You are on page 1of 12
UNIVERSIDADE DE SAO PAULO Reitor: — Prof. Dr. José Goldemberg Vices — Prof. Dr. André Ricciardi Cruz. Geral: — Dr. José Geraldo Soares de Mello FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIENCIAS HUMANAS Diretor: — Prof. Dr. Jodo Baptista Borges Pereira ViceDiretor: — Prof. Dr. Joao Paulo Gomes Monteiro REVISTA CAMONIANA Dirego: Prof* Dr* Maria Helena Ribeiro da Cunha Consetho de Redacio: Prof. Dr. Prof. Dr. Prof. Dr. Francisco Maciel Silveira Consetho Consultive: Prof. Dr. Amético da Costa Ramalho (Port.) Prof. Dr. Apfbal Pinto de Castro (Port.) Prof. Dr. Arthur LeeFrancis Askins (US.A.) Prof. Dr. José Filgueira Valverde (Esp.) Prof, Dr. José V. de Pina Martins (Port) Prof. Dr. Luis de Sousa Rebelo (Inglat.) Assessoras de Direco: Anna Marla Coctho Silva de Campos ProPDr Marlise Vaz Bridi Ambrogi Capa: Assuero Ambrogi & Jinior 4 Rowsts Camoantsag PUBLICACAO DO CENTRO DE ESTUDOS PORTUGUESES DA UNIVERSIDADE DE SKO PAULO (BRASIL) [re cast Peo] 2 oe Val vo _ 1224 1984-1985: A FILOSOFIA DO AMOR DE MARSILIO FICINO Jean Festugiére ‘Néo hé aqui lugar para escrever a biografia de Marsilio Ficino, ainds que ela esteja por fazer. E, uma vex que, em sume, nessa ida estudiosa e solitria, 0s dnicos acontecimentos sio a publicagao de fated 6 wadusSes, initsenovemer a tragarihe uma breve co nologia. Nascido em Figlino, perto de Florenga, a 29 de outubro de 1435, desde 1456, com'a dade de vinte’e’ ts anos, Ficino leva 2 Cosmo de Médicia suas primeiras obras: 0 De laudibus.philaso- phiae © a8 Institutiones platonicae, coligidas em verses alexandri nas. Em 1437, dois novos tratados: De Amore divino e Liber de voluptate, onde compara as doutrinas de Platio, Atist6teles, Epi- ccuro € Zendo. Em 1458, seu pai, médico, e que o destina & me- dicina, envieo a Bolonha para estudar, mas Cosmo, que tem para esse _jovem grandes projetos. logo 0 chama e’ faz com que aprend: 0 grego (1458). Quatro anos depois, em 1462, ele ‘taduz os hinos érficos; depois, em 1463, a pedido de Cosmo, Mer- eério Trismegisto (De origine’ Mundi), 'o Pimandro, (1) Jamblico (De Secta Pythagorica), os Mathematica de Teéo, os Aurea Praecepta Pythagcrae © os Pythagorae Symbola. Enfim, no mesmo ano, grande- siente’ instado por Cosmo, Ficino apresenta sua grendc obra de tradutor, os Didlogos ¢ es Cartas de Platéo (1463) (2) (1) —0 Pimandvo ¢ Mercirio Trsmegisto foram, em seguda, tradu- ios Go latin de Ficing para 6 toscano pot Tomsso Benci- O Pimandro § una olega0. de ltvos hermdccs provententer das excola flosSeas do. Eglo. (@) — Sobre o valor de Marsilo. Fino, trdutor de Platto e'de Plo- too, ver Apéndice T. — 44 Em 1469, aparecem uma primeira redagio do Commentaire sur le Banquet ¢ 08 Commentaires sur le Phildbe, le Parménide et le Timée. Em 1474, 0 De religione christiana, e, a mais importante obra de Ficino como filésofo, « Theologia platonica. Em 1475, publica uma segunda redagio do Commentaire sur le Banquet © 0 Commentaire sur le Phédre. Em 1485 © 1486, comenta e traduz as Eneidas de Platino. Enfim, em 1485, surge sua altima obra: o De triplic! vita. Morze em 1499 com sessenta e seis anos. Desde a juventude até a morte (1457-1499), escreveu um né- mero considerdvel de eartas, das quais algumas aio verdadclros tra: tados; € necessério Ié-las para bem compreendéo. Assim viveu Mersilio Ficino. Sedentério, foi sobretudo um tra: bathador infatigivel e apaixonado, pois um grande sonko o en: cantava. Sendo padre, bem via que 2 sua volta nfo mais se tinha fé. Quis, entao, ressuscité-la, e conduzit os ateus até Cristo, ensinandothes Platio: “Philosophica ingenia ad Christum per ve. niunt per Platonem” (Carta a Pico dolla Mirandola (1492). B assim que, num Commentaire sur 'Epitre de Saint Paul aux Romains, como em seus indmeros sermées, cita os magos da Pércia, (8 padres do Egito, os fildsofos pitagéricos. Zoroastro, Plato © os Alexand:inos, com a mesma convicg0 que a Escritura ou os Padres. E, na Theologia platonica, mostra que Plato nfo nos proibe de crer no dogma da teologia hebraica, cristae frabe da eriaca0 do mundo: “Plato non prohibet fidem ‘adhibere Theologize Hebracco- ‘rum, Christianorum, Arabumque commun, scilicet tum”. E ele estabelece uma concordincia exata ¢ 1 {il6sofo © Moisés, a Biblia © os hinos érficos. Mais do que isso, concordando com’ Filon, esti persuadide de que o proprio 36 podia ter tirado seus mistérios dos livros dos Hebreus: ““Philonis Numeiique temporibus primum coepit mens priscorum Theologorum in Platinocis chartis intelligi" (Ds religione Christiana) (3). E, slids, no seu. Commentaire sur le Phédre, afirma que o amor do qual felam Plato ¢ Sao Paulo nfo € apenas o mesmo amor: o amor da Beleza, que ¢ Deus, “Deum tandem amamus ut pulchrum, quem jam Pridem dilexeramus ut bonus Foi bem sucedido? Talvez. Em todo caso, depois dessas duas obras, 0 De Reine Critans « 0 Thecofis atanen ae te Passou a ser visto como um segundo Plato. = (3) — Nese tratodo, entretano, Ficino se apSia sobretmdo nas Santas [Eseries e, em particular, ao Antigo Testamento que parece ter couhecs muito bem. — 14s — Numa edigao da sua tradugio de Plato, soguida da Theologia Platonica, que apareceu em Veneza em 13 de agosto de 1491, leemse, no frontscipio, esses versos de Naldo Naldi: "Cum deus ethereis une mittee vellet ab ors, Qui supero nobis = jove dona date, Diviaom celee demitit’ ab arce_platons, (Gui sacra tutelae philosphia fore. Accipit, offciamaue datum Plato Inctus et acri ‘Mente subit tante jora tuenda dee; ivs 2c posit capt redimicula mite, Ungit et uogueatis tempus utrungue sacis, Membra tepit peplo, quod palladis eset amictus, Sub pede purpureas spargit ubique rosss, ‘At modo ne pereat tante pietatis image, ‘Neve suum perdat philosophia decus, Macsilins teri, alter Pato reditus est, qul Facet hee exdem, ie dedit ile prive “Desde minha juventude, diz Ficino, fui discipulo de Pl ‘a tenera aetate nominis platonici cultor’ (4); e ainda: “Ego a teneris annis divinum Platonem, quod mullus ignorat, sectatss sum’. (Carta 