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[sue pws (er yest eh sic pela primeira vex em 1952,-sob o pseudéni Ore NO cc ere a RU Cen cea Prenton ste Tanner oe tes tn cc PENpeesnet ener err Rco es Tosi ao Rr errs tire COCR uate} Preee terete een sao Seen arte es enc on Pee a Ore te Orn ctc een Pree ne er cma intriganteecontraditéria, que oscilaentreatirani: Pre nn CMS ier cr Creo Pee cere rennet Onna Rear nti sects hi coment cts Poneto estes A intrigante figura do Barao, com as suas qualidades e defeitos, as suas obsessdes e 0s seus Penner ot cucu enn CCR Peover ROR RDC CC eee cee Cee Poteet ree Cn eas eae nhc Pere ‘i fe010721405330 Pm. fed 1 | time Slt 42 -— Colec¢ao «Livros de Bolso Europa-América» 2 ivi ge, Vindinkso Reno Saas ee Ae Tope erin, piieemenecen 5 Aha etd Jb Se 1 lie wees 0 TO Re dr tor Unt, aly 12 —Caeds Atlin, Alsons Daw ¢—Slterteogtueaen 1g Beret roving i Dia ieee ia Balm, Coy dean 2 oheert niet aia Seen Poa Saree SARS Oane ta Bt COs foun Ava Sindee BS Lin i fae Boh, Alama Sten 24 A tase ts en BO foe Our Be Vator 38 —Olgoem Cine Maral deacen 1 ~Aibgne Nara May Ca 3h helen Sen Raton 5 “Resmi dv ee Gat, Abert ar, St hile dn 42 Mente Br Castro aout, thar ‘ir Ali do oto Que Poe, ¥ 4 =O to Co Mowrio 38e 4 =A Me Maated Gear BAe ee Unbane Tera 12 —he, Jn de Aenea ANd Con Sake eg — Petra a A, Apne Dane Oona Raat oe 81 — Rage date Ere peti a An 9 ~itnie ef Alte dct fo den Shei Rs 3 — itt de tt Lenn {8 A Go fe ids ln eben (3 Taine, Camis Castle Hg —O Bown, Lane ay ay ws a TBO Rei tli Bey Lo oie ete hat Cin eran 8 lemavend indi Si “Spore, Howes Fae rtd a Brae on, a a 5 “onal tan Ants 51 “ae Magate oton ae 5 “Olam dor Beane toar 9 “Odpinda Seba oe 0 —tsraetuees, Serr Merona ‘sr | ; | geist mom 3 Beta ola a eer oe bs Bi qe sey Hpac Moy |B E respondi: —Gostava, mas no posso, Sou um eseravo... 30 Sorriu como se dissesse: «Que gente!» Noutra ocasiao teria teimado, ter-me-ia até obrigado a ficar. Mas naquele mo- mento esmagava-o um desalento repen- tino, nao tinha forga de vontade, ficara abatido e mole como um leo ferido de morte. Com ar sondmbulo comecou, por fim, a atirar bocados de frases como se falasse sdzinho. — Esta mulher faz-me lembrar certas coisas... Néo por ela... Outras coisas. Esta é uma como hi tantas,.. Eu As vezes vendia as minhas amantes a meu pai Ou trocava-as... Quando precisava de di- nheiro... Outras coisas. Mas vou... vou regenerar-me... (sorriu com uma ironia incrédula. Fez uma pausa e, como se acor- dasse de repente, olhou para mim, endi- reitou-se na cadeira, bebeu um golo de vinho e bateu com 0 copo com tal forca sobre a mesa que o fez em estilhas. En- t&o continuou noutro tom de voz comple- tamente diferente, firme, liicido): Des- culpe... Ja esteve apaixonado? —Nio. E no acrescentei mais nada para o obrigar a falar. Agora estava a interes- a cc sar-me aquela confissio que ele ja nao queria fazer. Mas era uma obsessio que o dominava; tinha de falar daquele assunto que a si proprio queria proibir. Ento fez o seu retrato moral, calcou-se com nojo e como se de si se vingasse nele proprio, chegando a ser uma cena desa- gradavel. Até que serenou e comecou a falar de outra mulher, uma mulher por quem tinha tido uma paixiio, e a quem se referia chamando-lhe apenas «Ela». Ten- tei mudar a conversa, pedindo-lhe que me contasse mais coisas de Coimbra. — Isso nao tem interesse... Mas d’Ela também nao sou digno de falar... Sabe?. (e, como se se arrependesse, no conti- nuava). Ah, meu amigo! Ser outro!... Re- generar-me... Mas n&o 6 como mudar de camisa... Quero, mas nfo posso. Nao & 86 querer... Imbecis! Que eu quando quero, quero! e é logo! Mas nisto... $6 te- nho um retrato d’Ela. Mandei-o roubar... Ela no sabe. Vou-o busear... (levantou- -se e continuo): Pessimismo nfo, nfo sou pessimista, Para mim as mulheres sio uns animais como os outros... Mulheres? Sei lé o que sio mulheres?! Putas 6 que 32 sei... Mas mulheres, nfo... (e voltou a sentar-se, Encheu devagar outro copo). Quando eu precisava de dinheiro trocava as amantes com meu pai. Levava uma fémea de Lisboa: ele ficava doido, Era um javardo, um rei negro... Dava-me logo a massa e eu punha-me a andar, largava a dele no Porto e voltava para Lisboa... Reles... Tudo reles.. Entrou a criada com uma travessa onde fumegava um galo assado, entre ba- tatas loiras, E nfo ouvi mais nada do que © Bardo dizia, Até que, ja reconfortado, voltei a ouvi-lo com prazer. _ —...$6 uma vez é que nfo. Era a Emilia... Nao sei onde ele tinha ido bus- car aquela mitida... Eu cheguei de férias € logo ao jantar: «Nao toques na Emi- liay — «Hsteja descansado.» Foi naquela mesma noite... Ficou um momento silencioso e abs- tracto: vi-o afundar-se na meméria, re- cuar no tempo, até essa antiga hora da sua vida, Depois, voltando a si, olhou-me quase com espanto, como se nunca me ti vesse visto: mas teve logo um sorriso calmo e, erguendo 0 copo de vinho a boca seca, continuou: aes 33 — —Coitadita. Hra uma crianca... e es- tava como tinha saido da barriga da mae. Até custa a acreditar. No fim ajoelhei a pedir-Ihe desculpa... H de manha deram com ela na presa do moinho... Mas foi 86 esta. As outras nao se matavam... S6 cabras... Eu nao como, mas nfo faca ce- riménia, Coma por mim. A vida é devo- rar... Sim, e beber. 6 divino néctar; os meus libios te beijam! (Bebia.) E o meu coragdo entoa em teu louvor o mais sa- grado cAntico!... E os meus labios te bei- jam mais uma vez!... (Mudava de tom e com stibita serenidade continuava, fa- Jando mais para ele que para mim): Nunca tomei a vida a sério, #14 coisa que se tome a sério!... Sou um animal, uma pura besta, Diga! Ou nao diga, nao é pre- ciso, basta pensar. Nao se engasgue, nao diga nada, deixe-me ficar com a impres- sfio de que nao é um hipécrita que es sentado & minha mesa. Sou isto mesmo: sou um javali, Jé tive ilusdes a meu res- peito, agora nao... Se vocé soubesse Mas ainda bem para si que ndo sabe. Res- peitemo-nos. Respeito-me por si: afinal 4 somos da mesma espécie animal.,. Faga de mim a melhor ideia que puder: se isso © lisonjeia. Ou o contrario, se quiser. E se eu Ihe dissesse que no meio da noite passa. as vezes um raio de luz? Acreditava’. Ao menos aeredita em tudo.. Disse isto com um desalento que me revelou todo o seu desprezo pela minha falta de sinceridade, Tinha razdo, Mas eu nao estava a pensar no que ele dizia, es- tava sé a comer. Respondia-lhe com si- nais de cabeca, que sim, com a boca cheia, O Bardo pés-se em pé e deu uns passos a0 longo do salao. Afastou-se, foi desapare- cendo na sombra, de cabeca baixa, e de- pois voltou até junto da mesa, Bu disse qualquer coisa para no estar calado, que ele nem ouviu. Aproximou-se, pegou na campainha de prata que estava na minha frente e tocou. Mudou de repente de con- versa: —Vai ouvir a Tuna, Ha-de gostar. (Bntrou a criada.) Vai buscar o violino, A criada ia a sair, mas, como quem se lembra de qualquer coisa, voltou atras: —Senhor Bardo, o violino esté par- tido. 35 r— Voltou-se para ela como se fosse d zer ou fazer uma violéncia, tendo-se-lhe congestionado de repente a face, mas do- minou-se e s6 disse numa voz fria: —Ha?!... partido?. —Sim, senhor Baro, Foi ontem... —Vai arranjar outro. A criada mantinha-se firme, com um olhar sereno, quase altivo; 0 Bardo, pas- sado o primeiro impeto perigoso, sere- nava ¢ parecia até hesitante, Ela ja tinha, tomado posse do terreno e perguntou com uma secura arrogante: — Aonde? Berrou-lhe: —Manda chamar a Tuna! E sentou-se na minha frente, de cos- tas para a criada, como se ali se refu- giasse do seu olhar duro, Pegando no copo, ergueu-o num gesto brusco. Receei que agredisse aquela arrogante mulher, que a abatesse com uma cadeira na ca- beca. Mas nao. Dominava-se mais do que parecia por vezes. Contudo, era preciso coragem, ou outra forca qualquer, para afrontar assim as violentas iras do fi- dalgo. Havia um mistério entre ambos, 36 era evidente, Ela saiu depois de vir bus- car o prato que eu tinha deixado cheio de ossos. E 0 Barfio falava-me de cacadas. A criada voltou com uma travessa de carne de porco e ovos mexidos. Ele conti- nuava sem comer, beberricando e falando. Devia ter j4 bebido muito, mas nao es- tava embriagado, mantinha-se apenas sob pressio, como se diz de um navio de guerra, Pronto para tudo. A mesa com 0 copo, aquela grande casa deserta e som- bria, eram 0 cais, 0 arsenal daquele cou- racado que sairia para o mar ao primeiro sinal. Olhava-o agora com curiosidade ¢ um vago receio do que poderia acontecer com aquele homem estranho. Entretanto, eu tinha comido bastante © bebido com certo prazer. Reparei que eram ja onze horas e meia da noite. 