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O ADMINISTRATIVE CONSTITUTIONALISM:

RESGATAR A CONSTITUIÇÃO
PARA A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

Ana Raquel Gonçalves MONIZ

§ 1.º Introdução

As relações entre Direito Constitucional e Direito Administrativo,


enquanto ramos jurídico-dogmáticos públicos, têm constituído uma das pre-
ocupações presentes na obra científica de José Joaquim Gomes Canotilho (1).
Compreende-se que, no cenário actual, a emergência do fenómeno das
«redes normativas» ou da «normatividade em rede» torne especialmente apete-
cível o tratamento das “questões jurídico-metodológicas suscitadas pela produ-
ção multinível do direito”, sobre as quais o Homenageado também já se debru-

(1)
Cf., por excelência, Gomes CANOTILHO, «O Direito Constitucional Passa;
O Direito Administrativo Passa Também», in: Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor
Rogério Soares, Studia Iuridica 61, Boletim da Faculdade de Direito/Coimbra Editora,
Coimbra, 2001, pp. 705 e ss. O problema das relações entre Direito Constitucional e
Direito Administrativo perpassa, porém, noutras obras do nosso Professor: atente-se, v. g.,
na temática da vinculação da Administração aos direitos, liberdades e garantias ou da
fiscalização da constitucionalidade de actos administrativos (Direito Constitucional e
Teoria da Constituição, 7.ª ed., Almedina, Coimbra, 2003, pp. 443 e ss., 939 e ss., res-
pectivamente), da reserva de Administração («Anotação ao Acórdão do Tribunal Consti-
tucional n.º 1/97 — Processo n.º 845/96», in: Revista de Legislação e de Jurisprudência,
ano 130.º, Junho/Julho 1997, pp. 48 e ss., esp.te pp. 82 e s.), da existência de uma reserva
política do Executivo face aos poderes da Assembleia da República («Anotação ao Acór-
dão do Tribunal Constitucional n.º 24/98 — Processo n.º 621/97», in: Revista de Legisla-
ção e de Jurisprudência, n.os 3887/3888, ano 131.º, Julho/Julho 1998, pp. 50 e ss., esp.te
pp. 91 e ss.).

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çou ex professo (2). Naturalmente que não podemos perder de vista esta realidade,
que, aliás, interfere igualmente na inter-acção entre o nível constitucional e o
nível administrativo, quer sob a óptica da abertura do sistema a novos esquemas
regulativos (supra-nacionais e mesmo extra-estaduais), quer sob a perspectiva
do surgimento de um constitucionalismo global ou um pluralismo constitu-
cional (3): recorde-se, pois, que qualquer alusão ao problema da constituciona-
lidade implica hoje uma mobilização da «teoria da interconstitucionalidade»,
a qual “estuda as relações interconstitucionais de concorrência, convergência,
justaposição e conflitos de várias constituições e de vários poderes constituintes
no mesmo espaço político” (4). No mesmo sentido concorre também a pro-
gressiva «des-nacionalização» do Direito Administrativo (5) e a ultrapassagem
da nota da nacionalidade como característica deste ramo jurídico, em direcção
à respectiva europeização e internacionalização (6).
Sem esquecermos este cenário — pano de fundo de qualquer incursão
hodierna nas temáticas jus-publicistas — importa, neste momento, e socor-
rendo-nos da mobilização de uma das tendências recentes do Direito Público

(2)
Cf., v. g., Gomes CANOTILHO/Suzana Tavares da SILVA, «Metódica Multinível:
Spill-Over Effects e Interpretação Conforme o Direito da União Europeia», in: Revista de
Legislação e de Jurisprudência, ano 138.º, Março/Abril 2009, pp. 182 e ss.; Gomes CANO-
TILHO/Jónatas MACHADO, «Metódica Multinível: Acordos Internacionais do Estado Portu-
guês com Comunidades Religiosas», in: Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 139.º,
Maio/Junho 2010, pp. 254 e ss. (embora, no caso, além de uma questão de «internorma-
tividade constitucional e internacional», se tenha em consideração também um problema
de «interjusfundamentalidade» — op. cit., p. 258).
(3)
Na acepção de ANTHONY/AUBY/MORISON/ZWART, «Values in Global Admin-
istrative Law: Introduction to the Collection», in: ANTHONY/AUBY/MORISON/ZWART (eds.),
Values in Global Administrative Law, Hart Publishing, Oxford/Portland, 2011, pp. 8 e s.
Sobre o constitucionalismo global, cf. também já Gomes CANOTILHO, Direito…, cit.,
pp. 1369 e ss.
(4)
Gomes CANOTILHO, “Brancosos” e Interconstitucionalidade — Itinerários dos
Discursos sobre a Historicidade Constitucional, 2.ª ed., Almedina, Coimbra, 2008, p. 266,
louvando-se em Paulo RANGEL, «Uma Teoria da Interconstitucionalidade (Pluralismo e
Constituição no Pensamento de Francisco Lucas Pires)», in: Themis, n.º 2, ano I, 2000,
pp. 127 e ss.
(5)
CASSESE, «Tendenze e Problemi del Diritto Amministrativo», in: Rivista Trimes-
trale di Diritto Pubblico, n.º 4, 2004, p. 902.
(6)
Para a contraposição entre nacionalidade e europeização/internacionalização, cf.
CASSESE, «Le Trasformazioni del Diritto Amministrativo dal XIX al XXI Secolo», in: Rivista
Trimestrale di Diritto Pubblico, n.º 1, 2002, pp. 31 e 34.

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anglo-saxónico (maxime, norte-americano), debruçar-nos sobre o alcance que


a convocação da «Constituição administrativa» (7) assume relativamente ao
dia-a-dia do agere administrativo, visando insuflar um novo fôlego às exigências
de sentido emergentes do princípio da constitucionalidade e da subordinação
administrativa a este último.

§ 2.º O administrative constitutionalism: o Direito Constitucional não


pode ser um «direito de restos» (8)

O «constitucionalismo administrativo» constitui uma particular expressão do


princípio da constitucionalidade da Administração, que, no seio da doutrina
anglo-saxónica (em especial, norte-americana), defende o “acesso directo” à Cons-
tituição pela Administração, cometendo a esta última responsabilidades activas no
que tange à interpretação e implementação dos princípios e imperativos constitu-
cionais (9). Trata-se de uma concepção que, visando sublinhar o radical democrá-
tico e a legitimação do poder administrativo (10) e intercedendo sobre as questões
atinentes ao papel (aos papéis) desempenhado(s) pela Administração (11), toca a

(7)
Recortando o conceito de «Constituição administrativa», cf. Vital MOREIRA,
«Constituição e Direito Administrativo (A “Constituição Administrativa” Portuguesa)», in:
Ab Uno Ad Omnes, Coimbra Editora, Coimbra, 1998, p. 1141.
(8)
A fórmula «direito de restos» (ou «direito residual») deve-se a Gomes CANOTI-
LHO, “Brancosos”…, cit., pp. 185 e 256, aludindo, no quadro da polissemia que a expressão
encerra, a um «direito do resto do Estado», «direito do resto do nacionalismo jurídico»,
«direito dos restos da auto-regulação» e «direito dos restos da regionalização».
(9)
LEE («Race, Sex, and Rulemaking: Administrative Constitutionalism and the
Workplace, 1960 to the Present», in: Virginia Law Review, vol. 96, 2010, pp. 801, 806
e s.) sugere justamente que o punctum saliens do administrative constitutionalism não reside
na afirmação da subordinação administrativa à Constituição, funcionando esta como limite
(negativo) da actuação da Administração, mas antes na autonomia da interpretação e da
implementação administrativas da Constituição e no modo como estas duas tarefas se
reflectem na ideia do government by Constitution.
(10)
Cf. FISHER/HARDING, The Precautionary Principle and Administrative Constitu-
tionalism: The Development of Frameworks for Applying the Precautionary Principle, Univer-
sity of Oxford — Faculty of Law Legal Studies Research Paper Series n.º 31, Oxford, 2006
(http://papers.ssrn.com/Abstract=908644), p. 8. V. também FISHER, «Food Safety Crises
as Crises in Administrative Constitutionalism», in: Health Matrix — Journal of Law
Medicine, vol. 20, 2010, pp. 60 e s.
(11)
Cf. FISHER, Risk Regulation and Administrative Constitutionalism, reimp., Hart
Publishing, Oxford/Portland, 2010, p. 37.

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dinâmica das relações entre poderes (poder constituinte e poderes constituídos,


e, dentro destes, poder legislativo, poder judicial e poder administrativo), das
relações entre «fontes de direito» (Constituição e lei) mobilizadas pela Adminis-
tração e das relações entre ramos jurídico-dogmáticos (Direito Constitucional e
Direito Administrativo, tomado este em sentido estrito, como ordinary admi-
nistrative law) (12).
A interferência das normas constitucionais na vida administrativa decorre,
desde logo, da existência de medidas necessárias para garantir a conformidade
constitucional das actuações da Administração (13). Por outro lado, a compa-
tibilidade entre a acção administrativa e a Constituição pode ainda ser assegu-
rada através da utilização, pela Administração, do cânone interpretativo desig-
nado como constitutional avoidance (ou, simplesmente, avoidance canon) (14),

(12)
No contexto da reflexão sobre o sentido do administrative constitutionalism,
FISHER (Risk…, cit., p. 26) refere-se ainda à “relação simbiótica entre o Direito Administra-
tivo, a Administração Pública e os problemas que a Administração Pública coloca”.
(13)
Atente-se, paradigmaticamente, nas Miranda rules, que consistem nas quatro
advertências a formular pelos órgãos policiais aquando da detenção de suspeitos. Tal desig-
nação remonta ao Acórdão «Miranda v. Arizona», de 13.06.1966 (in: United States Reports,
vol. 384, 1966, pp. 436 e ss., esp.te pp. 443 e s., 478 e ss.), onde o Tribunal, invocando a
necessidade de uma conduta (constitucionalmente) exemplar por parte dos poderes públi-
cos, chamou a atenção para a necessidade de fazer valer os direitos fundamentais perante
actuações demasiado zelosas dos órgãos policiais, em total consonância com a vitalidade da
Constituição. Importa, todavia, assinalar, a este propósito, que as designadas Miranda rules,
embora formuladas pela Supreme Court, tinham na sua base práticas já seguidas pelo FBI
(cf. a transcrição das perguntas dirigidas, pelo Solicitor General, ao Director do FBI e as
respectivas respostas a pp. 484 e ss.)
(14)
Embora com origem em jurisprudência anterior, o avoidance canon aparece
formulado com maior detenção na Declaração de Voto do Justice BRANDEIS (proferida no
âmbito do Acórdão da Supreme Court «Ashwander v. Tennessee Valley Authority», de
17.02.1936, in: United States Reports, vol. 297, 1936, pp. 346 e s.), que o sintetiza em sete
proposições: (i) o Tribunal não se pronunciará sobre a constitucionalidade de uma lei em
processos onde não exista um verdadeiro conflito entre as partes; (ii) o Tribunal não ante-
cipará qualquer questão de constitucionalidade, antes de apreciar a necessidade de a decidir;
(iii) o Tribunal não formulará uma regra constitucional mais ampla que a requerida para
a decisão do caso concreto; (iv) o Tribunal não se pronunciará sobre a questão de consti-
tucionalidade suscitada, se for possível decidir o caso com outro fundamento; (v) o Tribu-
nal não se pronunciará sobre a validade de uma norma que não ofende a esfera jurídica
daquele que invoca a inconstitucionalidade; (vi) o Tribunal não se pronunciará sobre a
constitucionalidade de uma norma antes de verificar quais os benefícios ou as vantagens

