes técnicos que decidimos juntos. O
referencial sou sempre eu sozinho.

Chame-me de supersticioso, mas hesito em dizer meu plano


em voz alta. Ainda está se formando, não totalmente desenvolvido.
Expor ao ar pode matá-lo.

Mas confio em Zoe e valorizo sua inteligência. Eu quero ouvir


o que ela tem a dizer.

Então eu digo a ela. Conto a ela todas as ideias, todas as


possibilidades que considerei. Conto a ela os desafios, as
fraquezas, as questões práticas que ainda não superei. Demoro
mais de uma hora para explicar o que tenho até agora. Zoe escuta
com atenção, nunca interrompendo.

Quando termino, ela fica quieta por um longo tempo,


pensando.
Então ela diz: — Você precisa de mais uma família.

— Eu sei.

— Alguém que pode levar o produto para o leste, mas tem que
ter uma presença americana também. Alguém com dinheiro de
sobra, em dólares americanos.

Eu aceno lentamente.

— E quanto à Malina?

Ela está falando sobre a Odessa Mob. O ramo mais antigo e


difundido da máfia ucraniana.

Solto um longo suspiro. — Eu os considerei. Eles estão


perfeitamente posicionados. E ouvi dizer que eles têm dinheiro.
Muito dinheiro. Mas sua reputação...

— Eu sei — Zoe diz. — Não é boa.

— Eles são vorazes. Retraídos. Traiçoeiros.

— Eles estariam à distância de um braço. E se eles atacarem


alguém no final da linha... não seremos nós.

— Teríamos que fazer os Princes e seu pai concordarem.

Zoe olha para mim, sorrindo levemente. — Precisamos de


alguém altamente persuasivo... você conhece alguém assim?

Eu sorrio. — Eu poderia.

O rosto de Zoe fica sombrio novamente.

— Miles... — ela fala. — Isso vai tirar todo o seu dinheiro.


Contei a ela sobre meu dinheiro inicial. Ela sabe como eu
pretendia usá-lo. E ela está certa – quer este plano funcione ou
não, vai acabar comigo. Não vai sobrar um feijão. Não o suficiente
para alugar um apartamento em Los Angeles, muito menos
construir um império.

— Eu não me importo — digo a ela. — Vou fazer mais.

Zoe balança a cabeça lentamente. — Eu não posso deixar você


fazer isso. Você trabalhou tão duro, todos esses anos. É o seu
sonho...

— Sem ofensa, baby girl, mas não depende de você. Estou


fazendo isso, com ou sem sua ajuda. Não sei se vai funcionar, mas
tenho certeza de que vou tentar. E se esse negócio não der certo,
vou pensar em outro. Eu te disse, isso é uma fuga da prisão. Rocco
é o Warden Norton52 e você é Andy Dufresne53 – vamos
Shawshank54 esse filho da puta!

Zoe está rindo, ela não consegue resistir quando eu pinto uma
visão do nosso futuro juntos.

Eu também estou viajando nas nuvens.

A sensação de trabalhar nisso com outra pessoa é inebriante,


como se eu tivesse expandido meu cérebro para dobrar de
tamanho. É tão fácil falar com Zoe. Ela entende tudo e vê coisas
que eu não vejo.

52
É o antagonista do filme “Um Sonho de Liberdade”.
53
Personagem principal do filme “Um Sonho de Liberdade”, que acompanha a vida de Andy Dufresne ao ser
condenado a duas prisões perpétuas consecutivas pelas mortes de sua esposa e seu amante.
54
“The Shawshank Redemption”, referência ao nome original do filme que no Brasil é conhecido como “Um
Sonho de Liberdade”.
— Eu te amo — eu digo, sem pensar, sem planejar.

Os olhos de Zoe se arregalam. Pela primeira vez, vejo uma


semelhança clara com sua irmã Cat. Ela parece surpreendida e
assustada.

— Você ama? — ela fala.

Eu tenho que rir. — Por que você está surpresa? Não ficou
óbvio faz tempo?

— Quando você começou a me amar?

Eu olho para trás. — Na enfermaria. Quando você me disse


para não ter pena de você.

Ela balança a cabeça para mim, um sorriso lento roubando


seus lábios macios e carnudos.

— Eu também te amo, Miles — ela diz.

— Desde quando?

Agora ela está sorrindo o tempo todo, os olhos brilhando.

— Desde que te vi nu.

Eu rio, agarrando-a e beijando-a com força.

— Essa é a única razão?

— Sim. Sou terrivelmente superficial.

— Quer saber, estou bem com isso. Sempre quis ser


objetificado.
Eu puxo meu suéter sobre minha cabeça, descobrindo meu
peito.

— Deleite seus olhos.

Zoe olha para mim, sua diversão se transformando em luxúria


em um instante. Seus olhos percorrem meu corpo e ela passa os
dedos pelo meu peito, arrepiando meus braços.

Ela me beija bem sobre meu coração, sua boca macia e quente
causando arrepios em minha pele. Em seguida, ela passa a língua
suavemente ao longo das linhas do meu peito esquerdo, e meu pau
fica duro como uma rocha na minha calça. Eu quero a língua dela
em outros lugares. Eu quero minha língua sobre ela ainda mais.

Ela está usando calça de novo hoje, com suspensórios sobre o


pulôver e sapatos oxford com cordões nos pés. Eu amo quando ela
parece moleca. A justaposição entre as roupas de menino e o corpo
ultra-feminino por baixo é descontroladamente erótica. Eu puxo
para baixo seus suspensórios, em seguida, tiro a blusa e coloco os
suspensórios de volta em seus ombros novamente para que o
elástico largo mal cubra seus mamilos, pressionando seus seios,
fazendo-os parecer mais redondos do que nunca.

— Deixe-me tirar uma foto sua — eu digo.

— Assim? — Zoe olha para seu torso quase nu, balançando a


cabeça e corando.

— Deixe-me fazer isso — eu peço. — Você é sexy pra caralho.

Zoe morde o lábio, considerando. Então ela diz: — Tudo bem.


Diga-me o que fazer.
Se sobrou sangue na minha cabeça, tudo corre para a minha
virilha assim que ela começa a receber ordens. Se há uma coisa
em que posso concordar com aquele psicopata Rocco, é que não
há pressa maior do que ter uma mulher tão brilhante e linda
quanto Zoe obediente à sua vontade.

A diferença é que eu quero que ela faça isso de boa vontade,


de bom grado. Eu quero que ela goze com isso tão forte quanto eu.

— Fique perto da janela — digo a ela.

A luz dourada do final de tarde atravessa o vidro empoeirado.


O vidro é muito grosso, borbulhante e sujo para me preocupar que
alguém possa ver Zoe do outro lado – no máximo ela seria uma
sombra se movendo por trás do painel opaco.

A luz brilha em sua pele. Destaca as curvas daqueles seios


fenomenais e os recortes de sua cintura. Sua figura é uma
ampulheta dentro da roupa masculina quadrada. Seu cabelo
espesso e escuro lhe dá uma aparência selvagem e indomável. No
entanto, estou domesticando-a. Ela me obedece enquanto eu digo
a ela como se levantar, para que lado virar.

Eu uso meu telefone para tirar as fotos. A cada clique do botão,


meu pau fica cada vez mais rígido.

— Encoste-se na janela. Levante os braços. Abaixe os


suspensórios.

Zoe obedece, seus olhos fixos em mim e suas bochechas


rosadas. Quando ela deixa cair os suspensórios, seus mamilos
estão escuros e duros, projetando-se para fora de seu peito,
apertando seus seios.
Pequenos pedaços de poeira flutuam nos raios de sol,
dançando ao redor de sua pele.

— Tire sua calça — eu ordeno. — Roupa íntima também.

Zoe tira, e eu também. Tiro mais algumas fotos dela, nua como
Vênus e duas vezes mais bonita, emoldurada contra a janela.
Então eu largo o telefone, cruzando a sala em três longas
passadas. Eu a levanto, colocando-a no batente da janela, e
empurro meu pau dentro dela sem preâmbulos.

Zoe engasga, mordendo meu ombro com força.

Deslizar para dentro dela é como voltar para casa, todas as


vezes.

Acho que me lembro de como é bom, e então me surpreende,


uma e outra vez.

Quando estou transando com ela assim, pergunto-me como


posso fazer qualquer outra coisa. Como faço para ter paciência
para comer, dormir ou ir para a aula, quando poderia estar fazendo
isso ao invés?

Eu pressiono meu rosto contra seu pescoço e inalo o cheiro de


sua pele. Sinto suas longas pernas em volta de mim e seus braços
delgados em volta do meu pescoço. Eu a beijo, empurrando meu
pau cada vez mais fundo dentro dela, gemendo: — Eu te amo, Zoe.
Eu te amo pra caralho.

Não sei por que esperei tanto para contar a ela. É tão bom
dizer isso. É o que eu quis dizer quando lhe falei que a libertaria
de Rocco. Eu quis dizer que faria qualquer coisa por ela.

As palavras reais são mais poderosas.


Quando ela as diz de volta para mim, emociona-me
profundamente. Isso me faz sentir invencível, como um deus.

— Eu te amo, Miles — ela diz, olhando nos meus olhos. —


Sempre você, só você.

Eu a levanto do parapeito da janela, suas pernas travadas


atrás das minhas coxas, minhas mãos agarrando sua bunda,
apoiando-a. Eu a balanço no meu pau, fazendo seus seios saltarem
em seu peito, uma visão que é hipnotizante, algo que eu gostaria
de poder colocar em um loop e assistir por horas. Ela é tão linda
que é impossível manter o controle. A partir do momento que
deslizo dentro dela, é uma batalha tentar não enlouquecer,
certificando-me de que Zoe goze primeiro.

É uma batalha que perderei se continuar olhando para esses


seios lindos. Eu a coloco no chão novamente, virando-a e
dobrando-a sobre o braço acolchoado do sofá verde, segurando
meu pau na base e deslizando-o para dentro dela novamente por
trás.

Zoe gosta assim. Ela gosta do quão forte eu posso foder por
trás, especialmente se eu chegar ao redor e esfregar seu clitóris ao
mesmo tempo. Eu deslizo meus dedos para cima e para baixo em
sua fenda, encontrando aquele pequeno clitóris sensível e dando-
lhe a pressão certa junto com minhas estocadas. Meus quadris
fazem um som de estalo contra sua bunda. Eu a fodo cada vez
mais forte, sabendo que ela pode aguentar, sabendo que ela ama
isso.

— Implore-me para gozar em você — eu rosno.

— Goze dentro de mim, por favor! — ela engasga.

— Diga-me o que você quer.


— Eu preciso disso!

Parece que isso é para mim, mas não é. É para Zoe. Estou
dando permissão a ela para pedir o que ela quiser, para implorar
até mesmo. E com certeza, como eu sabia que aconteceria, isso a
leva ao limite. Ela gosta de implorar e de me obedecer.

Sua boceta bloqueia em torno do meu pau quando ela começa


a ter um orgasmo, as ondas batendo nela no mesmo ritmo das
minhas estocadas.

Eu mal estava me agarrando ao meu controle. Assim que sua


boceta começa a apertar, a represa se rompe e eu disparo dentro
dela, forte, quente e rápido. O esperma jorra de mim, uma erupção
que não pude mais conter nem mesmo para salvar minha própria
vida.

Nada no mundo jamais foi tão bom. Sem acordo, sem vitória,
sem triunfo. Zoe é o prêmio final.

A única coisa que quero neste momento é protegê-la. Torná-la


minha para sempre.

Naquele domingo, ligo para minha mãe.

Eu queria contar a ela sobre Zoe há um tempo. Eu ia esperar


até descobrir a solução para o meu problema. Mas agora, ao entrar
no jogo final, sinto algo raro e incomum: quero o conselho da
minha mãe.

Assim que ela atende, eu digo: — Mãe. Eu conheci alguém.

— Que tipo de alguém? — Eu sei que ela está tentando manter


a emoção fora de sua voz. Ela não quer me assustar.

Ela não precisa se preocupar. Eu estou além do medo de


compromisso.

— Eu conheci aquele alguém — eu digo sem hesitação.

Quase posso sentir minha mãe segurando o fone com força.


No entanto, há um longo silêncio do outro lado da linha.

— Por que tenho a sensação de que há problemas envolvidos?


— minha mãe fala.

— Por que você pensaria isso?

— Porque você nunca faz nada da maneira mais fácil, Miles.


Você nunca quer a coisa simples. Você adora o desafio.

Posso ouvir a exasperação de minha mãe misturada com outra


coisa. Algo como compreensão. E talvez até orgulho.

— Sim? De onde você acha que consegui isso?

— Você faria melhor em seguir seu pai em vez de mim.

— Isso não é verdade, mãe — falo baixinho. — Eu admiro você.


Você sabe disso, não é? Ninguém tem um fogo como você. Ninguém
ama mais. Ninguém irá mais longe para conseguir o que deseja.

Ela engole, sua garganta fazendo um som de clique.


— Obrigada, baby — ela diz. — Isso significa muito para mim.
Você é meu primogênito, e estou muito orgulhosa de você. Às vezes
me preocupava que você nunca experimentaria o que seu pai e eu
passamos. Nem todo mundo experimenta. Nem todo mundo quer.

— Onde está o ‘mas’? — eu indago.

— Sem ‘mas’. Apenas tome cuidado, baby. Você está vindo


para o mundo real agora. Estacas reais. Consequências reais. O
amor te deixa desesperado. Isso te faz arriscar... tudo.

— Mas vale a pena. Você não pode me dizer que não vale.

— Vale qualquer preço. Mas nem sempre é você que paga o


preço, Miles. Lembre-se disso. Lembre-se do que aconteceu com o
seu avô Enzo.

Conheço a história tão bem quanto as pessoas presentes


naquele casamento fatídico. O pai de Leo, Sebastian, se casou com
Yelena Yenina, filha de um chefe da Bratva, apesar do fato de suas
famílias serem inimigas mortais, envolvidas em uma batalha
sangrenta por território.

Assim que os votos foram feitos, Alexei Yenin tentou


massacrar minha família. Ele atirou no tio Nero e no tio Dante. E
ele atirou no meu avô, crivando-o com tantas balas que ele teve
que ser identificado pelo relógio.

Eu mesmo deveria ter estado naquele casamento, um bebê nos


braços da minha mãe. Ela e meu pai só foram excluídos porque a
Bratva temia retaliação da máfia irlandesa. Eu poderia ter sido
uma vítima do amor de outra pessoa.

Eu ouço minha mãe e a entendo.


Mas nada pode me desviar do meu curso.

Eu não vou desistir de Zoe.

Eu não posso.

Eu a quero, ou nada mais.


CAT

O segundo desafio do Quartum Bellum será muito mais


agradável do que o primeiro, pois consigo ser uma espectadora ao
invés de uma participante.

É o evento perfeito para assistir: um torneio de MMA, com três


campeões escolhidos entre os veteranos e os alunos do segundo
ano e apenas dois do terceiro ano como punição por terminar em
terceiro na pista de obstáculos. Os espectadores sentam-se em
arquibancadas externas erguidas em torno de um grande ringue
com piso de lona.

Eu vejo Leo agonizar sobre quais três lutadores apresentar


para o segundo ano. A escolha óbvia é Dean Yenin. Para crédito de
Leo, ele admite isso de uma vez, fazendo o pedido a Dean durante
a hora do almoço no refeitório.

Leo intercepta Dean enquanto ele carrega sua bandeja para


sua mesa de sempre recheada com Bratva e Dutch Penose. Estou
sentada perto o suficiente para ouvi-los falar, e perto o suficiente
para ver como Dean se irrita no momento em que Leo se aproxima,
esperando conflito em vez de conversa.

— Estou escolhendo os lutadores para o Quartum Bellum —


diz Leo, sem preâmbulos. — Achei que você deveria nos
representar.
Dean estreita os olhos para Leo, parecendo mais ofendido do
que lisonjeado. — Obviamente — ele diz.

Nunca ouvi Dean falar antes. Estou surpresa como seu tom de
voz é baixo, já que seu rosto é quase bonito. Isso é uma coisa
estranha de se dizer sobre alguém que parece maldoso o suficiente
para chutar um cachorrinho, mas é verdade – Dean Yenin pode ter
machucados, os nós dos dedos ensanguentados e uma carranca
perpétua, mas essas características estão associadas a longos
cílios, olhos violeta e lábios carnudos.

Dean é o garoto que vi fora dos estábulos na noite do baile de


Halloween. Eu o apontei para Zoe uma semana depois, e ela
balançou a cabeça, dizendo: — Esse é Dean Yenin. Fique longe
dele.

— Por quê? — indaguei, por curiosidade, não porque tivesse


qualquer intenção de falar com ele. Com exceção dos amigos de
Zoe, nunca me aproximo de alunos mais velhos.

— Ele é primo de Leo — Zoe disse. — Mas eles se odeiam. Suas


famílias são inimigas. Eles vieram para a escola já querendo se
matar. Então, os dois se apaixonaram por Anna.

Isso era tão intrigante que eu precisava saber mais. Tendo


uma queda por Anna, eu podia perfeitamente imaginar o tipo de
rivalidade obsessiva que ela poderia inspirar.

— Anna gostou de Dean?

— No começo — Zoe diz. — Até que ela o conhecesse. Ele é


perigoso. Ele tentou matar Leo – ele vai foder com você apenas por
ser amiga de Leo.
— Eu não acho que ele sabe que eu existo. Não se preocupe,
vou manter assim — prometi a Zoe.

Então, eu observo Dean e Leo de uma mesa distante, com


cuidado para não olhar muito obviamente.

— Sim — Leo diz, tentando controlar seu temperamento. —


Você é um dos melhores lutadores. Então eu...

— Um dos melhores? — Dean zomba. — Eu sou o melhor. E


isso nem é perto.

Leo range os dentes, dividido entre o desejo de discutir e a


necessidade de garantir a cooperação de Dean.

— Você vai fazer isso, então?

Dean não responde imediatamente, saboreando seu poder


sobre Leo, a deliciosa dinâmica de Leo forçado a vir implorar por
um favor.

— Quem mais você está escolhendo? — ele exige.

Não sei se isso influenciará sua escolha ou se ele está apenas


curioso.

— Não tenho certeza — diz Leo. — Talvez Silas Gray...

Dean dá um breve aceno de cabeça, como se ele estivesse


esperando por isso. — Ele lutou bem no último desafio do ano
passado. Mas ele não é estratégico. Sempre tamanho e raiva.

— Quem você sugere? — Leo diz, meio irritado e meio


realmente querendo o conselho.

Dean fica em silêncio por um momento, pensando.


— Ares me surpreendeu — diz ele, por fim.

Leo lança um olhar rápido para a minha mesa, olhando para


Ares calmamente comendo uma salada de frango três lugares
abaixo de mim. Eu fixo meu olhar na minha própria comida pela
metade, não querendo ser pega escutando.

Sobre o barulho da sala de jantar, mal posso ouvir a voz baixa


de Leo dizendo: — Não sei se ele gostaria.

— Por que não?

— Eu não acho que ele gostaria. Com todo mundo assistindo.

— Ele é tímido? — Dean zomba.

— Eu não sei. Eu não perguntei a ele. Quem mais você


sugeriria? Precisamos de três.

— Você não está escolhendo a si mesmo? — Dean pergunta.

— Não necessariamente — Leo diz. — Eu posso lutar, mas


nunca fiz isso em um ringue.

— Hm. — Dean parece surpreso que Leo não aproveitaria a


chance de se colocar no centro das atenções. Ele fica um pouco
menos irritado ao dizer: — E quanto a Kenzo Tanaka? Ou Corbin
Castro?

Dou outra olhada para Dean. Esta é a primeira vez que vejo
ele e Leo próximos, sem agressão aberta. Suas expressões são
curiosamente semelhantes ao refletirem sobre o problema.

— Kenzo pode ser bom — Leo concorda. — Ele é inteligente e


rápido, e eu o vi levar alguns golpes fortes sem cair.
Dean acena com a cabeça. Então ele parece se lembrar com
quem está falando e seu rosto se enrijece mais uma vez, o frio
voltando à sua voz. — Não importa quem mais você escolha. Vou
ganhar tudo.

— Eu espero que você faça — Leo diz uniformemente. — Isso


nos enviaria para a rodada final.

Ele e Dean se separam sem mais conversa.

Eu posso ouvir a respiração aliviada de Anna quando Leo se


junta a ela.

— Ele vai fazer isso?

— Parece que sim — Leo diz.

Ares tem um livro encostado em seu copo de leite e ele está


lendo enquanto come, alheio ao drama que está acontecendo ao
seu redor.

— Ele tinha algumas outras sugestões de quem ele acha que


deveria lutar — diz Leo.

— Oh, sim, quem? — Anna indaga.

— Ares — Leo responde, olhando para seu amigo.

Ares ergue os olhos, as sobrancelhas erguidas. — Ele sabe que


não vamos lutar um contra o outro? Porque parece que ele quer
uma revanche.

— Você tocou a campainha dele. — Leo sorri. — Colocou um


pouco de bom senso nele.
— Talvez se eu der uns socos nele mais cinquenta vezes, ele
ficará meio decente — diz Ares, voltando ao livro.

— Você quer fazer isso? — Leo pergunta.

— Socar Dean? Claro.

— Não. Você quer competir?

Ares faz uma pausa, os olhos ainda fixos na página. Sem olhar
para cima, ele diz: — Acho que não.

— Por que não?

Um músculo salta no canto de sua mandíbula. — Você sabe


que eu não gosto dessa merda. Eu quero ajudar a equipe, mas há
lutadores melhores do que eu.

Leo não discute. Todo mundo sabe que Ares odeia atenção. Até
eu sei disso, e mal sou uma conhecida.

— E você, Hedeon? — Leo chama a mesa.

Hedeon é um lutador muito bom – o fato de conseguir se virar


com Silas é prova disso, mesmo que vença apenas uma em quatro
lutas.

— Foda-se — Hedeon rosna, empurrando sua bandeja. — Sem


interesse.

Ele pode ficar ofendido por Leo não ter perguntado a ele antes.
Parecia que ele era a quarta escolha, depois de Dean e Ares e talvez
Kenzo Tanaka.
Ou ele está apenas tendo um de seus dias. Não sei qual é o
problema dele, mas Hedeon parece sofrer de um tipo particular de
bipolar que oscila entre o ranzinza moderado e o homicida total.

Aceitamos as explosões de Hedeon como aceitamos a modéstia


de Ares. É uma parte deles e não é provável que mudem.

A manhã do segundo desafio amanhece clara e com uma leve


brisa. Clima perfeito para sentar ao ar livre.

Ao deixar a Undercroft, Rakel me diz: — Não se esqueça de


indexar os materiais de origem para o nosso artigo de História.

Eu concordei em fazer a indexação se Rakel revisasse meu


artigo.

— Eu tentei ontem — digo a ela. — Mas não consigo encontrar


nenhum livro que tenha réplicas das cartas de Shimizu Jirocho.

— Eles não estão em um livro — Rakel diz, aquela velha nota


de ‘por que você é tão idiota’ rastejando de volta em sua voz. —
Eles estão nos arquivos. Peça à Sra. Robin para pegá-los para você.
Ou Saul – ele é um ajudante de biblioteca. Ele tem permissão para
descer lá.

— Eu irei, eu prometo.

— Mas me encontre no laboratório de informática primeiro,


porque esse projeto é entregue amanhã.
— Certo — eu concordo. — Laboratório primeiro, biblioteca
depois.

Tenho feito muitos trabalhos escolares com Rakel e minhas


notas melhoraram um pouco. Ela é mandona, mas tem uma
formação melhor em assuntos como a história dos clãs da máfia.
Estou aprendendo um pouco da química e da programação mais
rápido do que ela, então somos úteis uma para a outra.

Corro para o café da manhã e sigo Zoe pelos portões de pedra


até as arquibancadas externas montadas ao redor do ringue de
boxe. Estou feliz por poder me sentar com Zoe e seu grupo de
amigos de costume.

Pela primeira vez, Leo pode se sentar e assistir a um desafio,


em vez de ter que orquestrar a vitória. Não tenho certeza se ele
prefere assim – ele parece tenso e nervoso, mesmo com Anna
aninhada ao lado dele.

Chay e Ozzy estão sentados do outro lado. Você poderia pensar


neles como um casal, se Chay não continuasse protestando o
contrário. Ela parece muito confortável encostada no ombro de
Ozzy enquanto conversa com Anna. Ozzy finalmente tirou a
bandagem, mas seu braço parece horrível – a pele uma esteira de
tecido cicatricial enrugado, manchado de vermelho e roxo, apenas
meio curado. As cicatrizes são mais escuras nas manchas que
costumavam ser tatuagens.

Hedeon e Ares estão sentados na fileira em frente à nossa. Não


vejo Miles em lugar nenhum – pergunto a Zoe o que ele está
fazendo. Ela encolhe os ombros, despreocupada. — Tenho certeza
de que ele chegará em breve.

Os alunos do segundo ano, do terceiro e os veteranos se


agrupam principalmente em seus respectivos grupos para que
possam torcer por seus lutadores. Os calouros já foram
eliminados, então não importa onde nos sentamos ou quem
apoiamos.

Estou torcendo pelos alunos do segundo ano, embora o único


lutador que conheço seja Dean, que me apavora.

Leo acabou selecionando Dean Yenin, Silas Gray e Kenzo


Tanaka. Os alunos do terceiro ano escolheram Kasper Markaj, um
Enforcer albanês que Zoe me disse ter sido capitão de equipe no
Quartum Bellum do ano passado.

— Ele é decente e trabalhador — diz ela. — Foi uma pena que


a sua equipe tenha sido eliminada tão cedo. Eu sei que ele se
sentiu mal com isso.

Seu outro lutador é Jasper Webb, o garoto com tatuagens


esqueléticas que assediou Chay durante meu primeiro café da
manhã na Kingmakers. Aquele que ajudou a segurar minha irmã
enquanto Rocco cortava suas roupas. Desnecessário dizer que eu
o odeio pra caralho e espero que ele leve uma surra no rosto no
primeiro round.

Os veteranos selecionaram Calvin Caccia, um herdeiro italiano


que Zoe diz que também foi capitão no ano passado.

— Eu não gosto tanto dele — Zoe me diz. — Ele é arrogante e


rude e tem rancor de Leo.

— Muitas pessoas têm — Leo diz, do outro lado de Anna. —


Não use isso contra ele. Se você odeia todo mundo que me odeia,
não terá muitos amigos sobrando.

Zoe ri. Leo pode ter inimigos, mas ainda é um dos alunos mais
populares de nossa escola.
— Quem são os outros dois? — Eu aceno para baixo em
direção aos dois últimos lutadores se aquecendo na borda do
ringue. Um é um cara alto e negro com um físico rasgado e uma
cabeça raspada. O outro é de tamanho bestial, mas parece mais
gordo do que musculoso.

— Esses são Zeke Golden e Lee Sparks — diz Anna. — Zeke é


habilidoso. E não se deixe enganar pelo peso extra – Lee também
não é desleixado.

Os lutadores colocam as mãos em um saco para puxar o nome


do oponente. Leo dá um grunhido irritado quando Silas sorteia Lee
Sparks, e outro quando Dean faz dupla com Zeke Golden. É uma
má sorte que dois dos lutadores do segundo ano tenham que
enfrentar veteranos experientes. Kenzo Tanaka sorteia Jasper
Webb. Os dois capitães anteriores – Kasper Markaj e Calvin Caccia
– são os primeiros a entrar no ringue.

A luta é rápida e decisiva, Kasper supera Calvin Caccia


facilmente, terminando com um nocaute técnico após apenas um
round.

— Ha! — Zoe grita, não tendo abandonado sua antipatia por


Calvin. — Bom para Kasper. Aposto que isso o faz se sentir melhor
sobre o ano passado.

Silas e Lee Sparks se enfrentam em seguida. É uma batalha


de titãs, os dois lutadores mais pesados atacando um ao outro
como touros, agarrando-se e se debatendo como se seus chifres
estivessem travados. Cada vez que um joga o outro no chão, o
estrondo ecoa nas arquibancadas.

Hedeon está sentado bem na minha frente, perto o suficiente


para que possa descansar sua coluna contra minhas canelas se
ele se inclinar para trás. Ele observa Silas balançar seus punhos
pesados como presunto no rosto de seu oponente. A cada golpe
que seu irmão acerta, Hedeon recua. Sua pele ficou quase tão
cinza quanto seu nome.

Silas vence, mas a um custo alto. Ele está machucado e


sangrando, não que isso pareça incomodá-lo. Lee está com uma
aparência ainda pior e precisa ser ajudado a sair do ringue e levado
diretamente para a enfermaria.

Hedeon apoia o rosto nas mãos, parecendo doente.

Quero perguntar se ele está bem, mas não me atrevo a fazer


isso.

— Você quer uma bebida? — Ares diz, passando uma garrafa


de água.

Hedeon levanta o rosto, os olhos arregalados e com raiva, como


se fosse rosnar para Ares. Ele se detém, por pouco.

— Obrigado — ele murmura, pegando a água e bebendo.

Dean é o próximo, contra Zeke Golden.

A tensão varre a multidão. Os veteranos já perderam dois de


seus lutadores – se Zeke não vencer, eles perderão o desafio e serão
eliminados do Quartum Bellum.

A pressão é visível na estrutura rígida de Zeke e também em


Dean. Ambos os lutadores parecem tensos enquanto sobem no
ringue. Ao contrário dos dois primeiros pares, tanto Dean quanto
Zeke são boxeadores experientes, com as mãos envolvidas com
cuidado profissional, ambos caindo naturalmente em sua postura
antes mesmo de o professor Howell tocar o sino inicial.
— Puta que pariu — Anna respira quando a luta começa.

Dean e Zeke são tão rápidos que mal consigo acompanhar


enquanto eles se atacam com combinações rápidas e complexas.
Esta é a diferença entre treinados e altamente treinados,
boxeadores vs. lutadores. A multidão, coletivamente, prende a
respiração, os socos caindo muito rápido, mesmo para aplausos.

A luta dura três rounds. Não sei quem ganhou, embora


suspeite que pode ter sido Dean. Seu rosto está quase sem marcas,
exceto um pequeno hematoma sob um olho.

Os juízes – o professor Howell, o professor Bruce e o próprio


Chancellor – inclinam a cabeça sobre os cartões de pontuação. A
multidão espera em silêncio. O Chancellor dá a Dean um aceno de
aprovação enquanto ele anuncia a decisão unânime.

Os veteranos uivam de raiva. Eles estão fora do Quartum


Bellum sem nem mesmo a dignidade de avançar para a rodada
final.

Dean parece zangado em vez de satisfeito. Ele provavelmente


queria vencer aquela luta de uma vez, não por decisão.

— Eu não posso acreditar! — Anna grita. — Estamos a salvo!

— Sim — Leo diz com um sorriso tenso.

— Isso foi intenso — Anna suspira.

— Dean é um bom lutador; é por isso que eu o escolhi — Leo


diz, tentando manter o ciúme fora de sua voz.

Anna o pega de qualquer maneira. Ela agarra seu rosto e o


beija.
— Você daria uma surra em qualquer um deles se estivesse lá
— diz ela.

Leo sorri, apaziguado. — Eu não sei sobre isso. Eu


definitivamente venceria aquele filho da puta do Calvin Caccia, não
é, Zoe?

— Isso mesmo. — Zoe sorri.

Com apenas lutadores do segundo ano e do terceiro restantes,


as lutas continuam pelo direito de se gabar e, possivelmente, uma
vantagem no desafio final.

A última dupla é Kenzo Tanaka contra Jasper Webb.

Eu sei quem eu quero que ganhe, e não apenas porque estou


torcendo para os alunos do segundo ano. Qualquer amigo do Rocco
merece um chute no traseiro.

Jasper Webb sobe no ringue. Ele parece calmo e indiferente,


mesmo enquanto os alunos ao redor gritam com ele. Ele tira a
camisa, revelando um peito e costas tatuados da mesma maneira
que suas mãos, com uma representação anatômica perfeita dos
ossos sob a pele.

— Por que você acha que ele fez isso? — Zoe diz baixinho, ao
meu lado.

