Professional Documents
Culture Documents
Para um Ator
Personagem: O Homem
CAIXA PRETA. UMA CAMA AO CENTRO. UM CRIADO MUDO
COM PERTENCES PESSOAIS. FOCO DE LUZ DEFINE NO
PALCO A GRADE DE UMA JANELA DA CELA ONDE ESTÁ O
HOMEM. POR ESSA JANELA, EFEITOS DE ILUMINAÇÃO
INDICAM A PASSAGEM DO TEMPO: MANHÃ, TARDE E NOITE.
CENA 1
SOM DE SIRENE.
2
VOZES DOS PRESIDIÁRIOS QUE SE APROXIMAM.
BARULHO DAS GRADES QUE SE FECHAM.
SILÊNCIO.
PASSOS NO CORREDOR.
LUZ CRESCENTE VAI REVELANDO O HOMEM NA CAMA.
ELE, MESMO ATENTO AOS SONS DA PRISÃO,
ESTÁ MUITO CONCENTRADO NUMA CORRENTE DE OURO
QUE MANUSEIA COM CARINHO.
AO OUVIR OS PASSOS NO CORREDOR SE LEVANTA E
CAMINHA ATÉ O LIMITE DA CELA.
HOMEM
Ei, Carcereiro! (Com crescente expectativa) O senhor vai passar
por aqui, eu sei. Tô esperando. Tá me ouvindo? Heim? É que...Eu
preciso que você me faça um favor! Quer dizer... preciso que o
Senhor me faça um favor, senhor Carcereiro. O senhor vai fazer
isso por mim, senhor carcereiro, não vai? Eu sei que vai. Olha, pode
deixar que eu pago. Dinheiro, droga, cigarros, o que o senhor quiser
e desejar. Ô amigão! Ô meu amigo... quer dizer, eu não peço que o
senhor seja um amigo, isso não, que é pedir o impossível. Amizade
não se compra. Tô pedindo mesmo é um favor. Apenas um favor.
Um favor que vou pagar com dinheiro, cigarro, droga, o que o
senhor desejar. (Intranquilo ouve os passos do Carcereiro que
se distanciam no corredor) Escuta, ô Carcereiro! Não vai passar
pela ala leste? Ei! Tá me ouvindo? Tem que passar por aqui,
amigão!
Sozinho
expio mia culpa
sem alma, sem sal,
3
tempo, tempo,
cru tormento,
solidão fremente
goela abaixo entra,
come o espírito
devora a gente.
HOMEM
(Quase eufórico) Ah! Enfim o senhor está aqui na ala leste. É... 4
ronda completa, não é? Sabe, me alegro em vê-lo por aqui. É sério!
É que preciso falar sobre... é importante. O senhor tem que me
ouvir.
Vou lhe contar que sou homem de muitas mulheres. Fodi todas que
queriam e me desejavam, sem vacilação. Por todas as partes.
7
HOMEM
CENA 3
HOMEM
(Acende um cigarro e penteia os cabelos molhados. Senta-se no
banquinho e olha para o carcereiro)
É... tá até um céu bonito lá atrás do muro, heim? Sol quente lá fora.
(Triste. Pensativo) Coração aperta quando entro aqui e sei que tô
sozinho. De novo... Ele lá, na cela 704. Solitária... ali sim, é onde
bebê chora e mamãe não ouve. Eu aqui... sabe que eu tá gosto de
ver o senhor aí parado me olhando... tenho medo não... acho
interessante. Eu penso que o senhor tá querendo saber mais
de mim. Está conferindo tento por tento, as minhas
palavras. Não precisa dizer nada, que eu sei. Dá para
perceber, mesmo que, no princípio, o senhor se mostrasse
desinteressado. Agora não. O senhor tá me olhando de
modo diferente. (Afirmando) No fundo, o senhor sabe que
eu me viro. E é isso que é... a gente tem que se virar, dar um jeito
em tudo. Até na sorte. O dinheiro ajuda. Tenho algum comigo. O
senhor sabe, a gente só furta do homem, porque de Deus é
impossível. E ele eu queria, nem que fosse furtado. Roubado
mesmo! (Levanta-se e encara o Carcereiro) O senhor sabe o que é
coragem? Não estou falando dessas de pegar boi pelo rabo, de
bater com onça de frente, não, senhor. Falo de outra, dessa de ser 9
macho, de não desistir de ser homem e desejar tanto ser devorado
por esse homem, ser atacado por esse demônio. Quanto mais eu
aqui... só, quanto mais penso nele, mais eu sinto essa dor na boca
do estômago. Eu já nem quero comer. Tô emagrecendo. De
tristeza? Claro. (Vai até o criado e pega um retrato e um espelho)
O senhor conversa com retrato? Pois eu converso. Fico
conversando enquanto cuido do meu corpo, muito mais agora.