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desde logo, no plano que leva as autoridades administrativas a dar um “segundo


olhar” (second-look rule) às normas e a “evitar” interpretações da statute law que
impliquem a adopção de actuações vulneradoras de normas e princípios cons-
titucionais (15). Neste sentido, a doutrina em análise leva ínsita a autonomia

que a sua decisão produz no caso concreto; (vii) quando for suscitada a questão da validade
de uma norma (constante de um acto do Congresso), e ainda que existam sérias dúvidas
sobre a respectiva constitucionalidade, o Tribunal averiguará antes se não é possível efectuar
uma «construção da norma» (em suma, uma interpretação da norma) que evite a incons-
titucionalidade.
Sobre os complexos raciocínios emergentes da utilização deste cânone, cf. VITARELLI,
«Constitutional Avoidance Step Zero», in: The Yale Law Journal, vol. 119, 2010, pp. 837
e ss. Em geral, sobre a constitutional avoidance doctrine, cf. as sínteses de JELLUM, Mastering
Statutory Interpretation, Carolina Academic Press, Durham, 2008, pp. 77 e ss., 235 e ss.
(em termos de sistematização interpretativa, a Autora localiza esta doutrina no momento
da avaliação dos motivos para evitar, dentro dos sentidos possíveis da letra do statutory
instrument, o mais corrente, preferindo-lhe outro — cf. também op. cit., p. 259), e de
RODGERS, United States Constitutional Law: An Introduction, McFarland, Jefferson, 2011,
p. 93. Perspectivando a utilização da constitutional avoidance quer no plano do poder
judicial, quer ao nível da Administração, cf. MORRISON, «Constitutional Avoidance in the
Executive Branch», in: Columbia Law Review, n.º 6, vol. 106, Outubro 2006, pp. 1189
e ss., em especial, pp. 1202 e ss., e 1217 e ss., respectivamente. A mobilização do avoidance
canon situa-se no contexto (mais amplo) da “fuga” (sobretudo, jurisdicional) às questões
constitucionais na decisão dos casos concretos — alvo de críticas já no direito norte-ame-
ricano: v. GOELZHAUSER, «Avoiding Constitutional Cases», in: American Politics Research,
n.º 3, vol. 39, 2011, pp. 483 e ss.
(15)
Atente-se, v. g., na situação subjacente ao Acórdão «Zadvyvas v. Davis», de
28.06.2001 (in: United States Reports, vol. 533, 2001, pp. 678 e ss.). Em causa estava a
detenção de um cidadão estrangeiro (Kestutis Zadvydas) — filho de pais lituanos, nascido
num campo de deslocados alemão e casado com uma cidadã da República Dominicana —
a aguardar deportação (desde 1994); uma vez que, por diversos motivos, nem a Lituânia,
nem a Alemanha, nem a República Dominicana aceitaram a deportação de Zadvyvas para
os respectivos territórios nacionais, o Governo manteve-o detido para além do prazo de
noventa dias contemplado pelo legislador e, com toda a probabilidade, assim ficaria inde-
finidamente. Em situação idêntica se encontrava Kim Ho Ma (detido deste 1998), cidadão
do Cambodja (cujo processo foi decidido em apenso ao anterior). A questão de constitu-
cionalidade reside na interpretação da lei (Post-removal-period detention statute), na parte
em que prevê que, após o decurso daquele prazo, o Governo pode (may) continuar a deter
um estrangeiro que se mantenha em território estadunidense ou libertá-lo sob vigilância.
Invocando o cânone da constitutional avoidance (pp. 689 e s.), a Supreme Court entendeu
que aquela disposição, embora admita a detenção dos cidadãos estrangeiros para lá dos
noventa dias, não permita uma detenção por um período indefinido; ao não interpretar

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interpretativa das autoridades administrativas relativamente à Constituição,


ou, na fórmula expressiva de Sunstein, “o poder do executivo para dizer o
direito” (16).
O momento mais relevante desta posição dogmática respeita à constitutio-
nal implementation — e numa das dimensões desta «implementação constitu-
cional» reside o cerne do movimento em análise. Em primeira linha, este
desiderato revela-se alcançável com o necessário respeito que as medidas admi-
nistrativas devem ter pela Constituição. Nesta acepção, sublinha-se que as
entidades administrativas estão numa posição privilegiada (face aos tribunais)
para, dentro do espaço de discricionariedade (normativo-regulamentar ou
decisória) que lhes for conferido, adoptar as soluções que evitem a violação de
normas e princípios constitucionais; efectivamente, ao contrário do que sucede
com os tribunais — vinculados à fiscalização a constitucionalidade de uma
solução já adoptada —, a Administração encontra-se na posição de, ex ante,
ao escolher as soluções, evitar a ofensa da Constituição (17). Para os tribunais,
e a posteriori, numa perspectiva de controlo muito próxima do modelo Marbury,
tratar-se-á apenas de apreciar se as medidas em causa se revelam (ou não)
constitucionalmente adequadas, tarefa que se encontra facilitada em virtude de
as exigências constitucionais colocadas à actividade administrativa se encontra-
rem já assumidas e densificadas pelo legislador, transformando o designado
ordinary administrative law em veículo dos valores constitucionais.
Todavia, e chegamos agora à segunda dimensão da constitutional imple-
mentation, mais do que um dever de respeitar a Constituição, na acepção

desta forma a Post-removal-period detention statute, o Governo violou a Constituição (desig-


nadamente a Due Process Clause). Relativamente ao argumento de que o Congresso tem
plenos poderes (plenary power) para emanar a legislação atinente à imigração e que o Exe-
cutivo tem uma margem ampla de decisão nesta matéria, o Tribunal acentua que tais
poderes se encontram sempre constitucionalmente limitados (p. 695). Destarte, a ambi-
guidade inerente ao vocábulo may não deveria ter sido interpretada no sentido de conceder
às autoridades administrativas competentes uma discricionariedade ilimitada (p. 697), mas
antes, de molde a evitar uma ameaça constitucional, com o significado de que, a partir do
momento em que a deportação deixa de se afigurar razoavelmente previsível, a detenção
passa a não estar autorizada (p. 699).
(16)
SUNSTEIN, «Beyond Marbury: The Executive’s Power to Say What the Law Is»,
in: The Yale Law Journal, vol. 115, 2006, pp. 2580 e ss.
(17)
Cf. METZGER, «Ordinary Administrative Law as Constitutional Common Law»,
in: Columbia Law Review, vol. 110, 2010, pp. 527 e s.

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negativa, de impedir a violação de normas constitucionais, o administrative


constitutionalism exige uma postura positiva e, sobretudo, activa no dever de
ter em conta a Constituição no exercício da sua actividade, ou, se se preferir,
no dever de implementar as opções constitucionais (constitutional enforce-
ment) (18). A um primeiro nível, esta implementação pode resultar da adopção
de mecanismos intra-administrativos de auto-controlo (decorrentes da organi-
zação interna de uma entidade ou da emanação de normas regulamentares)
que, orientando o exercício da discricionariedade, (auto)vinculem a Adminis-
tração a agir de forma constitucionalmente comprometida (19). Num plano
mais aprofundado, e sem deixar de acentuar o imediato relevo que esta con-
cepção reveste no contexto da concretização de políticas públicas, a doutrina
norte-americana chega a encará-la sob a óptica da Administração como defen-
sora da Constituição (20), sublinhando que, em comparação com os tribunais,
aquela se encontra em condições muito mais favoráveis para tutelar os valores
constitucionais: com efeito, adoptando uma postura pró-activa na definição de
políticas no quadro da regulação federal, as entidades administrativas assu-
mem-se como primeiras instâncias do controlo (da aplicação) daquela regulação,

(18)
Cf. MORRISON, «Constitutional Avoidance…», cit., pp. 1226 e s., concebendo
certas utilizações do cânone da constitutional avoidance como mecanismos para implemen-
tar normas e valores constitucionais e, inclusivamente, como uma forma de controlo da
constitucionalidade de actos do Congresso. V. também METZGER, «Ordinary Administra-
tive Law…», cit., pp. 497 e 524.
(19)
BARKOW («Institutional Design and the Policing of Prosecutors: Lessons from
Administrative Law», in: Stanford Law Review, vol. 61, 2009, pp. 888 e ss.) aponta como
exemplo as condições do exercício do poder sancionatório pelas agências, e do modo como
as mesmas procuram concretizar o princípio da imparcialidade e a due process clause, numa
perspectiva concomitantemente organizatória e normativa. A importância da internal law
of Administration (permeabilizada pelas ideias de checks and balances e da internal respon-
sability) neste contexto apresenta-se como uma percepção que remonta já ao início do
século XIX — v. MARSHAW, «Reluctant Nationalists: Federal Administration and Adminis-
trative Law in the Republican Era, 1801-1829», in: The Yale Law Journal, vol. 116, 2007,
pp. 1737 e s.
(20)
Atente-se no caso descrito por LEE («Race…», cit., pp. 800 e s., 811 e ss., 870
e ss.), relativamente à actuação da Federal Communications Commission (FCC) que, na
sequência de posições que vinha propugnando desde os anos ’60, passou, a partir de 1977,
a denegar licenças às estações que adoptassem práticas de emprego discriminatórias (nome-
adamente, em função da raça ou do sexo), defendendo que a Quinta Emenda a obrigava
a exigir o respeito pelo igualdade no acesso ao emprego — posição que, sob certos aspectos,
contrariava a jurisprudência da Supreme Court sobre a affirmative action.

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podendo ponderar (to balance) opções políticas diversas (ponderação que,


naturalmente, escapa ao poder judicial), e devendo escolher aquela que melhor
satisfaça os valores constitucionais em presença, sem que, por sua vez, tal sig-
nifique o afastamento das disposições legislativas sobre a matéria.

§ 3.º Administrative constitutionalism, popular constitutionalism e «socie-


dade aberta dos intérpretes da Constituição»

O entendimento segundo o qual Administração deve ter “acesso directo


à Constituição” exige que se ultrapasse a compreensão de que apenas os tribu-
nais são os adequados intérpretes das normas constitucionais. Esta ideia
encontra uma tradução radical na designada teoria do «constitucionalismo
popular» (popular constitutionalism) ou do «direito constitucional popular»
(populist constitutional law) (21), de acordo com a qual a supremacia judicial
— que substituiu a soberania popular — deve agora ceder lugar (pelo menos,
em parte) ao povo, que recupera a autoridade na construção e na defesa da
Constituição (22). Louvando-se no momento We The People, trata-se de levar
a peito a concepção de universalidade subjacente à afirmação de Lincoln
segundo a qual o País, com as suas instituições, pertence ao povo (23) — em
total consonância com as raízes da constituição norte-americana. Compreen-

(21)
O administrative constitutionalism e o popular constitutionalism comungam da
característica de ambos consubstanciarem forma de extra-court constitutionalism. Cf., v. g.,
LEE, «Race…», cit., pp. 807 e ss. (que alude ainda a uma terceira: o departmentalism, que
aborda o problema da implementação constitucional no âmbito das relações entre Congresso
e Presidente).
(22)
Cf. a síntese de POZEN, «Judicial Elections as Popular Constitutionalism», in:
Columbia Law Review, vol. 110, 2010, pp. 2048 e s., 2053 e ss. Adoptando uma perspec-
tiva muito crítica, v. CHEMERINSKI, «In Defense of Judicial Review: The Perils of Popular
Constitutionalism», in: University of Illinois Law Review, n.º 3, 2004, pp. 674 e ss.
Dos escritos doutrinais sobre a matéria decorre uma realidade insusceptível de trans-
posição integral para o direito português. Com efeito, toda a construção teórica pressuposta
por esta corrente assenta, em termos algo paradoxais, quer na ausência de reflexão crítica
sobre as interpretações da Constituição efectuadas pelos tribunais, em especial, pela Supreme
Court (à qual acaba por pertencer o poder de “dizer a Constituição”), quer no facto de as
(mais relevantes) decisões judiciais proferidas em sede de judicial review espelharem, em
regra, as posições político-sociais dominantes da época.
(23)
Assim, TUSHNET, Taking the Constitution Away from the Courts, Princeton
University Press, Princeton, 1999, p. 199.

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dem-se as dificuldades pressupostas por esta corrente: atente-se, desde logo, na


própria complexidade que suscita a noção de povo (24). Por outro lado, levada
ao seu extremo, a mencionada doutrina encerra uma falácia, uma vez que
imediatamente descobre não só a impossibilidade de que todos e quaisquer
cidadãos assumirem a interpretação e implementação das normas constitucio-
nais (não apenas por razões de impossibilidade fáctica, mas também por ausên-
cia de preparação científica), mas também a inexistência de mecanismos insti-
tucionais que viabilizem uma aproximação entre o povo e a Lei Fundamental,
no momento da vigência desta última (25).
Sem que se defenda os resultados práticos a que o popular constitutionalism
tende (desde a reacção inusitadamente feroz contra a “supremacia judicial”,
passando pela eliminação (26) ou, pelo menos, a atenuação da judicial review,
pela recusa do valor reconstitutivo da jurisprudência, até à eleição dos juízes (27)),
a ideia de transparência e alargamento das entidades responsáveis pela defesa
da Constituição revela-se prestável para viabilizar a interacção entre os cidadãos
e os poderes públicos no cumprimento da tarefa que a estes cabe de realizar e
concretizar opções constitucionais, inclusivamente ao nível administrativo (28).