— Eu não sei — eu falo. — Para se lembrar de nosso fim


inevitável, eu suponho. Ou ele apenas acha que parece assustador.

Eu digo isso em tom de zombaria, mas na verdade Jasper é


uma figura imponente enquanto joga seu longo cabelo vermelho
escuro para trás do rosto. Seu corpo é magro, duro e pálido, com
ondulações de músculos sob os ossos tatuados. Mesmo daqui de
cima, posso ver que seus olhos verdes são vívidos como os da
minha irmã, embora infinitamente mais frios.

Ele enfrenta Kenzo Tanaka, que tem seu cabelo escuro


penteado em um topete estilo retro, e sua camisa também tirada
para mostrar a tatuagem de dragão que vai do polegar ao ombro.

— É a batalha da tinta — diz Leo. Ele está tentando parecer


casual, mas seus olhos estão fixos no ringue. Ele quer que Kenzo
vença. Ele quer que os alunos do segundo ano triunfem.

Estamos todos destinados ao desapontamento. Kenzo começa


forte, acertando Jasper com alguns chutes e socos violentos na
cabeça. Jasper mal parece sentir isso. Ele leva golpe após golpe,
nunca cambaleando.

O segundo round começa, e Jasper caminha para o ringue tão


fresco como se a luta estivesse apenas começando. Kenzo dispara
mais algumas combinações contra ele. Jasper as desliza
facilmente. Esperando pacientemente por uma abertura, ele chuta
a lacuna e acerta Kenzo com um único cruzamento de direita
direto no queixo. Kenzo cai mole e sem ossos.

A multidão ruge. Jasper não é popular, mas ninguém pode


negar a precisão perfeita desse soco. O professor Howell ergue o
braço de Jasper no ar. Os aplausos são ensurdecedores.

Howell pede uma pequena pausa antes da segunda rodada de


lutas. Apenas alguns alunos saem das arquibancadas. Embora a
rodada final do Quartum Bellum já esteja garantida, os alunos do
segundo e terceiro anos ainda estão intensamente interessados em
ver qual lutador triunfará. Os calouros e veteranos também
parecem colados ao ringue, ansiosos para ver quem terá que lutar
com Silas em seguida e se Jasper será capaz de empregar aquele
golpe de marreta contra um oponente diferente.
Miles escala o lado das arquibancadas, se espremendo no
espaço entre Anna e Zoe.

— Onde você esteve? — Zoe diz, suas bochechas ficando


rosadas apenas com a visão de Miles.

— Achei que vocês pudessem estar com fome — diz ele,


passando um saco de papel com biscoitos de chocolate recém-
assados. Eles são quentes e macios, os pedaços de chocolate ainda
derretendo do forno. Eu engulo meu biscoito em duas mordidas.

— Um presente dos seus amigos da cozinha? — Zoe ri.

— Eu te disse, eles vão trocar suas almas pelo saquinho certo.


— Miles sorri.

— Sem leite? — Leo reclama.

— Só para Zoe — Miles dispara de volta, puxando uma garrafa


de vidro gelada de debaixo de sua camisa e rasgando a tampa de
papel.

— Zoe. Vou pagar quinhentos dólares por esse leite — diz Leo,
os olhos fixos na garrafa. — Vou fazer todo o seu dever de casa por
um ano. Por favor. Eu preciso disso.

— Há muito — Zoe diz, tomando um gole e passando adiante.


— Estou feliz em compartilhar.

— E ela não quer sua ajuda com o dever de casa. — Anna ri.
— Isso não melhoraria as notas dela.

— Estive estudando este ano — diz Leo, fingindo estar


magoado.
— Não tanto quanto Zoe.

— Bem, se esse é o nível, então nenhum de nós estuda.

— Exceto Ares — Zoe corrige.

Estou apenas ouvindo a conversa pela metade porque estou


olhando através do ringue para as fileiras duplas de assentos
reservados para os professores. A Sra. Robin está sentada na
extremidade da segunda fileira, seu cabelo ruivo flamejando ao sol
e seu cardigã volumoso e grande demais, inadequado para o clima
quente da primavera.

— Olhe para aquilo — eu digo para Zoe. — A Sra. Robin veio.

— É engraçado vê-la sob a luz do sol — Zoe fala.

— Bem, agora você sabe com certeza que ela não é uma
vampira.

— Aposto que ela finalmente está se sentindo confortável na


escola — diz Zoe. — Fico feliz – tenho certeza de que demora um
pouco para se acostumar com este lugar. E os outros professores.

— Eu gosto da Sra. Robin — Miles diz, pegando o leite de Leo


e engolindo seu biscoito. — Ela me fez um favor outro dia.

— O que ela fez? — Anna pergunta.

Eu vejo um olhar rápido e divertido passar entre Miles e Zoe.

— Ela encontrou meu livro nos achados e perdidos — diz


Miles.

O professor Howell sobe no ringue, saltando facilmente por


cima da corda superior, embora esteja na altura do peito dele.
— Prontos para o segundo round? — ele grita para a multidão.

Os alunos rugem em aprovação, quase não saciados ainda.

Os lutadores empatam novamente, e desta vez há um suspiro


audível quando Silas está emparelhado com Jasper Webb. Jasper
mal teve tempo de se recuperar de sua última luta, mas ele assume
sua posição, parecendo frio e indiferente, mesmo em face do
volume de granito de Silas. Jasper estala os nós dos dedos, o estalo
agudo audível por todo o caminho até as arquibancadas.

Os lutadores erguem os punhos. O professor Howell toca a


campainha.

Desta vez Jasper tem o cuidado de evitar os golpes de Silas.


Ele dança e se esquiva com uma velocidade quase se aproximando
de Dean. Silas é ferozmente forte. Quando ele atinge Jasper mesmo
com um golpe de relance, o impacto é brutal. Jasper começa a
sangrar pelo nariz, lábio e sobrancelha.

Ainda assim, ele está dando quase tão bem quanto consegue.
Como um atirador de elite, ele dá socos afiados e estalando que
atingem Silas precisamente onde Jasper pretende. Ele abre um
corte no olho esquerdo de Silas, em seguida, o atinge novamente
no mesmo local, enviando uma torrente de sangue para o olho de
Silas, quase o cegando. Cambaleando sem equilíbrio, Silas é
atingido repetidas vezes.

No terceiro round, Silas se cansa. Jasper redobra sua


velocidade. Ele é tão rápido quanto antes, talvez até mais rápido.
Mas Silas é tão forte que os golpes de Jasper não têm o mesmo
efeito que tiveram em Kenzo Tanaka. Silas tropeça e cambaleia sem
cair.
Quando o sino toca, fica claro que Jasper ganhou por pontos.
Ele e Silas estão uma bagunça, sangue chovendo na tela.

Em contraste, Dean faz um breve trabalho em Kasper Markaj.


Zoe quer torcer por Kasper, mesmo ele sendo do terceiro ano, mas
está claro desde o início que ele não consegue acompanhar Dean.

Dean se move através de seu jogo de pés com uma graça de


balé. Cada golpe é rápido, calculado e terrivelmente forte. Seus
punhos são foices cortando o ar.

A Sra. Robin se inclina para frente em seu assento, seus olhos


escuros fixos nos lutadores. Suas bochechas estão vermelhas e ela
parece paralisada, mal respirando.

Parece-me que ela pode ter vindo a este evento em particular


porque gosta de boxe. É uma preferência curiosa por alguém tão
gentil, mas as pessoas nem sempre se parecem com seus
interesses. Existem muitas avós que adoram lutar, ou
motociclistas que gostam de cozinhar.

Dean bate Kasper na lona três vezes no primeiro round. Na


terceira queda, Kasper não se levanta. Ele concede a vitória,
cambaleando para fora do ringue apoiado pelo professor Howell.

Dean levanta seu próprio punho enluvado em vitória, severo e


sem sorrir. Ele não parece ter nenhuma alegria com suas vitórias.
No entanto, posso dizer o quanto ele as deseja.

O professor Howell anuncia mais uma pausa antes da rodada


final.

Nem uma única pessoa sai de seu assento.


Todos estão extremamente curiosos se Dean vai continuar a
prevalecer, ou se Jasper vai provar algum tipo de fenômeno azarão.

— Eu nem sabia que ele era um lutador tão bom — diz Leo.

— Eu sabia — Miles responde, sem sorrir. — Eu o vi na aula


de combate.

— Ainda assim... derrubando Silas...

— Silas estava bastante abatido desde a primeira luta — diz


Ares.

Hedeon não está entrando na conversa. O leite e os biscoitos


pareceram reanimá-lo um pouco, mas ele ainda está taciturno e
pálido.

Dean e Jasper tomam seus lugares no ringue. Jasper está


fortemente marcado por sua batalha com Silas, enquanto o rosto
de Dean está quase imaculado. Nenhum dos meninos mostra um
traço de nervosismo – apenas uma intenção fria. Dean tirou sua
camisa também, seu corpo é uma prova de horas intermináveis na
academia: treinamento concentrado e repetido esculpindo cada
músculo para a perfeição sobre-humana.

— Deus todo-poderoso — Chay diz calmamente.

Anna lança um olhar sufocante, provavelmente para o


benefício de Leo.

— Eu sinto muito! — Chay chora. — Eu sei que o odiamos,


mas ele é uma porra de espécime. Não se preocupe, Leo, você
também – eu vi você nu no refeitório, então sei o que você está
carregando. Estou apenas dizendo...
Leo não parece incomodado, mas Ozzy ficou quieto no lado
oposto de Chay.

A campainha toca e Dean e Jasper fecham o espaço rápido e


silenciosamente. Como falcões, eles se lançam e se retorcem e
mergulham uns no outro, agarrando-se e separando-se apenas
para atacar novamente, ainda mais rápido do que a luta de Dean
com Zeke Golden. Eu tenho minhas mãos pressionadas contra
minha boca, mordendo com força minha junta, mesmo sem
perceber.

Os golpes batem em um ritmo quase constante, Dean e Jasper


estremecendo e cuspindo sangue, mas nenhum diminui por um
instante.

Jasper prende Dean contra as cordas e o acerta com uma


combinação de punição que parece que pode apenas ganhar a luta.
Dean atira de volta com uma saraivada de socos que são os
primeiros que Jasper realmente parece sentir. Ele se ajoelha e
Dean o acerta novamente, derrubando-o na lona.

A luta acabou. Dean venceu.

— Talvez Jasper pudesse ter feito isso se não tivesse lutado


com Silas primeiro — Chay diz.

— Eu duvido — Leo diz, balançando a cabeça. — Dean é bom


pra caralho.

Eu sei que a animosidade entre Leo e Dean ainda é crua, mas


o pragmatismo de Leo não o deixa negar a habilidade de Dean. Ele
é realista, goste da verdade ou não.

— Foi você quem o escolheu! — Anna lembra Leo. — Vencemos


o segundo desafio!
— Dean ganhou — Leo ri.

— Sob a sua excelente liderança. — Ela lhe dá um leve beijo


na boca.

Eu vejo Miles e Zoe trocando outro olhar. Provavelmente


desejando que eles pudessem ser afetuosos quando e onde
quisessem. Desejando que, como Anna e Leo, seu contrato de
casamento fosse uma licença para namorar e não uma sentença
de prisão.

— Bem — eu suspiro. — É melhor eu ir embora. Eu devo


trabalhar em um projeto de codificação com Rakel esta tarde.

— Ela está falando com você agora? — Chay ri.

— Às vezes! — eu falo. — Muito, na verdade.

— Aposto que a pobre Anna deseja que eu dê a ela o


tratamento do silêncio de vez em quando — Chay diz, sorrindo
para Anna.

— Só depois da meia-noite — Anna resmunga.

Eu desço da arquibancada, planejando ir para o laboratório de


informática em The Keep.

Passos pesados seguem atrás de mim. Eu me viro, esperando


ver Leo ou Miles, ou talvez até Ares. Em vez disso, encontro Hedeon
a apenas um braço de distância.

— Oh, olá — eu digo. — Você também tem aula em The Keep?

— Não — Hedeon diz, breve.


Ele ainda parece pálido e mal-humorado. Acho que ele não
gostou nada das lutas.

Eu não espero que ele caminhe comigo ou fale comigo também.


Podemos ter dançado juntos no Halloween, mas Hedeon e eu não
somos amigos. Tenho certeza de que a dança foi puramente por
necessidade – há uma escassez de garotas na Kingmakers, e Chay,
Anna e Zoe já estavam ocupadas.

Por isso, fico surpresa quando Hedeon me acompanha,


silencioso e carrancudo, como uma sombra alongada e rabugenta.

— Você é boa nessas aulas de hacking, hein? — ele fala


abruptamente.

— Uh, claro... boa o suficiente — eu respondo. — Eu estou


aprendendo.

— Você tem acesso aos computadores da escola?

— Sim... — eu digo hesitante. — Acesso limitado.

— Você poderia conseguir mais?

Ele está me observando com olhos azuis penetrantes sob as


linhas retas e escuras de suas sobrancelhas. Sua voz está calma,
mas eu ouço o fio escondido por baixo, como uma lâmina de
barbear enterrada em um bolinho.

Eu paro de andar. — O que você está me perguntando,


exatamente?

Hedeon agarra meu braço e me puxa para a sombra do


Arsenal, fora do fluxo de alunos que se dirigem para The Keep.
— Eu quero saber se você pode hackear o servidor da escola.

— Eu não tenho ideia — eu digo, olhando para o rosto dele. —


Eu não tentaria.

— Eu poderia pagar a você — diz Hedeon. Eu ouço a urgência


agora, o quanto ele quer isso.

Eu deveria apenas dizer não a ele. Eu nem deveria estar


discutindo isso. Mas estou formigando de curiosidade.

Eu costumava cuidar da minha própria vida. Eu costumava


ser tímida e segura.

Desde que vim para a Kingmakers, tornei-me muito mais


curiosa. Há um mundo de segredos e mentiras ao meu redor. Eu
gostaria de saber as respostas para algumas coisas...

Talvez os Spies estejam passando para mim, afinal.

— Eu tenho que saber o que você está procurando — eu falo.


— Ou então não saberei se posso fazer isso.

Hedeon estreita os olhos para mim, desconfiado.

Tento manter minha expressão inocente de olhos arregalados.


Como se eu só quisesse ajudá-lo.

— Preciso acessar os registros dos alunos — diz ele. —


Registros antigos.

— Você acha que eles estão em um servidor? Achei que tudo


em Kingmakers fosse escrito à mão.

Estou pensando em nossas cartas de aceitação, nossos


contratos, nossas atribuições, nossas notas. Minha impressão era
que tudo era guardado no papel para que pudesse ser queimado
ou descartado sem nenhum registro permanente.

— Não há nada nos arquivos — diz Hedeon, frustrado. — Os


registros devem estar em outro lugar.

Prendo a respiração, percebendo que Hedeon já fez essa


pergunta a Saul. É por isso que ele estava no quarto de Saul no
dia em que esbarrei com ele na Undercroft – ele queria que Saul
checasse os arquivos, aos quais Saul tem acesso como ajudante
de biblioteca.

Saul deve ter dito a ele que não havia registros lá.

O que significa que eles devem estar online.

Ou armazenado em outro lugar.

— Não sei se consigo olhar — digo a Hedeon. — Todas as


nossas teclas são monitoradas no laboratório de informática.
Tenho certeza de que eles têm uma proteção bastante robusta
contra o nosso acesso ao servidor da escola.

Hedeon já está se virando, a decepção clara em seu rosto


bonito.

É aquele olhar de angústia que me pica, transformando


curiosidade em culpa. Eu quero ajudá-lo.

— Espere! — falo, chamando-o de volta.

— O quê? — Hedeon se volta para mim, tanto zangado quanto


desanimado.

— E quanto aos estábulos?


Ele franze a testa sem me entender.

— Na noite da festa de Halloween, eu estava sentada em uma


pilha de caixas e as derrubei. Havia um monte de papéis dentro.
Documentos antigos. Aquele sofá é do gabinete do Chancellor, todo
mundo diz. Talvez os papéis também sejam?

Hedeon pensa sobre isso, os lábios bem apertados.

— Eu vou olhar — ele diz. E então, como uma reflexão tardia:


— Obrigado.

— Sem problemas. Espero que ajude.

Seu rosto escurece mais uma vez e ele rosna: — Não conte a
ninguém sobre isso, Cat. Ninguém. Nem mesmo Zoe.

— Eu não vou. Quer dizer, eu nem sei de nada.

Hedeon me olha de perto e se afasta.

É verdade, não sei de nada.

Mas se Hedeon quer registros antigos da escola... então estou


começando a adivinhar.
ZOE

O clima esquenta rapidamente à medida que avançamos para


a primavera. Os alunos começam a dar mais festas ao ar livre, na
Moon Beach e no River Bottoms.

Recebi três cartas extremamente desagradáveis de meu pai


depois que meus primos relataram que eu participava dessas
festas. Amassei as cartas e as joguei fora pela metade. Pode ser
loucura, mas estou começando a pensar que o plano que Miles e
eu formulamos pode realmente funcionar, o que me torna
atipicamente imprudente.

De qualquer forma, meu pai não pode me tocar aqui. Ele


poderia me punir durante o verão. Mas se a visita de Miles for bem-
sucedida após o fim do ano letivo... tudo irá mudar.

Estou tentando não ter esperança. Tentando nem pensar


nisso.

O que não é tão difícil, porque minha mente está cheia do


próprio Miles. Nunca tive tanta dificuldade em prestar atenção nas
aulas. A cada minuto que estamos separados, estou fantasiando
sobre fugir com ele novamente. Estou imaginando seu sorriso
torto, sua risada baixa e zombeteira, seus olhos cinza claros que
me lembram o aço, a fumaça, a luz do amanhecer...
Estou imaginando seu corpo com sua rica pele morena e seus
músculos densos, sua carne quente e suas mãos ainda mais
quentes que me agarram e manipulam como uma boneca em seus
braços, enquanto sou levada por ondas de prazer que são íngremes
e infinitas...

Eu nunca tinha sido feliz antes, não de verdade. Eu nunca


soube como era.

A felicidade é estimulante, inebriante. Estou bêbada disso.


Isso me faz acreditar que posso fazer qualquer coisa. E me faz
acreditar que tudo ficará bem.

Isso está me mudando. E está mudando Miles também.

— Eu nunca o vi assim — Anna me conta. — Não estou


dizendo que ele era um idiota antes – quero dizer, ele sempre foi
legal comigo. Quando ele queria. Mas ele estava obcecado em fazer
tudo do seu jeito, sem ajuda. Todo mundo é seu amigo e todo
mundo lhe deve favores, mas no final das contas era sobre Miles e
o que ele queria. Você está trazendo o melhor dele, Zoe. Dando a
ele algo com que se preocupar fora de si mesmo.

— Eu não sei sobre isso — eu falo corando. — Eu não estou


tentando mudá-lo. Eu gosto dele exatamente como ele é.

Anna ri. — Oh, você gosta, não é? Você esqueceu o Miles do


ano passado? Você realmente deve estar muito apaixonada.

Eu fico olhando para ela de boca aberta. Eu tinha realmente


esquecido que não gostava de Miles no meu primeiro ano. Parece
impossível agora, como se eu fosse uma pessoa completamente
diferente. Alguém tensa e infeliz, o que é verdade.
— Espero que continue gostando dele. — Anna sorri para mim.
— Nós poderíamos ser uma família.

A ideia me atinge como um raio de pura alegria. Anna e Leo


como uma família real, não apenas amigos... Miles como minha
família...

Quero isso. Eu quero tanto que parece que vai me separar.

— Você vai sair com a gente esta noite? — eu pergunto a Anna.

— Eu gostaria de poder — ela suspira. — Tenho três trabalhos


diferentes para entregar. Leo vai me fazer companhia na biblioteca,
embora eu não deva deixar. Ele distrai mais do que ajuda.

— Venha se juntar a nós mais tarde se você puder...

Chay nos interrompe, entrando no quarto com os braços


carregados de livros. Ela os joga na cama, chorando: — Foda-se a
classe! Foda-se o dever de casa! Quando é o nosso piquenique?

— Em uma hora. — Eu rio. — Empreste-me algo fofo para


vestir.

Chay, Ozzy, Miles e eu planejamos fazer um piquenique fora


do terreno da escola. Eu esperava que Anna e Leo pudessem se
juntar a nós também, mas parece que eles estarão ocupados da
mesma maneira que Cat, se afogando em deveres do meio do
semestre.

Anna nos ajuda a nos preparar de qualquer maneira,


escolhendo um jeans e botas para eu usar. Chay me empresta uma
camisa do Queen enorme. Não posso pegar emprestada uma calça
de Chay porque ela é muito mais baixa e caberia em mim mais
como capri.
— Deixe-me fazer sua maquiagem — Chay exige.

— Não muito — eu a advirto.

— Eu nunca faço muito! Em você... — Chay se corrige, rindo.

Chay me dá um belo olho esfumaçado e um pouco de brilho


labial. Eu puxo meu cabelo em um rabo de cavalo bagunçado. Com
a camisa da banda e as botas da Anna, eu me sinto um pouquinho
rockstar. Eu gosto disso. Eu nunca me senti ‘legal’ na minha vida
antes de conhecer essas garotas.

Chay passa mais quarenta minutos refazendo sua própria


maquiagem elaborada, até que fico inquieta de impaciência e
quase a puxo porta afora.

— Tudo bem, tudo bem! — ela diz. — Estou indo!

Chay parece surpreendentemente doce e feminina em um


vestido branco de verão, cardigã e alpargatas. As mechas rosas
desapareceram de seu cabelo, então agora é apenas uma juba
macia e fofa de seu loiro morango usual, que contrasta bem com
seu bronzeado dourado.

Quando nos encontramos com Ozzy e Miles fora das paredes


de pedra da Kingmakers, Ozzy encara Chay com uma expressão
atordoada.

— Você é apenas... a perfeição — diz ele.

Em vez de rir e concordar como normalmente faria, Chay diz:


— É muito gentil da sua parte dizer isso, Ozzy.
— Ele roubou as palavras da minha boca — Miles rosna,
deslizando o braço em volta da minha cintura. — O que posso dizer
agora – o que é melhor do que perfeição?

— Isso — eu digo. — Este momento agora.

A noite está quente e tranquila, o cheiro fresco de grama nova


doce no ar. Minúsculas borboletas brancas voam sobre as flores
silvestres no campo. A luz é dourada e suave.

Eu não deveria deixar Miles me tocar enquanto ainda estamos


à vista da escola. Mas não há ninguém por perto. Sinto-me segura
e corada de felicidade.

— Para onde devemos ir? — Chay pergunta.

Ozzy coloca sua mochila no ombro. — Eu estava pensando que


poderíamos ir para os penhascos acima da Moon Beach — diz ele.
— Ver o sol se pôr.

Caminhamos pelo campo, através de uma faixa de floresta e


depois para o oeste através dos vinhedos. As vinhas estão apenas
começando a florir, as folhas verdes e viçosas, mas as uvas ainda
pequenas e duras.

— O deck atrás da casa dos meus pais está coberto de uvas


raposas — Miles me diz.

— Oh, sério?

— São vinhas velhas, levadas da Itália há duzentos anos.

— Sua família as levou?


Miles acena com a cabeça. — Tínhamos uma velha casa
georgiana em Chicago. Esteve na família por gerações. Meu avô
Enzo morou lá, minha mãe nasceu lá, viveu lá a vida toda. As uvas
raposas cresceram ao lado da casa e sobre a pérgula no telhado.
Mas a casa pegou fogo.

Eu gemo com simpatia.

— Na verdade. — Miles dá uma risada curta e melancólica. —


O avô de Dean ateou fogo. Alexei Yenin – imagine só Dean, com
treinamento na KGB e uma atitude ainda pior. O pai de Leo se
casou com a filha de Alexei, sabia disso?

Eu concordo. Anna me contou quando explicou a história de


torturas entre os primos.

— De qualquer forma, o pai de Leo, Sebastian, ele estava na


casa na época, com o pai de Dean, Adrian Yenin. Alexei não se
importou. Ele bombardeou a casa com seu próprio filho dentro.
Sebastian deixou Adrian para morrer, e ele quase morreu. Ele foi
queimado em metade de seu corpo.

Ozzy e Chay estão ouvindo tão atentamente quanto eu,


embora eu tenha certeza de que Ozzy pelo menos já ouviu essa
história antes.

— Tio Seb lutou contra Alexei Yenin. Ele o matou. Foi uma
vingança, porque Alexei já havia matado o vovô Enzo. Também
tentou matar o resto dos meus tios. Seb e Tio Miko – o pai de Anna,
você o conhece.

Chay concorda.

— Eles venceram a Bratva. Retomaram sua metade de


Chicago. Mas a casa foi totalmente destruída – os livros, as
fotografias, o piano da minha avó, até os carros do Tio Nero na
garagem subterrânea. Minha família ficou arrasada. Eles não
tentaram reconstruir.

— ... na primavera seguinte, minha mãe voltou ao terreno


antes que fosse limpo e vendido. Ela encontrou um ramo de uvas
raposas ainda crescendo. Verde onde o resto das videiras não
passavam de cinzas. Ela o desenterrou e replantou no lago onde
ela e meu pai estavam começando a construir sua própria casa.
Ele cresceu perfeitamente. As uvas estão mais grossas do que
nunca. As abelhas e as vespas ficam bêbadas a cada outono.

Nunca ouvi Miles falar assim antes. Ele adora discutir seus
planos para o futuro. Nunca o ouvi sentimental.

— A casa do lago é linda — Ozzy me diz. — Eu visitei – você


pode ver árvores e água de todos os cômodos.

Miles me contou sobre a casa, sobre seu irmão e irmã mais


novos e sobre seus pais – o severo príncipe da máfia irlandesa e a
selvagem princesa italiana que se casaram contra sua vontade
para evitar uma guerra total entre suas famílias.

Obviamente, odeio a ideia de qualquer tipo de casamento


forçado, mas Miles me garantiu que eles não permaneceram
inimigos por muito tempo.

— Depois de tentarem matar um ao outro, eles se deram muito


bem. — Ele riu.

Esse é um resultado que nunca poderia ocorrer para mim e


Rocco.

Um que eu nem iria querer, agora que me apaixonei por Miles.


Não há outro final feliz para mim. Eu quero Miles, e mais ninguém.
— Eu quero que você veja — Miles me diz agora. — Eu quero
que você veja as uvas e a casa do lago. Eu quero que você conheça
minha família.

— Eu adoraria — falo, engolindo em seco. Na verdade, fico


intimidada com a descrição dos pais de Miles. Eles são brilhantes
e implacáveis – eles dirigem metade de Chicago. Como nunca
conheci pais afetuosos, é difícil imaginar pessoas poderosas que
também possam ser amorosas e dar apoio aos filhos.

— Eu contei a minha mãe sobre você — Miles diz.

— Você contou?

Estou atordoada. Apesar de todas as promessas que Miles fez


para mim, isso é algo diferente, algo concreto e real. Ele não teria
feito isso se não estivesse falando sério sobre seguir em frente com
nosso relacionamento.

— Você contou a sua mãe sobre mim? — Chay fala para Ozzy,
em seu jeito provocador. Ela está apenas brincando – ela não
esperaria que Ozzy contasse a seus pais sobre seus encontros.

Mas Ozzy a olha nos olhos, o rosto sério.

— Sim — ele diz. — Eu contei.

Chay fica surpresa. Ela fica quieta por um momento, então


diz: — O que você disse a ela?

— Eu disse a ela que conheci uma garota que é ousada,


engraçada e criativa, e absolutamente linda pra caralho, e que eu
sou louco por ela.
Os olhos azuis de Chay estão arregalados e assustados. Pela
primeira vez, ela não está rindo.

Ela abre a boca para responder, mas não parece saber o que
dizer.

Não importa – chegamos aos penhascos, então ela está salva


de responder.

Ozzy abre o zíper de sua mochila, tirando um cobertor, uma


garrafa de vinho, vários pacotes de sanduíches e meia dúzia de
maçãs.

— Sem taças — diz Ozzy. — Parecia que elas só iam acabar


quebradas.

— Você se lembrou do abridor de garrafa — diz Miles, abrindo


a rolha. — Isso é tudo que importa.

O vinho vem dos próprios vinhedos que acabamos de


atravessar. O frasco é carimbado com o rótulo liso e escuro que
mostra o contorno da ilha, sem texto. É um pinot noir rico e escuro
que você deve beber com cuidado, porque os efeitos surgem em
você rapidamente.

Chay fica estranhamente quieta enquanto comemos e


bebemos, olhando para a água gasosa ao pôr do sol.

Chegamos bem a tempo de observar a pesada esfera laranja


afundando nas ondas. Nuvens suficientes cobrem o céu para que
possamos olhar diretamente para o oeste, observando as cores
mudando de rosa para laranja e para um vermelho profundo e
sangrento.
— Conte-me sobre sua família — Chay pede a Ozzy, depois de
bebermos mais da metade do vinho.

— Sou filho único — diz Ozzy, dando uma mordida agressiva


em uma maçã. — Eu tenho um milhão de primos, no entanto.
Crescemos selvagens e ferozes na Tasmânia. Nós surfávamos em
Bay of Fires55 – há líquen laranja por todas as rochas, então
realmente parece ardente, especialmente quando você tem um pôr
do sol como este acontecendo. Corríamos pelos campos de lavanda
em fevereiro, quando elas florescem. Há campos de tulipas
também e fazendas de framboesa – é lindo pra caralho, na verdade.
Ninguém sabe como é bonito porque ninguém vai ver.

O rosto de Ozzy está meio iluminado pelo sol poente. As


sombras destacam as linhas ásperas de seu nariz e queixo largos
e as covinhas profundas quando ele sorri. Ozzy pode não ser
convencionalmente bonito, mas seu calor e charme são inegáveis,
especialmente quando ele está falando com seu sotaque alegre e
cadenciado.

— Eu gostaria de ver isso — Chay diz suavemente. Ela está


olhando para as próprias mãos quando diz isso, e então ela arrisca
um rápido olhar para Ozzy.

— Não me provoque, garota — ele rosna. — Vou comprar uma


passagem para você agora mesmo.

Estou encostada no peito de Miles, e me sentindo quente como


uma torrada com seus braços ao meu redor. Conforme o céu
escurece, o ritmo de sua respiração me balança, e fico com sono e
em paz.

55
Traduzido como Baía dos Fogos, é uma baía na costa nordeste da Tasmânia, na Austrália.
— O que você está pensando? — Miles murmura em meu
ouvido.

— Estou pensando que este é o melhor dia da minha vida —


eu digo. — Todos os melhores dias foram com você. Eles estão cada
vez melhores.

— Minha mãe me disse isso uma vez — Miles fala calmamente.


— Quando você encontrar sua alma gêmea... cada dia é o melhor
dia.

Ele inclina minha cabeça para trás para que ele possa me
beijar.

— Eu não entendia na época — diz ele. — Estou começando


agora.

Eu ergo minha mão para emaranhar meus dedos em seus


cachos grossos e escuros. O beijo se aprofunda e Chay diz: — Ozzy,
leve-me para dar uma volta para que eu possa ficar um pouco
sóbria antes de voltarmos.

— Claro — diz Ozzy afavelmente.

Eu sei que eles estão saindo para dar a Miles e a mim um


pouco de privacidade, e eu agradeço isso.

Assim que eles estão fora de vista, caminhando para o sul ao


longo dos penhascos, Miles começa a me despir. Agora que o sol
está quase se pondo, uma brisa sopra da água. É uma sensação
fresca e deliciosa, um líquido contra minha pele nua. Miles me
deixa completamente nua, em seguida, passa seus dedos
levemente sobre minha carne, traçando o perfil do meu nariz,
lábios e queixo, em seguida, desenhando as curvas dos meus
seios, circulando lentamente para dentro até que seus dedos
acariciem meus mamilos duros e doloridos.

Ele passa a mão levemente pelo meu umbigo. Seus dedos me


acariciam como a brisa, como se eu fosse uma donzela que
adormeceu no campo e ele é o deus do vento, vindo me destruir.

— Você é a visão mais linda que eu já vi, Zoe — ele rosna, sua
voz baixa e grossa. — Nenhum pôr do sol, nenhuma pintura,
nenhuma criação de Deus ou do homem é mais impressionante do
que você. — Ele ri. — Nem mesmo na Tasmânia.

