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Crônicas Da Tormenta Vol 3
Crônicas Da Tormenta Vol 3
titulo
TORMENTA
A Deusa no Labirinto
A Flecha de Fogo
A Joia da Alma
Trilogia da Tormenta, Vol. 1 — O Inimigo do Mundo
Trilogia da Tormenta, Vol. 2 — O Crânio e o Corvo
Trilogia da Tormenta, Vol. 3 — O Terceiro Deus
Crônicas da Tormenta, Vol. 1
Crônicas da Tormenta, Vol. 2
OUTRAS SÉRIES
Dragon Age: O Trono Usurpado
Espada da Galáxia
Profecias de Urag, Vol. 1 — O Caçador de Apóstolos
Profecias de Urag, Vol. 2 — Deus Máquina
com contos de
ANA CRISTINA RODRIGUES
BRUNO SCHLATTER
CARLOS ALBERTO XAVIER GONGALVES
DAVIDE DI BENEDETTO
EMERSON XAVIER
FRANCINE CÂNDIDO
GUILHERME DEI SVALDI
J. M. TREVISAN
J. V. TEIXEIRA
JOÃO VICTOR LESSA
KAREN SOARELE
LEONEL CALDELA
LEONEL DOMINGOS
LUCAS BORNE
MARCELA ALBAN
MARCELO CASSARO
MARLON TESKE
Porto Alegre
REMO DISCONZI
VINICIUS 2019
MENDES
créditos
Organização: Vinicius Mendes
Preparação de texto: Elisa Guimarães
Revisão: Elisa Guimarães e Vitor Joenk
Projeto gráfico: Dan Ramos
Ilustração de capa: Vinicius Pazian
Diagramação: Vinicius Mendes
Jurados do Concurso: Eva Andrade, Nelly Coelho, Rafael Cruz,
Lud Magroski, Vinicius Mendes e Rogerio Saladino
Artes Internas e Cartografia: Dan Ramos
Editor-Chefe: Guilherme Dei Svaldi
CDU 82-91(084.1)
2 CATÁBASE 12
Davide di Benedetto
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3 UM ESPETÁCULO PARA O DRAGÃO-REI 28
Karen Soarele
4 SEGREDO DE IRMÃOS 46
J. V Teixeira
5 FRAGMENTOS 66
Lucas Borne
SUMÁRIO
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12 MÃOS 228 3
Marlon Teske
13 TATUAGEM
Remo Disconzi
DE DRAGÃO VERMELHO 248
15 A TRIBO 278
Leonel Caldela
16 O TRANSMUTADOR 318
Carlos Alberto Xavier Gonçalves
17 DA GUERRA 328
Bruno Schlatter
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L ANNA,
Quando você encontrar esta carta, sei exatamente como estará.
Irritada, por não me encontrar ao seu lado na cama, esperando que
acorde primeiro para me despertar com seus beijos. Frustrada, por saber
que ignorei toda nossa discussão da noite anterior, mesmo depois de
todos os seus esforços. E triste, por perceber que talvez eu não retorne.
Saiba que no fundo do meu coração, uma grande parte de mim
concorda contigo. Neste canto tranquilo da minha alma, acredito que
meu lugar seria ao teu lado e só ao teu lado. Cuidando de nossa horta no
fundo de casa, ajudando nos ensinamentos das crianças da vila — Eillen
melhorou tanto no manejo da espada! Você percebeu? — e traçando planos
para um futuro cada vez mais curto.
Quando deixei para trás o bando com quem andava por masmorras
e tavernas e ouvi ofensas e promessas de desforra; quando abandonei o
sangue do campo de batalha e embainhei minha espada sagrada jurando
jamais tocá-la novamente, em troca do teu coração e só em troca dele, eu
dizia a verdade. Tua companhia me fez uma pessoa plena num mundo em
que tibares de ouro valem muito mais do que a vida de qualquer um, em
que diferenças entre raças ainda determinam conflitos armados. Pode soar
irônico, mas foi por isso que parti.
Se não fosse por nossa vida e tudo o que aprendi, talvez eu te obedecesse.
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O fim de uma batalha pode ser sempre confuso e Fintan ainda passaria
muitos e muitos dias lidando com as consequências daquela. Naquela manhã
junto a praia, entendeu que o rumo de uma guerra, ou até mesmo de uma
única batalha, é como a maré, vista pelos humanos. Vai e vem. Traz e leva.