0 Ba- rao tinha ido buscar a um armirio algu- mas garrafas de diferentes vinhos ¢ lico- res, Vinhos velhos do Porto e algumas mareas francesas, Eu niio queria fazer misturas, mas ele impunha, repetindo aquela frase que parecia a brincar e era a sério: —Quem manda aqui sou eu. a7 E 1a famos provando de todos os vi- nhos. Eram verdadeiras especialidades, «Agora este porto, que tem 96 anos.» Destapava e chegava-me ao nariz o gar- galo, donde saia um fino aroma. Eu devia estar convencido de que aquelas coisas de to divino perfume no faziam mal, que, pelo contrario, era absorver néctares do Paraiso. E o Bardo falava do Brasil, das florestas do Amazonas, das brasilei- ras, «as mulheres mais belas do mundo!» Discordei: «As nérdicas, as inglesas, as alemas...» Interrompeu com sincero des- dém de conhecedor: — «Isso é como sa- lada de alface. Sabe bem com a carne... Eu sou carnivoro... E vejo na mulher, além disso, 0 meu primeiro inimigo. E a tnica coisa em que eu e o meu prior somos da mesma opiniao... Ora o inimigo deve ser sempre digno de nés.., Lutar com ga- tas, no! Quero ver na minha frente um tigre real! & a vida ou a morte. Atiro-me ao tigre real, rolamos enrolados um no outro, as garras dele a enterrarem-se na minha carne, os meus misculos de ago a vergarem aquele corpo elastico, belo e fe- roz, a minha forea toda a subir-me no sangue!... Ah!...» 38 Mas eu insisti, sereno: —Conhego inglesas, conheco alemis dessas, desses tigres —F s6 a pele, s6 os olhos ¢ o pélo... Nisto nao ha teorias... preciso ir 1é. ir 14 com os dentes e com as garras... E enclavinhou as maos. Ja estavamos ambos embriagados. O Baro ergueu-se, fitou-me e disse, de repente triste: — Vamos beber por uma mulher. Levantei-me também. Foi ao tal ar- mério e trouxe uma garrafa de champa- nhe, Berrou: Tacas! E tentava tirar o arame da rolha, sem conseguir, Veio a criada e pds quatro ta- cas sobre a mesa, O arame nio saia, En- tio bateu com o gargalo da garrafa na borda da mesa eo champanhe jorrou em espuma branca, Reparando que estavam mais tacas, com as costas da mao atirou duas da mesa abaixo. Eram de reserva. Porém daquela vez nao queria reservas. E ergueu a taca que transbordava. Eu imitei-o, perguntando nebulosamente: —A que mulher? —A mica! 29 a E bebemos ao mesmo tempo, despejan- do-as de um trago. Mas com surpresa no- tei que o Bardo tinha ficado sibitamente pensativo. Depois, com um gesto solene, atirou 0 copo ao chio e fitou-me, silen- cioso. Fiz o mesmo, atirei a taca. J era tempo de cu saber que ali se partia tudo, desde os violinos aos copos. Com o olhar embaciado e sondmbulo, fitava-me sem me ver. Mas, como se acordasse de re- pente, comegou a rir, com um riso dolo- roso ¢ de ironia amarga, Pareceu-me ou- tro homem, Era, na verdade, outro ho- mem, aquele que estava ali agora diante de mim. Nao o tinha compreendido, nao © tinha visto ainda, Olhei-o com simpatia. Disse-me numa voz calma e triste: —Venha ca. E encontrémo-nos ao fundo da mesa, Enfiou a mao no meu brago e caminha- mos silenciosos na direcgio da porta da sala de jantar. Saimos para um corredor. Nao sei bem por onde andimos e nfo sei mesmo o que fizemos naquela divagagio melancélica, Mas recordo-me de que per- corremos varias salas, quartos e depen- déncias do palicio, que me lembram como 40 um sonho fantastico, Quanto tempo isto durou, nfo sei, Do que me lembro é que nfio encontramos ninguém, como se toda a gente desaparecesse diante de nés. Por vezes parecia-me ouvir passos. Deviam ser os criados que andavam ali perto para ouvirem se o Barfo chamasse. Até que viemos outra vez dar & sala de jantar. Pa~ rou encostado 4 mesa e disse que tinha fome. Encheu um copo de vinho tinto e bebeu dois golos, agarrou na campainha. e tocou. Veio a criada com o seu ar altivo. —Quero comer. E duas garrafas... daquele... Ja sabes! Qu’é qu'estas ai pa- rada?!!! Gritou, mas quando ela saiu comecou arir, a rir, e contou-me que a tinha conhe- cido ha mais de vinte anos, que a roubara, na Quinta das Palmas, «tenra como um grelinho de alface». —Roubei-a na Quinta das Palmas. ‘Trouxe-a assim, ao ombro, como um saco. Cheguei aqui e atirei-a para cima da mesa... Meu pai estava a cear. S6 lhe disse: «Nisto ninguém toca!» E nao to- cou. Mas agora 6 ela quem manda.. Nunca mais me vi livre dela... B um a oan tigre! (Entrou a criada.) Es um tigre! Um dia dou-te um tiro, que os tigres 6 a tiro. (Mas abracou-a pela cintura fina e deu-the um beijo no pescogo.) Eras uma mulher!... uma mulher como nunca mais ha... (Ela desprendeu-se.) Mas hoje me- tes nojo... (¢ virou-se para mim): Dei-a aos criados... Da cabo deles todos. A criada saiu, indiferente. Nao era verdade. E ela dominava-o ainda, apesar de tudo o que os separasse agora: ou can- saco ou outra mulher. Mas esta nfo tinha deixado de existir na vida dele. La fora, nas trevas, 0 relégio da torre de uma igreja bateu as duas horas da noite. E a ceia do Bardo chegou fumegante. Eram alheiras assadas. Antes de se sentar veio ao pé de mim e poisou a mio no meu om- bro, com melancolia, tratando-me por tu: —Nunea deixes de ser meu amigo... Olha que eu sou um pobre homem! (Tre- miam-lhe as maos; o olhar tinha perdido © brilho e ficara vago e hago. Depois de uma pausa concluiu com um sorriso amar- go): Sou um poeta. E, caminhando para mim, agarrou-me por um braco, levantou-me da cadeira a2 onde eu me tinha sentado e levou-me até junto de uma das portas. Nao sei onde queria ir ou 0 que tencionava fazer, por- que neste momento ouvimos ao fundo do corredor, ainda longe, um barulho como © volar de um trovéo que se aproxima, Ele estacou com um sorriso satisfeito, Bu fiquei aténito e imével. Recuou de repente ¢, puxando-me, levou-me arrastado até a0 outro extremo da sala de jantar. Eu néo sabia que barulho era aquele nem perce- bia estes vaivéns em que o Bardo me tra~ zia. O ruido aumentava como uma grande trovoada que desabasse sobre nés. Néo tive medo, mas perguntei-lhe o que era. Como viu que eu estava surpreendido (assustado nao estava), néo me explicou nada, Mas logo pereebi que era um matra- quear de tamancos. Tinhamos recuado ¢ estavamos encostados 4 parede, calados, a espera do que ia entrar por ali den- tro. Até que surgiu, num passo lento, um. individuo magro, com um pano. preto sobre o olho esquerdo, embucado num grande capote negro, semelhante ao do Barao, Este fez-lhe um sinal brusco, apontando a testa, e o homem pés a cara~ 43 puca que tinha tirado da cabeca. Trazia-a na mao, debaixo do varino. Logo entra- ram mais homens, uns cobertos com aque- les longos capotes, outros embrulhados em mantas. Percebi que o Bardo nfo que- ria que tirassem os barretes nem os cha- péus. Nao sei porqué. Talvez para dar Aquilo tudo um aspecto ainda mais estra- nho, Eles j4 sabiam deste capricho. Iam entrando um a um, em fila, embrulhados, embucados, com um ar friorento e estre- munhado. Que vinha fazer ali aquela gente toda, aquela hora, sei 14 que horas da noite? Eu estava um pouco embria- gado e fazia um esforco inttil para com- preender o que via. H entravam, um a.um, lentos, sonolentos, de todos os tamanhos, uns magros, outros gordos, uns de gran- des bigodes tartaros, outros de barba a passa-piolho, dois ou trés de grandes bar- bas, como profetas, envolvidos nas mais variadas mantas e capotes. Parecia-me um pesadelo aquele desfile de figuras tio estranhas, que formavam um friso diante de mim e continuavam a passar intermi- navelmente, fazendo uma vénia até ao chao. “ Os tamancos soltos nos pés faziam~- -nos caminhar balangando como ursos. Al- guns tinham, na verdade, a cara coberta de pélos hirsutos. Eram ursos. Olhei para, 0 Barfio como quem implora uma palavra tranquilizadora, Estava com o olhar dis- tante e a expressiio parada, O barulho dos socos ensurdecia-me, Jé nao sabia o que devia pensar daquilo. O saldo estava cheio de homens, que se iam arrumando em filas, diante de nés. A alguns mal se lhes via a cara, porque tinham a cabeca me- tida dentro de enormes capuzes, como frades. Procurei ler qualquer coisa na fisionomia do Barao. Por fim olhou-me € sorriu, com um sorriso de prazer. Eram mais de cinquenta, formando um semi- circulo diante de nés. E, de repente, fez-se um grande siléncio. Eu sentia a cabeca cada vez mais pesada do alcool e tentava, num esforco initil, compreender. Pare- ceu-me que aqueles homens nos olhavam com medo. Depois vi que era também com desprezo e ddio. Como se um duplo tivesse saido de mim e estivesse a obser- var-me de fora, eu via-me melhor a mim préprio do que via os outros, A criada ti 45 nha posto sobre a mesa trés grandes co- pos, de litro cada um, e umas trés ou qua- tro broas. Pés também duas facas, De- pois encheu os trés copos com vinho tinto, de um garrafaio que estava debaixo da mesa, e saiu. Tudo isto fora feito num si- Iéncio absoluto, como um ritual respei- tado. Até que, por fim, ouvi a voz do Baro, de quem j me tinha esquecido, quebrar 0 siléncio e com o brago estendido, num gesto pesado e largo, fazer a apresen- tagdo: —A Tuna, Julguei que estava a trocar de mim e daqueles pobres campénios de aspecto to estranho e selvatico, Mas nao. Come- cei a reparar num homenzinho que, na minha frente, me espreitava com um sor- riso de escarnio. O Bardo apresentava-me © tal homem que trazia um pano preto sobre o olho esquerdo: — Aqui tem o senhor Alcada, mestre da Tuna. O senhor Alcada dobrou-se numa