Eu deveria estar com medo – estou nua como um passarinho,


ao ar livre no topo do penhasco, onde qualquer um poderia me ver.
Os alunos vagam por toda a ilha.

Mas não sinto nada além de pura felicidade. Miles é uma droga
– seus efeitos são um abandono irresponsável.

— Leve-me — eu imploro a ele. — Aqui e agora.

Não preciso pedir duas vezes. Miles coloca seu rosto entre
minhas coxas, afastando meus joelhos com as mãos para abrir
minha boceta do jeito que ele gosta. Ele me lambe em todos os
lugares, certificando-se de que estou molhada e latejante e pronta
para ele. Ele nunca se cansa de comer minha boceta. Ele gosta
disso ainda mais do que eu, se isso for possível – ele quer isso
sempre.

Nunca pensei nisso como um ato de dominação, mas Miles


nunca tem mais controle sobre mim do que quando está entre
minhas pernas, orquestrando uma sinfonia de sensações que
explode por todas as células do meu corpo, levando-me da cabeça
aos pés. Ele me possui assim. Vou dar a ele qualquer coisa no
mundo, desde que ele não pare.
Ele me faz implorar e chorar. Ele me faz sentir como se
estivesse morrendo. E quando estou mole e tremendo de prazer, é
quando ele me monta e enfia seu pau dentro de mim. Tudo o que
posso fazer é agarrar-me a ele com meus braços em volta do seu
pescoço enquanto a sensação começa a construir tudo de novo.

Eu nunca soube que o sexo poderia ter tantas personalidades.


Às vezes Miles me dá ordens, e o jogo de poder de seu domínio e
minha submissão é dolorosamente erótico. Às vezes, nós fodemos
como animais, levados a nos unir e morder enquanto nos
acasalamos. E às vezes o sexo é assim: lento e sensual, mais doce
do que o mel e mais quente do que um banho.

Nossos corpos derretem juntos, nossas bocas travadas, nossas


línguas entrelaçadas. Eu mal posso dizer onde Miles termina e eu
começo. As ondas batendo na Moon Beach abaixo são distantes e
suaves. O céu está totalmente escuro agora. O casulo dessa
escuridão me faz sentir que Miles e eu estamos sozinhos no
mundo, duas pessoas que são realmente uma só, um ser.

— Eu te amo — eu sussurro. Não sei se disse isso em voz alta


ou apenas na minha cabeça.

— Eu te amo — Miles diz, ao mesmo tempo.

Nunca senti uma conexão como esta, ou um prazer como este.

Eu não posso desistir. Por nada.

Miles me fode profundo, lento e forte. A cabeça de seu pênis


atinge o ponto mais distante dentro de mim, o que deveria ser
desconfortável, doloroso até. Estou tão excitada que não é
doloroso, mas profundamente satisfatório. Na verdade, estou
começando a sentir um prazer intenso naquele ponto escondido,
nervos que nunca foram tocados antes disparados. Eles ganham
vida, uma sensação totalmente nova, e eu começo a sentir o
orgasmo de uma maneira que nunca tinha antes, em um lugar que
eu nem sabia que podia sentir.

O orgasmo pulsa em ondas, apertando e comprimindo ao redor


do pau de Miles. Ele começa a gozar também. Ele nunca pode se
conter se eu gozar enquanto ele está dentro de mim.

Miles me esmaga em seus braços, ele dirige profundamente


dentro de mim e segura seu pau lá enquanto ele se contorce e
pulsa em resposta ao meu clímax. Ainda estou gozando, um
orgasmo longo e contínuo que se perpetua tanto quanto o dele,
talvez até mais.

Ambos estamos ofegantes e suando com a brisa fresca. Eu


odeio ter que puxar minhas roupas de volta, porque eu preferia
muito mais ficar deitada em seus braços a noite toda.

Eu mal me visto a tempo, antes de ouvir Ozzy gritando: —


Acabem com isso, pombinhos, temos que voltar.

Posso ouvir Ozzy e Chay caminhando pela grama alta antes de


vê-los. O sorriso brilhante de Ozzy ilumina seu rosto e o cabelo de
Chay parece desgrenhado o suficiente para que eu imagine que a
caminhada deles se tornou algo semelhante ao que Miles e eu
estávamos fazendo.

Ozzy começa a empacotar os suprimentos do piquenique


enquanto Miles pega o cobertor.

— Devíamos ter trazido uma lanterna — diz Chay.

— A lua vai nascer em um minuto — diz Miles. — Nós vamos


voltar bem.
Com certeza, a lua nasce brilhante e cheia, um disco prateado
plano que afoga as estrelas.

É claro o suficiente para que não tropecemos enquanto


voltamos pelos vinhedos.

Eu não acho que vou tropeçar de qualquer maneira – eu me


sinto como se estivesse flutuando, com minha mão enrolada na de
Miles e meus pés mal tocando o chão.

Nada poderia estragar este momento.

Até que saímos das árvores que margeiam a vinha e uma voz
terrivelmente familiar diz: — Aí estão vocês. Achamos que
tínhamos perdido vocês.

Quatro figuras estão no campo ao sul da Kingmakers: Wade


Dyer, Dax Volker, Jasper Webb e Rocco Prince. Eles formam uma
barreira entre nós e o castelo.

Os dedos de Miles se fecham com força ao redor dos meus


enquanto seu corpo fica tenso como uma pedra. Ele lança um
rápido olhar para trás. Eu sei que ele está pensando em me dizer
para correr. Mas a única coisa atrás de nós são os penhascos e o
caminho até Moon Beach, que é outro beco sem saída.

Nós ficamos descuidados. Rocco não fala comigo há semanas.


Ele nos acalmou com uma falsa sensação de segurança, o que
tenho certeza de que era exatamente sua intenção. Ele deixou
Miles e eu ficarmos envolvidos um no outro, esquecendo que ele
existia. Embora ele nunca tenha se esquecido de nós.

— O que você quer? — Miles diz.


Eu sei que ele está com medo, porque ele pode ver o horror da
nossa situação tão bem quanto eu. Mas não há nenhum indício de
medo em sua voz. Ele parece tão forte e claro como sempre.

— Quero o que sempre quis — diz Rocco suavemente. Seu


rosto pálido parece plano e encerado ao luar. — Eu quero Zoe.

Antes que eu possa abrir minha boca para responder, Miles dá


um passo na minha frente.

— Não — ele diz.

Rocco ri. Sua risada é mais respiração do que som,


assustadoramente repetitiva.

— Nós vamos bater em você até que você mal pisque, Miles.
Então vou pegar o que me foi prometido. Vou foder Zoe bem na
sua frente. Talvez eu deixe Wade, Dax e Jasper terem uma vez.
Você ficará olhando, sufocando com seu próprio sangue. Quando
eu terminar, vocês dois finalmente entenderão a verdade. Ela
pertence a mim. Ela sempre pertenceu e sempre pertencerá.

Ele sacode a cabeça em direção a Chay e Ozzy. — Vocês dois


podem ir.

Chay zomba bem na cara dele. — Com quem você pensa que
está falando? Você não está tocando em nossos amigos.

Nunca amei Chay mais do que neste momento. Mas, ao


contrário de Miles, sua voz não está calma e confiante. Está tensa
de medo, saindo uma oitava acima do normal.

Ozzy a apoia, se dirigindo a Wade, Dax e Jasper, porque ele


sabe que não adianta argumentar com Rocco. — Não sejam
estúpidos — ele diz. — Isso não vai acabar bem para nenhum de
vocês.

Wade sorri, seu rosto bonito não parece nada bonito quando
está contorcido em desdém.

— Por favor, diga-me que não foi um encontro duplo, Chay —


ele zomba. — Foder esse pequeno degenerado imundo é uma coisa,
mas realmente sair com ele... diga que não é assim.

Chay enfrenta o desprezo de Wade com um olhar frio.

— Ele é dez vezes o homem que você jamais será — diz ela.

Wade para de sorrir. — Ele será dez vezes mais homem quando
eu o rasgar em pedaços — ele ferve. Ele avança.

Eu grito: — Não! — Tento sair de trás de Miles, mas ele não


deixa, ele me bloqueia com o braço.

— Deixe-os em paz! — eu grito por cima do ombro de Miles.

— Venha comigo agora e eu deixarei — Rocco sibila, seus olhos


escuros e brilhantes em seu rosto branco.

— De forma alguma, porra — Miles vocifera, antes que eu


possa responder.

— Assim seja então — diz Rocco, sacudindo a lâmina de sua


faca.

Wade, Dax, Jasper e Rocco nos atacam ao mesmo tempo.

Wade e Dax correm para Ozzy, Jasper para mim e Rocco para
Miles.
É um borrão de movimento e confusão na luz fraca.

Metade do que eu percebo é através de grunhidos e gritos, ao


invés do que eu realmente posso ver.

Rocco corta sua faca freneticamente em Miles, a lâmina


piscando dentro e fora de vista enquanto reflete o luar. Miles se
contorce e se esquiva, a ponta o acertando pelo menos duas vezes,
cortando sua camisa e cortando seu braço.

Jasper vem para mim assim como ele atacou Dean no ringue
– com uma velocidade sem fôlego e silêncio absoluto. Tento escapar
de suas mãos, mas ele é muito mais rápido do que eu. Seus braços
me envolvem, mais duros do que o ferro.

Tentando me lembrar de tudo que já aprendi na aula de


combate, eu bato forte em seu pé direito, e chicoteio minha cabeça
para trás, acertando-o na boca com a parte de trás do meu crânio.
Eu ouço o grunhido de dor de Jasper. Sangue quente espirra em
meu braço.

Os braços de píton de Jasper mal relaxam por um momento.


Quando tento me afastar dele, ele prende o antebraço em volta da
minha garganta, me prendendo contra seu peito.

Girando minha cabeça, vejo Wade e Dax esmurrando Ozzy, um


turbilhão de socos onde Ozzy dá o melhor que consegue porque é
corpulento e forte. Seus socos apertados fogem de seu corpo,
batendo nos outros dois meninos com baques ecoantes. Ainda
assim, Wade e Dax são maiores e tão acostumados a lutar. Eles
dominariam Ozzy em minutos, se não tivessem esquecido Chay.

Ela pula nas costas de Dax, travando ambos os braços ao


redor de sua garganta e sufocando-o com força. Dax tropeça para
trás, tentando se livrar dela. Enquanto isso, Ozzy enfrenta Wade.
Eles rolam na grama pisoteada, batendo e estrangulando um ao
outro.

Ainda estou me contorcendo e batendo os cotovelos, tentando


acertar Jasper no corpo. Quanto mais eu luto, mais ele aperta o
braço na minha garganta. Estou tão tonta que mal consigo ficar de
pé.

Rocco dá outro golpe no rosto de Miles. Desta vez, Miles


consegue agarrar o pulso de Rocco e segurá-lo. Rocco dá um soco
em Miles com a mão livre, três vezes na lateral do rosto, mas Miles
mantém seu aperto mortal na faca de Rocco com as duas mãos,
torcendo o pulso de Rocco até que a faca voe pelo ar e caia na
grama ao lado da bota de Ozzy...

Agora Rocco e Miles estão brigando muito, e eu percebo que


subestimei Miles mais uma vez. Eu nunca o vi lutar antes. Neste
momento, Miles não é dançarino ou negociante. Ele é um
assassino de merda. Ele parece enlouquecido ao bater em Rocco
repetidamente, golpes violentos sem nenhuma cautela por trás
deles, nenhum indício de contenção.

Rocco é uma cobra, mas Miles é um leão. Não importa o


quanto Rocco arremeta, morda e arranhe, Miles responde com o
dobro da fúria.

Eu ganho ânimo com Miles, redobrando meus esforços para


me livrar de Jasper. Eu me viro e me debato até conseguir esticar
o braço e acertá-lo nas bolas com a lateral do meu punho. Isso é o
que finalmente o obriga a me soltar. Eu me liberto quando Wade
Dyer atinge Ozzy com um golpe violento que o joga de volta no
chão.
Dax está cambaleando quando Chay corta seu ar. Wade ataca
Chay e dá um soco na lateral do rosto dela, com força suficiente
para que ela perca o controle e caia no chão.

Tanto Miles quanto Ozzy rugem de indignação. Miles atira


Rocco para longe enquanto Ozzy tropeça e ataca Wade. Miles
acerta Dax duas vezes no rosto, o que é suficiente para acabar com
ele, ainda tonto e ofegante por causa da chave de braço de Chay.
Enquanto isso, Ozzy esmurra Wade com uma fúria até então
invisível. Wade dá uma cotovelada no rosto de Ozzy, com um estalo
de osso com osso que quebra seu nariz.

Miles fica tão furioso que salta sobre Wade, acertando-o


repetidamente.

O rosto de Wade é uma máscara de sangue, e ainda assim


Miles o acerta.

Miles parece louco, completamente fora de si.

— PARE! — eu grito, agarrando-o pelo ombro e puxando-o de


volta.

Miles tenta se libertar, seus punhos ensanguentados ainda


levantados, mas eu agarro sua camisa e puxo com tanta força que
ele cai para trás em cima de mim.

Wade parece demoníaco, seus olhos brilham como lascas em


seu rosto encharcado de sangue.

Uivando como um animal, ele ataca Ozzy, que tateia na grama


ao lado dele e agarra a faca de Rocco.

Wade pula em Ozzy e Ozzy balança a faca.


— NÃO! — eu grito.

A faca desaparece na lateral do pescoço de Wade.

Meu grito ainda ecoa enquanto o silêncio absoluto cai sobre o


grupo.

Rocco se levanta, os olhos fixos em Wade e o rosto totalmente


inexpressivo.

Jasper deu vários passos para trás. Ele fica sozinho, uma mão
esquelética pressionada contra seu lábio sangrando.

Dax está semiconsciente, inconsciente do que está


acontecendo.

Chay está de olhos arregalados, ambas as mãos tapando a


boca.

Ozzy congela no lugar, horrorizado com o que fez.

E Miles parece que está prestes a vomitar.

— Não se mova — Miles diz para Wade. — Não toque nisto...

Wade franze a testa, confuso, enquanto sua mão se atrapalha


contra o lado de seu pescoço, seus dedos roçando o cabo da faca.

Ele dá um passo cambaleante para frente. Ele abre a boca para


dizer algo. Tudo o que sai é um som estrangulado e gorgolejante e
uma grande quantidade de sangue.

Em seguida, ele cai de joelhos e tomba para a frente, de cara


na grama.

— Precisamos de ajuda — grita Ozzy.


Todos nós sabemos que é tarde demais.
MILES

Estou na Prison Tower56, na cela ao lado de Ozzy.

Rocco Prince está do meu outro lado. Dax e Jasper na cela ao


lado dele.

As meninas não estão sendo disciplinadas. Todos os relatos


concordaram que elas não eram participantes voluntárias da luta.

Para Rocco, Dax, Jasper e eu, a punição é sete dias sem


comida e apenas 500 mL de água.

O tormento é extremo. Eu poderia lidar com a fome, mas a


sede é uma tortura constante. Meus lábios estão rachados e
ressecados. Minha garganta e língua estão tão inchadas que mal
consigo falar. Minha pele está cheia de sal.

Eu estou sujo. Não temos água extra para tomar banho. Não
consigo dormir porque sonho com torneiras frescas e abertas e
acordo ofegante.

No entanto, nada disso se compara à angústia de saber que


meu melhor amigo está para ser executado.

56
Torre da Prisão.
Muitas regras na Kingmakers podem ser alteradas. Algumas
podem até ser quebradas. O único decreto irreversível é a Regra da
Compensação.

Olho por olho. Dente por dente. Morte por morte.

Ozzy já foi condenado.

Amanhã ele morre.

— Dê uma olhada naquele pôr do sol — sussurra Rocco de sua


cela. — É o seu último.

Ozzy não responde. Ele parou de falar há dois dias.

Sou eu quem responde.

— Vou te matar por isso, Rocco. Vou arrancar sua carne e


arrancar seus olhos...

Não posso terminar minha ameaça porque minha garganta


está seca demais para falar. Termina em uma voz áspera
impotente.

Os pais de Wade chegaram esta manhã. Eu vi o navio deles


entrar, pela janela minúscula da minha cela.

Eles não levaram seu corpo para casa. Eles vão ficar para
testemunhar a execução.

Eu faria qualquer coisa, qualquer coisa para salvar Ozzy.

Tentei pensar em uma maneira de sair disso. Dia e noite eu


espremia meu cérebro até delirar.

Não posso fazer nada.


Conforme nossas celas escurecem mais uma vez, eu sussurro:
— Sinto muito, Ozzy.

Eu não espero que ele responda.

Mas depois de uma longa pausa, ele diz: — Não é sua culpa,
Miles. Você parou... eu não.
CAT

Eles forçam toda a escola a assistir à execução.

Eu não quero ir.

Tento me esconder nos banheiros da Undercroft, mas Saul


Turner me encontra e diz: — É melhor você subir lá. O Chancellor
não está exatamente de bom humor.

Já estou chorando enquanto me sento no Grand Hall. Minhas


entranhas estão agitadas e acho que vou vomitar. Não quero ver
Ozzy morrer.

Rocco, Dax, Jasper e Miles são forçados a se sentar na


primeira fila, amarrados em suas cadeiras. Eles parecem
esfarrapados e imundos, magros por causa da semana com fome
e os olhos arregalados por falta de água. Rocco é o menos afetado,
embora seu rosto esteja agora magro a ponto de emaciar57. Miles
parece uma pessoa completamente diferente – nenhum indício de
sua arrogância anterior. Ele está abatido e quebrado.

Zoe está pálida como um fantasma. Acho que ela também não
comeu esta semana. Ela tropeça e quase cai quando nos sentamos.
Leo tem que ajudar a apoiá-la. Anna já está com o braço em volta

57
Termo médico para se referir a perda de massa muscular e de gordura, um extremo emagrecimento.
de Chay. Lágrimas silenciosas correm pelo rosto de Chay, como
sempre acontecem sempre que a vejo. Seus braços estão em carne
viva, onde ela cravou as unhas na pele.

Uma tensão rígida percorre Leo, Ares e até Hedeon, como se


eles quisessem montar um ataque – libertar Ozzy e Miles, ajudá-
los a escapar.

Todos nós sabemos como isso seria impossível. Mesmo se


pudéssemos dominar os professores e os funcionários, a equipe de
campo que atua como segurança e o próprio Chancellor, tudo seria
inútil. Cada família que manda um aluno para esta escola assina
um contrato de sangue. A sentença de Ozzy foi aprovada. Uma
centena de famílias da máfia garantiria que isso acontecesse –
contra ele e qualquer um que tentasse ajudá-lo.

O silêncio no Grand Hall é um peso opressor. Sem sussurros,


sem agitação, sem ranger de cadeiras. Uma vez que os alunos estão
sentados, você pode ouvir a queda de um cílio.

Até a lareira cavernosa está silenciosa, nenhum fogo


queimando na lareira.

Os estandartes das casas fundadoras estão pendurados sem


uma brisa para agitá-los. Eu olho para aqueles banners, odiando
cada um deles. Odiando o poder cruel e impiedoso que
representam. Odiando esse estilo de vida em que somos levados a
extremos e depois punidos quando ultrapassamos os limites.

Luther Hugo está sentado em uma cadeira de espaldar alto, de


frente para os alunos.

Ele usa um terno preto trespassado, o cabelo comprido e


escuro penteado para trás, as sobrancelhas pontudas como Vs
invertidos sobre aqueles olhos cintilantes e negros como um
besouro. Ele encara o acusado e depois o resto de nós, seus olhos
perfurando cada aluno. Não há alegria em sua expressão, nem
piedade.

Eu me pergunto quantas vezes ele fez isso.

O Sr. e a Sra. Dyer se sentam à esquerda do Chancellor. Os


pais de Wade são tão loiros e bonitos quanto o filho. Eu também
os odeio e não sinto pena de sua perda. Eles criaram um lixo de
filho. Mesmo na morte, ele não parou de machucar as pessoas. É
culpa dele estarmos todos sentados aqui hoje. Culpa dele, e acima
de tudo de Rocco. Mas apenas Ozzy pagará o preço final. Ele vai
morrer para satisfazer a sede de sangue dos Dyer.

À direita do Chancellor está uma mulher simples, de cabelos


escuros e vestido azul. Seu rosto está pálido e sóbrio. Eu me
pergunto se ela pode ser a esposa do Chancellor – nunca soube se
ele era casado. Ela é 20 anos mais jovem do que ele, pelo menos.
Isso é comum entre os mafiosos. Minha madrasta é vinte e dois
anos mais nova que meu pai.

Os professores ficam de sentinela em torno do perímetro do


Hall, junto com uma dúzia de outros funcionários de Kingmakers.
Percebo como fui estúpida ao pensar que esses homens
corpulentos com cara de pedra estavam aqui simplesmente para
tarefas servis, como construir a pista de obstáculos e cuidar do
terreno. Eu os vejo pelo que são agora – soldados.

Mesmo os professores em seus ternos escuros me lembram de


suas antigas profissões como mercenários, assassinos,
torturadores e criminosos. Não vejo lágrimas nos olhos do
professor Lyon, ou mesmo nos do professor Howell. Caí na
agradável ficção de que esses eram meus professores, esta era
minha escola. Eu esqueci por que estava com tanto medo de vir
aqui em primeiro lugar.
Pelo menos a Sra. Robin ficou longe. Eu não suportaria vê-la
parada, sem emoção, como o resto deles.

O Chancellor se posiciona em um movimento rápido e


abrangente. Com todos os feitos impressionantes que testemunhei
de Leo, Ares e Miles, é fácil esquecer a diferença entre um homem
de vinte anos e um adulto. O poder que só vem com uma longa
experiência – a diferença entre uma muda e um carvalho
endurecido.

O Chancellor é forte, rústico, linhas gravadas em seu rosto tão


profundas quanto golpes de machadinha. Seu rosto é o de um deus
antigo, sua voz troveja quando ele diz: — Um estudante foi morto
em nossa propriedade. Wade Dyer morreu nas mãos de Ozzy
Duncan. Nossas leis são simples – uma vida por outra vida. A
dívida foi contraída. Agora deve ser paga.

Sua voz ecoa pelo salão muito depois que ele para de falar.

Os rostos de meus colegas estudantes estão enojados,


abatidos, mas ninguém ousa chorar de maneira audível. Nem
mesmo eu.

O Chancellor acena com a cabeça em direção às portas duplas


no final do corredor. Professor Holland e professor Knox mudam
de suas posições militares para abri-las.

Ozzy é conduzido ao Hall pelo professor Penmark, tão


sobrecarregado com correntes que mal consegue andar. Seu
cabelo está escorrido e sujo, seu rosto tão vazio quanto o de Miles.
Suas mãos estão amarradas atrás das costas, e suas correntes
fazem um som horrível de tinido a cada passo. Sua caminhada
parece interminável – talvez ele esteja se movendo lentamente
porque sabe que esses momentos são os seus últimos.
Ele ainda está usando o uniforme escolar, sujo e esfarrapado
como está. De alguma forma, isso parece a coisa mais terrível para
mim – um símbolo de sua confiança na instituição que agora se
volta contra ele com tanta insensibilidade.

Não quero olhar para ele, mas parece covardia me afastar. Sua
boca está firme, seu olhar fixo no chão bem na frente dele. Ele não
olha para nenhum de nós. Acho que ele está tentando morrer com
dignidade, senão outra coisa.

O professor Penmark força Ozzy a se ajoelhar na nossa frente,


diretamente diante da lareira fria e vazia. O professor Lyons
entrega ao Chancellor uma longa faca de aço, com cabo entalhado
e fio de navalha.

Meu estômago embrulha.

É bárbaro. Insano. Eu não posso acreditar que eles vão


sangrá-lo como um porco.

Espero que eles deixem Ozzy dizer algumas palavras finais,


mas sua boca permanece firmemente fechada. Não sei se é essa a
escolha dele, ou se os mafiosos são obrigados a ficar em silêncio
até o túmulo.

As cabeças de Dax e Jasper estão inclinadas, olhando para os


joelhos. Miles encara Ozzy, lutando contra as gravatas, por mais
fraco e exausto que esteja. Não consigo ver o rosto de Rocco, mas
sei, sei que ele está sorrindo.

O Chancellor segura a faca de aço com o punho direito,


testando a lâmina com o polegar.

A mulher de vestido azul se levanta. Ela caminha para frente,


colocando-se no espaço entre o Chancellor e a figura ajoelhada de
Ozzy. Ela afunda no chão, pegando a cabeça de Ozzy em suas mãos
e sussurrando algo em seu ouvido. A cabeça de Ozzy se ergue. Ele
se vira para olhar para o rosto dela, assustado e horrorizado.

Ozzy não tinha visto a mulher, obcecado por andar em linha


reta. A expressão de angústia em seu rosto me diz quem ela é. Não
a esposa do Chancellor – esta deve ser a mãe de Ozzy.

— NÃO! NÃOOOOOO! — Ozzy grita, enquanto o professor


Penmark o agarra pelos ombros e o puxa de volta.

Agora senhora Duncan está ajoelhada em seu lugar, com as


costas retas e resoluta.

Calmamente, ela afasta o cabelo escuro do rosto e coloca as


mãos espalmadas sobre as coxas.

— NÃOOOOOO! — Ozzy berra, sua voz rasgando.

Antes que eu entenda completamente o que está acontecendo,


o Chancellor apreende um punhado de cabelo da Sra. Duncan e
inclina sua cabeça para trás. Ele coloca a lâmina de aço contra sua
garganta pálida e a passa em um golpe rápido. Um corte se abre
como uma boca sorridente. O sangue escorre pela frente do
vestido, escuro como vinho. A mãe de Ozzy não faz barulho. Ela
morre em silêncio, caindo no chão.

Vários alunos gritam e outros xingam de indignação.

Chay desmaia, caindo para frente tão rápido que Anna mal
tem tempo de segurá-la antes de sua cabeça bater na cadeira à
sua frente.
Meu estômago se contrai. Tenho que tapar a boca com as duas
mãos, virando a cabeça para o lado para evitar a visão daquela
figura imóvel no chão.

Vejo Dean Yenin sentado atrás de mim. Seu rosto está pálido
como a morte, seus olhos bem abertos. Ele parece eletrocutado.

Ozzy ainda está gritando. Ele não parou, embora sua voz tenha
se transformado em um vociferar áspero.

Professor Penmark levanta a mão mole da Sra. Duncan,


testando seu pulso para ver se havia batimento. Ele acena com a
cabeça para o Chancellor para confirmar o que todos nós podemos
ver com uma clareza horrível.

O Chancellor encara os Dyers. Com fria formalidade, ele


anuncia: — A dívida está paga.

Os Dyers ficam de pé. Sra. Dyer olha para o corpo caído da


Sra. Duncan, com a camada de sangue ainda se espalhando pelo
chão polido. Seu lábio superior se contrai e ela se vira, sem nem
mesmo olhar para Ozzy soluçando.

O Chancellor levanta a mão para nos dispensar.

Eu mal ouço o barulho dos alunos em pé. Estou ensurdecida


pelo meu próprio batimento cardíaco batendo em meus ouvidos.
Eu me sinto presa, cercada pela massa de corpos lentamente
saindo. Eu empurro meu caminho, correndo para fora do Grand
Hall, através do pequeno trecho de gramado, correndo para os
banheiros em The Keep. Eu tropeço no box mais próximo e caio de
joelhos, vomitando no banheiro. Eu ouço pelo menos dois outros
alunos fazendo o mesmo.

Eu quero me esconder aqui para sempre.


Take On Me (MTV Unplugged) - a-ha

Eu não posso voltar para fora. Não posso ir jantar esta noite
no refeitório, ou dormir na minha cama esta noite. Não posso voltar
para a aula amanhã, para estudar e praticar como de costume.

Não entendo como os humanos podem participar dessa


loucura e continuar normalmente, como se nada tivesse
acontecido.

No entanto, depois de vários minutos ajoelhada nos ladrilhos


frios, coloco-me de pé e caminho até a pia para jogar água no rosto.

E então eu saio do banheiro, ainda capaz de ficar de pé, ainda


capaz de me mover. Flutuando nesse estado estranho e
entorpecido.

Eu não quero mais ficar aqui. Eu quero sair deste lugar.

Mas para onde eu iria? Eu também odeio estar em casa.

Eu vagueio pelo corredor em transe.

Ao passar pela porta do banheiro masculino, ouço um som que


rompe a névoa.

Soluçando. Soluços desesperados e angustiados.

Um garoto está chorando, mais forte do que eu já ouvi antes.

Chorando tanto que parece que vai matá-lo.


Eu ouço e penso: Graças a Deus, alguém entende. Alguém
sentiu como isso era horrível, como era intolerável.

Sua dor é minha dor. Na verdade, sua dor é ainda pior.

Eu posso ouvir a profundidade de sua dor, superando a


minha. É um som privado e solitário, mas sinto uma compulsão
por confortá-lo.

Eu empurro a porta e deslizo para dentro.

Eu caminho pelo labirinto de pias e baias, despensas e


armários. O garoto está no canto mais distante do espaço, seus
soluços ecoando tornando difícil encontrá-lo.

Minha cabeça lateja e mal consigo ver direito.

Ainda assim, sou impelida, puxada impotentemente em


direção ao garoto.

Talvez eu não esteja aqui para confortá-lo. Talvez eu queira


consolo também.

Eu o encontro finalmente, uma figura alta e solitária, curvada


sobre a última pia, seu rosto em seus braços, seus ombros
tremendo enquanto ele chora como se seu coração estivesse se
partindo. Eu mal registro o corpo magro, o cabelo loiro-branco. Eu
ando atrás dele sem ser ouvida e coloco minha mão em seu ombro.

Ele se vira, a dor se transformando em fúria em um instante.

Eu cometi um erro terrível.

Este não é um garoto – este é Dean Yenin.


E ele parece pronto para arrancar minha jugular com os
dentes.

Seu rosto está molhado de lágrimas. Ele sabe que eu vejo isso.
Ele sabe que eu o ouvi chorar.

Ele me agarra pelo pescoço e me joga contra a parede, minha


cabeça batendo contra os ladrilhos.

Seu punho recua. Eu pego um vislumbre de nós dos dedos


machucados e inchados, antes que ele os impulsione diretamente
em direção ao meu rosto.

Eu grito, fechando os olhos com força.

Eu ouço o estilhaçar de azulejo quando seu punho atinge a


parede próxima ao meu ouvido.

Abro os olhos e imediatamente me arrependo, porque o rosto


de Dean está bem contra o meu, seus olhos são de fogo roxo e seu
nariz pressionado contra minha bochecha. Ele sibila: — Se você
contar a alguém... qualquer um...vou te matar, porra.

Dean solta meu pescoço tão abruptamente que eu caio de


joelhos no chão frio. Um pedaço de ladrilho quebrado cortou minha
bochecha – uma gota de sangue cai do meu rosto para o chão,
florescendo em vermelho contra o mármore branco.

No momento em que eu olho para cima, Dean desapareceu.

Fiquei ajoelhada ali por um longo tempo, tremendo


desamparadamente.
ZOE

Tentei ver Ozzy e Miles enquanto eles estavam trancados na


Prison Tower, mas ninguém era autorizado a entrar, nenhuma
mensagem era permitida.

O Chancellor interrogou a mim e Chay. Contamos a ele tudo o


que Rocco havia feito desde a primeira semana de aula. Não
importa. Tudo o que importava era a morte de Wade.

A culpa está me asfixiando, esmagando, sufocando.

Não posso nem me desculpar com Ozzy porque ele levou o


corpo de sua mãe de volta para a Tasmânia e não vai voltar para a
Kingmakers.

Escrevo cartas para ele, cartas para o pai também.

Ele não respondeu. Eu não espero que ele faça.

Ele já disse o que queria dizer, em um bilhete deixado na cama


de Miles, endereçado a nós dois:

Não é culpa de vocês. Fiquem seguros e fiquem bem.

Nem Miles nem eu acreditamos nisso.

A culpa é nossa.
Queríamos o que éramos proibidos de ter.