A guerra trouxe o retorno triunfal de seu elemental, apenas para que a
criatura morresse lutando contra os magos puristas. Trouxe a invocação
da Patrulha Costeira no último momento, que ajudara suas forças, mas
desaparecera novamente, logo em seguida, para lutar contra piratas aliados
dos puristas no litoral.
Trouxe o retorno dos seus veteranos mais habilidosos, mas a morte
de muitos soldados estimados. Trouxe a captura valiosa de nobres puristas,
mas também a responsabilidade pelos refugiados goblins acampados em
seu feudo que, por terem sido escravos, não podiam simplesmente voltar
à Supremacia Purista. Trouxe a notícia do cerco da capital e a incerteza de
que Bielefeld ainda seria um reino amanhã. Em meio a tudo isso, Fintan
sabia que, não importava o quanto as coisas parecessem ruins, devia esperar
e ver o que a maré traria no dia seguinte.
Naquela noite, porém, havia apenas um lugar onde queria estar en-
quanto aguardava. Subiu com passos feridos as escadas do minarete.
Lá em cima, encontrou Thállata.
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Dramatis Personae
SHIVARA I, princesa herdeira de Trebuck
RECÉM-NASCIDO, filho de Shivara (sem ator)
ISABELA, sacerdotisa de Lena, a Deusa da Vida
SIR LEVI ALGHERULFF, cavaleiro da Ordem do Leão
Ato I, Cena I
O interior de uma masmorra abandonada, com paredes de pedra irregular.
Alguns monstros derrotados jazem pelo chão. Uma arca do tesouro aberta
revela moedas douradas em seu interior. SHIVARA deitada sobre um cober-
tor de viagem, trajando um vestido simples, cercada de peças de armadura
recém-despidas. RECÉM-NASCIDO embrulhado no colo. ISABELA ao lado.
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Entra Levi.
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Levi se ajoelha.
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Levi sai.
Isabela sai.
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Certa vez Spad recebeu como missão acabar com uma criatura conhe-
cida como Limo do Esgoto. Para realizar o objetivo, contou com a ajuda
de um grupo de goblins, sem imaginar que eles pertenciam ao Centésimo
Distrito, uma organização formada por moradores da Favela dos Goblins.
Spad manteve contato após esse incidente, realizando outros trabalhos
em conjunto. Se o líder da Companhia dos Irmãos suspeitasse, o meio-orc
provavelmente seria executado, uma vez que as duas organizações entravam
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— Não importa o que aconteceu, Spad, vocês têm uma história juntos,
precisa garantir que ela parta em paz, Spad — Mard disse, enquanto guiava
o Caçula pelos túneis até a casa de Richard. A goblin garantiu ao meio-orc
que daria um jeito de recuperar o corpo de Talita depois, sabia como ela
era importante para ele.
Chegando ao destino, Mard aceitou servir como distração para atrair
os seguranças e fazê-los saírem do seu posto. Spad esperou até a goblin
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FRAGMENTO TRÊS
Era mais um beco dos muitos becos que ele havia cruzado correndo
naquela noite sufocante. Tinha perdido a conta de quantos havia tentado,
seria o sétimo ou oitavo? Tanto faz, nenhum beco era capaz de despistar seu
perseguidor. Estava sendo perseguido desde cedo, e a única coisa que sabia
sobre a figura no seu encalço era que não era humana. Se movia de maneira
estranha, como se mancasse com as duas pernas, com o tronco duro, mas,
por outro lado, com movimentos rápidos e precisos. Era questão de tempo
até que aquele caçador implacável o alcançasse. E entre uma luta ou uma
conversa, aquele homem veterano optou pela segunda.
Entrou na taverna de um amigo, logo na passada pelo balcão avisou
discretamente que poderia haver problemas, e sentou em um canto ao
lado de uma janela aberta. Sob a mesa, ele armou uma pequena besta
e a deixou apontando para a cadeira à frente, onde esperava que seu
perseguidor fosse sentar.
