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Enquanto Eu Respirar - A. K. Raimundi
Enquanto Eu Respirar - A. K. Raimundi
Prólogo
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
Capítulo 21
Capítulo 22
Capítulo 23
Capítulo 24
Capítulo 25
Capítulo 26
Capítulo 27
LEUCEMIA MIELOIDE AGUDA
Agradecimentos
Enquanto eu RESPIRAR
A.K. RAIMUNDI
Copyright © 2018 A.K Raimundi
Capa: A.K. Raimundi
Revisão: Margareth Antequera
Diagramação Digital: Margareth Antequera
Esta é uma obra de ficção. Seu intuito é entreter as pessoas. Nomes,
personagens, lugares e acontecimentos descritos são produtos da imaginação da
autora. Qualquer semelhança com nomes, datas e acontecimentos reais é mera
coincidência.
Esta obra segue as regras da Nova Ortografia da Língua Portuguesa.
Todos os direitos reservados.
São proibidos o armazenamento e/ou a reprodução de qualquer parte dessa obra,
através de quaisquer meios — tangível ou intangível — sem o consentimento
escrito da autora.
Criado no Brasil.
A violação dos direitos autorais é crime estabelecido na lei n°. 9.610/98 e punido
pelo artigo 184 do Código Penal.
Índice
Prólogo
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
Capítulo 21
Capítulo 22
Capítulo 23
Capítulo 24
Capítulo 25
Capítulo 26
Capítulo 27
LEUCEMIA MIELOIDE AGUDA
Agradecimentos
Uma coisa mínima pode mudar sua vida, como um piscar de olhos, uma coisa
acontece quando você menos espera. E te coloca num caminho que você nunca
imaginou.
Para onde ele pode te levar? O que ele mostrará? Alguns dizem que isso
se chama “jornada de nossas vidas”, nossa busca pela luz. Porém para você
encontrar a luz, você precisa passar pela mais profunda escuridão, pelo menos
isso aconteceu comigo.
Luke Dinally
Prólogo
Luke Dinally
O som podia ser ouvido do lado de fora da casa dos Fishers. Como
sempre, se os pais estavam viajando, as gêmeas davam um jeito de darem uma
festa, o panfleto simples que foi entregue hoje no centro podia não chamar tanto
a atenção, mas sabíamos que seria uma boa festa.
“Smells Like Teen Spirit” do Nirvana nos saudou quando atravessamos a
porta da frente, o lugar já estava completamente lotado e com forte cheiro de
cerveja. Brian saiu literalmente pulando ao som da música, Jamie passou na
minha frente empurrando Bianca para o meio da multidão.
— Para iniciar a noite, uma cerveja. – Robin disse, entregando as
garrafas para nós.
Jamie já estava entornando a sua, seguimos para uma segunda sala de
estar, onde havia uma mesa de bilhar, vozes e risadas estridentes tomavam o
ambiente, os caras estavam empolgados numa conversa sobre as meninas e suas
possíveis vitórias para levá-las para cama.
Sentei na beirada da mesa, tomando goles generosos de minha cerveja, se
tinha uma coisa que eu amava depois de uma Harley Davidson era o bom rock e
dessa vez a coletânea escolhida para festa estava de bom gosto. Fixei meus olhos
na garota dançando sozinha na improvisada pista de dança, ela remexia o quadril
de forma sensual, talvez um pouco demais para “Killing In The Name”, ela
atraia uma considerável atenção do público masculino. Quando se virou em
minha direção abrindo um sorriso sugestivo retribui com uma piscada.
— Aproveite que seu “carrapatinho” não está aqui. – Jamie sussurrou em
meu ouvido.
Sorri batendo minha garrafa na dele ainda de olhos na garota, ela era um
espetáculo, seu corpo estava à mostra com aquela saia de couro, os cabelos
caiam por suas costas quase chegando ao quadril. Ela ergueu o dedo indicador,
curvando-o, me chamando. Afastei-me da mesa, caminhando tranquilamente
entre as pessoas, ela dançou por alguns instantes ao meu redor, fazendo questão
de esbarrar sua bunda em minha perna.
Não deixei que a música terminasse para arrastá-la para fora dali,
conduzindo-a para a varanda, encostando seu corpo na parede.
— Você dança bem.
— Que bom que gostou Dinally.
— Você sabe meu nome? Devo conhecê-la?
Ela esboçou um sorriso passando a mão pelo meu abdômen. – Quem não
conhece o grande astro do basquete e além do mais, estudamos biologia juntos
dois anos atrás.
— Biologia, interessante.
Cheguei meu rosto perto dela sentindo seu perfume forte, algo doce
demais e isso me fez ter uma pontada na cabeça.
— Acho que podemos ir para um lugar, você sabe, onde podemos ficar
sozinhos. – sussurrou em meu pescoço, fazendo um arrepio tomar minha pele.
Esperei alguns segundos para que a repentina pontada tivesse aliviado a
pressão.
— Vamos. – peguei sua mão nos afastando dali. – Quero ver o que mais
você sabe fazer.
Saltei do carro rindo da idiotice de meus amigos, olhei para a placa neon
meio caída. Bar Bing Bong. Quem tinha escolhido esse nome, Deus! Era
péssimo.
— Vamos que hoje a cerveja é metade do valor. – Robin disse trocando
um cumprimento com Jamie.
— Não se esqueçam que ainda temos treinos e o jogo no domingo.
— Largue de ser careta, Dinally. – retrucou Jamie. – está parecendo
minha mãe.
— Isso mesmo Luke, essa banda é demais, foi pura sorte ela fazer um
show aqui nessa espelunca. – Brian virou para mim com um sorriso pidão no
rosto.
O segurança olhou para nosso grupo torcendo os lábios, pela sua cara ele
achava que fazíamos parte dos arruaceiros. Mesmo assim carimbou nossas mãos
liberando nossa entrada. Andamos pelo bar repleto de pessoas, algumas
dançavam ao som da banda que tocava animando todos. O balcão estava cheio,
era quase impossível chegar perto do bar para pedir uma bebida. Jamie fez sinal
mostrando uma mesa vazia no canto, perto do palco, caminhei olhando as
garotas dançarem rindo, tentando chamar atenção dos integrantes da banda, que
eu tinha certeza que no fim da noite levaria pelo menos algumas delas para uma
volta no camarim.
— Está vendo aquela? – Brian indicou uma garota que dançava puxando
frequentemente sua amiga. Que por sinal não parecia muito a vontade de estar no
meio daquela multidão se chocando com frequência.
— Qual? – perguntei aceitando a garrafa que Robin conseguiu com seu
amigo barman.
— A de saia colada e blusa amarrada. É a sobrinha do Padre Maciel,
Marta.
— Uau, Deus abençoe! O padre sabe que sua sobrinha não é tão ligada
aos ensinamentos pregados por ele? – zombei.
Brian riu jogando a cabeça para trás.
Encarei mais um pouco a cena, a tal Marta parecia mais uma promíscua
do que propriamente uma garota querendo se divertir. Desviei meus olhos para
sua amiga, que ao contrário de Marta, vestia uma calça jeans escura, uma blusa
com algum tipo de frase, seus cabelos estavam presos no alto da cabeça, mas
com as luzes coloridas passando pela plateia não conseguia diferenciar a cor.
E quando eu encarei seu rosto, foi como se congelasse o tempo, era como
se tivessem colocado o modo no mudo, o que foi estranho, pois eu via pelo canto
dos olhos as pessoas em minha volta rindo, conversando, mas eu estava olhando
apenas para aqueles olhos escuros, sei que eram escuros, pois eles pareciam
enormes buracos, extremamente atrativos para mim.
Lindos.
De tirar o fôlego.
Ela fixou seu rosto no meu ou estava apenas olhando para além de mim,
mas logo fui puxado por Jamie, exigindo minha atenção.
Depois daquele momento eu não consegui mais encontrar a garota, era
como se ela tivesse virado fumaça, por vezes encontrei Marta, mas a garota não
estava ali. Será que tudo não passou de uma coisa de minha cabeça?
Luke Dinally
Todas as terças, quintas e sábados eu trabalhava como garçom no
Tomillos, um trabalho temporário enquanto não começava a faculdade. Algo
nada desejado pelos meus pais. Hendri Dinally era o tipo pai militar aposentado
de uma típica cidade sulista e de maneira que minha mãe, uma senhora
simpática, meiga e gentil era uma verdadeira dona de casa, muito querida por
todos. O tipo de mãe que a maioria das pessoas sonhavam.
Eu não era o típico adolescente rebelde que vivia causando problemas
para meus pais, podíamos sair ás escondidas de casa à noite, escrever nos vidros
dos automóveis, de vez em quando, até mesmo praticar algumas arruaças por aí
ou invadir a piscina do prefeito. Mas nada que pudessem nos chamar de “garotos
malvados”, mas causava aquele olhar entre as mães: “Não andem com esses
garotos”.
Pois bem, era apenas mais um turno no Tomillos, longas cinco horas
atendendo os adolescentes esfomeados de Beaufort.
— Finalmente chegou no horário.
— Boa tarde, Tony. – cumprimentei sorrindo. – Sabe se tivesse aquela
Harley Davidson, chegaria com certeza no horário.
Tony soltou sua risada alta e grossa, chamando atenção para si. – Chegue
no horário por todo verão que te darei o bônus para você finalmente comprar sua
moto rapaz.
— Então é melhor eu começar agora. — atravessei o balcão puxando
meu avental.
Desde os meus quinze anos eu namorava a moto do Sr. Garber. Na
primeira vez que vi a Harley Davidson o sol batia forte na parte cromada,
fazendo-a brilhar sob o calor daquele dia. Desde então nunca tirei de minha
mente aquela moto, hipnotizado por seus detalhes cromados, com alforjes de
couro desgastado. Pensando em quão prazeroso seria pilotá-la, o vento soprando
contra meu corpo, a vibração e o motor roncando ao ganhar estradas. Sim, já me
imaginava viajando por longas estradas, parando algumas horas para comer e
esticar as pernas, mas logo voltando para a estrada.
Meus pais eram totalmente contra, alegavam que um adolescente com
uma moto, era a mesma coisa que dar uma arma, ou seja, mesmo tendo diversas
discussões eles sabiam que eu iria comprar a moto. Ou como meu pai deixou
bem claro depois de dar um murro na mesa de jantar. “Esqueça isso Luke, você
não vai comprar moto nenhuma com o meu dinheiro, se quiser que vá trabalhar.”
Aí surgia o Tomillos, em uma das noites que eu e meus amigos
andávamos à toa pelo centro, passamos em frente ao mexicano, Tony o gordo
carrancudo como chamávamos estava colocando uma placa na porta de “precisa-
se de ajudante”. Não era um salário alto nem nada, mas o pouco que eu ganharia,
se juntasse um pouco, conseguiria comprar a tão sonhada moto.
Eu já podia me ver andando por aí com ela, desbravando estradas,
curtindo a vida de moto. Foi com esse pensamento que me despedi dos meus
amigos e entrei no restaurante aquele dia. Tony não havia gostado muito de mim,
para ele, eu estava ali apenas para atrapalhar o andamento do seu serviço.
Como ele próprio dizia “O que o jogadorzinho de Beaufort quer aqui, ou
melhor, o astro do basquete iria sujar as mãos limpando mesas?”. Bom, foi
comprovado que eu não só daria conta do trabalho, como um ano após entrar eu
realmente gostava daquilo. Até me afeiçoei com Tony, vendo mais do que um
viúvo rancoroso que todos viam.
Ao contrário do que muitos podem pensar, nosso Luau não seria numa
praia, o Luau estava acontecendo numa fábrica desativada, onde todos os anos a
turma inventava umas festinhas regadas ao bom rock e cervejas contrabandeadas
dos nossos pais. Jamie era o responsável pela bebida, óbvio, alguns também
diziam que ele tinha algo especial para aqueles que gostavam de ter uma
experiência a mais.
Isso eu não poderia afirmar, nunca cheguei perto de drogas, nunca fiz
parte da turma dos viciados, eu andava com os famosos descolados, a turma do
basquete e com Jamie. Que tinha o dom de transitar sem dificuldade em todas as
turmas.
A primeira coisa que vi quando entramos no estacionamento abandonado
da antiga fábrica, de peças para carros, foi a grande fogueira, a segunda foi “The
Breeders” tocando alto demais para uma pequena festinha.
Saltei do carro assim que Jamie parou perto da fogueira,
cumprimentando algumas pessoas que já conhecia. Belina se jogou em minhas
costas, beijando meu ombro.
— Achei que não viria mais.
Dei um sorriso segurando suas pernas em volta de minha cintura. – Eu
disse que viria, me passa sua cerveja.
— Essa noite vai ser boa demais! – Brian gritou mais distante de nós,
fazendo os mais de quinze adolescentes comemorarem juntos.
— Descobri um lugar para nós dois. – Belina sussurrou em meu ouvido.
— Eu estou louco para vê-lo.
— Ah para de viadagem! – Jamie bateu em meu ombro, me empurrando
um pouco para o lado. – Ele quer entrar nas suas calcinhas, Belina.
— Idiota!
Gargalhei apenas, era verdade, não tinha como negar que eu já estava
cansado desses joguinhos que Belina fazia comigo e ela sabia, ficou claro
quando nos vimos pela última vez.
Robin saiu do meio da galera vindo até nós, tragando seu cigarro e
debaixo do braço duas garrafas de cerveja.
— Grande Luke Dinally, uma merecida festinha para nosso astro no
basquete. Que você esmague os The Bulls no domingo meu amigo!
Sorri cumprimentando-o com minha garrafa. – Você já está
completamente bêbado.
— Ah, Luke, Luke, estamos apenas no começo da noite, dê um trago
aqui e vê se relaxa meu amigo.
— Dispenso.
Tirei Belina de minhas costas, tomando um gole da cerveja.
— Luke é careta, uma vez filho de militar, sempre soldadinho.
— Vai à merda Jamie, fala como se não comesse as merdas que seu pai
despeja em você. – Retruquei.
Todo mundo riu, fazendo Jamie se irritar.
— Só não quebro sua cara porque gosto de você Dinally. – Ameaçou
com o dedo em riste para mim.
Essa noite já estava fadada para algo ruim acontecer, não só por ter
jovens bêbados dirigindo, mas por eu estar de carona com Jamie, que não só
estava no nível mais alto de álcool como também tinha entrado fundo nas dos
viciados, ficando completamente descontrolado.
Eu não o julgava, éramos jovens, imprudentes, queríamos aproveitar
tudo, achando que nada aconteceria conosco. Já passava das três da madrugada
quando eles começaram a se mexer para irmos embora, eu me mantinha sóbrio.
Belina e Bianca estavam tão chapadas, como Jamie e Brian estavam bêbados.
— Eu levo o carro. – disse tentando puxar a chave do Taurus das mãos de
Jamie.
— Vai se foder Dinally, eu estou bem.
Ele não estava bem, mal conseguia me olhar sem vacilar nos próprios
pés, mas eu sabia que de nada adiantaria brigar com ele por isso, seria inútil e
não me levaria para casa.
Fiz questão de sentar no banco do passageiro, me mantendo atento nos
movimentos que ele fazia na direção. Tudo poderia ter acabado bem, se Brian e
Robin no carro de trás não começassem a acelerar e chamar Jamie para uma
corrida na estrada vazia.
— Pare com isso Jamie. – Bianca protestou do banco de trás.
Jamie gargalhou alto pisando mais fundo no acelerador, olhei por cima
do ombro vendo os rostos assustados de Bianca e Belina, apertem os cintos foi
tudo que sussurrei para elas. Brian emparelhou o carro do lado de Jamie,
brincando de ziguezague na pista, freando e cantando pneu. Como disse, éramos
imprudentes e mesmo que eu não estivesse participando como peça principal
disso, não deixava de ser culpado.
Eu estava no carro. Estava ciente que todos ali não tinham condições de
dirigir.
“De um livro cheio de mortes
Lendo como morreremos sozinhos
E se formos bons nos deitaremos para descansar
Em qualquer lugar que queiramos ir”
— Ele teve sorte, apenas lesões superficiais, nada que repouso não possa
ajudá-lo.
— Ele tem um jogo importante doutor, ele é Armador Principal do
basquete.
— Eu entendo Sr. Dinally, mas essa temporada vai terminar sem o nosso
astro nas quadras.
Ouvi de longe o choro contido de minha mãe, os bipes das máquinas ao
meu lado denunciando que tinha acordado, nessa hora eu realmente preferia estar
dormindo a enfrentar meu pai, e pior, seu olhar de decepção.
Como eu havia falado, não importava que não fosse eu na direção, eu
estava lá, era tão imprudente quanto os outros. E Hendri Dinally não aceitava
isso.
— Vou deixá-los a sós.
Escutei a porta sendo aberta e logo depois sendo fechada.
— Pode abrir esses olhos Luke. – disse meu pai.
Obedeci, encarando o rosto aliviado de minha mãe primeiramente e o
rosto sem expressão do meu pai.
— Você quase matou uma família hoje.
Aquele nó surgiu em minha garganta novamente ao me lembrar da
garota, de seu cabelo escuro cheio de ondas caindo pesado e sujo de sangue por
seu rosto.
— Pai...
— Nem invente desculpas, você saiu escondido com aquele drogado do
Jamie Bandle. Achou mesmo que sairia impune dessa?
— Pai...
— Cale a boca, você já fez estragos demais, agradeça por aquela família
estar viva. – meu pai pegou o casaco da cadeira saindo do quarto.
— Seu pai está nervoso, quando recebemos a notícia, acreditamos que
você tinha... – minha mãe passou a mão pelo rosto enxugando as lágrimas.
— Desculpa mãe, eu realmente estou errado.
Ela passou a mão delicadamente pelo meu rosto, com um sorriso mínimo
nos lábios. – Vamos deixar os ânimos se acalmarem, sabe como seu pai é.
Suspirei deitando minha cabeça novamente no travesseiro.
— Como eles estão? – perguntei depois de alguns minutos em silêncio.
— Seus amigos ficaram bem, mas arcaram com as consequências.
— Estou perguntando da família, a menina de cabelos escuros... – desviei
os olhos para a parede, evitando olhar para minha mãe.
— Eles estão bem, o pai teve que passar por uma cirurgia, mas a mulher
e as filhas estão acordadas, vão ficar bem.
Respirei secretamente aliviado, eu queria que ela ficasse bem.
— Por que eu não recebo alta? – retruquei novamente para minha mãe.
— O Doutor disse que vem conversar conosco, tenha paciência.
Fazia uma semana desde que sofri o acidente, no início as dores de
cabeça eram passageiras, assim como a enorme vontade de vomitar, porém com
o passar dos dias, sintomas apareceram e ficaram mais fortes, o que bastou para
minha mãe me arrastar até o hospital.
No mesmo instante que minha mãe se calou a porta do meu quarto abriu,
trazendo meu pai e o doutor Valter.
— Boa tarde meu garoto, vejo que está impaciente.
— Quero ir logo para casa. – comentei. – Estou aqui há nove horas.
— Ligia, Valter quer conversar conosco. – meu pai estava sério demais
para quem tinha dado entrada no hospital com um resfriado qualquer.
Para minha mãe minha febre, dores de cabeça constantes e as manchas
vermelhas em meu corpo era sinal que estava algo totalmente errado.
— Bom, como falei quando chegaram aqui, realizei alguns exames com
Luke. E foi constado que ele tem Leucemia.
— O quê?
— Como assim? – praticamente gritei.
— Acalme-se, garoto.