2 Paliciano). Conheceu-o inicialmente por meio de trés tratados Cloero, as Acadlémicas 0 De Divinitatione ¢ 0 Sonho de Cipido, Esses trés tratados agradaramlhe e deviam mesmo egradarthe: um, orgie o espitito de conciliagdo que al se manifesta s6 poderia ser ‘aczita pelo futuro conciliador do neoplatonismo e do. Cristianismo; outro, porque Ficino acreditava na teoria platénica do sonho, isto & que 0 espitit, libertado pelo sono das cadeias corporais, ‘pode ver, como diz Cicero, “ea, quae permixtus cum corpore videre non potest” (De Div. 1, 128); 0 thtimo, enfim, porque 0 sentimento de vaidede das coisas terrestres, a aspiracio & Verdade, & Beatitude co- leste que ai se encontram, correspondiam maravilhosamente ao tem- ‘Peramento melancélico de Fieino e a seu desejo de atingir uma vida mais bela, Assim, desde sun juventude, ctiase uma notivel correspon: dencin entre a personalidade de Fino e as tories pltonices. Alia, como observa A. della Toree, sua simpatia pelo platonismo intent ficouse pelo fato de ser ele uma alma mistica, évida de ideal, a quem pouco importunava o aquilhgo da came. Eo que afirma (4) — Dedicatéria dos seus Comentério sobre of Dislogos de Plantio a Lourenco de Médicis. — 146 — Giovanni Corsi, um de seus companheiros ¢ seu bidgrafo (5) libidinem nequaquem proclivis” (p. 335). Prova disso é uma carta que Ficino envia, ainda muito jovem, a seu amigo Pellegrino Agli, @ 1°, de dezembro de 1457 (6). Essas péginas so de grande interesse: elas nos mostram Mar- sitio Ficino, aos vinte € quatro anos, fervoroso adepto do amor platGnico e mestre de suas idéias sobre o delitio divino, a beleza © © amor. Nelas inspira-se, sobretudo e bastante diretamente 1 Plato, particularmente no Fédro e no Fédon, ¢ jé procura concili Platfo ¢ Cristo. Assim, sobre a doutrina platdnica da reminiseéncia, depois de observar que os homens, segundo Platio, néo podem Jembrarse das coisas divinas, se nfo sd0 excitados pela viseo de suas “sombras”, de suas “imagens terrestres”, apreendidas pelos. sen tidos do corpo: (nom enim Plato divinorum putat unguam homines eminisci nist quibusdam eorum quasi umbris atque imeginibus quae ‘corporis percipiantur sensibus, excitentur”), acrescenta: “Iaque Pau. lus ac Dionysius, Christianoram Theologorum sapientissimi, invisi Dilla Dei asserunt per ex quae facta sunt, quaeque hie cernuntur intelligi”, frase de onde se depreende que Ficino parece acreditar gue esta doutrina pauliniana, segundo a qual os designios invisiveis de Deus manifestamse pela criagao, € inteiramente titada de Platéo. ("Itaque. ..”). Tendo recebido duas certas, uma em prose, outra em verso, de seu amigo Pellegrino Agli, Ficino acha-as to’ notdvels a ponte de dizer que Pellegrino cra inspirado por esse delirio divino sem © qual “Demécrito € Platéo negam jamais ter existido um grande homem’’. E sobre isso, expe a seu amigo toda e teorie de Platao ¢ ensinelhe “o que € esse delitio, sob quantas formas aparece, que deus, enfim. preside cada uma dessas formas”. ating Bs Se entrar no corpo, nossa sima vivia no ef4 onde imenitava e gozava, como diz Socrates no Fédro, da contemplaga: “Ga Verdade, de Deus. “segundo Méreurio Trismegisto, 0 i é morad suprema e a luz (ou 0 Sol) onde brilham os modelos de todas as coisas, isto é, as Ideas, ‘@ alma que ‘contempla assiduamente a inteligéncia divine percebe, fem seguida, mais claramente, 2 essSncia de cada coisa Nossa_alma_via, portanto, a justiga nela mesma, 5 diz. Platio, ino aqui quase traduz palavra por pelavr i; via’ a sabedoria, (5) — Giovanni Corsi: Marslit Feint Vita. Pse, 1772 46) — Ficin, Opera. Tomo I, p. 598. “oferece & Sua vista a7 ‘2 harmonia, a beleza, em suma, tudo o que Plato chama de déias ou de divina esséncia, e da qual se alimenta com felicidade ‘2 Inteligedicia humana, enquanto a alma habita 2 celeste morada. ‘Mas, ao ser presionada pelas inquietagGes e pelo apetite das coisas ferrenas, a alma, que antes se alimentava de néctar e manjares, is to 6, da visio de Deus e do perfeito gozo que esta visio causa, des ‘eendo-agora sem se deter, mergulha no rio Létis e esquece as es- séncias divinas. E nunca mais voaré de volta para o cu, se no as romemorar com a ajuda da Justica e da Sabedoria, pois é por meio dessas duas asas que a alma pode voltar & moradia celeste. ‘Mas, como diz Plato no Fédro, s6 a alma do filésofo encontra suas sas, pois 36 ele pratica as duas virtudes ativas contemplativas da justica e da sabedoria. E esta alma s6 as recuperard 0 se separar do corpo e encaminharse, num esforco violento, para Deus. Pla- tao chama de delirio divino a essa separacio do corpo, a esse esfor- 0 da alma. Maravilhoso delirio! Apoclerase de_nés quando, ou- Vindo sons harmoniosos ou contemplando um_belo corpo, faz-nos retordar a harmoniz, a beleza essenciais. Poucos homens praticam- “snirsabiamente, ¢ no € como os olhos do corpo que a conhecemos: ibém cla permanece escondida para a maioria das pessoas, Mas juem a vier descobric, ser transportado para um admirdvel e su lime amor. Assim a beleza, 2 hermonia, captsdas pelos sentdos, lembram 4 nossa alma essa outra boleza, essa ovtra harmonia da’ qual des frativamos outrora. A. essa lembrange, salma inflamase, suas ‘sas inflam ¢, pusificada das nédoas do’ corpo, movida pelo’ faror divine, enconirase-diante da verdadeira, da, intigivel beleea que Vat até ela com um ardor inefével. £ o amor divino, e Plantao asim { define: 0. deseo de contemplar novamente a beleza divina Essa _ ‘eleza_na Verdeds, nfo € a snieat qual deve aspirar 0 homem arrebaiido pelo deltio: & necessério que deseje também a que s® terra, pois est esabelecido que, aquele que ama im objet, ama tudo aquilo que se the assemetha. Mas se 0 Thomem se limita a cobigar essa beleza terrestre, que & apenas a sombra da divina (beleze), nfo é mais o amor que 0 abrassara, mas ‘uma yolipia lasciva e insolente que féo-8 morter em simesmo, pondo sua vide na dependéncia do objeto amado. Triste paixao: ‘© homem erra numa prisso tenebrosa; tudo © que € alto e belo, da- ui