vé- nia exagerada e, pondo-se outra vez di- reito, perguntou com entoagio ridicula- 46 mente solene, orgulhoso da sua arte, de- senrolando a lingua travada pela gaguez ou pelo medo: —Senhor Bardo, as suas ordens. —O Verde-Gaio! — gritou o Bario numa voz fora de tom, como se estivesse a pensar noutra coisa e de repente ouvisse aquela pergunta do mestre da Tuna. A um aceno do mestre, como num es- pectéculo de magica, debaixé de todos aqueles capotes sairam os mais variados instrumentos: violinos, flautas, violes, guitarras, ferrinhos, tambores, bandolins, harménios, gaitas de beico e bezimbaus. Eu nao contava com aquilo. Saiu-me uma gargalhada que nao consegui dominar. O Bardo deitou-me um olhar de censura, sorrindo com uma frieza cortante. Vol- tando-se para o tal senhor Alcada repetiu, agora numa voz serena: —0O Verde-Gaio. O outro virou-se para a multiddo dos seus misicos dispostos em meia-lua, e, quando eu esperava um estrondo, uma dessas barulheiras infernais, rompe dali uma marcha vibrante e alegre, cheia de 47 vivacidade e emogio lirica, num conjunto de quase perfeita afinacao. O Bardo, ines- peradamente, deu um salto para o meio da sala e, plantado com as pernas aber- tas, curvado para a frente, com os punhos. cerrados, os bracos flectindo em movi- mentos rapidos e firmes como se batesse no peito, entoava um regougar rouco como urros de guerra africana. Senti-me também arrebatado, Era admiravel como tudo se tinha transformado stbitamente ao som daquela fanfarra imensa, Ergueu- se, no sei donde, uma voz de fino tim- bre a cantar num ritmo longinquo e sau- doso e os instrumentos foram-se calando até que ficaram s6 os tambores e os vio- Ides batendo de um modo abafado, lento ¢ estranho, Veio outra voz atras daquela, em contracanto. E um coro de baixos, numa toada profunda e distante, insistia em nfo sei que estribilho, como um eco. Até que o Bario fez um gesto e tudo parou repentinamente, Um dos tocadores aproximou-se da mesa, como se fosse agora aquilo a continuagio do programa, agarrou numa broa. Cortou uma fatia e passou ao vizinho. Depois, com ambas 48 as méos, pegou num dos grandes copos de vinho, donde bebeu uns golos, e passou. E assim fizeram todos. As broas foram correndo de mio em mao: cada um cor- tava uma fatia e passava o copo, O Bardo quis saber as minhas impressées. Nao sei 0 que disse, mas elogiei, decerto, com sin- ceridade. Até que ele, vendo que todos os homens tinham comido a fatia e bebido © vinho, gritou —0 Tum-Tum! E seguiu-se outra toada regional, Eu estava maravilhado, Ainda hoje conservo nitida essa sensaco de estranheza que me deu a sessio da Tuna. De sibito, eu, © Baro e a criada comecamos a dancar no meio da. sala, A Tuna sempre tocando e nés a andar de roda, com a cabeca a andar de roda, do vinho e da misica, Mas, por fim, ele caiu a arfar, para um canto, como um monstro ferido. A melodia nao se interrompeu nem nés, que continud- vamos a dangar um bailado de ursos em pé. A eriada caiu também no meio da casa, e ficou com as saias para cima, mostrando as pernas até as coxas, Naquela posigao comecou a cantar ao som da misica, que wos a continuava inalterdvel, j4 insenstvel a estas coisas, pela forea do habito. Encos- tei-me a um lado a olhar e a rir: escorre- guei contra a parede, devagar, e fiquei também sentado no chao, Via andar tudo & roda, como se estivesse a adormecer num desses baloicos em que as criancas brincam. O Bardo, sentado no chao atras de mim, cantava em espanhol... Mas le- vantou-se e voltou para o meio da sala. Chamou um criado, que Ihe trouxe um grande garrafao, e, levantando-o ao alto, comegou lentamente a despejar sobre a cabeca uma cascata de vinho branco que me fazia inveja. Porém ji nada me admi- rava. Podiam fazer o que quisessem que tudo acharia natural. E comecei a rir as gargalhadas, com o exagero dum com- pleto desmoronar de todas as minhas li- mitagdes e preconceitos. O Bardo, a pingar e a patinhar, com os pés a colarem-se ao sobrado inundado de vinho, avancou para mim, frangalho bébedo sentado no chao'a rir, a rir, a rir dele e de mim e de tudo; eu ria sem saber 8 de qué, caido ali para um canto como um boneco a que tivesse desandado de 50 repente a corda toda até ao fim, Mas vi-o crescer como um gigante e reparei que ele tinha na cara e no fato uns estranhos reflexos metilicos, J& nfo era o Baréo, era o seu fantasma, um automato de ferro e lata que me fazia calafrios de terror. Baixou-se sobre mim, pegou-me por um braco ¢ levantou-me do chao tao facil- mente como se eu fosse um boneco de pa- pel. E colado ao fato dele, lustroso e mo- Thado, que exalava um cheiro forte a vi- nho, fiquei em pé, a ouvi-lo dizer: —Estou purificado! —Pois estas... —0 baptismo purifica! —Pois purifica... —Vem!... Vou ao castelo da Bela- -Adormecida... Enfiou o brago no meu e desaparece- mos no corredor escuro, Eu ia arrastado nfo sabia para onde, ele ia levado 14 para, onde o chamava a obsessio. Ouvi ainda, atras de nés, o barulho dos tamancos dos homens da Tuna, que saiam por outra porta, Mas ja estavamos no meio da quinta e os cies vinham todos atras de nés, 51 Bruseamente, estacou, segurando-me por um brago: —Ah!... Jé venho, Espera aqui. E voltou para tras, apressado. Vi-o en- caminhar-se para os lados da porta por onde tinhamos saido e desaparecer na escuridio da noite. No meu estado de meia inconsciéncia pareceu-me ter com- preendido o que ele dissera, ou antes, pa- receu-me compreender o que ia fazer, como se, na verdade, me tivesse dito na- quelas poucas palavras mais alguma coisa do que apenas aquilo que elas disseram. ‘Mas, de repente, como se abrisse os olhos, vi que nao me tinha dito o que ia fazer, e isso pareceu-me injustificavel. Agora reconhe¢o que o nao era. Porém, naquelas circunstancias, achei que era uma des consideracao deixar-me ali sdzinho sem me dar explicagées. Demais a mais num sitio que eu no sabia onde estava, pois nao via nada 4 minha volta, a ndo ser umas sombras que pareciam arvores, mas que afinal nem me lembro se cheguei a saber 0 que eram, Revoltei-me contra o seu despotismo e nao esperei por ele. Com uma energia siibita, comecei a caminhar 52 no sentido oposto ao que o Bardo tinha seguido. Do meu subconsciente comecava a comandar-me uma voz de libertacao e em passo de marcha cantei a Marselhesa. Os cfes tinham desaparecido, a sombra da casa também desaparecera, e agora tinha os olhos habituados A escuridao, ou a noite estava mais luminosa. A verdade é que comecava a distinguir as coisas por onde ia passando e lembro-me de que ten- tei, inittilmente, escalar um alto portio de ferro, através de cujas grades se via a estrada branca. Como nio conseguia e cai duas vezes, resolvi ir procurar outra saida, pois estava naquela fase em que nao se desiste de nada e em que os obsta- culos so um desafio que nos redobra as forcas. LA para os confins da noite caiam do céu badaladas de um sino a dar horas ¢ ouvia-se o resfolegar das corujas numa torre que eu nao via, por mais que olhasse para o céu, tentando penetrar as trevas. Perdi-me do caminho e entrei por um po- mar de laranjeiras, cujo aroma entonte- cia, enterrando os pés na terra mole e en- charcada que me prendia os passos. Isto cansou-me, e quando encontrei outra vez 53 um dos caminhos da quinta jé no me ape- tecia cantar, mas gritar insultos e obsce- nidades. E estava com sede, Neste mo- mento ouvi passos ao pé de mim e apa- receu na minha frente a criada do Bardo, que reconheci pela voz: —Vossa Exceléncia quer que Ihe va dizer onde é 0 seu quarto? —Né&o. Que andas aqui a fazer? — perguntei-Ihe, aproximando-me da cara dela, Recuou um paso. Senti-lhe 0 bafo a vinho do Porto e segurei-a por um pulso: —Vem comigo. —Para onde’... — perguntou num tom quase de desdém, que me pareceu complacente. Respondi com alvorogo: —Para o meu quarto, que tu sabes onde 6, e nfo digas nada, Libertou o brago brandamente e ew larguei-a; mas aquele contacto da carne tinha-me perturbado ao mesmo tempo que parecia ter acalmado os vapores do Aleool que me embaciavam a compreen- so. Falei-lhe como se estivesse apaixo- nado por ela, com as suas maos outra vex 54 agarradas nas minhas, ajoelhado na terra, implorando o seu amor. Ela apenas se defendia por palavras. Ficara comple- tamente imével. Nao tirava as mfos. S6 repetia, com uma voz muito calma e mo- nétona, nos intervalos das minhas frases ardentes: —Esta doido... 0 Bario matava-o. Cale-se com isso! Venha. Va... Esta doido... 