— Estes sintomas não são necessariamente sinônimo de Leucemia. Uma
infecção, ou qualquer outro problema também podem causar estes sintomas.
Contando que você recentemente sofreu um acidente de carro, suas dores
constantes de cabeça, poderia ser naturalmente sobre isso. – o médico fez uma
pequena pausa. – Ainda temos que realizar mais testes, fazer mais exames para
realmente ver que estágio nós estamos, mas nas fases iniciais da Leucemia
Crônica, assim como da Leucemia Aguda, os sintomas podem não aparecer,
durante muito tempo. Muitas vezes, quando surgem os sintomas, estes são
geralmente ligeiros, no início, e vão piorando gradualmente. Na Leucemia
Aguda, os sintomas surgem e pioram rapidamente.
— Acredito que houve um engano, eu não tenho câncer, não tenho
Leucemia, estou bem, isso é apenas um resfriado qualquer. – retruco tentando
ficar de pé, mas a fraqueza me domina assim como a dor no estômago e a
vontade de vomitar.
— Luke, precisamos fazer os exames, só assim poderemos tratá-lo.
— Luke sei como isso deve ser difícil, na realidade fizemos o exame por
três vezes, todos mostraram que você tem a LMA. Você tem apresentado dores
musculares, febre repentina, manchas vermelhas e hematomas pelo corpo. Isso
não é normal e gostaria muito de dizer que isso tem a ver com o acidente de
carro, mas não tem.
— LMA? O que isso agora, inventaram uma sigla rebuscada para morte?
– explodi.
— Fique calmo, Luke. Escute o médico. – meu pai me encarava sério,
mas por um instante eu vi seus olhos vacilarem.
— Eu vou explicar tudo Luke, vamos realizar os outros exames e vamos
dar início no procedimento. Em casos como esse o melhor a fazermos é iniciar o
tratamento o mais rápido possível, quanto mais rápido o tratamento, mais rápido
pode ser sua melhora. – o médico se mantinha calmo, como se estivesse falando
algo simples, sem se abalar ou realmente se importar.
Mas era minha vida ali, era sobre mim!
Eu me senti impotente, de mãos atadas, tudo estava passando como
pequenos flashes por minha mente, onde um cara como eu teria câncer? Onde
um jogador forte e sempre saudável teria câncer? Eu não fumava, não consumia
drogas e me alimentava bem. Aquilo não estava certo, nada estava certo, esse
médico não podia estar certo. Ou podia? Eu teria mesmo câncer, teria mesmo
essa doença infernal dentro de mim, comendo a vida e os sonhos que eu queria
realizar?
De todas as perguntas que surgiram na minha mente naquele instante eu
não sabia respondê-las, não sabia nem o que era realmente Leucemia, o que isso
implicava na minha vida. A única certeza que eu tinha é que o Luke Dinally que
eu conhecia estava morrendo. Disso eu tenho certeza, assim como todos os
sonhos que pareciam tão certos alguns dias atrás, tinham caído por entre meus
dedos como areia.
Capítulo 3
Luke Dinally
Respirei fundo olhando pela ampla janela da sala, Tony mais uma vez
estava sentado no sofá de minha casa, encarando-me.
— Aprecio o silêncio. – disse cruzando a perna pela nona vez. – Tem
algo sábio escondido nele, sempre podemos aprender.
— Já disse que pode parar de vir aqui. – retruquei olhando para seu rosto.
Tinha pedido para minha mãe dispensá-lo, mas lógico que ela não seria
rude nem mesmo com Tony. Acredito que eu aturava suas visitas frequentes
porque ele era um dos únicos que restaram do que era minha vida. Seus
comentários por vezes me tiravam a paciência. Minha relação com Tony era de
amor e ódio, ele era meu amigo, mas também meu pior inimigo quando soltava
seus conselhos.
— Deixe de ser estúpido moleque. – esbravejou sorrindo.
Eu nunca entendia quando ele dava uma bronca sorrindo, era
contraditório.
Vai ter um dia, um dia comum, pode ser uma tarde de domingo ou um dia
ensolarado, em que tudo deixará de existir, todos nós, todas as coisas que
conhecemos e acreditamos ser para sempre. Na realidade, tudo pode durar para
sempre, afinal se morrermos amanhã, tudo que passamos, as pessoas que
conhecemos, as coisas que fizemos, terá durado para sempre.
Hoje inicia meu tratamento, segundo os médicos eu passaria por três
fases, a Indução, Consolidação e Manutenção. Fui diagnosticado com Leucemia
Mieloide Aguda, ou seja, a LMA está relacionada a diminuição da produção de
células normais da medula óssea. E nesse exato momento, sentado nessa sala
repleta de cadeiras iguais, o cheiro de antibactericida ardia meu nariz. Ajeitei-me
melhor na cadeira vendo a enfermeira vir ao meu encontro.
— Oi Luke, meu nome é Sam. – disse com um sorriso verdadeiro no
rosto.
— Oi.
— Eu vou acompanhar você durante suas sessões, hoje vamos iniciar a
indução.
— Eu sei. – disse de forma rude.
— Ela vai eliminar do seu sangue as células de Leucemia e reduzir o
número na medula óssea, é como um stop em seu corpo, você pode ter alguns
efeitos colaterais, afinal estamos injetando um nível alto de drogas em seu
sistema.
— Ok.
— Qualquer tipo de sintoma, por favor, informe o médico, desde náusea,
perda de apetite, fadiga, perda de cabelo. Tudo isso é importante.
Suspirei pesadamente.
— Quando isso terminar, você será um rapaz muito mais forte.
Lá vinha de novo essa história de força, eu com certeza faria uma lista
sobre o que não dizer para alguém com câncer. Nesse primeiro mês escutei mais
asneiras e palavras falsas que toda minha vida. As pessoas achavam que ficar em
silêncio e não dizer nada era errado, aí abriam suas bocas e soltavam merdas.
“Você está passando por um plano de Deus” essa era a pior, sério as pessoas
achavam que tudo tinha algo com Deus, ou então elas queriam que você se
revoltasse contra ele. O que levando em consideração de ter uma doença
corroendo seu ser, você ter que abandonar seus sonhos, médicos falando de
possibilidades sobre você não sobreviver ou não responder bem ao tratamento já
eram motivos suficientes para me fazer virar contra a fé.
Voltei minha atenção para a enfermeira, notando sua mão apoiada na
minha, uma forma clara de apoio, mas eu não queria a pena de ninguém, não
queria ninguém me tratando como um coitadinho qualquer.
— Podemos começar.
A enfermeira foi até o outro lado da sala colocando uma máquina ao meu
lado, pegou alguns instrumentos, a bolsa de remédios e começou a ajeitar tudo.
Não desviei os olhos, acompanhei todo o processo. Da colocação do acesso em
minha veia até ela ligando a máquina e explicando que aquilo era como uma
bomba, fazia o controle de medicação que entraria na minha veia, assim como
apitaria caso tenha bolha de ar, ou qualquer problema com a entrada do
medicamento.
— Luke, nesse primeiro processo você ficará uma hora, qualquer apito
que o aparelho faça me chame. – Ela ajeitou o jaleco, anotou algo na prancheta.
– Sugiro que beba bastante água, isso ajuda no tratamento.
— Quanto tempo vou ficar aqui?
— Cerca de três a quatro horas, você terá a segunda fase que dura duas
horas.
Deitei a cabeça no travesseiro.
— Suas sessões serão de quinze em quinze dias, daqui a pouco eu
retorno.
A primeira hora passou rápido, realmente rápido. Logo a tal enfermeira
Sam estava de volta com outro tipo de bolsa e cânula ligada a ela. Também
chegou um rapaz, devia ter alguns anos a mais que eu, ele se sentou na poltrona
na minha frente, um enfermeiro começou o mesmo processo que o meu. Eu
observava tudo curioso, vi quando ele se sentiu enjoado, quando o enfermeiro o
auxiliou até o banheiro e quando voltou estava mais pálido e fraco.
— É sua primeira sessão? – perguntou me encarando.
— Sim.
— Meu nome é Isaac, eu tenho Linfoma de Hodgkin.
— Luke, eu tenho LMA. – me ajeitei melhor na poltrona. – Isso faz
parecer que somos gados marcados.
Isaac gargalhou em meio a tosse. – Verdade, pensando por esse lado não
é legal se apresentar assim para uma pessoa.
— Quanto tempo você tem câncer?
— Há um ano e meio, fui diagnosticado já no terceiro estágio, eu não sei
bem como funciona isso, mas sei que estou no terceiro estágio. – disse rindo. – E
você? Qual é sua história?
— Eu descobri depois de um acidente de carro.
— Não, não sua história com câncer, a gente sabe que por mais que todos
tenham um start ela vem do mesmo jeito, né? Malditas células podres. – Isaac
ria de tudo e por um instante me passou pela cabeça que ele estava com a mente
confusa devido à medicação.
Ele continuava me encarando, analisando minha expressão fechada.
— Não vá me dizer que você é daquelas pessoas que encarnam com a
doença, culpando-a por tudo? Conheci tantas pessoas assim. Sabe? Dá pena, as
pessoas ficam tão fixadas no termo que esquecem que o câncer é como uma
estação de trem, você pega o vagão, mas logo pode se livrar dele. Que o real
motivo para se preocupar era os dias que passavam por seus narizes enquanto
eles reclamavam. – ele fez uma pequena pausa ajeitando o braço no apoio da
cadeira. – Sabe Luke, nos esquecemos de contemplar as coisas belas da vida,
esquecemos de olhar e agradecer pelo dia que temos. Ai quando pegamos uma
doença assim, que nos coloca para tomar chá com a Dona Morte, nos
desesperamos, reclamamos de Deus, do Universo, de tudo.
Eu não sabia o que falar, não depois disso. Por isso preferi o simples,
aquilo que eu conhecia bem. – Era jogador de basquete, estava quase recebendo
uma bolsa na UCLA.
— Uau, isso sim é história, adoraria escutar. – disse empertigando-se
para frente.
— Quem sabe num outro momento.
Olhei para o relógio pela milésima vez, contando as mínimas progressões
que ele fazia, logo poderia sair daqui. Esse cheiro de gente doente estava me
dando enjoo, meu estômago estava apertado, como se um gigante o esmagasse.
— Dê-me serenidade para aceitar as coisas que não posso modificar,
coragem para modificar as que posso, e no seu caso paciência. – Isaac disse do
outro lado, seus olhos fundos por olheiras me encaravam. Ele parecia muito mais
abatido do que havia chegado.
— Está tão nítido assim?
Ele deu um meio sorriso. – Um pouco, talvez mais aparente por você se
contorcer de cinco em cinco minutos na poltrona. Ou pelas caretas constantes.
— Só quero ir embora, esse negócio queima.
— Eu parei de desejar isso há muito tempo, por isso descobri que ser
paciente era algo que poderia e deveria aprender a ser.
— Você não vai para casa?
— Não, eu cheguei ao estágio onde minha família já não se importa de
fazer uma visita, apenas um moribundo do terceiro estágio. – Isaac retirou a
touca revelando sua cabeça careca, ele coçou distraidamente.
— Sinto muito. Você sempre morou em Beaufort? – perguntei curioso,
numa cidade pequena era difícil você não reconhecer um morador.
— Não, sou de Chesnee. O hospital me transferiu para cá, não tinham
como me manter.
Eu realmente sentia por Isaac, não conseguia imaginar viver dentro de
um hospital, eu não tinha meus amigos, não tinha mais as garotas aos meus pés,
muito menos meus sonhos, mas eu tinha meus pais. Que mesmo com as palavras
rudes ou eu afastando-os sempre estavam lá.
— Sabe, não estou reclamando, eu poderia estar pior. – Isaac deu de
ombros. – Eu ainda consigo andar sem ajuda, posso ter meus horários de passeio
pelos corredores do hospital, tenho amigos, trato o hospital como uma grande
sala de espera, onde conheço pessoas e vidas. Eu estou vivo, isso conta para
algo, não?
Engoli o nó em minha garganta. – Acho que conta.
Sam entrou na sala sorrindo para nós. – Vejo que já conheceu Isaac, fico
feliz, prevejo uma grande amizade.
— Você é gentil Sam, na verdade, estava contando para nosso
principiante que isso aqui é uma verdadeira colônia de férias, mas que ele
precisa conquistar seu lugar ao sol. – Isaac ergueu a sobrancelhas brincando. –
Eu não facilitarei para você cara do cabelo bonito.
Foi involuntário, uma risada escapou pelos meus lábios.
— Luke, você está liberado. – Sam retirou o cateter, o acesso, assim
como a máquina me dando espaço para levantar. – Espere uns três minutos antes
de sair correndo mocinho. Está sentindo algo?
— Não, talvez um pouco de enjoo.
— Espere aqui, vou trazer algo para aliviar, depois você pode ir.
Sam voltou poucos minutos depois com um copinho de plástico, o
remédio amarelo fedia a vomito, mas tomei tudo numa golada só. Quando o
enjoo finalmente se acalmou fiquei de pé pronto para ir.
— Vejo você daqui quinze dias. Não se esqueça, qualquer coisa ligue
para seu médico e informe.
— Tudo bem. Até mais, Isaac.
Ele abriu os olhos lentamente, sorrindo. – Nos vemos em breve, e, por
favor, traga um doce na próxima vez. Eu adoro aqueles com creme no meio.
— Isaac! – advertiu Sam do outro lado da sala.
— Eu vou tentar contrabandear alguns.
— Assim com certeza você ganhará um lugar ao sol meu amigo, como
ganha. – disse fechando os olhos novamente.
Capítulo 4
Luke Dinally
Abri a porta da garagem e lá estava ela debaixo da capa de proteção.
Joguei longe a capa de lona que protegia a moto, meu coração batia forte de
ansiedade, o dia estava quente e eu precisava sentir o vento bater em meu corpo,
precisava de um momento humanamente possível, por um segundo esquecer que
eu era um cara com planos frustrados, sonhos engavetados e com uma doença
dentro de mim.
Hoje eu queria ser apenas Luke Dinally.
Subi na moto pela primeira vez, sentindo o peso de sua lataria, sentindo
praticamente a expectativa que ela devia estar sentindo ao ser ligada, o motor
roncando alto, poderoso e pronto para ganhar as estradas. Quando desejei
comprar uma Harley Davidson foi justamente para isso, pegar as estradas,
conhecer lugares, me aventurar.
Deixei que ela ganhasse velocidade aos poucos, atravessei o jardim de
casa, passei pelos vizinhos saindo do meu bairro, ganhando quilômetros,
sentindo o sol sobre minha cabeça, o vento batendo contra meu peito. Logo
estava perto do centro, virei algumas ruas pegando a Bay St a moto facilmente
atingiu os 100 km/h margeando a água, entre os bairros e a visão dos barcos
ancorados no pequeno porto da Bay St, eu ia me sentindo vivo. Fiz um pequeno
desvio pegando a King St, passando em frente ao Tomillos, Tony estava na
frente do restaurante conversando com outro homem, mas o ronco alto do motor
chamou sua atenção, que na hora esboçou um sorriso me reconhecendo. Acelerei
um pouco mais, passando em frente ao Vital Records voltando para minha
trajetória inicial. O farol estava aberto permitindo a passagem, mesmo assim
uma mulher atravessou a rua, me fazendo frear a moto com tudo, parando
literalmente centímetros dela, quase atropelando-a e me fazendo cair da moto.
Ela me encarava com os olhos arregalados, alguns cadernos estavam
espalhados pelo chão. Seu cabelo castanho batia com força contra o rosto.
— Você está maluca? Como você atravessa assim numa avenida? Está
querendo se matar? – despejei em cima dela.
— Meu Deus!
Pronto, completamente maluca. Ela parecia prestes a desmaiar, seus
olhos se fixaram nos meus. Puta merda! Que olhos, tinha um tom de mistério e
inocência. Desci meus próprios olhos por seu rosto, seus cabelos estavam soltos
e revoltos entorno da face, seus lábios rosados...
— Mil desculpas, eu sou nova na cidade. – ela disparou a falar.
E eu ainda estava hipnotizado por sua boca, havia algo nela que me
prendia. Algo que eu já tinha visto.
—... Eu sinto muito, realmente. – ela continuava dizendo.
— Eu ajudo você recolher suas coisas. – disse colocando a moto de pé,
vendo que essa queda tinha feito um pequeno arranhão em sua lataria, mas eu
não contava com a náusea que me tomou. Parei alguns segundos de olhos
fechados, respirando devagar, sentindo aos poucos meu estômago se aquietar.
— Você está bem?
— Sim, vamos recolher logo isso. – retruquei.
Ajudei recolher os cadernos repletos de anotações do chão empilhando-
os em seus braços.
— Desculpa novamente por isso, eu não estava prestando atenção.
— Você teve sorte que consegui frear a tempo, senão agora estaríamos
ambos no hospital.
Ela estremeceu levemente.
— Você está bem? – perguntei novamente.
— Sim, tenho horror a hospital. Eu sofri um acidente no começo do ano.
Era isso, ela era a garota do acidente, os mesmos cabelos castanhos
pesados, o rosto. Aquele acidente tinha mudado tudo em minha vida.
— Você estava com seus pais e sua irmã no carro. – deixei escapar.
— Sim... Como você sabe? – ela me perguntou desconfiada.
— Cidade pequena, — dei de ombros omitindo a verdade. – todo mundo
sabe de tudo.
— Estou percebendo. – ela rolou minimamente os olhos com um suspiro.
– Meu nome é Alissya Rayven.
— Luke Dinally.
— Bom saber, obrigada por não me atropelar. – disse sorrindo. – Nos
vemos por aí Luke Dinally.
— Talvez, não. – retruquei ranzinza.
Ela afastou uma mecha de seu cabelo do pescoço, me encarou de
verdade, como se pudesse olhar através de mim. – Acredito que vamos nos
encontrar novamente, afinal ninguém se cruza sem motivo.
— Provavelmente não, a não ser que a pessoa não preste atenção para
onde vai e atravesse na frente de minha moto.
Ela esboçou um sorriso, me deixando confuso.
— Tudo tem um motivo Luke, tudo tem uma motivação.
Pode parecer mero clichê, mas Alissya me deixava paralisado, seus
cabelos castanhos como o mais escuro mogno balançando ao seu redor enquanto
atravessava a rua, foram capazes de me deixar pregado no lugar, seus olhos de
um tom de chocolate me prendiam e não sei porque ainda estava aqui, olhando a
garota se afastar, colocar os fones de ouvido totalmente distraída do que
acontecia ao seu redor e sumir rua abaixo com seus cadernos a tiracolo.
Luke Dinally
— Olha, ele voltou! – Isaac exclamou do outro lado da sala, assim que
me viu.
Sentei-me na poltrona com ajuda do enfermeiro, que logo se afastou para
preparar minha segunda quimioterapia.
— Tem sido difícil?
Olhei para Isaac, mas eu não estava com vontade nenhuma de falar, na
verdade acho que minha voz nem sairia pelo tempo que não a usava. Depois do
primeiro dia que acordei com os efeitos do tratamento tudo parecia rolar uma
enorme ladeira abaixo, meu cabelo caía com uma frequência enorme, mais
hematomas apareceram em minhas costas e barriga, mal conseguia me alimentar
sem colocar tudo para fora. Isso somado a fraqueza foi motivo para eu me
trancar no quarto e não ter nem vontade de falar.
— Sei o que você está passando e ao contrário do que todo mundo diz
não vou dizer que você sairá mais forte disso. – Isaac continuava puxando
assunto. – Eu mesmo não sei se vou sair vivo disso, ou sequer quantos dias
tenho, mas caso queira conversar. Eu estou no quarto 210 C.