O clima na Kingmakers é triste e sombrio nas semanas


seguintes à morte da Sra. Duncan. Nenhum dos alunos havia
testemunhado uma execução antes. Todos nós conhecíamos as
regras, mas a realidade era distante. Agora está bem na nossa
cara. A diversão e os jogos chegaram ao fim.

As pessoas sussurram quando eu passo. Elas me encaram.

Eu me sinto amaldiçoada.

Quem tenta me ajudar é amaldiçoado também.

Estou com medo de estar perto de alguém, até mesmo Anna,


Chay e Cat. Principalmente Cat.

Agora que Rocco feriu Miles com tanto sucesso,


envergonhando-o e cortando seu melhor amigo, não posso deixar
de temer que ele ataque Cat em seguida. Ele quer me isolar de
todas as pessoas que amo. Ele não me permite qualquer ajuda ou
apoio.

Ele começou a me seguir novamente. Ele me observa aonde


quer que eu vá. Sempre olhando. Sempre sorrindo.

Chay está arrasada com o que aconteceu com Ozzy, e ainda


mais infeliz por ele ter ido embora. Ela implorou que ele ficasse na
escola ou pelo menos voltasse no outono, mas ele recusou.

Desde que ele foi embora, ela caiu em uma depressão


profunda, tropeçando para a aula sem maquiagem e com os olhos
vermelhos, o cabelo em um coque emaranhado, um estado em que
eu nunca a tinha visto nem uma vez antes.
Ela desenvolveu um ódio por Rocco que quase supera o meu.
Ela sempre desgostou dele desde seus dias no colégio. Agora ela
nutre uma raiva ardente que me assusta, porque temo que ela
possa agir impulsivamente, se tiver oportunidade.

Rocco é uma praga desencadeada por mim.

Só há uma maneira de pará-lo.

Duas semanas após a partida de Ozzy, visito Miles em seu


dormitório meio vazio. Assim que ele vê meu rosto, ele sabe por
que vim.

— Não — ele me implora. — Não diga isso.

— Eu tenho que dizer.

Jurei que não choraria, mas algo quente e úmido já está


escorrendo pelos dois lados do meu rosto.

— Não posso mais te ver — digo a ele.

Miles olha para mim. Ele ainda está magro por causa da
semana na torre. Duvido que ele tenha comido desde então.
Sombras marcam seus olhos e as cavidades de suas bochechas.
Seus olhos cinza parecem grandes e escuros. As veias se destacam
em seus braços e nas costas das mãos.

No entanto, ele é lindo. Lindo pra caralho.

Ele é lindo quando está triste e quando está com medo.


Quando ele está feliz ou com raiva. Ele é um diamante com cem
facetas. Cada uma é pura e perfeita para mim.

Mas ele não pertence a mim e nunca pertenceu.


Eu nunca deveria ter um tesouro assim.

— Vou me casar com Rocco no final do ano letivo — eu digo.


— Não adianta mais adiar. Ele só tornará a vida miserável para o
resto de vocês.

— Eu não posso deixar você fazer isso — Miles diz


calmamente.

— Não é sua escolha — digo a ele. — Nunca foi uma escolha,


para nenhum de nós.

Miles me olha do jeito que sempre faz, plena e completamente,


absorvendo cada parte de mim.

— Eu te fiz uma promessa — ele diz.

— Era uma promessa impossível. Eu sei que você teria


mantido se pudesse.

Ele olha para mim. Então ele se levanta da cama em um


movimento rápido e fecha o espaço entre nós. Acho que ele vai me
beijar e não sei como vou encontrar forças para afastá-lo.

Em vez disso, ele pega minha mão e a leva aos lábios.

Ele olha nos meus olhos, sua boca pressionada em meus


dedos, seu toque me dizendo mais claramente do que qualquer
palavra poderia fazer que ele me ama, que ele sempre me amará.

E eu o amo. Eu o amo e Cat e Chay e Anna, Ozzy e Leo e


Hedeon também.

É por isso que não posso mais ser egoísta.

Deixo o quarto de Miles planejando nunca mais voltar.


MILES

Tive muito tempo para pensar na Prison Tower.

Ainda mais nas semanas que se seguiram, quando Ozzy foi


embora e eu estava sozinho no dormitório.

O que percebi é o seguinte:

Se não fosse por Zoe, teria sido minha mãe quem ia ser
executada.

Eu estava furioso naquela noite.

Eu queria matar Wade, Jasper, Dax e, acima de tudo, Rocco.

Eles nos empurraram e nos empurraram, cruzando cada linha


do caralho. Nessa luta – com Zoe em perigo e Chay e Ozzy feridos
– perdi o controle. Eu poderia ter matado qualquer um deles.

Foi Zoe quem gritou para eu parar.

Foi ela quem me puxou de volta. A única pessoa que poderia


ter me trazido à razão naquele momento.

Ozzy deu o golpe mortal.

Mas poderia facilmente ter sido eu.


Então teria sido minha mãe quem trocaria a vida, quem
receberia o castigo, quem pagaria a dívida. Eu sei que ela teria feito
isso, sem hesitar. Assim como a mãe de Ozzy.

Isso teria me matado. Isso teria envenenado minha alma.

Apesar de toda a culpa e horror que sinto pelo que aconteceu


à Sra. Duncan, ainda uma coisa é certa: eu preciso de Zoe. Eu
preciso dela, porra. Não sou bom sem ela.

Zoe traz à tona o que há de melhor em mim. Ela me torna mais


inteligente, mais forte, mais determinado. E, acima de tudo, ela
segura essa parte sombria e imprudente de mim.

Ela é meu leme, meu guia.

Não posso voar sem ela, ou vou bater e queimar, eu sei disso.

E eu a amo pra caralho. Essa é a parte mais importante de


todas. Gosto dela, amo ela, admiro ela, adoro ela. Não a estou
abandonando ao tormento de Rocco. Ela não merece isso. Eu não
me importo quanto vai custar para salvá-la, ou quanto eu tenho
que arriscar.

Não foi um erro opor-se a Rocco. Meu erro foi deixar isso durar
muito.

Eu preciso acabar com isso. Agora.

Então, quando Zoe sai do meu quarto, espero menos de um


minuto antes de começar a trabalhar.

Sem mais planejamento. É hora de agir.

A primeira coisa que faço é ligar para o Ozzy.


Não espero que ele atenda na primeira tentativa, mas para
minha surpresa, ele responde quase imediatamente.

— Se for outro pedido de desculpas, não quero ouvir — diz ele.


— Eu estou me afogando em uma merda de culpa, eu não posso
lidar com você chafurdando nisso também.

— Como você está? — pergunto-lhe. — Como está seu pai?

— Ele está uma bagunça. Quer matar o Chancellor. Meus tios


tiveram que amarrá-lo. Literalmente.

— Ele não sabia...

— Não. Minha mãe recebeu a carta da escola. Escondeu dele.


Ele nem sabia que ela havia deixado a Tasmânia até... bem. Não
precisamos falar sobre isso. Basta dizer que estamos em um estado
de porra. Mas sobrevivendo.

— Eu sinto muito, muito, Ozzy.

Ele respira fundo com uma captura no meio.

— Eu sei, cara. Eu sei que você sente. Sinto muito, você sente
muito. Nós nos metemos em uma bagunça juntos, mas fui eu
quem agarrou a faca. Então, apenas guarde isso, porra. Não
consigo pensar sobre o que deveria e o que teria ou vou
enlouquecer. Ela não queria isso.

Sua voz está totalmente embargada agora.

Eu nunca conheci a Sra. Duncan. Ozzy foi me visitar em


Chicago, e planejamos que eu iria à Tasmânia neste verão ou no
próximo. Mas isso não vai acontecer agora.
Eu nunca nem falei com ela. Mesmo assim, sinto que a
conhecia, porque Ozzy falava sobre seus pais o tempo todo.

Eu sabia que o Sr. Duncan dirigia uma operação de mineração


ilegal, além de traficar metais e pedras no mercado negro. Ele era
de uma linhagem criminosa desde os dias em que a Tasmânia era
a Terra de Van Diemen58, e antes disso, aos criminosos
profissionais de Londres.

A Sra. Duncan era filha do governador. Ela cantou no coro da


igreja. Ela não deveria andar pelo mesmo corredor que o Sr.
Duncan, quando eram adolescentes na mesma escola secundária.

Eles se apaixonaram de qualquer maneira.

Ozzy foi o resultado.

Eles se casaram jovens e ficaram juntos, felizmente, segundo


os relatos de Ozzy.

Ele disse que sua mãe era engraçada e brincalhona. Que ela
arrastou Ozzy e seu pai para a igreja, mas também adorava jogos
de dados e tiro. Ela era péssima com tecnologia, mas comprou para
Ozzy seu primeiro equipamento para jogos.

Eu sei todas essas coisas, então eu sei que esta foi uma boa
mulher que morreu. Eu sei o que Ozzy e seu pai perderam.

Observei como ela pegou o rosto de Ozzy nas mãos com


ternura, sem hesitar um segundo enquanto oferecia sua vida no
lugar da dele.

— O que ela disse para você? — eu pergunto.

58
Foi a primeira designação que os europeus deram à ilha da Tasmânia, hoje parte da Austrália.
Não tenho o direito de perguntar, mas quero saber mesmo
assim.

— Ela disse: ‘Eu te amo, rapaz. Sem mais violência disso.


Continue feliz e forte.’ — Ozzy faz uma pausa para engolir. — Ela
não queria que eu tentasse me vingar. Mas não sei se consigo fazer
isso. Em cinco anos, dez... quando não parecer relacionado,
quando ninguém se lembrar além de mim... eu quero matá-los.
Rocco, Jasper, Dax.

— Se você quiser, eu vou te ajudar — eu prometo a ele. — Tudo


o que você sente é justo... eu estou dentro.

— Eu esperava que você dissesse isso — diz Ozzy, baixinho.

— Eu gostaria de uma revanche agora — eu digo. — Para


Rocco. Embora eu admita, isso é interesse próprio...

— Você quer tirar Zoe dele. Você quer seguir com o plano.

Ozzy já sabe. Ele estava esperando por isso.

— Sim. Eu quero fazer isso imediatamente. O servidor está


pronto?

— Eu terminei ontem.

— Você não esteve trabalhando nisso...

— Eu sabia que você ligaria. Mais cedo ou mais tarde. E eu


precisava de distração.

— Você está bem comigo indo em frente?

— Claro que estou. Se você não fizer isso, ele consegue o que
quer.
Agora é a minha vez de sentir minha garganta inchada demais
para falar. Eu mal consigo dizer: — Obrigado, cara. Sério. Eu não
posso te dizer...

— Nah, você não pode, então nem tente. É um lindo trabalho.


Melhor ainda de verdade.

Encerro a ligação e procuro minha lista de contatos difíceis de


encontrar. Homens cujos números de celular pessoais são
conhecidos apenas por cinco ou seis pessoas no mundo – às vezes
nem mesmo suas esposas.

Quando você liga para um número como esse, sempre obtém


uma resposta.

Eu chamo dois desses homens. E eu marco duas reuniões,


para o mesmo horário amanhã à noite.

Ambas as partes não querem comparecer. Tenho que usar


todos os meus poderes de persuasão. Tenho que fazer promessas
agressivas, com consequências catastróficas se não cumprirem.

Finalmente, eles concordam.

Agora, tenho mais dois problemas para resolver e acho que


uma única pessoa talvez possa me ajudar.

Tenho que encontrar meu novo melhor amigo, Ares Cirillo.


Sem surpresa, eu o localizo no segundo nível da Library Tower.
Ainda mais sorte, Zoe não está com ele. Ele está sozinho em uma
grande mesa que parece pequena com seu corpo esguio envolto em
torno dela. Ele não cortou o cabelo o ano todo – ele fica
desgrenhado em volta do rosto enquanto ele se debruça sobre o
papel. Escrever tudo à mão é uma porra de pesadelo na
Kingmakers, especialmente quando você tem uma mão do
tamanho de uma luva de forno como Ares. Eu mal consigo ver a
borracha do lápis aparecendo na parte superior.

— Eu sabia que encontraria você aqui — digo, deslizando para


o assento ao lado dele.

Ares ergue os olhos, assustado e cauteloso.

Ares sempre pareceu um pouco nervoso perto de mim. Acho


que ele nunca confiou inteiramente em mim. O que mostra que ele
realmente é inteligente.

— Olá, Miles — ele diz, em sua voz profunda. — Eu realmente


sinto muito pelo seu amigo. Eu gostava do Ozzy.

— Eu também. Ele não é quem está morto, ele apenas foi para
casa, então você pode usar o tempo presente.

— Desculpe — Ares diz novamente, estremecendo. — Eu só


quis dizer... bem, você sabe.

Agora ele está ainda mais desequilibrado, o que acho bom para
mim. Eu quero que ele se sinta culpado.

— Ozzy e eu estávamos trabalhando em um projeto. Algo que


queremos vender aos Princes e Romeros. Algo para ajudar Zoe.
Você quer isso, não é Ares? Você quer ajudar Zoe? Vocês são bons
amigos, não são?
Ares se mexe em sua cadeira, olhando para mim de uma forma
culpada.

— Somos apenas amigos — ele fala. — Espero que esteja claro.


Nós nunca...

— Claro que não — eu digo, batendo em seu ombro um pouco


forte. — Vocês são apenas amigos.

— Certo.

— Definitivamente. De qualquer forma, você concorda que Zoe


é uma porra de tesouro, que Rocco Prince não merece. Portanto,
tenho certeza de que você fará tudo o que puder para ajudá-la.

Ares estreita aqueles olhos azuis para mim. Ele é uma espécie
de escoteiro, então eu não acho que ele vai gostar da próxima
parte.

— O que exatamente você quer que eu faça? — ele indaga.

— Nada muito oneroso. Primeiro, preciso que você me consiga


as informações de contato dos Malina.

A cabeça de Ares dá um puxão convulsivo. Essa é a reação que


eu esperava ao mencionar a máfia ucraniana.

— Por que você acha que eu teria...

— Eu sei que sua família tem conexões com a Bratva em St.


Petersburg.

— O que você está...

— Ares. Você sabe que eu sei tudo. Então corte essa merda.
Seu pai está inativo, mas não está desconectado. Eu sei que ele
pode me conseguir esse número, eu tenho um telefone bem aqui
para que você possa ligar para ele. Você nem precisa esperar pelo
domingo.

Ares me encara, seus lábios firmemente pressionados.

Depois de um momento, ele diz: — Eu poderia perguntar a ele.


Mas acho que você está cometendo um erro.

— Por quê?

— Você não quer fazer negócios com os Malina.

— Eu sei o que eles são.

— Você não sabe. O que quer que você pense, eles são dez
vezes piores. Eles não têm honra, absolutamente nenhuma. Os
esquemas que eles usarão estão vários níveis de esgoto abaixo do
que você poderia imaginar.

— Eles apenas formarão uma parte limitada do plano. Eu


considerei os riscos. Obrigado por sua preocupação — digo a Ares,
com firmeza.

Tenho que usar os Malina, não tenho escolha. Portanto, não


adianta discutir sobre isso. Eles são os únicos perfeitamente
situados para tudo que eu preciso.

— Qual é a segunda coisa? — Ares pergunta. Seus braços


estão cruzados sobre o peito largo agora, e posso dizer que ele está
ainda menos animado com o segundo pedido.

— Este é ainda mais fácil — eu digo. — Eu só preciso que você


dirija um barco.
— Que barco? — Ares diz, franzindo a testa.

— Um para sair desta ilha.

Agora sua expressão ultrapassou a carranca – chegou à


negação absoluta.

— Não — diz Ares. — Eu não posso fazer isso.

— Por que não? Eu sei que você sabe.

— Eu não vou sair. Podemos ser expulsos.

— Com o que você se importa? Você nem mesmo está entrando


em uma empresa criminosa.

— Eu não me importo. Eu quero me formar. É importante para


minha família.

— Você não vai ser expulso. Porque não seremos pegos. Iremos
sair e voltar numa noite, ninguém vai sentir nossa falta.

— Você não pode garantir isso. E, além disso, que barco você
vai usar... — Ele para, percebendo. — Não. — Ele balança a cabeça
ainda mais forte. — Absolutamente não. Como você sabe disso?

— Como VOCÊ sabe? — eu exijo, ainda mais curioso. Ares não


parece o tipo de pessoa que descobriria sobre a lancha secreta
ultrarrápida e extravagante do Chancellor.

— Um dos professores me contou — murmura Ares.

— Bem, o Chancellor não vai gostar disso. Mas ele vai gostar
menos ainda de um grande arranhão na lateral do barco, então é
melhor você me levar. Já sei onde ele guarda as chaves. Eu só
preciso do meu motorista...
Eu sei que Ares não quer fazer isso. De jeito nenhum.

Na verdade, ele está apavorado. Porque Ares é um bom menino


que segue as regras. Como Zoe costumava ser.

Infelizmente para Ares, sou uma influência muito corruptora.

Eu descanso minha mão em seu ombro novamente, apertando


com força. Eu me inclino para frente para olhar Ares nos olhos.

— Tenho uma agenda muito apertada e não tenho tempo para


negociar. Portanto, aqui está uma oportunidade sem precedentes
para generosidade. Um nível de generosidade que posso nunca
igualar novamente em minha vida. Diga-me o que é, Ares. Diga seu
preço.

Ares me olha fixamente, fazendo alguns cálculos silenciosos


que só posso começar a adivinhar.

Eu espero e espero, sabendo melhor do que pisar em uma


resposta florescente.

Finalmente ele responde.

— Um favor — diz ele.

— Que favor?

— Esse é o passe. Um favor de minha escolha, a ser


determinado no momento de minha escolha. No futuro. Mas a
promessa vem agora.

— Existe algum limite para este favor? Você não vai pedir pelo
meu primogênito com Zoe?

Ares permite um pequeno sorriso.


— Não — ele diz. — Nada que pudesse perturbar Zoe.

— Então eu concordo. Qualquer merda de favor a qualquer


momento, eu prometo a você.

— Tudo bem então. — Ele estende a mão para apertar, para


selar o negócio agora e para sempre. — Eu vou fazer isso.

É tão difícil não liberar o suspiro de alívio preso em meu peito.

— Ótimo — eu digo. — Perfeito. Vamos ligar para o seu pai.

Ares e eu teremos que roubar o barco do Chancellor.

Ele o mantém trancado em um ancoradouro privado nas


cavernas logo abaixo da Kingmakers. Você não pode acessá-las do
lado terrestre – você tem que ir para baixo da própria escola.

A Kingmakers se estende por vários níveis subterrâneos.

Todo mundo sabe sobre a Undercroft e a piscina abaixo do


Arsenal. Eles sabem sobre os arquivos abaixo da biblioteca,
embora apenas a Sra. Robin e seus auxiliares tenham acesso
permitido.

Mas isso é menos da metade do espaço sob a escola.

Eu descobri os túneis no meu primeiro ano. Levei meses para


obter acesso a uma das chaves mestras e mais alguns meses para
fazer uma cópia. Além do Chancellor, apenas dois professores e
um da equipe de jardinagem têm acesso. Agora eu também.

Eu entro no escritório do Chancellor para pegar as chaves de


seu barco. Arrombar a fechadura da porta é fácil – difícil é entrar
em seu espaço pessoal. No segundo em que ponho os pés na
soleira, sou atingido pelo cheiro de fumaça de charuto e loção pós-
barba cara, o cheiro de metal e couro, e vou admitir, quero me virar
e correr.

Apesar de todas as violações de regras que faço na escola,


Luther Hugo não é alguém com quem eu quero foder. Sempre o
evitei, intencionalmente. A morte de Wade Dyer foi a primeira
ocasião que nos obrigou a falar cara a cara.

Naquele dia em particular, eu já havia sido arrastado escada


acima da torre da prisão e jogado em uma cela, então nunca
realmente visitei este escritório antes.

Estou no último andar de The Keep. Madeira rica e escura com


painéis embutidos cobrem as paredes e o teto. Uma série de janelas
na parede oposta dá para os jardins do castelo. Estou
desconcertado ao ver o quão ampla é a visão, o quanto o
Chancellor pode observar daqui de cima. As janelas opostas dão
para o mar diretamente sobre as falésias.

As ondas se chocam contra as rochas. Você pensaria que não


haveria saída desse lado – afinal, o navio tem que dar a volta para
o lado sotavento59 da ilha para entrar no porto protegido. Mas o
navio do Chancellor não é um veleiro – é um iate esportivo, em
forma de bala, que pode atravessar quase qualquer ondulação.

59
É a borda do barco oposta àquela de onde o ventro sopra.
Tenho certeza de que ele guarda as chaves aqui porque na
única vez em que o observei saindo da ilha tarde da noite, ele fez
uma rápida parada em seu escritório primeiro.

Eu deveria estar na divisão Spy, como Cat. Eu observei o


Chancellor de longe muitas vezes. Ele é uma figura curiosa para
mim. Fabulosamente rico, como todos os Hugos são. Mesmo
assim, ele opta por ficar na escola a maior parte do tempo, nunca
se casando, nunca tendo filhos, administrando seus negócios à
distância.

Talvez ele goste do poder de controlar a escola, moldando as


mentes da próxima geração da máfia. Ainda assim, é uma vocação
incomum para um homem que já foi conhecido como o
Widowmaker60.

Ele pode temer a retribuição de todas aquelas viúvas. A ilha é


um bom lugar para uma semi-aposentadoria – tranquila e difícil
de atacar.

Ele ainda tem todos os seus luxos ao seu redor. O escritório


está abarrotado de livros, jornais, charutos, conhaque, uma manta
de pele de urso e uma caixa de trufas fechadas. Os conhecidos do
Chancellor também lhe fazem companhia na forma de fotografias
emolduradas em todas as paredes.

Eu os examino de relance, curioso, mas sabendo que não


tenho tempo para bisbilhotar como gostaria. Eu reconheço
políticos e celebridades, assim como mafiosos famosos. No mundo
civil, os Hugos são conhecidos por sua filantropia e patrocínio das
artes. A maioria dessas fotos foi tirada em eventos de caridade.

60
Viúvo.
Outros locais que reconheço da ilha. A fotografia pendurada à
esquerda da mesa do Chancellor mostra o próprio Lutero parado
ao lado de quatro alunos – três meninos e uma menina. Luther
aperta a mão da garota, que parece corada e satisfeita, enquanto
os três meninos, todos significativamente mais altos do que ela,
variam em expressão de desapontado a amargo.

Suponho que sejam os capitães de alguma rodada do Quartum


Bellum. Nesse caso, a garota provavelmente era a capitã do time
vencedor. Ela é bonita, tem cabelos escuros e olhos azuis. Muito
jovem para ser uma veterana. Provavelmente poderia encontrar o
nome dela na parede de vencedores no Arsenal.

O próprio Lutero parece muito mais jovem – seu cabelo é


totalmente preto, espesso e de aparência selvagem. Seu rosto
ainda está enrugado, mas apenas ao redor dos olhos e da testa.
Suas bochechas são lisas e sem barba. Normalmente, isso faz um
homem parecer tosado ou enfraquecido, mas, no caso dele, mostra
que ele já foi bonito, de uma forma agressiva e perversa.

Eu me pergunto se a garota ficou famosa depois, e é por isso


que ele guardou essa foto. Todos os outros em suas paredes são
alguém importante.

Estou mais interessado no molho de chaves pendurado em um


pequeno gancho ao lado da fotografia. Eu o agarro, parando seu
tilintar com meus dedos.

Eu escorrego de volta para fora do escritório, certificando-me


de trancar novamente a porta atrás de mim. Até verifico se não
deixei pegadas no tapete felpudo.

De lá, é uma corrida fácil descer a escada para encontrar Ares


no andar térreo. Ele está segurando meu laptop sob um braço,
movendo-se inquieto de um pé para o outro.
— Por que demorou tanto? — ele sibila.

— Isso foi menos de cinco minutos. — Eu estendo minha mão


para o laptop. Quero mantê-lo comigo, pois é uma parte crucial do
plano.

— Vamos embora — diz Ares. — Quanto mais cedo partirmos...

— Eu sei, eu sei. Quanto antes você puder voltar para sua


cama aconchegante e fingir que nada disso aconteceu. Venha,
siga-me.

— Eu pensei que nós íamos sair? — Ares diz, olhando confuso


para as portas da frente de The Keep, enquanto eu o levo mais para
dentro em vez disso.

— Não sair... descer — eu respondo.

Eu o levo para uma porta recuada ao lado de uma velha


tapeçaria mofada. A porta é estreita e pode muito bem ser um
armário. Se você não soubesse o que estava procurando.

A fechadura gira com um guincho. Ares estremece, mas eu


ignoro. Não há ninguém por perto para ouvir.

Esta escada é mais escura e úmida do que as acima do solo, a


pedra lisa e escorregadia em alguns pontos. Eu uso meu telefone
para iluminar o caminho. O telhado está tão baixo em alguns
lugares que Ares tem que se curvar para evitar bater com a cabeça.
Tento avisá-lo sempre que me enfio sob algum novo afloramento
de rocha bruta.

O caminho serpenteia e espira. Às vezes atravessamos um


túnel quase plano, e outras vezes descemos escadas tão íngremes
que meus quadríceps queimam.
— Quão longe isso vai? — Ares diz, parecendo um pouco
nauseado. Eu entendo: imaginar as centenas de toneladas de
rocha e castelo em cima de nós não é particularmente agradável.
Especialmente quando você se lembra de que o calcário é poroso e
pode se degradar com a infiltração da água. Ainda assim, gosto de
pensar que qualquer castelo que durou cento e sete anos
provavelmente não cairá na minha cabeça esta noite.

— Quase lá — digo a ele, com um leve exagero.

Dez minutos depois, chegamos de fato à caverna marítima


particular do Chancellor. O barco balança na água, seu nariz
pontiagudo subindo e descendo como um cavalo balançando a
cabeça, ansioso para ser livre para correr. Tem pelo menos 18
metros de comprimento, é elegante e brilhante, pintado de preto
grafite com janelas escurecidas.

— Você poderia estar a três metros de distância dessa coisa e


não ver em uma noite como esta — eu digo para Ares.

Ares o encara, balançando a cabeça lentamente.

— Nunca pilotei nada assim — diz ele.

— Tenho certeza de que você vai pegar o jeito.

Eu jogo as chaves para ele. Ares as pega facilmente, com a mão


esquerda.

— Viu. Esses são os tipos de reflexos com os quais estou


contando para nos levar através das correntes.

Respirando fundo, Ares começa a zarpar. Posso dizer que ele


sabe o que está fazendo, apenas pela maneira como manuseia as
cordas. Já pulei no convés, impaciente para seguir nosso caminho.
Ares se junta a mim um momento depois, jogando um último
olhar nervoso para trás em direção à porta.

— Relaxe — eu digo a ele. — Você nunca notou o Chancellor


saindo em qualquer outra noite. Por que alguém deveria nos ver?

— Eu não estava prestando atenção — Ares resmunga. — Eu


estava dormindo na minha cama, como deveria estar agora.

— Vamos. — Eu sorrio. — Faça isso por Zoe. E pela fantástica


vantagem que você terá sobre mim. Mal posso esperar para ver o
que você me fará fazer. Streak the Super Bowl61? Assassinar o
presidente?

Ares me ignora, se recusando a nos divertir enquanto estamos


arriscando nossos pescoços.

Ele liga o motor e cuidadosamente nos conduz para fora.

Achei que essa seria a parte complicada, navegar pela estreita


passagem de pedra.

Mas uma vez que estamos em águas abertas, é muito pior. As


ondas nos batem de todos os lados, sem ritmo ou razão, como se
quisessem nos erguer e nos esmagar contra as pedras como se o
barco fosse uma pinhata e o oceano uma gangue de festeiros
barulhentos.

Ares tem que acelerar o motor com força, então puxar para
trás, nos guiando para dentro e para fora, cronometrando as
lacunas para nos atirar para frente novamente, sempre

61
Expressão usada para se referir a fãs que invadem correndo o campo de jogo no Super Bowl, com ou sem
roupas.
manobrando o barco para que não sejamos atingidos de lado e
viremos.

Não ajuda que seja uma noite negra e sem lua. Várias vezes as
rochas parecem se erguer da água como monstros marinhos. Ares
escapa delas por poucos metros.

Meu coração está na minha garganta. Tudo o que posso fazer


é gritar avisos, enquanto Ares se esforça contra o volante, todos os
músculos se destacando em seus antebraços.

Por fim, superamos o pior e estamos em mar aberto, seguindo


um curso rápido e regular em direção à costa invisível. Ares está
pálido e em silêncio, não querendo comemorar comigo.

— Isso foi uma loucura! — eu grito, batendo em suas costas.

— Temos que fazer a mesma coisa no caminho de volta — Ares


me lembra — e com as ondas nos empurrando para frente em vez
de nos segurar, o que pode ser ainda pior.

— Não se preocupe — digo a ele. — Se os Malina nos matar,


não teremos que voltar de jeito nenhum.

Ares se vira para olhar para mim. — Não brinque. Nem pense
em tentar ser engraçado com essas pessoas. A única coisa que os
faria rir é cortar sua garganta.

— Ei — digo a Ares, sério agora. — Você não precisa se


preocupar com isso. Eu não vou decepcionar Zoe.

Ares olha para mim, lendo a verdade em meu rosto.

— Eu sei — ele diz. — É por isso que concordei.


O barco do Chancellor é infinitamente mais rápido que o navio,
mas ainda vamos levar uma ou duas horas para chegar à costa.
Eu não passo muito tempo olhando para as ondas negras sem fim
antes que Ares pareça relativamente intrigante em comparação.

— Eu sei que estava te perturbando sobre Zoe, mas como é


que você nunca saiu com ela ou Chay, ou qualquer uma das
muitas, muitas das garotas que gostam do tipo forte e silencioso?

Ares encolhe os ombros. — Não estou interessado em


namorar.

— Garotas, especificamente, ou...

— Eu gosto de garotas — ele diz, sem rodeios.

— Só não as da nossa escola.

Ele tira os olhos da água por um momento e me olha


carrancudo. — Por que você está tão curioso?

— É minha natureza. Eu gosto de entender as pessoas. Eu


tenho dificuldade com você – você não faz sentido para mim.

— Desculpe desapontar.

— Você gosta de cultivar esse ar de místico?

Percebendo que não vou desistir, Ares solta um suspiro


irritado e se vira para mim.

— Não adianta, não é? Qualquer garota como Chay que acha


que gostaria de namorar comigo por um minuto... ela mudaria de
ideia rápido o suficiente se ela fosse para Syros. Posso estar na
Kingmakers, mas não sou como o resto de vocês.
— Por que veio aqui, então? — eu questiono. — Por que não ir
para uma escola normal?

— Eu gostaria de ter feito isso, às vezes — Ares diz, e agora


seu rosto está sombrio, cheio de um pouco de raiva que ele mal
consegue conter. — Você faz o que quiser, Miles. Você não entende
o que é dever algo à sua família. Eles exigem isso de você, e você
tenta dar, mesmo quando é impossível.

Suponho que os Cirillos querem que ele continue seu nome e


legado na escola, mesmo que eles quase não sejam mafiosos na
vida real. Afinal, eles eram uma família fundadora. Uma de apenas
sete ainda sobrevivendo. Eles devem olhar para a riqueza e o
status dos Hugos e pensar que é onde eles poderiam estar... talvez
onde deveriam estar...

— Eu entendo as demandas da família — digo a ele. — Eu sou


um Heir, lembra? Eu deveria assumir o lugar do meu pai em
Chicago. Mas eu não vou fazer isso. Deixo meu irmão ocupar seu
lugar, ou minha irmã. Estou seguindo meu próprio caminho. Você
pode fazer isso, você sabe. Você não tem que fazer o que eles
pedem.

— Talvez não no seu caso — responde Ares. — Minha família


não é sua.

Tento atraí-lo novamente enquanto o barco acelera, mas


aparentemente Ares decidiu que já basta de conversa.
Paramos na marina em Dubrovnik. Ares joga as cordas no
chão, planejando desembarcar comigo, mas eu digo a ele: — Fique
aqui com o barco.

— Você não quer que eu entre com você? — ele pergunta,


olhando na direção do hotel Oasis.

— Nah — eu balanço minha cabeça. — Eles vão aceitar o


negócio ou não.