(24)
Sobre as perplexidades da noção de povo (mormente a propósito do confronto
entre o populus e a plebs), cf. Luís Menezes do VALE, Racionamento e Racionalização no
Acesso à Saúde: Contributo Para uma Perspectiva Jurídico-Constitucional, polic., Coimbra,
2007 (versão revista para publicação e consultada por gentileza do Autor, a quem agrade-
cemos), Parte II, Capítulo 2, n.º V, ponto 5, nota 854 (pp. 298 e s.).
(25)
Cf. PETTYS, «Popular Constitutionalism and Relaxing the Dead Hand: Can the
People Be Trusted?», in: Washington University Law Review, vol. 86, 2008, pp. 339 e ss., 321,
e 354, n. 191. Na identificação dos problemas do popular constitutionalism, o Autor adopta,
porém, uma perspectiva oposta à subjacente ao texto: não se trata de apresentar deficiências
do movimento, mas de corrigir imperfeições do pensamento — assim sucede, v. g., com a
desconfiança relativamente aos cidadãos para a concretização das normas constitucionais, com
fundamento na sua não preparação e na inerente emotividade das massas, que o Autor, na
senda de Unger, apelida como o dirty little secret das democracias (op. cit., pp. 339 e 341).
(26)
V. TUSHNET, Taking the Constitution…, cit., pp. 154 e ss., esp.te pp. 163 e ss.
(27)
Assim, POZEN, «Judicial Elections…», cit., pp. 2049 e s. Numa reflexão crítica,
mas ainda sob a óptica do popular constitutionalism e num diálogo com o último Autor, cf.
MANSKER/DEVINS, «Do Judicial Elections Facilitate Popular Constitutionalism; Can They?»,
in: Columbia Law Review, vol. 111, 2011, pp. 27 e ss.
(28)
Em sentido próximo, cf. METZER, «Ordinary Administrative Law…», cit.,
pp. 529 e s. A propósito da ênfase colocada na promoção da intervenção dos cidadãos nas
decisões administrativas (alcançada, por vezes, através de um procedimento deliberativo
consensual e dialógico, mais adequado para dar resposta à complexidade e à flexibilidade

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Este entendimento carece de uma ineliminável articulação com o sentido último


do princípio da participação, enquanto mecanismo propiciador da aproximação
entre os poderes públicos (administrativos) e os cidadãos e, enquanto tal, da
recolha de elementos que permitam àqueles uma adequada e mais eficiente
realização das opções constitucionais. Atente-se que, como recorda Gomes
Canotilho (29), a teoria clássica da constituição sempre alertou para “o papel
integrador dos textos constitucionais [que] implica também inserir conteúdos
comunicativos possibilitadores da estruturação de comunidades inclusivas”.
Neste horizonte, e desde que assegurada uma «participação justa» (faire Betei-
ligung (30)) a associação entre participação e transparência, ambos concebidos
como princípios constitucionais (31), constituem factores de legitimação da acção
administrativa, que permitem justificar a intensidade dos poderes, conferidos
à Administração, de conformação da realidade (física e jurídica) à luz da Cons-
tituição.
E com esta posição não pretendemos negar a ineliminável tarefa reconsti-
tuinte que cabe aos tribunais também no quadro da interpretação da Lei Fun-
damental e da fiscalização da constitucionalidade, como o fazem os mais fervo-
rosos adeptos do popular constitutionalism. O que este reconhecimento não
pode nunca significar é sufrágio do monopólio no acesso ao direito, em geral,
e à Constituição, em especial, por parte de quaisquer órgãos do Estado (em

de questões relacionadas, v. g., com o ambiente ou a saúde pública), FISHER/HARDING (The


Precautionary Principle…, cit., p. 17) aludem a uma «teoria deliberativa-constitutiva do
constitucionalismo administrativo», por contraposição ao que designam como «teoria
racional-instrumental do constitucionalismo administrativo» (op. cit., pp. 18 e s.), onde
(em termos distintos do que propõem as posições doutrinárias provenientes do quadrante
norte-americano e às quais, de resto, nos aproximámos) a tónica incide na instrumentalidade
de uma decisão administrativa não discricionária e fortemente limitada pelas prescrições
legislativas e pelos ditames metodológicos das ciências sociais. Sobre estes dois paradigmas,
cf., desenvolvidamente, FISHER, Risk…, cit., pp. 26 e ss.; v. também FISHER, «Food…»,
cit., pp. 62 e ss.
(29)
Gomes CANOTILHO, “Brancosos”…, cit., p. 271.
(30)
HÄBERLE, «Die Offene Gesellschaft der Verfassungsinterpreten», in: Verfassung
als Öffentlicher Prozeß, 2.ª ed., Duncker & Humblot, Berlin, 1996, p. 175.
(31)
Gomes CANOTILHO [O Tempo Curvo de uma Carta (Fundamental) ou O Direito
Constitucional Interiorizado, Conselho Distrital do Porto da Ordem dos Advogados, Porto,
2006, pp. 19 e s.] elege o princípio da transparência como princípio constitucional, con-
figurando-o como a outra face do problema da corrupção e associando-o à confiança,
enquanto base da «república deliberativa».

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O Administrative Constitutionalism: Resgatar a Constituição… 395

especial, pelos magistrados) (32), contra os quais se rebelava Barbosa de Melo (33),
mas, pelo contrário, a defesa, com este nosso Professor, da inexistência de «orá-
culos da coisa jurídica» (cumprindo a todos a «função jurídica»), ou, com
Häberle, de uma «sociedade aberta dos intérpretes da Constituição» (que abrange,
indubitavelmente, todos os órgãos que desempenham funções estaduais) (34)
— “um pluralismo de intérpretes, aberto e racionalmente crítico” que assoma com
uma essencialidade premente no cenário actual da interconstitucionalidade (35).
Também aqui tem pleno cabimento a ideia de que “quem «vive» a norma
também a (co-)interpreta (mitinterpretiert)” (36) e não podem restar dúvidas de
que as autoridades administrativas vivem a Constituição. Esta concepção encerra
agora a virtualidade de permitir a aproximação da Lei Fundamental à Adminis-
tração Pública, promovendo a ideia de que existe uma mobilização policêntrica
da Constituição (37), que ultrapassa os tribunais, mas atinge todos os poderes
públicos. Neste sentido, a subordinação à Constituição volve-se numa realiza-
ção simultânea e incindível do interesse público e dos valores constitucionais (38),
promovendo a responsabilização administrativa pela satisfação de ambos.

(32)
Aliás, e nas palavras de CASSESE («Il Sorriso del Gatto, Ovvero dei Metodi nello
Studio del Diritto Pubblico», in: Rivista Trimestrale di Diritto Pubblico, n.º 3, 2006, p. 597),
“o direito não é monopólio dos juristas”.
(33)
V. Barbosa de MELO, Sobre o Problema da Competência para Assentar, polic.,
Coimbra, 1988, p. 7.
(34)
Trata-se do conhecido título da obra de HÄBERLE, «Die Offene Gesellschaft…»,
cit., pp. 155 e ss. (esp.te pp. 160, 162, salientando o Autor que o juiz constitucional não
está sozinho na tarefa de interpretação da Constituição — p. 172), mas sem defendermos
todas as consequências dogmáticas que decorrem da posição do Autor. Sobre o «pluralismo
de intérpretes», com alguma contenção, cf. também Gomes CANOTILHO, «Direito Consti-
tucional de Conflitos e Protecção de Direitos Fundamentais», in: Revista de Legislação e de
Jurisprudência, ano 125.º, 1992, pp. 35 e s.
(35)
Cf. Gomes CANOTILHO, “Brancosos”…, cit., p. 279.
(36)
HÄBERLE, «Die Offene Gesellschaft…», cit., p. 156.
(37)
A doutrina americana alude, em sentido similar, a uma «interpretação consti-
tucional policêntrica» (policentric constitutional interpretation), numa tentativa de superação
do absolutidade inerente a uma visão literal do aforismo segundo o qual “the Constitution
is what courts say it is”. Cf. POST/SIEGEL, «Legislative Constitutionalism and Section Five
Power: Policentric Interpretation of the Family and Medical Leave Act», in: The Yale Law
Journal, vol. 112, 1943, pp. 1943 e ss., esp.te pp. 2020 e ss.
(38)
Poderá estar aqui em causa a «Administração interpretativa do interesse público»
[“interpretierende” (Gemeinwohl-)Verwaltung] a que se refere HÄBERLE, «Die Öffene Gesells-
chaft…», p. 173.

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396 Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor José Joaquim Gomes Canotilho

§ 4.º Novas tarefas da Administração e novos actores públicos

O administrative constitutionalism ganha alento quando se percepciona a


relevância que os actores administrativos desempenham no contexto da admi-
nistrative governance, aspecto que, no direito norte-americano (e, por influência,
embora não isolada, deste último, também no direito português) assume uma
acuidade não despicienda perante o volume e, sobretudo, a intensidade dos
poderes atribuídos às agências (e às autoridades reguladoras) (39).
À responsabilização da Administração pelo desempenho de tarefas cada
vez mais exigentes e da obtenção de determinados resultados corresponde a
outorga de meios (designadamente, formas jurídicas de acção administrativa)
adequados para tal, caracterizados por um significativo grau de inovação na
ordem jurídica — em total consonância com a ultrapassagem de um entendi-
mento da função administrativa como estritamente executiva (no sentido mais
diminuído de aplicação) da lei. Assumem, neste contexto, relevância todos os
modos do agere da Administração que passam pelas tarefas de planificação
(planning) e regulação (rulemaking), as quais vem associada intensificação da
actividade normativa das entidades administrativas sectoriais, permitindo tornar
dispensável a intervenção legislativa (maxime, parlamentar) para a densificação
das políticas públicas (40).
Pense-se, v. g., na função de dinamização da ordem jurídica reconhecida
numa recompreensão do poder regulamentar, e que tem uma projecção parti-
cular ao nível da função de planeamento, estando precisamente relacionada
com a implementação das políticas públicas, num Estado cada vez mais “adjec-
tivado” (41), num contexto de uma realidade complexa e dinâmica, que suscita
uma adaptação permanente (42) e, como tal, não se compadece com a morosi-

(39)
Como acentua METZGER (Ordinary Administrative Law…, cit., p. 521), “as agências
administrativas são hoje os decisores primários (primary decisionmakers) do governo federal”.
(40)
Cf. Gomes CANOTILHO/Suzana Tavares da SILVA, «Metódica…», cit., p. 191.
(41)
V. Gomes CANOTILHO, «Estado Adjectivado e Teoria da Constituição», in:
Revista da Academia Brasileira de Direito Constitucional, vol. 3, 2003, pp. 455 e ss. Cf.
também Gomes CANOTILHO, O Tempo…, cit., p. 23, e “Brancosos”…, cit., pp. 131 e s.
(recorde-se a expressiva fórmula: “diz-me o adjectivo do Estado e eu dir-te-ei que Estado
tens ou queres” — op. cit., p. 132).
(42)
Constituem estas duas problemáticas a que o Direito das Políticas Públicas
procura dar resposta — cf. Maria da Glória GARCIA, Direito das Políticas Públicas, Almedina,
Coimbra, 2009, p. 124.