Olhei novamente para ele, fazendo uma confirmação com a cabeça.
Estendi o braço deixando que o enfermeiro colocasse o acesso e engatasse a
cânula para iniciar minha segunda quimioterapia e assim encerrar meu primeiro
ciclo.
Alissya Rayven
Duas batidas baixas na porta do meu quarto me fizeram tirar os olhos da
partitura de música.
— Aly, posso entrar?
Sorri para meu pai. – Entre pai.
Meu pai entrou sorrindo, dando uma olhada em meu quarto, ou o que
restava dele. Tudo estava encaixotado no canto, as únicas coisas que restavam
eram meus cadernos e algumas coisas pessoais.
— Tudo pronto para nossa viagem?
— Sim.
— Sua mãe quer sair cedo. – meu pai sentou-se na beirada de minha
cama. – tenho certeza que será bom para todos.
— Vai ser, pai. – esbocei um sorriso encorajando-o.
— Sei que você não queria essa mudança, sei dos seus sonhos.
Dobrei as pernas apoiando o queixo em meus joelhos.
— Tudo vai dar certo pai, confio no destino.
Meu pai me deu um sorriso ainda maior, levantou-se dando um beijo em
minha testa. – Realmente você é meu anjo Aly.
Dei uma risada. – Sou apenas uma garota que vive mais sonhando do que
propriamente vivendo.
— Continue sonhando minha Aly, mergulhe no mundo dos sonhos.
Durma bem.
Beaufort, Carolina do Sul.
Essa era minha nova cidade, pacata, casas grandes, ladeadas por enormes
quintais. Bom, não era nada como Dallas. Porém, eu estava gostando, mesmo
que isso colocasse alguns quilômetros entre eu e meus sonhos, na verdade, uns
bons mil quilômetros.
Mas isso não me desanimaria, não mesmo. O que eram dez horas sentada
dentro de um carro em comparação ao seu sonho? Nada.
Talvez nada até o dia que eu finalmente fosse aceita na Juilliard, ou quem
sabe para Columbia. Mas até lá, esse seria meu lar, a pacata e simpática cidade
de Beaufort.
— Eu disse para não pegarmos estrada durante a noite.
Fui tirada dos meus pensamentos pela minha mãe, mais uma vez ela
estava criticando meu pai por não ter passado a noite em qualquer hotel de beira
de estrada.
— Fique calma Melissa, logo iremos chegar.
Olhei para o retrovisor trocando um sorriso com meu pai. Sabe aquele
ditado que as filhas são mais agarradas ao pai? Nesse caso era completamente
verdade, eu e meu pai tínhamos uma cumplicidade que poucas vezes tinha visto
em outras filhas. E eu era extremamente grata a isso, enquanto minha mãe era
enérgica, meu pai era todo tomado pelo grande coração.
Jules dormia em sua cadeirinha, nenhum pouco incomodada com seu
redor, minha irmã era um anjinho. Quando estava dormindo!
Dei um sorriso recolocando os fones de ouvido, apoiei minha cabeça ao
encosto fechando novamente os olhos. Por poucos minutos, a freada brusca do
carro me fez arregalar os olhos prestando atenção ao que estava acontecendo, um
carro veio em alta velocidade em nossa direção. Meu pai pouco teve o que fazer,
mesmo desacordada, ou com um resto de consciência preso no presente eu
escutei quando ele pediu socorro para alguém, assim como o barulho das
ambulâncias ao longe.
Não foi uma chegada relativamente boa, mas com sorte todos estávamos
bem. Meu pai apesar de recorrer a uma cirurgia na perna, pelo fato das ferragens
do carro terem machucado para valer, estava bem, depois de poucos dias. E
fizemos de tudo para apagar aquela noite de nossas memórias, meu pai não
prestou queixa contra os adolescentes bêbados que tinham invadido a pista quase
matando minha família, mesmo que minha mãe gritasse com os policiais que
queria sim realizar a queixa. Durante o período de observação que passei no
hospital não vi nenhum deles, mas fiquei sabendo que eram dois meninos e duas
meninas, porém estava mais preocupada com minha família, minha mãe mesmo
tendo sido encontrada desacordada, como eu, tinha machucados leves, eu apenas
abri o supercílio com a batida. Jules graças à segurança de sua cadeirinha não
tinha feito nada, apenas foi o susto mesmo.
Como disse meu pai foi aquele que mais se machucou, com a intenção de
nos salvar e até mesmo salvar aqueles jovens, jogou o carro para fora da pista,
batendo de frente com uma árvore. Pelo impacto da batida teve ferimentos no
rosto pelo vidro quebrado e na perna, uma das ferragens do carro entrou em sua
tíbia levando-o para cirurgia e algumas sessões de fisioterapia, quando saísse do
repouso.
Meu pai tinha sido aconselhado pelo médico a realizar seis sessões de
fisioterapia para fortalecimento do músculo, algo normal, devido ao acidente,
por isso aqui estávamos, atravessando os corredores do hospital. Deixei que ele
seguisse para sua sessão, me sentando na sala de espera. Acredito que não tinha
passado nem vinte minutos quando eu já estava impaciente demais, joguei a
revista de volta no cesto grande em minha frente e sai observando os corredores.
Atravessei corredores repletos de portas fechadas, subi e desci no
elevador, até parar em um corredor diferente, bom, não tão diferente já que
estávamos em um hospital, mas esse tinha poucas portas, duas estavam abertas e
eu escutei risos.
Andei devagar em direção ao som, parando quando saiu de um dos
quartos dois rapazes, um em pé empurrando uma cadeira de rodas com o outro
sentado. Foi só quando o que estava sentado virou o rosto que eu reconheci
quem era.
— Luke? – perguntei timidamente.
Ele arregalou os olhos, travando a boca em uma linha fina.
— Nos encontramos novamente.
Mesmo que aquele rapaz não lembrasse em nada ao Luke Dinally que eu
cruzei algumas semanas atrás, ali estava ele. Pálido, com olheiras fundas nos
olhos verdes que tanto me hipnotizaram naquele dia, com uma touca na cabeça,
junto com um casaco largo no corpo.
— Luke, sou eu, Alissya. – disse.
Talvez ele não se lembrasse de mim.
— Eu sei quem você é. – respondeu roucamente.
— Sabia que nos encontraríamos de novo, mas não esperava que fosse
aqui, você está bem?
Dei mais alguns passos parando bem perto deles.
— Estou ótimo, passar bem. – disse cruzando os braços sobre o peito.
Mordi o canto interno de minha boca.
— Eu sou Isaac, prazer. – o outro rapaz estendeu a mão para mim.
— Alissya.
— Bonito nome, garota bonita. – disse com um sorriso.
— Obrigada. – sorri colocando uma mecha do meu cabelo, que teimava
em cair no rosto.
— Se nos der licença temos que ir.
Olhei novamente para Luke, vendo seu rosto franzido, fechado.
— Ah, desculpe. Eu...
Isaac sorriu como quem se desculpava pela grosseria do amigo, mas
seguiu com a cadeira para o final do corredor, deixando-me parada olhando para
eles.
— Bons rapazes. – sussurrou uma mulher de meia idade, surgindo ao
meu lado.
Sorri.
— Meu nome é Sam, você é amiga do Luke?
— Alissya. E, não sei. Achei que sim.
— Não fique triste menina, ele está ranzinza assim desde que chegou,
está sendo difícil. – ela pegou uma toalha branca com emblema do hospital do
carrinho no canto do corredor. – Mas quem pode culpá-lo?
— Desculpe ser... Intrometida, mas ele parece bastante mal, o que ele
tem?
— Leucemia, Luke está lutando contra Leucemia.
— Leucemia? – repeti incrédula. — Eu cruzei com ele poucas semanas
atrás, ele estava bem, nunca desconfiaria que ele tivesse Leucemia.
— Sim, infelizmente. Um garoto tão forte, com um quadro tão
complicado. A doença de Luke agiu de forma silenciosa por um bom tempo,
quando foi diagnosticado ele já estava num quadro clínico avançado.
Olhei para a tal enfermeira engolindo em seco, eu não sabia o que falar,
eu não queria mais ficar ali.
— Preciso ir, até mais.
— Até.
Luke Dinally
Cento e sessenta e oito horas passaram, 10.080 gotas caindo na cânula
ligada ao meu corpo.
Sim, eu estava contando. Isso diminuía por incrível que pareça minha
pressa para retirar essa bomba de meu braço.
Por isso me vi ajeitando o corpo quando o enfermeiro entrou junto de
Sam.
— Vejo que temos um paciente ansioso.
— Tire isso de mim. – implorei.
Ela sorriu, ajeitando meu braço, examinou meu acesso, mediu minha
pressão, verificou minha temperatura. Tudo me deixando ainda mais impaciente.
— Bom, o doutor Patrick quer vê-lo. Você se sente bem para ir até o
consultório dele caminhando?
— Sim.
— Luke? – advertiu.
Respirei fundo. – Não estou mentindo, estou bem dessa vez.
Ela esboçou um sorriso terminando de retirar toda a aparelhagem, pronta
para me acompanhar. Hoje era o último dia do ciclo de infusão, eu estava
ansioso para saber se tinha feito algum progresso. Durante os primeiros dias eu
realmente tinha passado mal, minha alimentação consistia no soro que era
injetado por via intravenosa, com o passar do quarto dia eu consegui pela
primeira vez me alimentar, não era lá um manjar dos deuses, mas era bom sentir
algo em minha boca sem ser o gosto de ferro.
A porta do consultório estava aberta, o médico de costas analisando uns
papéis. Bati de leve duas vezes, anunciando minha chegada.
— Pode entrar meu rapaz. – disse cumprimentando-me.
—Diga logo.
— Calma, vamos com calma. Como você está?
— Estou bem.
Ele me encarou com uma sobrancelha arqueada.
— É verdade, realmente me sinto melhor.
— Enjoos?
— Poucos, apenas pela manhã.
— Febre?
— Nenhuma, Doutor. – respondeu Sam.
— Isso é bom. – o médico de meia idade fez algumas anotações em meu
prontuário. – Luke você entende que não é porque está alguns dias tendo bons
resultados que está totalmente curado?
— Entendo.
— Sua primeira parte foi feita, seu hemograma apresentou melhoras e a
diminuição dos Blastos. Porém, como já havia comunicado para você na outra
consulta teremos que realizar o transplante de medula. Seu nome já foi inserido,
mas sabemos que muitas vezes encontrar um doador é complicado, além de ter
todo tipo de procedimento. No seu caso, você passou pela fase de indução, sua
biópsia mostrou a queda de Blastos, por isso estou permitindo que retorne para
casa, retome seus afazeres, esteja ciente de suas dificuldades, você ainda pode, e
deverá ter alguns empecilhos ou até mesmo sintomas. Isso é normal, passamos
pela primeira fase, ainda não vencemos a guerra, você tem o compromisso de
consultas periódicas semanais, assim como os exames até que realize seu
transplante.
— Depois desse transplante, eu estou livre disso?
— Se for bem-sucedido e se a remissão for atingida, você entrará na fase
de consolidação, ou seja, essa parte do tratamento será realizada para destruir
qualquer célula leucêmica remanescente e prevenir a recidiva. Em todo caso
Luke, o transplante indicado para você é o halogênico.
— Você pode falar numa linguagem que eu entenda? – questionei de
forma rude.
— Luke, querido. O que o Doutor está dizendo é que no seu tipo é
melhor uma medula doada por outra pessoa compatível com seu tipo de tecido. –
Sam respondeu totalmente calma, acredito que ela já não estava mais se
importando com minhas grosserias. – O outro tipo de transplante no seu caso não
adiantaria, pois sua medula precisaria ser retirada antes de todo o procedimento
quimioterápico para que tudo ocorresse bem.
— Quanto tempo demora esse procedimento?
— Isso varia muito, podemos achar um doador compatível amanhã,
como daqui três semanas, cinco meses.
Suspirei pesadamente.
— Já assinei sua alta, seus pais estão esperando por você no quarto.
Entendo que você deseja que as coisas sejam passadas diretamente para você,
respeito sua vontade, como você é maior de idade o torna responsável por suas
decisões, mas espero que você conte para sua família sobre seu quadro.
— Contarei.
Ele confirmou com um gesto de cabeça, guardando os papéis dentro de
uma pasta.
— Espero que fique bem, mas já sabe...
— ...qualquer tipo de efeito, dores, qualquer coisa que sentir ligarei
imediatamente para você. – completei.
— Isso mesmo garoto.
Cerca de duas semanas após sair do hospital, eu tinha feito mais uma
bateria de exames, meu quadro estava sempre em avanço, mesmo que mínimo e
isso só pararia completamente quando tivesse o transplante, ainda não havia
surgido um doador, eu continuava na lista de espera. Meus pais tinham feito o
exame para verem se existia a possibilidade, mas ambos no último teste foram
descartados. Minha chance estava em alguém por aí. Poderia ser até alguém que
não havia doado a medula, que não sabia da importância que isso representava
na minha vida ou na de outras pessoas que sofriam a mesma doença.
Decidi sair com Brian um sábado à noite para assistir a um jogo do
Campeonato Estadual de Basquete de Beaufort, ele ficou parado em frente
minha casa por duas horas esperando minha resposta. Poderia ser bom e eu
estava com saudade de sair pelas ruas, por isso concordei. Após o jogo, fomos à
beira do mar, vendo as pessoas passearem de carro de um lado para o outro,
quando notei Alissya descendo a rua. Ela caminhava tranquilamente, sorrindo
para todos que passavam ao lado dela, vestindo uma calça jeans surrada e uma
blusa do The Breeders. Fiquei de costas, puxando a gola do casaco de couro para
cima, disfarçando minha identidade.
— Ela é a menina do acidente. – comentou Brian ainda olhando Alissya
descer a rua do centro.
— Eu sei.
— Até que ela é bem bonitinha.
— Cala essa boca, Brian. — resmunguei.
— O que foi? Estou constatando um fato, ela é gata. Marta comentou que
ela se mudou com a família, estão morando perto do parque.
Olhei por cima do ombro vendo-a seguir para as ruas menos povoadas,
fugindo da agitação do centro.
— Sabe, você sumiu...
— Nem comece com isso Brian, se vocês realmente tivessem se
importado teriam ido ao hospital, afinal se para fofocar, Beaufort era tão boa,
imagino que vocês já sabiam de minha doença.
Brian se calou por um instante.
— Desculpe cara, sério mesmo.
— Deixe isso para lá, – disse me levantando. – estou indo.
Olhei para onde Alissya sumiu, reconhecendo o caminho que ela estava
fazendo. Subi em minha moto, coloquei o capacete, seguindo a mesma direção.
Não sei porque estava seguindo aquela garota, já que sempre me sentia
desconfortável em sua frente, mas eu estava seguindo. Logo a vi sentada debaixo
de uma enorme Nogueira, o que uma pessoa faria às nove horas da noite debaixo
de uma Nogueira, com apenas uma lanterna e uma mochila? Deixei a moto
deslizar, parando perto de onde ela estava.
— Por mais que Beaufort seja uma cidade pacata, acredito que ficar
debaixo de uma Nogueira no final da noite pode ser perigoso, até mesmo para
uma cidade como essa.
Ela sorriu ainda encarando um pequeno bloco apoiado nas pernas,
mordeu levemente a ponta da caneta antes de olhar e jogar a luz de sua lanterna
em mim. Um suspiro inaudível saiu de meus lábios, eu tinha me esquecido como
ela era bonita, mesmo ali levemente iluminada por sua lanterna e o farol de
minha moto, mentira! Eu não esqueci, passei dias repassando meu encontro com
ela no hospital, as covinhas que apareceram em seu rosto quando sorriu, ou o
jeito que jogava o cabelo para trás.
Eu não tinha sido nem um pouco educado naquele dia.
— Não acredito que irá aparecer algum assassino em série. – disse dando
de ombros.
— Olha eu não teria medo disso, e, sim dos bêbados que podem cruzar
seu caminho.
Só de pensar em algum marmanjo tentando se aproveitar dela, por estar
em um lugar vazio e silencioso trinquei meus dentes de raiva. Beaufort não era
conhecida pelos crimes hediondos, tivemos apenas dois assassinatos marcantes
na cidade nos anos 80.
— Você está convidado a se juntar. – disse – Se quiser.
— Estou indo para casa.
Ela concordou com um gesto de cabeça. — Fico contente que tenha saído
do hospital.
— Mas isso não me faz mais saudável. – retruquei.
— Bom, não. Porém te faz livre, livre para viver os dias, livre para fazer
o que quiser.
Soltei uma risada sarcástica, não era a primeira vez que ouvia isso.
— Sabe Luke, esses dias eu escrevi algo... – ela interrompeu o que estava
dizendo para mergulhar as mãos dentro da bolsa, procurando por algo. – Achei!
Segurei o riso, essa garota não podia ser normal.
Alissya levantou-se, tirou o resto de grama colado na parte de trás do
jeans, caminhando em minha direção.
— Quero que fique com ele.
Olhou diretamente para mim com um brilho muito carinhoso.
— Leia somente em sua casa. — disse-me enfiando o pedaço de papel no
bolso de minha jaqueta.
— Obrigado — respondi. Um pequeno nó estava se formando no meu
estômago.
Alissya sorriu para mim novamente de maneira alegre.
— Eu posso te dar uma carona?
— Não é preciso, – murmurou. – por mais que sua oferta seja muito boa,
acredito que sua moto não foi feita para esse tipo de coisa. – completou rindo.
Isso era verdade a Harley não tinha um banco de carona muito
confortável, na verdade, o banco propriamente dito era quase inexistente.
— Acredito que posso dar um jeito.
Ela sorriu mais uma vez e eu fiquei me perguntando por que ela sempre
via necessidade de mostrar os dentes? Por que sorrir sempre?
— Agradeço, mas esta uma noite lindíssima, voltarei caminhando
tranquilamente.
— Se é assim. – disse com um dar de ombros, ligando a moto.
— Você não é nada do que aparenta, Luke Dinally.
Olhei novamente para Alissya pegando suas coisas do chão. – Por que
diz isso?
— Porque você pode tentar ser grosseiro, rude, ou o que possa fazer para
afastar as pessoas de você. Eu entendo, você está ferido, com medo até, mas isso
não te torna aquilo que tenta parecer.
— Você não me conhece.
— Talvez não, — disse sorrindo. — ou talvez eu veja mais do que você
deixa transparecer.
Fiquei parado encarando aquela menina colocar a bolsa no ombro
esquerdo e se afastar voltando para o centro movimentado de Beaufort.
Que criatura mais... O que Alissya era e o principal, por que mexia tanto
comigo a ponto de me arrancar a fala?
Luke Dinally
— É bom te ter de volta filho.
Sorri ajeitando a touca na cabeça, à parte incomoda para mim, ainda era a
queda do meu cabelo. Sei que um dia eles voltariam a crescer, quem sabe quando
toda a droga de medicamentos pesados saísse do meu corpo. Mas ainda assim
era estranho andar pela cidade que me conhecia desde bebê e as pessoas ficarem
te encarando, cochichando sobre você quando acreditavam que você não poderia
ouvir.
— É bom estar por aqui, e que me lembre eu tenho uma dívida para
pagar.