Uma brisa suave entrou pela janela aberta e deu uma breve aliviada
naquele ambiente abafado. Moried abriu a camisa para deixar o vento refrescar
seu peito peludo, revelando uma corrente dourada. Também aproveitou para
enxugar o suor da testa com sua manga. Ficou a observar a familiar taverna,
mapeando e identificando os outros clientes, enquanto esperava o caçador
entrar a qualquer momento. A acolhedora taverna era pitoresca, no sentido
mais literal do termo, com inúmeros quadros adornando o lugar. A meia luz
que iluminava as obras provinha de inúmeras velas derretidas em cima de
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FRAGMENTO CINCO
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FRAGMENTO QUATRO
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FRAGMENTO UM
Dizem que tudo o que é bom dura pouco. Bom, no meu caso este pouco
foi muito, porque o tempo quase não passa, no que me compete, ele apenas
acontece. O que aconteceu, o que gerou essa fratura, foi um crime, uma
ruptura: fui estilhaçada em pedaços. Para ser mais precisa, cinco pedaços,
eu inclusa. E o que acontece quando uma consciência artificial contida em
uma gema de valor inestimável é quebrada em cinco pedaços? Como se a
minha mera presença neste mundo já não fosse algo estranho, algo mais
estranho ainda aconteceu.
Quando o martelo que me rompeu estava prestes a me atingir, a um
infinitésimo de distância, uma fração de tempo se condensou e cristalizou,
minha consciência reagiu à destruição iminente. Em um ato inconsciente e
desesperado, como uma reação antecipada, partes de minha personalidade
se separaram e se refugiaram nas fronteiras do meu corpo, uma gema de
beleza quase indescritível.
Quando o martelo que me rompeu finalmente me atingiu, a racha-
dura foi precisa e simétrica. O choque da fragmentação me deixou atordoada
tempo suficiente para não saber o que ocorreu logo depois e varreu da
minha memória o que antecedeu aquele momento. Não sei quem cometeu
a atrocidade, nem o porquê. Pode ter sido uma vingança contra meu último
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FRAGMENTO DOIS
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FRAGMENTO UM
Exausta pelo duelo e sem uma missão que a guiasse, Borealis levou
o corpo metálico pelo bosque por algumas horas. Parecia infinitamente
mais pesado do que o normal, como se estivesse empurrando uma bigorna.
Encontrou uma colina pedregosa, e por puro instinto, foi escalando até
as partes mais altas. Quando chegou próximo do cume, teve uma visão
panorâmica de toda a região. “Arton é tão bela…” a mente exausta só
conseguia pensar em termos vagos. O corpo sentou entre rochas e os
membros pesados foram soltos das suas amarras telecinéticas.
A luz do entardecer penetrou o corpo cristalino, reluzindo e preen-
chendo-a com uma luz cálida. Ela tentou com todas as forças imaginar como
seria tomar um banho de sol em um entardecer frio no outono. Em apenas
alguns minutos o sol se refugiou, a face de Azgher dando lugar ao manto
de Tenebra. Velhos conhecidos.
Aquele foi o crepúsculo do dia e também de Borealis.
As trevas a envolveram.
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“Enzo;
Pendura sete teandjs na minha conta.
Fica entre nós essa compra, ok?
Te dou uma groj gord um extra de dois tibares.
Ass. cap. Theóphilo Mormaço”
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NOTAS
1 Ao mesmo tempo, numa sala de guerra em Kannilar, jovens acólitos
entraram para socorrer o Áugure Marcial e Marechal de Keenn, que
estava desmaiado e coberto com os papéis das sondagens do dia, enquanto
um grunhido de porco rebatia pelas paredes da sala. Um fio de sangue
escapava das orelhas do velho sacerdote.
2 Provavelmente um galho ou emaranhado de folhas. Aquele era um canal
com reputação a zelar.
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Nos dias que se seguiram, o lefou continuou com sua rotina. Trabalhava
nas ruas de dia, se divertia na taverna à noite. A luta era em um mês.
— Você precisa treinar, Maquius. É o que gladiadores fazem — disse
Mila, certa noite. A taverna estava lotada, ela teve que gritar para ser ouvida
acima dos gritos e cantoria.
Maquius estava dançando no centro do salão comunal, e respondeu
sem sequer olhar para sua amiga.
— É? E desde quando você sabe tanto de gladiadores?
— Desde que você foi chamado para lutar contra um campeão! Já
preparei tudo. Venha comigo.
— Agora? Estou ocupado.
— Você não está ocupado, Maquius. Está dançando.