0 Barfio matava-o... Va... Quando fui para a abracar e beijar, empurrou-me para tris com uma sacudi- dela enérgica, —Sou, entiio, dos criados?!... Nao acredite em tudo que o Bario Ihe disser. E, voltando-me as costas, vi-a afas- tar-se na sombra. Fui atras dela, a expli- car-Ihe nao sei que teorias a respeito do amor, da dignidade, da espiritualidade e da nobreza da mulher. Nao compreendeu € respondeu-me que eu estava bébedo e que era melhor ir-me deitar, a curtir a grossura, Fui-a seguindo até A porta, que era ali mesmo ao pé. Depois de muito an- dar, eu voltara para junto da casa, Disse- -me que o Barfio andava & minha procura 55 pela quinta. Tinhamos entrado para uma sala de tecto baixo, em abébada, e chido de pedra, Sobre uma grande arca de pau- -preto estava poisado um candeeiro de pe- tréleo, negro do fumo, cuja luz tremia muito e incomodava a vista, Fez-me ton- turas. A criada pegou-lhe e comecou, na. minha frente, a subir uma larga escadaria de pedra. Vi dois cies a dormir ao pé de um cadeiro de couro: olhei-os com certo receio, mas nem levantaram o focinho para ver quem passava, Ao cimo da es- cada comegava um largo corredor onde a criada, com 0 candeciro numa das maos e ja também com um castical aceso na outra, me indicava uma porta aberta: — aqui, Deu-me a vela e, quando entrei, fechou a porta atrés de mim. Nao me importei. Talvez j& no estivesse a pensar nela. Desejar seja o que for é uma fora que as vezes desaparece inesperadamente, Acendi um cigarro e atirei-me para cima da cama, Adormeci, Passado algum tempo, acordei sobres- saltado por um grande barulho, Eram uns berros que atroavam o velho palicio, 56 era a voz do Bario e ele aos encontrées e as patadas A porta do meu quarto, ten- tando arrombé-la. Quando compreendi, levantei-me, mas comecei a tossir, a tos- sir, e ardiam-me tanto os olhos que niio podia abri-los. Vi a chama da vela esba- tida numa densa nuvem de fumo. Ergui- -me com dificuldade e atravessei o quarto a cambalear como se estivesse para per- der os sentidos, sem poder responder ao Barfio, que continuava aos murros e aos pontapés 4 porta, com ameacas e insultos que eu ouvia como se fosse muito longe, ou como se estivesse ainda a dormir. Mas, de repente, compreendi o que se passava, Era fogo! Gritei, O fumo asfixiava-me, Lancei-me contra a porta, mas nfo con- segui abri-la, Queria gritar, mas ja nao podia. Devia ter sido eu quem a tinha fe- chado por dentro, mas, forcada pelos pon- tapés, agora no desandava. Do lado de fora, o Baro continuava aos urros. Tive medo. Corri para a janela, para fugir como pudesse. Mas, de repente, fez-se um siléncio e ouvi a voz da criada, numa en- toagio violenta: —Saia dai! Deixe 0 homem dormir! 87 ——— Corri outra vez para a porta e gritei que era fogo e nao podia abrir, Entio, com um grande estrondo, a porta veio dentro e vi o Barao na minha frente. Ati- rei-me para 0 corredor e a criada entrou logo sem fazer perguntas iniiteis, com de- cisio, procurando a origem da fumarada que enchia o quarto, Trazia o mesmo can- deeiro na mao e abriu a janela, antes de mais nada. Vi-a ir ao lavatério e pegar no jarro da agua, avancar para a minha cama e despejé-lo sobre a colcha. Eo Ba- réio sacudia-me por um brago, a pergun- tar-me o que é que eu estava a fazer, ¢ a empurrar-me na sua frente, pelo corredor adiante. Entramos na sala de jantar. Ele insistia e eu respondia que nao tinha feito nada, que no sabia nada. A criada passou apressada e fez de conta que no ouvira o Bardo perguntar- -lhe o que tinha sido. Entio voltamos ao quarto para vermos. Jé niio havia fumo. No meio do cho estavam a colcha da cama e os restos do travesseiro de palha. Tinha sido com o cigarro. —Ias morrendo assado — comentou © Barfio, e comecou a rir, a rir, com um grande exagero, 68 Pegou-me no braco, Eu também ria. Ble parecia doido, as gargalhadas; queria falar, comecava a frase, mas tinha outro ataque de riso: — Quando saiste... Bo riso sacudia-o numa explosio irre- sistivel. Dai a momentos podia dizer mais umas palavra: —... parecia que vinhas do Inferno! Fomos dar outra vez sala de jantar e o Bardo quis festejar 0 meu regresso do Inferno com mais champanhe. Aquele susto despertou-me uma alegria muito expansiva. Na verdade tinha escapado de morrer queimado, gracas ao barulho que ele fizera a bater na porta. Devia-lhe tal- vez a vida, —Deves-me a vida! E o champanhe continuava a trans- bordar das tacas e a erguer-se em brindes a tudo 0 que nos lembrou, a todos os nos- sos desejos, sonhos, ambigées, a todas as, nossas saudades, desiluses, a todos os nossos amigos, a tudo quanto nos ocorreu naquele momento de sinceridade. Esses brindes foram verdadeiras confissdes, 59 como o abrir das nossas almas. Hw, na ver- dade, a quem podemos falar com mais franqueza do que a um desconhecido que nunca mais veremos? Além de que estes momentos de espontinea revelacéo em que abrimos quanto podemos todas as portas e aleapdes de nés préprios, estes momentos sio tio dificeis de atingir, por cobardia e por orgulho e pela incompreen- sfio que nos rodeia, que, quando se con- segue assim uma hora dessas, nfio deve- mos perdé-la, embora se fique, no fim, arrependido e triste como quem fez uma traicéo a si proprio, Mas, a0 mesmo tempo, dé o alivio de quem abre uma val- vula de escape quando a pressio por den- tro é j de mais. Entre outras coisas, con- tei-lhe uma melancélica histéria de amor, que era a minha. Foi a primeira pessoa a quem a confessei, dez anos depois de ela ter passado e aniquilado a minha vida. E nunca mais, a ninguém. Creio que, na- quele momento, principalmente, a recor- dava a mim proprio. Revivi essa historia triste como se fossem os melhores dias da minha vida, que eu nao quisesse deixar esquecer, recordando-a em voz alta, ou- vindo-me a mim préprio, como se outro ma contasse, O Bardo, imével, olhava-me com o olhar muito fixo, No fim vi-lhe os olhos cheios de lagrimas, Também os meus estavam rasos de agua, © afinal um caso tao simples e tao vulgar. Calei-me e ficou um grande siléncio na, sala, Depois ele quis pér-se de pé. Mas tor- nou a deixar-se cair na cadeira, Levou mais uma taga & boca e despejou-a de um trago. Isto deu-Ihe novas forgas. Levan- tou-se lentamente, vi-o subir, pareceu-me que crescia, que aumentava de altura e largura, tornando-se espantoso como um. gigante. A cadeira caiu para tris. Fieara com 0 olhar distante e fixo, Deli uns pas- sos para mim, enfiou 0 brago no meu disse, como quem obedece a um pensa- mento a que sempre tivesse conseguido furtar-se, mas que tinha agora de cum- prir: — Vamos. ‘Ja estavamos calmos ou cansados, Pi simos um cao que fugiu num ganir lanci- nante, pela casa silenciosa, com uns gri: tos que arrepiavam. Saimos da sala de jantar, mas depois 1 voltimos ao mesmo sitio, entrando por outra porta, sem sabermos por onde an- davamos, de brago dado, calados e inse- parveis. Por fim descemos uma escada ¢ abrimos uma porta que estava fechada com uma grande tranca de ferro. Veio de fora o ar frio da noite. Os outros ees pas- saram & nossa frente, Fomos caminhando entre arvores baixas, talvez, macieiras, pelo meio das quais havia umas plantas rastejantes, Andévamos em volta da casa, sempre silenciosos, como se houvesse um entendimento entre nés. Eu ndo sentia necessidade de Ihe perguntar nada. Ele, curvado, procurava qualquer coisa, Re- parei que pisivamos os canteiros de um jardim. Eram flores, rosas, grandes jar- ros brancos e macigos de sardinheiras. O Baro, por fim, ajoelhou-se e comegou a apanhar violetas. Os cfies lambiam-lhe a cara e ele cuspia, sem nojo, e empurra- va-os, meigamente, Eram, na verdade, violetas. Perguntei-lhe: —Sio para a-«Madona do Campo Santo»? Nao respondeu e continuou, na escuri- 62 do, a procurar as pequenas flores perdi- das entre a folhagem rasteira. Mas de si- ito levantou-se e exclamou: —Tens razio. Violetas é piegas... Uma. rosa. —Para quem? —Para Ela... —Ah! Tu também... —Nao. Tu nio... Respondi, em voz baixa, como se fa- lasse para mim préprio, com melancolia: —Desculpa. # para a Outra, — Quem é a Outra? — perguntou, pa- rando e olhando-me no escuro, num tom de intimidade triste, como quem se lem- bra de uma esperanca ou de uma sau- dade. —E essa? a tua.. —Minha?.. Fiedmos parados e calados. Depois deu uns passos na sombra. Nao o via, mas ouvia-Ihe a voz ali ao pé de mim, como se ele tivesse, de repente, deixado de existir e 86 a voz continuasse no ar da noite: —Nio a conheces..: Para que hei-de dizer-te 0 nome?... Senti-Ihe uma grande comogio na voz, Estévamos ambos bastante embria- gados e com a comocio facil, propria desse estado. Ficimos outra vez calados, num longo siléncio de profunda comu- nhfo. Mas o que restava de individual em cada um reagiu. O Bardo recomecou a procurar, agora, uma rosa, Eu fui tam- bém cortando rosas e ensanguentando as mos nos espinhos, sem intengfio ne- nhuma, pois no tinha ninguém a quem oferecer aquelas flores. Comecei uma longa divagacéo sobre as mulheres e o amor, uma espécie de mondlogo tragico e delirante, Ele continuava a procurar, si- Iencioso e indiferente As minhas divaga- goes. De stbito, interrompeu-me, como quem continua um pensamento: — Ja quis fugir com Ela... Mas agora ja no quero... (Fez uma pausa e conti- nuou, com a voz mais triste): Tem medo... tem medo de mim.. A voz molhara-se-lhe de lagrimas, Reagi: — Pois as mulheres devem ter sempre medo de nés. —s um simples... As mulheres de quem a gente nfo tenha medo nfo pres- tam para nada. (E aerescentou com me- lancolia): Faz de conta que estamos de acordo. Continuimos a caminhar entre as sombras da noite. famos calados, mar- chando ao lado um do outro, agora apres- sando 0 passo, sem eu estranhar, como se soubesse 0 que amos fazer. Um profundo siléncio pesava em volta de nés, sobre o mundo todo; s6 um leve rumor da ara- gem nas folhas das Arvores, os nossos passos e os dos cées. Mas o Bardo, esta- cando e voltando-se para tras, deu um berro terrivel. —Quem vem ai Os cies fugiram assustados. Vi que nao vinha ninguém e atrevi-me a dizer que tinha sido engano. Mas ele insistia em altos gritos apoplécticos: —Quem esta ai?... Quem esta ai? E correu na direcefio de uma moita de frvores. Segui-o e verificimos que nio estava ninguém. O Bario, porém, tinha a certeza e eu comecava a duvidar. —Varo-os como a cies!.... Cana- Ihas!!!... Hei-de-lhes acabar com a ma- tases 65 | nha de andarem atrés de mim!... Nao sou menino de mama... Carneirada!!! De repente, fez-me um misterioso si- nal de siléncio, Escutei. Nada. Mas ele ti rou a pistola do bolso e deu seis tiros na direccfo donde julgara que vinha o som. Seguiu-se um grande siléncio. Nem os cies j ali estavam. $6 eu, Pegou-me no brago e explicou que eram os criados. Ati- rou a pistola fora, como uma coisa inttil, € recomecémos a caminhar na direcgio de que nos tinhamos desviado, MarchAmos calados durante algum tempo. JA tinha os olhos habituados ao escuro e comecava a ver através da noite, Ele levava uma rosa erguida n& mao; eu caminhava a seu Jado como se soubesse para onde, mas afi- nal ia apenas atraido por um mistério que nem tentava imaginar. O ar fresco da noite dava-me prazer ¢ leveza. Os cies tinham voltado para ao pé de nés e mantinham-se a nosso lado, como sombras rastejantes. Ouvi estalar um ramo de arvore e s6 nesse momento pereebi que, na verdade, vinham pessoas atras de nés, Naquele estado de espirito, julguei outra coisa. E calei-me, pois até 66 para a minha seguranga pessoal me pare- cia mais conveniente. Verifiquei que le- vava o meu revélver no holso e fui an- dando ao lado do Baro, que estugava 0 passo cada vez mais, como um fugitivo. Apurei 0 ouvido e, com o olhar agucado, tentei penetrar a escuridao da noite. Os ces, por vezes, desapareciam e depois voltavam em corridas stibitas que me sobressaltavam. Até que chegimos a uma estrada. Ali pareceu-me que a noite es- tava menos escura, Ou entio era ja o clarear da madrugada. Nao sei bem. Fosse pelo que fosse, nao estava completamente escuro. Pareceu-me que pela estrada nfo vinha ninguém atras de nés, O Bardo que- brou o mutismo em que iamos e inclinou- -se para o meu ouvido, como se até na- quele sitio fosse necessirio falar em se- gredo: —F ali, —0O qué?—perguntei, também em voz baixa. ch... Nao tenhas medo. —De qué? — Vai... Nao, fica antes aqui... $6 se eu chamar'.. 6 — Esta descansado.. Pareceu-me.que as suas ideias nao ti- nham continuidade, Talvez as minhas também nfo. A ver- dade & que continudvamos a caminhar pela estrada como quem vai para um sitio combinado, famos ao longo do alto muro de uma quinta e um pouco adiante, sob as Arvores, via-se a sombra duma casa. O Bardo parou e com voz lenta da embriaguez disse-me num tom amargo: —Tu nao sabes... © amor é que sal- va... Jé amaste?... Mas de perder ou de salvar?... (Bu ia para responder, porém 86 encolhi 0s ombros, com desprezo, Afi- nal nfo tinha ouvido nada do que eu Ihe contara.) E nao sentes a tua vida vazia? Nem édio?... Nao és nada, na vida nao és nada... Se eu te contasse tudo!... Mas nio sei falar d’Ela, nem de mim... Fui outro... nesse tempo... E esse é que foi eu. Na- quele baile, quando acabou de dancar, 0 pai chamou-a e disse-Ihe: «Foi 0 teu tl timo baile.» Foi a iltima vez Fazia longas pausas e quando se ca- lava apressava o passo. Eu seguia-o, apro- ximava-me, e, outra vez uo seu lado, con- 68 ee tinuava a ouvi-lo como se ele falasse mais para si proprio do que para mim. —Tens édio a alguém? (Com desi- nimo): Nem amor nem édio... Julgas que é viver, sem ter amor nem 6dio?! —Nem amor!..,—exclamei por fim, olhando com desdém aquela sombra des- conhecida que ia ali ao meu lado, — Mas que te interessa a minha vida?. —Esté bem, esta bem... Nao te zan- gues. Jé gosto mais de ti... Mas eu nfio posso ficar com tudo cA dentro, Gostava de ser como tu: calar-me, Mas nfio posso. # pior. E assim vivo outra vez... O ddio... (Riu com sarcasmo.) Meu pai... N&o po- des compreender... (Parou e poisou a mao sobre 0 meu ombro.) Meu pai tinha-lhes édio, a Ela nfo, ao pai, sé a ele, E nao 0 matou, foi a mim e a Ela, foi a mim que ele matou, Um dia hei-de contar-te tudo... Paramos em frente de um grande por- to de ferro. 0 Baro ficou calado, como esquecido e alheio. Depois, olhando-me e reparando em mim, continuou: —O amor 6 que perde.,. Tu também sabes... Fez de mim um escravo com esta, alma de rei... Um escravo e um rei na, 69 mesma carcaga podre. Sou uma flor e um escarro... Um dia hei-de contar-te tudo. Mas hoje estou bébedo; hoje nao. E foi por pouco... por tfio pouco!... Mas diante 4’Ela cu era uma crianca, eu que sou capaz de tudo... E tinha sido tio facil!.,. Mas depois j4 nfo... E espojei-me no lodo. Fazia-me bem. Quanto mais lodo melhor.., Dava-me distancia... adormecia olefo na jaula... Julgas que eu era assim como sou hoje? Fiz-me assim para Bla nao se arrepender, para Ela nfo ser mais infeliz... O amor é que nos salva... ou que nos perde... Hu sei... Nao sei amar, mas sei o que 6... Quando digo esta palavra déi-me aqui dentro, Mas digo. Déi, mas digo. B uma facada... Nunca reparaste que tem assim uma luz como um sol?. Gostas mais do Sol ou das estrelas? Eu niio, eu gosto mais das estrelas. Comecaram a ladrar, furiosamente, varios e&es por tris do muro de uma quinta. Os do Baro, ao pé de nés, respon- diam. Mandou-os calar e atirou um pon- tapé ao que estava mais perto. O cio fu- giu a ganir, um ganir metélico que cor- tava a noite e me arrepiou. Tinhamos an- 70 rr dado mais uns passos quando percebi que, por algum motivo, ele estava hesitante, Parava, olhava em volta, sem um sentido definido, Comecou a assobiar, a chamar os ces, Os outros, de dentro da quinta, Jadravam cada vez mais. Deviam ser trés ou quatro. Foi até ao fim do muro e pa- rou, como se s6 precisasse de ir até ali. ‘A tal casa ja tinha ficado para, tras, En- to disse-me para eu segurar os cies. Mas como podia eu segurar ao mesmo tempo quatro caes grandes? Concordou com um «é verdade» contrafeito e, saindo de ac pé de mim, desapareceu. Tentei segui-lo, mas jé 0 nfo vi. Chamei, Respondeu-me ao longe, perdido na noite, com uma voz que nem me pareceu a dele. Caminhei naquela direccfio, mas nao © encontrei, Sentei-me na borda da es- trada e acendi um cigarro. Ali fiquei a fu- mar, tranquilo e esquecido, numa feliz e completa indiferenca. 'Tinha passado nao sei quanto tempo, quando ouvi passos. Os ces da quinta recomecaram a ladrar. Era, o Bardo, Explicou-me que tinha ido a uma, vinha arrancar um arame, e esta explica~ cho deu-me vontade de rir. Olhou-me com n surpresa, sem compreender. Eu também nao saberia explicar aquele exagerado bom humor. Estava com uma tao boa dis- posicdo que me admirava de mim proprio. Ele, com a sua voz lenta e pesada de ébrio, comentou, afastando-se: — Estas bébedo... Estas mas 6 muito bébedo.. Melindrei-me com isto, prova de que na verdade o estava. E respondi-lhe no mesmo tom de desprezo: _—Mas é de hoje... e a tua é de ha niio sei quantos anos,. _ Como se no tivesse ouvido, parou ao pé de uma oliveira e comecou a enrolar © arame em volta do tronco da pequena Arvore e a chamar carinhosamente os cies que nos acompanhavam. — Mondego... Aqui... Mondego Pegou na coleira do cio e enfiou-Ihe © arame. Depois 0 outro, —Tejo... Ca... Tejo... Até que os prendeu todos ao arame. Ento disse-me —Ficas aqui. Nao saias daqui. —Porqué? — Pois porqué? Entao! 2 E mostrou-me a rosa que continuava intacta na mao. Eu estava ja suficiente- mente liicido para aquilo comegar a pare- cer-me ridiculo. E atirei-lhe uma garga- Jhada na cara, Deu-me um empurrao e cai de costas no meio dos edes. Enquanto pro- curava levantar-me, eles lambiam-me pie- dosamente a cara e eu atirava violentos insultos a0 Bardo, que ja nao estava ali. Levantei-me e corri atras dele. Entao pa- receu-me ouvir, do lado de tras do muro da quinta, vozes misturadas com o ladrar dos cies, Eu andava jé fora da estrada a procurar o Barfio como quem caca uma, fera, correndo, tropecando nos torrées da terra lavrada, nas valas, caindo, levan- tando-me, numa espécie de furiosa sede de vinganca. Mas em vao: tudo eram sombras fugidias, ramos de Arvores que me fustigavam a cara onde o suor corria, em grandes bagas, ou folhas que me aca- riciavam irdnicamente a face. Bufava como um toiro, De repente lembrei-me do revolver e tirei-o do bolso: estaquei a me- ditar, a estabelecer um plano, ofegante, sem poder andar mais, Nem sei j4 sé era de fiiria contra o Bardo ou se estaria ape- 73 —— nas com medo. Reparei que estava outra vez ao pé da estrada. Dei mais uns passos, sentei-me na valeta e resolvi’ esperar. Poisei a arma na relva, a meu lado, e com o lenco fui limpando o suor que me ala- gava a testa. Estava cansado. Tirei outro cigarro do bolso e comecei a fumar. Sou- be-me mal; atirei-o fora e fiquei com o olhar fixo na brasa vermelha que parecia um olho na escuridao a fitar-me, E afun- dava-me num adormecimento dos senti- dos, Olhava sem ver, ouvia sem ouvir, as ideias tumultuavam-me na cabeca sem as compreender nem as poder dominar. Era uma cavalgada de clardes e sombras, en- tre vis6es nebulosas ou de uma nitidez que feria, mas num outro ew libertado deste que ali tinha caido, sonambulo e aténito. E ouvia ao longe um confuso la- drar de muitos cies ao mesmo tempo. Isto, pouco a pouco, foi-me chamando realidade. Senti que comegava a pensar com clareza, Fiz uma revisio mental do que se tinha passado até ali e compreendi que estava a exagerar e a deturpar os factos, que era tudo uma brineadeira. E onde estaria 0 Barf? Andava tal- 4 ver a procurar-me, j4 aflito. Lembrei-me daquela rosa branea, erguida na sua mao como um simbolo de pureza, ¢ vi a beleza de tal gesto, cujo destino eu ignorava, mas para o qual ele me tinha pedido auxi- lio. E eu tinha-o atraigoado e andava a persegui-lo com um revélver na mio. Tive remorsos. Levantei-me e comecei a cami- nhar, num passo apressado, pela estrada adiante. Naquele momento eram para mim muito confusas as intengdes do meu companheiro com uma rosa na mao, mas aquele gesto, agora, parecia-me admiré- vel. Nao me tinha dito para quem era. Ah! chamou-lhe a Bela-Adormecida! Como esta frase teve a beleza de um so- nho! Por fim esqueci-me do Bardo e, a can- tar, no profundo siléncio da noite, conti- nuei a caminhar pela estrada, O céu estava cheio de estrelas e a minha voz subia até elas. Aquela hora o Barfio saltava o grande muro, aproximava-se do castelo e esca- lava as paredes, até & janela da Bela~ -Adormecida.... Eu lA ia pelos caminhos desconheci- 75 en dos e sem fim, erguendo os meus cdnticos & noite e As estrelas, S6 0 romper da manh& me chamou A realidade, Senti arrepios de frio e doiam- -me as pernas. Na meia-luz do alvorecer, procurei em volta, com a vista, o solar do Bardo. Sé vi uns vales profundos, envol- vidos em sombra e neblina. Onde estaria eu? Quanto teria andado? Calculei que nfio podia ter percorrido grande distan- cia. Voltei para tras, num passo apres- sado, F caminhei, caminhei, j4 exausto e desanimado, sem encontrar o palacio, nem outra casa qualquer, nem uma aldeia, nem ninguém, Era como se tivesse caido na Lua, $6 montes desertos, numa luz cinzenta, ¢ a estrada branca sem fim, fa- zendo curvas na minha frente. Caminhei durante algumas horas. Até que nao pude mais. Dofam-me os pés, doia-me 0 corpo todo, tinha tonturas e a cabeca parecia apertada num capacete que abrasava. E queimava-me uma sede torturante, que aumentava a cada passo. Sentei-me, ou cai, na borda da estrada que descia da montanha coberta pela névoa matutina. Depois, ao Jonge, o céu tomou uns tons 76 cor-de-rosa, com laivos violetas, Era um, espectaculo belo e novo. Um pequeno pas- saro escuro surgiu ao pé de mim, sobre o ramo seco dum tojo, deu um «piu» triste e voou, desaparecendo. Levantei-me para continuar a marcha; porém, custou-me a endireitar as pernas e as costas. Era como se tivesse os ossos partidos. Mas a Provi- déncia existe. Apareceu na curva da es- trada um moleiro com o burro carregado de sacos de farinha. Fui ao seu encontro ¢ pedi-lhe que me alugasse o jumento. Nao queria. Foi dificil convencé-lo. Tei- mava que o animal nao aguentava co- migo, que nfo podia deixar ali os taleigos da farinha, que o deixasse «pelo Santis- simo Sacramento». Perguntei-lhe quanto valiam a farinha e os taleigos. — «Mais de cinquenta mil-réis.» Tirei da carteira uma nota de cem escudos e meti-lha na mio. Contente, mas sem o querer mos- trar, tirou os sacos ainda com uma lami- ria, «seja em desconto dos meus pecados», mas que era s6 até nfo sei onde e depois li. se arranjava uma carroga, pois nao queria rebentar o burro, Foi esconder os taleigos atras de uma silveira e voltou. ” Como 0 burro nao tinha estribos e 0 al- barddo era muito largo, o moleiro aj dou-me a subir, Logo que me instalei, deu um estalido com a lingua e 0 simpa- tico animal comecou a bater a estrada no seu chouto mitdo. Eu, escarranchado em cima da enorme albarda de palha, olhava o pobre homem como quem con- templa o seu verdadeiro anjo da guarda. Estava o Sol jé. alto quando chegamos ao solar. O criado que veio abrir o portiio, ao ver-me, exclamou com surpresa: —Ah!... V. Ex!... Ainda bem.. —Ainda bem, o qué? —Quero dizer... Peco desculpa... Es- tavamos com medo de que também... como o senhor Bardo... — Ja veio? — Esta livre de perigo. — De perigo?!... Que perigo? — Entao V. Ex. nao sabe?... Teve um desastre... —Um desastre?! —Sim, senhor. V. Ex.’ nio andava com o senhor Barfio?... —Andava... Mas... Sim... E_como foi? 70 —Eu nfo sei mais nada. Quem pode explicar é a senhora Tdalina.. Fui ao quarto do Bardo, Estava esten- dido na cama, com um tiro num ombro e fractura do cranio. Pereebi que queria di- zer-me qualquer coisa e aproximei-me do leito. Ciciou com dificuldade, entre den- tes: —Mas ficou... na janela... B cerrou os olhos, como se tivesse feito um grande esforco, O médico puxou-me pelo braco, pedindo que saisse do quarto, para que ficasse em completo repouso. Mais tarde tive noticias dele, Manda- vaeme dizer que 14 me esperava. Sim, Barfo!,.. Hei-de voltar, um dia. E havemos de tornar a perder-nos pelos caminhos sombrios do nosso sonho e da nossa Joucura; e mais uma vez havemos de cantar as estrelas, e dar a vida para ires depor outro bot&o de rosa 14 na alta janela da tua Bela-Adormecida'... 79 —> AS MAOS FRIAS ‘Ao entrar a porta da rua olhou para cima e viu que estavam trés pessoas na escada, a conversar em voz baixa. Erar sombras: tinha comecado a anoitecer. Mas no patamar havia uma claridade vaga que vinha dali, de uma das portas do pri- meiro andar. E de repente pareceu-lhe que devia ter acontecido qualquer coisa. Subiu. —Boa noite. Afastaram-se para ela passar. —Boa noite. Foi a voz da senhora Clara que res- pondeu e a0 mesmo tempo, com a mao papuda, segurou-a pelo braco e segredou- -Ihe ao ouvido: —Morreu o senhor Pedro. Virginia disse com indiferenca: —Coitado! De repente? E, com um vago cansago, ficou ali um momento parada a olhar a porta do pri- 83, meiro andar, donde vinha uma luz ama- relada, A senhora Clara, na mesma voz de segredo, disse-Ihe que podia entrar. —Eu?!.. —sim, —Para qué? Reparou entéo nas outras duas pes- soas: um homem novo, bem vestido, e a costureira que morava no rés-do-chito, a D. Augusta, que lhe sorriu com o seu arzi- nho hipécrita, esclarecendo amavelmente, também em voz baixa: —Qualquer pessoa pode entrar. —Mas nfo me interessa. Nem o conhecia. — Anh!... Nao conhecia? A senhora Clara avangou, afirmativa: —Nao conhecia? Ora essa!... Entéo no conhecia!? Est aqui ha cinco anos... — De vista, sim. E do baile de Carna- val, tem razio, mas nunca Ihe tinha falado. — Ah! Isso é outra coisa... Era um bonito homem. E assim de repente!... Isto matou-se, eu digo que se matou; alguma droga o estoirou, Nao viu os olhos dele? Saidos, brancos como um ovo! Aquilo foi da ansia, do arrebentamento. Isto digo eu, mas eu nfo sei nada. —Pode ser—comentaram do lado. —La natural no foi. Mas, psiu! Nada de sarilhos... Virginia perguntou: — Porque é que julgam isso? Cochicharam aos ouvidos umas das outras, para que nem as paredes ouvis- sem, embora andassem a procurar toda a gente para espalhar a noticia aos quatro ventos, Mas sibilavam sempre em segredo, pois assim tinha mais sabor: — Entio, ora diga-me, um homem na flor da vida e rico, a quem nao faltava nada... que as mulheres eram bicha, cada princesa que metia medo por esta escada acima! As cabras!... Entio um homem destes.. — Sé se fosse por isso... — interrom- peu o individuo que ali estava a fazer roda. —O qué? —Para se ver livre dessas princesas. Ou entiio estafaram-lhe o capital. —1 lA desses! Por isso ja se sabe que 85 OE niio foi. Esteve c4 um amigo dele, que saiu nfo ha dez minutos, e disse que no. Mas ele desconfia de alguma coisa! Ol Entio, entre. E empurrou Virginia. Ela segurow-se & ombreira da porta e teimou: — Nao, agora nao. Mas ja estava lé dentro. Os outros vi- nham atrs, como um cilindro que levasse tudo na frente. Era um vestibulo com um cabide, cadeiras e uma area antiga, de paupreto, com pregos amarelos, Nao estava ninguém, Pela porta em frente via- -se uma sala grande com maples e sofas, A esquerda, estava escancarada umaoutra porta: era um quarto com 0 morto dei- tado sobre a cama e velas em volta. A criada surgiu do corredor para ver quem que vinha a entrar. Como eram pessoas conhecidas, voltou para tras, sem dizer nada, e desapareceu. O defunto ti- nha as solas dos sapatos novas, por es- trear, a casaca de bom talhe, o peitilho © a gravata branca impecdveis. Aos pés, um ramo de rosas vermelhas. A D, Au. gusta, que ja tinha visto, ficou na sala de entrada, aproveitando para falar em par- 06 ticular com o tal homem que a acom- panhava, Entretanto, Virginia ea senhora Clara tinham-se aproximado do leito. Vir- ginia parecia agora um pouco impressio- nada, empalidecera levemente e olhava o defunto e as coisas que o rodeavam, com um olhar inquieto. Ao contrario da se- nhora Clara, que passeava por cima de tudo, mais uma vez, um mirar triste e deleitoso, Jé ali fora, desde manha, deze- nas de vezes. Era um dever cristio. Com voz plangente choramingou: —Coitadinho, esté tao bonito!... Virginia saiu. A senhora Clara veio atras dela pergunta: — Fez-lhe impressio? — Nao. — Pois... Um morto é um morto —Bem, boa noite. —Até ja. Venha fazer-me um boca- dinho de companhia, para eu n&o estar noite sézinha. ae NTenno as melas molhadas © estou constipada, com arrepios. —Mas mude, e venha. —Vou ver. Nio prometo. Boa noite. —Até ja. AD. Augusta repetiu «Boa noite» eo homem que estava a conversar com ela, num exagero de solenidade, fez uma pe- quena vénia silenciosa, Virginia saiu para o patamar e subiu a escada, Ao chegar ao quarto atirou o chapéu para cima da cama. Depois foi diante do espelho e pas- sou as méos pela cara, Pés pé-de-arroz, E sorriu para a imagem do espelho como quem se alegra de ver uma coisa agradé- vel depois de uma coisa triste. Tinha pena, sim, coitado, Reparou agora que come. cava a sentir uma certa curiosidade por aquele caso. Porque teria sido? Blas sa- biam qualquer coisa... Deitou-se sobre a cama e desembrulhou um rebucado. Come- cou a chupar e a revolver o caso na ima- ginac&o. Matou-se. E parecia feliz... Dei- xou-se levar por aquela vaga curiosidade de ouvir a senhora Clara, Saltou da cama € foi espreitar 4 porta. Ouviu a voz da velhota ao fundo da escada. Desceu ao encontro dela. Estava mais gente. O tal amigo tinha voltado, Mas ainda ninguém da familia, Eram do Algarve, de Vila Real de Santo Anténio. O amigo do defunto disse a criada: 28 — Feche a porta. Talvez essa senhora, 14 de cima possa vir para aqui um bocado, Estavam na escada a ouvir. A senhora Clara pds o dedo no nariz, para escutar até ao fim. Mas nfo disse mais nada e 2 criada respondeu que ja Ihe ia pedir. Ele saiu para a escada, Jé elas tinham fugido um pouco mais para baixo. Virginia nfio estava a compreender bem aquela mano- bra, mas 14 devia ter qualquer razio. Dei- xou-se levar, Ele disse mais qualquer coisa A criad : — ...jantar. Devo voltar sé de manha, Nao deixe entrar mais ninguém. Boa noite. —Boa noite, senhor doutor. Virou a gola do sobretudo e desceu. A criada ja tinha visto a senhora Clara 14 em baixo e ficou 4 espera que o doutor saisse para a chamar. —Senhora Clara bas. Quando elas entraram para a saleta, fechou a porta apressadamente e apertou as mios sobre o peito, exclamando melo- dramaticamente, com os olhos em alvo: — Foi estrangulado!... Suba, subam am- a9 F —O qué? 6 meu Santissimo nome de Jesus!... Que esti vocé a dizer?! — Que foi estrangulado! Disse-mo ele agora, JA nfo é segredo. Veja la! Quem havia de dizer!. A senhora Clara dominou logo o pri- meiro espanto e, voltando-se de repente para Virginia, que tinha parado atras dela, exclamou quase triunfante: — Eu nfo dizia?! Aqui havia coisa! Era de ver! E desconfiaram de alguém? —Hio-de desconfiar... Eu é que nao sei... Mal paro aqui. Que ontem esteve cé. uma mulher, isso j4 eu vi, mas saiu cedo; 0 Marques viu-os na escada. Mas nfo sabe quem era, —Logo 0 Marques, o bostelo... —Mas a policia dé com ela, oli! Nao escapa. Aqui ao pé de tanta gente e nin- guém sentir!... Até me tremem as per- nas.., — Vocé cé dentro e nao ouviu, que fara! —6 mulher, eu durmo aqui?! S6 ve- nho cé fazer o servico. Foi quando entrei de manh@ que dei com esta desgraca. Estava tudo num terramoto, A policia é 90 que j4 deu ordem para arrumar as coisas, Tiraram fotografias, Uma das cadeiras. Venham eA. E encaminharam-se para 0 quarto do morto. A criada desereveu com muitos gestos: —Uma cadeira ali, de pernas pré ar. A garrafa da agua partida; a roupa da cama aqui no cho, toda deste lado. Vé-se que bulharam muito. Vé a gaveta arrom- ada? Bra onde estava o dinheiro, nio que eu soubesse, apesar de que ele dizia: «Ponho-te oiro em pé na mao.» Coitadi- nho! Um santo. E enxugou uma ligrima hipotética, Ficaram um momento caladas a olhar para o morto, que, na sua casaca elegante, estava socidvel. Até, se reparassem bem, reconheciam que se estavam a falar em voz baixa era porque nos subconscientes havia a divida se ele nao estaria a ouvir e nao poderia levantar-se. A criada, de- pois de um pequeno solugo, chamou a atencfio das outras para as mios do pa- trio. —Tinha umas lindas mios. E, aproximando-se do leito, disse: 1 ———— —Cheguem aqui. E pegou numa das mios do morto para a levantar. Mal a mexeu. Sentiu um calafrio e afastou-se da cama a olhar fixa- mente a cara do defunto, Tinha-Ihe pare- cido que ele fizera forca. Mas a senhora Clara, compreendendo, acrescentou: — Esta rijo. — Pois esti, 6 isso Houve um certo alivio nesta frase da velha criada. E, com vergonha da sensa- cio sentida, desmentiu para si propria: —Mas no faz impressio nenhuma. B como se fosse um boneco,— Viu que pela primeira vez tinha chamado boneco ao patrao, e gostou desta liberdade. — Experimentem. Experimente vocé, nao enha medo. —Medo? Um morto é um morto... Mas nunea Ihe toquei em vivo, também nao vale a pena tocar-Ihe agora, —f certo. Coitado.... Sentem-se. Olhem, eu vou comer qualquer coisita, que mal almocei, Venham também. O dou- tor trouxe uns pfezinhos com fiambre, para eu néo ter de sair daqui. Mas é mais de uma diizia, Venham cé.. 92 — Obrigada —disse a Virginia, que nio queria, Mas a senhora Clara deu um balanco na cadeira, «pois eu aceito», e levantou-se. Sairam ambas, Virginia ficou sentada onde estava. Arrependeu-se logo de nao ter ido tam- bém, mas néo quis dar a impressio de que tinha medo. Porque na verdade nao tinha, E, para se convencer bem disto, olhou a cara do morto pormenorizadamente, com um a-vontade um pouco foreado. Depois voltou-lhe as costas e viu-se ao espelho. Pensou: «Vou até mexer nestas escovas e abrir aquela caixa,» E pegou nas esco- vas. Ja tinha visto muitos mortos, dizia mentalmente: 0 av6, o pai, o tio Francisco, a Emilia, 0 Bernardo, o senhor Santos... E foi recordando. Sabia bem que um morto era uma pedra que ali estava. Lem- brou-se da histéria que o irmao lhe con- tara: estava a velar o cadaver de um amigo e deu-lhe sono, Ficara sdzinho. Os outros dois companheiros tinham ido dor- mir para a sala do lado, nas duas (micas cadeiras que ali havia, Nao tinha outro 93 po sitio para se deitar; empurrou o morto para lé, e deitou-se ao lado dele. Olhou aquele que ali estava, com pena. © senhor Pedro... & uma pedra... Era simpatico, alegre. Mas agora ja nao é nada, Pensou: «Também sou capaz de Ihe tocar nas méos.» Aproximou-se e olhou-o perto da cara, Mas teve um calafrio. Afas- tou-se e deu a volta & cama, «Nem de fan- tasmas nem de mortos, nao tenho medo.> E do outro lado ficou parada a olhar para. as méos dele, brancas, finas, de dedos lon- gos. fechadura corrida. As bébedas... Mas ba- teram, na verdade, a porta. —Quem 6? —Eu. Era o Henrique, 0 seu noivo, Costu- mava vir. — Que queres? —Niao sais? —Nio, hoje nfio.—A voz saiu-lhe longinqua, como alheia a tudo, e dolorida. — Abre —ordenou ele. Entao Virgi- nia acordou do seu aniquilamento. —Desculpa. Estou j4 a deitar-me. — Mas abre: preciso de te falar. Foi abrir e ficou entre a porta, com a cara na sombra, para que ele nao lhe visse as lagrimas. Ele fitou-a com um espanto interrogativo e pegou-lhe numa das maos. Sem poder evitar a comparacao, ela pen- sou: «Estas esto quentes.» —Estis doente? —Nao.., Ou talvez, Se queres que te diga, nem sei bem, mas creio que nao. $6 dos nervos.. —De qué? —De nada. —De nad 101 Fez-se um siléncio dificil. Parecia que se tinha erguido nfo sabia que irremedia- vel barreira entre ambos. Ele pressentiu alguma coisa que queria explicado; ela compreendeu que tinha de dar uma razio, de desfazer aquele mal-entendido. Mas estava sem foreas para lutar, para expli- car. Fez um esforco. —Nunea estiveste triste, aborrecido, sem saber porqué? —Nio, Ele quis marear a sua posigao de segu- ranca e autodominio, inacessivel a sensi- bilidades doentias. Bla respondeu-lhe com calma e quase com desprezo: —Es feliz: saudavel de corpo e alma. —Tudo tem explicag&o, desde que sa bamos e queiramos di-la, E tu sabes bem porque estas nesse estado de nervos. Nao julgues que te conhego s6 desde ontem. Ou é algum segredo?... Olhou-o com surpresa e ainda com maior desalento: —Algum segredo. —Entio? — Volta amanha. Hoje nio, nao posso. Nao posso estar agora a explicar-me... 102 Nao me perguntes mais nada. Amanha te conto tudo. Tudo que é nada, Mas agora néio posso, nfo posso mais! Desculpa.... Vai E fez um gesto para fechar a porta, Bie segurou-a. Virginia tinha os olhos cheios de lagrimas. Estava na sombra ele nfio via. Ela é que estava a ver os dele: ansiosos, desorientados, violentos. Mas que the havia de dizer? Se, afinal, era s6 a melancolia da sua vida, a sua sede de libertac&o que tinha vindo, de sitbito, toda & tona da 4gua, numa Ansia que ele no podia remediar e, talvez, nem soubesse compreender. E para qué? Antes nao lhe dissesse nada, Amarfanharia dentro de si aquelas grandes asas da sua alma, I ama- va-o muito, apesar daquela incompreen- sao, apesar de embater contra ele como uma onda contra um rochedo. Mas afinal era tudo tao simples!... Tao facil de expli- car. Mas hoje nao, Hoje era impossivel. Bastava estar doente, ou outra razéo tam- bém simples. Ia comegar a solucar ou a, falar e tapou a cara com as maos: —Morreu o senhor Pedro... Mas nfo soube como tinha pronun- 103 ciado estas palavras, porque nao era nisto que estava a pensar. E nao pode conti- nuar. Ele ficou impassivel, & espera. Como demorava, interrogou, calmo: —Que Pedro? —O que morava aqui por baixo... E eu fui lé e fez-me impressfio, A criada estava bébeda, insultou-me... Mas ama- nha te conto, amanha! —Amanhé, para qué? A tua cara ex- plica tudo, as tuas lagrimas... So tio sentidas que qualquer te perdoa. Tirou as maos da cara, como se ainda duvidasse daquela insinuagio; mas de repente teve a certeza do que ele queria dizer e foi como se as lagrimas tivessem secado sibitamente. Ficou a olhé-lo com um grande espanto. Mas ele virou-lhe as costas e desceu a escada rapidamente. Virginia ficou aténita a olhar para o bu- raco escuro da porta, para aquele poco da escada, por onde se afundava e desapa- recia 0 homem que ela amava, Dobra- ram-se-lhe as pernas e sentou-se na beira da cama, Ficou imével, sem conseguir pensar, sentindo um turbilhdo na cabeca vazia, O vento vinha da escada, frio, e 2 104 porta l em baixo ficou a bater. Ent&o viu sair do vio negro uma mulher—a se- nhora Clara — que veio até ao pé dela Ihe pés a mio na testa, Mas tudo longin- quo e nebuloso. Nitidamente s6 ouvia que no andar de baixo, a outra, bébeda, an- dava a cantar ao pé do morto. 105 © INVOLUNTARIO nantes ee No Outono caem as folhas das arvo- res, o céu-é cinzento e toda a natureza vai adormecer, como dizem os poetas... Filipe da Maia nao era poeta e sentia en- tao uma melancolia e um cansaco inte- riores, que Ihe davam aquela inquietagao dolorosa, As tardes eram de luz suave ¢ triste, caia uma chuva leve sobre a fofa poeira da rua, chuva que fazia um sus- surro abafado nas folhas amarelas, e tudo se repassava duma tristeza irremedidvel. Filipe da Maia encostava-se aos vidros da janela e via morrer as arvores. Mas sen- tia-se sem raizes e parecia-lhe que poderia salvar-se se viajasse, Percorria-o um ar- repioe ia & pressa arranjar a mala, descia, a escada, chamava um taxi e corria a estaciio onde comprava bilhete para o pri- meiro comboio, E partia sem destino, como quem foge, sem se despedir de nin- guém. Viajava, viajava, fugindo das cida~ des, vagabundeando por aldeias e monta- 109 nhas, B s6 regressava na Primavera, Por fim, os amigos ja Ihe chamavam «Filipe de Maio». Pobre rapaz!... Se nao fosse rico, teria sido um homem banal: teria ido para uma companhia de saltimbancos, dessas que dao voltas a0 mundo e nunca se sabe onde esto, ou teria comprado um urso e iria pelas aldeias. Palo dele com melancolia porque nao sou rico e também, nio comprei um urso, Tenho pena. Ah! Bu bem digo que, se 0 mundo é redondo, com certeza que é para se andar a volta dele, Enfim, la vai... Hei-de contar toda a sua vida, mas hoje ainda nao, Fica para mais tarde. Contudo, as paginas que se seguem so j4 um dos capitulos dessa bio- grafia a que tenciono chamar: E PUR SI MUOVE (Galileu). O Verao tinha sido alegre e saudavel. Andava toda a gente pelas ruas a rir ea cantar, mas cairam as primeiras gotas de chuva e foi como se diluissem e apagas- sem as cores do mundo. As ruas ficaram desertas e as janelas das casas sempre fechadas. Toda a gente vestiu uns sobre- tudos pretos e compridos, pés gravatas escuras, e quem passava ia curvado para, © chfio, com o passo apressado e o olhar triste. Mas no tinha acontecido nada. Os teatros e os cinemas iluminavam as fachadas e anunciavam as suas superma- ravilhas, nos clubes comecavam os gran- des bailes, j4 todos os sales elegantes se abriam as deslumbrantes festas de In- verno. Porém, a cidade e as gentes tinham tomado o habitual ar triste e resignado. Passavam vestidos de escuro, porque os trajes claros sfio 86 para o Verio, e fu- giam para dentro de casa, fugiam... Caiam de repente bitegas de agua sobre a cidade, Depois, durante horas, néo cho- via mais. As ruas de pedras negras fica- vam lavadas como esqueletos. No vio de uma porta esquecia-se um homem encos- tado, a julgar que ainda estava a chover. Ouvia-se ao longe o sino de uma igreja que batia as horas, seca e nitidamente. A noite nao havia estrelas, o céu estava baixo, preto, e as luzes das avenidas alon- gavam as sombras. Filipe da Maia jé nao saia de casa, levantava-se tarde, nao ia ao café onde se reuniam os amigos, e se chegava a ir era s6 & noite, mas sen- tava-se a um canto e falava pouco. Dizia que andava adoentado, para se desculpar. Dai a uns dias desaparecia sem ninguém estranhar. Depois vinha um postal do Algarve ou da Poldnia, com abragos sin- ceros para trés amigos ¢ desculpas para todos, «mas vocés j4 me conhecem». Desta vez partiu no comboio da noite e escolheu o destino ao acaso num mapa que estava ao lado da bilheteira, O com- boio chegou atrasado, o que enerva sem- pre os passageiros de primeira classe. Filipe procurou um compartimento sem ninguém e sentou-se a um canto. A via- gem decorreu incémoda e sem incidentes. O comboio rolou debaixo da noite durante muitas horas. Chovia contra a janela e as carruagens batiam, gemiam, despedaca- vam-se, Até que de manha chegou ao des- tino. Ao destino nao, porque Filipe nao tinha destino: ao lugar que o bilhete indi- cava. A safda da estacio viu um carro de cavalos e um solicito cocheiro que veio tirar-Ihe a mala da mao. Filipe seguiu-o, sentou-se no carro, ao lado de uma velha que estava a ler as Novidades e que o fi- tou com autoridade. Mas logo o carro m2 desandou aos solavancos pela estrada adiante ea velha dobrou o jornal, meteu-o na bolsa de mao e comecou a vomitar com tranquilidade. Filipe mandou parar o carro, mas a velha gritou-lhe, indignada: —Incomodo-o?! E berrou ao cocheiro: — Ande!!! Filipe levou a mio ao chapéu: —Queira desculpar. O carro seguiu, enquanto a velha, acomodando-se melhor, recomegou a vo- mitar como se fosse para isso que ia ali. Quando chegaram 4 vila, pararam no meio da rua, em frente de uma pequena casa que tinha escrito por cima da porta a pa- lavra «Hotel», Filipe entrou, pediu um quarto e entretanto foi casa de jantar para comer qualquer coisa, A um canto estava um sujeito com ar de fidalgo de provincia, ja de cabelos brancos e que no se sabe se tinha uma cara simptica ou néio. Pouco depois, nao sei como, comeca~ ram a conversar, e afinal aquele fidalgo de provincia tinha sido condiscipulo e amigo, em Coimbra, do pai de Filipe e chamava-se Pessanha. Falou, com sau- lasix al dade, desses tempos e convidou-o a ir pas- sar alguns dias em sua casa, j4 que tinha vindo ali s6 para passear. Filipe aceitou © convite, como aceitava tudo que Ihe vinha ao encontro, sem preferéncia por coisa alguma. Sairam do hotel e come- caram a caminhar pela estrada adiante. — Nao trouxe o carro porque gosto de fazer este passeio a pé. Faz-me bem, Em volta estendia-se uma planicie sem fim, que se perdia de vista para todos os Jados. Pessanha era um homem forte e sau- davel, que teria sessenta anos, mas pare- cia ter muito menos, Ao primeiro olhar dava a impressio de um velho, mas de- pois, observando-se com mais atengio, j4 nfo o parecia. Pelo contrario, irradiava forca e no olhar relampejava-Ihe, por ve-~ zes, o fogo de uma juventude escondida, Falava com facilidade e com uma notével propriedade de expressiio, Mas por vezes calava-se como se hesitasse a volta de qualquer outra ideia que Ihe viesse. Ea pouco e pouco a conversa foi morrendo. Caminhavam ealados pela estrada, que era uma linha recta naquela planicie cin- zenta e to igual que ao longe parecia Agua. A frente ia um homem com a mala A cabeca. Mas de siibito o céu comecou a escurecer com nuvens de chuva. Apres- saram o passo. O fidalgo murmurou: — As chuvas aqui sao terriveis. —Porqué? —Dilivios. tris? —Pois sim. Cairam as primeiras pingas, enormes e raras, Abrigaram-se debaixo de uma oliveira. — Estamos mais perto da vila que de minha casa, —Pois sim. De repente desabou uma bitega de Agua que dobrava a rama da oliveira e escavava a terra. Ficaram molhados até aos ossos. E a chuva parou, repentina como viera. Porém, o céu continuava es- curo. Pessanha, mal disposto, insistiu: —Bem, vamos embora. B iniciou o regresso. Filipe seguiu-o sem contrariedade, Mas tinha dado pou- cos passos quando se lembrou da mala. Olharam para tras. Jé nfo viram o ho- Se voltassemos para 115

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