Tony bateu com sua mão gorda e pesada em meu ombro. – Já estava na
hora, sei que você não vai atrair tanta mulher para meu restaurante com essa sua
nova cara de ovo. Porém, é ótimo vê-lo fora de casa finalmente e confesso que
você está mais bonitinho assim, era coisa de mulherzinha você ficar jogando o
cabelo toda vez que um rabo de saia aparecia por aqui.
— Você não tem outra pessoa para encher o saco, Tony?
Ele soltou uma grande gargalhada.
— Vai para o trabalho, você está me fazendo perder dólares.
Dei a volta no balcão pegando um avental do Tomillos na segunda
prateleira. Era uma quarta-feira atípica, havia poucas mesas livres, sua maioria
era adolescentes aproveitando o final da tarde. Eu me sentia bem, depois que sai
da internação foram poucos dias com sintomas, estava me sentindo bem, entre
tantas coisas que poderiam dar errado nesse momento, eu estava bem.
— Vamos Luke, mesa sete está esperando. – gritou da cozinha.
— Ele é sempre assim. – uma garota resmungou voltando da aérea dos
clientes.
Levantei os olhos vendo a garota em si, seus cabelos estavam presos em
um coque bagunçado. Uma maquiagem pesada cobria todo seu rosto.
— Vejo que conheceu a Estranha. – Tony empurrou uma bandeja em
meus braços.
— Meu nome é Esten. – retrucou a menina.
— É tanto faz. – disse voltando para a cozinha.
— Tony é assim mesmo, logo ele começa a chamá-la pelo seu nome.
— Não estou nem aí, só quero a grana para sair dessa cidade.
Eu compreendia seu pensamento, eu mesmo pensei isso diversas vezes,
subir na moto e sumir pelas estradas, parando de cidade em cidade, mas isso
ficou para trás, como todo um planejamento de vida. Passei pelo balcão indo até
a mesa sete, deixando os pratos do casal, o sino da porta tocou anunciando um
novo cliente. Pelo canto do olho vi Esten passar por mim em direção a eles.
— Tenham um bom apetite.
Depositei a bandeja no balcão seguindo para as mesas opostas, retirando
os pratos e copos, estava na metade do salão quando escutei a voz dela. Eu fiquei
com um buraco na boca do estômago, eu não queria me virar.
— Essa mesa aqui está ótima. – a voz de Alissya chegou como um
sussurro até mim.
— O que você irá comer, nossa eu estou com muita fome. – a outra
garota sussurrou.
Continuei arrumando as mesas, me mantendo de costas.
— Você está sempre com fome, Marta.
Marta, Brian tinha comentado sobre essa tal Marta quando saímos, mas
eu não recordava quem era.
Eu sabia que meu “esconderijo” não demoraria muito para ser
descoberto, mesmo que Tony não tivesse gritado meu nome fazendo a intrigante
menina olhar pelo restaurante procurando por mim. Ela iria me ver, de qualquer
jeito. Virei em sua direção sendo pego por aqueles olhos castanhos profundos,
sentindo como se tivesse um buraco de um tamanho de uma bola de boliche em
meu estômago.
Ela fez um pequeno aceno com a mão, enquanto sua amiga tagarelava,
por um instante a amiga seguiu o olhar de Alissya, encarando-me.
Virei parando em outra mesa retomando minha atividade.
— Luke Dinally? Não acredito. – sua amiga disse alto o suficiente para
eu ouvir.
— Você o conhece? – Alissya perguntou.
— Quem não conhece Luke Dinally? Ele era o melhor jogador de
basquete da cidade, os Hunther venceram diversas temporadas com Luke como
Armador principal do time. Matt meu namorado sempre teve uma espécie de
desavença com ele, foi por causa da doença dele que Matt ganhou a bolsa na
faculdade como melhor Armador, sabe, não que eu deseje isso para ninguém,
mas... Sabe, você é nova aqui, acredito que não quer logo se meter com um
problema.
— Como assim? – escutei Alissya questionar.
— Ah, você sabe, Dinally é um cara doente. Poucos dias de vida, pelo
menos é isso que falam.
Deixei a bandeja cair de minhas mãos fazendo um barulho enorme pelo
restaurante, chamando atenção para mim. Eu sabia que ela estava me olhando,
sabia que todos me encaravam, todos sabiam que o doente estava
provavelmente sendo atrapalhado, derrubando as coisas por não aguentar uma
simples bandeja. Levantei os olhos encarando Alissya, sua boca estava um
pouco aberta como se ela soubesse que eu ouvi toda sua conversa, um pouco
mais adiante reconheci um grupo de garotos que estudaram comigo, no meio
deles estava Belina e Bianca, sussurrando e me encarando de volta.
Meus pés fraquejaram por um momento.
— Luke? Filho, você está bem? – Tony veio em meu socorro, apertando
meu antebraço como se tivesse pronto para me segurar se eu passasse mal.
— Eu preciso de um pouco de ar. – disse trincando o maxilar.
— Saia pela porta dos fundos, não deixarei que ninguém apareça por lá.
Praticamente forcei meu corpo a correr para os fundos do Tomillos, por
um momento eu acreditei que aguentaria, acreditei que estava confiante e pronto
para ter a cidade apontando o dedo, mas eu não estava, eu não estava preparado
para ver os outros cochichando e apontando o dedo para mim. Encostei na moto
respirando fundo, deixando o ar entrar em meu corpo e sair novamente,
repetindo o processo até que a fraqueza fosse realmente embora.
— Luke?
Eu não me virei sabia que seria ela, sabia que ela queria se desculpar por
sua amiga.
— Me deixe em paz, Alissya.
— Você não sabe mesmo como ser educado com as pessoas?
— Você sabe perceber quando está sendo inconveniente nos
lugares? Se veio se desculpar sobre sua amiga, não perca seu tempo. Ela
está certa, procure alguém que não seja um problema para você. – disse
me virando.
Alissya fechou a cara. – Eu só queria saber como você estava.
— Estou ótimo.
Ela fez menção de ir embora, mas retornou, chegando mais perto de
mim. – Sua doença não te dá motivo para ser um babaca com as pessoas, agora
se você não tem educação não culpe sua doença.
Desviei os olhos, encarando os carros passando pela rua.
— Muitas pessoas passam por momentos que não desejamos nem para
nosso pior inimigo. Mas tenho certeza que nenhuma delas ignora o mundo ou
decide ser grosseiro porque está doente.
— Você não sabe de nada.
— Pode ser, pode ser que eu não conheça você, que não tenha realmente
motivos para perder com um cara que quer descontar sua raiva no mundo.
Senti ela aproximando mais de mim. – Ou talvez eu sabia o porquê você
tenta mostrar algo que não é, querer afastar as pessoas porque você acredita
sinceramente que vai morrer não é o que fará com que elas se afastem, senão
nem seus pais deixariam você entrar em casa.
Virei-me dando de cara com Alissya, praticamente centímetros de mim,
tendo apenas minha moto como barreira, seus olhos castanhos brilhavam pelo
reflexo do sol.
— Que tal começarmos de novo? – perguntou abrindo um lindo sorriso.
Suspirei olhando para aquela garota que conseguia matar com um
sorriso.
— Meu nome é Alissya, mas isso você já sabe, cidade pequena é meio
previsível. – acrescentou uma piscada para mim.
— Sério, isso?
— Sim. – disse mantendo sua mão estendida em minha direção. – Se
você não pegar minha mão como um bom cavalheiro vou achar que quer ser
rude, e isso não é nada legal.
Peguei sua mão, sentindo a pele macia sobre a minha. Alissya tinha
cheiro de morango, somente agora centímetros dela eu reparei em seu cheiro de
frutas vermelhas.
— Luke.
— Luke é um nome legal, parece de cachorro, mas admiro a coragem dos
seus pais.
Nem mesmo eu consegui deixar de sorrir depois dessa e Alissya
percebeu. — Olha ele sorriu!
— Não se acostume.
Ela me observou sorrindo. – Pode ser, mas aguardarei esse momento.
Revirei os olhos.
— Você pode até não acreditar, mas vai ter um dia que você vai gostar de
mim e nesse dia seu cérebro vai quase fritar.
— Eu duvido, você é irritante.
— Acredito que é uma qualidade. Algumas pessoas tendem a serem
bonitas, atléticas, outras mandam muito bem em algo. Eu sou irritante.
Olhei para aquela garota não acreditando, de onde ela havia tirado essa
ideia que não era bonita, ela era a garota mais bonita que eu havia visto. Alissya
veio em minha direção, apoiando as mãos sobre meu peito me fazendo congelar
no lugar, deu um beijo em minha bochecha e sorriu.
— Até mais garoto problema.
Ela atravessou a rua ainda sorrindo e por todo momento que se afastava
deixando-me pregado no chão pela segunda vez, eu acompanhei seus
movimentos até sumir de minhas vistas.
Capítulo 9
Alissya Rayven
Marta não era a melhor pessoa de Beaufort, na verdade ela tinha grande
facilidade de falar mal das pessoas e depois soltar um singelo sorriso como se
fosse a garota mais doce.
Mas uma coisa que Marta era boa, é saber sobre as fofocas e ainda como
ela fazia questão de falar “namorar o Armador Principal” como se isso a
deixasse um pouco mais inteligente, ou menos falada. Marta foi a primeira
pessoa que conheci quando estávamos nos mudando para Beaufort, sobrinha do
padre Maciel, cujo acreditava fielmente que ela era uma moça religiosa e
respeitável. Bem, nessa parte nem tanto. Porém foi através dela que em uma
manhã ajudando minha vizinha Sra. Reynalds em sua floricultura que Marta
entrou, puxou assunto e me disse onde Luke Dinally morava. Eu ainda conhecia
pouco da cidade, mesmo tendo andado bastante por aí, depois de passar a tarde
organizando as pilhas de fichas e organizar a floricultura peguei a bicicleta e fui
ao endereço que Marta havia me passado.
Segundo ela, Luke morava num bairro de casas grandes e conservadas,
assim como o senhor Dinally era um homem sério e muito respeitado na cidade e
sua mãe era tão doce e gentil que as pessoas tinham prazer em cumprimentá-la
na rua. O percurso durou pouco mais de dez minutos, parei no canto da calçada
admirando a bela casa em minha frente, um amplo jardim decorado com flores
de todos os tipos, um pequeno caminho de pedras levava até a porta.
Desci da bicicleta indo em direção a porta, eu sabia que corria o risco de
Luke me expulsar daqui com sua grosseria, mas eu estava disposta a arriscar.
Toquei a campainha, uma senhora abriu a porta. Ela tinha olhos verdes
como Luke, seus cabelos estavam soltos em volta do rosto, seu vestido ia até
seus joelhos. Realmente ela era linda.
— Posso ajudá-la?
— Sim, desculpe. Sou Alissya. – disse estendendo minha mão para ela.
— Prazer Alissya, Ligia.
— Eu sou amiga do Luke, queria saber como ele está. – pigarreie. – Ele
não tem aparecido no Tomillos.
— Ah, querida, entre. Fico muito contente que Luke esteja fazendo
novos amigos. – ela sorriu toda simpática, permitindo que entrasse em sua casa.
— Muito obrigada.
Foi difícil conter minha expressão de espanto, a casa era ainda mais
elegante do que lá fora, observei os quadros na parede, diversas fotos de Luke
em diversos momentos, sozinhos ou com os pais, todas as fotos ele sorria.
— Meu Luke era um menino sorridente.
Voltei meus olhos para a senhora Dinally, vendo que por trás da
maquiagem leve, dos cabelos arrumados ali estava uma mãe cansada, cansada de
esperar, cansada de confiar que a doença regrediria e sobre tudo, o peso que
estava levando nas costas.
— Quem está aí?
Virei ouvindo a voz de Luke vindo pelo pequeno corredor, logo ele
estava parado me encarando.
— O que você está fazendo aqui?
Ele não estava com a touca preta de sempre, sua cabeça estava à mostra,
os olhos estavam com olheiras mais profundas e ele se mantinha meio curvado,
ele tinha piorado. Esse era o motivo porque não estava mais indo no Tomillos.
— Isso é maneira de tratar sua amiga? Não ligue para ele Alissya, vou
colocar mais um lugar na mesa, você janta conosco.
— Não precisa! – Luke logo retrucou.
— Eu adoraria.
Ele me encarava com os lábios encrespados, esperou sua mãe sumir em
direção ao outro cômodo para jogar sua fúria em cima de mim.
— O que você quer?
— Eu vim te ver.
— Como conseguiu meu endereço?
— Cidade pequena. – disse num dar de ombros.
Ele ainda me analisava, ficamos alguns segundo trocando olhares até que
ele suspirou apertando a ponte do nariz entre os olhos. – Espero que goste de
sopa, é isso que temos ultimamente.
— Por mim, está ótimo.
Ele respirou fundo seguindo pelo corredor, indo para onde sua mãe havia
sumido poucos minutos atrás.
Examinei demoradamente os quadros, vendo uma parte de Luke em cada
foto pendurada na parede, como se cada um contasse um dia, um momento feliz
dele. Muitas, ele estava acompanhado de uma bola de basquete, tinha fotos de
sua formatura no colégio ao lado deu uma garota estilo capa de revista, fotos
dele fazendo caretas, ou simplesmente olhando para câmera. Luke era feliz, ele
só precisava encontrar o caminho de volta.
Os móveis pareciam esculpidos a mão, combinando perfeitamente com o
ambiente em que estavam, como se fosse especificamente para aquele lugar.
Segui para o final do corredor dando de cara com uma enorme sala de jantar, a
Sra. Dinally arrumava a mesa com perfeição, na cabeceira o Sr. Dinally lia
tranquilamente seu livro, Luke por outro lado estava olhando seriamente para os
próprios dedos.
— Luke cadê seus modos, apresente sua amiga para seu pai. – a mãe de
Luke saiu da cozinha carregando uma enorme vasilha decorada, colocando-a no
centro da mesa.
— Pai, essa é Alissya Rayven.
O pai de Luke abandonou a leitura, deixando o livro ao seu lado, olhou-
me por alguns segundos antes de abrir um singelo sorriso.
— Seja bem-vinda Alissya. Sente-se.
— Muito obrigada, senhor.
— Hendri, apenas Hendri.
Luke encarava de seu pai para mim, como se estivesse vendo dois
completos estranhos em sua frente.
— Conte para nós como você conheceu Luke, ele não costuma falar
muito de sua vida. – a mãe de Luke disse.
Pelo canto do olho vi que ele revirava os olhos ao mesmo tempo em que
tirava do bolso uma touca preta, cobrindo sua cabeça careca.
— Nos conhecemos no centro.
— Você é nova na cidade. – constatou Hendri.
— Sim, me mudei faz poucos meses, na verdade, todos pelo visto já me
conhecem, sou a menina do acidente. – disse em tom irônico.
Morar em cidade pequena tinha disso, algumas pessoas me chamavam
como a “menina que sofreu o acidente” isso era péssimo, mas eu entendia essa
alma fofoqueira sulista delas.
— Acidente? – a mãe de Luke trocou um olhar com seu marido,
voltando-se para mim.
— Sim, quando estávamos na estrada um carro nos atingiu, alguns jovens
bêbados. Não que eu me importe mais com isso, sei que o carma vai persegui-
los.
Luke engasgou, cuspindo a sopa para todo lado na mesa.
— Luke querido, tudo bem?
— Sim.
Ele olhava diretamente para mim, fixando seus olhos verdes somente em
mim.
— Esta sopa está deliciosa Sra. Dinally. – disse quebrando aquela
conexão, eu estava começando a ficar sem ar.
— Ligia, nada de senhora.
— O seu pai trabalha em quê?
— Por favor, pai.
— Estou apenas querendo saber mais da sua amiga, algum problema
nisso?
Luke não respondeu, apenas soltou um suspiro resignado.
— Meu pai trabalhava na prefeitura de Dallas, na verdade, ele continua.
Ele trabalha com exportação e minha mãe era musicista, mas teve que abandonar
a carreira para tomar conta de mim e agora de minha irmã Jules.
— Nossa, vocês moravam em Dallas, o que os fez vir para Beaufort?
Você pensa em fazer faculdade na Universidade de Beaufort?
— Na verdade, não. – sorri repousando a colher ao lado do prato. – Eu
pretendo ir para Juilliard ou Columbia, estou esperando a carta de admissão.
— O sonho de Luke era ir para UCLA, quando ele descobriu a doença
ele tinha um jogo muito importante.
— Chega. – Luke sussurrou.
— Foi uma verdadeira perda, Luke sempre foi o melhor jogador do
colégio e tinha vaga garantida na UCLA, o próprio treinador ficou arrasado de
colocar outra pessoa no lugar dele...
— Eu disse chega, mãe! – Luke explodiu ficando de pé, os punhos
cerrados, tremendo minimamente.
O silêncio tomou a mesa, como se ao ficar de pé Luke tivesse aberto um
enorme buraco na sala. Engoli em seco me levantando.
— Muito obrigada pelo convite para o jantar, senhor e senhora Dinally.
— Apareça quando quiser. – Hendri disse de forma baixa. – Peço
desculpas por esse rompante de Luke.
— Não precisa se desculpar, na verdade, os planos de Luke podem ter
sido adiados, mas como diz uma pessoa muito importante para mim, devemos
sonhar sempre, viver sonhando.
— Eu levo você até a porta. – Luke disse dando a volta na mesa.
Atravessei a porta da frente parando para olhar o céu cheio de estrelas
antes de me virar para Luke. Ele estava com as mãos dentro dos bolsos da calça,
seu olhar me avaliava.
— Sua mãe é encantadora. – disse.
— Suponho que sim.
Suspirei pesadamente me virando, caminhando de volta para minha
bicicleta.
— Alissya?
Virei-me novamente para ele.
— Obrigado pelo poema.
— De nada, Luke.
— Alissya?
Mordi o lábio inferior tentando segurar o sorriso que queria despontar em
minha boca ao escutá-lo chamando meu nome. – Sim.
— Obrigado por ter vindo, eu realmente gostei.
— Quase nem percebi. – brinquei, conseguindo arrancar dele um quase
sorriso, mas para mim aquele sorriso querendo romper a fachada séria que ele
impunha, era como um prêmio.
— Costuma pensar no futuro, Luke? – perguntei.
Ele pareceu surpreso, uma ruga se formou em sua testa.
— Não mais.
— Não imagina onde você estará daqui um ano, qual vai ser a primeira
coisa que realizará depois de ficar curado?
— Não tenho mais sonhos Alissya, não tenho mais planejamentos, se é
isso que você quer saber.
— Todos têm sonhos.
— Eu não tenho, acredite.
Eu havia percebido uma coisa, entre tantas com Luke, toda vez que um
assunto o desagradava ele franzia o nariz.
— Tem sim, você só precisa olhar mais para o horizonte em vez dos
próprios pés. – disse subindo na bicicleta.
— Isso é alguma daquelas suas metáforas malucas?
— Talvez sim, talvez não. Boa noite, Luke.
— Você é maluca. – gritou enquanto eu me afastava.
Olhei para trás abrindo um enorme sorriso, ele tinha sonhos e eu estaria
aqui para ajudá-lo a vê-los.
Capítulo 10
Luke Dinally
Deitado em minha cama, meus olhos fixos no teto branco sem graça, sem
pensamentos rondando-me, sem a mínima vontade de adormecer. Eu apenas
estava ali, olhando para o teto do meu quarto, piscando quando meus olhos já
estavam secos demais por encarar o nada.
Escutei um barulho do lado de fora, um barulho alto que atravessou
minha janela fechada. O barulho persistiu, era como se alguém escalasse a
parede de minha casa. Suspirei ignorando, devia ser apenas um gato arruaceiro.