Revirando os olhos, Mila agarrou a mão do amigo e o puxou do abraço
da companheira dele. A única reação de Maquius foi resmungar enquanto a
garota levava-o para fora da taverna, até uma praça escondida pelos fundos
de vários prédios. Corym estava lá, sentado sobre uma pilha de sacas de areia.
— Chegou a hora, Maquius — o elfo deu um salto, girou no ar
e pousou no chão com uma mesura teatral. — Este é o fim de nossa
longa amizade. Será um embate tão triste quanto glorioso! Uma disputa
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Uma dor insistente nas costelas fez com que gemesse alto. Parecia que
estava sendo chutado por uma bota de bico fino. Se seus pesadelos já não
estivessem sendo preenchidos por seres desmortos de olhos vermelhos,
poderia achar que era um sonho ruim.
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No dia seguinte ao encontro com Jeisa, Bel e Peso Pluma foram parados
por uma patrulha na hora do almoço. Pelos cálculos da elfa, eles estavam
próximos do castelo que o bandido tomara como seu, então deveriam ser do
bando dele. Por isso, ao ver os guerreiros sujos e maltrapilhos se aproximando,
fez um sinal para o minotauro, que não reagiu.
— Alto! Quem são vocês? — O sujeito que falou parecia ser o chefe do
bando, pelo menos era o único que usava uma armadura completa, mesmo
que amassada e suja.
— Boa tarde, senhores — Peso Pluma respondeu, colocando o corpanzil
e os chifres afiados entre eles e Crisobel. O pelo castanho brilhava ao sol e
os bandidos recuaram um passo. — Minha senhora, a trovadora Crisobel
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Mesmo sob as luvas de tecido nobre, sentia que as mãos estavam sujas.
Não gostava em absoluto de estar ali embaixo, caminhando através
da poeira que permeava tudo. Tampouco lhe agradava o cheiro de mofo
e abandono que pairava naquele ar antigo, eternamente aprisionado no
coração do mundo. Não tinha escolha, porém. O exército havia dado uma
ordem. E ela iria cumpri-la, não importava quão ruins fossem as condições
ou quão terríveis pudessem ser as adversidades.
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Havia sido envolvida nisso à contragosto, mas sabia que tinha poucas
escolhas. Era uma goblin na Supremacia Purista. Divergir do exército
significava o fim. Contudo, tinha que admitir, os últimos dois anos foram
melhores do que todo o resto de sua vida.
Nenhum dos soldados de patente lhe chamava pelo nome, mas para seus
protegidos, ela era a Sabida. Era uma dos fundadoras do bando, respeitada
como líder por salvar a vida de dezenas na Planície do Longo Cerco: um
campo pedregoso de secura e morte onde os exércitos do reino soltavam
monstros, prisioneiros e quaisquer outros indesejados para servirem de alvo
no treinamento militar.
Ela própria foi uma destas, ainda que seu ódio contra humanos fosse
muito mais antigo. Tinha sido tirada da tribo quando era pouco mais que
uma criança. Os irmãos caíram pela espada de aventureiros desocupados de
Deheon, um bando atrás de ouro e fama. Na época, não entendeu o motivo
do ataque covarde e sem sentido. Mas acabou aprendendo.
Foram mortos apenas porque eram goblins.
Foi feita prisioneira, depois vendida como escrava, depois trocada por
um porco. O último senhor foi o pior. Era um fazendeiro solitário, numa
propriedade condenada pela miséria em algum lugar ao norte de Valkaria.
Estava sempre bêbado e furioso. Foi responsável, entre outras coisas, pelo
golpe que lhe custou uma orelha. Também foi ele quem a fez aceitar que
ali sua vida não valia nada. Que, um dia, acabaria morta por causa de uma
galinha perdida, uma telha solta ou um penico cheio.
Foi a sua primeira morte premeditada. Enforcou o sujeito durante a
noite, enquanto ele dormia. Talvez tenha gritado, de medo e alívio, mas
ninguém ouviu. Ficou ali olhando para o corpo do antigo dono até as forças
voltarem para as pernas. Então queimou a casa e fugiu. Correu sem rumo,
perdida pelos campos pedregosos e chegou à Planície do Longo Cerco. De
alguma forma, sobreviveu mais uma vez.
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Tudo era cíclico. Eram só Kyrlia e Zkar contra o mundo, como no início.