— Você deveria ter alguém lá apoiando você — Ares diz,


segurando a corda com força em suas mãos.

— Eu agradeço, cara, mas estou em desvantagem de qualquer


maneira. Fique aqui, e se eu não voltar em três horas, volte para a
Kingmakers por conta própria. Você não pode ser expulso por
minha causa.

Ares franze a testa, mas permanece a bordo.

Ando sozinho pelas ruas mal iluminadas de Old Town, com o


laptop debaixo do braço. Lâmpadas douradas queimam ao longo
de todo o paredão. Os edifícios de telhados vermelhos brilham
como se cada um fosse uma fornalha em chamas.

Reservei a suíte presidencial no Oasis, que abrange todo o


último andar e inclui seu próprio concierge particular. Só isso me
custou $20.000 do meu saldo, mas é uma gota no oceano em
comparação com o que eu gastei. Limpei todo o fundo e não me
arrependo de um centavo, nem por um minuto. Eu só espero que
funcione.

O concierge me cumprimenta, parecendo surpreso quando


dou meu nome a ele. É o uniforme escolar – tenho certeza de que
ele esperava alguém mais velho.
— Por aqui, senhor — diz ele. — Eu tenho seu terno pronto.

Ele me leva até o último andar, para a suíte de quatro quartos.


Eu examino a sala de reuniões privada, o bar completo e as portas
de vidro totalmente abertas que levam ao deck da cobertura. A
brisa do mar sopra. Eu provavelmente poderia ver Ares daqui, se
o barco não tivesse pintura furtiva.

Minhas roupas estão de fato colocadas na cama, como o


concierge prometeu.

Pedi um Brioni azul meia-noite, junto com mocassins de pele


de bezerro, uma camisa social branca e botões de punho opala. O
concierge também forneceu uma série de produtos de higiene
pessoal na bancada de mármore do suntuoso banheiro.

Eu enxáguo o sal marinho da minha pele, faço a barba, me


visto e, em seguida, penteio meu cabelo, enfiando um lenço de seda
no bolso do meu blazer.

O homem que olha para mim no espelho parece dez anos mais
velho, infinitamente confiante, antecipando a noite que está por
vir. A pequena parte de mim ainda se contorcendo por dentro tenta
expressar uma objeção, e eu a esmago implacavelmente. Não há
espaço para medo ou nervosismo. De uma coisa eu sei com certeza:
nenhum homem neste planeta jamais realizou uma maldita coisa
sem acreditar que poderia.

Eu verifico meu relógio. 12:50. Faltam dez minutos.

Sento-me à opulenta mesa da sala de reuniões, o laptop


fechado e silencioso, o único item na mesa. Sento-me na cabeceira,
o que pode ofender alguns dos meus visitantes, mas daria o tom
apropriado para a noite.
Três minutos depois, o concierge vibra: — Seu primeiro
convidado está aqui.

— Mande-o subir — eu digo.

A porta da suíte é destrancada para que Álvaro Romero possa


entrar imediatamente. Ele entra com os ombros rígidos, a
mandíbula já tensa, os olhos brilhando de fúria. Ele escolhe o
assento do outro lado da mesa, bem à minha frente, e reprimo um
sorriso porque é exatamente onde o quero. Ele se recusa a ceder à
posição de poder – prefiro tê-lo no final, onde suas objeções ficarão
distantes.

— Você tem muita coragem de me chamar aqui, garoto — ele


rosna, como uma saudação.

E, no entanto, noto que ele se vestiu com tanto cuidado quanto


eu. O que significa que ele não está desinteressado no que tenho a
dizer. Ele só quer desabafar um pouco primeiro.

Seu cabelo grisalho está penteado recentemente e ele está tão


bem vestido quanto à própria Zoe. Fora isso, não vejo muito de sua
filha nele. Ele tem feições rudes e queixo fraco, enquanto Zoe
irradia beleza e confiança.

— Obrigado por fazer a viagem — eu digo. — Como você sabe,


estou um pouco restrito em quão longe posso viajar no momento.

— Sim... eu me pergunto o quanto seu Chancellor gostaria de


saber que você fez uma viagem de campo a Dubrovnik. Eu poderia
resolver meu problema com um telefonema.

— Tenho certeza de que seria expulso — digo, calmamente. —


Eu não acho que isso resolveria o seu problema, no entanto.
Romero se inclina sobre a ampla extensão da mesa brilhante,
seus olhos escuros brilhando. — Eu não sei de onde você tira a
ousadia de falar duas palavras comigo, quando você está
contaminando minha filha a desafiar seu próprio contrato escolar
e seu acordo de casamento. Eu deveria castrar você, garoto.

É a segunda vez que ele me chama de ‘garoto’. Eu gostaria de


enfiar o pejorativo de volta em sua garganta, mas guardo-o em um
arquivo mental de queixas, para que possa colocá-lo com ele mais
tarde, se quiser. Por enquanto, preciso me concentrar.

— Sr. Romero — digo educadamente — embora não nos


tenhamos conhecido pessoalmente, sinto que tenho alguma noção
de você do mesmo jeito. Sua filha Zoe é brilhante, disciplinada e
profundamente leal. Eu sei que essas características devem ter
vindo de seus pais.

Ele estreita os olhos para mim, não gostando da minha


familiaridade com sua filha, mas influenciado pelo elogio mesmo
assim.

— Eu acho que você é um homem de honra. Um homem que


deseja cumprir seus acordos. Também um homem inteligente o
suficiente para reconhecer uma oportunidade quando ela se
apresenta.

— Eu tenho uma oportunidade no lugar — ele diz, friamente.

— Sim, mas tem um custo. O custo é sua filha. Eu não espero


que você se curve ao sentimento..., mas você não pode ignorar a
natureza de Rocco Prince.

As sobrancelhas pesadas de Romero afundam tanto que seus


olhos se tornam meras fendas.
— Esta geração mais jovem — ele sibila. — Você é mole.
Romântico — ele pronuncia isso como uma maldição. — Filhas não
são filhos. Seus pais podem permitir que você jogue esses jogos.
Minhas filhas vão OBEDECER.

Eu ouço o veneno em sua voz. Este é um ponto delicado para


ele. Seu orgulho está pendurado aqui, e sua raiva por Zoe pelo
pecado de ter nascido menina.

Dieter e Gisela Prince entram na sala.

Romero se assusta, porque eu não o informei que seus futuros


sogros estariam presentes nesta reunião.

Estou igualmente surpreso. Eu estava apenas esperando o Sr.


Prince, não sua esposa.

Eles se sentam do meu lado esquerdo, um pouco mais perto


de mim do que de Romero, o que acho um bom sinal.

Dieter Prince está com um humor um pouco melhor do que


Romero. Ele me examina com olhos azuis frios não muito
diferentes dos de Rocco. Seu bigode preto esconde a expressão de
seus lábios.

— Meu helicóptero está esperando — diz ele, rapidamente. —


Só pretendo ficar uma hora. Então, por favor, me explique por que
não devo estripar você aqui e agora por tentar roubar a noiva do
meu filho.

— Porque você não se preocupa com a noiva — eu respondo.


— Nem os Romeros. Este é um negócio – Zoe é simplesmente o selo
de cera. Podemos todos dispensar a ficção de que o casamento é
parte integrante do acordo?
— Você mostra sua inexperiência — Prince diz, severamente.
— Os contratos se desfazem. Mudança de acordos. Os casamentos
duram. Somente o casamento garante que o futuro de ambas as
famílias esteja entrelaçado. É a única maneira de garantir que
nossos interesses se alinhem ao longo do tempo.

— O que isso vale para vocês? — eu digo. — Dez milhões?


Cem?

— Você não tem esse dinheiro — Romero retruca do fundo da


mesa.

— Não — eu digo. — Mas você poderia.

Prince e Romero trocam olhares. Romero bufa, teimosamente


desdenhoso. Vejo um lampejo de interesse nos olhos de Dieter
Prince. O dinheiro é importante para ele. O número importa, eu
posso ver.

— O que você está falando? — Prince exige.

— Você está construindo uma rota de distribuição — eu digo.


— De Barcelona a Hamburgo. É uma boa rota, sem dúvida. O
produto de Álvaro Romero e seus homens. Mas e se fosse cinco
vezes maior? E se fosse até Kiev e descesse até a Turquia? E se
você pudesse receber pedidos de todas as cidades do norte da
Europa, todas ao mesmo tempo? Não identificável e imperceptível.

O bigode escuro de Prince se contorce.

— Explique — diz ele.

— O ponto estreito nas vendas de contrabando é o sistema de


pedidos. Você precisa de uma rede de revendedores de baixo nível
para vender o produto pessoalmente. Você já ouviu falar da
Amazon?

— É claro — diz Romero, ainda irritado.

— Você seria a Amazon das drogas.

— Como você sabe disso? — Prince pergunta.

— Pedidos online pela dark web, canalizados por um servidor


privado. Você envia o produto ao longo do seu canal de
distribuição. Você não precisa aceitar o dinheiro pessoalmente e
lidar com todos os inconvenientes incômodos das taxas de câmbio,
transporte e lavagem. Você recebe o pagamento em Bitcoin,
totalmente indetectável. Depois, trocamos por dólares americanos.

— Como? — Prince diz. — Quem o troca?

Eu verifico meu relógio. — Essa é a última peça do quebra-


cabeça — eu digo. — Eles deveriam estar chegando enquanto
falamos.

— Isso é fantasia — cuspiu Romero. — Só conversa. Você não


pode fazer nada disso.

— Eu já faço — eu digo. — Está feito.

Abro a tampa do laptop e viro a tela para mostrar a ele. Ele se


inclina para frente, apertando os olhos para ver. Uma série de
números escorre pela tela como água corrente, bem diante de seus
olhos.

— Esses são pedidos, — eu digo. — Em tempo real. Pessoas


encomendando seu produto enquanto estamos sentados aqui.
Prince e Romero olham fixamente, os números refletidos em
suas íris. Números representando um rio de dinheiro correndo
diretamente para seus bolsos.

Nesse silêncio pungente, os Malina entram pela porta.

Marko Moroz é uma fera – quase dois metros de altura, largo,


com uma juba de cabelo castanho-avermelhado da cor de pele de
raposa. Seus olhos têm um tom amarelado e seus lábios são
grossos e carnudos. Suas mãos são tão grandes e com cicatrizes
que os dedos se enrolam permanentemente. Ele usa uma jaqueta
e botas de estilo militar, seus quatro soldados também vestidos
com roupas de combate.

Esses soldados foram escolhidos pelo tamanho e brutalidade.


Disse a Moroz que nos encontraríamos sem armas, sem guarda-
costas. No entanto, ele trouxe seus quatro maiores, como uma
demonstração de força.

Eles são marcados com as tatuagens de suas realizações. As


tatuagens ucranianas são semelhantes às russas – uma mulher
em chamas acorrentada a uma estaca, mostrando a vingança
exercida sobre aquele que o traiu. Uma mão segurando uma tulipa,
para indicar que o portador completou 16 anos dentro de um
campo de prisioneiros. Uma adaga envolta em cobra proclamando
o usuário um mestre-ladrão.

Em comparação, esses homens fazem Dieter Prince e Álvaro


Romero parecerem banqueiros. Eles não tentam se misturar. Eles
usam a evidência de sua violência com orgulho.

O desconforto toma conta da sala. Dieter e Gisela Prince se


sentam eretos em suas cadeiras, e Romero está com os olhos
arregalados como um garoto de escola. Ele lambe os lábios, seus
olhos se voltando para a porta aberta como se estivesse pensando
em fugir agora.

— Espero que não estejamos atrasados — diz Moroz, com sua


voz com sotaque profundo.

— Bem na hora — eu digo. — Por favor, fique confortável.

Eu aponto para o lado vazio da mesa. Moroz se senta enquanto


seus homens permanecem de pé, se espalhando pela sala.

Tenho que ir rápido, porque os Princes e Álvaro Romero vão


querer sair daqui o mais rápido possível. Eles não vão querer fazer
negócios com os Malina, ninguém quer. Não, a menos que sua
ganância seja poderosa o suficiente para superar suas reservas.

— Marko Moroz tem dólares americanos — eu digo. — Uma


grande quantidade de suas operações fora de Brighton Beach. Ele
está procurando uma oportunidade de investimento. Os Malina
podem expandir nossa rede de distribuição da Alemanha até a
Polônia, Lituânia, Letônia e Estônia, passando pela Bielo-Rússia
até a Ucrânia e, em seguida, pelo Mar Negro até a Turquia. Eles
podem pegar o Bitcoin e usá-lo para comprar propriedades em
Dubai. Eles lhe fornecerão dólares americanos limpos em troca.
Por esse serviço, eles pedem apenas uma parte de trinta por cento
dos lucros e mais cinco por cento para o câmbio.

— Dez — Moroz corta imediatamente. Ele sorri, mostrando


vários dentes de ouro. — Dez por cento para o câmbio e quarenta
por cento do lucro. Parece justo, por tudo o que estarei oferecendo.

Não foi isso que discutimos, embora eu previsse que Moroz


tentaria me intimidar na primeira oportunidade.
Eu sufoco minha irritação e a crescente sensação de pânico
porque os Princes e Romero não vão aceitar o acordo. Tem que ser
gentil, ou eles não vão trabalhar com Moroz.

— Uma taxa de câmbio de dez por cento é razoável — eu


concordo. — O lucro deve ser dividido igualmente de três maneiras
– 33,3% cada. Vamos manter as coisas simples para os contadores,
certo?

Dieter Prince observa atentamente para ver se Moroz pode ser


argumentado.

Moroz leva muito tempo para pensar, depois acena com a


cabeça lentamente.

— Sim — ele ri. — Não vamos confundir os contadores.

— Está combinado, então — eu digo, olhando ao redor para os


Princes e Romero para confirmar. — Participação igual nos lucros.
Dez por cento para os Malina pela troca de dólares americanos. E
uma taxa adicional de um por cento para a carteira de bitcoins.
Uma pechincha por dinheiro limpo e lavado.

É uma bela barganha e todos nesta mesa sabem disso.

Prince e Romero trocam olhares. Eu mantive a tela do laptop


voltada para os dois, para que eles pudessem ver os pedidos se
acumulando enquanto conversávamos. Vários milhões de dólares
já foram acumulados no curto período de tempo em que o
programa está em execução.

Eles não querem trabalhar com os Malina. Eles sabem que o


dinheiro está guardado em uma armadilha para ursos que pode se
agarrar a qualquer momento. Mas eles também não querem
recusar Marko Moroz enquanto ele está sentado em frente a eles.
Eu estava contando com seu fator de intimidação para funcionar
nos dois sentidos.

— O que você ganha com isso? — Sra. Prince diz, de repente,


surpreendendo a todos nós. Ela não tinha falado durante toda a
reunião, sentada como uma sombra pálida e silenciosa ao lado do
marido.

— Pego Zoe Romero — digo simplesmente. — Sem dinheiro,


sem drogas, sem parte. Eu só quero ela. Em troca, entrego a
plataforma, o servidor, a carteira bitcoin – tudo isso.

— Você não pode estar falando sério — Dieter Prince bufa.

— Deve ser uma boceta banhada a ouro — Moroz ri, batendo


as mãos do tamanho de presunto nas coxas.

Romero franze a testa com desprezo para a sua filha, então


imediatamente limpa o rosto suavemente quando Moroz olha em
sua direção.

— Isso é o que eu quero — falo calmamente. E então,


percebendo que Zoe vai precisar de mais uma coisa para ser feliz,
eu digo: — Catalina, também. Nenhum contrato de casamento
para ela. Ela se casa com quem ela gostar, depois de se formar.

Romero está na hora indignado, cuspindo na ponta da mesa.


Ele é obrigado a sacrificar o máximo de todos os presentes – as
meninas são suas únicas duas filhas. Seus únicos peões. Mas,
afinal, os peões não valem muito aos olhos dos mestres do xadrez.
Com todos os problemas que Zoe lhe deu, ele pode estar cansado
de contratos de casamento.

O silêncio se estende. Ninguém quer falar primeiro.


Moroz é o que menos tem paciência.

— O que, então? — ele exige, batendo seu punho enorme na


mesa, fazendo todos nós pularmos. — Tenho muito dinheiro e não
tenho tempo a perder. Todos nós concordamos?

— Sim! — Romero grita, mais por nervosismo do que qualquer


outra coisa.

Dieter Prince olha para sua esposa. Ele parece estar


procurando uma maneira de se livrar desse negócio sem se meter
em problemas.

Sra. Prince tem uma perspectiva diferente.

— Assim é melhor — ela diz baixinho. — Mais dinheiro. Mais


aliados. Sem contrato de casamento.

Seus olhos azuis encontram os meus por um rápido segundo.

Ela não diz mais nada, mas tenho certeza de que bem no fundo
dela, há um certo grau de simpatia por Zoe. E muito pouco amor
pelo filho.

— Assim seja — o Sr. Prince diz. — Rocco é jovem. Muito tempo


para ele encontrar outra pessoa.

Ele funga, dispensando Zoe em um suspiro enquanto olha


para a tela do laptop novamente.

Eu gostaria de esmagar a porra da cabeça dele. Mas estou


muito feliz com o que consegui fazer. A maior merda da minha
vida. Pelo maior prêmio imaginável.
— Vamos brindar — eu digo — enquanto eu preparo o
contrato.

Quando todos nós assinamos e compartilhamos três rodadas


de bebidas, eu sei que mal vou voltar para o cais a tempo. Moroz
tem servido doses que enchem seu copo e está começando a ter
um brilho de loucura nos olhos. Eu quero dar o fora daqui antes
que ele me dê uma tapinha nas costas que tire a porra da minha
cabeça dos meus ombros.

Nós nos despedimos e nos separamos no saguão, todos nós


esperando que os Malina saiam primeiro antes de nos sentirmos
confortáveis saindo no escuro por conta própria.

Corro para as docas, ainda usando meu terno, tendo


esquecido meu uniforme no hotel.

Já passei dez minutos das três horas que Ares e eu


combinamos.

No entanto, o barco preto lustroso espera no final de seu cais.

— Você deveria ter ido embora sem mim— digo a Ares.

— Eu sei — ele suspira. — Eu meio que preciso que você volte


por aquelas rochas.

— E você estava ligeiramente preocupado que eu pudesse


estar morto.

— Preocupado ou esperançoso?

— Definitivamente preocupado.
— Só porque pensei que poderia perder minha parte neste
negócio superimportante.

Eu rio. — Não há parte. Estou quebrado pra caralho agora.


Gastei tudo.

Ares balança a cabeça para mim. — Isso não parece um bom


negócio.

Eu imagino o rosto de Zoe quando contar a ela o que fiz. A


forma como sua descrença se derreterá em um sorriso mais
brilhante que o amanhecer.

— É um negócio fantástico pra caralho — digo a ele. — O


melhor que conseguirei.
CAT

Quando não vejo Zoe no café da manhã, eu me preocupo que


algo horrível tenha acontecido com ela novamente.

Em vez disso, ela vem irrompendo em meu quarto na


Undercroft enquanto estou enchendo minha mochila com livros.

Ela raramente vem visitar meu dormitório – ninguém que não


seja um Spy gosta de vir para a Undercroft. Eles acham isso
assustador e, para ser justa, os Spies são menos do que
acolhedores.

Somos a única divisão onde os alunos do sexo masculino e


feminino dividem o mesmo andar. Embora eu tenha conhecido
alguns dos alunos mais velhos, como Shannon Kelly e Isabel
Dixon, odeio visitar os banheiros do outro lado do túnel, porque
isso significa que também tenho que passar pelas portas de alguns
dos residentes absolutamente aterrorizantes, como Jasper Webb e
meu primo idiota, Martin Romero.

Seus quartos são cavernas, e tenho um medo furtivo de que,


se não passar correndo pela porta deles rápido o suficiente, eles
possam estender um braço em forma de tentáculo e me arrastar
para dentro.
Por todas essas razões, geralmente sou eu que visito Zoe no
claro e limpo Solar.

Hoje estou simplesmente aliviada por vê-la, especialmente


porque posso dizer à primeira vista que seu rosto está radiante de
empolgação.

— Ele fez isso! — ela chora, sua voz embargada de emoção. —


Miles conseguiu!

— Fez o quê? — falo inexpressivamente.

— Ele convenceu os Princes a rescindirem o contrato de


casamento.

Eu fico olhando para ela, de boca aberta, incapaz de processar


o que estou ouvindo.

— Como... tem certeza?

Quero comemorar com minha irmã, mas temo que isso possa
não ser verdade. Não quero que suas esperanças sejam destruídas
tão rapidamente quanto aumentaram.

Zoe abaixa a voz, embora estejamos sozinhas no meu quarto.


Rakel já saiu para a aula.

— Ele escapou ontem à noite com Ares. Eles foram para


Dubrovnik e Miles fez um novo acordo com os Princes e nosso pai.

Zoe parece febril. Eu não a vejo tão feliz desde... talvez sempre.

— Rocco sabe? — eu sussurro.

— Ainda não. Mas ele vai.


Zoe está triunfante. Ela mal pode esperar que Rocco saiba que
seus planos foram arrancados de suas mãos.

Eu, por outro lado, sinto um novo nível de pavor.

Rocco não vai aceitar isso bem. De jeito nenhum.

Não quero dizer isso a Zoe, no entanto. Não quero consumir


sua alegria neste momento.

Então, eu apenas jogo meus braços em volta dela e a abraço


com força.

— Estou tão, tão feliz por você Zo — eu digo. — Você merece


isso.

Ela me abraça ainda mais forte, seu corpo esguio tremendo de


excitação. — O acordo é para você também, Cat. Nosso pai não
fará um contrato para você. Ele não tem permissão para isso. Você
não terá que se casar com alguém de quem não gosta.

Solto um longo suspiro. Esse era um horror futuro que eu


nunca havia considerado, porque me assustava muito.

— Miles fez isso? Para mim? — eu falo.

— Sim — Zoe se afasta para olhar para mim, alisando alguns


cachos selvagens do meu rosto. Eles imediatamente avançam
novamente, desobedientes como sempre. — Ele sabe o quanto eu
te amo.

Nunca imaginei um futuro livre para mim. É opressor. Não sei


por onde começar a fazer planos. Sinto que estou diante de um
bufê com mil pratos.
O que eu faria se pudesse realmente fazer qualquer coisa no
mundo?

Eu iria para Pintamonas?

Foi o que planejei antes de vir para cá.

Mas não sei se quero mais isso. Meu progresso na Kingmakers


foi conquistado com dificuldade. Comecei no final da minha classe,
a mais fraca, a menos competente. Lentamente, ao longo do ano
letivo, fui crescendo. Eu aprendi coisas. Descobri reservas de força
e engenhosidade que nunca soube que possuía. Pouco a pouco
minhas notas melhoraram, então não estou mais reprovando.
Posso até me encontrar no meio do grupo.

Quem sabe onde eu poderia estar em mais um ano? Ou dois


ou três?

Certa vez, eu me imaginei no dia da formatura, forte e


confiante como uma veterana como Saul Turner.

Isso não parece mais uma fantasia impossível.

— Terei que agradecer a Miles — digo a Zoe. — Embora eu não


saiba como você pode agradecer a alguém por algo assim.

— Eu sei — Zoe diz. — Eu simplesmente não consigo acreditar.

Mas ela pode. Ela realmente acredita nisso.

Preciso ligar para meu pai em casa para ficar totalmente


convencida. Ligo para ele no domingo, dia em que temos permissão
para usar a antiquada fileira de telefones no andar térreo de The
Keep.
Eu nunca ligo para meu pai, normalmente. Ele se comunica
por meio de cartas que detesto abrir.

No entanto, hoje ele parece estar esperando minha ligação.

— Olá, Catalina.

Ele nunca me chama de Cat. Ele nunca fez isso.

— Olá, pai.

— Presumo que sua irmã tenha lhe contado a notícia.

— Ela disse que você fez um novo acordo com os Princes. Um


arranjo mais vantajoso.

Estou tentando bajulá-lo. Eu conheço o orgulho do meu pai.


Se ele sentir qualquer indício de triunfo em Zoe ou em mim, ficará
furioso.

— Não espero que vocês entendam a complexidade do meu


negócio. Mas sim, pode-se dizer que é infinitamente mais vantajoso
— diz, com pomposa magnanimidade.

— Eu... estou muito feliz por você, pai.

— É uma vergonha para sua irmã ser rejeitada pelo noivo. É


melhor ela torcer para que o americano esteja falando sério sobre
continuar com ela. Duvido que alguém mais se interesse depois da
maneira como ela se comportou.

— Eu acho que ele é muito sério sobre ela — falo calmamente.

Meu pai responde com uma fungada de nojo.


— Eu espero que você nunca se comporte de uma maneira tão
prostituta, Catalina. Eu a criei para entender o que uma esposa
deve ao marido. O valor de uma mulher é facilmente diluído. Como
uma garrafa de vinho, uma vez que a rolha é estourada...

— Eu entendo, pai — falo rapidamente.

Estou fervendo de raiva, minha mão tremendo em torno do


receptor. Como ele ousa falar sobre Zoe dessa maneira, quando ele
nunca sentiu amor ou devoção em sua vida. Ele é um hipócrita,
um réptil, um maldito nojento...

— Veja se você entende — ele diz, logo desligando o telefone.

Eu bato o fone no gancho em resposta, desejando ter tido a


coragem de fazer isso antes dele.

Eu o odeio. Eu o odeio muito.

Eu detesto a ideia de voltar para casa neste verão. Gostaria


que o ano letivo nunca acabasse, um sentimento que nunca pensei
que sentiria, mas agora o abraço de todo o coração.

Eu prefiro a Kingmakers. Eu posso dizer isso agora. Apesar de


todos os seus defeitos, de todas as maneiras como me aterroriza,
pelo menos este lugar é honesto em suas intenções. Ninguém finge
me amar aqui, finge ter meus melhores interesses no coração,
enquanto me envenena de dentro para fora.

Meu pai não sabe nada sobre quem eu sou, não de verdade.

Eu sou uma maldita Spy.

Luther Hugo não se enganou ao escolher minha categoria. Ele


olhou para as minhas transcrições da escola. Ele percebeu o que
meu pai nunca se preocupou em ver. Habilidades nascentes.
Experiência embrionária.

Venho desenvolvendo essas habilidades o ano todo.

Agora é hora de colocá-las em prática.

Estou cansada do terror, cansada de esperar que os homens


ataquem para que possa reagir desajeitadamente.

É hora de enfrentar meu último medo neste lugar.

É hora de ir caçar Rocco Prince.

Uma das poucas aulas de que gostei na Kingmakers, desde o


início, é Furtividade e Infiltração. Nessa classe, é uma vantagem
ser pequena e insignificante, fácil de ignorar. Até o professor
Burrows é um homem baixo e elegante, com um sotaque britânico
tranquilo e cuidadosamente cultivado e um rosto simples e
normal. A única coisa memorável sobre ele são seus dentes
estranhamente minúsculos, como os de um bebê, que só se
revelam nas raras ocasiões em que ele ri de sua própria piada.

O professor Burrows tem nos ensinado como perseguir nossa


presa sem sermos notados.

— O primeiro passo é pesquisar — conta. — Você deve ter uma


boa ideia de para onde seu assunto está indo antes mesmo de sair
de casa. Se sua intenção é segui-los até um local desconhecido,
mantenha distância, monitore sua posição por meio de fontes
indiretas, como reflexos de janela, e esteja preparado para alterar
sua aparência no caminho. Bonés, óculos escuros e jaquetas
reversíveis podem ser úteis.

Quando começo a seguir Rocco Prince no campus, tento usar


todas as dicas do professor Burrow. Pego emprestado um dos
gorros de Rakel para cobrir meu cabelo e coloco e tiro minha
jaqueta da academia. Eu me escondo atrás de pilhas de livros na
biblioteca e Enforcers musculosos na sala de jantar. Lembro-me
da orientação do Professor de não seguir atrás do sujeito em todos
os momentos, mas sim de andar em caminhos paralelos ou
diagonais, às vezes ultrapassar e às vezes parar fora de vista.

Rocco é um predador com instintos aguçados. Se eu olhar para


ele por muito tempo, sua cabeça se ergue e seus frios olhos azuis
olham ao redor, procurando pela origem daquele formigamento na
nuca, aquele sexto sentido de que ele está sendo observado.

Mas ele não me vê. Porque aprendi a me esconder atrás de


pilares e à sombra de escadarias, a sentar-me perfeitamente imóvel
sem vacilar, meu rosto se transformando em um livro, mesmo
enquanto seu olhar passa por mim.

Todo mundo sabe quando Rocco toma conhecimento da


dissolução de seu noivado, porque ele destrói o dormitório que
divide com Dax Volker. Ele quebra a mobília, rasga os colchões e
até joga uma cadeira pela janela. Por essa pequena birra, sua
família é multada e ele é forçado a sofrer a humilhação de trabalhar
na equipe do local por duas semanas.

Espero que ele retalie contra Miles e Zoe imediatamente, mas


ele não o faz. Ele nem mesmo fala com Zoe, o que ela vê como um
bom sinal.
— Eu sei que ele está chateado, mas ele tem que acatar a
decisão de seus pais — Zoe diz para mim.

Zoe está mais linda do que eu já vi: sua pele reluzindo, seu
cabelo escuro e lustroso, seus olhos brilhantes como o trevo da
primavera. Ela ainda está usando suas calças favoritas, mas a
blusa está parcialmente desabotoada e as mangas arregaçadas.
Um cinto aperta sua cintura fina, mostrando sua figura de uma
forma que ela nunca teria feito antes.

Ela está segura pela primeira vez em sua vida, segura como se
os braços de Miles estivessem em volta dela, mesmo quando ele
não está realmente na sala.

Não quero furar essa trava de segurança, nem por um


segundo. Mas estou com medo por ela e não consigo me livrar
disso.

— Eu apenas... não acredito que ele vai deixar você ir tão fácil
— falo para Zoe.

— Foda-se ele — Zoe diz, sacudindo a cabeça imperiosamente.


— Não há mais contrato. Se ele tentar me machucar na escola,
será punido. Fora da escola, vou ficar com Miles. Você também
pode ir conosco, Cat. Ir para Chicago neste verão. Papai não vai se
importar – ele vai se afogar em dinheiro com este negócio. Miles diz
que já está funcionando, já está operando.

Ela está em alta no triunfo, feliz e cheia de planos.

Receio que Miles esteja o mesmo.

Eles não podem ver o que eu vejo.


Eles não estão observando Rocco enquanto ele fica mais pálido
e venenoso a cada dia. Ele é uma cobra que está morrendo de fome,
e isso só o torna mais perigoso.

— Eu acho que ele está perdendo seus amigos também — Zoe


diz. — Jasper estava chateado com aquela semana em uma cela
de prisão, e pelo que ouvi Dax não está muito feliz por Rocco ter
fodido o quarto deles.

Percebi que os amigos de Rocco não parecem particularmente


felizes em sua companhia. Jasper mal fala e Dax fica mal-
humorado e se irrita facilmente. Alguns dos parasitas
desapareceram completamente depois do que aconteceu com
Wade Dyer. Rocco ataca qualquer um que permaneça, até que seu
grupo de uma dúzia de lacaios diminui para três ou quatro.

Ainda assim, eu o sigo conforme o ano letivo chega ao fim, até


que faltem apenas algumas semanas. Porque não acredito que ele
nos deixará embarcar naquele navio sem um confronto final.

Uma semana antes do desafio final do Quartum Bellum, estudo


na biblioteca. Por mais que goste deste lugar, estou ansiosa para
estar ao ar livre, onde as flores de laranjeira estão em plena
floração, o sol brilhando, a grama perfumada. O tempo está
totalmente quente agora. Ninguém usa mais suéteres ou jaquetas,
nem mesmo meias. As meninas se deitam no gramado com as
saias puxadas para cima para conseguir alguma cor nas pernas.
Os meninos andam jogando bolas de futebol e beisebol, fingindo
não assistir.

Eu gostaria de estar lá, mas estou perto de conseguir notas


realmente decentes, contanto que consiga me garantir nos exames
finais. Portanto, sou uma das únicas pessoas dentro da torre,
resistindo ao canto da sereia do início do verão.