Olhei para o relógio em minha cabeceira vendo que passava das duas da
madrugada, meus olhos desviaram-se para a janela vendo uma sombra parada
ali, a lanterna iluminou meu quarto.
— Luke?
Sentei na cama não acreditando em meus ouvidos. Não era possível.
Sai da cama, acendi o abajur, abri a janela vendo Alissya apoiando-se no
parapeito, seus olhos iam de momentos em momentos para o chão como se
estivesse analisando qual altura teria.
— Será um belo tombo. – disse lendo seus pensamentos.
— Não sou muito fã de altura, agradeceria se você me ajudasse.
Suspirei terminando de abrir minha janela, passei meu braço por sua
cintura puxando-a para dentro do quarto.
— Posso saber o porquê de ter escalado minha janela? – questionei com
a sobrancelha erguida. – você tem sorte de não ter batido no quarto de meus pais.
— Me pareceu uma boa ideia quando pensei. – suas bochechas estavam
vermelhas pelo frio que ela devia ter enfrentado até aqui. – E eu raciocinei que
seria mais provável que a janela dos seus pais ficasse virada para frente da casa.
– completou dando de ombros.
Voltei para a janela, fechando-a.
— O que você está fazendo?
— Fechando a janela para que não congelemos aqui dentro. – retruquei.
— Seu quarto é bonito e organizado. – disse surpresa.
Olhei para meu quarto, depois voltando meus olhos para ela.
— Você esperava meias jogadas, toalha fedida e cuecas sujas pelo chão?
— Esperava algo assim. – disse com um sorriso.
Alissya andou pelo meu quarto, observando minhas coisas, parou em
frente à prateleira dos meus troféus, mexeu nos poucos livros que tinha, andou
mais um pouco sorrindo para mim, e então sentou-se na ponta de minha cama.
Soltei um suspiro. – Está um pouco tarde, você não acha?
— Talvez. O que você fazia em uma sexta-feira à noite?
Ergui a sobrancelha, encostando-me no parapeito da janela.
— Sei lá, saía com meus amigos, ficávamos de bobeira pela cidade, ou
íamos em alguma festa.
— Faz um bom tempo que não vou a uma festa, minhas amigas em
Dallas adoravam se meter em confusões.
— Seus pais sabem que você saiu por aí?
— Meu pai deve ter escutado a porta da frente se fechar. – disse dando de
ombros. – Será que hoje está tendo alguma festa pela pacata Beaufort?
Cocei o pescoço olhando para aquela garota. – Provavelmente.
— Que tal irmos? – perguntou animada.
— Não acho que estou sendo bem visto em festa no momento. –
retruquei.
— Bobagem!
— Isso é normal? – questionei.
— O que é normal? Ir a festas sem se importa como as outras pessoas
olham para você? – ela andou até a cadeira de minha mesa de estudos, sentando-
se nela.
— Não. O fato de você sair de casa e seu pai não ir correndo atrás de
você.
— Meu pai confia em mim. – disse balançando a cadeira, totalmente à
vontade em meu quarto.
— Uma mãe ficaria louca da vida se sua filha saísse às duas da
madrugada pela cidade.
— Minha mãe não é lá muito preocupada comigo.
Vi o sorriso dela esmorecer um pouco. – Relacionamento complicado?
— Um pouco.
— Sei como é isso.
Passamos alguns minutos em silêncio nos olhando até que ela ficou de
pé, pegou meu casaco jogando-o em minha direção.
— Venha, vamos ver as estrelas Dinally.
— Você deve ter enlouquecido, lá fora está congelando.
— Vamos lá Dinally, não seja covarde.
Respirei fundo olhando para aquela garota, Alissya me tirou de frente da
janela já a abrindo, colocando uma das pernas para fora.
— Só tome cuidado para não cair. – retruquei vestindo meu casaco.
Ela passou ficando de pé no telhado olhando para mim. Deus, o que eu
estava fazendo?
Passei pela janela vendo Alissya subindo pelo telhado, sentando-se na
parte mais alta, com certeza ela era maluca. Andei devagar pelo telhado,
sentando-me ao lado dela.
— Aqui tem uma vista linda.
Olhei para frente, meu bairro tinha as casas espaçadas, quintais grandes,
para mim era apenas uma vista comum.
— Olha. – disse apontando para o céu.
O céu estava escuro, mas ao mesmo tempo brilhante repleto de estrelas.
— Alguns estudiosos dizem que você pode prever coisas através das
estrelas. Que as estrelas dizem algo para você, lógico que seriam anos de estudos
para isso, mas eu me contento em admirá-las.
— Isso é “balela”.
Ela suspirou. – Como pode ter uma visão dessas em sua frente e não ver
a beleza?
— Acredito que não tem motivos para eu ver a beleza em tudo
ultimamente. – retruquei.
— Sempre tem um motivo para se ver a beleza.
— Eu tenho Leucemia, Alissya.
Ela soltou um suspiro, chegou mais perto, apoiou seu queixo em meu
ombro me pegando totalmente de surpresa. – Você está vivo Luke Dinally, tem
um propósito para tudo isso. E antes que retruque com mais uma resposta mal-
educada, observe as coisas boas que a vida traz para você.
Por muita insistência de meus pais eu segui com eles para a missa de
domingo. Estar presente escutando durante uma hora o culto do padre Maciel
chegava a ser pior que os sintomas do câncer e por falar neles, os sintomas
tinham me consumido depois de minha aventura de trabalhar no Tomillos, mal
me alimentava, tudo que entrava encontrava uma maneira de sair, assim como
comecei a ter sangramentos, por esse motivo e mais alguns, meus pais insistiram
que fosse a missa antes de ser internado.
Entrei na igreja encarando meus próprios pés, não seria nada agradável
ver o rosto do povo de Beaufort me encarando.
— “Esta é a confiança que temos ao nos aproximarmos de Deus: se
pedirmos alguma coisa de acordo com a sua vontade, Ele nos ouve. E se
sabemos que Ele nos ouve em tudo o que pedimos, sabemos que temos o que
Dele pedimos” — recitou o padre.
Meus pais decidiram se sentar na terceira fileira, na direção do altar onde
o padre estava parado, eu não levantei meu olhar nem por um segundo, puxei a
touca mais para baixo e fiquei encarando meus próprios dedos.
— Algumas coisas para acontecer não requer somente da nossa fé em
Deus, é preciso você ir buscá-las meus filhos, Deus sempre nos mostrará nosso
caminho até Ele, ou até seu objetivo, mas é preciso perseverança para alcançá-
los. Ele conduzirá conforme a vontade Dele, nada acontecerá se você não sair do
lugar. Você busca melhoria, mexa-se para isso, você busca a cura? O que você
está fazendo para obtê-la?
Suspirei, fechando os olhos por um segundo. Claro, Deus somente me
deu a doença, para a cura eu preciso correr, buscar e conquistá-la. Quanta
banalidade!
— Hoje estamos com uma apresentação especial, venha minha filha. –
padre Maciel fez uma pausa.
O som que tomou a pequena igreja aguçou minha curiosidade, fazendo
erguer o olhar a sua procura, era uma melodia calma, ela me transmitia isso, me
envolvia como se estivesse somente eu e a música naquela igreja. Meu olhar se
fixou no lado oposto do altar, vendo uma garota de costas tocando um violino,
ela parecia ter tanta intimidade com o instrumento que eu fiquei hipnotizado, seu
cabelo preso no alto da cabeça balançava conforme ela tocada, a música ficou
mais intensa, mesmo sua melodia sendo suave. Era como se aquela garota
despejasse todo seu sentimento no violino, ela era o encantador e eu por um
instante fui a serpente.
Quando ela parou de tocar eu ainda estava encarando, as pessoas
aplaudiram e ela se virou, fixando seu olhar diretamente em mim. Como se
tivesse sentido minha presença.
Alissya sorriu, guardou seu instrumento na maleta e sentou-se na
primeira fileira ao lado dos que deveria ser sua família, deu uma pequena
espiada por cima do ombro em minha direção, mas logo retornou seu olhar para
frente respondendo algo que seu pai dizia. Olhei para sua mãe, sentada com uma
menina pequena no colo, ela não estava nem perto de esboçar alguma reação,
muito pelo contrário, seus lábios estavam encrespados e seu olhar se tornava
duro ao mirá-lo em Alissya.
— Aquela não era sua amiga, filho? – minha mãe sussurrou em meu
ouvido.
— Sim, ela mesma.
— Você está com febre, por isso fique de repouso, o enfermeiro já veio
colher seu hemograma e os outros exames?
— Sim.
— Ótimo, hoje já saberemos se a indução realmente foi cem por cento
aproveitada.
— O que seria isso?
— É um exame para nos certificarmos que a remissão deu certo, ou seja,
que você, seu corpo tenha o mínimo de câncer possível, o mínimo de Blastos.
Assim podemos autorizar o transplante, seu doador também está fazendo os
exames, se tudo correr bem, o transplante será feito.
Eu me sentia aliviado com isso, mas será mesmo que eu poderia acreditar
que logo poderia estar livre dessa doença? Todos os dias eu fazia exames de
sangue, exames do fígado, alguns sintomas se intensificaram nesse segundo
ciclo.
— Você tem que tomar os devidos cuidados Luke, pois nesse momento
seu corpo está propício a pegar infecções, você não pode estar nem no mesmo
ambiente que uma pessoa gripada. Eu vou deixar em sua ficha para que a
enfermeira Samanta venha para seus passeios, é importante para você sair da
cama, fazer seus músculos e circulação se agitarem.
— Tudo bem.
— Você precisa concordar, esse filme é bom. – Isaac falou pela milésima
vez sentado na poltrona.
Hoje eu estava pior que os outros dias, estava com falta de ar, que me
tomava em todos os movimentos, tomando antitérmicos de três em três horas,
pois a febre não cedia. Logo cedo eu soube que meu possível doador nos últimos
testes foi descartado e meu nome novamente inserido na lista de pessoas
aguardando a medula óssea.
— Esse filme é péssimo. – sussurrei de forma lenta.
— Eu gosto.
Virei meu rosto seguindo a voz, dando de cara com Alissya.
— Oi moça bonita. – Isaac disse todo animado.
— Oi Isaac, como você está hoje?
— Sempre bem, um dia de cada vez. – Isaac disse sorrindo.
Bufei virando o rosto.
— Isso é muito bom. – Alissya entrou mais em meu quarto, limpou as
mãos com álcool, colocou o avental que estava ao lado da porta cumprindo as
normas.
Quando ela se virou para mim e me pegou encarando-a, Alissya abriu um
sorriso e por um instante eu me esqueci de onde estava, eu só foquei em seu
sorriso.
— Como você está, Luke?
Dei de ombros.
— Ah esse daí está mais ranzinza do que tudo, – Isaac disse olhando para
a TV. – ainda mais hoje que descobriu que seu doador não pode ajudá-lo.
— Doador?
— Eu preciso fazer um transplante de medula. Meus pais por algum
motivo não podem me doar e a pessoa que tinha tudo para ser um bom doador,
não é mais. – disse.
Alissya pousou sua mão na minha.
— Não me venha com aquelas metáforas malucas.
Ela riu. – Você não falou comigo depois da missa.
— Você toca muito bem.
Ela manteve o sorriso mesmo eu notando que não era um sorriso tão feliz
como os outros.
— Você não gosta de tocar? – perguntei.
— É minha paixão.
— Por que sinto um “mas”?
— Minha mãe era musicista, ela teve seu sonho interrompido por mim,
sua carreira estava no auge, ela tinha tudo para estar nas maiores apresentações,
mas descobriu que estava grávida. E para ela, eu seguir esse dom, essa paixão é
como se fosse uma afronta.
— Isso é uma merda.
— Sabe, nem todos temos vidas perfeitas, na verdade duvido que tenha
um ser humano no mundo que seja completamente feliz. Nada é perfeito Luke,
estamos sempre sendo postos a provas, a obstáculos. É assim que crescemos. –
ela suspirou. – Veja, eu posso não ser aceita na Juilliard, já se passaram meses e
ainda não recebi admissão para o teste.
— Teste?
— Sim, mesmo sendo aceita na faculdade eu tenho que passar na
audição, irei ser posta à prova por quatro jurados.
— Você vai passar. – disse.
— Quem sabe. – retrucou dando de ombros.
— Eu sei. – disse sério.
— Você está sendo positivo, Luke Dinally?
Revirei os olhos. – Não se acostume.
— Mas vou guardar esse momento. – repetiu o que havia falado na
primeira vez que sorri de sua piada.
Não tinha percebido que havia adormecido, minha boca estava seca.
Peguei a garrafinha de água que sempre estava próximo de mim, tomando uma
boa parte do seu conteúdo.
— Ela gosta de você.
Olhei para o pé da cama, Isaac estava com um casaco por cima do
avental do hospital, sentado confortável em sua cadeira de rodas.
— Quem?
— Não se faça de tolo, você sabe que ela gosta de você.
Olhei em direção a Alissya que dormia apoiada em minha cama, sua mão
estava próxima a minha, como se tivéssemos adormecido de mãos dadas.
— E você gosta dela. – Isaac constatou.
— Acredito que seus remédios estejam muito fortes. – respondi de forma
irônica.
Isaac esboçou um sorriso. – O único cego aqui é você, você gosta dela
Luke, apenas não quer enxergar isso.
Olhei novamente para o rosto sereno de Alissya dormindo, eu não podia
dizer que ela não mexia com algo dentro de mim, por que estaria mentindo.
Porém eu não sabia se isso de fato era gostar dela, poderia ser apenas empatia
por tentar de todas as formas ser minha amiga.
Capítulo 11
Alissya Rayven
Acordei com uma dor aguda no pescoço pela forma que adormeci ao lado
de Luke, ainda podia sentir a sensação de sua mão na minha. Mas quando abri
realmente os olhos ele não estava lá, sua cama estava vazia e fria.
Levantei depressa dando a volta no quarto, Isaac estava em sua própria
cama, caminhei até seu quarto parando em sua porta, pronta para bater.
— Entre Alissya.
— Eu acabei dormindo. – confessei sem graça.
— Nunca mais assisto filme com vocês, me deixaram praticamente
falando sozinho.
— Onde Luke está?
Issac abaixou a revista de palavras cruzadas, deixando-as sobre as pernas,
olhando para mim. – Luke foi fazer um exame.
— Ele está bem?
— Fique tranquila, é algo rotineiro, ainda mais que ele está esperando
pelo transplante.
— Ele não encontrou nenhum possível doador?
— Nenhum, os últimos três foram apenas fracassos.
— Onde faz esse tipo de exame, de compatibilidade? – perguntei.
Isaac ergueu a sobrancelha para mim, analisando o que eu havia falado.
— Como a vida é engraçada, você pode não perceber de primeira qual
rumo ela levará, mas você pode observar as dicas que ela te deixa. – ele deu uma
risada baixa olhando para mim. – acredito que você deva procurar o doutor
Patrick, ele é o oncologista do hospital e cuida do caso de Luke.
Descobri através de um dos enfermeiros que passavam que o doutor
Patrick ficava em seu consultório no terceiro andar, rezei para que ele estivesse
sozinho, queria me informar sobre o transplante, queria saber se eu poderia ser
uma doadora.
Bati duas vezes na porta esperando por alguma resposta, estava preste a
bater uma terceira quando ouvi um fraco “entre”.
— Com licença, Doutor.
Ele me encarou parada na porta de seu consultório, o médico devia ter
em torno de uns quarenta anos, sua barba era bem aparada, seu cabelo com
algumas mechas grisalhas. De todo mais, ele era bastante bonito.
— Entre, você é?
— Alissya Rayven. – disse estendendo minha mão em sua direção.
— Em que posso ajudá-la Alissya? – ele se encostou na cadeira relaxado,
sua voz era baixa e calma. Parecia ser o tipo de pessoa que mesmo numa
situação de pânico se manteria calmo e tranquilo em meio ao caos.
— Sou amiga de Luke Dinally.
— Claro, Luke. – ele falou com um sorriso no rosto.
— Eu gostaria de saber o que preciso fazer para ser doadora, na verdade,
eu queria fazer um teste de compatibilidade e ser a doadora do Luke.
— Isso é uma atitude generosa, não são todas as pessoas que pensam
assim, ainda temos muitas pessoas que se negam a doar por preceitos ou receio.
— Eu não sei nada sobre o assunto, mas sei que ele precisa, e se eu for
compatível posso estar salvando ele dessa doença.
— Srta. Rayven para ser um doador é preciso ter entre dezoito a
cinquenta e cinco anos. Ter boa saúde, a medula óssea é retirada de ossos da
bacia por meio de punções, mas elas se recompõem em apenas quinze dias,
portanto você não correrá nenhum risco.
— Eu tenho vinte anos, posso doar. Quais documentos são necessários?
– perguntei.
— Os doadores preenchem um formulário com dados pessoais e é
coletada uma amostra de sangue com cerca de 5 ml para os testes. São nesses
testes que iremos determinar se você é compatível, se suas características
genéticas são compatíveis com o do Luke. – o doutor Patrick fez uma pausa. –
Geralmente esses dados são armazenados e o sistema informa quem receberá
esse transplante, veja bem temos uma lista de pacientes precisando da medula,
mas entendo que sua doação seria estritamente ao senhor Dinally, correto?
— Sim.
— Sendo assim, podemos fazer como se você fosse um parente, uma
prima distante, algo do tipo.
— Onde pego os papéis e onde posso fazer a coleta da amostra?
— Eu tenho os papéis disponíveis aqui no hospital, se tiver certeza disso
posso pedir para uma enfermeira entregar a você. A coleta é feita aqui mesmo no
hospital, se fosse de forma tradicional encaminharia você para um dos
hemocentros do Estado e lá seria realizado todo procedimento.
— Tenho certeza disso. – respondi convicta. — Eu quero ser a doadora
de Luke.
O médico pegou o telefone esperando ser atendido. – Gabriel pegue os
documentos da doação de medula, por gentileza.
Ele escutou o que a pessoa disse, logo respondendo. – Sim, estou no
aguardo.
— Srta. Rayven, devo alertá-la que é muito comum não ser compatível,
nesses casos a compatibilidade entre as células do doador e do receptor há
muitas chances de não se encontrar. Em média é coisa de uma em cem mil.
— Tenho fé, Doutor.
Ele sorriu. – Isso é essencial.
Luke Dinally
— Encontramos um doador. — anunciou Doutor Patrick assim que
entrou na sala de quimioterapia.
Eu simplesmente suspirei, já havia recebido essa notícia antes.
— Faremos o teste de compatibilidade hoje mesmo, assim que os
resultados saírem eu venho comunicar você.
— Tudo bem.
— Como você está se sentindo hoje Luke?
— Muita falta de ar, cansaço.
— Vou pedir para Sam fazer alguns exames em você, temos que nos
certificar que você esteja pelo menos bem e com um número de leucócitos e
plaquetas bom para quando chegar a hora do transplante.
Concordei com a cabeça.
O médico havia me informado que caso o doador aparecesse e esse fosse
realmente compatível comigo eu entraria numa fase de quimioterapia para o
transplante, nesse estágio eu não poderia sair do hospital, mesmo que quisesse.
De todo, a doença era como uma enorme montanha-russa, daquelas que você
nunca sabe em qual curva você irá cair. Existia dias bons, onde eu não tinha
quase, ou nenhum sintoma, mas existia também os picos mais graves da doença,
onde a febre era tão intensa que qualquer medicamento que eu tomasse me
assegurava apenas umas duas horas, antes dela retornar. Quando iniciei meu
tratamento quimioterápico eu realmente passei mal com os efeitos colaterais,
perdi muito peso, mal conseguia manter a alimentação dentro do meu estômago.