Era madrugada quando Kyrlia e Zkar se materializaram entre as tendas
da companhia purista estacionada nos arredores da cidade de Rhond. Kyrlia
guiou seu feitiço de teletransporte pelas brechas nas abjurações dos oficiais
magibélicos. Podia ver claramente todos os encantamentos e não foi difícil
contorná-los. Mas, uma vez dentro, alarmes soaram e os guardas começaram
a correr na direção deles. Foi tudo muito rápido.
Zkar desembainhou sua espada aberrante e a segurou com as duas
mãos, a lâmina virada para si. Encostou a ponta em seu abdômen, e então
a enterrou com toda a força. O lefou verteu sangue pela boca e seu corpo se
arqueou para trás em um espasmo, enquanto as vísceras saltavam para fora
do corte. Kyrlia detinha o avanço dos soldados com sua artilharia pirotécnica
enquanto Zkar passava pelo processo.
As formas da tatuagem de Zkar se inflaram e começaram a extrapolar
os limites do corpo do lefou, movendo-se em direção aos céus. Espiralando, a
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—P OIS NÃO?
— Ah... Er... Eu queria saber se vocês precisam de um ajudante ou
algo assim por aqui...
Ver o que estava por trás das cortinas e longe do palco, dos cenários, dos
confortáveis assentos de couro e da bela decoração em tons de vermelho e
dourado era bastante diferente do que o hynne esperava antes de conhecer
o Teatro do Círculo de Fogo por aquele ângulo. Ganhava esse nome pelas
cores na decoração, mas havia quem sugerisse que fosse apenas referência
a ser semelhante a um forno durante o verão.
— É tudo menos glamouroso do lado de cá, né? — disse a companhia
em tom jovial.
— Oi? Ah, não achei não senhora! Sinceramente, isso aqui é incrível!
— e sentiu um sorriso se alargar no rosto.
— “Senhora” não que eu não sou sua mãe! — E a jovialidade na voz
se tornou irritação estridente — Me chame de Aillinka, que eu não sou tão
velha assim. E não adianta vir com esse papinho de puxa saco. Assistente de
palco, se contratado, leva dois Tibares por mês. Certo, senhor? — concluiu
anã, enquanto alisava a própria barba ruiva.
E o guiou por corredores mal iluminados cheios de caixas, objetos
de cena velhos variados e algumas araras com figurinos. Nas paredes, havia
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Entrei no quarto de sir Randall Ghast. Estava frio, vazio e escuro, como
sempre. Outros tinham medo de entrar lá, mas eu me senti muito mais
confortável ali do que no santuário de Thallen Devendeer.
Meu instrutor estava de costas.
— Entre e feche a porta — ele disse.
Obedeci. Fiquei parado, esperando.
— Ouvi dizer que você foi aos aposentos do Grão-Mestre.
— Sim, sir.
— Viu Thallen Devendeer?
— Sim.
— Conversou com ele?
— Sim, sir.
— E o que o fundador dos Cavaleiros de Khalmyr falou para uma
criança orc?
Engoli em seco.
— Ele disse que eu devo ficar no castelo até me sagrar cavaleiro. Que
só então poderei tomar a decisão de sair ou continuar aqui.
— O que mais?
— Que eu sou um orc bom.
— O que mais?
— Que não devo me ajoelhar.
Ele se virou devagar. Eu havia chegado ao limite de meu instrutor.
Não sabia qual daquelas frases seria o estopim, mas alguma seria. Sempre
era. Ele me olhou com os olhos escuros, o rosto cheio de cicatrizes. Fez
um esgar de nojo.
— Disse que você não deve se ajoelhar?
Não respondi.
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Fui dormir com as costas em carne viva. Por alguma razão, a magia de
cura de meu instrutor não funcionou naquela noite. Ele rezou a Khalmyr e
não foi atendido. Segurou-me pelos ombros, olhou em meus olhos e falou
que eu deveria esconder aqueles ferimentos. Explicou que estávamos fazendo
o maior sacrifício pelo Deus da Justiça, abrindo mão de sua própria bênção
para fazer seu trabalho.
Eu e meu mestre, apenas nós dois sozinhos, éramos as ferramentas
do ódio de Khalmyr.
Caí na cama, pensando que estaria ferido e frenético demais para
dormir, mas a exaustão tomou conta de mim em seguida. Só tive tempo
de tirar os lençóis e o travesseiro, para dormir na palha nua, e fui tomado
pela inconsciência quando me deixei cair.