Ou, pelo menos, é o que acontece até eu ouvir vários pares de


passos subindo a rampa.

Instintivamente, saio da cadeira e me escondo entre as


estantes.

Os passos são pesados e masculinos. As vozes baixas têm um


toque de malícia muito familiar para mim.

— Você a viu deitada na grama com a cabeça no colo dele?


Exibindo-se pra caralho.

A fúria sibilante de Rocco faz minha carne ficar fria e úmida.


Eu fico exatamente onde estou, presa no pequeno espaço a poucos
metros de distância dos meninos.

— Bem, ele pagou o suficiente por ela. Deixe-o ficar com ela.
Eu teria ficado com o dinheiro, pessoalmente.

Eu ouço a risada feia de Dax Volker.

Espero que continuem subindo a rampa, mas parecem ter


parado. Há um arrastar de cadeiras e um baque de livros sendo
jogados no chão enquanto eles jogam seus pertences em uma mesa
perto daquela que eu estava usando.
— Ela pensa que ganhou. Ela acha que pode andar por aí com
ele, rindo na minha cara.

— Ela ganhou. Está feito. Desista.

Não estou tão familiarizada com essa voz, já que mal o ouvi
falar, mas tenho certeza de que o comentário baixo e desdenhoso
veio de Jasper Webb. Tenho certeza disso quando é imediatamente
acompanhado pelos estalos afiados de Jasper estalando os nós dos
dedos em uma sequência rápida.

— Isso é o que você faria, não é? — Rocco sibila. — Você


desistiria. Como quando Dean Yenin bateu sua bunda na tela.

— Ele não teve que lutar contra aquela montanha móvel


primeiro — Jasper responde. — O que diabos você sabe sobre isso,
de qualquer maneira – você não estava naquele ringue. Você nem
mesmo luta

— Vou colocar minha faca contra seus punhos ossudos a


qualquer momento — rosna Rocco.

— Parem com isso — diz Dax, ao mesmo tempo entediado e


irritado. — Estou farto de vocês dois atacando um ao outro. Estou
farto desta escola e deste ano inteiro. Mal posso esperar para
passar meu verão em Ibiza, fodendo vadias de biquíni com coca.

Rocco fica em silêncio por um minuto, mas sua mente


obviamente continua voltando para Zoe, como um hamster em
uma roda.

— Não acabou — ele diz.

Eu ouço os suspiros exasperados dos outros dois, claramente


em seu ponto de ruptura com este tópico.
— Sim, o que diabos você vai fazer sobre isso? — Dax diz,
abertamente hostil agora.

— Seja o que for, você pode me deixar fora disso — Jasper


acrescenta. — Eu não gosto de outro encontro com o Chancellor.
Ao contrário de vocês dois, eu não tenho uma doce mamãe que
quer ter a garganta cortada em meu nome.

— Duvido que a minha se ofereça — diz Rocco, em voz baixa.

É a primeira vez que o ouço admitir algo que pode ser


considerado vulnerável. Mas ele não diz isso com tristeza. Ele está
apenas afirmando um fato. Ele calculou os usos que poderia dar à
sua mãe, e o auto sacrifício simplesmente não está nessa lista. Ele
não se importa se ela o ama ou não.

— O que, então? — Dax diz, com um ar de querer acabar com


isso. — Qual é o seu plano?

— Meu plano é esperar — diz Rocco, em sua voz mais gentil.


— Vou esperar dois anos, três anos, quatro... vou esperar até
depois de nos formarmos e depois que eles se casarem. Talvez eu
espere até que ela esteja grávida. — Ele ri baixinho, gostando da
ideia. — Grávida de oito meses, prestes a dar as boas-vindas ao
primeiro filho. Então eu a encontrarei. Vou bater na porta dela. E
no momento em que ela a abrir, sem suspeitar, sem saber, eu
pegarei outro vidro daquele ácido e jogarei na cara dela.
Queimando-a, cegando-a, fodendo com ela. Vamos ver o quanto
ele a quer então, quando ela for um maldito monstro.

Dax e Jasper estão em silêncio, nem mesmo sendo capazes de


dar uma risada enquanto a depravação desse plano cai sobre sua
mesa como uma névoa gelada.
— Você acha que ainda vai se importar em quatro anos? —
Jasper diz, tentando esconder seu nojo.

— Eu esperaria cinquenta anos para fazer isso — responde


Rocco. — Mas eu não vou precisar. A felicidade é um anestésico.
Eles ficarão confortáveis muito antes disso. Eles vão acreditar que
eu desisti porque é isso que eles querem acreditar. Nunca
esquecerei. Eu nunca vou perdoar. Não até eu conseguir o que
quero.

Meu estômago embrulha, de forma abrupta e sem aviso. Tenho


que tapar a boca com a mão, como fiz no Grand Hall no dia em
que a mãe de Ozzy foi morta.

Por mais que eu tenha mudado este ano, esse reflexo do vômito
é a única coisa que não consigo controlar.

Talvez Rocco ouça o tapa da minha mão. Ele parece ficar tenso,
exigindo rispidamente: — De quem é essa bolsa?

Posso ver minha mochila pendurada no canto da minha


cadeira abandonada. Esqueci de pegá-la quando me escondi entre
as estantes.

Meu instinto é fugir, mas Rocco não pode me ver. Ele não pode
saber que eu ouvi.

— Não sei — diz Dax. — Ela esteve aí o tempo todo.


Provavelmente alguém esqueceu.

— Pegue-a — Rocco late. — Olhe dentro. Veja a quem pertence.

A cadeira de Dax raspa no carpete quando ele se levanta,


planejando fazer o que Rocco ordenou.
Agora estou em pânico, sabendo que meu nome está escrito
em vários dos meus livros. Se Dax olhar através deles, ele contará
a Rocco, e Rocco saberá que estou em algum lugar por perto. Ele
saberá que não é uma coincidência.

Estou prestes a sair do meu esconderijo como uma perdiz


arremessada do chão, quando ouço uma voz suave dizendo: —
Alguém se esqueceu disso? Eu vou levar.

A Sra. Robin com seu cardigã enorme e sua juba de cabelo


ruivo crespo aparece e agarra a bolsa, antes que a grande mão de
Dax possa se fechar em torno dela.

— Obrigada, meninos — ela diz, já se afastando.

— Ela ouviu alguma coisa disso? — Rocco diz em um tom


baixo, depois que ela sai.

— Não — diz Dax. — E quem se importa – ela é uma cadete


espacial do caralho. Você já a viu babando em cima daqueles
pergaminhos esfarrapados de merda de rato? Acha que é um
monge medieval do caralho ou uma freira ou alguma merda. — Ele
dá outra daquelas risadas horríveis. — Também se veste como
uma freira. Eu ainda a dobraria sobre a mesa. Eu gosto de uma
ruiva. O mesmo acontece com o nosso menino Jasper, não é,
Jasper?

— Não — Jasper diz, friamente. — Não estou interessado em


foder a bibliotecária.

Tudo isso parece ter distraído Rocco o suficiente para ele se


esquecer da mochila misteriosa.

— Vamos — diz Dax. — Não estou com vontade de estudar.


— Quando é que você está — Rocco fala irritado.

— É quase jantar, e ao contrário de vocês dois, eu realmente


gosto de comer.

— Se você chamar a sujeira de porco que eles servem neste


lugar de comida.

Sem esperar que Rocco concorde com algo parecido com a


graça, Dax reúne seus livros. Rocco e Jasper o seguem.

Eu fico exatamente onde estou, as pernas fracas demais para


me apoiar, mesmo que eu tenha coragem de me mover.

Eu ouvi cada palavra que Rocco disse. E assim como Dax e


Jasper, eu sei que ele não estava brincando.

Rocco se vingará de minha irmã. Ele vai esperar o tempo que


for preciso. Nem o tempo nem à distância irão apagar seu ódio. Ele
é um perigo para ela enquanto viver.

Este problema tem apenas uma solução.

Eu não quero admitir. Não quero permitir o pensamento em


minha mente. Mas eu sei disso, tão certo quanto posso ver o sol
nascendo pela manhã e a lua no céu à noite.

A única maneira de Zoe ficar segura... é com Rocco morto.


ZOE

As últimas semanas de escola são as mais felizes da minha


vida.

Rocco está tão amargo que nem olha para mim, que é
exatamente o que eu gosto.

Miles e eu estamos livres para passar todos os momentos


possíveis juntos. Caminhamos para as aulas de mãos dadas,
sentamos juntos em todas as refeições, ficamos acordados até
tarde da noite rindo e conversando, assistindo a filmes antigos ou
transando como coelhos sempre que podemos.

A alegria de ser sedutora e romântica ao ar livre é dez vezes


maior do que eu imaginava. Nunca me senti tão leve e tão livre.

Frequentemente, Anna e Leo se juntam a nós para assistir a


filmes ou explorar a ilha. Chay aparece às vezes, mas sei que ela
se sente um pouco como uma quinta roda. Ela está em um estado
terrível com o que aconteceu com a mãe de Ozzy. Ela só se animou
quando Ozzy começou a aceitar suas ligações aos domingos. Miles
deu a ela um celular, e agora ela fica enfurnada em seu quarto por
horas a fio conversando com Ozzy.

— Vou visitá-lo na Tasmânia — ela me diz. — Assim que a


escola terminar.
— Como amigos ou...?

— Não se trata de piedade — Chay me diz, ferozmente. — Eu


sinto falta dele desde que ele se foi. Senti muito a falta dele, na
verdade.

— Isso é ótimo, Chay — falo honestamente. — Sempre achei


que Ozzy era bom para você.

Tenho minha própria visita planejada para as férias de verão


– estou indo para Chicago para conhecer a família de Miles.
Perguntei a Cat se ela queria ir comigo. Nenhuma de nós foi para
os Estados Unidos antes, e eu realmente não acho que nosso pai
vá se opor. Miles me mostrou as transações em andamento no
servidor offshore, que já estão superando as generosas projeções
que ele fez naquela noite em Dubrovnik. Nosso pai estará muito
ocupado contando seu dinheiro para fazer qualquer outra coisa.

Cat não parecia tão animada quanto eu esperava. Ela tem


estado estranhamente quieta ultimamente, quase me evitando. Ela
diz que está ocupada estudando, mas me pergunto se ela se sente
isolada por me ver tão envolvida em Miles. Como se ela pensasse
que vou esquecer tudo sobre ela.

Tento dizer a ela que isso nunca vai acontecer.

— Você sabe que sempre será minha melhor amiga e sempre


cuidarei de você, Cat. Não importa o que aconteça comigo e Miles,
isso nunca vai mudar.

— Eu sei — Cat diz, olhando para mim com seus enormes


olhos escuros que parecem ocupar metade de seu rosto.

— O que há de errado, então? Você ainda está preocupada com


Rocco? Ele não disse uma palavra para mim. Eu realmente acho
que ele vai desistir. Os Princes não vão querer comprometer todo
o dinheiro que estão ganhando. Miles ainda pode desligar o
servidor se Rocco tentar mexer com a gente.

Cat apenas olha para mim, solene e pálida.

— São os exames finais? — eu a cutuco. — Suas notas estão


muito melhores agora, tenho certeza que você...

— Não é nada — ela diz, balançando a cabeça. — Eu só estou


cansada. Foi um longo ano.

O último evento do Quartum Bellum acontece em uma


sufocante sexta-feira de maio.

O sol bate em nossas cabeças como se estivéssemos nos


trópicos, todos os membros de nossa equipe suando antes mesmo
de o desafio começar.

Os alunos do segundo ano enfrentam os do terceiro ano.


Arquibancadas foram reerguidas ao redor do campo aberto para
que o restante da escola possa assistir.

Leo, é claro, espera nos levar à vitória pelo segundo ano


consecutivo. Se formos campeões por quatro anos consecutivos,
ele baterá o recorde anteriormente estabelecido por Adrik Petrov,
o Enforcer de St. Petersburgo, cujo nome ficou conhecido como o
único capitão a vencer três anos consecutivos.
Adrik se formou um pouco antes de eu entrar para a
Kingmakers, então nunca coloquei os olhos nele, mas Miles me
garante que suas façanhas não são exageradas.

— Ele era o cara certo, porra — Miles diz. — Nunca vi alguém


tão bom em absolutamente tudo. Algumas pessoas pensavam que
ele era um idiota, mas eu gostava dele.

— Você gosta de idiotas — diz Leo.

— É por isso que sempre fomos bons amigos. — Miles sorri.

— Vou bater o recorde dele — Leo afirma, cheio de fogo


competitivo. — No Quartum Bellum e em tudo o mais.

— Boa sorte com isso — Miles diz. — Você começou bem hoje
– não acho que será tão difícil derrotar o terceiro ano.

— Essa é a sua equipe — eu o lembro.

Miles e eu estamos um de frente para o outro no campo, ele


em uma camisa preta, eu de branco. Tecnicamente, somos
adversários e devo fazer o meu melhor para derrotá-lo. Na prática,
não consigo parar de olhar para seu rosto bonito e acho que lhe
daria um troféu agora mesmo se ele pedisse com educação.

Miles olha em volta para o resto dos alunos do terceiro ano,


que incluem o capitão Simon Fowler, Kasper Markaj, Jasper Webb
e Dax Volker, bem como a Heir da Bratva Claire Turgenev e sua
prima Neve Markov, e meu próprio primo Martin. Essa seria sua
‘escalação de estrelas’, se você quisesse escolher o melhor. O resto
varia de medíocre a pobre em força e conjunto de habilidades.

— Minha equipe é uma merda — Miles diz, sem rodeios. — É


assim que funciona. Alguns anos são mais fortes do que outros.
Eu não me importo. Prefiro que você nos derrote rápido para que
eu possa sair desse calor.

— Onde está Rocco? — falo de repente, olhando ao redor.

Rocco é do terceiro ano. Ele deveria estar aqui no campo. A


frequência ao Quartum Bellum é obrigatória.

— Quem se importa? — Miles diz. — É problema dele se for


pego fugindo. Queria ter a mesma ideia. Tarde demais agora,
entretanto – o professor Howell já me viu.

O professor Howell caminha até o centro do campo, seu apito


prateado favorito batendo em seu peito. O suor já brilha em seu
rosto magro e bronzeado e em seu cabelo preto bem aparado.

— Pronto todo mundo? — ele berra.

Há uma ovação fraca e aplausos da multidão, e um grito ainda


mais fraco de reconhecimento dos competidores.

O professor Howell ergue sua pistola de partida para o céu sem


nuvens e dispara.
MILES

O desafio final é essencialmente um vasto jogo de cabo-de-


guerra, com uma rede em vez de uma única corda. A rede é
amarrada com uma linha de bandeiras no centro. A primeira
equipe a puxar essas bandeiras para sua própria zona final vence.

Como há tantos alunos em cada equipe – quase setenta no


total – as táticas envolvem transferir a força de trabalho para
diferentes áreas da rede. As equipes alternam entre explosões
abruptas de poder agressivo e lutas longas e árduas, onde os
alunos suam e se esforçam, a rede mal se movendo.

Eu odeio isso.

Acho o Quartum Bellum tedioso e sem sentido, e costumo fazer


o mínimo esforço necessário para que meus colegas de equipe não
percebam que mal estou trabalhando. Isso é difícil de fazer quando
todo mundo está pingando de suor em apenas cinco minutos.

A corda áspera queima nossas mãos, arrancando a pele de


nossas palmas. O gramado sob nossos pés é logo rasgado por
calcanhares enterrados, e os jogadores são frequentemente
arrancados do chão, arrastados junto com a rede até ficarem
esfolados e cobertos de manchas de grama.
Eu esperava que tudo acabasse logo, mas rapidamente se
torna aparente que teremos uma longa jornada. Enquanto os
alunos dos segundo e terceiro ano têm explosões de triunfo onde
eles conseguem arrastar a rede vários metros em direção à sua
zona de finalização, esse progresso é imediatamente prejudicado
pelo time adversário puxando-a de volta novamente.

Leo tem a melhor estratégia, como de costume. Ele usa


mudanças inesperadas de força e direção para literalmente nos
tirar do chão. Ele movimenta seus jogadores, aliviando aqueles nos
pontos de maior tensão assim que eles começam a fraquejar. Aos
poucos, ele puxa a rede para mais perto do seu lado.

Ainda assim, levará uma ou duas horas até que meu time
perceba que está derrotado.

Eu me ocupo olhando para Zoe.

Ela está trabalhando duro como uma boa abelhinha operária.


Seu cabelo preto se soltou do rabo de cavalo, grudando no rosto.
Suas bochechas ficaram rosadas ao sol. Na verdade, ela se parece
muito com quando está em cima de mim, montando meu pau, o
que faz o dito pau acordar dentro do meu short. Esse pensamento
é a única coisa que poderia me fazer desfrutar dessa porra de
competição. Eu não me importo se isso se arrastar, desde que eu
consiga assistir Zoe rindo e gritando, usando aquele corpo de
deusa para sua melhor vantagem.

Ela capta meu olhar e sorri para mim, mostrando um lampejo


de dentes brancos.

— Você poderia tentar empurrar em vez de puxar — ela chora.


— Nós vamos tirar você de sua miséria.
— Você nunca vai me respeitar se eu deixar você vencer — eu
grito de volta, dando um puxão forte na rede que a puxa para
frente.

Zoe apenas ri e planta seus tênis imundos na terra revirada,


puxando o máximo que pode para não ir a lugar nenhum.

Dean Yenin está um pouco à esquerda de Zoe. Ele balança a


cabeça irritado, aborrecido com a nossa troca. Ele, é claro, está
tratando o desafio como se o destino do mundo dependesse disso.
Ele rosna de aborrecimento sempre que Leo grita uma ordem, mas
segue a estratégia quando o benefício é óbvio.

Silas Gray não está ouvindo tão atentamente. Enquanto Leo


grita para eles puxarem para a esquerda, ele puxa a rede na
direção oposta, colocando uma força inesperada na seção segura
por Dean.

Com um choque nauseante, o braço de Dean é puxado para o


lado. Ele dá um grito estrangulado, largando a rede. Seu braço está
pendurado em um ângulo perturbador, o ombro deslocado da
articulação.

— Seu idiota de merda! — Dean rosna, seu rosto vermelho.

Silas o encara, impassível e sem arrependimento.

Leo larga a rede para olhar. Ele faz uma careta para o braço
pendurado.

— É melhor você ir para a enfermaria — diz ele.

— Você acha? — Dean berra, os dentes cerrados de dor.

— Eu posso enviar alguém com você... — Leo começa.


— Não se incomode, porra, ele acertou meu braço, não minhas
pernas — Dean cospe, espreitando pelo campo com seu braço bom
prendendo o membro solto balançando no lugar contra seu corpo.

— Que pena — digo a Kasper Markaj. — Não poderia ter


acontecido com um cara mais legal.

Kasper bufa e dá um novo controle à rede.

— Vamos lá, seus preguiçosos! — Simon Fowler grita para


nossa equipe. — Nós os temos exatamente onde queremos, eles
estão caindo como moscas!

Eu suspiro.

— Ele não é William Wallace62, mas está tentando o seu


melhor.

62
Foi um nobre cavaleiro escocês que se tornou um dos principais líderes da guerra de independência da Escócia.
Wallace ganhou fama na Escócia após derrotar um exército inglês em 1297.
CAT

Rocco tem que morrer, e eu sou a única que pode fazer isso.

Não pode ser Zoe ou Miles. Eles são os suspeitos óbvios.

Se matarem Rocco, o Chancellor ou os Princes descobrirão. A


nova vida deles juntos será destruída antes mesmo de começar.

Na verdade, eu tenho que ter certeza de que, quando Rocco


morrer, seja flagrantemente óbvio que Zoe e Miles não tiveram
nada a ver com isso.

É por isso que tem que acontecer durante o desafio final do


Quartum Bellum.

Zoe e Miles estarão competindo em plena vista de toda a


escola. Ninguém pode acusá-los de atacar Rocco.

Eu, por outro lado, precisarei de um álibi diferente.

Mas estou me adiantando.

O primeiro passo é colocar a isca na armadilha.

Começo deixando notas nos bolsos de Rocco. Isso é arriscado,


porque envolve entrar sorrateiramente na Octagon Tower e abrir a
fechadura de seu quarto.
Abrir fechaduras é uma das primeiras coisas que você aprende
na Kingmakers, pelo menos na divisão Spy. Nós cobrimos isso em
nossa primeira semana. Fiquei muito boa nisso, já que trabalhos
manuais delicados e complicados são algo que pratiquei enquanto
fazia joias e arte em papel.

A parte mais difícil é esquivar-se de todos os Heirs do sexo


masculino que podem se perguntar por que eu entrei furtivamente
em sua torre. Além disso, superando meu nojo crescente de tocar
em qualquer coisa que pertença a Rocco. Suas roupas têm um
cheiro adocicado que me lembra frutas podres.

As notas que deixo para Rocco são deliberadamente vagas e


tentadoras.

Coisas como:

Eu sei o que você fez.

Eu tenho evidências.

Eu vou te expor.

Você vai ter que pagar para me manter quieto.

Na verdade, não espero que Rocco se sinta ameaçado por essas


notas. Pelo contrário: acho que vão irritá-lo e enfurecê-lo, porque
ele não vai entender. Isso o deixará louco sem saber quem está
fazendo isso, ou por quê.

Ele pode pensar que estou me referindo à história que Claire


Turgenev me contou: o menino que ele torturou e assassinou em
seu antigo colégio interno. Ou talvez ele as conecte a um dos cem
outros atos cruéis e nojentos que devem se esconder em sua mente
como corpos não exumados.
Não importa o que ele pensa – importa apenas que eu desperte
sua curiosidade.

Deixo uma dúzia de anotações ao longo de três dias,


escondidas nos bolsos de sua calça, mochila e entre as páginas de
seus livros. Então eu paro.

O hiato é importante para desequilibrá-lo. Para deixá-lo ainda


mais paranoico. Para garantir que ele responda quando eu deixar
minha nota final.

Três dias antes do Quartum Bellum, saio sorrateiramente da


Undercroft tarde da noite. Eu roubo pedras da torre do sino em
ruínas no canto noroeste do campus e as carrego para cima das
muralhas. Pedras pesadas, cada uma tem de três a cinco quilos.
Eu as escondo debaixo da minha camisa e as subo uma por uma
até que minhas pernas tremam com as dezenas de subidas e
descidas pelas escadas.

Então procuro nos estábulos. Eu examino as pilhas de móveis


quebrados, livros mofados, pincéis de giz gastos e caixas de
arquivo velhas.

Não venho aqui desde que disse a Hedeon Gray que ele deveria
verificar essas caixas para registros de alunos antigos. Faço uma
pausa em minha busca para examinar as caixas eu mesma,
perguntando-me se ele encontrou o que estava procurando.

Os arquivos foram claramente vasculhados, mas não vejo


nenhum registro de aluno. Nunca olhei para os papéis tão de perto
no Halloween – pode ter sido uma sugestão estúpida. Ou isso, ou
Hedeon encontrou o que procurava e levou embora.
Retomando minha própria busca, encontro um grande saco de
lona cheio de velhos equipamentos de mergulho. Eu despejo o
equipamento de mergulho e pego o saco.

Tudo que preciso agora é corda.

Na véspera do Quartum Bellum, deixo minha nota final. Coloco


bem no travesseiro de Rocco, onde ele não pode perder. Eu digo a
ele a hora e o local para me encontrar e instruo que ele leve
US$5.000 para garantir meu silêncio.

Claro, não espero que ele leve o dinheiro.

O dinheiro é uma distração.

Não posso dizer se meu plano é razoavelmente inteligente ou


extraordinariamente tolo. Eu tenho me impulsionado pelos
movimentos em uma espécie de torpor, fazendo o que eu sinto que
deve ser feito, embora não acredite realmente que posso ir em
frente com isso.

Eu não sou uma assassina. Eu nunca fui.

E ainda, eu tenho que matá-lo.

Não contei a Zoe o que planejo. Ela não pode saber, e nem
Miles. É a única maneira de mantê-los seguros. Se algo der
errado... bem, eu não posso pensar sobre isso. Minha irmã estava
disposta a sacrificar sua vida pela minha. Ela ia se casar com
Rocco para me manter a salvo. Tenho que arriscar o mesmo por
ela.

Enquanto desço correndo as escadas da Octagon Tower,


esqueço de ouvir os passos subindo. É um pequeno erro, mas que
se prova desastroso quando encontro diretamente com Dean
Yenin.

Ele me agarra pelo pescoço e me joga contra a parede de pedra


curva.

Instantaneamente, estou de volta ao banheiro de The Keep,


onde Dean me confrontou com um rosto raivoso de lágrimas.

Ele deve se lembrar da mesma coisa, porque sua mão aperta


minha garganta até que eu solto um grito estrangulado.

— O que você está fazendo aqui? — ele rosna, seu hálito


quente no meu rosto.

— Nada! — eu grito, tentando puxar sua mão do meu pescoço.


Eu também poderia tentar dobrar o aço. Seus dedos apenas cavam
mais, até que minha cabeça está girando e minhas pernas
desaparecem embaixo de mim.

— Por que você está aqui? Você está procurando por mim?

Eu não fiz nada, mas exatamente o oposto desde aquele dia no


banheiro. Eu evitei Dean Yenin como se ele fosse Medusa e seu
próprio olhar me transformaria em pedra.

— Não! — eu suspiro, minha cabeça começando a balançar


enquanto o mundo fica preto ao meu redor.
Dean afrouxa seu aperto o suficiente para que eu possa
respirar, mas ele ainda me mantém presa contra a parede com
seus braços como cabos de cada lado de mim.

— Por que você está aqui, então? Não minta para mim, porra.

— Eu só estava procurando por Miles! — eu minto


imediatamente, com toda a aparência de estar apavorada demais
para fazê-lo. — Eu tenho uma mensagem de Zoe.

— Uma mensagem? — Dean zomba. — Você é o rato de


recados deles?

Ele solta meu pescoço. Eu massageio minha garganta,


tentando engolir.

— Ela é minha irmã — eu digo. — Eles estão namorando, você


sabe.

— Claro que sei — diz Dean, revirando os olhos para a minha


idiotice. — A escola inteira sabe sobre a sua irmã vadia.

— Não a chame assim! — eu vocifero. Minha indignação é


minada pelo fato de que minha voz sai um pequeno guincho rouco.
Ainda assim, Dean se volta para mim com nova fúria, assustando-
me tanto que eu tropeço para trás e caio de bunda nos degraus.

— O que diabos você vai fazer sobre isso? — ele sibila, os


punhos cerrados ao lado do corpo.

No nível do solo, vejo minha abertura – pulo debaixo do braço


dele e corro escada abaixo. Dean não se preocupa em tentar me
pegar.
Meu coração realmente está disparado como um ratinho
enquanto corro desde a Octagon Tower até a Undercroft. Foi uma
fuga por pouco – e tenho muita sorte de que foi Dean em vez de
Rocco.

Na manhã do Quartum Bellum, estou nervosa demais para


comer. Tenho que ir tomar o café da manhã, no entanto, pois isso
é uma parte crucial do plano.

Sento-me à mesa de Zoe, junto com Miles, Leo e Anna, Ares,


Chay e Hedeon. Chay está parecendo mais alegre do que há
semanas, e ela começou a usar maquiagem novamente. Hedeon,
ao contrário, está tão taciturno como sempre. Ele pega
melancolicamente sua comida, apenas erguendo os olhos para
fitar seu irmão do outro lado da sala de jantar, que está comendo
meia dúzia de ovos e o dobro de bacon.

— Comam — Leo pede aos alunos do segundo ano. — Preciso


de todos vocês em boa forma para o desafio.

— Você vai comandar nosso café da manhã agora? — Anna o


provoca.

— Absolutamente, eu vou. Vou alimentá-los com o garfo se


isso os ajudar a ter um melhor desempenho.

— Não, obrigado — diz Ares.


— Tem certeza? — Leo fala, pegando um grande pedaço de
panqueca e fingindo voar até a boca de Ares.

— Nem mesmo... — Ares tenta dizer, e Leo enfia a panqueca


na sua boca.

Isso resulta em uma briga de dois minutos, durante a qual


Ares grita algo sobre panquecas não consensuais e Leo grita com
Ares para parar de desperdiçar sua força enquanto os dois tentam
lutar um com o outro para fora de seus assentos.

A luta é a distração perfeita. Pego minha faca, que, como todas


as facas em Kingmakers, é pesada e serrilhada, com cabo de osso
entalhado e lâmina de aço temperado. Parece ter cem anos. Deus,
espero que não esteja infectado com tétano.

Pateticamente, essa é a parte do plano que mais temo.

Sob a cobertura da violência de Leo e Ares, eu cortei a faca no


meu próprio braço em um golpe rápido. Os dentes serrilhados
rasgam minha carne e o sangue escorre pela minha saia xadrez
antes que eu possa puxar meu braço.

— Ai! — eu grito.

— Cat! — Zoe grita. — O que aconteceu?

— Minha faca escorregou — eu digo, fazendo beicinho com


meu lábio inferior. O dito lábio treme. Não estou atuando – meu
braço está doendo de verdade e estou com náuseas com o que fiz
a mim mesma. Eu pretendia fazer um corte feio, mas está
sangrando mais do que eu esperava e estou começando a me sentir
tonta.
Hedeon é o mais próximo. Ele pega um guardanapo de linho e
o segura no meu braço.

— É melhor você ir ver o Dr. Cross — diz ele. — Isso vai


precisar de pontos.

— Boa ideia — eu falo.

Eu fico de pé, cambaleando ligeiramente.

— Eu te levo! — Zoe oferece.

— Eu posso ir — diz Hedeon.

— Você quer que eu vá? — Zoe me pergunta, as sobrancelhas


franzidas de preocupação.

— Não — eu falo rapidamente. — Vocês vão em frente, eu vou


ficar bem. O desafio está prestes a começar.

— Depressa — Leo diz a Hedeon.

Anna dá um tapa no braço dele por ser imprudente.

— Precisamos dele! — Leo diz. — Mas também melhore Cat.


Sinto muito pelo seu braço.

— Vou mandá-lo de volta — prometo.

Preciso que Hedeon vá embora, e rapidamente, por isso estou


muito feliz em atender ao pedido de Leo.

Ainda assim, sou grata por poder apoiar-me em seu braço no


caminho para a enfermaria. Eu realmente estava com um pouco
de excesso de zelo com aquela faca. Eu tinha que me certificar de
que cortaria fundo o suficiente para pontos, mas exagerei.
— Pegou um pouco pesado naquelas panquecas — diz Hedeon,
olhando de soslaio para mim.

— Eu sei, eu sou desajeitada — eu digo, na minha melhor voz


triste de bebê.

Hedeon morde a ponta do lábio inferior, sem acreditar muito


em mim.

Tenho algumas coisas que gostaria de perguntar a ele em


troca, mas agora não é hora para investigações ou para hostilizá-
lo. Eu realmente preciso que ele me carregue. Hedeon está longe
de ser tão grande quanto seu irmão adotivo, mas ele ainda tem
1,80 metro e é forte. Eu meio que quero pedir a ele para me jogar
por cima do ombro porque, como Leo disse, eu quero conservar
minhas forças. Por motivos diferentes do Quartum Bellum.

— Acho que você sentirá falta de assistir ao desafio — diz


Hedeon.

— Vou apoiá-los em espírito a partir daqui — digo, acenando


com a cabeça em direção ao prédio longo e baixo da enfermaria.

— Você quer que eu entre? — Hedeon pergunta.

— Não. Obrigada mesmo assim. Pelo guardanapo e o braço.

Eu solto seu bíceps quente e substancial.

Hedeon me olha de soslaio como se quisesse dizer outra coisa.


Em vez disso, ele sacode a cabeça em um sinal de por nada e volta
em direção ao refeitório.

Dr. Cross abre a porta depois de uma batida.


— O desafio ainda nem começou! — ele grita de indignação. —
Como você já está ferida?

— Eu me cortei no café da manhã — falo, puxando o


guardanapo encharcado de sangue para mostrar a ele o dano.

— Cortou-se com o quê? Um sabre? — ele geme.

— As facas são afiadas.

— E os alunos são idiotas, aparentemente

— Isso não pode ser uma surpresa para você — eu digo, dando
a ele um sorriso cativante. — Há quanto tempo você trabalha aqui?