para frente, he € inacessivel. Ao contrério, © delirio divino que, ao arrebatar o homem, fé-lo morrer em si e viver em Deus, 0 amor de Deus, no qual residém a beleza suprema, a harmonia per- feita: eis 0 objetivo do filésofo © a ambigio do verdadeiro sébio. ie — 148 — Quando esses sentimentos se manifestam aos vinte © quatro anos, podese télos como sinceros e duradouros. Nio se trata de conse. thos de um velho fatigado: quem fala 6 um jovem que expée a teoria do amor divino, na qual se resume iodo um verdadeito amor, um jovem que condena ¢ estigmatiza a voldpia. & a melhor roa’ de que Ficino expée verdadciramente o mais fntimo do seu ser Essas inclinagSes no esmoreceram. Muito pelo contrétio, for- tificaram-se com 0 tempo ¢ acabaram por formar todo um sistena filoséfico, como nesse Commentaire sur le Banquet que estudaremos mais & frente Entretanto, como Platio, seu mestre e seu deus, Ficino se. comprazia também em falar do amor e, de bom grado, lowvaveo._ tate enldo de verdadeiro amor, gragas a0 qual, a morada pita os amantes nos bragos um do outro para confundir eunir suas carnes (7). 2 Ainda que muito severo mesmo, era indulgente © benevolente ‘com os outros. Seus jovens amigos contavamhe seus amores (8) queixavamse diante dele dos rigores de suas amadas e ele os consolava, Mas Ficino nunca mudou. Fra essa sua maneira de pensar com a idade de vinte e quatro anos, em 1457; seri a mesma em 1467, 08 trinta © quatro anos, quando escreve o Commentaire sur Je Banquet, © assim permanecera até sua morte. Na De Vita Sara, concluida em 1489, com cingilenta e seis anos, onde Ficino se mos: tra ao mesmo tempo filos6fico e médico, depois de afirmar que os homens esto expostos, no caminko da verdade, a muitos monstros que os dettm, acrescenta estas curiosas palavras: “O primeo ‘monstro € 0 ato venério, sobretudo se exceder por pouco que seja as forgas naturais, pois logo ele debilita os espiritos, principalmente os ‘mais sutis, debilita o eérebro © prejudica o estimago © as partes obres, que € 0 pior mal que pode acontecer & inteligéncia. Porque, ‘eu vos pergunto, para Hipécritas 0 ato venério era comperdvel & @, cap. TIE (@) — Ver as poosis de Naldo Naldi dedicad ‘In Conviviun Pletons de amore Commentarium, orato VI 1 Ficino. — 149 — loucura? $6 pode ser porque ele perturba o Pensamento, que é sagrado, ¢ he traz tantos prejufzos, que Aviceu disse no livro dos Animais... Fm suma, a Netureza no afastou nenhum de seus sentidos mais distantemente da inteligéncia que 0 sentido tactil” (9). Sempre condenou_a voltipia © sempre agradoushe discorrer sobre o amor: “in Iibidinem nequaquam proclivis, in amorem te men non secus ac Socrates rapiebatur, moreque Socratico de amore in auditorum suorum frequentia colloqui solitus ac disceptare” (Cor- si, p. 335). E isso 0 que testemunha uma carta, que se deve datar de novembro ou dezembro de 1490, enderegada a Paulan- tonius Soderinus, “vir elegans”. Nela comunica ao amigo uma conversa mantida na “Mammola” (10), um circulo alegre, formado nessa época por jovens elegantes que queriam afastar as preocu- pages: “‘Coetus eivium quorundam elegantium et ptantiun tran uillitatem, nomine “Mammola” (Carta a Bernardo Oricellal). Fi cino af era rei e senhor declarado. Ora, tendo Lourengo de Médicis afirmedo néo ser possivel admitir nesse circulo os amentes, porque eles so afligidos da maior inguietagio, Ficino responde, que 80 contrério, era necessério admittos, pois’ o tormento libertou-os de todas as 'preocupasées vulgares da vida. E realmente qual & esse tormento para 0 verdadeiro amante? Divino: “‘non humana jam curat, sed divine”. O que ele quer encontrar 6 a beleza divina, da qual a beleza ‘terrestre, que vé, € apenas 0 reflexo. Porque no percebe logo isso, softe. Mas esse softimento néo é humano, 56 bane a esses, deve, portanto, admitir tal Eu poderia citar muitos textos que nos revelatiam Fi sempre figado so mesmo culto, como este carta (11), enviada no final do ano de 1477, onde, entre outras coisas, ele piusque Amator res ereatas non ob aliam causam dilgit, nist quia creatoris Dei quem amet, vel imagines sunt, vel umbrae, et quan- to similiores apparent, tanto magis admiratur et laudat, simillimae vero divinae mentis sunt mentes Deo prac esteris dedicatae...”. Mas jé 6 tempo de tratar da obra que, quanto & filosofia do amor, se sobrepie a todas as outras: © Comimentalre sur le Banquet Ficino redigiuo uma primeia vez em 1467, inspirado por Giovanni Cavalcanti: Commentaria in Amorem scripsit, ad quem i (9) — Las trois lives de la vie. Paris, 1581, Lio J, captulo VI, Hw. (10) — Ficizo. Opere. Tomo 1, p. 994 (11) = Cana Hermotaus Barbarus — 150 — brum compronendum Joannes Calvacantes, vir Patricius ac Marsilio cum primis carus, adhortatus est” (Corsi, p. 309). Informagéo Ficini Florentini in convivium Platonis de amore. “Marsilius Ficinus Joani Calvacanti amico unico « yaduety , Jam pridem, cuavicsime mi Joannes, ease amorem, ac mundi fotius habere claves ab arpheo, deinde quid sit amor’ et quantus 2 platone didiceram. Quam vero vim deus hic et potentiam habeat, fannos me quatuor et triginta Istuerat, donee jam divus quidem heros, oculis mihi celestibus annuens miro quodam nectu, quanto sit amoris potentia, demonstraret. Hine igitur res amotorias ‘abunde, ut mihi quidem videbar, edoctus hune de amore librum composi: quem, ‘manu mea Scriptum, tibi potissimum dedicare constitui, ut, que tua sunt, tibi reddam. Vale”. (12) Hé dez anos Ficino encontravase em estado de tristeza © depressio. Nele se tratava a Iuta entre suas convicgdes filoséficas seu sentimento religioso. Como a razfo e a fé eram nele igual. mente sinceras, sofria. Foi quando, diz Corsi, seu biggrafo, Caval- anti incentivou-o a compor 0 Commentaire, “eo consilio, ut eodem tempore et dolori obviem iret, et variae pulchritudinis amatores ad immortalen pulchritudinem revocaret”. Provavelmente 20 procarar amar 0§ outros, Ficino curou a si mesmo. Fezse a harmonia fem sua alme quando compreendeu e seguiu a grande