Agora, no entanto, mesmo tendo os sintomas e toda essa montanha-russa
emocional eu conseguia ingerir alimentos, parei de perder peso, e segundo a
simpática enfermeira Sam que vivia dizendo que eu estava mais gordinho,
lógico, se você colocasse no papel a quantidade de cortisona que tomava somado
ao soro, logo eu poderia voar como um balão.
Alissya Rayven
Eu estava nervosa, minhas mãos suavam, meu estômago estava
constantemente enjoado. Eu não pensei em tudo que Luke estava enfrentando ao
sair do hospital e cair em uma viagem de dez horas comigo, mas olhando agora
ele estava correndo sérios riscos e a culpa seria toda minha e de minha boca
grande. Arrisquei uma olhada para ele dormindo ao meu lado, tínhamos pego um
voo cedo, planejei milhares de vezes isso, uma viagem curta com o mínimo de
exposição que ele pudesse receber.
Luke reclamou por todo o caminho do hospital até o aeroporto quando
disse que para seu bem usaria máscara, mas foi um meio dos médicos darem
certa proteção para ele, mesmo que mínima. Também fiz questão de agradecer
ao doutor Patrick por não contar que eu tinha sido sua doadora, alguns dias
depois que fui informada que era totalmente compatível com Luke, logo tratei de
tomar as medicações que ele me receitou e depois de cinco dias estava fazendo o
processo de punção. Segundo Sam eu ficaria com o corpo dolorido por alguns
dias e seria melhor se repousasse, mas de resto não tinha nenhum risco ou
qualquer coisa que me fizesse ficar realmente mal.
— Você está nervosa. – Luke disse me surpreendendo.
— Um pouco.
— Muito, posso sentir sua mão tremer na minha. – ele abriu os olhos
encarando nossas mãos unidas.
Qual hora eu peguei sua mão e não senti?
— Sinto muito, não percebi que havia pego sua mão.
Tentei tirar a mão, mas Luke apertou meus dedos entre os deles, olhando
fundo em meus olhos, esses olhos verdes me sugavam e me davam paz, era
como se ele silenciasse tudo em volta, como se calasse o mundo apenas com seu
olhar.
Acalme-se Alissya, amigos, isso é o correto, não pense asneira.
O táxi parou em frente ao auditório da faculdade me arrancando dos
devaneios. Abri a bolsa pegando o dinheiro para o motorista, deixando alguns
trocados para gorjeta. Luke tinha saído do carro e estava examinando toda a
fachada, uma enorme escadaria nos levava até o anfiteatro, onde seriam as
audições. Olhei para o relógio satisfeita por chegar uma hora antes, ajeitei a case
do violino em meu ombro subindo os degraus.
A manhã estava agradável, fresca, o céu de Nova York estava limpo, sem
sinal de nuvens, dentro do anfiteatro havia diversas pessoas andando de um lado
para o outro, alguns tocavam pela última vez. Ao atravessar o pequeno espaço,
vi que não havia ninguém na plateia, apenas os jurados na ampla mesa na frente
para o palco.
Um homem alto vestido de terno totalmente alinhado veio em minha
direção. – Seu nome e sobrenome.
— Alissya Rayven. – minha voz tremia pelo nervosismo.
— E o senhor? – perguntou erguendo a sobrancelha para Luke.
— Estou acompanhando ela.
— Os acompanhantes são proibidos de sair dos bastidores, é proibido
ficar perto do palco ou se sentar no auditório. Compreendeu?
— Sim.
— Irei chamar por ordem de chegada, preste atenção chamarei somente
uma vez.
— Sim, senhor. – respondi prontamente.
Olhei nervosa para os outros, para o palco. Em poucos minutos o homem
engravatado retornou aos bastidores, chamando pelo primeiro candidato.
Um rapaz saiu dos fundos, alisando seu suéter de aparência cara, seu
cabelo loiro era bem alinhado e ele tinha cara de burguês, daqueles que não
precisavam ter seus corações arrancados de tanto nervosismo em uma audição,
pois sabiam que o dinheiro dos pais compraria uma vaga para ele, mesmo assim
ele seguiu para o palco.
Poucos minutos se passaram em silêncio, logo uma melodia chegou aos
bastidores, ele tocava piano, percebi algumas notas em tons errados na canção,
mas de todo ele foi bem. Logo em seguida foi uma menina, ela estava vestida
como uma bailarina clássica, andou todo o caminho na ponta de sua sapatilha,
alta e elegante, parecendo um cisne.
Aos poucos o lugar foi ficando vazio, alguns retornavam com cara de
choro, outros xingando e rasgando partituras e isso só aumentava meu
nervosismo. Restavam três pessoas além de mim, senti Luke pegando minha
mão, chamando minha atenção. E por um instante eu permiti acalmar as batidas
do meu coração olhando para os olhos tranquilos de Luke.
— Estou nervosa.
Ele sorriu, eu amava quando ele sorria, eu sabia admirar um ato tão
simbólico, mas que com Luke era algo realmente sincero e importante, ele não
era dado a sorrisos.
— Não fique, essa vaga é sua.
Um garoto passou pelo meu lado esbravejando os jurados, Luke pegou
meu queixo com as mãos trazendo de volta meu olhar para ele.
— Srta. Rayven, eles estão aguardando. – escutei o homem dizer ainda
com os olhos colados em Luke.
— Me deseje sorte. – pedi com um sorriso.
— Boa sorte, Aly.
Peguei meu violino e a partitura, eu tinha escolhido para hoje a música
“La Naissance” era complexa, tinha tantas explosões de sentimento na música,
se uma nota fosse tocada de forma errônea destruía toda a composição.
Coloquei a partitura no pedestal perto do pianista, cumprimentei com um
aceno os jurados, ajeitei o violino sob meu queixo, respirei fundo fazendo um
aceno de positivo para o outro músico, ele começou a tocar as notas suaves no
piano logo mostrando minha deixa.
Fechei os olhos sentindo as cordas serem tocadas, a música me embalar
no seu ritmo calmo, mas ao mesmo tempo crescente, sua melodia suave foi se
tornando grave, como uma tempestade se formando no horizonte, esperei o
momento certo e então comecei a dedilhar as cordas entrando no verso mais
importante, de olhos fechados deixei a melodia me envolver, sentia a música sair
poderosa intercalando com as sinfonias suaves, para se erguer novamente e
encerrar.
Respirei fundo ainda de olhos fechados, tirei o violino do queixo,
agradeci o rapaz por ter me acompanhado no piano e finalmente olhei para os
jurados.
O júri era formado de três homens e uma mulher, todos me encaravam
com cara de poucos amigos.
— Foi uma apresentação surpreendente. – disse o da ponta.
— Srta. Rayven, você teve algum parente que estudou na Julliard, o
sobrenome Celin, não me é de todo estranho. – disse a mulher mais velha.
— Sim, minha mãe, senhora.
— Qual nome de sua mãe, menina? – perguntou o outro.
— Melissa Celin, ela tocava piano. – expliquei.
Dois homens se entreolharam, sussurraram algo para os outros e então os
quatro se viraram para mim.
— Srta. Rayven, espero que você tenha um pouco ou mais desse talento
que nos mostrou hoje, não me faça estar equivocada. – disse a mulher.
— Seja muito bem-vinda a Julliard Srta. Rayven.
— Muito, muito obrigada – disse praticamente me contenho para não
pular de alegria.
Capítulo 14
Luke Dinally
Esperei que ela entrasse no auditório, eu queria muito estar naquela sala,
mas por algum motivo banal isso era proibido, portanto tive que me contentar
em esperar nos bastidores.
Foram alguns minutos em completo silêncio e uma apreensão gigantesca
dentro de mim, até que ouvi o som de seu violino, Aly tocava com o coração,
suas notas eram precisas e harmônicas, não que eu entendesse de algo assim,
mas ela tocava com a alma. Somente um completo tolo não veria o talento dela.
Eu estava feliz por Alissya, sabia que conseguiria entrar na Juilliard, sabia que
logo ela estaria longe, mesmo que isso me incomodasse, mesmo que fosse perder
sua companhia. Ela estava seguindo seus sonhos e de maneira nenhuma eu
tiraria isso dela.
A música foi ficando mais lenta, mais doce, até que o silêncio tomou o
auditório e o bastidor. Eu me mexia nervoso nos meus próprios pés, Aly veio
correndo em minha direção praticamente pulando em meu colo e me abraçando.
— Eu consegui Luke, eu consegui.
— Eu sabia disso. – comemorei apertando-a mais em meus braços.
— Eu ainda não acredito.
Ela me soltou de seu abraço, mas seu rosto ficou próximo de mim, tão
próximo que eu consegui sentir seu hálito tocando meu rosto, podia examinar
fundo os seus olhos castanhos, sua boca em formato de um pequeno coração, e
do seu perfume de frutas vermelhas. Passei a ponta de meus dedos pelo seu
rosto, foi um daqueles momentos que eu não via mais ninguém, apenas Alissya e
eu, senti vontade de beijá-la, senti curiosidade de saber se os lábios dela seriam
tão macios quanto aparentavam. Alissya sorriu sem graça, se afastando do meu
corpo.
— Uau!
— Pois é, você conseguiu. – disse sem graça.
— É.
As bochechas de Alissya estavam coradas, ela desviou os olhos sorrindo
e isso fez meu coração dar um salto, uma reação totalmente inesperada.
— Você tem certeza que está se sentindo bem, veio calado a viagem
toda? – ela me encarava preocupada.
— Estou me sentindo indisposto apenas.
Mas eu estava mentindo, quando acordei pela manhã estava sentindo
muita falta de ar, o que ocasionou uma tosse e com ela os sangramentos
esporádicos, eu não queria que Alissya soubesse, ela teria se sentido culpada, e
isso era tudo que eu não desejava. Por isso telefonei para o quarto dela no hotel
dizendo que me atrasaria um pouco, e por todas as vezes que sentia a
necessidade de tossir eu pedia licença me trancando no banheiro da aeronave.
No desembarque meus pais aguardavam a gente na saída, consegui
driblar eles também dizendo que estava me sentindo bem, apenas cansado, mas
ao entrar no hospital a coisa mudou, Sam percebeu meu sangramento e logo
comunicou o doutor Patrick, ele não disse nada apenas me olhou sério, soltou
um suspiro e pediu para que passasse por alguns exames na mesma hora.
E então veio mais uma complicação.
— Luke, você está com uma infecção se manifestando em seu pulmão. –
anunciou Patrick sentando em minha frente. – Você já estava apresentando os
sintomas, porém ele ficou mais visível, ou seja, pudemos somente agora saber
qual é essa infecção.
— O que isso quer dizer? Eu não vou receber o transplante? – tirei um
pouco a máscara de oxigênio do rosto para que ele entendesse o que eu estava
falando.
— Sim, ainda vai receber o transplante, mas estou encaminhando você
para CTI, assim como a Doutora Renata vai acompanhá-lo e tratar essa infecção.
— Como assim CTI?
— Luke, não podemos fazer nenhum procedimento sem curar essa
infecção que está se alastrando pelo seu pulmão. Seu hemograma mostrou outra
queda brusca de plaquetas, você será induzido ao coma...
— Coma? Você só pode estar brincando. – praticamente gritei com o
médico.
— Entendo sua revolta, mas o quanto antes resolvermos, poderemos
marcar o transplante. Nesse coma, você será submetido ao processo de retirar
essa infecção do pulmão.
O que adiantava eu escutar as pessoas dizendo que eu teria que viver, me
agarrar a vida que ainda tinha, agradecer por isso e quando eu realmente
desejava fazer isso eu recebia a notícia que minha doença tinha piorado ao ponto
de me internar no CTI. Como o médico disse em poucos minutos a equipe do
hospital fez minha transferência. O processo todo não era tão desesperador,
como a ideia em si era, quando menos esperei meu corpo foi ficando mais leve, e
era como se eu caísse num sono profundo.
Alguns dizem que ao entrarmos em coma, nossa mente entra num estágio
de quase morte, segundo o neurologista falou para mim poucos minutos antes de
começarem o processo, a diferença entre o coma e o sono é que o sono por sua
vez é um estado fisiológico e o coma patológico. Por isso sempre tem aquele
questionamento, uma pessoa em coma escuta? Sente quando seu corpo é tocado,
mesmo que seja um pequeno formigamento no local?
Será que quando falarem comigo eu vou escutar?
Bom, eu afirmo que escutei e isso foi uma surpresa, pois parecia que
estava trancado em uma enorme caixa preta, era difícil ter dimensão sobre algo e
até seria mentiroso se falasse que eu estava sentindo ou sabendo exatamente o
que estava acontecendo comigo, mas eu escutava. Escutei quando a voz de
Alissya chegou até mim, escutei quando meus pais também se comunicaram
com meu corpo inerte.
O doutor Mikael, neurologista do hospital, também tinha me contado que
esse tipo de contato é importante para um paciente em estado de coma, era como
se a pessoa que fizesse uma mínima comunicação estivesse cuidando dos
pensamentos e consciência do paciente e isso era necessário na visão dele, como
se para não esquecermos que antes de nos sentirmos vivos, também precisamos
estar vivos no desejo do outro.
Capítulo 15
Luke Dinally
Vinte dias depois.
Senti-me um pouco enciumado com esse Tyler, mas eu não tinha esse
direto. Alissya nunca demonstrou que queria algo além de minha amizade e por
que demonstraria? Quem iria querer estar ao lado ou apresentar aos pais um
leucêmico? Quem namoraria alguém com prazo de validade? Eu com certeza
não.
Abri a terceira carta:
Respirei fundo pegando a última carta, essa era o dobro das outras.
Há alturas em que apenas nós somos. Todo o resto jorra da nossa origem!
Contudo, também há, realmente, a possibilidade de abrandar.
Se te for necessário, jamais imporei a minha vontade. Mas as cores não voltarão
a ser as mesmas nem nós voltaremos a ser iguais.
O que nos faz, toca-nos profundamente. Tanto que abala as colunas da
existência pelo reconhecimento do que já houve.
Três meses que não nos falamos, ou que não recebo uma palavra sequer
vinda de ti, se por acaso não entendeu o que o poema diz, eu terei o maior
prazer em decifrá-lo para você.
Eu te amo Luke, por meses questionei esse sentimento crescendo como
uma erva daninha sobre meu peito, dias a fio trocando noites em claro pensando
nisso. Eu estaria louca se achasse que você sente algo? Foram meses tentando
um tipo de resposta sua, como o poema diz não forçarei minha vontade em cima
de ti, pois sei que ninguém pode domá-lo, e um sentimento tão belo como o amor
não deve ser obrigado, ele deve chegar abrindo janelas e trazendo o sol, deve
nos fazer sorrir por besteiras faladas ao telefone ou mesmo que por cartas.
Curvo-me ao teu silêncio e deixo-me ir, pois sei que um simples afago
seu me fará retornar. Você se lembra do seu presente de aniversário? Se ainda
tiver, essa é minha prova que estarei aí, em pensamento, em sentimento por aqui,
torcendo por ti. Sei que você terá um futuro incrível, sei que você logo irá ser
lembrado em jornais e pelos campos por aí como maior armador dos Estados
Unidos, (Não torça a boca, eu sei que você alçará um voo longo).
Siga sonhando Luke Dinally, siga sonhando.
Um dia minha vida cruzou com um garoto e eu me apaixonei. Ele me
consumiu com sua escuridão e por uma razão insana, o tal rapaz não conseguiu
me manter afastada.
Era uma vez um cara, que me fez se apaixonar por suas imperfeições.
Por breves olhares trocados e beijos quase roubados, eu tenho certeza que ele
também se apaixonou.
Meu peito estava pesado, Alissya era uma dessas pessoas que todos
amavam logo de cara, seu jeito feliz era como se ela vivesse sobre um brilho
todo dela, se ela dedicava um sorriso para você, automaticamente você se sentia
aquecido por dentro.
O sorriso dela era perfeito, Alissya sempre sorria fazendo uma espécie de
biquinho, até abrir realmente o sorriso. Uma vez acusei-a de seduzir as pessoas
com seu charme, ela me chamou de tolo e disse que somente uma pessoa sem
educação poderia confundir gentileza e simpatia com charme barato. Lembrei-
me do dia que ela subiu pela sacada de minha casa e só parou de castigar minha
janela quando decidi abri-la permitindo sua entrada. Nessa noite nos sentamos
no telhado, admirando as estrelas e brigamos para descobrir quem tinha mais
razão sobre o universo. Alissya ganhou e em troca ela me deu um beijo na
bochecha, isso soaria patético demais para aquele antigo Luke, o cara
acostumado a levar todas as meninas na lábia, mas aquele beijo me deixou sem
ar.
Capítulo 16
Luke Dinally
Oito meses depois.
Alissya Rayven
“Diga que vai se lembrar de mim
Ali parada em um belo vestido,
Olhando o pôr do sol, querido.
Diga que você vai me ver de novo
Mesmo que seja apenas em seus sonhos
mais selvagens.”
Luke Dinally
Tirei as luvas e o avental jogando no lixo ao sair do quarto, sentei em
uma das cadeiras no corredor, respirando fundo, dei uma olhada para o relógio
vendo que faltavam poucas horas para ir para casa.
— Luke?
Olhei para o outro lado vendo Brenda, vindo ao meu encontro.
— Oi, você precisa de algo? Desculpe por ainda não ter passado na
recepção acabei de sair do quarto de Rebecca.
— Tudo bem, não tem problema. – ela sentou-se ao meu lado olhando
para porta do quarto. – Você gosta mesmo dessa menina, e ela de você.
— Gosto, eu vejo muito de mim nela. Sei que é até inapropriado, mas eu
quero que ela saiba que não está sozinha. Isso faz uma grande diferença.
Brenda sorriu olhando para mim. – Você faz um excelente trabalho, tenho
certeza que será um bom médico quando se formar.
— Obrigado, Dra. Brenda.
— Apenas Brenda.
Brenda era uma mulher linda, aos trinta e cinco anos esbanjava beleza e
profissionalismo, era uma das médicas mais queridas pelos pacientes.
— Preciso ir, ainda tenho que passar no PS e conferir se precisam de
ajuda.
— Claro, depois pode ir para casa descansar. A noite está tranquila.
— Obrigado – me levantei sorrindo, seguindo meu caminho.
Coloquei o casaco puxando um pouco para o alto a gola, andando
calmamente pelas ruas, o centro estava animado por ser uma sexta-feira, muitas
pessoas na rua, risadas, música. Passei a mão pelo cabelo, ele já estava raspando
na gola da camisa social que eu usava. Como eu morava perto do hospital
andava todos os dias, quando me mudei para Califórnia estranhei tudo, foi até
difícil a adaptação, mas a última coisa que faria era desistir.
Quando escutei as palavras do médico que eu não tinha mais câncer, que
não havia nenhum indício da Leucemia retornar para meu corpo foi como se eu
tivesse livre, foi exatamente assim que me senti. Lembro que eu juntei poucas
coisas pessoais numa mala, amarrei-a em minha moto e peguei estrada.
No primeiro dia de faculdade conheci Otto, ele era viciado em
videogame, e muito inteligente. Seu plano era se formar em Cardiologia, notas
para isso ele com certeza teria, mesmo sendo um amante de festas e adorar
passar a noite em claro na frente da TV, era uma boa pessoa e quando estava no
hospital fazendo parte do grupo de voluntariados era excelente com os pacientes.