— Desde antes de você nascer, e provavelmente seus pais


também — Dr. Cross diz, revirando os olhos por trás dos óculos
grossos. — Bem, não é tão ruim. Eu posso costurar você. Você
pode ter uma cicatriz, mas melhor no braço do que no rosto.

Ele lava as mãos na pia de aço e começa a se movimentar,


juntando seus suprimentos.

— Sente-se na cama antes de cair — ele late.

— Estou um pouco tonta — admito. — Eu não tive a chance


de comer meu café da manhã. Você não acha que eu poderia tomar
um pouco de chá, talvez?

— Este não é o Four Seasons! — Dr. Cross vocifera. Mas, um


momento depois, ele amolece, dizendo: — Vou preparar o chá e
você pode bebê-lo depois que eu tiver costurado você. Mantenha a
pressão sobre a ferida enquanto eu estiver fora.
Ele volta para seu apartamento para buscar a chaleira e as
xícaras. Eu o ouço batendo em sua pequena cozinha, e aproveito
a oportunidade para pegar um par de cápsulas do bolso. Eu
mesmo as fiz, com uma dose cuidadosamente medida. Uma deve
servir, mas pretendo usar as duas apenas para ter certeza.

Dr. Cross retorna alguns minutos depois trazendo um bule e


duas canecas. As canecas estão lascadas e incomparáveis, mas o
chá já cheira bem.

— Eu não tenho creme — ele diz, rispidamente.

— Eu gosto simples.

— Deixe embeber um minuto — ele late, embora eu não tenha


tentado tocá-lo.

Dr. Cross enche uma seringa com lidocaína e injeta no meu


braço em vários lugares. Todo o braço está tão quente e latejante
que mal sinto a agulha cutucando as pontas da carne ferida.

— Vamos dar um minuto para que isso aconteça — diz ele. —


Você pode servir o chá agora.

Eu levanto a chaleira com meu braço ileso e sirvo duas


canecas cheias com cuidado.

— Esqueci o açúcar — Dr. Cross resmunga, voltando para sua


cozinha.

Eu coloco as duas cápsulas em sua caneca. O revestimento


transparente se dissolve instantaneamente no chá quente,
deixando apenas um pó branco fino no fundo da caneca que ele
não deve notar a menos que olhe com atenção. Espero
desesperadamente ter feito a dosagem certa – realmente não quero
machucar o médico.

Levanto a outra caneca, bebendo o chá, embora esteja


escaldante.

— É tão bom! — digo ao Dr. Cross quando ele retorna.

— Você não quer açúcar? Oh, isso mesmo, você disse simples.
Mais saudável para você, mas nunca me livrei totalmente do meu
gosto por doces.

Ele despeja três torrões em seu chá e mexe sem perceber algo
errado.

— Ah! — ele diz, depois de um gole satisfeito. — Vamos


começar, então.

Ele pousa a caneca para que possa pegar a agulha e a linha.


Eu viro meu rosto resolutamente em direção à janela. Eu não
quero assistir. Dr. Cross trabalha rapidamente, apesar de suas
mãos infectadas com artrite. Quando ele termina, a linha de
pontos no meu braço está mais limpa do que a ferida irregular
merecia.

— Pronto! — ele fala com satisfação. — Vou colocar um


curativo também. Mantenha a ferida limpa. Volte para uma nova
bandagem quando precisar. Os pontos se dissolvem por conta
própria em algumas semanas. Não mexa com isso, faça o que fizer.

— Posso descansar um pouco mais? — pergunto-lhe. — Ainda


estou tonta.
Ele olha para o relógio. — Se você quiser. Você perderá o
desafio, mas pode ser o melhor. Está muito quente hoje. Não é bom
se sentar ao sol.

Ele arruma tudo com rapidez e eficiência, depois lava as mãos


mais uma vez. Quando ele se vira para sair, eu digo: — Dr. Cross!
Você esqueceu seu chá!

— Eu esqueci — diz ele, levantando a caneca e tomando outro


gole. — Ainda quente.

Graças a Deus por isso.

Ele se senta na cama ao lado da minha para continuar


bebendo. Ele suga a cada gole, mas não é um som desagradável.
Na verdade, é estranhamente reconfortante.

— Qual é o nome de sua família? — ele exige, olhando para


mim através das lentes de seus óculos com uma polegada de
espessura.

— Romero — digo a ele.

Ele faz um som desdenhoso. — Nunca ouvi falar disso. Eu


quase não conheço mais nenhuma das famílias.

— A sua família é da máfia? — pergunto-lhe.

— Minha mãe era uma Umbra — diz ele, com orgulho. Quando
ele percebe que eu não sei o que isso significa, ele acrescenta,
impaciente: — Eles foram uma família fundadora, menina, bom
Deus, o que eles estão te ensinando lá fora?
Estou aliviada ao ver que ele terminou seu chá. Ainda mais
aliviada ao ver que suas piscadas estão se tornando mais longas e
mais lentas.

— Estou ficando muito velho para isso — diz ele


taciturnamente, olhando para os instrumentos lavados e
esterilizados que ainda não guardou.

— Por que você não descansa e eu coloco isso no armário? —


eu ofereço.

— Bem... vá em frente, então — diz ele, recostando-se no


travesseiro com os dedos entrelaçados sobre o peito. — Posso
muito bem descansar um pouco. Com certeza haverá outra lesão
ou duas antes do fim do dia.

Ele fecha os olhos, sua respiração já desacelerando.

Silenciosamente, destravo o gabinete com frente de vidro e


coloco os instrumentos de volta em seus lugares cuidadosamente
etiquetados.

Estou tentando me mover em silêncio, tentando nem mesmo


respirar.

Logo a boca do Dr. Cross fica aberta e roncos longos saem


ásperos.

Espero cinco, depois dez minutos agonizantes. Preciso ter


certeza de que ele está dormindo profundamente antes de sair.

A dose que dei a ele deve deixá-lo inconsciente por horas.

Algumas partes deste plano são bem-organizadas, mas outras


dependem do acaso. Foi muita sorte eu ser a única pessoa a
precisar dos serviços do Dr. Cross esta manhã, e eu gostaria de
mantê-lo assim. O Quartum Bellum é o fator complicador. É um
desafio raro que não resulta em pelo menos algumas lesões.

Preciso sair e voltar o mais rápido possível.

Também preciso chegar antes de Rocco ao nosso ponto de


encontro.

Rastejando na ponta dos pés, eu tranco a porta da enfermaria,


em seguida, abro a janela traseira larga o suficiente para eu sair
dançando. A pesada faixa de madeira range. Lanço um olhar
ansioso para o Dr. Cross adormecido, aliviada ao ver que ele não
mudou de posição de forma alguma. Seus roncos contínuos
acalmam meus temores de uma overdose.

Saio pelo espaço estreito e corro pelo terreno deserto,


enquanto do lado de fora dos portões do castelo ouço os gritos e
gemidos distantes do Quartum Bellum.

Eu verifico meu relógio. Tenho que subir na muralha cedo,


para o caso de Rocco tentar me pegar.

Eu escalo a escada dentro da parede, chegando às muralhas


onde Rocco Prince prendeu minha irmã tantos meses antes. Ele
pode já saber, simplesmente pelo nosso ponto de encontro, que as
notas se referem a Zoe. Espero que isso seja ainda mais um
incentivo para ele vir.

O maior risco neste momento é Rocco trazer um amigo. Ele


tem que vir sozinho. Do contrário, tudo que posso fazer é
abandonar o plano e fugir.

Estou adiantada. Rocco está atrasado. A hora marcada passa,


dez minutos e depois mais vinte minutos. O sol bate na minha
cabeça. Ainda posso ouvir os gritos contínuos do desafio, embora
pareçam mais fracos do que antes, o público exausto com o calor.

Se Rocco não chegar logo, terei que ir embora. Não posso


arriscar que alguém vá até a enfermaria e encontre a porta
trancada. Isso pode já ter acontecido. Deus, esse plano está cheio
de buracos. Eu estava desesperada, tentando encontrar um
momento em que minha irmã estivesse a salvo de suspeitas. Todos
os meus esquemas parecem infantis e destinados ao fracasso
quando os examino à dura luz da realidade.

Toco o laço solto da corda apoiada nas muralhas atrás de mim,


depois bato no pino de madeira preso na parede diretamente atrás
do meu calcanhar. O pino é ministrado e esticado. Ele poderia se
libertar a qualquer momento.

Não sou engenheira. Eu mal tive forças para configurar isso.


Eu não sei se isso vai funcionar. Não acho que Rocco virá. Deus
sou uma idiota. O que eu estava pensando?

Estou prestes a abandonar tudo. Prestes a virar e correr.


Então ouço um rangido distante que parece muito com uma porta.

Eu paro, congelada no lugar como um cervo, meus ouvidos se


esforçando para ouvir mais sons.

Eu ouço um barulho que pode ser passos na escada.

Em seguida, uma longa pausa.

Então, finalmente, uma figura esguia e escura sobe até a


parede.

Com todo o tempo que passei com gigantes como Miles, Leo e
Ares, às vezes esqueço que Rocco, embora de proporções
modestas, ainda é muito mais alto do que eu. Mais rápido também
e infinitamente mais forte. Ele caminha em minha direção com
velocidade assustadora, mandíbula baixa e olhos queimando
através de mim.

Ele não para até estarmos cara a cara, a poucos centímetros


de distância.

— Que decepção — diz ele, em tom de desgosto.

— Você trouxe meu dinheiro? — Eu esperava reunir uma


aparência de confiança, mas minha voz sempre me trai. Sai alta e
fraca, com uma rachadura no meio da frase.

— Dinheiro? — Rocco zomba e, pela única vez em minha


lembrança, ele ri. — Você pensou que eu traria dinheiro?

— Se você não trouxe... — eu começo.

— Se eu não trouxe então o quê? — ele sussurra, dando um


passo terrivelmente rápido em direção a mim, por isso tenho as
costas contra a parede. Tateio atrás de mim, procurando o laço de
corda que parece ter desaparecido.

— Eu vou te expor! — eu chio.

— Do que diabos você está falando? — Rocco grita, confusão


sendo a única coisa que o impede de me estrangular. — Eu só vim
aqui para ver que merda suicida sorrateira estava deixando
bilhetes nos meus bolsos! Eu iria gravar meu nome em seu peito.
Mas agora que sei que é você... — Ele puxa a faca do bolso mais
rápido do que um piscar de olhos e abre a lâmina. — Agora acho
que vou ter que pensar em algo mais criativo para a irmã mais
nova de Zoe...
— Espere! — eu choro, desesperadamente procurando por
tempo enquanto meus dedos perdem a corda. — Nós podemos
fazer um acordo!

— Tão divertido quanto isso seria — Rocco sibila, alcançando-


me com sua mão fina e pálida. — Eu odeio negócios...

Meus dedos se fecham em torno do laço e eu o agarro, jogando


o laço em volta do pulso de Rocco. Ele o encara, a boca aberta em
uma zombaria divertida.

— Que porra...

Eu chuto o pino o mais forte que posso, derrubando-o da


parede.

Eu só tinha uma chance para fazer isso. Rocco observa a corda


sibilar sobre as muralhas, a compreensão despontando em seu
rosto, bem no momento em que a alça aperta seu pulso,
empurrando-o para a frente.

Ele me ataca com sua faca, tentando enfiá-la no meu peito. Já


estou caindo de joelhos, jogando meus braços protetoramente
sobre minha cabeça.

Rocco deixa cair a faca, agarrando-me desesperadamente com


a mão livre enquanto é puxado para frente. Se eu fosse maior, isso
não funcionaria. Ele me agarraria e me puxaria junto com ele. Mas,
afinal, sou muito pequena. Eu me enrolo como um ratinho
enquanto Rocco é arrastado direto sobre minha cabeça, as pontas
dos sapatos roçando minha cabeça enquanto ele vira sobre o
muro, caindo com um grito de gelar o sangue.

A sacola de lona cheia de pedras o puxa para baixo. Pesa mais


de cem quilos, muito mais do que o próprio Rocco. Sem o pino que
a segura no lugar, ela mergulha direto para baixo e Rocco é
arrastado atrás dela, gritando o tempo todo. Não ouço o impacto,
mas ouço quando o grito para, o silêncio repentino e abrupto.

Eu não quero olhar para a borda.

No entanto, eu preciso.

Eu tenho que ter certeza absoluta.

Com as duas mãos tapando a boca e minhas pernas tremendo,


forço-me a ficar de pé. Eu espreito por cima das muralhas.

Eu vejo uma forma escura quebrada nas rochas abaixo. A


sacola de lona se partiu, espalhando suas pedras por toda parte.

Quero afundar de volta e me esconder aqui, tremendo, pelo


tempo que for preciso.

Mas preciso voltar para a enfermaria.

Nenhuma parte deste plano é mais difícil do que a jornada de


volta. Tenho que parar três ou quatro vezes, meu estômago
revirando. Felizmente, não há nada lá além de chá, então
mantenho a ânsia no estômago. Não posso deixar o vômito como
prova.

Não estou preocupada com impressões na corda. A juta áspera


não deve conter impressões digitais, e a maré está subindo. As
ondas baterão contra os restos mortais de Rocco Prince, lavando
fibras e cabelos. Talvez até lavando o corpo.

Não, é meu álibi que estou lutando para proteger. Tenho que
voltar para a enfermaria antes que alguém perceba que saí.
Eu corro pelo campus, invisível até onde posso dizer. Eu
deslizo ao redor da parte de trás do edifício, parando do lado de
fora da janela.

Por um momento, acho que ouço um som, algo quase


inaudível, um passo no gramado. Eu viro minha cabeça
descontroladamente, não vendo nada. Eu posso certamente ouvir
o Dr. Cross roncar.

Eu me empurro de volta pela abertura na janela, abaixando-a


o mais silenciosamente que posso. Então eu escorrego de volta
para debaixo dos cobertores da minha cama desarrumada.

Eu não acho que Dr. Cross se moveu um centímetro.

Eu o observo por vários minutos, meu coração ainda


palpitando no meu peito. Meu cérebro funciona ainda mais rápido.

Você é uma assassina. Uma assassina. Uma assassina.

Eu engulo esse pensamento.

Tive muita sorte por ter funcionado. Acho que funcionou,


espero que tenha funcionado... eu ainda posso ser pega. Há tantas
coisas que devo ter perdido. Eu não sou uma criminosa. Não sou
nem uma Spy, na verdade. Eu não sei que ilusão se apoderou de
mim, pensando que eu poderia fazer isso. Foi pura sorte se o fiz.

Eu verifico o relógio.

Então eu limpo minha garganta, alto. Quando isso não


funciona, eu saio da cama e sacudo o Dr. Cross.

— O que é? — ele resmunga, voltando abruptamente.


— Sinto muito, Dr. Cross. Só pensei que você não gostaria de
dormir muito. Já se passaram quinze minutos.

Uma mentira. Mais de uma hora se passou. Só posso esperar


que ele não esteja observando o tempo.

Ele olha para o relógio, turvo.

— Sim, certo — diz ele, balançando a cabeça. — Não quero


dormir muito. O desafio ainda está acontecendo?

— Não tenho ideia, — digo

— Como está o braço?

— Quase como novo — eu digo, mostrando a ele as bandagens


não marcadas.

— Bom. Ajude-me a trocar esses lençóis, então — ele fala,


indicando os dois leitos destruídos.

— Sim, farei isso.

Tiramos os lençóis e o Dr. Cross os leva para a lavanderia.


Enquanto ele está fora, ouço uma batida agressiva na porta. Meu
coração pula em minha boca. Corro para a porta, percebendo que
esqueci de destrancá-la. Eu rapidamente giro o ferrolho, abrindo a
porta para ver o rosto irritado e encharcado de suor de Dean Yenin.
Ele está segurando o braço esquerdo contra o corpo, o ombro em
um ângulo terrível.

— Chame o médico! — ele vocifera.

Eu corro para obedecer.


Dr. Cross corre de volta para a sala, avaliando Dean de
relance.

— Teremos que colocar isso de volta — diz ele. — Garota – qual


é o seu nome?

— Cat — eu gaguejo.

— Segure-o firme.

Não quero tocar em Dean Yenin. Mas eu salto para a ação, por
longos hábitos de obediência. Cautelosamente, seguro o braço bom
de Dean, o músculo duro como ferro sob a pele. Ele se vira para
olhar para mim, os olhos estreitos, uma expressão estranha no
rosto.

— Morda isso — diz o médico, enfiando uma tira de couro na


boca de Dean.

Dean morde forte quando Dr. Cross balança o braço ferido


para cima. Dean solta um grito estrangulado, sua mão boa
agarrando convulsivamente minha saia. Ele agarra minha coxa, e
eu nem sinto a pressão de sua mão, porque estou distraída com o
quão vulnerável Dean parece quando está com dor.

Ele me solta abruptamente. Eu faço o mesmo.

Dr. Cross manipula o braço de Dean com cautela, garantindo


que a articulação do ombro esteja de volta no encaixe.

— Melhor? — ele diz.

— Sim — Dean responde, seu rosto ainda pálido e suando.


— É melhor eu ir — eu falo. — Eu gostaria de pegar o final do
Quartum Bellum. Ainda está acontecendo?

— Está — Dean diz, seus olhos fixos nos meus.

— Bem... obrigada Dr. Cross — falo ao me aproximar da porta.

— Eu vou te seguir — diz Dean.

Não gosto nem um pouco disso, mas não posso exatamente


pará-lo.

Assim que saímos da enfermaria, digo: — Vou correr para


pegar o fim! — E corro para longe dele, com a sensação paranoica
de que vou ouvir seus passos me perseguindo.

Ele me deixa ir.

Ainda assim, estou muito nervosa para sequer olhar por cima
do ombro enquanto corro pelos portões para as arquibancadas
improvisadas, escondendo-me na multidão.
ZOE

Depois de várias horas extenuantes, quando nossas palmas


estão como um hambúrguer e parece que todos nós estamos
prestes a ter nossos braços puxados para fora de nossas órbitas
como Dean, os alunos do segundo ano finalmente conseguem
arrastar a linha de bandeiras para nossa zona final.

Estamos exaustos demais para até mesmo comemorar.

A multidão de alunos e professores assistindo está igualmente


cansada por estar sentada no sol escaldante e mal consegue reunir
uma resposta quando o professor Howell levanta o braço de Leo no
ar, declarando sua equipe a vencedora do Quartum Bellum pelo
segundo ano consecutivo.

Leo, pelo menos, mantém um pouco de entusiasmo.


Encharcado de suor e cambaleando, ele ainda abre um sorriso
brilhante, distribuindo socos e tapas nas costas de tantos
companheiros de equipe quanto ele pode alcançar, enquanto puxa
Anna com força contra o seu lado com o braço livre.

Miles me passa uma garrafa de água milagrosamente fria,


recuperada sabe Deus de onde.

— Podemos ser amigos de novo, agora que não somos mais


inimigos mortais? — Ele sorri.
Eu engulo a água e despejo sobre meu rosto em um alívio
abençoado.

— Serei sua melhor amiga para sempre só por essa água —


prometo a ele.

— Vou cobrar isso de você — Miles fala ao me pegar nos braços


e me beijar, sem dar a mínima para o quão imundos e suados nós
dois nos tornamos.

Não consigo superar o fato de que ele pode me beijar no campo


agora, sem se importar com quem pode nos ver.

Seus lábios queimam com o sol e o esforço. Sinto-me mole e


fraca em seus braços, e não apenas porque estou exausta.

— O que eu tenho que fazer para te afastar de todas essas


pessoas? — Miles rosna, colocando-me no chão gentilmente na
grama revirada, mas não me deixando ir.

— Eu adoraria que fugíssemos juntos — digo a ele. — Eu


deveria checar Cat, entretanto. Foi um corte feio esta manhã, não
sei por que as facas são tão afiadas neste lugar...

— Acho que ela está bem ali — diz Miles, acenando com a
cabeça em direção às arquibancadas, onde os alunos descem
letargicamente, juntando-se à multidão que está voltando para o
castelo.

Vejo Cat caminhando com sua colega de quarto Rakel. Cat


obviamente visitou o Dr. Cross porque seu antebraço esquerdo
está envolto em uma bandagem branca nova, mas ela ainda parece
pálida e trêmula.

Eu corro para me juntar a ela, Miles seguindo atrás de mim.


— Ei! Como vai?

— Estou bem — Cat diz, sua voz vacilante. — Como vocês


estão? A propósito, parabéns.

— Tem certeza de que está bem? — eu pergunto, afastando o


cabelo da bochecha de Cat para ver seu rosto com mais clareza. —
Você parece um pouco...

— Eu te disse, estou bem! — Cat grita e me afasta.

Não é do seu feitio brigar comigo, mas afinal, Cat cresceu


muito este ano. Eu não deveria tratá-la como um bebê,
especialmente na frente de sua colega de quarto. Eu sei que Cat
quer que Rakel a respeite.

E, de fato, as duas garotas parecem bastante amigáveis


quando passamos pelos portões de pedra do terreno da escola,
Rakel dizendo: — Espero que o almoço esteja pronto. Você vai vir
comer comigo, Cat, ou vai esperar que este pessoal tome banho?

— Eu preciso de um banho — Miles concorda — e é melhor eu


entrar lá antes que toda a água quente acabe.

— Não! Você deve comer primeiro — Cat diz, abruptamente. —


Devíamos ficar todos juntos.

— Claro, se você quiser — Miles dá de ombros. — Estou


morrendo de fome, porra.

— Você viu Dean na enfermaria? — eu pergunto a Cat. — Silas


Gray quase arrancou seu braço.

— Ele entrou bem quando eu estava saindo — Cat concorda.


— Ele...
— Por que a demora? — Miles diz, irritado com a multidão de
alunos obstruindo a passagem estreita entre o Armory e o
refeitório.

Os alunos à frente parecem estar olhando para algo. Com


certeza, à medida que avançamos, vejo um bando de pássaros
marinhos barulhentos circulando no ar acima do muro norte. Os
pássaros brancos voam e crocitam, mergulhando para brigar nas
rochas abaixo.

— O que eles estão fazendo? — Miles diz.

— Por que há tantos deles? — Rakel pergunta.

Cat olha para os pássaros, em silêncio.

Eu tenho uma estranha sensação de mau agouro. Talvez seja


porque eu assisti “The Birds” com minha Abuelita. Esse estranho
e agudo grito de gaivotas tem um som sinistro para mim desde
então.

— Quem sabe por que os pássaros fazem o que fazem — digo.

— Deve haver algo lá embaixo — Miles fala.

— Quem se importa, vamos comer — eu digo com desdém.

Não quero pensar sobre aquele penhasco em particular, pois


eu mesma tive uma visão muito próxima dele.

Entendendo-me imediatamente, Miles pega minha mão e se


vira em direção ao refeitório, dizendo: — Espero que eles tenham
pão fresco.

— Não estou me sentindo bem — Cat fala em voz baixa.


— Mais uma razão para comer — Miles diz, pegando o braço
de Cat também.

Rakel ainda está olhando para o muro.

— Alguém subiu — diz ela.

Irresistivelmente, eu volto. Alguém realmente escalou a escada


e agora está curvado sobre o parapeito, espiando para baixo. Com
a silhueta do sol, não posso ter certeza de quem é, mas pela
estrutura esguia e cabelo não cortado, acho que pode ser aquele
Spy veterano – Saul-alguma coisa.

Ele grita para os alunos na base da parede.

— O que ele está dizendo? — eu pergunto a Miles, incapaz de


ouvir.

— Eu acho que... acho que ele disse que tem alguém lá


embaixo — diz Miles.

Cat se vira e vomita na grama.


MILES

O corpo na base do muro é Rocco Prince.

O boato circula pela escola muito antes que os professores o


confirmem.

E embora esta informação não seja compartilhada


publicamente, um dos tripulantes de solo me diz que Rocco foi
encontrado com um laço em seu pulso. Na outra ponta da corda,
uma sacola de lona cheia de pedras.

— Um laço em volta do pulso? — eu pergunto, confuso.

— Isso mesmo — o tripulante diz, balançando a cabeça


severamente. — Essa merda vai dar início a uma nova rodada de
fodidas dores de cabeça.

Os alunos ficam confinados nos dormitórios enquanto a morte


é investigada. A equipe berra ordens para nós com um novo nível
de tensão. Esta é a primeira vez na história da Kingmakers que
dois estudantes foram mortos em questão de meses.

Nada pode impedir a especulação.

— Acho que ele se matou — Simon Fowler me diz. — Ele


sempre foi maluco.
Não acredito por dois segundos que Rocco pularia
voluntariamente daquela parede.

Ainda assim, sinto um imenso alívio sabendo que ele está


morto. O único problema é a suspeita fadada a cair na minha
cabeça.

Pela primeira vez na minha vida, sou realmente inocente. Mas


ninguém vai acreditar nisso.

Até Simon parece desconfiado.

— Se eu não tivesse ficado ao seu lado o dia todo, talvez


pensasse que você o empurrou... — Ele ri, olhando-me de soslaio.

— Eu gostaria de poder apertar a mão do cara que fez isso —


eu respondo.

Suponho que seja possível que Rocco tenha se amarrado a um


saco de pedras e as empurrado das muralhas porque não teve
coragem de pular. Mas eu simplesmente não acredito nisso.

O que significa que há um assassino no campus. Alguém que


odiava Rocco tanto quanto eu.

— Talvez tenha sido Dax — Simon diz. — Ele estava muito


chateado com aquela semana na cela. Para não mencionar Rocco
destruindo seu quarto.

— Continue, Horatio63. — Eu rio. — Você tem um monte de


teorias.

63
Personagem da tragédia de William Shakespeare, Hamlet.
Simon sorri, sem se incomodar com o sarcasmo. — Não é difícil
fazer uma lista de pessoas que odiavam Rocco Prince.

Isso é verdade. Mas acho o momento suspeito.

Inconvenientemente suspeito.

Sou levado ao gabinete do Chancellor imediatamente.

Ele está sentado atrás de sua escrivaninha antiga e cheia de


cicatrizes, as mãos cruzadas à sua frente. Eu finjo olhar ao redor
de seu escritório pela primeira vez, como se eu não tivesse passado
aqui apenas algumas semanas antes. Suas chaves de prata estão
de volta no gancho onde eu as devolvi.

— Bela configuração — digo a Luther Hugo, acenando com a


cabeça em direção a sua coleção de fotos. — É o primeiro-ministro
britânico apertando sua mão?

Hugo me ignora. Ele me observa com aqueles olhos de grafite,


sob as sobrancelhas pretas salpicadas de prata. O professor
Penmark está à sua esquerda e o professor Graves à sua direita.
Não são meus dois maiores fãs, infelizmente.

— Você esteve envolvido na morte de Rocco Prince? — Hugo


pergunta, sem rodeios.

— Eu acho que foram principalmente as pedras que fizeram


isso — eu falo. — E um pouco a queda.

— Agora seria um bom momento para perder a insolência —


diz Hugo, no tipo de voz que parece um conjunto de incisivos
fechando em torno da base do pescoço. — A menos que você queira
passar mais uma semana em uma cela, você responderá minhas
perguntas completa e honestamente.
— Eu entendo por que você acha que fui eu — digo a ele,
olhando-o nos olhos. — Mas se você não soube, eu já fiz um acordo
com o pai de Zoe, e os Princes também. Rocco não era mais um
problema para mim. Sem mencionar que eu estava competindo no
Quartum Bellum enquanto Rocco dava seu mergulho de cisne.

— Você espera que acreditemos nisso? — Professor Penmark


estala, suas mãos brancas ossudas se contraindo. Ele parece
irritado com essa linha de questionamento relativamente
civilizada. Aposto que ele gostaria de ter me amarrado a uma mesa
com toda a gama de seus implementos desagradáveis dispostos
para que ele pudesse me ‘persuadir’ a cooperar.

— Eu não acho que você opera com base na ‘crença’ aqui —


eu falo. — Vejamos os fatos: não há provas de que matei Rocco.
Porque eu não matei.

— Então quem foi? — Professor Graves exige, em seu jeito


pomposo de sempre. — Esclareça-nos.

— Metade da escola o odiava — eu digo, encolhendo os


ombros. — Ou talvez ele mesmo tenha feito isso. Ele era uma
espécie de vadiazinha e rabugento, afinal.

Luther Hugo não tirou os olhos do meu rosto, nem por um


segundo.

Seus olhos negros e brilhantes são como pedras preciosas não


cortadas, cravadas profundamente nas órbitas.

— A verdade é sua única chance de misericórdia — diz ele,


baixinho.

Uma mentira absoluta. Não há chance de misericórdia.


— A verdade o libertará — digo a ele, não permitindo que uma
pitada de nervosismo apareça. — Eu nunca toquei nele, e não sei
quem o fez.

Essa afirmação é noventa e nove por cento precisa.

O um por cento é a advertência que eu nunca compartilharia


com o Chancellor ou com os professores.

Não sei quem matou Rocco..., mas eu tenho uma suspeita


improvável e selvagem.

Tediosamente, tenho de repetir minha conversa com o


Chancellor naquela noite, quando Dieter Prince me telefona.

Ele não parece um homem que acabou de perder seu filho.

Ele soa como um homem que sofreu uma pequena irritação a


par de uma inesperada conta de impostos ou a perda de seus tacos
de golfe favoritos.

— Você esteve envolvido na morte de Rocco? — ele exige, no


momento em que pego o telefone.

— Não — eu digo. — Fiquei muito feliz com o nosso acordo.


Rocco não disse uma palavra a Zoe ou a mim. Eu confiei que ele
pretendia cumprir o acordo.
Não é totalmente verdade... eu não confiaria em Rocco para
lamber um selo por mim, mas não preciso entrar nisso com Dieter
Prince.

— Suponho que o Chancellor lhe disse que eu estava à vista


de toda a escola no momento do incidente.

— Essa foi a impressão dele — Prince admite, rigidamente.

— Isso é um fato — eu repito. — Eu tenho centenas de


testemunhas.

— Você poderia ter contratado alguém para fazer isso.

— Quem? — Estou quase rindo. — A escola inteira estava lá.

Dieter fica em silêncio por um minuto, pensando.

Percebo que ele não correu para Kingmakers para recuperar o


corpo de seu filho.

E o dinheiro ainda está se acumulando na conta conjunta. Ele


está prestes a receber sua primeira infusão de dólares americanos
dos Malina. Ele quer isso. Eu sei que ele quer.

— Então, nosso acordo continua conforme combinado? — ele


diz, após uma longa pausa.

— Eu certamente espero que sim.

— Assim seja — ele fala rapidamente, encerrando a ligação.


Zoe está atordoada uma semana após a morte de Rocco.

Eu sei que ela está profundamente aliviada. Mas, ao mesmo


tempo, ela parece incapaz de comemorar.

— Eu simplesmente não consigo acreditar — ela diz,


balançando a cabeça. — Quase desejo ter visto o corpo. Parece
impossível...

— Ele está definitivamente morto — eu asseguro a ela. — O


Chancellor não estaria me dando tanta merda de outra forma.

— Foda-se Rocco, estou emocionada — Chay diz ferozmente,


espetando uma batata frita com o garfo enquanto tomamos o café
da manhã no refeitório. — Gostaria de ter tempo de dar uma festa
para comemorar antes do fim das aulas.

Cat está quieta, mexendo em sua comida.

— Você vai para Chicago conosco? — eu pergunto a ela.

Ela hesita. — Oh... não sei. Tenho certeza de que vocês dois
preferem ficar sozinhos...

— Não, nós não preferimos — eu digo. — Zoe precisa de


companhia, assim ela não tem medo de conhecer minha família.
Eles são muito intensos, eu não vou mentir, mas eles vão amar
vocês, garotas. Eu vou te avisar, Caleb vai dar em cima de você,
ele não será capaz de se ajudar.

Cat enrubesce, contorcendo-se na cadeira.


Zoe sorri para mim de forma encorajadora. Eu sei que ela
realmente quer que Cat vá.

— Podemos ir ver um jogo dos Cubs... e tem essa padaria com


bolo de coco roxo...

— Eu gosto de coco — Cat diz, animando-se um pouco.

Cat parecia ainda mais abalada com a morte de Rocco do que


a própria Zoe.