lei do amor ensinada pelo “Banguete” Suas obras, desde esta data, refletem um pensamento sezeno, lum corago no perturbado. Ficino escreveu 0 Commentaire sur le Banquet uma segunda ver em 1475 ¢ a pedido de Lourengo de Médicis, por ocasiio do banquete platOnico que se deu em Carcgsi a 7 de novembro de 1474, como o provam estas palavras: “Io per rimedio de’ Latini il libro'de Platone di greca lingua in latina tradussi, et confortato dal nostro Magnifico Lorenzo de’ Medici, i misteri, che in detto libro erano pit difficili comentai” (preficio da tradugio iteliena do Commentaire (13). A essa segunda redec&0, que suptimiu a vida de Platio, 0 horéscopo ¢ 0 resumo da sua filosofia, presentes (12) — Rose manuserito & de Lavrenziano Stroziano XCVIM. (13) — Feita pelo préprio Ficino e publicadh por Cosine Bartoli com 0 titulo: Marsio Ficino sopra lo amore over convito di Platone. Forenya, 184d, = 151 = na introdusio_ da primeira edigdo, faremos referéncia dequi por diante,” Traducide para o italiano por Ficino, cla foi veri para o francés, a principio incompletamente, e sem a sua eutorizaydo, por Champier (1503), © por Gilles Corrozet (1542), ¢ depois, na Integra, por J. de la Haye (1546) por Guy Le Févre de la'Bo- derie (1578), "Fsses tradugtes, sobretudo a sltima, so em geral bastante exatas. Sigo a de Le Fevre de Ta Boderie, que tive co- migo durante: muito tempo Numa carta “a Bernard del Nero e Antonio Manetti, seus ca rissimos amigos”, no comero do tratado, Marsilio Ficino expée 0 objetivo a que s¢ propos ao escrever: “de certa forma, todos, con- tinuamente, amamos © quase todos amamos mal: ¢ quanto’ mais amamos, tanto pior amamos” (p. 11). Ficino quer, portanto, nos ensi nar o verdadeiro amor, 0 amor divino. Aliés, nessa nobre mistio, no esti 96. “O supremo amor da divina Providéncia para nos conduzir no ceminho certo, abandonado € esquecido por nés, desde © século antigo inspira na Grécia uma castissima dama chameda Diotima, sacerdotisa pag que, por ser inspirada por Deus, encon- trando © fillsofo Sécrates inteiramente abandonado 20 amor, per- guntouslhe que coise era esse ardente desejo e por que meios po- ddfamos gozar também do bem supremo. Sécrates revelou esse s2- grado mistério ao nosso Plato. Platdo, fildsofo, acima de todos (08 oiittos, excelente em piedade e religiio, logo ‘compés um livro para curar os gregos”. E Ficino, “para a cura dos Latinos”, isto 6, dos humanistas, seus contempordncos, traduziz 0 livro do grego para_o latim, depois comentou “os mistérios mais diffceis”. Mas ele ndo para af: lembrando-se das palavras de Lourengo de Médicis, {que pensa, com Platio, “que um bem & tanto maior quanto mais mndido © universal, como o & por natureza, aquele que se chama 0 sumo bem “(ogni bene essere tanto miglioze quanto 2 pid communicabille ed universale come & di natura sua quella che si chiama sommo bene)” (14), “a fim de que, portanto, essa mio salutr, enviada do céu a Diotima, seja mais comum’e fécil a ‘mais pessoas", traduziu do latim para o toscano ‘os ditos mistétios platénicos” A carta termina com uma prece nobre e grave, aliée, pouco surpreendente sob a pena desse fildsofo que via no’ Banguete um oréeulo profético © em Plato, um percursor: “O Santissimo Esp rito do amor divino. que inspirou Diatina, ilumine nossa intel Ga —Gommento di Lorenzo de! Medici sopra aleunt de suot sovettic Ea. de Veneea. 1588, f. 117, - 152 = stncia e fome conta de nossa vontade de modo que nés o amemos, fem todas essas obras “belas” e, em seguida, que nés amemos ‘suas obras nele e gozemos infiniti i © preficio apresenta-nos um quadro encantador. & um prae rer Iélo nesse estilo ingénuo e simples do velho tradutor. Para comemorar o nascimento e a morte de Platéo, que, “tendo com. pletado 81 anos de idade a 7 de novembro, dia também de seu hascimento, estando & mesa e tendo sido levadas as carnes, exp: rowihe a vida", Lourengo de Médicis, a exemplo dos neoplatGnizos Plotino e Porfirio, convidou nove “‘platdnicos” para um banquete, Es. {80 1 reunidos, ne bela casa de Careggi, onde Lourenco os recebe “com aparato real”, Antoine de Gli Agli, bispo de Fiesola, 0 mé- ico Ficino, pai do filésofo, o velho mestre Cristéforo Laudino, autor das Camaldulenses disputationes (15), Bernardo Nuti, 0 Re. ‘tGrico, Tommaso Benci, que verteu para o toscana Mercdrio Tris. megistro © 0 Pimandro, traduzidos por Marsilio do grego para o latim, Giovanni Cavalcanti, “nosso familiar, que pela virtude de seu corago, pela sua mui nobre srarncia foi apelidado pelos conve dados de Héros”, os dois irmfos, Carlo e Cristoforo Marsuppini Finalmente, © organizador do banquete, Frascesco Bandini -~ “0 Imestre de ceriménia Frangois de Baude”, como curiosamente o chama J, de la Haye —, homem excelente pelo espirito e magnificéncia C'vir ingenio magnificentiaque excellens”) (16), quis que Marsilio Ficino fosse © nono para perfazer o miimero das Musas. “E quando ‘a cares foram levadas, Bernardo Nuti tomou o livro de Platio, intitulado © Banquete do amor, e dele leu todas as oragées ¢, uma ‘vez lidas, pediu a todos os outros convidados que cada um ‘expur esse uma”. Cavalcanti comentari, entio, os discursos de Fedro de Pousinias; Landino, 0 Aristéfane; “Carlo Marsuppini, o de Agaton; Tomasso Benci, 0 de Sécrates; Cristoforo Marsuppini, © de Alcibiades. Raro espetéculo! Depois de um banquete suntuoso, esses ho- mens no falem de coisas intensdes alegres; com fervor religioso, inleiam-se nos mistérios platénicos , “‘irmios de Plato”, piedosa ‘mente galgam @ escada do amor. B preciso segui-los e, das palavsat de cada um, depreender 0 pensamento tnico de Ficino que oF (15) — Paris, 1511. (16) — Fieino, Epis, 1687, vol. VIN, as 4 = 13 — ““O amor 6 tido como digno de admirapio pois cada um ama 2 coisa, « beleza da qual ele se maravilha (f 2°)". (p. 14). O amor 6 éntio, atrafdo pela bélezs: “Quando dizemos amor, entenda-se © desejo de Beleza (f. 8 v9)”. Ora, 0 que 6 a Beleza? “E uma certa graga que, sobretudo © muito freqiientomente, nasce da cor respondéncia de muitas coisas ({. 