Não sei quanto tempo se passou. Ainda não estava claro quando acordei
com batidas fortes em minha porta. Comecei a abrir os olhos e vi um
cavaleiro-monge surgir em meu catre, gritando.
— Alarme! Alarme! Pegue sua espada, estamos sob ataque!
Eu me levantei de um salto, mas minhas costas estavam duras de
sangue seco e feridas. Grunhi e caí de joelhos no chão. O monge me olhou
assustado, fez menção de ir até mim para me socorrer, mas afastei-o com
um safanão. Fiquei de pé nas pernas cansadas, achei minha espada perto de
meu baú, tirei-a da bainha. Ainda estava suja.
— Vá com os outros escudeiros! — ordenou o monge. — Corra, os
orcs estão aqui!
É claro que estavam.
Saí de meu catre para ouvir e enxergar o caos nos corredores. Cavaleiros
desciam as escadas, alguns de armadura, outros com apenas calças e túnicas.
As trombetas das sentinelas soavam de novo e de novo. Tudo era iluminado
pela luz bruxuleante de archotes e lampiões, eu não conseguia discernir os
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E mais uma vez não fui punido. Sir Randall tinha razão.
Ele foi expulso da Ordem. Não executado, mas excomungado e expulso.
Como se empurrar um problema para longe o fizesse desaparecer. A Ordem
de Khalmyr era mesmo uma piada.
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A espada que me sagrou cavaleiro não foi forjada pelos ferreiros santos
da Ordem de Khalmyr. Foi uma lâmina barata, comprada numa aldeia,
com o dinheiro que ganhamos ao longo de anos vendendo peles e carne de
animais. Cada um de nós tinha uma. As duas eram idênticas.
Mas era uma espada sagrada, no verdadeiro sentido da palavra, porque
era empunhada pelo único real guerreiro do Deus da Justiça.
Senti seu toque frio em meu ombro. Eu estava sem camisa, é claro.
Estávamos na frente da cabana que eu aprendera a amar. Nenhum lugar
era mais santo. Eu estava ajoelhado sobre um só joelho, de olhos fechados,
avassalado pela solenidade do momento. Era noite escura, eu tinha passado o
dia inteiro em jejum, meditação e autoflagelação. Meu sangue escorria farto.
— Hoje começa uma nova tradição — disse Randall Ghast. — Você
tem grande honra, Arthus. Você não será sagrado com as palavras falsas
que eu mesmo ouvi. Não fará um juramento vazio e desprezado pelos
deuses. Arthus, você, um orc, é o primeiro cavaleiro de Arton. Faça jus a
essa responsabilidade.
Não consegui responder mais que um “eu juro” com um fio de voz.
— Você aceita sua condição de pecador maligno, Arthus? Aceita que
nasceu da maldade, e que a maldade habita sua alma, sendo sempre alvo
do desprezo de Khalmyr?
— Aceito, sir.
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Martelar.
ARTELAR. SOLDAR. ENCANTAR. ACOPLAR A PEÇA.
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O MUNDO ACABOU.
O céu, que ninguém poderia dizer ter sido azul um dia, morria
em fogo e fumo. Chamas espiralando contra fuligem. Ondas ardendo
através da treva, nascendo no horizonte ondulante para escorrer até o
inferno acima. Fogo imenso, vagaroso. Sem motivo para pressa. Sem
mais nada a queimar.
Não havia sido sempre assim. Não era um mundo ardente, como outros
que se sabe existir além do plano material. Não um reino de deuses malignos,
infestado de diabos e demônios em sua guerra sangrenta. Tampouco as
nações planares dos efreeti, seus palácios magníficos às margens dos rios
e mares de lava. Ou ainda o Plano Elemental do Fogo, onde vida e chama
são o mesmo, onde todas as criaturas são feitas de labareda. Lugares assim
existem desde a criação do universo. São naturais.
Mas não aqui. Na paisagem tremulando de quente, montanhas antigas
esfarelam em pó. Fundo seco de lugares onde água correu. Areia liquefeita
em desertos vítreos. Campos e florestas desmanchando em cinzas, sopradas
pelo ar — que nem poderia mais ser chamado assim, roubado de tudo que
seres vivos necessitam, agora árido, espesso, quase um caldo.
Por toda a volta, sinais da terra que antes havia sido. Não muito antes.
Dias? Horas?
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