Limpo a cara com gilete. Aparo as unhas com tesoura ou canivete.
Eu sinto necessidade de ficar mais bonito, mais jovem, pra agradar.
E olha, veja bem... já falei e vou repetir. O que eu tenho no meio
das pernas só foi usufruto de mulheres de boa vida, de má fama,
de vagabunda mesmo! Mas foi usufruto só de mulher!
Ei, vai não. Escuta, eu não estou tomando o tempo do senhor com
bobagens não. É verdadeiro demais. Meu espírito que está
revelando tudo isso pro senhor. Uma conversa séria demais. Quase
uma confissão. Quase não, é uma confissão, tudo muito sagrado. 10
(Silêncio. Somente se ouve o reggae baixinho no rádio de uma cela
próxima. O homem, depois de um tempo, fala pra si mesmo)
Na verdade é muito mais do que isso. É uma coisa que estala aqui
dentro da gente e a gente escuta. Eu tanto temia que isso pudesse
acontecer. Mas eu fiquei... sei lá... eu chegava, escutava, indagava
dos fatos. Muitos presos maldavam das minhas interrogações.
Outros, por não me quererem bem mesmo, zombavam de mim, de
jeito debochado. Eu aguentava, não abria a boca. O que haveria de
fazer? Os olhos daqui enxergam longe, mesmo atrás das grades,
espero que pelo menos respeitem os meus sentimentos, guardando
silêncio. Porque nesse corredor tudo acaba se tornando comum,
pelo jeito natural mesmo, pela força das armas ou pelo peso do
dinheiro. O senhor sabe... assim é que é... o senhor sabe. (Ele
passa as mãos pelos cabelos suspirando) Ai... que eu morro... eu...
eu...
(Ele parado no centro da cena. Efeitos de luz refletidos pela grade
da janela. Dia. Tarde. Noite. Madrugada. Dia. Tarde. Noite. Manhã.
Tarde. Noite. Madrugada. Ele gira com os efeitos de luz. De repente
apenas um foco ilumina o Homem. Ele canta)
MÚSICA - DESEJO
Meu benquerer
escondo mais não
meu corpo vibra
nervos, calor
a noite diz que sim
Que sim
ela diz que sim
um cigarro
acendo um cigarro
um pra ele
outro pra mim.
11
Palavra nenhuma.
fala sozinha a fumaça
tempo muito
ou pouco tempo?
cigarros mais
se acendem e se apagam
medo nos olhos
coração louco dispara
nos dedos dele
meus dedos tocam leve
tremem bobas as pernas
morro agora, será?
é assim? Como assim?
Vem. Me diz.
Vem logo. Vem.
HOMEM
Cheios de afeto eram os meus sentimentos. Queria ele junto de
mim, na mesa, no pátio, em todos os lugares. Como queria... Sua
imagem não sai da minha cabeça... que pele tão bonita, novelada
ao redor dos lábios, rijo de fala, de gestos, músculos. Nos olhamos
poucas vezes, e palavras, se trocamos, foram duas ou três, nem
mais. Mas a amizade veio chegando entre os poucos momentos de
folga e continuava depois que a gente se apartava. No começo, a
coisa era pouca, cheia de importunações no virar das horas. Depois
é que veio a angústia do benquerer, que era só meu. Um coração
discordando do outro, uma voz não batendo com a outra.
Havia um sofrimento, uma parecença com Cristo ou São José, no
rosto, na barba e nos olhos dele. Tinha também aquele ar perdido,
distante.
Sabe, acho que penso nele porque penso.
Sem culpa, sem pecado nenhum, desses que a igreja bota na
cabeça da gente. Não tem outro jeito e não adianta remar contra.
Não tem macieza de voz, não. É tudo muito forte, muito bruto. Não
sei onde busco palavras para falar com ele. 12
Burro não sou. Sei ler e escrever, direitinho. Talvez por isso ele me
escuta. Gosto dele assim como é. Um gostar que vem fino, furtado,
do meio para dentro do peito. Ele soube bem depressa que dei um
jeito dele ficar comigo na mesma cela.
Santo eu não sou. Nem árvore, nem pedra, nem edifício. Assentam-
me bem os desejos da carne.
HOMEM
O senhor vai fazer isso por mim, senhor carcereiro, não vai?
Perdidos, arrebatados.
Ai.....
Meu amor!
FIM
17
18