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O Administrative Constitutionalism: Resgatar a Constituição… 397

dade e a inflexibilidade tradicionalmente inerentes ao exercício do poder


legislativo: nos termos do princípio da separação e interdependência de poderes,
se a este último caberá definir os vectores estruturais das políticas públicas, para
o poder regulamentar ficará o desenvolvimento dos aspectos relacionados com
os vectores conjunturais das mesmas. Esta função implica a valorização do
«nível intermédio» (entre a lei e o acto administrativo) de decisão (lato sensu),
reconhecendo que a Administração se encontra numa posição privilegiada (ou,
se preferirmos, mais privilegiada que o legislador) para, através da emissão de
normas jurídicas, atender às várias constelações de interesses (43), sem prejuízo
para as garantias do Estado de direito democrático (44).
O surgimento de novas tarefas dá lugar à emergência de novos actores
públicos, os quais não consubstanciam apenas pessoas colectivas de direito
público, mas também podem constituir entidades privadas, agora incluídas
num conceito amplo de Administração em sentido funcional. Também estes
se encontram subordinados ao (compreensiva e extensivamente abrangente)
«princípio de responsabilização constitucional» (principle of constitutional
accountability), em termos de os limites impostos pela Constituição aos entes
públicos afectarem igualmente as entidades privadas que exercem poderes
públicos, (mas tão-só, sob pena de violação do constitucionalmente protegido
princípio da autonomia privada) na medida e com o alcance destes poderes (45).
Quanto a estas últimas, a sua responsabilidade não assume, naturalmente,

(43)
Assim, SCHMIDT-ASSMANN, «Cuestiones Fundamentales sobre la Reforma de la
Teoria General del Derecho Administrativo. Necessidad de la Innovación y Presupuestos
Metodológicos», in: J. BARNES (ed.), Innovación y Reforma en el Derecho Administrativo,
Global Law Press, Sevilla, 2006, pp. 56 e s., enfatizando a relevância dogmática e a função
capital desempenhada pelos instrumentos regulamentares.
(44)
Reflectindo sobre estas preocupações, no contexto do direito norte-americano
e do administrative constitutionalism, a propósito de um caso concreto (relativo aos poderes
delegados pelo Congresso na Food and Drug Administration — cf. o Acórdão «FDA v. Brown
& Williamson Tobacco Corp.», de 21.03.2000, in: United States Reports, vol. 120, 2000,
pp. 529 e ss.), v. FISHER, «Food…», cit., pp. 66 e ss.
(45)
Alguma doutrina defende, a este propósito, que o respeito pelas normas cons-
titucionais se deveria configurar como uma das condições da delegação, que fixariam uma
espécie de «amarras constitucionais» (constitutional strings, constitutional constraints). Cf.
METZGER, «Privatization as Delegation», in: Columbia Law Review, vol. 103, 2003, pp. 1400
e s., e «Ordinary Administrative Law…», cit., p. 522. Sobre a vinculação constitucional
das entidades privadas, cf., entre nós, por todos, Pedro GONÇALVES, Entidades Privadas com
Poderes Públicos, Almedina, Coimbra, 2005, pp. 1038 e ss.

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398 Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor José Joaquim Gomes Canotilho

carácter político, mas refere-se a uma responsabilidade e a uma responsabiliza-


ção jurídicas pelo cumprimento ou pela observância das exigências constitu-
cionais, susceptíveis de controlo jurisdicional (46). Estamos, pois, diante de uma
espécie de outsourcing da Constituição (47), dirigido a evitar que se crie uma
«dupla ética» (48) agora no seio do exercício da função administrativa, consoante
a mesma seja prosseguida por pessoas colectivas públicas ou por entidades
privadas, concebidas, nesta altura, como autênticos state actors (49).

§ 5.º A interferência de princípios e valores constitucionais na actividade


administrativa

A alusão ao constitucionalismo administrativo no cenário das relações


entre Direito Constitucional e Direito Administrativo impõe que não se ignore
a influência da Lei Fundamental quer sobre a organização, quer sobre a acti-
vidade administrativa. Sem menoscabo do relevo que a Constituição assume
na definição das linhas da arquitectura organizatória da Administração (50),

(46)
METZGER, «Privatization…», cit., pp. 1400 e ss. (denotando uma preocupação
marcante com a protecção dos direitos fundamentais), e «Ordinary Administrative Law…»,
cit., p. 522.
(47)
ROSENBLOOM/PIOTROWSKI, «Outsourcing the Constitution and Administrative
Law Norms», in: American Review of Public Administration, n.º 2, vol. 35, Junho 2005,
pp. 103 e ss., ainda que a exposição dos Autores extravase, em certos pontos, o sentido que
pretendemos conferir à expressão, na medida em que aponta para além da submissão
constitucional de entidades privadas que, ao abrigo de uma delegação, exercem funções
públicas, sugerindo, no que tange à vinculação por direitos fundamentais, uma aproxima-
ção ao problema da designada «eficácia externa» ou «eficácia em relação a terceiros» (Drit-
twirkung).
(48)
Louvando-se nesta ideia, no contexto da vinculação de entidades privadas (que
não exercem funções administrativas) pelos direitos, liberdades e garantias, cf. Gomes
CANOTILHO, Direito…, cit., p. 1294.
(49)
Sobre a state action doctrine, cf. a síntese de GRAGLIA, «State Action: Constitu-
tional Phoenix», in: Washington University Law Quarterly, n.º 3, vol. 67, 1989, pp. 777
e ss. No que tange à compreensão como state actors das entidades privadas que exercem,
por delegação, poderes públicos, v. ROSENBLOOM/PIOTROWSKI, «Outsourcing the Consti-
tution…», cit., pp. 111 e ss., com vários exemplos jurisprudenciais e não jurisprudenciais.
(50)
E, se quisermos persistir na metáfora, é da fixação de simples linhas que se trata,
pois que, em regra, as Constituições não impõem um modo de organização administrativo,
mas consentem “estilos arquitectónicos” diversos de «boa administração». Cf. FISHER,
Risk…, cit., p. 24.

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O Administrative Constitutionalism: Resgatar a Constituição… 399

importa-nos, neste ponto, reflectir sobre o sentido da intervenção constitucio-


nal na dinâmica do diuturno agere das autoridades administrativas e das exi-
gências que a mesma convoca.
A subordinação constitucional da actividade administrativa atinge a res-
pectiva sublimação quando se considera que a percepção da Constituição como
«lei maior» (higher Law) leva, de alguma forma, ínsita a ideia de que cabe àquela
definir os fundamentos axiológicos-jurídicos em que repousa, em termos mais
próximos ou mais longínquos, a acção da Administração Pública. A prossecução
do interesse público que constitui a finalidade precípua do exercício da função
administrativa não se verga às exigências de um qualquer efficient private mana-
gement, mas, ocorrendo no quadro do direito, almeja ainda a realização dos
fundamentos jurídicos (51).
Qualquer referência a princípios deve escapar à tentação da «poluição
conceitual» para que alerta Gomes Canotilho (52), a qual, como explicita o
nosso Professor, engloba tanto “cargas acumuladas de juridicidade”, como
“dimensões fundantes e estruturantes de uma comunidade política e da esta-
talidade democrática” ou ainda “refracções dogmáticas de novos-velhos proble-
mas”. Os fundamentos do sistema jurídico identificam-se com os princípios
normativos, os quais correspondem às intenções práticas, às intenções axioló-
gico-regulativas ou aos valores que o direito deve realizar (53).
Actualmente, as reflexões dogmáticas sobre a interferência de valores na
acção administrativa orientam-se em torno do designado Direito Administrativo
Global. Esta perspectiva não oblitera — antes complementa — a abordagem
do problema dos valores da óptica do constitucionalismo, pois que uma signi-
ficativa cópia dos valores apontados ao Direito Administrativo Global assumem

(51)
Realçando a necessidade de ultrapassar a visão redutora importada das behavio-
ral theories of management para o agere administrativo, através da redescoberta dos princípios,
cf. MOE/GILMOUR, «Rediscovering Principles of Public Administration: The Neglected
Foundation of Public Law», in: Public Administration Review, n.º 2, vol. 55, Março/Abril
1995, pp. 135 e ss.
(52)
Gomes CANOTILHO, «Princípios: Entre a Sabedoria e a Aprendizagem», in:
Boletim da Faculdade de Direito, vol. LXXXII, 2006, p. 4.
(53)
Assim, Castanheira NEVES, «Fontes do Direito», in: Digesta. Escritos acerca do
Direito, do Pensamento Jurídico, da sua Metodologia e Outros, vol. 2.º, Coimbra Editora,
Coimbra, 1995, pp. 65 e ss., e «A Unidade do Sistema Jurídico: O Seu Problema e o Seu
Sentido», in: Digesta…, cit., pp. 174 e ss.; Fernando José BRONZE, Lições de Introdução ao
Direito, 2.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2006, p. 629.

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uma origem claramente constitucional, reconduzindo-se à transposição para


um cenário mais amplo das exigências de sentido que marcam o constitucio-
nalismo contemporâneo (54). Esta ideia de universalidade pode ainda associar-se
a uma perspectiva mais ampla, tornando-se possível afirmar, parafraseando
Gomes Canotilho (55), que incumbe ao direito — e ao direito constitucional,
em especial — fornecer instrumentos para “impedir que a dignidade da pessoa
seja pervertida, degradando o homem em objecto”. É também esta a ideia que,
em última análise, acaba por estar presente na afirmação da submissão da
actividade administrativa aos princípios, e que exige que o diálogo (bipolar e,
nos tempos hodiernos, cada vez mais, multipolar) entre Administração e cida-
dãos, mesmo (rectius, sobretudo!) quando mediatizado pela autoridade daquela,
não ignore a pessoa como radical ético do direito (e do constitucionalismo) e
as respectivas precipitações.
Assim, e sem desconhecermos aquela realidade, julgamos que, longe de
estar ultrapassada, a subordinação da Administração aos valores emergentes
da Constituição nacional constitui pressuposto de uma análise que pretenda
situar as vinculações administrativas no plano mais amplo do «constituciona-
lismo global». Só que esta asserção também não ignora uma outra: a de que
os valores emergentes da Constituição nacional e disciplinadores da acção
administrativa revestem hoje um sentido e um alcance diferentes, porquanto
redensificados pela respectiva experimentação num horizonte mais alargado
e, como tal, beneficiando da inerente evolução dogmática. Por este motivo,
e na senda de Gomes Canotilho (56), ao lado das exigências de sentido tradi-
cionalmente reclamadas pelas várias dimensões do princípio do Estado de
direito democrático, surge hoje uma estadualidade que, imbuída da ideia de
good governance, aponta para a observância de princípios novos, como o prin-
cípio da transparência, o princípio da coerência, o princípio da abertura, o
princípio da eficácia e da eficiência e o princípio da democracia participativa.
Em qualquer das hipóteses, os princípios constitucionais assumem um con-
teúdo heterogéneo, dirigindo-se à concepção, forma e organização do Estado,
bem como ao exercício dos poderes de autoridade e dos demais comporta-

(54)
Cf. ANTHONY/AUBY/MORISON/ZWART, «Values…», cit., p. 3.
(55)
Gomes CANOTILHO, “Brancosos”…, cit., p. 159.
(56)
Gomes CANOTILHO, “Brancosos”…, cit., pp. 331 e ss., referindo-se aos “novos
princípios do Estado de direito democrático”, expressivamente configurados como uma
“nova camada de princípios em fase de acreção geológica” (op. cit., p. 333).

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O Administrative Constitutionalism: Resgatar a Constituição… 401

mentos públicos (57) — onde se incluem, naturalmente, as acções da Admi-


nistração Pública.
O reconhecimento da permeabilização da actuação administrativa a valo-
res constitucionais carece ainda de uma reflexão dupla: por um lado, determi-
nar em que consistem os valores constitucionais vinculadores da conduta da
Administração Pública; por outro lado, e atendendo ao facto de que as enti-
dades administrativas constituem pessoas colectivas, explicitar quais as exigên-
cias que esses valores colocam àqueles que, dia-a-dia, exprimem ou manifestam
as acções da Administração.
A submissão da actuação administrativa a princípios (constitucionais)
encontra-se prevista no artigo 266.º da Constituição — a «Carta Ética da
Administração Pública» (58) —, onde se contempla o respeito pelos princípios
da prossecução do interesse público, do respeito pelos direitos dos administrados,
da igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade e da boa fé.
A subordinação administrativa a princípios normativos, ex vi constitutionis, não
se esgota, porém, neste preceito: assim, v. g., do artigo 267.º decorrem os prin-
cípios da desburocratização, da participação dos interessados, da unidade da
acção administrativa; por sua vez, a consagração constitucional (no artigo 2.º)
do princípio do Estado de direito traz ínsita a submissão dos poderes públicos
aos princípios da legalidade da Administração, da segurança jurídica e da pro-
tecção da confiança dos cidadãos, da protecção jurídica e das garantias proces-
suais (59); de outras disposições especiais emergem os princípios da vinculação
administrativa aos direitos, liberdades e garantias (artigo 18.º, n.º 2), da respon-
sabilidade da Administração (artigo 22.º), da audiência e defesa em procedimento
sancionatório (artigo 32.º, n.º 10); em especial, quanto ao exercício do poder
regulamentar, o artigo 112.º estabelece os princípios da preferência ou preemi-
nência da lei, e o logicamente correspectivo princípio do congelamento do grau
hierárquico (n.º 6), bem como o princípio da precedência de lei (n.º 7).
Esta enumeração permite antever a heterogeneidade substancial dos prin-
cípios normativos com assento constitucional. Com clareza se compreende

(57)
Cf. BADURA, «Arten der Verfassungsrechtssätze», in: ISENSEE/KIRCHOF, Handbuch
des Staatsrechts, vol. VII, Müller, Heidelberg, 1992, p. 53.
(58)
Jorge MIRANDA/Rui MEDEIROS, Constituição Portuguesa Anotada, tomo III,
Coimbra Editora, Coimbra, 2007, p. 558.
(59)
Sobre o princípio do Estado de direito e os subprincípios concretizadores, cf.,
por todos, Gomes CANOTILHO, Direito…, cit., pp. 256 e ss.

