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PRESO 704

delírio obsessivo para fala e canto

do conto de Miguel Jorge

“Que mais digo ao senhor?”


adaptado por Jonatas Tavares
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Para um Ator

Personagem: O Homem
CAIXA PRETA. UMA CAMA AO CENTRO. UM CRIADO MUDO
COM PERTENCES PESSOAIS. FOCO DE LUZ DEFINE NO
PALCO A GRADE DE UMA JANELA DA CELA ONDE ESTÁ O
HOMEM. POR ESSA JANELA, EFEITOS DE ILUMINAÇÃO
INDICAM A PASSAGEM DO TEMPO: MANHÃ, TARDE E NOITE.

CENA 1

SOM DE SIRENE.

2
VOZES DOS PRESIDIÁRIOS QUE SE APROXIMAM.
BARULHO DAS GRADES QUE SE FECHAM.
SILÊNCIO.
PASSOS NO CORREDOR.
LUZ CRESCENTE VAI REVELANDO O HOMEM NA CAMA.
ELE, MESMO ATENTO AOS SONS DA PRISÃO,
ESTÁ MUITO CONCENTRADO NUMA CORRENTE DE OURO
QUE MANUSEIA COM CARINHO.
AO OUVIR OS PASSOS NO CORREDOR SE LEVANTA E
CAMINHA ATÉ O LIMITE DA CELA.

HOMEM
Ei, Carcereiro! (Com crescente expectativa) O senhor vai passar
por aqui, eu sei. Tô esperando. Tá me ouvindo? Heim? É que...Eu
preciso que você me faça um favor! Quer dizer... preciso que o
Senhor me faça um favor, senhor Carcereiro. O senhor vai fazer
isso por mim, senhor carcereiro, não vai? Eu sei que vai. Olha, pode
deixar que eu pago. Dinheiro, droga, cigarros, o que o senhor quiser
e desejar. Ô amigão! Ô meu amigo... quer dizer, eu não peço que o
senhor seja um amigo, isso não, que é pedir o impossível. Amizade
não se compra. Tô pedindo mesmo é um favor. Apenas um favor.
Um favor que vou pagar com dinheiro, cigarro, droga, o que o
senhor desejar. (Intranquilo ouve os passos do Carcereiro que
se distanciam no corredor) Escuta, ô Carcereiro! Não vai passar
pela ala leste? Ei! Tá me ouvindo? Tem que passar por aqui,
amigão!

(Silêncio. O Homem caminha tristemente para a cama e


canta – Música com playback)

MÚSICA - SEM ALMA

Sozinho
expio mia culpa
sem alma, sem sal,
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tempo, tempo,
cru tormento,
solidão fremente
goela abaixo entra,
come o espírito
devora a gente.

Deus não acode não.


O sol não dá,
é pouco e dói.
A lua, se vê mais não.
Dia, noite, vendo nada.
O muro cala
a voz sai não.
Dentro grita.
Só dentro, grita.

(Ele termina o canto e se deita no leito. Adormece com os


últimos acordes da música)
CENA 2

(Passos no corredor. Ele desperta num sobressalto e salta


para o limite da cela, atento. Fala então ao Carcereiro que
só ele vê)

HOMEM

(Quase eufórico) Ah! Enfim o senhor está aqui na ala leste. É... 4
ronda completa, não é? Sabe, me alegro em vê-lo por aqui. É sério!
É que preciso falar sobre... é importante. O senhor tem que me
ouvir.

(Som dos passos do Carcereiro que se afastam mas retornam.


Expectativa intensa do Homem)

Pois é... então... (Já mais seguro com a presença do Carcereiro)


Sabe... senhor, desde que cheguei a esta prisão, minha vida
mudou. Já tinha mudado, mas na alma. Agora mudou no corpo. O
senhor sabe, não deixei de ser homem, não, senhor. É que aqui as
coisas se aprendem e se ensinam, e os mais espertos se arranjam.
O sol não dá para todos. A lua, a gente nem vê mais. Só imagina. É
preciso olhar a solidão de frente, porque senão ela entra goela
abaixo, come o espírito da gente e Deus não acode. (Respira
fundo) Minha vida... (Riso tímido) minha vida... sabe, sem sal
nenhum. Sou sozinho, ninguém para conversar, expio minha própria
culpa, fico somando a de todos aqueles homens brutos pela
convivência. Histórias caminham depressa, tanto quanto ratos e
baratas. O senhor sabe, estou catando coisas aqui, coisas ali, para
tentar lhe dizer o que o meu peito esconde. Paciência, vou chegar
lá. (Impaciente, vai até o criado e pega uma carteira de cigarro)
O senhor fuma? (Oferece) Nunca fumou? (Procura no bolso o
isqueiro. Vai novamente ao criado, sem tirar os olhos do
Carcereiro e volta acendendo o cigarro) Melhor pro senhor. Eu
sempre fumei... que eu me lembre... (Riso sem graça) Aqui então...
Fácil de comprar. (Rindo) Cigarro... cigarro aqui não é nada. Aqui,
eu sei, nós sabemos, reinam os crimes de criminosos dos mais
pesados. A sem-vergonhice, a malandragem, a droga, a fornicação
sincera, ou aquela que é só para curtir com os desejos.
Conveniente é não se saber de nada.

(Em segredo) Sabe, os presos mais antigos, os que trucam e


retrucam entre si, me davam avisos de que, cedo ou tarde, iria me
engraçar com algum condenado, assassino ou ladrão. É a lei da
cela. A lei da cela. Às vezes me apontavam um tipo. Praga.
Praguejavam contra minha recusa. Temia que isso fosse acontecer.
Claro que o homem sente necessidade... e tem ... tem aí... e eu não
tenho nada contra nenhum deles... acho é engraçado as denguices 5
deles... sabe... a alegria deles faz é bem pro espírito... sabe... dá
um colorido nesse mundo cinzentado daqui. Eu sou homem. Sou
macho. Eles querem ser assim, que sejam. Eu respeito a escolha
deles. E sou até amigo... eu defendo eles... mas na minha cama
não quero não. Saudade demais da minha mulher... das minhas
mulheres...

Vou lhe contar que sou homem de muitas mulheres. Fodi todas que
queriam e me desejavam, sem vacilação. Por todas as partes.

(Mudança de luz. Efeitos. O Homem esquece o Carcereiro e entra


numa viagem delirante)

Das vezes que chegava no bordel de Maria Bentinha, a festa estava


armada. Levava duas, até três para o quarto. E elas se entendiam
com o peso do meu corpo, me rendiam entre as suas pernas. Não
tinha escapatória. A noite era do amor. O amor que a gente faz com
braveza de garanhão. E não era só na cama não. Era em todo
lugar.
Até no meio do pasto, que hora certa não tinha. As vacas berrando
desconfiadas. Cheiro de estrume, moscas por perto. Formiga
botando ácido no rabo da gente. (Ri) E quando era com aquela
índia... Uh!!! Aquela índia... lá na ponta do canavial. O vento
soprando sacudido, as cobras se mexendo pelos cantos, e ela me
dizendo para não ter medo, que era mulher dada a rezas, a feitiços
e benzições. E me chamava de rambu-nirricam, dioraça, dionandu
matan. Uarron-ron lubu. Uarron-ron lubu (Ri, lascivo)

( Na cama com o travesseiro) Gostava de estar assim no fuc-fuc


de muitas horas, com presença de corpo, no arremate de
surpresas, ainda mais se fosse mulher casada.

(Poderoso) