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86 assume sua envergadura quando a obra exibe um mundo do qual o leitor apropria-se. Esse mundo é um mundo cultural. O eixo principal de uma teorla da referéncia & parte além da obra passa, pois, pela relacdo entre poesia ¢ cultura. Como o diz. com vigor James Redfield na sua obra Nature and Culture in the iad, as duas relacdes inversas uma da outra, que se pode estabelecer entre esses dois termos, “must be interpreted... in the light of a third relation: the poet as @ maker of culture” (Prefacio, p. XI. A Poética de Aristétcles nao faz nenhuma incurséo nesse dominio. Mas coloca o espectador ideal, ¢, melhor ainda, o lettor ideal: sua inteligéncia, suas emocdes “depuradas’, seu prazer, na Juno da obra ¢ da cultura que esta cria. E por isso que a Poética de Aristételes, a despeito de seu interesse quase exclusivo pela mimese-invencao, oferece 0 esbogo de uma investigacao da alividade mimética em toda sua envergadura. Taobr ata de James Redela¢ ortentada po ese tema da inciéncia itenlieenh t ia St BA'E dete ee es ii dap cat gar de shade tne by cies led ane er reed rar he i ik wh Fone a Ege ie eS apesiaay ure couse @gaunginais votes porns 2 fa Candee atin" gore gf atre ay dre tga wneh Genera OHS a GNIS Bal aT aa Sead GB atta Se ae ort De dito tolae a culara Pars teal Sa an ee eae a na nan ae Seige av Sacra ta eS oft Fearne ice a em ha Eee met eee Say Mea in) Slane ih Gare le le Dees Peer Bela Pema? det de hee tae Sek Eee NPN AP tb cing oat 980 pose tireeae mage Caesar ali a See ae ee a a, Get Tee ee eee ere ee deer stetl ato maaan See ee en fee ee GEORGE, Shpcadintla "auc anata le fon de Le ee oe Fe ali gattae Gide ares er etre i at mF ea ae fej onc Sh (Bed ten ena tere, Hee a een ace Tae ade aaa gir ncg he uidesroed aetng Fe ee ee eo a ate homes eG haa atl es de edie’ ab Sa oes Sea hae ct rete renee Rasa Tak dee te tee WiBac ad rr os a Pa eer dad Cee eee een ae saeRtia 84 3 ‘TEMPO E NARRATIVA ATRIPLICE MIMESE. E chegado 0 momento de ligar os dots estucos indepen- dentes que precedem e de por a prova minha hipétese de base, a saber, que existe enue a atividade de narrar uma histéria ¢ 0 carter temporal da experiéncia humana uma correlacao que nao € puramente acidental, mas apresenta uma forma de neces- sidade transcultural. Ou, em outras palavras: que 0 tempo torna-se tempo humano na medida em que é articulado de um modo narrativo, e que a narrativa atinge seu pleno significado quando se torna uma condigdo da existencia temporal. © abismo cultural que separa a andlise agostiniana do tempo nas Confissées ¢ a andlise aristotélica da intriga na Poética obriga-me a construir com meus préprios riscos 05 clos intermedidrios que articulam a correlagao. Com efeito, disse- ‘mos, os paradoxos da experiéncia do tempo segundo Agostinho nao devem nada a atividade de narrar uma histéria. O exemplo privilegiado da recitagéo de um verso ou de um poema serve mais para agucar o paradoxo que para resolvé-lo. De seu lado, aandlise da intriga que Aristoteles faz nao deve nada a sua teoria do tempo, a qual se refere exclusivamente a fisica; mais ainda, na Poética, a “Iégica’ da tessitura da intriga desencoraja qual- ‘quer consideracaio sobre o tempo, mesmo quando implica con- ceitos tais como comeco, meio fim, ou se compromete num discurso sobre a extensao ou a amplitude da intriga. 85 Acconstrugéo que vou propor da mediagdo tem, de propé- sito, o mesmo titulo que o conjunto da obra: Tempo e Narrativa. 6 pode se tratar, contudo, neste estgio da investigacao, de um ‘esboco que requer ainda expansao, critica ¢ revisao. Com efeito, ‘o presente estudo nao considera a bifurcagao fundamental entre narrativa histérica ¢ narrativa de ficcao, que dara origem aos ‘estudos mais técnicos da segunda ¢ da terceira parte desta obra, Ora, € da investigacao separada desses dois campos que proce derdo os mais sérios questionamentos de todo meu empreendi- mento, tanto no plano da pretenséo a verdade quanto no da estrutura interna do discurso, O que € esbocado aqui é, pois, sé uma espécie de modelo reduzido da tese que o resto da obra devera por a prova. Tomo como fio condutor dessa exploragdo da mediagao entre tempo e narrativa a articulacao evocada acima ¢ jé parcial- mente ilustrada pela interpretacdo da Poética de Aristétcles, entre os trés momentos da mimese que, cm jogo sério, denominei mimese 1, mimese Ml, mimese Ill. Considero estabelecido que mimese Il constitui 0 pivé da andlise; por sua funcao de inter- rupgao, abre o mundo da composicao postica ¢ institui, como ja sugeri, a literariedade da obra literaria, Mas minha tese é que 0 préprio sentido da operacdo da configurago constitutiva da lure da intriga resulta de sua posigao intermediaria entre as duas operagdes que chamo de mimese I e mimese Ill e que constituem 0 montante € a jusante de mimese Il. Ao fazer isso, proponho-me a mostrar que mimese Il extrai sua inteligibilidade de sua faculdade de mediacao, que ¢ de conduzir do montante a Jusante do texto, de transfigurar 0 montante em jusante por seu poder de configuracio. Reservo. para a parte desta obra consa- grada a narrativa de ficgéo, 0 confronto entre essa tese ea que considero caracteristica da semidtica do texto: a saber, que uma ciéncia do texto pode se estabelecer apenas sobre a abstragao de mimese I € pode s6 considerar as leis internas da obra literdria, sem dar atencao ao montante ¢ A jusante do texto. E, em compensagao, a tarefa da hermenéutica reconstruir o conjunto das operacées pelas quais uma obra eleva-se do fundo opaco do viver, do agir e do sofrer, para ser dada, por um ator, a um leitor que a recebe c assim muda seu agir. Para uma semidtica, 0 tinico conceito operatério permanece, o do texto literdrio. Uma herme- néutca, em compensacdo, preocupa-se em reconstruir 0 arco intetro das operagoes pelas quais a experiéncia pratica se da obras, autores € leitores. Ela ndo se limita a colocar mimese Il entre mimese I ¢ mimese Ill. Ela quer caracterizar mimese Il por sua fungdo de mediagao. O desafio € pois o proceso conereto 86 elo qual a configuracio textual faz a mediagéo entre a prefigu- Pygao do campo pratico esua reigaragao pela reeepeao da obra. ‘Apareeera eorolariamente, no termo da andlise, que o leitor €0 perador por excelencia que assume, por seu fazer —-a agao de Tera unidade do percurso de mimese 1a mimese Il através de mimese I. Essa colocagaio em perspectiva da dinamica da tessitura da intriga é, a meu ver, a chave do problema da relacdo entre tempo e narrativa. Longe de substituir um problema por outro, passando da questo inicial da mediagdo entre tempo narrativa A questo nova do encadeamento dos trés estégios da mimese, bascio a estratégia inteira de minha obra na subordinacdo do ‘segundo problema ao primeiro. E-construindo a relagao entre os trés modos miméticos que constituo a mediacao entre tempo € narrativa, E essa propria mediagao que passa pelas trés fases da mimese. Ou, em outros termos, para resolver 0 problema da relacdo entre tempo e narrativa, devo estabelecer 0 papel media- dor da tessitura da intriga entre um estégio da experiéncia pratica que a precede e um estagio que a sucede. Nesse sentido, © argumento do livro consiste em construir a mediagao entre tempo e narrativa demonstrando 0 papel mediador da tessitura da intriga no processo mimético. Aristételes, vimos, ignorou os faspectos temporais da tessitura da intriga. Proponho-me a desimplicé-los do ato da configuragao textual ¢ de mostrar 0 papel mediador desse tempo da tessitura da intriga entre os aspectos temporals prefigurados no campo pratico ¢ a refigura- ‘¢a0 da nossa experiéncia temporal por esse tempo construido. Seguimos, pois, 0 destino de um tempo prefigurado em um tempo refigurado, pela mediagao de um tempo configurado. No horizonte da investigacao coloca-se a objegio do circulo vicioso entre 0 ato de narrar e 0 ato temporal, Esse circulo condena todo o empreendimento a ser apenas uma vasta tauto- logia? Aparentemente sofismamos a objecdo escolhendo dois pontos de partida, tao afastados quanto possivel um do outro: 0 tempo em Agostinho, a tessitura da intriga em Aristételes. Mas, buscando um meto-termo para esses dois extremos e assinalan- do um papel mediador a tessitura da intriga ¢ ao tempo que ela estrutura, néo damos forca novamente a objecdo? Nao pretendo negar o cardter circular da tese segundo a qual a temporalidade élevada a linguagem na medida em que esta configura e refigura a experiéncia temporal. Mas espero mostrar, no fim do capitulo, que 0 circulo pode ser algo além de uma tautologia morta. 87 ‘Mimese 1 Qualquer que possa ser a forca de inovagao da composigo poética no campo de nossa experiéncia temporal, a composicao a intriga est enraizada numa pré-compreensao do mundo eda acio: de suas estruturas inteligivels, de suas fontes simbélicas, € de seu carater temporal. Esses tragos so mals descritos que deduzidos. Nesse sentido, nada exige que sua lista seja fechada, Contudo, sua enumeracéo segue uma progressao facil de esta: belecer. Primeiro, se € verdade que intriga € uma imitagao da acéo, é exigida uma competéncia preliminar: a capacidade de identificar a aco em geral por seus tracos estruturais; uma semantica da ago explicita essa primeira competéncia. Ad mals, se imitar € elaborar uma significagao articulada da aco. exigida uma competéncia suplementar: a aptidao de identificar © que eu chamo de as mediacdes simbélicas da acao, num sentido da palavra simbolo que Cassirer tornou classico ¢ que a antropologia cultural, da qual tomarei emprestado alguns exem: plos, adotou. Enfim, essas articulagées simbélicas da acao sao portadoras de caracteres mais precisamente temporais, donde procedem mais diretamente a propria capacidade da ago a ser narrada c talvez a necessidade de narré-la, Um primeiro empr timo da fenomenoluyla herimenéutica de Heidegger acompanha. ra descrigdo desse terceiro traco. Consideremos sucessivamente estes trés tragos: estrutu- rais, simbdlicos, temporats. A inteligibilidade engendrada pela tessitura da intriga encontra um primeiro ancoradouro na nossa competéncia de utilizar de modo significative a trama conceitual que distingue estruturalmente 0 campo da acéo do campo do movimento fisico’. Digo a trama conceitual de preferéncia ao conceito da ago, para sublinhar o fato de que o préprio termo agéo, tomado no sentido estrito daquilo que alguém faz, extrai sua significacao distinta de sua capacidade de ser utilizado em conjungao com qualquer um dos outros termos da trama inteira, AS ages implicam fins, cuja antecipaco nao se confunde com algum resultado previsto ou predito, mas compromete aquele do qual a acao depende. As agées, ademais, remetem a motivos que explicam por que alguém faz ou fez algo, de um modo que 1LOF sina contribuigio & Sémantique de YAction, Paris, Bd. CNRS, 1977. p. 21+ 88 distinguimos claramente daquele em que um evento fisico con- duz a um outro evento fisico. As acées tém ainda agentes que fazem e podem fazer coisas que sao tidas como sua obra ou, como se diz em francés, como seu feito: em conseqiiéncia, esses agentes podem ser tidos como responsaveis por certas conse- gléncias de suas acdes, Na trama, a regressdo infinita aberta pela questao "por qué?" nao é incompativel com a regressao finita aberta pela questao “quem?". Identificar um agente e reconhecer-Ihe motivos s4o operacées complementares. Com- preendemos também que esses agentes agem e sofrem em circunstancias que nao produziram e que contudo pertencem ao campo pratico, precisamente enquanto circunscrevem sua in- tervencao de agentes hist6ricos no curso dos eventos fisicos oferecem a sua acao ocasives favordveis ou desfavordveis. Essa intervengao, por sua vez, implica que agir € fazer coincidir o que um agente pode fazer — a titulo de “acao de base” — eo que ele sabe, sem observacdo, 0 que é capaz de fazer, com 0 estagio inicial de um sistema fisico fechado”. Ademais, agir é sempre agir "com" outros: a interagdo pode assumir a forma da cooperagao, da competicao ou da luta. As contingéncias da interagao encon- tram-se endo com as das circunstancias, por seu cardter de ajuda ou de adversidade. Enfim, o resultado da acao pode ser uma mudanga de sorte em diregao a felicidade ou a0 infortsinio. Em suma, esses termos ou outros aparentados sobrevém nas respostas As questées que podem ser classificadas em questdes sobre 0 "que", o “por que", o “quem”, o “como”, 0 “com” ou 0 “contra quem” da acao, Mas 0 fato decisivo é que empregar de modo significativo um ou outro desses termos, numa situa- cdo de questo e resposta, € ser capaz de ligs-los a qualquer outro membro do mesmo conjunto. Nesse sentido, todos os membros do conjunto estdo numa relacdo de intersignificagio. Dominar a trama conceitual no seu conjunto, e cada termo na qualidade de membro do conjunto, é ter a competéncia que se pode chamar de compreensdo prética, Qual é entdo a relacéo da compreensdo narrativa com a ‘compreensao pratica tal como acabamos de organizar? A respos- taa essa questo comanda a relacao que pode ser estabelecida 2.Para o concelto de acao de base, cf. A. Danto, “Basic Action Girly 5536s Soneernini) ab sabes’ se observagdo, et Combe, intention, Gxiord, Blackwell 1957; Endim, concernindo a6 Eoneelto de intervengso na dua felagao com a nagko de'sistcma {sieo fechado, ef, Ht von Wright, Explanalion and Understanding. Londres, Routledge and Kegan Paul; 1971 80 entre teoria narrativa ¢ teoria da agao, no sentido dado a esse termo na filosofia analitica de lingua inglesa. Essa relacao, a meu ver, é dupla. E ao mesmo tempo uma relacao de pressupo- sigdo e uma relago de transformacdo. De um lado, qualquer narrativa pressupde, da parte do narrador e de seu auditério, uma familiaridade com termos tals como agente, fim, meio, circunsténcia, socorro, hostilidade, cooperacao, conflito, sucesso, fracasso etc... Nesse sentido, a frase narrativa minima é uma frase de acdo da forma X faz A nestas ou naquelas circunstancias e levando em conta 0 fato de que Y faz. B em circunstancias idénticas ou diferentes. Finalmen- te as narrativas tém como tema agir ¢ soffer. N6s 0 vimos © dissemos com Aristételes. Veremos adiante a que ponto, de Propp a Greimas, a andlise estrutural da narrativa em termos de fung6es e de atuantes verifica essa relagao de pressuposicao que estabelece 0 discurso narrativo sobre a base da frase de acao. Nese sentido ndo existe andlise estrutural da narrativa que nao faca empréstimos de uma fenomenologia implicita ou explicita do “fazer™. De outro lado, a narrativa nao se limita a fazer uso de nossa familiaridade com a trama conceitual da agao. Acrescenta a esta 08 tracos discursivos que a distinguem de uma simples seqiiéncia de frases de agéio. Esses tragos nao pertencem mais & trama conceitual da semantica da acdo. Sao tracos sintaticos, cuja funcdo é engendrar a composicdo das modalidades de discursos dignos de serem chamados de narrativos. quer se trate de narrativa histérica, quer de narrativa de ficgdo. Podemos explicar a relagdo entre a trama conceitual da acao € as regras de composicao narrativa recorrendo a distin¢éo, familiar em semiética, entre ordem paradigmatica e ordem sintagmidtica. Enquanto pertencentes a ordem paradigmatica, todos os termos relativos a acao sao sincrénicos no sentido de que as relagoes de intersignificacao que existem entre fins, meios, agentes, circuns- tancias e 0 resto sao perfeitamente reversiveis. 5m compensa- 40, a ordem sintagmatica do discurso implica o carater irredutivelmente diacronico de qualquer histéria narrada. Mes- ‘mo se essa diacronia nao impede a leitura as avessas da narra- tiva, caracteristica, como veremos, do ato de re-narrar, essa leitura que remonta do fimn em direcao ao comego da histéria nao abole a diacronia fundamental da narrativa. Extrairemos mais ~aBiscutoarcagso entre enpmenologlacandliselnguistcana Sémandque eon op ct pp 1TS'1S _ : tarde as conseqiiéncias disso, quando discutirmos as tentativas estruturalistas de derivar a légica da narrativa de modelos fandamentalmente a-crénicos. Limitemo-nos por enquanto dizer que compreender o que € uma narrativa € dominar_as regras que governam sua ordem sintagmatica. Em conseqién- Gia, a inteligencia narrativa nao se limita a pressupor uma familiaridade com a trama conceitual constitutiva da semantica da agao. Ela requer além disso uma familiaridade com as ré de composicao que governam a ordem diacrénica da histérla. A intriga entendida no sentido amplo que foi o nosso no capitulo precedente, a saber, a disposiga0 dos fatos (e. pois, o encadea- mento das frases de ago) na aco total constitutiva da histéria narrada é o equivalente literdrio da ordem sintagmatica que a narrativa introduz no campo pratico. Pode-se resumir do seguinte modo a dupla relagao entre inteligéncia narrativa ¢ inteligéncia prética. Passando da ordem paradigmatica da acao a ordem sintagmatica da narrativa, os termos da semantica da agao adquirem integracdo ¢ atualidade. Atualidade: termos que s6 tinham uma significacéo virtual na ordem paradigmatica, isto é, uma pura capacidade de emprego, recebem uma significacéo efetiva gracas ao encadeamento se- qiiencial que a intriga confere aos agentes, ao seu fazer e ao seu sofrer. Integracio: fermos tao heterogéneas quanto agentes, motives ¢ circunsténcias so tornados compativeis e operam conjuntamente em totalidades temporais efetivas. E nese sen- tido que a relacéo dupla entre regras de tessitura da intriga ¢ termos de agéo constitui, ao mesmo tempo, uma relagao de pressuposico e uma relagéo de transformacao. Compreender uma histéria € compreender ao mesmo tempo a linguagem do “fazer” ea tradigao cultural da qual procede a tipologia das intrigas. segundo ancoramento que a composicéo narrativa en- contra na compreenséo pratica reside nos recursos simboticos do campo prético. Trago que vai comandar quais aspectos do fazer, do poder fazer ¢ do saber-poder-fazer pertencem a trans- osi¢ao poética. Se, com efeito, a agdo pode ser narrada, € porque ela jé est articulada em signos, regras, normas: é, desde sempre, simbolica- mente mediatizada. Como fot dito acima, apoio-me aqui nos trabalhos de antropélogos que se filiam, por motivos diversos, & sociologia compreensiva, dentre os quais Clifford Geertz, o autor de The Interpretation of Cultures*. A palavra-simbolo € conside- 4 Clifford Geertz, The Interpretation of Cultures, Nova lorque, Baste Books, 1973. 1 rada af numa acepgao que posso chamar de média, a meio-ca- minho de sua identificacao com uma simples notagao (tenho em mente a oposi¢do leibniziana entre o conhecimento intuitivo por visdo direta e 0 conhecimento simbélico por signos abreviados, ‘que substituem uma longa cadela de operacées logicas) ede stua identificacdo as expressdes de duplo sentido segundo o modelo da metéfora, € até a significados ocultos, s6 acessiveis a um saber esotérico, Entre uma acepedo pobre demais ¢ uma acep- cdo rica demais, opte! por um uso préximo do de Cassirer, na Filosofia das formas simbéltcas, na medida em que, para este, as formas simbélicas so processos culturais que articulam a experiéncia inteira. Se falo mais precisamente de mediagao simbélica, € a fim de distinguir, dentre os simbolos de natureza cultural, aqueles que embasam a ago a ponto de constituir sua significagdo principal, antes que se destaquem do plano pratico conjuntos simbélicos auténomos pertencentes & palavra ou A escrita. Nesse sentido, poder-se-ia falar de um simbolismo im- plicito ou imanente, em oposicao a um simbolismo explicito ou autOnomo*. Para antropélogo € 0 sociélogo, o termo simbolo sublinha de imediato o carater puiblico da articulacdo significante. Como diz Clifford Geertz, "a cultura € piiblica porque a significagio 0 €°, Adoto de bom grado essa primeira caracterlzayao yue marca ‘bem que o simbolismo néo est4 no espirito, nao € ima operacao psicolégica destinada a guiar a aco, mas uma significagao incorporada a aco ¢ decifravel nela pelos outros atores do jogo social. ‘Ademais, 0 termo simbolo —ou melhor, mediagao simbé- lica — assinala o caréter estrufurado de um conjunto simbélico. Clifford Geertz fala, nesse sentido, de um “sistema de simbolos em interacao”, de “modelos de significacées sinérgicas”. Antes de ser texto, a mediacéo simbélica ten uma textura, Compreender um rito é situd-lo num ritual, este num culto e, pouco a pouco, no conjunto das convencées, das crencas e das instituigoes que formam a trama simbélica da cultura. 5.No ensaio do qual extraio a maior parte das anotagdes cons tmediagae simBoiea da ago, ew fain distin onsite © um smboism representation "A eSteutura simbelie d {in Sumbotisme, Conterencia itlernaeional de Socielogia Religiosa, Cl Estetsburgo’ i917, pp. 29°00). Hane. vocabularte parece 03 howe Inadequado. Ademai Temeto, para uma analise eomplementars a meu enaaie! “Limagimation dans ie Wiseours et ‘dans faction" Savoie Jae Ssperer, les" luntes, de fa raison, Brunciaa, Publications des” faculkes ihverstaires Saint-Louis 5, 1976. pp. 207228, 92 Um sistema stmbélico fornece assim um contexto de desert do para ages particulares. Em outros termos, ¢ em “funcao Ge...’ tal convengao simbélica que podemos interpretar tal gesto como significando isto ou aquilo: o préprio gesto de levantar 0 brago pode, segundo o contexto, ser compreendido como mane!- ra de saudar, de chamar um téxi, ou de volar. Antes de serem Submetidos interpretacao, os simmbolos sao interpretantes in- ternos da acéo". Desse modo, 0 simbolismo confere A acdo uma primeira legibilidade. Ao se dizer isso, ndo se poderia confundir a textura da acdo com o texto que 0 etndlogo escreve — com o texto ‘etno-grafico, o qual esta escrito nas categorias, com conceitos, sob principios rlomolégicos que s40 a contribuicéo prépria da ciéncia em sie que, em conseqiiéncia, nao podem ser confundi- dos com as categorias sob as quais uma cultura compreende a si mesma. Se se pode falar contudo da agao como de um quase-texto, € na medida em que os simbolos, compreendidos como interpretantes, fornecem as regras da significagao em fungao das quais tal conduta pode ser interpretada’. © termo simbolo introduz também a idéia de regra, n&o somente no sentido, que se acaba de dizer, de regras de descricao e de interpretacdo para acées singulares, mas no sentido de norma, Certos autores, como Peter Winch®, até privilegiam esse trago, caracterizando a aco significativa como rule-governed behaviour. Pode-se esclarecer essa fungéo de regulagao social ‘comparando os cédigos culturais com os cédigos genéticos. Como estes tiltimos, os primeiros so “programas” de comporta- mento: como eles, dao forma, ordem e diregao a vida. Mas, E nesse ponto que o sentido da palavra simbolo que privilegiet ladeia os Gots senlidos que descartel Equanto ‘nterpclante de dondata, un Snbetismo é timber wm sistema de notagdo que abrevia, ao modo de Sun Siubolimo matemtic, um grande nmero de agées deiathadas eque ‘plesorove. ao modo de ain simboffamo mrusieal a sequencia das exeeucbes Biesperormances, suscelvels de efetuato. ‘Mag e"ainda enquanto Interpretante que ‘o que Cliford Geerts chama de uma thick AeSsBivion' qe osiibolotn fedaz uma relagao de duplo sentido no gesto. fa eonculd “cua, interpretagto regulamenta: odde-se consetar Haan inte, Ess ada pn pagent en Sra Concigees proumas: tepid, comosentagonllg ner dues Pata ues angi Magoun ue eater ritual socal aparece sem qe soja neoessrioestendet 8 hnerpreagab na regan doesotersin © do hermelisin. Cf, meu artigo: “The Model of the Text, Meaningful Action Considered as 7S ae age cTitssecnch, 98 (1271) pp. SS BOS, retomadoem New Literary History, (1979) 1, pp. 91-117. ‘eter Winch, Te dea ofa Social Science, Londres, Routledge and Kegan ‘Paul, 1988, pp. 40-68, 93 diversamente dos cédigos genéticos, os c6digos culturais foram edificados em zonas onde a regulagem genética se tornou inope- ante € 86 prolongam sua eficdcia as custas de uma reorganiza- ‘cdo completa do sistema de codificacdo. Os costumes, os sos € tudo o que Hegel! colocava sob o titulo de substancia ética, da Sittlichkeit, preliminar de toda Moralitdt de ordem refletida, assumem assim 0 circuito dos cédigos genéticos. Passa-se assim, sem dificuldade, sob o titulo comum de mediacdo simbélica, da idéia de significagéo imanente a de regra, considerada no sentido de regra de desericdo, depois A de norma, que equivale a idéia de regra considerada no sentido prescritivo do termo, Em funcdo das normas imanentes de uma cultura, as agées podem ‘ser estimadas ou apreciadas, isto é, julgadas segundo uma escala de preferéncia moral. Recebem assim um, valor relativo, que faz dizer que tal ago vale mats que tal outra Esses graus de valor, atribuidos primeiro as agées, podem ser estendidos aos préprios agentes, que s4o tides como bons, maus, melhores ou piores. Aleancamos assim, através da antropologia cultural, al- guns dos pressupostos “éticos” da Poética de Aristételes, que Posso assim ligar ao nivel de mimese I. A Poética nav supoe apenas “agentes”, mas caracteres dotados de qualidades éticas que os tornam nobres ou vis. Se a tragédia pode representé-los como “melhores” ¢ a comédia como *piores" que os homens atuais, € porque a compreensao pratica que os autores parti- Iham com seu auditério comporta necessariamente uma avalia- ‘go dos caracteres e de sua acdo em termos de bem ou de mal. Nao ha aco que nao suscite, por pouco que seja, aprovacao ou reprovagdo, em funcao de uma hierarquia de valores de que a bondade e a maldade sao os pélos. Discutiremos, no momento oportuno, a questo de saber se € possfvel uma modalidade de Jeitura que suspenda inteiramente qualquer avaliagao de caréter ético. O que restaria, em particular, da piedade, que Aristételes nos ensinou a ligar a infelicidade nao-merecida, se o prazer estético viesse a se dissociar de qualquer simpatia e de qualquer antipatia pela qualidade ética dos caracteres? E preciso saber, ‘em todo o caso, que essa eventual neutralidade ética deveria ser conquistada com muita luta contra um traco originariamente inerente a acdo: a saber, precisamente o de nao poder ser nunca eticamente neutra, Um motivo para pensar que essa neutralida- de nao é nem possfvel nem desejavel € que a ordem efetiva da aco néo oferece somente ao artista convengées € convicoées 4 para dissolver, mas ambigitidades, perplexidades a resolver de modo hipotético. Muitos criticos contemporaneos, refletindo so- bre a relagao entre arte e cultura, sublinharam o cardter confll- tivo das normas que a cultura oferece a atividade mimética dos °. Foram precedidos, nesse ponto, por Hegel, na sua famosa meditacao sobre a Antigona de Séfocles. Ao mesmo tempo, a neutralidade ética do artista nao suprimiria uma das mais antigas fungées da arte, a de constituir um laboratério em que o artista leva adiante, por intermédio da ficcdo, uma experi- mentacao com os valores? Qualquer que seja a resposta a essas questées, a poética nao cessa de tomar empréstimos da ética, até mesmo quando prega a suspensao de qualquer juizo moral ou sua inversdo iréntca. O préprio projeto de neutralidade pressu- poe a qualidade originariamente ética da acao, a montante da ficeao. Essa propria qualidade ética é s6 umn coroldrio do caréter principal da ago, ser sempre simbolicamente mediatizada. 0 terceiro traco da pré-compreensio da ago que a ativi- dade mimética do nivel II pressupde é 0 proprio desafio de nossa imvestigacao, Concerne aos caracteres temporais nos quais 0 tempo narrativo vem enxertar suas configuragées. A compreen- sao da acdo nao se limita, com efeito, a uma familiaridade com a trama conceitual da aco, e com suas mediagées simbélicas: chega até a reconhecer, na ago, esiruturas lemporais que exigem a narracdo. Nesse nivel, a equacao entre narrativa € tempo permanece implicita, Nao levarel, contudo, a andlise desses caracteres temporais da agao até 0 ponto em que teria- ‘mos o direito de falar de uma estrutura narrativa, ou pelo menos de uma estrutura pré-narrativa da experiéncia temporal, como sugere nosso modo familiar de falar de historias que nos acon- tecem ou de histérias nas quais nos envolvemos, ou simples- mente da histéria de uma vida. Reservo para o fim do capitulo 0 ‘exame da nocdo de estrutura pré-narrativa da experiéneia; ela oferece, com efeito, uma excelente ocasiao de enfrentar a objeao de circulo vicioso que obseda toda a andlise. Limito-me aqui ao exame dos tracos temporals que permaneceram implicitos as mediagoes simbélicas da acao € que se pode considerar induto- res de narrativa, Nao me deterei na correlagdo evidente demais que se pode estabelecer, de certo modo termo a termo, entre determinado Demos umn exemplo disso com tratamento de James Redfield da relagto ° Rhee ane ela ealturs em Nature and Cullare m the lad, op. eit CE Sima p 8113. 95 membro da trama conceitual da agao,¢ determinada dimensao temporal considerada isoladamente. E facil observar que 0 pro- Jeto diz respeito ao futuro, ¢ verdade que de um modo especifico, {que 0 distingue do futuro da previsdo ou da predi¢ao. O estretto Parentesco entre a motivacao ¢ a aptidéo para mobilizar no presente a experténcia herdada do passado nao é menos eviden- te. Enfim, 0 “eu posso”, o “eu faco", o “eu sofro” contribuem manifestamente para o sentido que espontaneamente damos 20 presente. Mais importante que essa correlagdo frouxa entre certas categorias da acdo ¢ as dimensées temporais tomadas uma a uma, € 0 intercdmbio que a acdo efetiva faz aparecer entre as dimensées temporais. A estrutura discordante-concordante do tempo segundo Agostinho desenvolve no plano do pensamento reflexivo alguns tracos paradoxais dos quais uma fenomenologia da ago pode efetivamente delinear o primetro esboco. Dizendo que nao hé um tempo futuro, um tempo passado ¢ um tempo presente, mas um triplice presente, um presente das coisas futuras, um presente das coisas passadas e um presente das coisas presentes, Agostinho pds-nos no caminho de uma inves- tigacdo sobre a estrutura temporal mais primitiva da acao. & facil reescrever cada uma das trés estruturas temporais da acdo nos termos do triplice presente. Presente do futuro? Doravante, isto €, a partir de agora, comprometo-me a fazer isto amanha: Presente do passado? Tenho agora a intengdo de fazer isto, porque acabei justamente de pensar que... Presente do pre- sente? Agora {ago isto, porque agora posso fazé-lo: o presente efetivo do fazer atesta 0 presente potencial da capacidade de fazer € constitut-se como presente do presente. Mas a fenomenologia da acdo pode avangar mais longe que essa correlagdo termo a termo na via aberta pela meditago de ‘Agostinho sobre a distentio animi. O que importa é a maneira pela qual a préxis cotidiana ordena, um em relagio ao ouiro, 0 presente do futuro, o presente do passado, o presente do presen- tc. Porque € essa articulagao pratica que constitul o indutor mais elementar de narrativa. ‘Aqui a etapa que constitul a andlise existencial de Heideg- ger pode desempenhar um papel decisivo, mas sob certas con- digdes que devem ser claramente estabelecidas. Nao ignoro que uma leitura de O Ser e 0 Tempo num sentido puramente antro- poldgico corre o risco de arruinar o sentido da obra inteira, na medida em que 0 seu designio ontol6gico seria negligenciado: 0 Dasein € 0 “lugar” onde o ser que somos é constitiido por sua 96 capacidade de colocar a questo do ser e do sentido do ser. [solar a.antropologia filoséfica de O Ser e o Tempo € pois esquecer essa significagio principal de sua categoria existencial central. Pe manece que, em 0 Ser eo Tempo a questao do ser € precisamente aberta por uma andlise que deve, primeiro, ter uma certa consisténcia no plano de uma antropologia filos6fica, para exer- cer a fungao de abertura ontolégica que Ihe é assinalada. Bem mais, essa antropologia filos6fica organiza-se com base em uma tematica, a da Inquictagio (Sorge), que, sem nunca se esgotar numa praxeologia, haure contudo nas descrigées inspiradas na ordem pratica a forca subversiva que Ihe permite abalar o primado do conhecimento pelo objeto e desvelar a estrutura do ser-no-mundo mals fundamental que qualquer relacdo sujeito- objeto. E dessa maneira que 0 recurso a pratica tem, em 0 Sere © Tempo, um alcance indiretamente ontolégico. Conhecem-se, quanto a isso, as analises do utensilio, do em vista-de-que, que fornecem a primeira trama da relagao de significancia (ou de “significabilidade"), antes de qualquer processo cognitivo expli- cito e de qualquer expresso proposicional desenvolvida. fa mesma poténcia de ruptura que encontro nas anélises que concluem o estudo da temporalidade na segunda secao de OSer eo Tempo. Essas andlises esto centradas em nossa relacao com o tempo como este “no” que agimos cotidianamente. Ora, € essa estrutura de intratemporalidade (innerzettigkeit) que me parece caracterizar melhor a temporalidade da ago, no nivel em que se mantém a presente andlise, que é também o que convém a uma fenomenologia do voluntario e do involuntario ¢ a uma seméntica da acéo. Pode-se objetar que é muito perigoso entrar em 0 Ser ¢ 0 Tempo por seu capitulo terminal. Mas € preciso compreender por guais razdes € 0 tiltimo na economia da obra. Por duas raz6es. Primero, a meditacdo sobre o tempo, que ocupa a segunda seco, esta ela prépria colocada numa posicao que se pode caracterizar como uma posicao de atraso. A primeira seco ai é, com efeito, recapitulada na perspectiva de uma questao que se anuneia assim: 0 que faz do Dasein um todo? A meditacao sobre o tempo é capaz de responder a essa problematica por razes a5 quais retornarel na quarta parte. Por sua vez, o estudo da intratemporalidade, a tinica que me interessa no presente esta- gio de minha prépria andlise, ¢ ela propria atrasada pela organi- zac&o hierdrquica que Heidegger imprime A sua meditacdo sobre © tempo. Essa organizacao hierérquica segue uma ordem, ao mesmo tempo de derivagéo ¢ de autenticidade decrescentes. Como se sabe, Heidegger reserva o termo temporalidade (Zeitlig- ” keit) & forma mais originarla e mais auténtica da experiéncia do tempo, a saber, a dialética entre ser-por-vir, tendo-se sido € tornar-presente. Nessa dialética, o tempo ¢ inteiramente des- substancializado. As palavras futuro, passado, presente desapa- recem € 0 proprio tempo figura como unidade eclodida desses trés éxtases temporais. Essa dialética € a constituicao temporal da Inquictacao. Como se sabe também, € 0 ser-para-a-morte que impée, ao contrario de Agostinho, o primado do futuro sobre 0 presente ¢ 0 encerramento desse futuro por um limite interno a qualquer espera ¢ a qualquer projeto. Heidegger reserva, em seguida, 0 termo historialidade (Geschichtlichkeit) para 0 nivel imediatamente contiguo de derivacao. Dots tragos sao entao sublinhados: a extensao do tempo entre nascimento e morte ¢ 0 deslocamento da énfase sobre o futuro para o passado. E nesse nivel que Heidegger tenta ligar o conjunto das disciplinas hist6- ricas em favor de um terceiro trago — a repetigao — que marca a derivagao dessa historialidade ante a temporalidade profun- ass E 86 em terceiro plano que vem a intratemporalidade na qual quero agora me deter'!. Essa estrutura temporal ¢ colocada em ultima posic4o, porque € a mais apta a ser nivelada pela representacao linear do tempo como simples sucessao de “ago- ras abstratos”. Se me interesso por isso aqui, € precisamente em virtude dos tracos pelos quais essa esirutura distingue-se da representacio linear do tempo e resiste ao nivelamento que a reduziria a essa representagdo que Heidegger chama de concep- cao “vulgar” do tempo. A intratemporalidade ¢ definida por uma caracteristica de base da Inquietagdo: a condicao de ser lancado entre as coisas tende a tornar a descrigdo de nossa temporalidade dependente da descrigao das coisas de nossa Inquietacéo. Esse traco reduz a Inquietacdo as dimensoes de preocupacao (Besorgen) (op. cit., p. 121; trad. fr., p. 153; trad. ingl. p. 157). Mas, por mais inauténtica que seja essa relacdo, ela apresenta ainda tracos que a arrancam do campo externo dos objetos de nossa Inquietacao e a ligam subterraneamente propria Inquietag4o em sua constituigSo fundamental. E notavel que, para discernir esses “T0.RetornarelJongamente ao papel da “repeticao" na discussdo de conjunto {Tuc consagrarel & fenomenologia Go tespa na quarta parte, 11 Heidegger, Sein unc Zot, Tabingen, Max Niemeyer, 10" ed., 1963, £ 78-83. 1p, dE 7 Tracts haere por rtemporcida i er" tam bah Macquaeste ¢ Edward Robinson taduzemn por Wun timeness (Being ‘and Time, Nova lorgue, Harper an Row, 1962, pp 450-488), 98 caracteres propriamente existencials, Heldegger dirija-se de bom grado ao que dizemos e fazemos em relacao ao tempo. Esse Procedimento € muito préximo daquele que se encontra na filosofia da linguagem ordinaria. N4o é surpreendente: o plano a0 qual nos atemos, neste estégio inicial de nosso percurso, precisamente aquele em que a linguagem ordinaria é verdadei- Famente o que J.-L. Austin e outros disseram que ela €, a saber, © tesouro das expressées mais apropriadas ao que € propria mente humano na experiéneia. £ pois a linguagem, com sua reserva de significagdes usuais, que impede a descricao da Inquietacdo, sob a modalidade da preocupacdo, de tornar-se a presa da descricao das coisas de nossa Inquietagao. desse modo que a intratemporalidade, ou ser-“no"-tem- po, exibe tragos irredutiveis & representagao do tempo linear. Ser-"no"-tempo J é diferente de medir intervalos entre instan- ‘es-limites. Ser-"no"-tempo é antes de mais nada contar com 0 tempo e, em conseqiiéncia, calcular. Mas € porque contamos como tempo ¢ fazemos célculos que devemos recorrer & medida; no 0 inverso. Deve pois ser possivel dar uma descricao existen: cial desse “contar com’, antes da medida que ele exige. Aqui, expressées tals como “ter tempo de...", “demorar o tempo de, “perder seu tempo” etc. sdo altamente reveladoras. DA-se 6 resto cour a rani yranialical dos tempos verbals e a trama muito ramificada dos advérbios de tempo: entdo, apés, mais tarde, mais cedo, depois, até que, enquanto que, durante, todas as veres que, agora que etc. Todas essas expressées, de uma extrema sutiieza e de uma diferenciacao fina, orlentam em diregao ao carter datavel ¢ piiblico do fempo da preocupagao. Mas é sempre a preocupagao que determina o sentido do tempo, nao as coisas de nossa Inquietacao. Se contudoo ser-"no"-tempo é t4o facilmente interpretado em fungao da representagao ordi- naria do tempo, € porque as primeiras medidas dele s4o inspi- radas no entomo natural e, antes de mais nada, no jogo da luz € das estagdes. Quanto a isso, o dia € a mais natural das medidas!?. Mas o dia nao é uma medida abstrata, € uma gran- 12 tse teratoma. nani (Sieroter tem ae uses fives ete fiat oy pc anton cordon Seas reléxdea de Rgestsno sobieo" dat Gileck nao cbasente eee pan seamen atcatine nin afer Sinan Sieg eiies cbtieee aguime onmeydaad are? aeieepia came nce a er GA Oates Rican hala Meni cite oie eral shale oes apn 99, deza que corresponde & nossa Inquietagao e ao mundo no qual & “tempo de” fazer alguma coisa, onde “agora” significa “agora que"... Eo tempo dos trabalhos e dos dias. £ importante pois ver a diferenca de significagéo que distingue “agora” proprio desse tempo da preocupacdo do ‘agora” no sentido do instante abstrato. O agora existencial € determinado pelo presente da preocupacao, que é um “tornar- presente’, insepardvel de “esperar” ¢ de “reter” (op. cit., p. 416). E somente porque, na preocupacao, a Inquietacio tende a se contrair no tornar-presente ¢ a obliterar sua diferenga ante a espera ¢ a retengao que 0 “agora”, assim isolado, pode tornar-se presa de sua representacéo como um momento abstrato A fim de proteger a significacdo do “agora” dessa reducao a uma abstracao, € importante notar em quais ocasides “dize- mos-agora’ na acéo € no sofrimento quotidianos: “Dizer-agora, escreve Heidegger, € a articulacao no discurso de um tornar-pre~ sente que se temporaliza em uniao com uma espera que re- tém’"*. E ainda: °O tornar-presente que interpreta a si mesmo — em outras palavras, o que é interpretado ¢ considerado no agora — € 0 que chamamios de tempo'"*. Compreende-se como, em certas circunsténcias praticas, essa interpretacao pode deri- var na diregao da representagéo do tempo linear: dizer-agora torna-se para nés sinnimo ‘de ler a hora no relégio. Mas enquanto a hora e o rel6gio permanecem percebidos ‘como derivacées do dia, 0 qual liga a Inquietacao luz do mundo, dizer-agora retém sua significagdo existencial; ¢ quando as maquinas que servem para medir o tempo sdo despojadas dessa referéncia primaria as medidas naturais que dizer-agora retorna a representacdo abstrata do tempo. A relacdo entre essa anélise da intratemporalidade ¢ a narrativa parece, & primeira vista, muito longinqua: 0 texto de Heidegger. como verificaremos na quarta parte, parece mesmo nao lhe deixar nenhum lugar, na medida em que a ligagao entre a historiografia e o tempo se faz, em O Ser eo Tempo, no nivel da 1S."Das Jeizt-sagen aber ist redence Articulation eines Gegenwartigen chai der Wiha mt eae cheslenden Geidrigen sil wig’ Git p. 416), Trad. ingl:“Saying’‘now’" te the discursive Artication off imaidng-present which tenporalizes liseif tn a unity vou a retentice awaiting’ fop-ct. p. 400 14."Das sich auslegende Gegenuvartigen, das helsst das im “Jetzt” anges irgchene Ausgeegtenennan wii op! cep 408) Tykd Ingle haking-presenCiotieh interprets self. “tic otiide words, tat hich has been thderpreted and 1s addressed in the ‘now ts what we call time (opel. p 400) 100 historialidade ¢ nao da intratemporalidade. O beneficio da ana- lise da intratemporalidade estd alhures: reside na ruptura que essa anélise opera com a representacao linear do tempo, enicn: dida como simples sucessao de agoras. Um primeiro umbral de temporalidade é assim transposto com o primado dado & Inquie- taco. Reconhecer esse umbral é lancar, pela primeira vez, uma ponte entre a ordem da narrativa e a Inquietagao. E sobre 0 pedestal da intratemporalidade que se edificarao conjuntamente as configuragdes narrativas ¢ as formas mais elaboradas da temporalidade que Ihes correspondem. Vé-se qual 6, na sua riqueza, 0 sentido de mimese I: imitar ou representar a acao, é primeiro, pré-compreender o que ocorre com 0 agir humano: com sua semantica, com sua simbélica, ‘com sua temporalidade. E sobre essa pré-compreensao, comum a0 poeta e a seu leitor, que se ergue a tessitura da intriga e, com la, a mimética textual ¢ literaria. E verdade que, sob 0 regime da obra literdria, essa pré- compreensio do mundo da ago recia ao nivel de “repertério" para falar como Wolfgang Iser, no Der Akt des Lesens"®, ou a0 nivel de "mengao", para empregar uma outra terminologia mais familiar A filosofia analitica. Permanece que, a despeito da ruptura que ela inotitui, a literatura seria incomprecnsivel para sempre se nao viesse a configurar 0 que, na acdo humana, ja figura. Munese It Com mimese Il abre- se 0 reino do como-se. Eu poderia ter dito 0 reino da fiecdo, de acordo com um uso corrente em critica Iiterdrla. Privo-me, contudo, das vantagens dessa expressao inteiramente apropriada para a andlise de mimese Il, a fim de evitar 0 equivoco que o emprego do mesmo termo criaria em duas acep¢6es diferentes: uma primeira vez, como sinonimo das confignragées narrativas, uma segunda vez, como anténimo de pretensao da narrativa histérica de constituir uma narrativa “verdadeira’. A critica literdria ndo conhece essa dificuldade, na medida em que nao leva em conta a cisdo que divide o discurso narrativo em duas grandes classes. Pode entao ignorar uma 15 Wolfganglser, Der Aktdes Lesens, Munique, Wilhelm Fink, 1976, parte, Capa * Le 101 diferenca que afeta a dimensao referencial da narrativa ¢ limt- tar-se aos caracteres estrufurais comuns a narrativa de ficgao ¢ A narrativa hist6rica. A palavra ficcao esta entao livre para designar a configuracdo da narrativa de que a tessitura da intriga € 0 paradigma, sem dar atencao as diferencas que s6 concernem a pretensao a verdade das duas classes de narrativa. Qualquer que seja a amplitude das revisdes as quais sera preciso submeter a distincdo entre ficticio ou “imagindrio” € “real”, permaneceré uma diferenca entre narrativa de ficcdo ¢ narrativa histérica, que se tratard precisamente de reformular na quarta parte. Esperando esse esclarecimento, escolht reservar 0 termo ficeao & segunda das acepgoes consideradas acima e opér nar- rativa de flogdo a narrativa historica. Falarei de composicao ou de configuragao na primeira das acepgées, que no poe em jogo 0s problemas de referéncia ¢ de verdade. Eo sentido do muthos aristotélico que a Poética, como vimos. define como “agencla- mento dos fatos' Proponho-me agora a libertar essa atividade de configura- (cdo das coer¢ées limitadoras que o paradigma da tragédia impoe ao conceito de tessitura da intriga em Aristételes. Além disso, gostaria de completar 0 modelo por uma analise de suas estru- turas temporais. Essa andlise. vimos. néo encontrou nenhum lugar na Poética. Espero demonstrar na sequéncia (segunda terceira partes) que, sob a condicao de um grau mais alto de abstracao ¢ com a adigao de tragos temporais apropriados. 0 modelo aristotélico nao seré radicalmente alterado pelas ampli- ficagées € corregées que a teoria da histéria ¢ a teoria da narrativa de flegao Ihe trarao. O modelo de tessitura da intriga que serd posto a prova no resto desta obra responde a uma exigéncia fundamental que ja foi evocada no capitulo precedente. Colocando mimese Il entre um estdgio anterior e um estagio ulterior da mimese, nao busco apenas localizé-la ¢ enquadré-la, Quero compreender melhor sua funcao de mediacdo entre 0 montante ¢ a jusante da configuragdo. Mimese Il sé tem uma posigao intermedidria porque tem uma fungao de mediagao. Ora, essa fungao de mediagao deriva do carter dinAmico da operagio de configuragéo que nos fez preferir 0 termo da tessitura da intriga ao de intriga € o de disposicao ao de sistema. ‘Todas os conceitos relativos a esse nivel designam, com efelto, operagées. Esse dinamismo consiste em que a intriga Jé exerce, no seu préprio campo textual, uma fungao de integragao e, nese sentido, de mediacdo, que Ihe permite operar, fora dese préprio 102 campo, uma mediacao de maior amplitude entre a pré-com- preensao e, se ouso dizer, a pos-compreensdo da ordem da acao e de seus tracos temporais. A intriga é mediadora, pelo menos por trés motivos: Primeiro, faz mediagao entre acontecimentos ou incidentes individuais e uma histéria considerada como um todo. Quanto a sso, pode-se dizer equivalentemente que ela extrai uma histéria sensata de — uma pluralidade de acontecimentos ou de inciden- tes (os pragmata de Aristételes); ou que transforma os aconteci- mentos ou incidentes em — uma historia. As duas relagées reciprocdveis expressas pelo de e pelo em caracterizam a intriga como mediacéo entre acontecimentos e hist6ria narrada. Em conseqiténcia, um acontecimento deve ser mais que uma ocor- réncia singular. Ele recebe sua definicao de sua contribuicdo para o desenvolvimento da intriga. Uma histéria, por outro lado, deve ser mais que uma enumeracdo de eventos numa ordem serial, deve organizé-los numa totalidade inteligivel, de tal sorte que se possa sempre indagar qual é 0 “tema” da histéria. Em resumo, a tessitura da intriga ¢ a operacdo que extrai de uma simples sucesso uma configuracéo. Além disso a tessitura da intriga compée juntos fatores tao heterogeneos quanto agentes, fins, meios, interagoes, circunstan- cias, resultados inesperados etc. Aristételes antecipa esse card- ter mediador de varias manetras: primetro, faz um subconjunto de trés “partes” da tragédia — intriga, caracteres e pensamentos —na qualidade do “que" {da imitacdo). Nada impede, pois, de estendermos o conceito de intriga a triade inteira. Essa primeira extensdo da ao conceito de intriga o alcance inicial que vai Ihe permitir receber enriquecimentos ulteriores. Porque o conceito de intriga admite uma extenséo mais vasta: incluindo na intriga complexa os incidentes lamentavels e aterrorizantes, a teatralidade, os reconhecimentos € 0s efeitos violentos ete. Aristételes iguaia a intriga a configuragdo que caracterizamos como concorddncia-discordancia, E esse traco que, de modo definitivo, constitut a funcao mediadora da intriga 'Nés 0 antecipamos na secdo anterior, dizendo que a narrativa faz aparecer numa ordem sintagmatica todos os componentes sus- cetiveis de figurar no quadro paradigmatico estabelecido pela seméntica da ago. Essa passagem do paradigmatico ao sintag- mitico constitui a prépria transicao de mimese I a mimese Il. Ea obra da atividade da configuracao. 103, A intriga é mediadora por uma terceira razdo, a de seus caracteres temporais prdprios. Eles nos autorizam a chamar, por generalizaco, a intriga de uma sintese do heterogéneo". Esses caracteres temporais, Aristételes ndo os considerou. Eles estao, contudo, diretamente implicados no dinamismo cons- titutivo da configuracéo narrativa. Com isso, dao seu sentido pleno 0 conceito de concordancia-discordancia do capitulo precedente. Acesse respeito, pode-se dizer da operacao da tessitura da intriga ‘ao mesmo tempo que ela reflete o paradiaxo agostiniano do tempo eo resolve, ndo do modo especulativo, mas do modo postico. Ela 0 reflete, na medida em que o ato de tecer a intriga combina em proporgdes varidveis duas dimensées temporais, uma cronolégica, a outra ndo-cronolégica. A primeira constitul a dimensdo episédica da narrativa: caracteriza a histéria en- quanto constituida por acontecimentos. A segunda éa dimensao configurante propriamente dita, gracas a qual a intriga transfor- ma 08 acontecimentos em histéria. Esse ato configurante"” con- siste em “considerar junto” as agdes de detalhe ou o que chamamos de os incidentes da hist6ria; dessa diversidade de acontecimentos, extrai a unidade de uma totalidade temporal. Nao se poderia sublinhar demasiadamente o parentesco entre esse “considerar junto”, préprio do ato configurante, e a opera- ‘sao do Juizo segundo Kant. Lembramos que para Kant o sentido transcendental do juizo consiste menos em unir um sujeitoe um. predicado que em colocar uma pluralidade intuitiva sob a regra de um conceito. parentesco é maior ainda com 0 juizo reflexivo que Kant opée ao juizo determinante, nesse sentido de que reflete sobre o trabalho de pensamento em andamento no juizo estético de gosto € no juizo teleolégico aplicado a totalidades orginicas. O ato da intriga tem uma funcdo similar, enquanto extrai uma configuracao de uma sucessa0" 16.£-8 custa dessa generaltzacao que um historiador como Paul Veyne poder sie intrigd como sua combinagae ex praporgao variate! de ts ausas @ acasbs, © tornd-lao fio direter de sud iNgtoviograiia em Como 6 escreve a historia ic adiante segunda parte, Cap. re Be mat outra manera. complementar mas ho Rrra, 1. von ead encadeamentos de Sausalidae regdos por coergoet sistenicas (. {guaimenteadiante segunda parte, Cap tp: £85. Desnultiplas manciras, vr giconsentnc Tiga Soe sees etrogencas inspiro-me em Louis O. Mink para a nocao de configurational act — ato ‘oniigurante que ele aplica a compreensao histories « que estenda a {odo 6 campo da Inteligéntia narrative ous ©. Mink, “the Autonomy ot Hibtoncal Understanding Hitiory and heorg. vol Vins, pp 24-4 (Cradiante segunda parte; Cap. I, pp. 218 38. 18.Consideraremos depois outras lmplicagoes do cardter reflexivo do Jutzo Sm historia, CF seghmda parte, Cap. iif b 104 Mas a poitsis faz mais que refletir 0 paradoxo da tempora: dade. Mediatizando os dots pélos do acontecimento ¢ da hist6- sia, a tessitura da intriga traz ao paradoxo uma solucao que ¢ 0 proprio ato poético. Esse ato, do qual acabamos de dizer que extra uma representagao de uma sucessdo, revela-se ao ouvinte ou ao leitor na aptidao de uma histéria a ser seguida””. Seguir uma histéria é avancar no meio de contingéncias e de peripécias sob a conduta de uma espera que encontra sua realizacdo na conclusdo. Essa conclusao nao € logicamente implicada por algumas premissas anteriores. Ela da a histéria ‘um “ponto final’, 0 qual, por sua vez, fornece o ponto de vista do qual a histéria pode ser percebida’ como formando um todo, Compreender a histéria, € compreender como ¢ por que os episédios sucessivos conduziram a essa conclusao, a qual, longe de ser previsivel, deve finalmente ser aceitavel, como congruente com os episédios reunidos. # essa capacidade da hist6ria, de ser seguida, que consti- tui a solugdo postica do paradoxo da distensao-intencao. Que a historia se deixe seguir converte o paradoxo em dialética viva. De um lado, a dimensao episédica da narrativa puxa o tempo narrativo para o lado da representacao linear. De muitas hianeiras. Primelry, o “enléu-e-enilao" cont 0 gual responiderios a questao: “e depois?” sugere que as frases da acdo estao numa relagao de exterioridade. Ademais, os episédios constituem uma sérle aberta de acontecimentos, que permite acrescentar ao “entdo-e-ento” um “e assim por diante”. Finalmente, os epis6- dios sucedem um ao outro de acordo com a ordem itreversivel do tempo comum aos acontecimentos fisicos ¢ humanos. A dimensao configurante, em compensacao. apresenta tragos temporais inversos ao da dimensdo episédica. E isso também de miltiplas maneiras. Primeiro, o arranjo configurante transforma a sucessao de acon- tecimentos numa totalidade significante, que é 0 correlato do ato de reunir os acontecimentos, ¢ faz com que a historia se deixe seguir. Gracas a esse ato reflexivo, a intriga inteira pode ser traduzida num “pensamento”, que é justamente seu “assun- to” ou seu “tema”. Mas nos enganariamos inteiramente se 19.taspiro-me para o, conecito de “followabilty” etm W. B. Galle, Philosophy ‘ul he Fikricar Understanding. Nova Ierque, Schoken ‘Books: 126d ‘Revervo para. segunda parte a discussao da (ese central dx obra de Gallic. sSzaber ue Rstodgraa tsar) @ cana especie do enero histo farrada (Sor) considerdssemos tal pensamento atemporal. © tempo da “tabu: la-e-do-tema”, para empregar uma expresso de Northrop Frye, €0 tempo narrativo que faz a mediacdo entre o aspecto episédico © oaspecto configurante. Em segundo lugar, a configuracdo da intriga impée & seqiiéncia indefinida dos incidentes “o sentido do ponto final” (para traduzir 0 titulo da obra de Kermode, The Sense of an Ending). Falamos ha pouco do “ponto final” como aquele do qual a historia pode ser vista como uma totalidade, Podemos agora acrescentar que é no ato de re-narrar, mais que no de narrar, que essa funcdo estrutural do encerramento pode ser discerni- da, A partir do momento em que uma histéria é bem conhecida —e €0 caso da matoria das narrativas tradicionais ou populares, assim como das crénicas nacionais relatando os acontecimentos fundadores de uma comunidade —. seguir a hist6ria é menos encerrar as surpresas ou as descobertas no reconhecimento do sentido vineulado a histéria considerada como um todo do que apreender os préprios episédios bem conhecidos como condu- zindo a este fim. Uma nova qualidade do tempo emerge dessa compreensao, Finalmente, a retomada da histéria narrada, governada como totalidade pelo seu modo de acabar, constitu uma alter nativa a representagao do tempo como se escoando do passado em direcdo ao futuro, segundo a metéfora bem conhecida da “flecha do tempo". E como se a recapitulacao invertesse a ordem dita “natural” do tempo. Lendo 0 fim no comeco € 0 comeco no fim, aprendemos também aler o proprio tempo as avessas, como a recapitulagao das condigées iniciais de um curso de agao nas suas consequéncias terminats. Em suma, 0 ato de narrar, refletido no ato de seguir uma hist6ria, torna produtivos os paradoxos que inquietaram Agos- tinho a ponto de reconduzi-lo ao siléncio. Resta-me acrescentar a anélise do ato configurante dois tragos complementares que asseguram a continuidade do pro- cesso que une mimese Ill a mimese Il. Mais visivelmente que os precedentes, esses dois tragos requerem, como se ver mais adiante, o suporie da leltura para serem reativados. Trata-se da esquematizagao ¢ do tradicionalismo caracteristicos do ato con- figurante, que tém, um e outro, uma relagdo especifica com 0 tempo. Note-se que constantemente avizinhamos 0 “considerar Junto”, caracteristico do ato configurante, do juizo segundo 106 Kant. Numa 6tica ainda kantiana, nao se deve hesitar aproximar a producao do ato configurante do trabalho da ima- ginagao produtora. Por esta deve-se entender uma faculdade nao psicologizante mas, antes, transcendental. A imaginacdo produtora ndo s6 nao € sem’ regra, mas constitut a matriz geradora das regras. Na primeira Critoa, as categorias do enten- dimento sao primeiro esquematizadas pela !maginagao produto- ra. O esquematismo tem esse poder, porque a imaginacdo produtora tem fundamentalmente uma funcao sintética. Bla liga © entendimento e a intuicdo, engendrando sinteses ao mesmo tempo intelectuais e intuitivas. A tessitura da intriga igualmente engendra uma inteligibilidade mista entre o que jé se chamou de a ponta, o tema, o "pensamento” da historia narrada e a apre- sentagao intuitiva das circunstancias, dos caracteres, dos epis6- dios ¢ das mudangas de fortuna que produzem o desenlace. assim que se pode falar de um esquematismo de funcao narra- tiva. Como qualquer esquematismo, este presta-se a uma tipo- Jogia do género daquela que, por exemplo, Northrop Frye elabora no seu Anatomia da Critica. Esse esquematismo, por sua vez, constitul-se numa his- t6ria que tem todas as caracteristicas de uma tradigdo. Entende- ‘mos por isso nao a transmissao inerte de um depésito J4 morto, mas a transmissao viva de uma inovagéo sempre suscetivel de ser reativada por um retorno aos momentos mais eriadores de fazer postico. Assim compreendido, o tradicionalismo enriquece a relagdo da intriga com o tempo com um traco novo, Aconstituicdo de uma tradig4o, com efeito, repousa sobre © jogo da inovacao e da sedimentagdo. E a sedimentacdo, para comecar por ela, que devem ser relacionados os paradigmas que constituem a tipologia da tessitura da intriga. Esses paradigmas sairam de uma historia sedimentada cuja génese foi obliterada, 20.Mas essa, pologa do abole o carter emnentemente temporal do {squematiamo, Ago ‘esquecemos © modo ‘pelo. qual. Kant relactonaa Sonstituigan do esquematismo com o que le chanta de determninacoes de {einpo a prion “Ox esquens, pols. nd eso alge alm de deterniinges ‘orden de eaicgorias, Concernem &'serte do tempo, as, contesdo do ieripo forde do tempat ac cnguro do temp ein rea he todog oe Obfetoe pogsves (Ciley da Razko Pura, A”{40, B 16d) ean 9b {econhece ds determinacoes do tempo que concorrem para a constituicao Sbjetive do mundo fisies. O esquethatlsmo da fungso narrativa implica dcleminacoes de um gener ov, ao precaaients as que acaba {aattara da thtriga. an ot 107

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