8 v*)". A beleza da alma, € a correspondéncia de muitasvirtudes; a belza do corpo, a corespondén- cia de muitas cores © linhas; a beleza dos sons, a’ correspondéncia de muitas yozes. Somente se. conhece primeira beleza com 0 cntendimento, « segunda, vom ov oll, # teveirs, com us vuvides ‘Assim, 0 entendimento, 2 vis8o © atdigio sao “as tinices coisas por meio das quais podenos gozar desia Beleza". © amor, entre- tanto, nés vimos, € somente o desejo de fruir a beleza, é ese seu Xinico objetivo, seu vinico fim. Mas como ele 96 pode conhecé-la ppor meio do pensamento, da visio e da audigio, esses trés instru mentos do conhecimento bastam, portanto, ao amor: “‘ele af se limita e termine” Desde logo perecbe-se que a conseqiéncia desses principios te- th grande inportincin ‘a concepio. 0 amor no sata XVI. © snr nts unser, epi tu Vz te ete entdoe 0 sonente lores, sabres, calor e fro, mole f que nfo w flonan com a Belen, “E sim, 0 ape que fetsgue eat senidn nfo € 0 Amor, run ante vo chuma. dese libidinoso ou raiva”. Eis a origem filoséfica desse amor casto, dessa "erdadir "putea amide’ da qal Marga de" Navaro Here! et Scbve logo te lornndo adept» deere, Hi mais. A beleza € correspondéncia, isto é, ordem, harmonia. Supe uma medida, um ajuste das partes 20 todo © de todas partes entre elas. Submetida s uma regra certa, “ela uma certa temperanca: donde se conclui que 20 Amor somente apetecem as coisas que sio brandas, modestas e honradas. Assim, os prazeres do peladar € do tato, que si volipias, isto 6, prazeres tio vee- ‘mentes e furlosos que tirm 0 entendimento de seu proprio esta- do e repouso, ¢ perturbam o homem, quanto mais o Amor os deseja, tanto mais elo os abomins, e foge deles, como de coisas que, pe- Ja sua intemperanga, sic contritias & ‘Beleza. A raiva venérea, isto 6, a luxdrla, conduz os homens & intemperanga e, conseqi temente, & nio-correspondéncia, O que semelhantemente parece evar a’ deformidade, isto é, & feitura © desonestidade, © 0 amor a Beleza. A deformidade e a beleza sio contrérias. Esses movi- ‘mentos, portanto, que nos conduzem & deformidade © a beleza so. — 154 — também contrérios entre si. Por causa disso, 0 desejo do abrago © 0 Amor nfo somente nfo $80 os mesmos movimentos mas so con- {rérios entre eles mesmos (f. 9 v2 © 10 :)” Mas, por isto mesmo, te & preciso condenar a volipla & Ha, devese também proctrr oY Amor, pois "todo Armor € ho. esto, ¢ todo Amor & justo, porgue todo Amor € belo @ howsto ¢ ‘ama exatamente es coisas que Ihe so semelhantes”, isto ¢, belas 6 deenesNobre fda, © que se enconte também em toda’ 2 poe Sia do inicio do Renascineno, em Troe, parculamente, em epi de Near, Lenbrono do cnoje do Testo live a Paraite Arye e com gue segura ousatia esa jem: glorica 9 Amor (versos 1171 a 1177): = _ = “Dames, icy ne trouvee point esrange Me veoir entre en si haute lovange. (Ce serait peu qu'il (17) fast cause de Teste, Si ne vouliez pat mes risone congnoistre Que cest Iny sul, qui fe bien nous delivre [Ex qui nous faict tous heurevsement vivre.” fonne) Mas nada se compara ao entusiasmo, & exaltagio quase mistica de Margarida Navarro, & admirivel efuséo lirica de sua pastora no fim da “Comédie de la Mondaine, fa Supersticieuse, la Sage, et ta Raine de Amour de Dieu, bergire” "0 dovx Amour au doux regerd, Qui me transperse de ton dar(a)! © Mignortt © entre suas Chansons spirituelles, aquela que comesa assim "0 tergire, mame, Je ne vis que Pamours; Vray amour et ma vie Quistaymer me convie...” (18) cconstitui 0 poético comentario dessas palavras de Marsitio Ficino. Nao se deve, lids, acreditar que esse casto amor jf seja 0 ‘puro amor divino. Tudo 0 que expus até agora sobre a doutrina ficiniana s6 diz respeito ao amor humano, mas ao amor tal como (7) — © amor, (18) = Derires podrien. BA. Abel Lefranc, p. 116 © 323. — 155 — Ficino o entende, nfo & volipia. No hé nenhum desdém do fil6sofo italiano ou de seus discipulos em relacéo ao amor da beleza dos corpos. E, com efeito, como ele o desprezaria, uma vez que esse desejo no € sendo o primeiro estigio de uma escela maravilhosa que, oferecendo a0 amante, de degra em degrau, objetos de uma qualidade sempre mais nobre, 0 conduz gradativamente 20 poz da eterna e divina beleza? Essa dialética se baseia num dos principios mais interessantes da filosofia platdnica e de todo o pensamento grego: a identifi- cago do belo e do bem (19). xslogelyadss. Belo e bom. Que espécie de vida superior tal expressio conota? O homem & belo porque € bom e, forgosamente, bom, se € belo. Essa identificacio conservou um sentido, entre os Aterienses, nio somente filoséfico, mas também concreto. A estética © 2 ética encontramse para for- mar 0 ideal que fosse mais capar de exaltar o homem ¢ elevé-lo: eis o que sempre garantiré para os gregos a nossa admiragio, apesar de suas discdrdias, egofsmo, crueldade. Ficino compreendes bem esse principio de Plato. Ele 0 for- ‘mula repetidas vezes © em termos decisivos. “O mal do homem, diz ele (f. 7 v2 et 8 9, € 0 que é desonesto, o seu bem é aquilo que & honesto” (20). O amor distancia os homens do mal “por- ‘que ele afasta a vergonha das coisas feias””. E mais adiante: “Nés nngo vemos @ alma e, conseqiientemeste, néo vemos sua beleza, mas vemos 0 corpo que & imagem ¢ sombra da alma, de forma’ que, concluindo a partir dessa imagem, imaginamos que um belo corpo tenha uma bela alms, Daf resulta que admiremos, de muito bom grado, os mais belos” (f. 152 v2) (© amor 6, portanto, segundo Ficino, o desejo de uma certa correspondéncia, que é a beleza, “explendor que transporta a si a alma humana. ‘A beleza do corpo & somente o esplendor de oma mentos, de cores ¢ linhas, a Beleza da alma, uma aura na conso- ‘ndncia ‘das cidncias e costumes”. Quem & 0 autor dessa correspon dencia, de onde vem esse esplendor que ilumina a alma c 0 corpo? © capitulo V da Oragio segunda propaga por tudo! ‘omo a beleza de Deus se ‘nolo ensinaré. E preciso nos voltarmos para (19) — Nio & de admirar que a palavra saosuiyatis (belo e bom), ‘que Spaece constantemente em. Platio, 50 exista na lingua grega "Monestus" fm lim, no tem a mesma riqueza de sentido, G0)’ “Honesto” no século XVI, tex sinda um sentido muito préximo de *honestus": belo, no sentido proprio figurado. — 156 — Deus para nos encontrarmos na prépria fonte da universal beleza “A Beleza 6 um certo ato, ou antes, um reio”, que emana do. sol divino e difunde sua tuz por toda’ parte. Tnspirandose aqui em Plotino e usando mesmo de suas imagens, Ficino nos mostra a caminhada deste raio. Provindo de Deus, ele penetra primeiro no “Pensamento angélico (3 Aéyes = intligéncia divina para Plo. tino); depois, na Alma do universo e nas outras almas, em terceiro lugar, na natureza e, em quarto luger, na matéria dos corpos.. Ele “enfeita de Idéias o Pensamento, alimenta a Alma de Razses, forti- fica a natureza com sementes: veste com um corpo é meiétia”. Da ‘mesma forma que a luz do sol nos permite ver os corpos e, segundo as palavras de Ficino, criss, de certa forma, diante de nosos olhes, assim também 0 raio da Beleza divina, fonte da_beleza humana, faz-nos conhecer eta ‘hime ¢ nos incite a ambla, Eis porque 0 Apsixonado, nao por desejar a volépia que ““perturbe 0 hhomem e o conduz & feitira”, mas por deseer, a “majestade supre- ma que reluz nos corpos”, bem longe de querer tocar 0 belo corpo da Amiga, maravithese com o seu aspecto, temea e venere, “como uma estitva de Deus”. Ora, Deus nfo & somente belo, ele € bom. Na sua unidade, na sua simplicidede supremas, belo bom unem-se e confundem-s de uma maneira inefével. “Fonte perene” da Beleza, Deus igual- mente 0 6 do Bem. Assim, o elardo de divina beleza que penetra até 0 corpo Inumano, emanando da prépria fente do bem, € um clardo de divina bondade. Porque Deus ¢ bom, expande sua beleza fem todas as coisas; mas, essa beleza que Ele faz brlhar no corpo 6 ‘indicio somente de outra belesa, 2 beleza da alma. A mesa Juz que ilumina a alma e a impregaa de bondade, ilimina também © corpo € o reveste de beleza. Pois “em todas as coisas a perfeigio interior produz a perieigio exierior. Aquela, chamamos de Bondade, a esta, de Beleza. Por isso, queremos que # Beleza seja a flor da Bondede. E por atrativos e sedugSes dessa flor quase como se fosse uma isea, a Bondade que estd no interior, escondida, atrai e seduz 0s que estio em volta. Mas, uma vez’ que 0 conhecimento de nosso, entendimento tem © toma sua origem nos sentidos, nfo fentenderfamos nem captariamos jamais a Bondade interior, escon- dida, “das coisas, se fOssemos ‘conduzides a esta. por indicios @ tragos_da Beleze exterior. E nisso aparece a. admirdvel iil dade da Beleza © do amor, seu companteito” (f. 61 v*.e 629) Segundo esses textos claros, podemos compreender desde jé © papel dessa dialética do amor: “a Beleza, que € a flor da Bon- = 187 — dade, assim como nasce do bem também conduz os Amantes so bem”. Como essa luz que iiumina os homens € torna-os bons € belos provém de Deus, € © proprio Deus que, por meio dela vemos fe amamos. Assim, Deus nos incitendo a amar os. belos corpos que criow, arrebats-nos para si e faznos participar de sua infinite perfeigao.” Inteiramente inspirado nos misticos alexandrinos © em Dénis, © Arcopagite, Ficino Ihes toma aqui a famosa imagem do efreulo: “Se Deus encenta o mundo e 0 mundo esté encantado com ele, hé uma certa atracéo continua entre Deus e 0 mundo, que omega em Deus, passa para o mundo e, finalmente, termina em Deus, retornando de onde partiu como uma espécie de circulo. Se 6 um 86 © mesmo Circulo, aquele que vai de Deus 20 mundo e do mundo « Deus, € nomeado de trés maneiras. Quando comesa em Deus e atrai, Beleza; quando passa para o mundo ¢ o arre- bata, Amor; quando retorna ao Aulor e se une a suas obras, Delei tas20. O Amor, portanto, comecando em Beleza, termina em De leitasio... E 6 necessério que 0 Amor seja bom, como é necessirio que, nascendo do Bem, retorne a0 Bem” (f. 14 ¥°). Um pouco modificada, é a teoria da converséio em Deus, cara ‘aos neoplatGnicos: “Supremo autor, Deus primeiramente cria todas as coisas; em segundo lugar, arrebata-as para si; em terceiro lugar, délhes perfeisio. Deus é, portanto, comego, meio e fim”. Mas, se 6 por etapas que o claro de Deus ilumina os cor os, pois, antes penetra no Anjo ena Alma, 6 também gradativa- ments, e passando polos mesmos termos que, depois de ter prove: cad m ngs amor pelos corpus bel, ‘nos tae de nove a gem e, de deprau em degrau, nos conduz a imortal Beleza. B 0 que Mario Ficin nos expce ns simos capitulo ca Orapao VI onde ee encontra resumido todo 0 progresso dessa conversio em Deus Nenhum corpo € inteiramente belo, porque “ou ele € belo em uma parte ¢ feio em outra, ou ele é hoje belo © amanhi seré feio fou, na verdade, ele & belo aos olhos de um e feio aos olhos de outro. Os corpos, portanto, no tém a primeira, a verdadcira e a suprema Beleza”. Fssa beleza exterior nfo € senfo a flor de uma semente mais rica, de uma beleza mais pura: a beleza da alma ‘Assim, 0 Amante, diante de uma pessoa bela, deslumbrase, teme-a, Yenera-a, ama-a. Mas os olhos de sua alma logo reconhecem @ ver. dadeira natureza dessa luz que a ifumina ¢ 9 abrasa e, elevando-se dda beleza exterior & beleza interior, cle ama a alma de sua ami- 2, sua Bondade. — 158 — A Beleza exterior é desordenada, composta, imperfeite; @ Be- leza interior, inteira, simples, perfeita. Aquela ‘néo passa de uma “superficie exterior, com um pouco de cor” e quem a ama, ama somente um sonho, uma va ilusdo. Esta dltima é real e nfo en- gana: cla é verdade. Assim como o simples no pode nascer do composto, © uno, do miltiplo, o espiritual, do corporal, a beleza do corpo, simples e espiritual, que nao pode depender dela mesma, pois ela “habita em outrem”, nfo dependeré também do corpo, com Posto © material. E preciso, conseqiientemente, que ela depends de “um Artesio © opertrio, uno e incorpéreo”; esse artesio 6 & alma, Que 0 Amante se apegue, portant, 8 alma da amiga © que Com efeto, ¢ porque a alma ¢ tela que 0 corpo da ami € belo, © € 2 belect de sua alma. que nos deve conduit 0 anor provocado em 6s pelo seu corpo belo © Amante galgou o primeiro degrau. Conhece agora a Beleza interior da qual a exterior era somente indicio. Como se clevara ao degrau seguinte, a este Pensamento Angélica (b Adres de Plotino) que 0 aproximaré para muito perto de Deus? A beleza da alma é “invisivel Iuz”, ¢ esta luz, provinda de Deus, € verdade. Mas, “por causa de ‘seus diversos efeitos, ela toma diversos nomes de virtude”. As trés virtudes morais’ sao: Justica, Forca ¢ Temperanga; as trés virtudes intelectuais so: Se bedoria, Cigncia e Prudéncia (21). Se as primeiras slo inferiores as itimas e nos devem conduzir a estas, “elas sto belas, porque em todas esti a luz da verdade”. © Amante amaré, Portanto, ardentemente “‘esta luz, como suprema Beleza da alma” ‘Mas, da mesma forma como a Beleza do corpo, que é una, encon- tre-se dispersa pelos numerosos membros desse corpo © no pode, consegiientemente, depender dele (22), a luz da verdade, que é também una, dispersa em muitas virtudes, ndo poderia depender dessas virtudes © tampouco depende dela mesme, pois “habite em outrem”. E preciso, portanto, que “sobre nossa alma haja uma sapiéneia, que ela nio se disperse em diversas doutrinas, mas seja tuna e que, de sua tinica verdade, nasca a verdade miltipla dos homens. Esta nica luz da nica sapiénoia é a beleza do Anjo Inteligéncia divine), que € preciso honrar na beleza da alma”. (21) — Reconhecesse, sem esforgo, a clasificapfo arstotlica de vie tudes duces e vintudes dianodticas. (2) —E segundo este mesmo principio qve o woo nio pode nascer do smiipl = 159 — ‘Aqui se encontram as Idéias. Aqui as almas, abrassadas pelo ver- dadeiro amor, sentadas para o celeste banquete, provam a ambrosia © 0 néctar, “isto 6, a carne € 0 licor eterno”. "O desejo € banido para Tonge desta companhia divina ($svor Yap Zé” Felow zope8 Terraces cfr Fedro 247-B). Porque sendo a coisa mais alegre e agradével, que pos suir a coisa amada, cada um, possuindo aquilo que ama, vive contente e satisfeito”. Aqui, enfim, 95 amantes contemplamse etemamente tum ao outro, em toda sua pureza, em toda sua beleza gozam de uma deleitaggo sem limites. Maravilhoso reino que a alma deve se esforgar por atingir antes de conhecer a Beleza infinita, face face com Deus Pois a alma nfo alcangou ainda o Spice da escada, resta um ‘timo degrau. Acima desta luz angelical que, una, resplandece em dias miltiplas, “é necessério esta unidade, a origem de todo mimero. Por causa disso € necessério que a dita luz angelical saia e emane (23) do tinico prinefpio do universo, o qual se chama a Mesma Unidade”. Fssa unidade, “em tudo muito simples”, é a Beleza infinite. Fla & superior a0’ corpo, a alma e ao Anjo, pois ela nfo esté cuja das imundices da matéria”, nem dividida ‘numa multidio de virtudes ou Tdéias. “Inteiramente pura e livre de toda condi¢éo", a infinita Beleza exige também um amor infinito. So- ‘mente amamos a amiga por causa do clardo celeste, espalhado pelo seu corpo e pela sua alma. Eis agora o proprio sol de onde partem esses raios. Néo se trata mais da sombra nem da imagem de Deus, & Deus mesmo que vemos. E se, a, medida que nos ele- vamos na escada do amor, mais e mais nos abrassamos, de que chama no devemos estar inflsmados ¢ consumidos, agora que nos encontramos na pidptia fonte do anor! No amamos as coisas pelas coisas, mas Deus nelas; daqui para frente, € em Deus que nds as amamos, pois ele esté ‘‘todo fem todos”,’ como diré mais tarde Margarida ‘de Navarro, © todas a coisas estio nele. “Finalmente, quem se da inteiramente a Deus com caridade, reencontrase nele”. Assim, numa fusio {ntima e singular, amamos, a0 mesmo tempo, Deus, amiga e nés mesmos Este Extase nfo tem fim", (Oh admirdvel magnificéncia desse deus Amor! Oh Benignidade, sem comparagio possivel! Os outros espititos celestes, finalmente, Gepois de uma longa procura, apenas se mostram um pouco a nés. Mas 0 Amor se nos faz presente, antes que venhamos procuré:lo @3) — Terme bem pltinano, — 160 — “Por isso, meus amigos, adoremos esse divino Amor, que nos é tio benigno e favorével, da mesma forma que veneramos a Sabe- dotia e, com admiracéo, tememos 0 Poder, a fim de que, por meio do Amor, tenhamos a Divindade propicia, disposta a nos socorrer ¢, amando-a toda com a afeigio do Amor, também possamos, através do amor, gozar de toda ela” (f. 189° ev.) ‘Assim termina 0 Commentaire de Marsilio Ficino © a exposi 0 de sua dialética amorosa. O préprio tom dessa prece compro- Yothe a sinceridede. Compreende-se que tenha sido possivel haver, ‘uma religido do amor cija importineia foi grande. A i que € antes de tudo, e no seu principio, a. pro encontrava'se, entéo, desacreditada pelo abuso ia, maculada pela vida escandalosa do seus mi Ja: foi o que tentou Mar silio Ficino. Ele Ihe trouxe nova vida, ao imprognéla do mist cismo de Platio © dos Alexandrinos, © mesmo da Cabala, ©, 20 dar ele mesmo, como padre, o exemplo de uma conduta integra, contribuiu para’ reabilité-la. Mas, na verdade, no era mais a mes: ma religito. Foram acrescentados muitos elementos de uma filosofia Panteista, que o catolicismo no podia admitir e que le rejetou. Foi desea forme, entretanto, que a religfo do amor exerceu uma influéneia muito'real no pensamento da Renascenga, aids, revelada na literatura da época. Conheceram-ne primeiros humanislas france- ses, Gagrun, Le Févre, q’Btéples, Symphorien Champier. Nela se inspiraram 0s poetas.'Enfim, os misticos cristios praticaramna foi por meio deles que ela peisisiu até 0 século XVII (24). Ora, essa nova religido no estava absolutamente distante do amor cortés, cuja tradigio subsistia ainda no fim do século XV Sem divida, Ii onde a Idade Média somente tentara idealizar e refinar 0 amor por meio de “bons costumes”, Ficino eria uma filo- sofia profunda e coerente. O que ndo passava de tendéncia, tor- nase sistema; mas, por meio diferente que seja do culto medieval da mulher, nem por isso o culto platénico da Beleza devia deixar de parecer’ sociedade refinada, que lia 0s trovadores, como um en- riquecimento desejado, um magnifica desdobremento. Assim, fundi- ram-se os gostos e os sentimentos dos nobres © damas ca dow ‘tina ficiana. Sob a forma antiga reconhecet-se, entio, 0 conteddo (G4) — Ct. 2 respeto, a ineressussina oben de M. Henti Brémond Hinoire linkeaire ‘da sentiment reise en Fronce. Pati, 1916, Tomo 1; L'Htumanlsme dévote, 180-1660, particularmente 0 extudo sobre 0 padre Yves de Paris: Por ai vemos que Mario Ficio era um dos autores preferidos dese istic. P. 432, 0. 2 — 1681 — renovado. B essa mistura que nos oferecem os Azolains, © Courtisan, Le Discours des champs Faz; as refinadas discuss6es sobre 0 amor, nas quais jf se compraziam as damas da Provence ca Maria de champagne, agora sio completadas com belos discursos onde se reflete 0 pensamento grave e mistico de Ficino Antes de estudé-los, entretanto, € preciso dizer algumas pala- vias sobre a psicologia ficiana que eu no quis abordar na. ex: posiggo de sua dislética amorosa para néo lhe retardar o anda- mento. Também Bembo, Castiglione © todos os poetas tomam-the rnumerosos. aspectos. Como um veneno, a beleza da amada penetra pelos olhos na alma do amante. Ela “perturbedhe” 0 sangue e 0 inflama com febre de amor que queima ou congela, seca ou se liquefaz. Mas este € 0 menor dos seus efetios. Um fenémeno estranho, inusitado, vvaise processar. Mas ougam: Ob, meus amigos, eu vos imploro que... no vos espanteis com o que dizia Plato sobre um certo Amante, 20 qual, vendo-o enamorado, diz: “Fste enamorado é uma alma morta’ em seu préprio corpo © que vive no corpo do outro...” Platio chama, & ‘ado sem razfio, amor amargo porque aquele que ama, morre aman- do. E Orfeu chama o amor de uma magi doce-amarga. Sendo 0 Amer uma morte voluntéria, enquanto 6 morte, 6 coisa amarge, en- quarto & voluntiia, 6 doce” (. 29° © v2) (25). Qual &, pois, essa morte do amante? Quando o Amante ama, no pensa mais em si, mas na ami consegiientemente, néo pensa mais por si. Mas af entio, ele nfo age por si mesmo, porque “a principal agio do Amor é Pensar”. Nio agindo mais por si, ele nfo esté mais em si: “porque essas duss coisas, isio €, 0 ser e 0 agir, esto juntas. Com efeito, ninguém age onde néo esté, e, em qualquer lugar que esteja, age © opera”. Ora, se 0 amante néo pensa mais por si, no age ‘mais or si: nio esté, portanto, em si. Mas se no est4 em si, segura- ‘men‘e nfo vive mais em si; “ore, quem ndo vive mais em si estf morto ©, portanto, quem ama esté morto”. Desta forma, a amiga matou o amante, ele depende agora de sua vontade para que continue morto ou seja ressuscitado, En ‘io, ela nao o ams? O amor é simples € nfo reciproce? “O aman- (23) — Oragdo 1, capitulo 8: Exortaso 20 amor e disputa do. amor sinples, mituo © reciproco. — 162 — te esté inteiramente morto”. Ele no vive em si porque no esté mais em si. Nao pode viver no Ar, na Agua, no Fogo, na Terra, ‘ou no corpo de um animal irracional, pois “a alma humana nio vive fem outro corpo que no o humano”. Ble néo vive também em qualquer outro corpo de pessoa niio amada, porque “se no vive ‘onde veementemente deseja viver, muito menos viveré em outro lugar". Nao, aquele que ama outra pessoa e no € por ela emado, ‘no vive em parte alguma. O “Amante no amado” esta inteira. ‘mente morto ¢ jamais (26) ressuscitard se a indignagio no 0 fizer ressuscitar” esse seu tinico recurso. Fis © segredo das censuras ¢ das queixas que em mais de uma décima Scbve dirige a sua eruel Délit Quando, ao contrério, « amiga corresponde ao amor, 0 aman- te enlio vive no objeto’ amado. “Que coisa maravilhosa acon tece quando os dois se amam mutuamente: este naqucle vive € aquele neste vive”. © amante deu sua elma 2 amiga e esta gu doua porque cla ama; em contrapartida, dewthe sua alma. Assim, amante © amiga se possuem, se acham, se reencontram um nO 0 ‘ro. Distantes deles mesmos, estio proximos um do outro, mortos ‘esmos, ressusctam no’ outro. “Somente a morie 10 amor Te- efproco € diica, mas so duas as ressurreigdes, porque quem ama, morte ume vez para si quando se abandona. De repente, ressus- cite na_amada, quando a amada o recebe com um pensamento. ar dente, Ressuscta ainda ele finalmente quando se reconhece na amada e no duvida que seja amado. Oh morte marevilhosa & qual se seguem duas vides! Oh maravilhoso contrato, por meio do qual o homem se 46 para o outro, € que nfo é sbandonado nem pelo outro nem ppor ele mesmo! Oh ganho inestimével quando dois. transformamse rum 36, de tal forma que cada um dos dois por si tomase duplo © como duplo, aguele que tinka somente uma vida, sendo.prevista uma morte tem jé dues vides (27)! Quem é amado, deve, portanto, amar. & a grande lei do amor @ no se pode infringi-la sob pena de ser homicida e punido com ‘a morte. Ninguém, alids, quer isso, pois o amor nasce da seme- Thanga, isto ¢, “de uma certa © mesma qualidade em muitas pes. soas";' conseqiientemente, ‘‘a mesma semelhenca, que me leva @ amar alguém, leva também esse alguém a me amar”. Por outro lado, entregando-se 20 amado, 0 amante tomase coisa sua © tam (26) — Cf. Heroet. P.A.t. 390.395 Gi) — 31've e32 e Hercet (PAT. 136155) tradusia quase feral ments esta passagem. — 168 — bém a amiga cuida do amante “como coisa sua”, “porque a cada um, seu bem é caro”. Enfim, e essa tltima razio tem um Papel importante na obra dos poetas, “o amante grava a figura da amada em sua alma- A slma do amante, portanto, torna-se uma es- pécie de espelho, no qual se reflete a imagem do ser amado. As ‘sim, quando o ser amado se reconhece no amante, este ¢ obrigado 2 amélo”. Essa € a psicologia amorosa de Marsilio Ficino, da qual ene contrarse-io muitos pontos ¢, freqiientemente, até os mesmos ter ‘mos, em todos aqueles que se inspiraram no’ Commentaire sur le Banquet Maria Cecilia Moraes de Queiroz Pinto Silvia Maria Azevedo (2) — Imprimimos aqui corvetamente 0 nome da Avtora da tradusio, publicedo erradamente 0 ling mimero.

You might also like