Eu sempre soube o que faria, em qual área queria seguir. Por isso mal
titubeie quando escrevi minha área de atuação. Oncologia.
O que foi uma surpresa foi ter minha mão segurada por uma menina de
sete anos enquanto verificava os pacientes e ver seus enormes olhos castanhos
marejados. Aquilo me deixou com um aperto no peito, saber que aquela menina
sofria pela mesma doença que eu sofri quase quatro anos atrás.
O nome dela era Marie, segundo ela, como a gata Marie. Ela vinha
lutando contra o câncer desde os cinco anos de idade, estava há um ano
internada no hospital e finalmente poderia receber seu transplante de medula.
Foi então que tive mais certeza que estava no caminho correto, eu seria
Oncologista infantil.
Sai de meus pensamentos vendo uma menina sentada na Roth Way
tocando violão, ela cantava alto, mal se importando com as pessoas que
passavam, alguns pensavam que ela estava cantando por algumas esmolas, mas
eu sabia que não era isso, ela cantava para ela, somente para ela. Isso me fez
lembrar de Alissya, não que algum dia eu tenha esquecido. Muito pelo contrário,
eu me lembrava todos os malditos dias e todos os dias eu me repreendia por não
ter procurado por ela.
Uma vez viajei até Nova York, mas era como procurar uma agulha em
um enorme palheiro. Fiquei três horas parado em frente a Julliard, mas Alissya
não passou pelas enormes escadarias da faculdade.
— Ei, Dinally.
Virei-me dando de cara com Jaqueline, ela se aproximou com um
enorme sorriso.
— Estava indo procurá-lo, Otto disse que ainda estava no plantão. – ela
beijou o canto de minha boca.
Afastei-me devagar para não ferir seus sentimentos, Jaqueline nutria uma
paixão por mim, ou uma atração, que seja. E eu me sentia mal por isso, pois
mesmo deixando claro que nunca teríamos nada, ela insistia que a esperança era
a última que morria e que um dia, um dia qualquer eu poderia olhá-la com outros
olhos.
— Estava indo para casa.
— Que tal sairmos para comer algo? – perguntou.
— Não é uma boa ideia Jaque, estou cansado e amanhã tenho plantão
logo cedo.
Ela suspirou. – Alguém já te falou que você anda mais com o grupo de
voluntários enfiado no hospital do que fazendo outra coisa?
— Sim, já me falaram isso. – respondi sorrindo.
— Tudo bem, quem sabe qualquer dia desses?
— Claro, vamos marcar algo.
— Ótimo! Tem um restaurante Vegano excelente, sei que você prefere
carne, mas não irá se arrepender. — Ela sorriu amplamente, deu mais um beijo
em minha bochecha e saiu na direção contrária, me deixando mais uma vez com
peso na consciência.
— Já pediu a comida?
— Hã?
— Já pediu a comida? Que mundo você está Dinally? – Otto veio em
minha direção arrancando o telefone de minhas mãos.
— Desculpe, eu me perdi em pensamentos.
— E eu morrendo de fome. — Otto discou o número da pizzaria mais
próxima. – Você está estranho cara e faz dias. – argumentou esperando ser
atendido.
Respirei fundo me jogando no sofá.
— Uma pizza para 745 O’Connor Ln. – Otto fez uma pausa. – Isso
mesmo pode ser a de sempre. – completou desligando o telefone.
Ele andou até a sala, se jogando no outro sofá, os olhos colados em mim.
– Desembucha Dinally, o que está acontecendo. É a garota da música?
— Quem?
Ele revirou os olhos.
— A menina que você tanto chama quando dorme, ou o motivo de você
ter adquirido um estranho gosto para músicas clássicas.
— Ela mesma. – confessei.
— Cara, se ela depois de todos esses anos continua mexendo com sua
cabeça, o que você está fazendo aqui, com sua bunda sentada no sofá?
Meus lábios se abriram, fiz menção de dizer algo, mas nada saiu. Eu
tinha ouvido isso anos antes de Isaac.
— Eu já teria ido atrás dela.
— Eu não sei mais nada dela, não sei se continua em Nova York ou está
em outro lugar.
— Bom nisso posso ajudar, passa meu computador.
Passei seu notebook, Otto rapidamente abriu digitando de maneira
frenética no teclado.
— Qual o nome dela mesmo?
— Alissya Rayven.
— Vamos lá. – ele analisou a tela por alguns minutos, me
deixando nervoso.
— Diga alguma coisa.
Ele sorriu entregando o computador para mim. Na tela estava uma
matéria enorme falando sobre os talentos na música, onde o nome de Alissya era
sempre citado.
— O que é tudo isso?
— Sua garota irá fazer parte de um dos concertos mais importantes em
Nova York, daqui algumas semanas. É sua grande chance. – Otto estalou os
dedos, colocando os braços atrás da cabeça. – Pelo que diz aí, ela será uma das
homenageadas.
— Não sei, eu sumi, como vou aparecer na frente dela? “Oi Alissya, eu
sumi, mas te amo?” – zombei.
— Olha eu daria um tapa no seu rosto se fosse ela, mas você só poderá
ver se será essa a reação dela quando chegar lá.
Capítulo 19
Luke Dinally
Estacionei a moto, vendo as pessoas entrarem no teatro bem vestidas,
alguns homens de terno, as mulheres com vestidos elegantes. Dei uma espiada
em minha roupa, minha calça jeans preta, minha blusa branca e a jaqueta de
couro, eu não estava vestido para aquilo, mas era o que teria para hoje.
Da Califórnia até Nova York eram quarenta e quatro horas, sete estados,
dois dias de viagem com poucas paradas ou apenas sete horas de avião, o quem
nem cogitei como uma escolha. Sai correndo do hospital três dias antes do
concerto, tinha conseguido trocar meus turnos para que pudesse realizar essa
viagem, passei em casa apenas para um banho e pegar uma pequena mala e
peguei estrada, mal tinha dormido, parei por poucas horas para esticar as pernas
em alguns hotéis de beira de estrada, mas fiquei o tempo todo olhando o teto ou
então o relógio, com medo de perder a hora. Além do mais, a sensação de subir
em minha moto e pegar estrada foi o que sempre sonhei.
Entreguei meu ingresso para um dos seguranças que estava na porta, Otto
conseguiu pegar um lugar perto do palco para mim, sentei em minha poltrona
sentindo um frio tomar minha espinha, a plateia aplaudiu quando os músicos
ocuparam seus lugares no palco, mas Alissya não estava ali no meio dos
violinistas. Um rapaz começou a tocar o piano, os violinistas começaram em
total sincronia, era lindo de se ver, você conseguia sentir facilmente a energia da
música.
Um foco de luz surgiu no canto do palco, vindo até o centro e ali estava
Alissya, tocando um solo em seu violino, como na primeira vez que a vi
tocando, ela dava tudo de si, do lugar que eu estava conseguia ver e sabia que
seus olhos estavam fechados, ela não perdeu seu amor pela música. Sabia que
ela sentia a música dentro de si, assim como seu corpo acompanhava os
movimentos de seus braços. Os outros músicos voltaram a acompanhá-la
fazendo a música crescer, seguindo as ordens do maestro.
Mesmo encantado com aquele concerto eu não conseguia desgrudar
meus olhos de Alissya. Ela parecia brilhar no palco, o restante dos músicos ficou
em silêncio enquanto Alissya tocava o que pareceu os últimos acordes do
concerto, então toda a plateia ficou de pé aplaudindo, eu acompanhei vendo-a
sorrir para os colegas e para a plateia.
Como meu plano, eu teria que ser rápido, sabia que como era um
concerto e ela uma das estrelas principais, com certeza receberia alguns
convidados nos bastidores ou até mesmo em um camarim. Sai de meu lugar,
andando apressado pelo corredor de pessoas que já iam embora.
— Por favor. – disse tocando de leve o ombro de uma mulher.
— Sim.
— Eu sou irmão de Alissya Rayven, eu queria muito dar um abraço nela,
você acharia que é possível?
A mulher me mediu da cabeça aos pés, eu rezei para que ela não pedisse
um documento para comprovar a veracidade do que falei, ela soltou um suspiro.
– Tudo bem, mas seja breve. É só seguir o corredor até o final, primeira porta a
esquerda.
— Muito obrigado.
Segui pelo corredor, andando apressado, o som de vozes e o som de taças
se chocando foi ficando mais alto. Respirei fundo, passei a mão pelo cabelo
tentando parecer mais apresentável. Ela estava no meio do camarim, sorrindo e
tomando o champanhe, conversando com as pessoas ali presentes. Ainda mais
linda, ainda mais repleta de vida e me enchendo com sua luz. Acompanhei seus
movimentos em câmera lenta, ela se virou sorrindo ainda de algo falado para ela,
mas assim que seus olhos se fixaram em mim, aquele sorriso morreu.
— Luke? O que você está fazendo aqui?
— Eu soube do seu concerto, você estava magnífica lá em cima. – engoli
o nó que se formava em minha garganta.
— Obrigada, vejo que você está bem, como estão as coisas, sua família?
Faz tempo que não nos vemos. – disparou em falar.
— Estão todos bem. Podemos conversar a sós? – perguntei olhando para
as pessoas que estavam no camarim.
— Claro. – ela se virou fazendo um sinal, logo todos tinham nos deixado
fechando a porta, o silêncio entre nós parecia estralar.
— Aly, a última vez que nos vimos ainda queima em minha memória, sei
que fui tolo, idiota, chame do que quiser, você mandou diversas cartas, eu li
todas, acredite.
— Luke, isso não importa mais.
— Importa sim, importa muito para mim. – dei um passo para frente,
Alissya acompanhou dando outro para trás. – Eu precisava vir aqui, na sua frente
pedir desculpas, eu sempre estou voltando para aquele dia que nos sentamos em
meu telhado, sempre estou voltando para sua carta, eu sei todas as palavras,
gravei até cada floreio que você faz nas letras.
— Luke, por favor.
— Eu queria ter percebido o que tinha, o que você era para mim naquela
época, hoje poderia ser tudo diferente. Eu voltaria cada mísero dia, e em todos
diria o que eu sinto por você. Alissya você esteve ao meu lado quando poucos
fizeram, você aturou cada reclamação, cada momento de dor, você estava lá. –
ela se mantinha em silêncio me encarando. – Você me deu a vida Aly, você é a
responsável por eu poder realizar meu sonho, por eu poder respirar a cada novo
dia. Você me deu seu amor e eu só conseguia dizer adeus e te dar meu silêncio.
— Luke é tarde demais para desculpas, não precisamos...
— Precisamos, você precisa escutar cada palavra que deveria ter escrito.
Eu deveria ter ligado em seus aniversários, eu olho para as estrelas e só consigo
lembrar de você encostada em mim falando de como as pessoas podem
desvendar o futuro através delas. E quando você escreveu que me deixaria, e que
levaria meu silêncio como uma negativa ao seu amor, eu tive vontade de gritar,
eu não quero isso, eu não desejo nem por um segundo que você fique longe de
mim. E percebi que eu te amei no outono e então veio o frio com os dias escuros.
Agora em pé em sua frente eu não posso deixar de pronunciar que eu amo seu
cabelo quando o vento bate sobre ele, levando algumas mechas para seus lábios,
que eu queria levá-la para todas as viagens que conversamos, que eu adoro
desafiá-la, só para ver o simples encrespar no lábio que você costuma fazer.
— Luke, pare.
— Aly eu te...
A porta abriu de forma bruta interrompeu o que eu estava preste a dizer, o
homem que estava mais cedo aqui passou por mim, indo ao encontro de Alissya,
segurando sua cintura.
— Querida podemos ir? Clark nos chamou para comemorar no bistrô,
estamos apenas esperando você.
Senti como se um buraco tivesse se abrindo debaixo de meus pés,
Alissya mantinha seus olhos colados em mim e o homem continuava com o
braço sobre sua cintura de forma possessiva.
— Luke, foi ótimo vê-lo novamente.
Concordei com a cabeça sentindo meus olhos marejados.
Alissya passou por mim com seu acompanhante, evitei respirar quando
seu cheiro chegou perto demais, tudo que eu não precisava era o cheiro dela
impregnado dentro de mim.
Capítulo 20
Alissya Rayven
“Porque você me deixou aqui para queimar?
Sou muito jovem para estar tão machucada
Por que você não se importa?
Eu te dei tudo de mim
Meu sangue, meu coração e minhas lágrimas
Por que não se importa?
Eu estava lá, quando ninguém estava
Agora você se foi e eu estou aqui”
Meu coração deu um salto, meus joelhos ficaram fracos e meu corpo
estremeceu. Foi isso que senti quando virei e dei de cara com Luke Dinally
parado na porta do meu camarim, vestido com seus jeans surrados, sua jaqueta
de couro, seus cabelos estavam exatamente como eu me recordava de nosso
primeiro encontro, talvez um pouco maior.
Engoli em seco, sabia que tinha que falar alguma coisa, mas não saía.
Abri e fechei a boca diversas vezes, meus pés pareciam enraizados no lugar.
Meu coração palpitava na velocidade de mil quilômetros por hora.
— Aly, eu te...
Meus olhos automaticamente se arregalaram quando Luke começou a
dizer, mal notei que Tyler tinha entrando no camarim, mal entendi o que ele
falou, apenas concordei ainda olhando para Luke. Deixei que Tyler me levasse
para fora, para longe de Luke.
— Aly, por favor.
Virei olhando para Luke ainda parado me encarando. Podia sentir seu
perfume vindo até mim, o cheiro almiscarado que eu amava quando ia visitá-lo.
Deus, eu sentia falta daquele cheiro. Meus dedos praticamente formigavam com
a vontade de tocar seu rosto, sentir seus cabelos por entre meus dedos.
— Agora não é o momento Luke, e acredito que o momento tenha
passado.
— Não faça isso conosco. – ele sussurrou novamente, ignorando por
completo a presença de Tyler ao meu lado.
— Você fez. – desvencilhei-me do braço de Tyler voltando para onde
Luke estava, parando a centímetros dele. – Eu entendo que você estava confuso,
que a última coisa que você poderia pensar seria em usar ou dar um termo para
nós. Eu fui compreensiva Luke, acredite, fui até demais. Como você me disse, eu
estava lá, principalmente como sua amiga e você não pôde nem retribuir um
pouco da amizade que eu lhe dei.
— Eu te amo, Alissya. – ele disse olhando no fundo dos meus olhos.
Abaixei a cabeça respirando fundo.
— Você não pode aparecer aqui, três anos depois e esperar que tudo seja
do mesmo jeito. Não pode esperar que continuemos de onde paramos, pois não é
assim.
Luke assentiu.
— Alissya, acredito que devemos ir. – Tyler pegou minha mão de modo
firme, sua voz mostrava que não estava nada contente, afinal quem estaria?
— Eu não esperava que fosse Aly, mas aceito de bom grado a batalha
que terei pela frente.
— Acredito que você já disse o suficiente meu amigo.
Vi o peito de Tyler se estufar.
— Vamos embora. – disse puxando sua mão, tudo que eu não queria era
uma briga entre eles, e eu tinha muita coisa para esclarecer para Tyler, tinha que
ajeitar as coisas. Não era justo com ele, muito menos comigo, ele precisava saber
que tudo não passou de um caso, que tudo não passou de solidão, carência e um
coração partido.
Tyler encostou-se no sofá, coçando o queixo.
— Eu não vou pedir para não me odiar, eu mesmo estaria me odiando
nesse momento.
— Nunca poderia odiá-la, eu sempre enganei a mim mesmo Aly, eu
sempre estive com você, para você, mas você não, você sempre foi minha amiga
e continuará sendo. Mas nunca foi alguém que passou disso.
Fechei os olhos por um instante. – Desculpe Ty.
— Não peça desculpas. – Tyler passou a mão em meu rosto chegando
mais perto.
— Odeio-me por partir seu coração.
Ele riu. – Doce Alissya, sempre entendi que você não tinha lugar para
mim como seu namorado. Você é uma pessoa pura, não sente necessidade em
ferir os outros e poucas vezes vi você sendo rude. – Tyler pegou minhas mãos na
dele. – Você nunca me prometeu nada.
Respirei fundo um pouco mais aliviada, por ele ter entendido.
— Você vai ficar bem?
Assenti, mesmo não tendo certeza sobre isso, os olhos verdes de Luke me
perseguiam toda vez que fechava meus olhos, mesmo que por um breve piscar
de olhos.
Capítulo 21
Luke Dinally
Subi na moto sentindo os pingos da chuva caírem sobre mim, em poucos
quilômetros ela me pegou por completo, a chuva forte me deixou encharcado,
desacelerei procurando um bar onde pudesse me abrigar até que ela cessasse ou
que pudesse pelo menos comer algo. Encontrei um afastado do centro, sua
fachada era simples e com aspecto bem limpo. Estacionei a moto no meio de
dois carros, tirei o capacete na soleira do bar, assim como a jaqueta encharcada.
— Chuva cruel. – disse o rapaz por de trás do balcão.
— Sim. – sentei em um dos bancos altos puxando um cardápio para
perto.
— Mas não parece a chuva que tornou sua noite difícil.
Ele fez menção de colocar um copo com uma bebida escura em minha
frente, mas logo neguei pedindo uma água e uma porção de fritas, isso enganaria
meu estômago até amanhã.
— Mulher? – continuou perguntando de maneira inoportuna.
Franzi o cenho, sem saber onde ele estava querendo chegar com esse
papo.
— Não precisa dizer nada, conheço bem essa expressão de quem foi
chutado por uma mulher. Ela vale a pena?
Ri da ironia que isso soava. Acredito que nunca compreenderia o quanto
Alissya era valiosa, o quanto era importante.
— Definitivamente sim.
— Então lute por isso.
Chegava a ser cômico a quantidade de “incentivos” que estava
recebendo, eu já sabia que tinha sido tolo. O universo não precisava esfregar
mais em minha cara.
Deitado no quarto de beira de estrada, eu repassava tudo em minha
mente, odiava o fato que nesse momento Alissya poderia estar aconchegada nos
braços de outro alguém, mas pensando friamente, seria justo com o outro cara?
Afinal eu perdi Alissya, eu fechei a porta em sua cara quando ela só queria meu
amor.
Eu não deixaria de lutar, sentia-me mal pelo cara, mas Alissya nunca
pertenceu a ele, como Isaac falou poucos minutos antes de sua morte: “Ela era
minha luz e eu a sua escuridão”.
Eu precisava descobrir onde ela estava morando, precisava vê-la sozinha,
sem que alguém pudesse nos interromper. Mas infelizmente isso teria que
esperar, eu tinha que voltar para a faculdade, tinha que voltar para o hospital.
Isso não me faria desistir, apenas adiaria meus planos por motivo de força maior.
Eu mostraria para Alissya que eu era o homem de sua vida.
— Quem sabe ficar de joelhos, implorando pelo amor dela? – Otto
sussurrou para mim.
Revirei os olhos reabastecendo o leito com luvas descartáveis.
— Sério, derrube esse cara e pegue sua garota Quarterback!
Segurei o riso, terminei de ajeitar as coisas parando para olhar Otto. Que
ficava quase irreconhecível em seu jaleco de médico, seu cabelo penteado para
trás, totalmente comportado, nem um pouco o velho Otto que era viciado em
videogame e doces.
— Você sabe que Quarterback é do futebol, né?
— É, é, pode ser.
— Vou pegar uma folga na quinta-feira, vou para Nova York. – anunciei.