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402 Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor José Joaquim Gomes Canotilho

que existe uma diferença de intencionalidade normativo-axiológica entre o


princípio da dignidade da pessoa humana, o princípio da legalidade (stricto
sensu) da Administração e o princípio da desburocratização: se o primeiro
traduz o étimo fundante do direito (princípio suprapositivo) e o segundo
representa um princípio informador e constitutivo do Direito Administrativo
enquanto domínio jurídico-dogmático (princípio transpositivo), o último
constitui apenas um princípio que vale como tal na medida em que consagrado
no sistema jurídico pré-objectivado (princípio positivo (60)) (61).
A invocação da subordinação administrativa a valores e a princípios cons-
titucionais, com a complexidade dogmática e metodológica que lhe é inerente,
exige o apelo a um conceito de «profissionalismo de serviço público» (public
service profissionalism) (62), enquanto suporte de uma «inteligência do agir
administrativo» (“Klugheit” des Verwaltungshandelns) (63). Embora tenha conhe-
cido alguns momentos de crise após a emergência do New Public Management
(mais preocupado com a retirada da esfera pública do que com os valores a

(60)
A noção de «princípio positivo» aqui equacionada possui um sentido restrito,
incluindo na sua intensio os princípios que, em simultâneo, se apresentam como contin-
gentes e positivos, i.e., que se revelam “sensíveis» à intenção político-jurídica ou ético-social
integrante” e que o direito se vê compelido a objectivar, para afastar caminhos alternativos
igualmente viáveis. Nestes termos, Aroso LINHARES, Teoria do Direito — Sumários Desen-
volvidos: Capítulo III — O Jurisprudencialismo, polic., Coimbra, s.d., pp. 11, 12 e 13.
(61)
Colhemos a distinção (segundo o critério da posição ocupada no sistema jurí-
dico) entre princípios transpositivos, suprapositivos e positivos em Castanheira NEVES,
«Fontes…», cit., pp. 66 e s., e «A Unidade…», cit., pp. 175 e ss. (efectuando, em ambos
os casos, uma tipologia de níveis entre princípios, mas ainda não adoptando as designações
seguidas no texto) e Metodologia Jurídica — Problemas Fundamentais, Studia Iuridica 1,
Boletim da Faculdade de Direito/Coimbra Editora, Coimbra, 1993, p. 155, e A Crise Actual
da Filosofia do Direito no Contexto da Crise Global da Filosofia, Studia Iuridica 72, Boletim
da Faculdade de Direito/Coimbra Editora, Coimbra, 2003, p. 108. Cf. também Fernando
José BRONZE, Lições…, cit., pp. 632 e ss.; Aroso LINHARES, Introdução ao Direito — Sumá-
rios Desenvolvidos, polic., Coimbra, s.d., pp. 100 e ss.
(62)
ARGYRIADES, «Good Governance, Professionalism, Ethics and Responsibility»,
in: International Review of Administrative Sciences, n.º 2, vol. 72, 2006, p. 166.
(63)
H OFFMANN -R IEM («Eigenständigkeit des Verwaltungsrechts», in: H OFF -
MANN-RIEM/SCHMIDT-ASSMANN/VOSSKUHLE, Grundlagen des Verwaltungsrechts, vol. I,
München, 2006, p. 649) entende justamente que a “Klugheit” des Verwaltungshandelns se
encontra sustentada, inter alia, pelos standards ético-profissionais. Cf. também PITSCHAS,
«Maßstäbe des Verwaltungshandelns», in: HOFFMANN-RIEM/SCHMIDT-ASSMANN/VOS-
SKUHLE, Grundlagen des Verwaltungsrechts, vol. II, Beck, München, 2008, pp. 1596 e s.

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O Administrative Constitutionalism: Resgatar a Constituição… 403

esta inerentes), esta concepção aponta para a primazia dos princípios e do


conhecimento sobre a adopção de práticas rotineiras, sem qualquer suporte de
razoabilidade ou de juridicidade (64). A complexidade dos juízos que postulam
a convocação de valores constitucionais carece de profissionais públicos devi-
damente preparados e não intimidados pela dificuldade, a frequência ou a
dúvida, sobretudo quando se trata dos sectores superiores da Administração
Pública (65). Esta ideia vem, naturalmente, acompanhada do renascer dos
valores associados à ideia de prossecução do interesse público no quadro do direito
— o que, ao cabo e ao resto, distingue o profissional público do profissional
privado —, dá origem à concepção do Direito Administrativo como uma
«ordem material de valores» (materiale Wertordnung) (66).
A esta posição também não se revela alheia a (re)introdução da ética no
interior da organização administrativa (67). Longe de apelar para um relativismo

(64)
A criatividade, enquanto capacidade de inovação e de decisão para lá das regras
e procedimentos existentes, constitui um dos designados «valores pós-burocráticos» — cf.
SALMINEN, «Accountability, Values and Ethical Principles of Public Service: The Views of
Finnish Legislators», in: International Review of Administrative Sciences, n.º 2, vol. 72, 2006,
p. 179.
(65)
Assim, ARGYRIADES, «Good Governance…», cit., p. 167.
(66)
PITSCHAS, «Maßstäbe…», cit., pp. 1594 e s.
(67)
Sobre a ética administrativa, cf., v. g., a síntese de COOPER, «Big Questions in
Administrative Ethics: A Need for Focused, Collaborative Effort», in: Public Administration
Review, n.º 4, vol. 64, Julho/Agosto 2004, pp. 395 e ss., com amplas referências doutrinais.
Não se trata de uma preocupação recente no âmbito da Ciência da Administração, pois
que conhece antecedentes na própria construção do burocrata weberiano (no Beamte).
Contudo, as exigências actualmente impostas aos profissionais da Administração Pública
revelam-se bem diversas das colocadas ao funcionário no início do século XX (o mesmo
sucedendo com as novas formas de administrar, marcadas pela construção de parcerias
público-privadas e pela concorrência), não se compadecendo com a cega aplicação de regras,
mas também não permitindo ignorar a necessária permeabilização da organização adminis-
trativa a determinados valores. A própria refundação da ética administrativa — ocorrida
no dealbar dos anos 80 do século XX e em que foram pioneiros Rohr (Ethics for Bureaucrats:
An Essay on Law and Values, 1.ª ed. de 1978), Cooper (The Responsible Administrator: An
Approach to the Ethics of the Administrative Role, 1.ª ed. de 1982) e Frederickson («The
Recovery of Civism in Public Administration», publicado em 1982) — revela-se inadequada
(pelo menos, em parte) para responder aos desafios da actual Administração, o que leva a
doutrina a tentar equacionar uma nova ética administrativa, recompreendida através de
outros valores. V. STENSÖTA, «The Conditions of Care: Reframing the Debate About
Public Sector Ethics», in: Public Administration Review, n.º 2, vol. 70, Março/Abril 2010,

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404 Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor José Joaquim Gomes Canotilho

de opiniões, a ética administrativa ou a ética da/na Administração Pública


(administrative ethics/Public Administration ethics, ethik in der öffentlichen
Verwaltung) alicerça-se em princípios e valores constitucionalmente protegidos
(como a imparcialidade, a proporcionalidade, a igualdade e a transparência) e
vincula os titulares dos órgãos administrativos (ou, em geral, os profissionais
da Administração Pública) a promover ou a adoptar os comportamentos que
melhor se compaginem com tais valores — sem prejuízo da conflitualidade e
das tensões imanentes à convivência dos valores jurídicos que à Administração
cumpre gerir e ponderar (68). Neste sentido, à prossecução de valores constitu-
cionais pode associar-se também o fenómeno dos public service bargains,
enquanto acordos expressos ou implícitos entre os servidores públicos (public
servants) e actores do sistema político (69), constituindo uma simbiose entre a
prossecução competente (70) e leal de valores públicos pelos profissionais da
Administração e o reconhecimento (com frequência, a recompensa, de imediato
aliada à responsabilidade) que lhes é atribuído(a) pelos actores políticos. Se
quisermos conceber o profissional da Administração Pública como uma espé-
cie de cidadão fiduciário, polarizador da confiança de todos os cidadãos, torna-se

pp. 295 e s. O apelo à ética na Administração começa também a ganhar uma voz signifi-
cativa na Alemanha — cf., por todos, PITSCHAS, «Maßstäbe…», cit., pp. 1592 e s.
(68)
Cf. GRAAF/WAL, «Managing Conflicting Public Values: Governing with Integrity
and Effectiveness», in: American Review of Public Administration, n.º 6, vol. 40, Novem-
bro 2010, p. 625, aludindo à necessidade de gerir as tensões entre os valores públicos
potencialmente conflituantes (managing tensions between potentially conflicting public values)
— entre os quais elegem a juridicidade, a integridade, a democracia e a eficiência — como
objectivo da good governance.
(69)
HOOD/LODGE, The Politics of Public Service Bargains, Oxford University Press,
Oxford, 2006, pp. 6 e ss., fazendo remontar o fenómeno (Op. cit., pp. 4 e s.) às relações
entre os políticos eleitos (aos quais cabe definir uma policy) e os profissionais da diploma-
cia (aos quais se encontra cometida a tarefa da condução das negociações internacionais à
luz das políticas delineadas pelos primeiros). Cf. também HONDEGHEM, «Changing Pub-
lic Service Bargains for Top Officials», in: Public Policy and Administration, vol. 26, 2011,
pp. 159 e ss., onde a Autora sintetiza ainda as várias formas de public service bargains.
(70)
Se, como assinalava já Gomes CANOTILHO («O Direito…», cit., p. 711), a
democraticidade do Estado varia no mesmo sentido em que os cidadãos dispõem de «sabe-
res» e «competências» — o Autor alude, expressivamente ao Estado de saberes e de compe-
tências —, também se não deve ignorar que a detenção de skills e aptidões deve começar
no seio do próprio Estado (lato sensu), e, como tal, dos servidores públicos, só assim se
logrando ultrapassar a burocratização e a prossecução de obscuros, invisíveis ou presumíveis
“interesses da administração” (Gomes CANOTILHO, últ. op. cit., p. 715).

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O Administrative Constitutionalism: Resgatar a Constituição… 405

possível ir mais além e afirmar que a conduta dirigida à promoção de valores


públicos não corresponde senão ao cumprimento de um dever de lealdade para
com os administrados, perante os quais são, em última análise, responsáveis.

§ 6.º Planificar, regular e decidir à luz de princípios e normas constitu-


cionais

Sem prejuízo das inelimináveis diferenças assumidas pela vinculação exercida


pela Constituição relativamente às diferentes funções do Estado (71), afigura-se-nos
adequado afirmar que, também ao nível da Administração, a Constituição tem
uma «vida vibrante e consequencial» (72). E com esta asserção — corolário das
questões que enfrentámos nos pontos anteriores — não pretendemos menospre-
zar a relevância que, no quadro da actuação administrativa, assume o princípio
da legalidade (stricto sensu) (73), em total consonância com a natureza de segundo
grau caracterizadora da função administrativa, enquanto elemento desonerador
do recurso directo às normas e princípios constitucionais; contudo, trata-se de
assinalar agora a dupla percepção de que a Lei Fundamental demanda que a
actividade administrativa a tenha sempre como pano de fundo e de que, por si
só (i. e., independentemente de, e, sob determinado circunstancialismo, contra
qualquer mediação legislativa), a Constituição obriga a Administração.
O acesso à Constituição pressuposto por esta perspectiva possui refracções
no exercício da acção administrativa. Impõe-se agora retirar as consequências
práticas dos postulados dogmáticos subjacentes ao constitucionalismo admi-
nistrativo. Num crescendo de aproximação à Constituição e de distanciamento
da lei ordinária, torna-se possível eleger cinco domínios ilustrativos do sentido
do “resgate” da Lei Fundamental para a Administração Pública:

i) Interpretação em conformidade com a Constituição — A tarefa interpre-


tativa da Administração constitui uma exigência metodológica (74). Este cri-

(71)
Para esta mesma ideia alerta BADURA, «Arten…», cit., p. 40.
(72)
POST/SIEGEL, «Legislative Constitutionalism…», cit., p. 2022.
(73)
Uma das ilações que BADURA («Arten…», cit., pp. 40 e s.) retira da diferente
vinculação (unterschiedliche Steuerung) da Constituição relativamente às funções estaduais
reside na interferência mediadora que a lei exerce quanto às funções administrativa e jurisdi-
cional (ressalvando, quanto a esta, os momentos inerentes à Justiça Constitucional).
(74)
Algo que a jurisprudência norte-americana vedava às autoridades administrati-
vas, ao abrigo do Acórdão «Marbury v. Madison» (que reservaria, em exclusivo, aos tribunais,

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406 Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor José Joaquim Gomes Canotilho

tério assume-se como um «princípio de interpretação crítica da concretização


constitucional», tendo em conta que “interpretar, aplicar e concretizar conforme
a lei fundamental é considerar as normas hierarquicamente superiores da cons-
tituição como elemento fundamental na determinação do conteúdo das normas
infraconstitucionais”, volvendo-se num autêntico «princípio de prevalência
normativo-vertical e de integração hierárquico-normativa» (75).
Trata-se de um cânone cuja validade se não restringe à interpretação das
normas efectuada pelos tribunais, estendendo-se igualmente à Administração,
cujos actos se encontram também vinculados ao princípio da constitucionali-
dade, enquanto segmento do princípio da juridicidade (76). A consideração de
que a Administração deve executar as leis «no espírito da Constituição» (im
Geist der Verfassung) (77) implica uma dupla vinculação, positiva e negativa: por
um lado, cada órgão possui uma competência interpretativa do direito ordiná-
rio no sentido compatível com a Constituição; por outro lado, encontra-se
proibido de efectuar uma interpretação que se revele incompatível com a Lei
Fundamental (78).

ii) Discricionariedade — É justamente nos “espaços de liberdade” —


aqueles que, por definição, não se encontram pré-determinados pelo legislador

o poder para interpretar as normas) e que SUNSTEIN («The Executive’s Power…», cit.,
p. 2584) traduzia na imagem de que tal resultava de se não admitir que as fossem as rapo-
sas a guardar os galinheiros; o punctum saliens reside, como também acentua o Autor, em
determinar quem são as raposas.
(75)
Gomes CANOTILHO, Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador, Coimbra
Editora, Coimbra, 1982, p. 406.
(76)
Cf. também Gomes CANOTILHO/Vital MOREIRA, Constituição da República
Portuguesa Anotada, 4.ª ed., vol. II, Almedina, Coimbra, 2010, p. 797, anotação VI ao
artigo 266.º, referindo-se, condensadamente, às “medidas materiais da juridicidade admi-
nistrativa”.
(77)
OSSENBÜHL, «Normenkontrolle durch die Verwaltung», in: Die Verwaltung, n.º 2,
1969, 396.
(78)
Assim, Paulo OTERO, O Poder…, cit., p. 567. Em sentido algo diverso, Blanco
de MORAIS (Justiça…, tomo II, cit., pp. 338 e s.) alude apenas a uma “preferência meramente
indicativa da interpretação conforme, sobre uma qualquer solução de inconstitucionalidade”.
Cf. também Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 411/99, de 29 de Junho (in:
Diário da República, II Série, n.º 59, 10.03.2000, p. 4754), onde expressamente se reconhece
a imposição à Administração (in casu, a Caixa Geral de Aposentações) do dever de inter-
pretar uma norma em conformidade com as exigências constitucionais.

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O Administrative Constitutionalism: Resgatar a Constituição… 407

— que a autonomia da vinculação por princípios e valores constitucionais se


manifesta (79). Como a doutrina vem sublinhando a propósito da discriciona-
riedade administrativa, o exercício de poderes discricionários não remete a
Administração para o arbítrio, não constitui uma zona livre do direito ou de
indiferença normativa (80), impondo-se o respeito pelos princípios orientadores
do actuar administrativo (desde logo, igualdade, proporcionalidade, justiça,
imparcialidade, boa fé) (81). Neste contexto, reportamo-nos a um conceito
amplo de discricionariedade: embora esta noção venha, em regra, associada à
prática de actos administrativos, não está excluído que a lei conceda poderes
discricionários para a emissão de regulamentos (82), o que acontece, na sua
extensão máxima, nas hipóteses em que o legislador, dentro de determinados
parâmetros, confere à Administração a decisão sobre o an (83), o quando e sobre
o conteúdo de determinada regulamentação (84).

iii) Implementação de políticas públicas através da promoção de valores


constitucionais — Eis-nos perante uma ideia típica do administrative constitu-
tionalism e que assenta no pressuposto de que a implementação de políticas

(79)
Trata-se de um aspecto (por vezes) ignorado pela própria jurisprudência. Cf.,
v. g., o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 30.09.2009, P. 220/05, que, sob
a epígrafe «Os Princípios Normativos São Parâmetros de Vinculação do Regulamento?»,
anotámos em Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 80, Março/Abril 2010, pp. 50 e ss.
(80)
Cf., por todos, Vieira de ANDRADE, «O Ordenamento Jurídico Administrativo
Português», in: Contencioso Administrativo, Livraria Cruz, Braga, 1986, p. 47, e O Dever
da Fundamentação Expressa de Actos Administrativos, Almedina, Coimbra, 2007, p. 373.
(81)
V. também Gomes CANOTILHO/Vital MOREIRA, Constituição…, cit., p. 798,
anotação VII ao artigo 266.º
(82)
Neste sentido, também já Afonso QUEIRÓ, «Teoria dos Regulamentos», in:
Estudos de Direito Público, vol. II, tomo I, Acta Universitatis Conimbrigensis, Coimbra,
2000, p. 240.
(83)
Cf., v. g., o caso subjacente ao Acórdão do STA, de 30.01.2007, P. 310/2006,
onde o legislador permitia que a Administração emitisse determinadas normas regulamen-
tares “nos casos em que se justifique a adaptação dos regimes”.
(84)
Foi justamente a percepção de que assumia diversidade a relação dos (vários
tipos de) regulamentos com a lei fundamentadora (o grau de vinculação à lei) que condu-
ziu à classificação doutrinal entre regulamentos executivos, complementares ou indepen-
dentes: observando a questão sob o prisma oposto, concluímos que tal classificação não
corresponde senão à existência de menos ou mais faculdades discricionárias legislativamente
concedidas no exercício do poder regulamentar.

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408 Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor José Joaquim Gomes Canotilho

pelos actores administrativos que tenha em vista a promoção dos valores cons-
titucionais representa uma mais efectiva defesa da Constituição que a efectuada
(sempre a posteriori) pelos tribunais (85). Como lembra Gomes Canotilho (86),
cabe aos textos constitucionais “estabelecer as premissas materiais fundantes
das políticas públicas num Estado e numa sociedade que se pretendem continuar
a chamar de direito, democráticos e sociais”.
Esta actividade de implementação de políticas públicas entronca na assi-
nalada ideia da previsão de novas tarefas para as autoridades administrativas.
Tais tarefas — embora, naturalmente, também realizadas pela actividade indi-
vidual e concreta da Administração (decision-making power) — projecta-se com
especial relevo no plano da actuação normativa da Administração, quer na
vertente de planificação (planning), quer ao nível da emanação de normas
regulamentares (rule-making).

iv) Actuação com base directa na Constituição — Em estreita articulação


com a dimensão anterior, mas sem se restringir a ela, alguma doutrina refere-se
hoje à «substituição da lei pela Constituição», no duplo sentido de conferir à
Lei Fundamental a qualidade de norma habilitadora da competência adminis-
trativa e critério imediato de decisão (87). Para a assunção das normas consti-
tucionais como critérios imediatos de decisão administrativa concorrem algumas
das coordenadas autonomizadas (eis o que sucede, paradigmaticamente, quanto
à mobilização de princípios constitucionais no exercício do poder discricioná-
rio ou à desaplicação de normas legais ou regulamentares com fundamento na
sua inconstitucionalidade), mas encontra uma tradução particularmente nítida
no âmbito das normas relativas aos direitos, liberdades e garantias que, nos
termos do n.º 1 do artigo 18.º, gozam de aplicabilidade directa e vinculam a
Administração ou das normas que servem de base à resolução de antinomias
normativas (como o artigo 8.º).
Quanto à segunda dimensão, atente-se na possibilidade (mais ou menos
problematizado pela doutrina nacional) de emissão de regulamentos governa-

(85)
Assim, METZGER, «Ordinary Administrative Law…», cit., pp. 528 e s.
(86)
Gomes CANOTILHO, Constituição…, cit., p. XXX.
(87)
Sobre esta matéria, cf. os desenvolvimentos dogmáticos de Paulo OTERO, Lega-
lidade e Administração Pública, Almedina, Coimbra, 2003, pp. 733 e ss. Cf. também Paulo
OTERO, O Poder de Substituição em Direito Administrativo, vol. II, Lex, Lisboa, 1995,
pp. 571 e ss., sobre o «princípio da constitucionalidade positiva».

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O Administrative Constitutionalism: Resgatar a Constituição… 409

mentais directamente fundados na Constituição: por um lado, e no que respeita


aos regulamentos executivos governamentais, pode entender-se que, mesmo
na ausência de uma autorização legislativa caso a caso, a habilitação resulta
do texto constitucional quando confere ao Governo competência para fazer
os regulamentos necessários à boa execução das leis [artigo 199.º, alínea c),
da Constituição] (88); por outro lado, a circunstância de estar cometida ao
Governo a prossecução de interesses gerais de toda a comunidade, ficando a
seu cargo a prática de todos os actos e a adopção de todas as providências
necessárias à promoção do desenvolvimento económico-social e à satisfação
das necessidades colectivas [artigo 199.º, alínea g), da Constituição] aponta
no sentido de reconhecer uma base constitucional para a emissão de regula-
mentos independentes (89) — nestas hipóteses, a osmose legalidade/constitu-
cionalidade, causada pela superação do princípio da legalidade em resultado
da assunção do princípio da juridicidade (onde a constitucionalidade neces-
sariamente se integra), permite, salvo nas situações em que a própria Lei
Fundamental exige uma interpositio legislatoris, a emanação de regulamentos
fundados na Constituição, conferindo um novo sentido ao disposto no n.º 2
do artigo 266.º (quando determina a subordinação da Administração à Cons-
tituição e à lei) (90).

(88)
Neste sentido, Afonso QUEIRÓ, «Teoria…», cit., pp. 223 e s.; Sérvulo CORREIA,
Legalidade e Autonomia Contratual nos Contratos Administrativos, Almedina, Coimbra, 1987,
p. 252; Luís Cabral de MONCADA, Lei e Regulamento, Coimbra Editora, Coimbra, 2002,
pp. 1046 e s. (Autor que defende o carácter meramente declarativo — que não constitutivo
— das autorizações legais para a emissão de regulamentos executivos pelo Governo, dada
justamente a existência de uma habilitação constitucional geral para o efeito que torna
dispensável ou desnecessária uma intervenção do legislador ordinário).
(89)
Cf. Afonso QUEIRÓ, «Teoria…», cit., pp. 227 e s.; Vieira de ANDRADE, «O Orde-
namento…», cit., p. 67. V. também Sérvulo CORREIA, Noções de Direito Administrativo,
vol. I, Editora Danúbio, Lisboa, 1982, pp. 107 e ss., e Legalidade…, cit., pp. 205 e ss.,
esp.te p. 235.
Diversamente, v. Gomes CANOTILHO/Vital MOREIRA, Constituição…, vol. II, cit.,
p. 73, anotação XXVIII ao artigo 112.º, defendendo que a alínea g) do artigo 199.º da
Constituição não pode fundamentar um poder regulamentar independente do Governo,
dado o seu carácter genérico, o qual não se revela susceptível de, por si só, envolver o
exercício de determinada competência ou a utilização de determinados instrumentos ou
formas constitucionais. Também em sentido contrário, v. Manuel Afonso VAZ, Lei…, cit.,
pp. 489 e ss.; FREITAS DO AMARAL, Curso…, vol. II, cit., p. 160).
(90)
V. PAULO OTERO, O Poder…, cit., pp. 568 e 573.

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410 Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor José Joaquim Gomes Canotilho

v) Desaplicação de normas inconstitucionais — A admissibilidade (objectiva


e subjectivamente limitada) da recusa de aplicação de normas inconstitucionais
por órgãos administrativos permite uma abordagem à defesa preventiva da
Constituição, visto que, nestas hipóteses, aqueles, ao contrário dos tribunais
— chamados a reagir relativamente a ofensas à Constituição já perpetradas —,
evitam o aprofundamento das inconstitucionalidades no ordenamento jurídico.
De qualquer modo, urge destrinçar entre a desaplicação de leis e a desa-
plicação de normas infra-legislativas: enquanto na primeira hipótese está em
causa uma tensão entre o princípio da constitucionalidade, o princípio da
separação de poderes e o princípio da legalidade (91), na segunda, emergem as
forças conflituantes entre as dimensões materiais e formais do princípio da
juridicidade, contrapondo (se quisermos simplificar, em muito, a complexidade)
segurança jurídica a constitucionalidade/legalidade material. Parece mais ou
menos pacífica a ideia de que os órgãos administrativos podem fiscalizar a
constitucionalidade das normas legais que mobilizam para a solução do caso
concreto, por considerar que esse exame se encontra intrinsecamente relacionado
com a ineliminável tarefa interpretativa que àqueles também se impõe (92),
volvendo-se, por conseguinte, a designada «competência de fiscalização» num
verdadeiro dever de fiscalização, in casu, num dever de verificação da constitu-
cionalidade das normas ou, nas palavras expressivas de Gomes Canotilho (93),

(91)
Problemática para a qual também já alerta Gomes CANOTILHO, Direito…, cit.,
pp. 941 e s.
Em termos monográficos, e entre nós, A. Salgado de MATOS, A Fiscalização Adminis-
trativa da Constitucionalidade, Almedina, Coimbra, 2004; numa perspectiva jus-comparís-
tica, Ana Cláudia GOMES, O Poder de Rejeição de Leis Inconstitucionais pela Autoridade
Administrativa no Direito Português e no Direito Brasileiro, Sergio Antonio Fabris Editor,
Porto Alegre, 2002 (com prefácio de Gomes CANOTILHO).
(92)
Entendendo também que a posição maioritária da doutrina se inclina no sentido
de que a Administração pode apreciar a constitucionalidade das leis, v. Vieira de ANDRADE,
Os Direitos…, cit., p. 201. Cf. ainda Paulo OTERO, O Poder…, cit., p. 565. Para uma
consideração crítica dos argumentos que afastam a competência de fiscalização e perfilhando
igualmente a respectiva admissibilidade, cf. A. Salgado de MATOS, A Fiscalização…, cit.,
pp. 163 e ss.
Em sentido diverso, parece inclinar-se BLANCO DE MORAIS (As Leis Reforçadas, Coim-
bra Editora, Coimbra, 1998, pp. 232 e s.), que defende não poder a autoridade adminis-
trativa formular juízos acerca dos parâmetros que a vinculam e, por conseguinte, juízos
relativos à apreciação da constitucionalidade ou legalidade das leis.
(93)
Gomes CANOTILHO, Direito…, cit., p. 444.

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O Administrative Constitutionalism: Resgatar a Constituição… 411

na “obrigatoriedade de a administração lançar um «olhar preventivo»” sobre as


leis. O mesmo se poderá afirmar, mutatis mutandis, sobre os regulamentos
inconstitucionais.
Claro está que avançar mais adiante e analisar a possibilidade de afastar
normas inconstitucionais da decisão do caso concreto implicará sempre, como
principiámos por alertar, o estabelecimento de limitações, quer de uma óptica
objectiva, quer de uma perspectiva subjectiva. Por um lado, ao nível objectivo,
vem-se prescrevendo a observância de um conjunto de condições cuja verifi-
cação se revela imprescindível à recusa de aplicação de normas inconstitucionais
no caso concreto, propondo, v. g., a verificação de inconstitucionalidades gra-
ves (v. g., decorrentes da violação de direitos fundamentais) e evidentes (desig-
nadamente por já existir uma decisão jurisdicional no sentido da inconstitu-
cionalidade), bem como a obediência ao princípio da proporcionalidade. Por
outro lado, e num plano subjectivo, reconhece-se que o poder de, no caso
concreto, afastar uma norma inconstitucional se não pode considerar incluída
na esfera de competência de todos os órgãos da Administração (94), mas deverá
reservar-se àqueles que estejam melhor preparados para a aferição complexa
dos juízos de inconstitucionalidade (v. g., superiores hierárquicos ou órgãos
independentes com competências parajurisdicionais).

§ 7.º Controlar a Administração à luz de princípios e normas constitu-


cionais

A subordinação administrativa à Constituição não deve obliterar (mas,


pelo contrário, traz novas exigências) ao controlo jurisdicional, (re-)colocando
os tribunais no desempenho da sua tarefa de concretização constitucional, agora
mediatizada pela experimentação efectuada pela Administração. Importa, pois,
enfatizar a existência de meios jurisdicionais que possuem como propósito
(único ou não) a censura das inconstitucionalidades das acções administrativas.
A violação de princípios e normas constitucionais por actuações das auto-
ridades administrativas gera a inconstitucionalidade destas últimas. As dificul-

(94)
O problema da capacidade dos public officials para apreciar todas as implicações
de uma dada norma constitucional foi igualmente debatido na doutrina constitucional
norte-americana: cf., v. g., TUSHNET, Taking the Constitution…, cit., pp. 54 e ss. (ainda
que, subsequentemente, a análise do Autor incida precipuamente sobre os membros do
Congresso).

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412 Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor José Joaquim Gomes Canotilho

dades adensam-se quando se indaga sobre o desvalor inerente às inconstitucio-


nalidades das acções da Administração. A este propósito afiguram-se-nos
especialmente interessantes duas hipóteses: a inexistência de regulamentos por
violação de certas normas constitucionais de procedimento e forma e a nulidade
de actos administrativos atentatórios de direitos fundamentais. Ambos os
exemplos permitiriam uma teorização sobre o problema dos «valores negativos»
da inconstitucionalidade das acções da Administração e das respectivas conse-
quências jurídicas; na impossibilidade de versarmos desenvolvidamente este
aspecto (que extravasaria o âmbito do presente trabalho), debruçar-nos-emos
sobre dois pontos relacionados com a particular configuração conferida a cada
uma das hipóteses avançadas.
A temática relacionada com a inconstitucionalidade de regulamentos
reveste um alcance acrescido quando admitimos que desempenhem uma fun-
ção mais abrangente no contexto do sistema jurídico, designadamente, e nos
termos que já apontámos, quando lhes reconhecemos a virtualidade de viabi-
lizar a implementação de políticas públicas necessariamente associadas à pros-
secução de tarefas constitucionais e delineadas, num primeiro momento, pelo
legislador. Todavia, a alusão ao problema da inexistência do regulamento
destina-se a aliar vertente patológica à conformação constitucional de um tipo
de regulamento: o decreto regulamentar. A especial solenidade formal-proce-
dimental inerente ao decreto regulamentar decorre da respectiva submissão a
promulgação presidencial e referenda ministerial [artigos 134.º, alínea b),
e 140.º, n.º 1, da CRP], cuja ausência implica a inexistência jurídica do diploma
[artigos 137.º e 140.º, n.º 2, da CRP]. Entendendo-se que a inexistência não
corresponde à sanção para a antijuridicidade de uma actuação, antes traduz a
ausência, em determinado acto, dos caracteres que permitiriam reconduzi-lo
ao tipo jurídico de acto pelo qual ele se pretende fazer passar, a associação entre
o desrespeito pelas normas constitucionais em causa e a inexistência permite
considerar que, da perspectiva jurídico-constitucional, o “tipo jurídico” do
decreto regulamentar envolve, como nota integrante da respectiva intensio, a
co-responsabilização política entre Presidente da República e Governo das
medidas normativas adoptadas mediante aquela forma, co-responsabilização
essa garantida pela associação entre promulgação e referenda. O não preen-
chimento, in concreto, de tais exigências constitucionais autoriza, pois, uma
censura jurisdicional do acto. Quer dizer, do regime da inconstitucionalidade
do decreto regulamentar extraem-se consequências (substantivas) para a iden-
tificação de um tipo jurídico-constitucionalmente configurado de regulamento
administrativo.
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O Administrative Constitutionalism: Resgatar a Constituição… 413

Volvendo agora as considerações para o segundo problema, observamos


que a alínea d) do n.º 2 do artigo 133.º do Código do Procedimento Admi-
nistrativo (CPA) sanciona com a nulidade os actos administrativos que “ofen-
dam o conteúdo essencial (95) de um direito fundamental”. Sem que tal
implique a restrição dos actos administrativos inconstitucionais aos que atentem
contra direitos fundamentais (96), a referência a esta disposição exige que se
faça reflectir na teoria das invalidades do acto a compreensão alargada do «bloco
de juridicidade» pressuposta pelo princípio da constitucionalidade. Neste
sentido, Gomes Canotilho (97) alerta que “a pressão da força normativa superior
das normas constitucionais conduzirá a uma revogação da dogmática dos vícios
dos actos administrativos e respectivo regime no caso de actos administrativos
inconstitucionais”.
Uma alusão ao problema da inconstitucionalidade das actuações jurídicas
administrativas não ficaria completa sem uma reflexão sobre a existência de
meios jurisdicionais de controlo do enforcement da Constituição pelas autori-
dades administrativas. Como emerge da considerações já tecidas, a defesa de
um “acesso directo” à Lei Fundamental por parte da Administração não pretende
negar (mas, pelo contrário, complementar) a concretização constitucional
efectuada pelos tribunais — somente assim se alcança uma efectiva interdepen-
dência entre poderes e funções que, em estreita cumplicidade, põem em mar-
cha a Constituição em acção.
O âmbito do sistema de fiscalização da constitucionalidade (que compre-
ende todas as normas e, por conseguinte, também as emanadas pela Adminis-
tração) e o estado actual da Justiça Administrativa, legalmente desenhada em
função das exigências constantes do artigo 268.º da Constituição, não deixam

(95)
Pode criticar-se o emprego da expressão «conteúdo essencial» referindo-se quer
a direitos, liberdades e garantias, quer a direitos económicos sociais e culturais. É que
relativamente a estes últimos deverá falar-se em conteúdo mínimo. Cf. Vieira de ANDRADE,
Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, 4.ª ed., Almedina, Coimbra,
2009, p. 389.
(96)
Ainda no âmbito do n.º 2 do artigo 133.º do CPA, a doutrina aponta outros
exemplos de actos administrativos inconstitucionais. Cf. Dinamene de FREITAS, O Acto
Administrativo Inconstitucional (Delimitação do Conceito e Subsídio para um Contencioso
Constitucional dos Actos Administrativos), Coimbra Editora, Coimbra, 2010, pp. 240 e ss.;
neste sentido, a Autora acentua que “todos [os] actos administrativos podem, e devem, ser
submetidos a um crivo de constitucionalidade” (op. cit., p. 45).
(97)
Gomes CANOTILHO, Direito…, cit., p. 941.

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414 Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor José Joaquim Gomes Canotilho

dúvidas sobre a jurisdicionalização do controlo das inconstitucionalidades das


acções administrativas. Importa, contudo, avaliar, se tal controlo não poderia
avançar uns passos, no sentido da protecção de direitos fundamentais, através
da consagração de uma acção constitucional de defesa.
A acção constitucional de defesa ou a acção de amparo (98) caracteriza-se, em
termos sumários, por consistir num meio jurisdicional destinado a defender os
cidadãos contra a violação dos direitos fundamentais, perpetrada por actos
jurídicos ou materiais praticados pelos poderes públicos (99). A este propósito,
não devem ser escamoteadas as observações de Gomes Canotilho (100) a favor
da consagração de uma tutela específica de direitos fundamentais no âmbito
da Justiça Constitucional, inclusive no horizonte da defesa dos administrados
face às actuações Administração. Com efeito, argumenta o nosso Professor,
não estão definidas com clareza as relações entre uma lei inconstitucional e um
acto administrativo baseado nessa lei (101), assim como entre este último e a
própria Constituição, em termos que permitam afirmar com segurança as
consequências resultantes da invalidade do acto (anulabilidade ou nulidade).
Todavia, parece-nos que importa chamar à colação dois pontos essenciais: por
um lado, e como já acentuámos, os actos administrativos que “ofendam o
conteúdo essencial de um direito fundamental” padecem de nulidade — com
toda a relevância que isso acarreta em termos de (ausência de) prazo para a
respectiva impugnação; por outro lado, os titulares de direitos fundamentais
têm à sua disposição um meio jurisdicional de defesa de direitos fundamentais:
a intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias. Trata-se de um
instrumento específico de controlo do respeito administrativo por normas e

(98)
Sobre a designação «acção de amparo», cf. Carla Amado GOMES, «Pretexto…»,
cit., p. 545, n. 11, na senda de Wladimir BRITO, «O Amparo Constitucional», in: Direito
e Cidadania, n.º 7, ano III, Julho/Outubro 1999, p. 26.
(99)
V., por exemplo, artigo 41, n.º 2, da Ley Orgánica del Tribunal Constitucional
(Ley 2/1979, de 3 de Outubro), sobre o recurso de amparo, ou o artigo 93, § 1 (4a), da
Grundgesetz, sobre a Verfassungsbeschwerde.
(100)
GOMES CANOTILHO, Direito …, cit., pp. 940 e s. V. também GOMES CANO-
TILHO, «Para uma Teoria Pluralística da Jurisdição Constitucional no Estado Constitucional
Democrático Português», in: Revista do Ministério Público, ano 9.º, n.os 33/34, Janeiro/Junho
1988, pp. 23 e ss.
(101)
Não está em causa saber se o acto administrativo é ou não inválido. A invalidade
do acto há-de ter-se por verificada, por falta de pressuposto abstracto, uma vez efectuado
um juízo positivo de inconstitucionalidade da norma pelo tribunal administrativo.

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princípios constitucionais: com efeito, um argumento no sentido da desneces-


sidade — por se revelarem suficientes os mecanismos da Justiça Administra-
tiva — de consagração, na ordem jurídica portuguesa, de um «recurso de
amparo» (para o Tribunal Constitucional) sempre que esteja em causa a violação
de direitos fundamentais dos cidadãos pela Administração, poderá hoje residir
na consagração do processo urgente de intimação para protecção de direitos,
liberdades e garantias, previsto nos artigos 109.º e seguintes do CPTA. Trata-se
de uma acção que pretende, desde logo, constituir uma resposta para as situações
em que se revele necessária a emissão célere de uma decisão de mérito que
imponha à Administração a adopção de uma conduta, positiva ou negativa,
indispensável para assegurar o exercício, em tempo útil, de um direito, liberdade
ou garantia (102). Embora filiada no n.º 5 do artigo 20.º da CRP, a acção em
análise vai para além do imposto por este preceito (inspirado no artigo 53.º,
n.º 2, da Constituição espanhola), cujo âmbito de aplicação se restringe à defesa
de direitos, liberdades e garantias pessoais, preceito este que foi marcado de modo
decisivo pela necessidade de estabelecer um regime especial de impugnação de
actos administrativos que ponham em causa direitos fundamentais (103).
Todavia, e para além da importante garantia de defesa dos direitos fun-
damentais consubstanciada, em geral, nos mecanismo específicos da Justiça
Administrativa e, em especial, na possibilidade de impugnação de actos admi-
nistrativos, não pode deixar de ser salientado (104) que, aquando da apreciação

(102)
Cf. artigo 109.º, n.º 1, do CPTA; v. também o n.º 2, que confere a esta acção
um objectivo ainda mais amplo, permitindo ao tribunal suprir ainda uma actuação da
Administração no que concerne à repressão de condutas violadoras de direitos, liberdades
e garantias perpetradas por particulares.
(103)
Cf. as intervenções dos Deputados Vital MOREIRA e José MAGALHÃES, emitidas
aquando da análise das propostas de aditamento do n.º 5 ao artigo 20.º, in: Diário da
Assembleia da República, II-RC, n.º 19, 11.09.1996, pp. 446 e ss.; v. ainda Gomes CANO-
TILHO, Direito…, cit., pp. 499 e s.
(104)
Cf. também Casalta NABAIS, «Os Direitos Fundamentais na Jurisprudência do
Tribunal Constitucional», in: Boletim da Faculdade de Direito, vol. LXV, 1989, pp. 62 e ss.;
Vieira de ANDRADE, «A Fiscalização da Constitucionalidade das ‘Normas Privadas’ pelo
Tribunal Constitucional», in: Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 133.º, n.º 3921,
Abril 2001, p. 362, Autor que acentua ter o próprio processo de fiscalização da constitu-
cionalidade de normas uma vocação de tutela de direitos fundamentais, propugnando, nessa
medida, a necessidade de compreensão do conceito de norma por forma a abranger “quais-
quer normas jurídicas vinculativas” pertencentes ou reconhecidas pelo ordenamento jurídico
vigente, dispensando a necessidade do exercício de um poder jurídico-público.

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da juridicidade dos mesmos, deve o tribunal proceder à fiscalização da cons-


titucionalidade das normas aplicáveis in casu (normas essas que podem cons-
tar de regulamentos) — é este o cerne da fiscalização concreta da constitucio-
nalidade. Deste modo, os tribunais (incluindo os da jurisdição administrativa)
vão recusar a aplicação de todas as normas que violem regras e princípios
constitucionais (cf. artigos 204.º da CRP e 1.º, n.º 2, do ETAF), dos quais
assumem particular destaque aqueles que se reportam a direitos fundamentais,
havendo ainda a possibilidade, verificados determinados pressupostos, de
recorrer para o Tribunal Constitucional das decisões dos tribunais que apliquem
uma norma, não obstante ter sido suscitada a sua inconstitucionalidade durante
o processo, ou a desapliquem com fundamento na sua inconstitucionali-
dade (105).

§ 8.º Reflexões finais

Não persistem dúvidas de que o direito público se encontra hoje afectado


pela turbulência dos esquemas dogmáticos, os quais procuram assegurar à acção
administrativa valores (só) aparentemente contraditórios: a garantia da juridi-
cidade e, sobretudo, da democraticidade da acção administrativa, sem perder
de vista a eficácia e a eficiência na satisfação dos interesses públicos. Um dos
modos de o Direito Administrativo alcançar este desiderato consiste na expan-
são deste ramo jurídico-dogmático relativamente ao Direito Constitucional,
com o qual se interpenetra (106).
Sem que se chegue ao extremo de considerar o Direito Administrativo

(105)
Convém acentuar ainda que também os actos administrativos constantes de
diploma legislativos podem ser considerados «normas» para efeitos de controlo da consti-
tucionalidade, desde que se possam considerar incluídos dentro do «conceito funcional»
(que não meramente material) de norma forjado pela jurisprudência constitucional. A Jus-
tiça Administrativa analisará da validade do acto administrativo, com abstracção da sua
forma, enquanto a fiscalização da constitucionalidade incidirá sobre o preceito legislativo,
com independência do seu conteúdo materialmente administrativo. Assim, Gomes CANO-
TILHO/Vital MOREIRA, Constituição…, cit., p. 832, anotação XXIV ao artigo 268.º V. tam-
bém Alves CORREIA, Direito Constitucional: A Justiça Constitucional, Almedina, Coimbra,
2001, p. 77. Na jurisprudência, cf., v. g., Acórdãos do Tribunal Constitucional n.os 157/88,
de 7 de Julho (in: Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 12.º, 1988, p. 118) e 382/92,
de 8 de Julho (in: Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 22.º, 1992, p. 131).
(106)
Nestes termos, CASSESE, «Tendenze…», cit., pp. 902, 907 e s.

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mais constitucional que o Direito Constitucional (107), resta saber se o princípio


da constitucionalidade, enquanto princípio normativo transpositivo, poderá ir
mais longe e demandar a existência de uma Constituição dirigente da Adminis-
tração Pública (108). A formulação deste problema reveste um especial significado
no contexto actual de uma «crise de direcção» (Steuerungskrise) do direito,
decorrente do distanciamento entre a «exigência de direcção» (Steuerungsans-
pruch) das normas jurídicas e a sua efectiva «força de direcção» (Steuereun-
gskraft) (109). A existência de novos instrumentos vinculadores (não necessaria-
mente consubstanciados em normas jurídicas (110), mas constituindo esquemas
regulativos alternativos) do agere da Administração (provenientes dos quadran-
tes europeu e internacional) — directamente relacionados com a «crise do
Estado» — não pode obliterar que o direito se assume como um dado ineli-
minável, numa perspectiva concomitantemente ética, política, cultural e fun-
cional (111). Neste horizonte, a Constituição, para além de positivar o radical
ético e axiológico subjacente à comunidade juridicamente organizada, traça
orientações da acção administrativa, sem que tal signifique também, sob pena
de aniquilação da autonomia (constitucionalmente alicerçada) da função admi-
nistrativa (112), a defesa de um totalitarismo dirigista da Lei Fundamental (113).

(107)
GINSBURG, On the Constitutional Character of Administrative Law, in: http://
www.law.yale.edu/documents/pdf/CompAdminLaw/Tom_Ginsburg_CompAdLaw_paper.
pdf(Abril 2011), p. 2.
(108)
Atente-se, porém, que, como sublinha BADURA («Arten…», cit., p. 41), as
modalidades e a intensidade da vinculação dos poderes públicos à Lei Fundamental também
variarão consoante o tipo de normas constitucionais em causa (maxime, quando se trata de
normas que fixam tarefas — Aufgabennormen), as quais se apresentam variáveis dentro de
um espectro que vai desde as «normas de impulso» (Anstoß-Norm) às «injunções constitu-
cionais» (Verfassungsbefehl).
(109)
Cf., sobre esta matéria, KLEMENT, Verantwortung (Funktion und Legitimation
eines Begriffs im Öffentlichen Recht), Mohr Siebeck, Tübingen, 2006, pp. 12 e ss.
(110)
Ainda que a capacidade de prestação das normas jurídicas (desde logo, das nor-
mas constitucionais) também fique sujeita a novos desafios — cf. Gomes CANOTILHO,
«O Estado Garantidor: Claros-Escuros de um Conceito», in: Avelãs NUNES/Miranda COU-
TINHO, O Direito e o Futuro — O Futuro do Direito, Almedina, Coimbra, 2008, pp. 575 e s.
(111)
Assim também KLEMENT, Verantwortung…, cit., p. 19.
(112)
Para a autonomia da função administrativa chamava já a atenção PETERS, Die
Verwaltung als eigenständige Staatsgewalt, Scherpe Verlag, Krefel, 1965.
(113)
Sobre os limites ao dirigismo constitucional, cf., a propósito das políticas públi-
cas de direitos fundamentais, Gomes CANOTILHO, “Brancosos”…, cit., pp. 124 e s.

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O «constitucionalismo moralmente reflexivo» de que nos fala Gomes Canoti-


lho (114), quando aliado à “capacidade de prestação da magna carta constitucio-
nal face à sociedade e aos cidadãos”, permite articular direcção e consenso,
promovendo, em simultâneo, o desenvolvimento das actuações dos poderes
públicos (aí incluído também o poder administrativo) directamente à sombra
das normas e princípios decantados no texto constitucional e o reforço de
mecanismos de cooperação que estimula e dinamiza a intervenção dos cidadãos
e caminhos para a «constitucionalização da responsabilidade», enquanto “garan-
tia das condições sob as quais podem coexistir as diversas perspectivas de valor,
conhecimento e acção”.

(114)
Gomes CANOTILHO, “Brancosos”…, cit., pp. 121 e s., 125 e ss.

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