Sei que para essas garotas Rocco era um bicho-papão, um


terror quase tão poderoso em sua ausência quanto em sua
presença. Ele era uma grande fonte de estresse na minha vida
também.

Mas não consigo deixar de pensar...

Poucas pessoas estavam fora da minha vista quando Rocco foi


morto.

Uma dessas pessoas era Cat.

Ela tinha todos os motivos do mundo para querer Rocco morto.


Como eu, ela deve ter alimentado a suspeita de que Rocco ainda
era perigoso para Zoe. Que ele não desistiria tão facilmente.

Eu havia quebrado o contrato de casamento de Zoe, mas


nunca pensei por um segundo que Rocco havia deixado de ser uma
ameaça. Ele era um problema não resolvido que continuava
pairando sobre minha cabeça. Eu sabia que teria que lidar com ele
eventualmente.

Agora ele se foi. Eliminado da face da terra.


E estou feliz, muito feliz.

Mas não posso deixar de me perguntar a quem devo agradecer


por isso.

Cat estava na enfermaria com o Dr. Cross. Hedeon a


acompanhou até lá, e Dean Yenin a seguiu de volta. Então,
tecnicamente, ela nunca esteve sozinha. Seu álibi é quase tão
sólido quanto o meu.

Ainda assim, eu me pergunto...

Eu olho para ela sentada lá, pequena e tímida, e tão


fisicamente imponente quanto um cordeiro recém-nascido.

Mesmo que Cat tenha percorrido um longo caminho este ano,


a ideia de que ela poderia matar Rocco Prince é risível. Eu me sinto
ridículo, mesmo considerando isso.

No final do dia, não importa quem fez isso.

Ele está morto, porra. E ele não vai voltar.


CAT

A semana após a morte de Rocco é uma névoa de paranoia


constante, onde tenho certeza de que a qualquer momento sentirei
mãos se fechando em meus braços e serei arrancada da minha
cadeira, arrastada para a Prison Tower pelos asseclas do
Chancellor...

Mesmo quando estou deitada sem dormir em minha cama


estreita na caverna sem sol da Undercroft, espero ouvir a porta ser
arrombada a qualquer momento.

Mas isso nunca acontece.

Ninguém vem me prender.

Ninguém fala comigo.

Miles é interrogado pelo Chancellor. Isso também faz meu


estômago revirar de novo, com medo de que eles o acorrentem e
terei de admitir que fui eu, não ele, quem assassinou Rocco Prince.

Mas depois de uma semana de fofocas e rumores incessantes,


em que alunos e professores parecem não falar de outra coisa, a
tempestade desaparece tão rápido quanto soprava. Os Princes
enviam um tenente para recuperar o corpo. E todo mundo parece
esquecer que Rocco existiu.
Dax e Jasper assistem às aulas como de costume, os rostos
impassíveis, como se eles não tivessem acabado de perder dois de
seus supostos melhores amigos.

Não há consequência ou punição para ninguém.

— Eles não querem admitir que não conseguem encontrar o


assassino — Chay diz, durante o almoço. — Eles só querem que
tudo desapareça.

— Talvez Rocco realmente tenha se matado — diz Ares.

— Eu duvido — Zoe balança a cabeça.

— Só está passando porque os Princes não se importam — diz


Miles. — Ele era o herdeiro deles, mas eles não o amavam. Como
eles poderiam?

— Ainda... — Zoe diz. — Seu único filho...

— Eles poderiam ter feito um alarido maior há um ano — diz


Miles. — Dieter Prince está distraído.

— Ele é um sociopata como Rocco — Zoe diz, friamente. — Ele


não sente nada.

— Isso é uma coisa boa — Miles diz a ela, gentilmente. — Caso


contrário, isso poderia ter sido um problema maior. Da forma como
está... nós temos sorte.

Ele lança um rápido olhar em minha direção.

Duas vezes eu já vi Miles olhando para mim como se ele


pudesse suspeitar do meu segredo.

No passado, eu teria revelado a verdade imediatamente.


Mas agora eu tenho a cara de pôquer definitiva.

Estou entorpecida por dentro, vazia e sem emoção.

Eu matei alguém.

Eu sou uma assassina.

Eu sei que Rocco era horrível. Eu sei que ele queria machucar
minha irmã. Eu sei que ele tinha que morrer.

E ainda assim... eu me sinto culpada pra caralho.

Eu não posso esmagar isso.

Eu não posso fazer parar.

Por todas as coisas que me apavoraram sobre meu plano – a


possibilidade de Rocco me torturar ou me matar, a chance de eu
ser pega e executada, ou apenas o fato de que poderia não
funcionar, de que eu falharia e Rocco ainda estaria livre para se
vingar da minha irmã...

A única coisa que nunca considerei é o quão horrível eu


poderia me sentir depois.

Eu fiz algo irrevogável.

Aconteça o que acontecer para o resto da minha vida... estou


diferente agora. Não sou mais inocente. Não sou mais tão boa.

Eu nunca poderei voltar atrás.

E eu não voltaria atrás – essa é a parte mais louca de todas.


Eu não me arrependo. Minha irmã está segura e feliz. É o que eu
queria.
Mas mesmo esse fato só serve para provar que sou realmente
uma pessoa má.

Eu me conheço de uma maneira que nunca conheci antes.

Eu matei sem hesitar. E eu faria isso de novo.

Graças há Deus o ano letivo acabou. Eu me atrapalhei com


meus exames finais, distraída e com a cabeça nebulosa. Mesmo
assim, passei por todos eles, retendo o suficiente das informações
arduamente conquistadas que aprendi este ano.

Agora, permiti que Miles e Zoe me convencessem a


acompanhá-los a Chicago, pelo menos por algumas semanas. Vou
ver a América pela primeira vez.

Não consigo sentir nenhuma emoção tão agradável quanto


excitação. Mas ficarei aliviada por estar longe deste campus, onde
não terei que passar por aquele pedaço de parede onde cometi o
crime final.

Espero que um longo verão alivie a dor e eu consiga voltar aqui


no outono, fingindo que nada aconteceu.

Ajuda que ninguém queira falar sobre Rocco Prince. Em


setembro, eles podem realmente tê-lo esquecido por completo.

As carroças vieram levar nossas malas e nos levar ao porto.


Todos os alunos pegam o mesmo navio de volta para Dubrovnik,
então estarei com Zoe desta vez. Vamos voar direto para Chicago.
Estou nervosa para conhecer a família Griffin, mas sei que
Miles vai nos deixar confortáveis, e que Zoe não pode deixar de
encantá-los com sua inteligência e beleza. Serei sua sombra
tranquila como sempre, segura ao seu lado.

A Undercroft está quase deserta, quase todos tendo carregado


sua bagagem esta manhã, então passaram o resto do tempo rindo,
conversando e lutando sob o sol de verão.

Estou demorando aqui porque quero ficar sozinha. Eu quero


me sentar na escuridão fria e seca um pouco mais.

Peguei meu caderno de desenho, desempacotado, e estou


tentando fazer um desenho de uma garota sentada na beira do
poço no pátio comum – o poço próximo ao refeitório que fornece a
água mais fria e deliciosa da ilha.

Eu amo aquele poço manchado de musgo. Ainda assim, em


meu desenho, parece sinistro e escuro, como um olho vazio que
desce para o centro da terra.

Eu ouço um ruído de metal na fechadura. Acho que é Rakel


virando a chave dela. Ela deve ter esquecido algo em sua cômoda.

Em vez disso, a porta se abre e Dean Yenin entra.

Seus ombros largos preenchem o batente da porta, sua cabeça


apenas uma polegada abaixo do lintel64. Sua pele clara e cabelo
parecem brancos como cinzas na penumbra. Como sempre, sua
imagem está perfeitamente organizada – calça passada, camisa
imaculada e branca como a neve, mãos limpas como mármore. A

64
Verga de materiais diversos (madeira, pedra, concreto etc.) que constitui o acabamento superior de portas e
janelas.
única cor nele são aqueles olhos azul-violeta, lindos de uma forma
que só as coisas mortais podem ser.

Eu não respirei desde que ele entrou no meu quarto.

Estou congelada na cama, meu lápis caindo dormente dos


meus dedos. Ele rola para longe de mim pelo chão. Nenhum de nós
olha para ver onde cai.

Alcançando atrás dele, Dean fecha a porta com um leve estalo.

Esse movimento, mais do que tudo, me diz que suas intenções


não são boas.

Ele caminha em minha direção, lento e deliberado.

Eu levanto-me para alcançá-lo. Mesmo na minha altura


máxima, o topo da minha cabeça cai bem abaixo de seu queixo.
Estou olhando para seu peito, onde os músculos duros tencionam
os botões de sua camisa. Tenho que inclinar minha cabeça
totalmente para trás para olhá-lo no rosto.

Dean tem uma beleza terrível de perto. Ele é o tipo de monstro


que pode matar você só de olhar para ele.

Graciosamente, ele se abaixa para pegar meu bloco de


desenho. Ele examina o desenho, cílios escuros descendo
enquanto ele olha para cada parte dele.

— Isso me lembra Timoclea — diz ele. — Você conhece?

Suas palavras são uma geada fria que varre meu corpo,
congelando o sangue em minhas veias, parando meu coração.
A artista barroca Elisabetta Sirani pintou uma cena recontada
por Plutarco em sua biografia de Alexandre, o Grande.

Quando as forças de Alexandre tomaram a cidade de Tebas,


um capitão trácio estuprou Timoclea. Após o ataque, ele perguntou
se ela sabia de algum dinheiro escondido. Dizendo que sim,
Timoclea o conduziu até seu jardim, onde prometeu que ouro
poderia ser encontrado dentro de seu poço. Quando ele se abaixou
para olhar, ela o empurrou e jogou pedras em sua cabeça até que
ele morresse.

Eu olho nos olhos de Dean e vejo que ele segura minha vida
em suas mãos.

Com uma ternura terrível, ele acaricia minha bochecha com o


dedo.

— Eu sei o que você fez — ele diz.

Eu não consigo falar. Não consigo nem piscar. Tudo o que


posso fazer é tremer.

— Eu vi a coisa mais estranha enquanto caminhava para a


enfermaria. Você. Escalando uma janela.

Eu balanço minha cabeça, em silêncio, horrorizada.

— Sim — Dean me assegura, seus olhos fixos nos meus. — Eu


vi você. Você o atraiu para aquele muro. E você o empurrou.

Ele sabe. Ele sabe. Ele sabe.

— Alexandre perdoou Timoclea — diz Dean. — Mas ninguém


vai te perdoar.
Minha língua está gelada, mas preciso falar.

— Por favor... — eu sussurro.

— Você quer que eu guarde seu segredo? — Dean me


pergunta, sua voz suave como uma carícia.

Eu concordo. Eu cairia de joelhos diante dele para implorar,


se eu fosse capaz de me mover.

— Eu não vou contar — Dean promete. — Mas entenda isso...


eu possuo você agora. Quando voltarmos para a escola, você é
minha. Minha serva. Minha escrava. Enquanto eu quiser você.

Dean segura meu queixo com a mão, pressionando o polegar


contra meus lábios. Selando-me para o silêncio.

Então ele me deixa lá, mergulhada em um pavor mais


profundo do que qualquer um que eu já conheci.
ZOE

Chicago

É o aniversário de Sabrina Gallo.

Comemoramos no Shedd Aquarium, onde as mesas de jantar


são dispostas em torno de janelas de vidro do chão ao teto com
vista para os tubarões, arraias e tartarugas flutuando em seu
mundo subaquático. A luz ondulante azul clara faz com que pareça
que estamos todos debaixo d'água também, especialmente os
casais circulando sonhadores na pista de dança.

Estou feliz por ter conhecido a maioria da família de Miles


separadamente neste ponto, porque eles são uma multidão
bastante intimidante. Os Gallos são todos lindos, com a pele
castanha, cachos grossos e escuros e olhos cinza surreais que
passei a conhecer e adorar em Miles. Isso, pelo menos, me dá uma
sensação de familiaridade, embora cada um deles seja diferente o
suficiente em suas personalidades afiadas e provocadoras para me
manter alerta.

Ninguém é mais bonito do que a própria Sabrina Gallo. Nunca


vi uma garota tão exótica e deslumbrante. Ela está inteiramente
em seu ambiente recebendo sua pilha de presentes de membros
da família e os beijos e votos de felicidades de amigos.

Uma rotação contínua de meninos a orbita, lutando por sua


atenção.

— Quantos anos ela está fazendo? — eu pergunto a Miles.

— Dezessete. Mais um ano até que ela vá para a Kingmakers.

— Já posso ver que ela será popular.

— Ela vai ser um problema, melhor dizendo — Miles balança


a cabeça. — Sabrina causa mais problemas do que o resto dos
meus primos juntos.

Até mesmo o tio de Miles, Dante, veio de Paris com seus três
filhos e sua esposa supermodelo, de quem me lembro das revistas
e outdoors da minha juventude. Dante é tão grande que faz Silas
Grey parecer pequeno em comparação, e seu filho mais velho,
Henry, é sua imagem no espelho, apenas um pouco mais escuro,
com um rosto ligeiramente mais gentil. Enquanto Dante é
assustador, Henry tem uma suavidade em seus olhos castanhos
profundos e lábios carnudos que tem quase tantos olhos femininos
voltados em sua direção quanto o bando de homens circulando
Sabrina.

Os Griffin também compareceram à festa, incluindo a elegante


Riona Griffin com seu lindo marido fazendeiro e seus quatro filhos
ruivos. Os filhos se agrupam em torno de uma mesa no canto,
jogando algum tipo de jogo de cartas que evoca muitas risadas,
mas também momentos de tensão em que parece que todos os
quatro corpulentos garotos do interior podem irromper em uma
briga que destruiria a mesa e as cadeiras como acendendo sob sua
massa combinada.
Anna e Leo dançam juntos, Anna parecendo particularmente
etérea enquanto ela gira no eixo da mão de Leo, uma enorme arraia
flutuando diretamente atrás dela como se elas estivessem
envolvidas em algum tipo de pas de deux65 entre espécies.

Os pais de Leo estão sentados na mesa mais próxima da pista


de dança, dando pedaços de bolo para a irmã mais nova de Leo,
Natasha, que em breve estará comemorando seu primeiro
aniversário. A bebê surpresa parece ter revitalizado seus pais.
Enquanto eles riem e fazem cócegas na bebê risonha e manchada
de glacê, Sebastian e Yelena parecem pouco mais velhos do que
Leo e Anna.

Os pais de Miles conversam profundamente em sua própria


mesa, os joelhos juntos e as cabeças quase se tocando enquanto
Aida conta ao marido uma anedota animada com muitos gestos de
mãos. Callum Griffin a escuta atentamente, ocasionalmente rindo,
e sempre mantendo seus olhos azuis de aço fixos em seu rosto.

Fiquei apavorada em conhecê-los. Eu mal pude respirar


quando o táxi parou em sua casa. Então Aida veio correndo para
o gramado, descalça e vestindo um short jeans cortado, e
imediatamente me puxou para o abraço mais longo e caloroso da
minha vida. Ela começou a me bombardear com perguntas,
provocando Miles e reclamando de Cat e de mim, até eu ficar muito
distraída para ficar nervosa.

O pai de Miles, Callum, é educado e gentil, mas assustador em


sua intensidade. Ele tem aquele olhar analítico que parece quebrar
você em pedaços, registrando cada pedacinho seu. Eu só consegui
manter minha compostura porque já tinha encontrado isso antes
no próprio Miles.

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Uma dança para duas pessoas, normalmente um homem e uma mulher.
Também como seu filho, Callum é incrivelmente dedicado às
pessoas que ama, começando com sua esposa e passando por
Miles, Caleb e Noelle. Ele tem um grande interesse em cada um de
seus filhos, até mesmo na pequena Noelle, que todas as noites tem
adicionado ao seu modelo em escala da Helix Bridge66 com a ajuda
de seu pai.

A casa deles está sempre cheia de projetos em andamento,


conversas, risos e comida deliciosa. Aida traz iguarias de toda a
cidade de Chicago para provarmos, caso tenhamos perdido alguma
durante os passeios.

É estranho como seu prisma de vidro moderno pode ser tão


confortável e acolhedor, enquanto a villa do meu pai sempre
pareceu mais um hotel alugado.

Daniela dirige a villa como um capataz austero, enquanto Aida


é tão calorosa e irreverente que é impossível não se sentir em casa
com ela. Como Miles, ela tem um senso de humor perverso com
um coração gentil por baixo.

Nas poucas semanas que estivemos em Chicago, ela montou


uma dúzia de atividades diferentes para Miles e eu, muitas vezes
enviando Caleb junto com Cat para lhe fazer companhia. Caleb é
um pouco mais jovem que Cat e pode ser intenso e agressivo, mas
ele leva seu papel como guia turístico muito a sério, tentando
mostrar a Cat cada centímetro da cidade que ele acha que pode
ser do interesse dela.

Cat é fácil de agradar. Ela mergulhou em cada museu,


monumento e local histórico. Ela até concordou em se juntar a nós
em um passeio de helicóptero pela cidade, embora eu saiba que

66
É uma ponte de 280 m para pedestres que liga o Marina Centre com o Marina South na área de Marina Bay
em Cingapura.
ela não adora voar em nenhum tipo de aeronave, muito menos em
uma que possa voar entre arranha-céus.

No momento ela está dançando com Dario Gallo, o caçula de


Dante, que tem uma constituição mais esguia que seu pai e irmão,
e nenhuma habilidade insignificante para girar Cat. Cat está com
as bochechas rosadas e sem fôlego, e muito bonita no vestido azul
brilhante que compramos esta tarde na Magnificent Mile.

Comprei um vestido novo também, verde jade e sem costas,


algo que nunca teria ousado usar antes. Ele me abraça como uma
segunda pele e mantém os olhos de Miles fixos em mim
constantemente, o que é tudo que eu poderia querer em um
vestido.

— Quer ver o resto do aquário? — Miles me pergunta.

Nero e Camille Gallo alugaram todo o lugar para a festa da


filha. As longas galerias de vidro estão quase totalmente vazias, já
que a maioria dos convidados parece preferir comer, beber e
dançar a ver os peixes.

— Adoraria caminhar com você — digo.

Miles pega meu braço. Caminhamos pelo longo túnel


subaquático que permite que enguias e tubarões nadem
diretamente sobre nossas cabeças.

A luz deixa nossa pele ligeiramente azul, e traz notas de


topázio nos olhos de Miles. Ele parece extraordinariamente bonito
em seu smoking estiloso, com o colarinho branco e a gravata
borboleta preta destacando as linhas masculinas de sua
mandíbula.
Ele me puxa com força contra ele sob a luz flutuante aquosa,
beijando-me até minha cabeça girar. Sua boca é quente e macia e
tem um gosto agradável de champanhe.

— Quero falar com você sobre uma coisa — diz ele.

— O que?

— Eu quero começar isso dizendo que você não tem que


concordar. Não vou ficar com raiva se você não gostar dessa ideia.

— Você não vai tentar me convencer? — Eu rio. — Vou


acreditar nisso quando vir.

— Bem, eu não disse isso. — Miles sorri. Ele respira fundo,


uma sobrancelha escura erguida. — Mandei seu roteiro para um
amigo de um amigo em Los Angeles. Ele está interessado.

— O quê? — eu suspiro.

— Ele é uma espécie de agente – e ele próprio trabalha como


roteirista. Ele gostou da sua história. Ele acha que você deveria
tentar escrever uma versão que pudesse ser filmada como um
piloto de TV.

— Miles, você não me disse que ia fazer isso!

— Eu estava apenas testando.

Eu olho para ele de perto, para seus ombros definidos e sua


expressão focada. Eu conheço Miles bem o suficiente para
adivinhar aonde isso vai levar.

— Eu sei o que você está fazendo.

Miles tenta esconder seu sorriso. — Oh, sim? O que?


— Você quer que eu vá para LA com você.

Miles ri. — Você está me descobrindo, sua atrevida


enganadora.

Ele pega minhas duas mãos e as leva aos lábios, mantendo


aqueles olhos acinzentados fixos em mim.

— Eu não me importo com a formatura — diz ele. — Eu já


consegui o que queria da Kingmakers. E não acho que você esteja
tão apegada ao lugar, agora que não está ganhando tempo no
noivado. Eu poderia ficar mais um ano, mas depois de me formar,
você ainda teria um ano inteiro pela frente. Eu não quero ficar
longe de você.

Eu considero o que ele está dizendo, meu cérebro girando.

É verdade – eu não quero me separar de Miles quando ele


terminar a escola antes de mim. Isso é mais um ano, mas eu
entendo o que ele está dizendo: se já sabemos que queremos
começar a construir uma vida juntos, então o que estamos
esperando?

Ainda assim, eu hesito.

Miles já sabe o motivo, não preciso explicar.

— Você não quer abandonar Cat — ele diz.

Eu concordo. A segurança e o conforto da minha irmã


significam muito para mim. Eu odeio a ideia de deixá-la em
qualquer lugar sozinha. Especialmente em algum lugar tão
perigoso e imprevisível como a Kingmakers.
— Rocco não está mais lá — diz Miles. — Ela ainda terá Anna,
Leo e Chay para ficar de olho nela. E não sei se você notou..., mas
Cat mudou muito. Ela não é mais uma criança – ela pode cuidar
de si mesma.

Dói-me ouvir isso, embora saiba que é verdade e queira que a


minha irmã seja confiante e independente. Miles está certo – Cat
cresceu aos trancos e barrancos. Eu não acho que ela não goste
mais da Kingmakers, ou pelo menos, isso se tornou um desafio em
vez de tortura.

— Eu teria que conversar com ela... — falo, hesitante.

— Claro — Miles responde, com um brilho de triunfo incipiente


em seus olhos. Ele sabe que está trabalhando em mim. Ele sabe
que a ideia de nós dois sob o sol quente da Califórnia, na brisa do
mar sob as palmeiras, é incrivelmente atraente para mim. Sempre
quis ver LA. Sempre quis estar no lugar onde todos os meus filmes
favoritos foram feitos.

— Há outro problema — eu digo, estremecendo. — Eu não


tenho nenhum dinheiro, Miles. Gastei a mesada de dois meses
neste vestido. Não tenho economias. E, infelizmente, você teve que
limpar todas as suas para me ajudar.

Eu mordo meu lábio, sentindo-me mal por dentro. Sou


extremamente grata pelo que Miles fez por mim, mas nunca
consegui me livrar da culpa de custar a ele todo esse dinheiro,
todos aqueles anos de trabalho. Não vejo como ele pode realizar
seu sonho de se tornar um mediador e produtor se nosso
patrimônio líquido combinado é um vestido verde.

Miles apenas ri, tão despreocupado como sempre.


— Deixe-me mostrar uma coisa — diz ele, pegando seu
telefone. Ele abre um pequeno aplicativo estranho com um bloco
verde liso como ícone.

Dentro, vejo um contador digital, aumentando uma fração a


cada segundo.

— O que é isso? — eu pergunto, franzindo a testa.

— Quando fiz o acordo com seu pai, os Princes e os Malina,


todos concordamos que as três partes dividiriam o lucro
igualmente em três. Além disso, a Malina receberia dez por cento
pelo serviço de troca de Bitcoins por dólares americanos lavados.

Eu aceno, acompanhando até agora. Miles já me explicou isso


antes.

— Além disso, a carteira Bitcoin cobra uma taxa de um por


cento.

Eu aceno de novo, ainda sem entender.

— Eu sou a carteira do Bitcoin — diz Miles.

Eu fico olhando para ele, para seu rosto sorridente e travesso.

— Você está levando um por cento?

— Eu tenho estado o tempo todo. Não mencionei isso na


reunião, porque queria ter certeza de que conseguiria o que
realmente queria que era você e Cat livres dos planos idiotas de
seu pai. Ninguém perguntou sobre a carteira Bitcoin – é uma taxa
razoável. Generosa, até.
Eu olho para o número novamente, finalmente entendendo. Já
tem $187.962 na conta. E, enquanto eu observo um adicional de
$1,53 é adicionado no espaço de um minuto. O dinheiro entra,
pouco a pouco, escoando da vasta soma que vai para os Malina,
meu pai e os Princes.

— É o suficiente para começarmos — diz Miles.

Eu balanço minha cabeça para ele maravilhada.

— Sempre trabalhando em um ângulo.

Ele encolhe os ombros. — Eu não posso evitar. Eu sou tão bom


em ganhar dinheiro.

Ele não desiste de seu ponto central.

— Você vem comigo, Zoe? Daqui direto para LA?

Eu olho para aquele rosto bonito e determinado. Um rosto que


eu amo pra caralho. Eu sei que nunca poderia dizer não.

— Sim — eu sussurro. — Eu adoraria ir.

Miles me pega em seus braços, me beijando sem parar.

Beijar se transforma em correr as mãos pelo meu corpo no


vestido fino e colante.

— Venha aqui — ele rosna e me puxa para a próxima sala.

Estamos em um espaço silencioso e escuro, onde a parede


oposta é uma vasta placa de vidro, olhando para um tanque cheio
de águas-vivas. Seus sinos flutuantes e tentáculos arrastados
vagueiam pacificamente pela água, os corpos transparentes
tingidos com tons de rosa, amarelo e azul.
Miles me puxa para baixo no banco mais próximo, me fazendo
sentar escarranchada em seu colo para que o vestido suba bem
alto nas minhas coxas. Ele agarra minha cintura, me esfregando
contra ele para que eu possa sentir o quão duro está seu pau, como
uma barra de ferro estendendo sobre a perna de sua calça.

Ele me beija profundamente, explorando minha boca com sua


língua.

Em seguida, ele massageia lentamente minhas coxas, usando


suas mãos grandes e quentes para despertar os músculos, para
enviar o sangue subindo pelo meu corpo. Ele sabe exatamente o
que está fazendo. À medida que os neurônios em minhas pernas
ganham vida, minha boceta começa a latejar, como se também
tivesse saído do sono. Doendo para ser tocada. Eu quero seus
dedos me acariciando lá e em todos os lugares. Estou faminta e
gananciosa por este homem.

Agora estou me esfregando contra Miles por minha própria


vontade, pressionando todo o meu corpo contra ele, sugando e
mordendo seus lábios.

Miles abre o zíper da calça e libera seu pau. Ele puxa minha
calcinha para o lado e empurra seu pau dentro de mim. Há algo
tão quente sobre ele me fodendo sem me despir, muito ansioso
para até mesmo tirar minha calcinha.

Minha saia esconde um pouco o que estamos fazendo, mas


não há como alguém ficar confuso sobre a maneira como estou
saltando para cima e para baixo em seu colo, minhas pernas em
volta de sua cintura, minhas mãos emaranhadas em seus cabelos.
Alguém pode passar por aqui a qualquer minuto e eu não dou à
mínima, tenho que ter ele agora, não consigo parar de montá-lo.
Miles coloca as mãos embaixo da minha bunda e se levanta,
erguendo-me no ar. Ele me carrega até a janela do aquário,
pressionando minhas costas contra o vidro frio. Agora ele tem
vantagem para me foder tão forte quanto quiser, usando suas
pernas poderosas para entrar em mim. Estou imprensada entre o
vidro frio e seu corpo em chamas.

Eu pressiono meu rosto contra seu pescoço, sentindo seu


perfume e tudo o que ele usa para domar aqueles cachos, o cheiro
de sua pele e seu suor. Um coquetel inebriante. Minha cabeça gira.
Eu lambo o suor do lado de seu pescoço e, em seguida, lambo sua
orelha também, chupando o lóbulo e mordendo com força entre os
dentes.

— Sua garota safada do caralho. — Miles cresce e me penetra


cada vez mais forte.

Seus dedos cavam na minha bunda. A fricção da minha


calcinha puxada para o lado esfregando no meu clitóris e está me
deixando louca. É difícil e quase demais. Mas nada é demais com
Miles. Nunca é o suficiente para mim.

— Foda-me mais forte — eu imploro a ele. — Eu quero seu


esperma pingando de mim o resto da noite.

— Você é louca — ele geme, e eu sei que ele adora, eu sei que
ele viu aquela centelha de loucura em mim naquele primeiro dia
na muralha. Ele sabia que eu não era tão quieta e controlada como
parecia, e ele me amava por isso, ele queria liberar isso em mim
ainda mais.

Eu quero isso também. Eu quero ser tão ousada quanto Miles,


tão corajosa quanto ele. Quero ir atrás de tudo que quero na vida,
sem medo ou hesitação.
— Faça-me gozar e irei a qualquer lugar do mundo com você
— prometo a ele.

Miles me pressiona contra o vidro, me fodendo sem dó. Eu gozo


forte e rápido, bem fundo em mim, no lugar que só Miles pode
encontrar, o único lugar que me satisfaz. Assim que ele me ouve
gemendo: — É isso, oh, meu Deus, é isso. — Miles goza também.
É assim que eu quero, é assim que sempre quero – juntos, em
perfeita sincronia.

Nós desabamos contra o vidro, Miles ainda dentro de mim. Ele


beija o lado do meu pescoço, enviando arrepios pelo meu corpo
como se não tivéssemos apenas transado. Eu o quero de novo,
antes mesmo que ele saia.

— Você me faz tão feliz — diz ele, pressionando sua testa


contra a minha.

— Você mudou minha vida inteira — eu digo a ele em retorno.

Quando nos arrumamos o suficiente para evitar suspeitas,


Miles e eu voltamos para a festa. Cat se joga em nossa mesa,
exausta de dançar com Dario Gallo, Caleb Griffin e Teddy Boone
em rápida sucessão.

Miles vai buscar bebidas.

Aproveito para falar com Cat enquanto estamos sozinhas.


Digo a ela que Miles quer que eu me mude para Los Angeles
com ele. Digo a ela que estou pensando em ir.

Cat escuta, seus grandes olhos escuros já puxando meu


coração.

— Eu quero ir — eu digo. — Mas eu não quero te deixar. Estou


preocupada com você voltar para a escola por conta própria.

Cat suspira e me dá um pequeno sorriso. — Vou sentir sua


falta, Zo — ela diz. — Mas você tem que ir.

— Eu não tenho...

— Sim, você tem. Você nunca sabe quanto tempo tem para
fazer as coisas. Nenhum de nós sabe. Você não pode perder mais
dois anos cuidando de mim.

— Mas e se...

— Vá, mana — ela interrompe. — Vá, e não se preocupe


comigo. Eu tenho dezenove. No próximo ano, vou fazer vinte. Eu
não sou mais criança. Não sou a mesma pessoa do ano passado.
Eu aprendi coisas. Fiz coisas. — Ela engole. — Apenas vá. Ficarei
brava com você se não o fizer.

Eu pego sua mão e aperto com força.

— Você tem certeza? Você não vai sentir muito a minha falta?

— Vou ficar bem — ela diz.

Cat sempre me diz a verdade. Mas há algo em seu rosto de que


não gosto. Algo não dito. Algo pesando sobre ela.
Eu seguro a mão dela entre as minhas, olhando para ela de
perto.

— Você sabe que pode me dizer qualquer coisa.

Os olhos de Cat encontram os meus por um momento e depois


caem para nossos dedos entrelaçados enquanto ela encolhe os
ombros e diz: — Claro. Com certeza.

— E você pode me ligar todos os dias... tenho certeza de que


Miles pode conseguir um telefone para você.

— Aos domingos está bom — Cat diz, apertando minha mão


em resposta. Então, decidindo que não é o suficiente, ela se inclina
para frente e me abraça. — Eu te amo, Zo. Você merece felicidade.
Você sempre mereceu.

— Nós duas merecemos — eu digo a ela.

Cat balança a cabeça sem responder.

Miles coloca bebidas frescas na frente de cada um de nossos


assentos.

— O que eu perdi? — ele pergunta.

— Dance comigo e eu te conto — eu falo.

— Eu amo essa oferta — ele diz, já me puxando para ficar de


pé.

Ele me pega em seus braços, me balançando daquela maneira


suave e fluida que parece dobrar a música ao nosso redor, como
se o ritmo nos seguisse ao invés do contrário.

Eu olho em seus olhos.


— Eu vou com você — eu digo. — Quando você quiser.

— Bom — Miles sorri. — Porque eu já comprei sua passagem.

FIM

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