Otto pegou seu estetoscópio pendurando-o no pescoço, saindo comigo do
quarto do paciente.
— Como dizem, “na guerra e no amor vale tudo”.
Dei uma olhada pelo canto dos olhos.
— Que foi? É um provérbio. – Otto disse dando de ombros.
— Tudo bem meu amigo, mas acredito que você está sob o efeito da
abstinência do videogame.
Otto me olhou carrancudo, fazendo-me rir.
Como era possível que Luke me fizesse querê-lo ainda mais, mesmo com
todos esses anos? Meu coração quase saiu do peito quando o vi parado
conversando com Jules, naquele dia, parecia que estava tudo em câmera lenta,
ele levantando no melhor estilo bad boy, passando a mão pelos cabelos
molhados. Aquele sorriso meio de lado que ele dava, Luke estava ainda mais
bonito e quando me perguntou o que poderia fazer para me ter ao seu lado eu só
conseguia me fixar em um pensamento. Do porquê ainda estávamos separados,
eu amava aquele garoto, amava quando se fechava dentro de si, pois era quando
mais precisava de uma mão para guiá-lo. Amei três anos atrás, com tudo que nos
separava e amo ainda mais agora vendo-o na minha frente.
Sentir os lábios dele tocando os meus foi como ir ao céu e voltar
carregada por um anjo, como uma pessoa pode se encaixar perfeitamente em
você? Quando lia sobre almas gêmeas eu duvidava nesse tipo de coisa, sobre ter
uma alma por aí esperando pelo momento certo de entrar em nossa vida. Mas
como duvidar agora que eu sentia o toque de Luke ainda queimar em minha
pele?
Eu fantasiava com ele, com seu toque, com sua mão descendo pelo meu
corpo em um puro ato de curiosidade. Então nossos olhares se cruzariam, ele
beijaria meu pescoço, meu ombro, beijos lentos sendo distribuídos me fazendo
arfar.
— Aly?
— Sim?
— Quero fazer um jantar para você, quando você precisa retornar para
Nova York?
— Quinta-feira, tenho um turno a noite no trabalho. – comentei.
— Vou mandar meu endereço por mensagem. Meu colega está em um
Congresso, teremos a casa para nós. O que você acha de vir passar dois dias
comigo?
— Você cozinha, Dinally? – perguntei rindo.
— Muito bem, os anos de sobrevivência na faculdade me ensinaram.
— Combinado então, vamos ver se você realmente cozinha.
— Aly?
Percebi que o cansaço e sono provavelmente estavam dominando-o.
— Sim.
— Amo você. – sussurrou.
— Eu amo você, garoto que não sorri.
Capítulo 23
Luke Dinally
Ás sete horas da noite sentei no sofá olhando para o relógio de pulso, Aly
deveria chegar a qualquer minuto. Tinha arrumado toda a casa, até mesmo as
coisas de Otto, Deus sabia como ele era capaz de tornar a casa um caos com suas
bagunças.
Quando a campainha tocou eu praticamente estava colado a porta.
— Oi. – Aly me cumprimentou com um lindo sorriso, seu cabelo estava
preso dando uma visão limpa de seu rosto, seu cheiro de frutas vermelhas me
envolveu. Puxei-a pela cintura, colando nossos corpos, beijei seus lábios
tentando aniquilar um pouco da saudade que se acumulava em meu peito.
— Oi. – disse soltando-a.
— O cheiro até que está interessante. – zombou.
Deixei que ela entrasse em minha casa rindo de sua provocação. Ela
passou olhando por todo o apartamento, soltei sua mão para fechar a porta.
— Sua casa é linda. – Alissya parou no meio da sala de estar, olhando a
ampla estante de livros.
Cheguei por trás dela abraçando-a, colei minha boca em seu pescoço
sentindo seu perfume. – Estou feliz por tê-la aqui.
— Eu também.
Alissya se virou abraçando-me pelo pescoço. – Me conte sobre seus
encontros amorosos, o que mais gosta na faculdade, me conte sobre você.
Soltei uma risada. – Você está querendo saber se tenho alguma
admiradora no Campus?
Aly me deu um tapa de leve no ombro. – Luke Dinally.
— Não tenho admiradoras Srta. Rayven, minha popularidade por aqui
fica entre os livros e os corredores do hospital.
Peguei seu lábio inferior entre os meus, puxando-o de leve. Alissya
correspondeu de forma imediata ao seu toque, seus braços me apertaram, não
deixando nem um espaço entre nós.
— Vamos, temos um jantar nos esperando. – disse em seus lábios.
Alissya me seguiu até a cozinha, eu tinha ficado a tarde toda na internet
pesquisando uma receita, lógico que eu queria impressioná-la e não confessaria
que minhas habilidades na cozinha eram macarrão com queijo e um arroz
empapado.
— O que você está aprontando nessa cozinha?
— Eu não sabia se você comia de tudo, apostei todas as minhas fichas no
salmão grelhado com legumes.
— Por mim parece ótimo. – Alissya sentou na banqueta da cozinha. – Me
conte sobre a menina.
Olhei para Alissya respirando fundo. Coloquei os legumes em uma
travessa de vidro. – Ela é linda, doce e muito inteligente.
— Devo sentir ciúmes? – brincou.
Sorri dando a volta na cozinha, deixei a travessa na bancada.
— Ela parece muito com Isaac, mesmo tão pequena é tão inteligente,
aceita bem sua doença, ela não dá um trabalho para ninguém.
— Queria ter estado perto quando tudo aconteceu. – Alissya disse
olhando para as próprias mãos.
Deixei tudo que estava fazendo, indo até ela. Puxei seu rosto para o meu
dando um selinho em seus lábios. – Sabe qual foi a última coisa que ele me
disse?
Ela fez um gesto de negação.
— Ele me disse para não ser idiota e perdê-la para sempre.
Ela sorriu encostando sua cabeça em meu peito. Beijei o topo de sua
cabeça guardando todos esses momentos na memória.
Espiava Aly deitada sobre minhas pernas enquanto assistia filme, eu
sorria e brincava com ela a cada lágrima que ela derramava por conta do filme.
Era engraçado de ver como ela se desmanchava com filme água com açúcar.
— Pare de rir... Isso não tem graça. – disse fungando.
Puxei seu corpo, fazendo-a se sentar sobre mim. Aly sustentava meu
olhar, passava minhas mãos por suas costas sentindo aquele pedaço de pele se
arrepiar.
Alissya desceu sua boca sobre meu pescoço, suas mãos se infiltraram
pela minha camisa, fazendo um carinho em meu abdômen. Ela não sabia o
quanto eu a amava, palavras nunca pareciam suficientes, por isso eu mostraria
com meu corpo, com minha alma, para que ela nunca mais duvidasse do meu
sentimento. Iria amá-la devagar, com paixão e com todo desejo que percorria
meu corpo. Iria amá-la com riso e dores, até que a luz entrasse pela janela e nos
despertasse para um novo dia.
Olhei no fundo dos seus olhos pedindo sua permissão, meus dedos
enganchados em sua camisa, ela fez um aceno permitindo que aquela peça de
roupa não atrapalhasse mais.
Admirei as curvas de seus seios, admirei sua pele clara, Alissya era
perfeita, um verdadeiro anjo. Meu anjo. Seus dedos puxaram devagar minha
blusa, jogando-a longe junto com a sua. Vi seus olhos descerem para minha
cintura, vendo pela primeira vez minha tatuagem.
— Não sabia que tinha. – disse apontando a rosa dos ventos sendo
cortada pela flecha. – Tem algum significado especial?
Beijei sua testa. – Eu fiz escondido de meus pais, tinha dezessete anos.
Mas a ideia central é “confie no destino”.
Alissya ficou de pé, levando meu olhar com ela. Abriu lentamente o
botão de sua calça, deixando-a escorrer pelo corpo, ficando apenas com sua
lingerie rosa claro. Repeti seus gestos, segurei sua cintura puxando seu corpo
para o meu, ela enroscou suas pernas em minha volta, aceitando ser levada para
meu quarto.
— Você me ama? – ela soltou quando a coloquei deitada no meio da
cama.
— Amo. – suspirei em seu pescoço.
— Então, mostre-me.
Beijei sua boca, beijei seu pescoço. Eu queria que ela sentisse e me visse
provando cada centímetro de sua pele, de seu corpo. Inclinei-me encaixando
meu corpo no dela, e naquela noite eu amei Alissya Rayven até o ar faltar de
meus pulmões, até que ambos nos aconchegamos um sobre o outro caindo no
sono profundo.
Capítulo 24
Alissya Rayven
— Você sente falta daqui? – perguntei olhando para onde tudo começou.
Luke diminuiu a velocidade do carro alugado, dando uma olhada em
volta. A cidade tinha sofrido algumas modificações, mas era a boa e velha
Beaufort, mesmo no fim de tarde as luzes de Natal estavam acessas, deixando o
pequeno centro ainda mais animado e lindo. Um dos meus passeios preferidos
quando morava aqui era caminhar até o centro, o outro era escalar a janela de
Luke.
— Beaufort foi muito boa para mim, nasci e cresci aqui. Passei pelo
momento mais difícil de minha vida, e também pelo mais lindo. – Luke segurou
minha mão dando um beijo no dorso. – Deus tem minha eterna gratidão, me deu
um anjo.
Sorri entrelaçando meus dedos. – Temos sempre que acreditar, as coisas
não acontecem por acaso, nenhum caminho é traçado sem o planejamento
divino. Eu seria sua Luke, mesmo se não tivesse nos cruzado naquele acidente.
Luke torceu um pouco a boca, deixando minha mão sobre sua coxa,
voltando a dirigir.
Pouco depois de realmente ficarmos juntos Luke contou que era um dos
envolvidos no acidente, não que isso fosse modificar algo. Eu sabia que minha
vida teria encontrado uma maneira de cruzar com Luke Dinally, mesmo que ele
não tivesse dentro daquele carro, porém deixei que ele contasse, senti que era
importante para ele falar sobre isso, mesmo depois de tantos anos. No final
sentei em seu colo, dei um beijo longo em seus lábios, sentido o amor aquecer
meu peito e disse que o amava.
— Sinto-me mal por chegar em sua casa de mãos vazias Lu.
— Já disse para não se preocupar, pelo que conheço dona Ligia tem
comida para alimentar a população toda de Beaufort.
— Mesmo assim. – meus olhos se cravaram em uma pequena doçaria do
outro lado da rua. – Ali, pare ali Luke.
Ele bufou, balançando a cabeça em negativa. – Só você.
Luke parou em uma vaga um pouco distante da doçaria, dei a volta no
carro esperando que descesse, entrelaçando nossos dedos caminhando
tranquilamente pela rua.
— Que tipo de doce seus pais gostam?
Ele sorriu colocando um braço sobre meu ombro. – Qualquer coisa,
escolha qualquer co...
Travei no lugar vendo Luke olhar para uma mesa, uma turma estava
rindo alto, as meninas sentadas no colo dos rapazes. Até que atenção deles caiu
sobre nós.
— Luke?
— Brian. – Luke retribuiu de forma rude, apertando minimamente
minha mão.
Reconheci Marta sentada no colo de um dos rapazes, ela deu um
sorrisinho em minha direção, mesmo acreditando que foi totalmente falso
retribui seu gesto.
— Quanto tempo não nos vemos, Dinally. – disse outro homem mal-
encarado, ele fumava um cigarro jogando a fumaça nos rostos dos outros, seus
olhos eram fundos, como um viciado.
— Jamie.
Senti Luke trincar seu maxilar. Aqueles só poderiam ser os antigos
amigos de Luke, aqueles que provocaram o acidente, aqueles que quando ele
mais precisou de amigos viraram as costas e o descartaram como um nada.
— Lu, preciso voltar.
Luke olhou para mim.
— Esqueci o dinheiro no carro, amor. – disse acrescentando um sorriso.
Ele sabia muito bem que eu estava mentindo, mas Luke concordou,
virando as costas para a turma, sem se despedir. Seu aperto se tornou mais suave
a cada passo que dávamos em direção ao carro.
— Não achei que cruzaria com eles. – comentou fechando a porta. –
Sempre acreditei que aquilo que me ofereciam era amizade, mas isso mudou
quando eu conheci Isaac. Ele sim foi meu melhor amigo, ele sim me mostrou
como é ser amigo de alguém.
Peguei sua mão, fazendo um carinho no dorso. – Também sinto falta
dele.
Ele me olhou por um instante. – Você iria comigo em um lugar?
— Claro, mas vamos nos atrasar para o jantar.
— Pode ser depois, sei que minha mãe me arrancaria o fígado por atrasar.
Luke Dinally
A Bela e a Fera”
Luke Dinally
— Sinto-me honrado por estar aqui, sendo o orador na formatura. –
Passei a mão pela calça, tentando conter o nervosismo. Meus olhos logo
captaram Alissya e meus pais sentados no meio da plateia. – Nosso tempo é
limitado, nossos dias são contados como se fossem pequenos relógios
ambulantes. Nascemos sem nada para começar, e morreremos apenas com aquilo
que aprendemos, você tem que confiar em alguma coisa, Deus, destino, vida,
sonhos, qualquer coisa. Pois sem sonhos e a confiança que eles um dia irão se
realizar, você não seguirá em frente. Um homem sem sonhos é um homem vazio,
eu já fui um homem vazio, quando me descobri com Leucemia, realmente
acreditei que minha vida tinha chegado ao fim.
Respirei, fazendo uma pequena pausa. – E mesmo não querendo
acreditar, mesmo que todas as possibilidades mostrassem o contrário, a
esperança cresceu em meu coração, como meu melhor amigo me disse certo
momento: Você precisa encarar a vida de frente, você precisa encará-la como se
fosse algo que cairia entre seus dedos, para dar valor no hoje, no agora. E isso
faria toda a diferença.
— Algumas vezes a vida irá atingi-los com dureza, passando por cima do
que vocês mais acreditam. Não percam a fé. Sempre se perguntem se hoje fosse
o último dia de nossas vidas, o que faríamos? Quais sonhos conquistaríamos?
Por onde começaríamos? Nosso tempo é limitado, então que comecemos por
hoje, realizando alguns de nossos sonhos.
Os alunos, familiares e professores de toda a universidade aplaudiram de
pé, sentia-me grato por isso, sentia-me grato por estar ali, por eu mesmo realizar
meu sonho, por minha vida, por tudo que havia conquistado.
Logo o Diretor começou a chamar os formandos pelos nomes,
entregando os canudos e dando os parabéns. Assim que recebi o meu andei
depressa até as pessoas que mais amava, Alissya e meus pais. A quem devia
tudo, a quem devia minha fé, minha vida e o amor de todos os dias.
Todo dia é um novo amanhecer vindo de um novo dia, como se Deus nos
dissesse “Você tem mais um dia, meu filho”. Então é sua missão viver essa
oportunidade, muitas vezes nos questionamos e não aceitamos algo que venha
acontecer, nos viramos contra Deus e seus propósitos. Muitas vezes não
entendemos do porquê caímos, do porquê sofremos perdas ou porque nem todos
os dias são felizes.
Eu gosto de pensar que nada acontece ao acaso, tudo bem, eu não tinha
esses pensamentos. Era mais do tipo que não aceitava e culpava a todos, sem
nem mesmo imaginar que se estava passando por aquilo era porque eu deveria
aprender algo naquela caminhada. E com tudo isso eu aprendi que o que
realmente importa não é a situação em que estamos, mas a direção para qual nos
movemos.
Aos vinte anos minha vida mudou completamente.
O que eu sempre acreditei ser o melhor, ou ser para sempre perdeu seu
valor e outros me foram ensinados. Aos vinte anos minha vida foi posta em
xeque e eu aos ensinamentos que ela tinha para mim.
Hoje parado aqui eu não poderia tirar nada disso, nem trocaria tudo que
vivi por uma vida diferente. Ao me sentar na varanda de nossa casa em Beaufort,
nove anos mais tarde, recordando daqueles anos de minha vida, lembro-me de
tudo tão intensamente que é como se tivesse ainda preso no tempo, nas
lembranças e nos ensinamentos. Lembro-me te todas as batalhas enfrentadas, de
todas as vitórias conquistadas, por menores que fossem. Lembro-me com dor no
peito do amigo, um verdadeiro irmão que perdi, mas sempre estaria sendo
lembrado em nossos corações. Naquele ano não tive apenas sofrimento, naquele
ano eu tive Alissya, conheci a mulher da minha vida.
Alissya era mais do que a mulher que eu amava, ela era minha amiga, ela
me ajudou a ser o homem que sou hoje. Com seus sorrisos constantes, sua
vontade de viver, sua paixão pela vida e seu amor por mim. Lembro como se
ainda tivesse parado no altar da igreja, com meu pai ao lado, nossos amigos e
familiares como testemunhas e Alissya caminhando até mim.
Um dos momentos mais maravilhosos da minha vida.
Respiro fundo inalado o ar fresco do final da primavera, vejo os anos
passando por meus olhos, vejo minha infância, os momentos felizes e os tristes
também, sinto o vento bater por meu rosto, e é como ponteiros de um relógio
rodando rapidamente, passando os anos pelos meus olhos, todos os momentos.
Quando torno a abrir meus olhos já não tenho mais meus vinte e poucos anos.
Mas isso não tem importância alguma, sorrio ligeiramente admirando Isaac
Rayven Dinally brincando na grama. Seus cabelos castanhos brilhando com os
reflexos do sol, bochechas gorduchas rosas, suas mãozinhas gordas brigando
com um brinquedo e suas pequenas gargalhadas quando consegue finalmente
colocá-lo na boca.
A brisa suave toca-me novamente, trazendo o frescor do final de tarde.
— Pensamento longe meu amor?
Alissya abraça-me por trás, dando um beijo em meu pescoço. Ergo meu
olhar, olhando para o céu, seu rosto tampa a visão parcial do sol se pondo,
formando um halo em volta de si. Meu anjo.
— Pensando em como amo você e tudo que me deu.
— Mamama. – gagueja meu pequeno menino, engatinhando em direção a
mãe.
Alissya solta-me pegando nosso filho no colo, nossos olhares se
encontram e tudo que sinto é paz, amor e vida.
Ali estava meu motivo para respirar todos os dias.
LEUCEMIA MIELOIDE AGUDA
Esse livro foi um dos mais difíceis que escrevi, ele me dominou desde a
primeira palavra até a última. Diversos sentimentos passaram por mim ao longo
dos capítulos.
Não poderia deixar de agradecer a doutora Renata, especialista em
Oncologia pelo auxílio. Assim como Leonardo, que sofreu com a Leucemia e
hoje é um grande exemplo de força e vida. Para quem amou tanto o Isaac como
eu, saiba que ele vive, dentro de cada um que luta por essa doença, confiando no
destino, em Deus, no carma, na vida. Nesses últimos meses que passei
estudando, pesquisando e escrevendo esse romance me senti honrada por ter o
exemplo dessas pessoas, ensinando-me como é importante pequenos atos em
nosso dia a dia.
Espero que Luke e Issac representem cada um de vocês que sofrem ou
presenciaram pessoas que amamos sofrerem com isso. Por cada pequeno fio de
esperança que nos agarramos todos os dias. Meu muito obrigada, e que a vida e
sonhos sejam seus motivos para sorrirem enquanto respirarem.
Muito obrigada a cada leitora, a cada carinho. Muito obrigada por me
acompanharem todos os dias.
Que Luke e Aly permaneçam no coração de você.
Um beijo enorme,
A.K. Raimundi.
[1]
Trecho do Nicolas Sparks. citação (1 Coríntios 13)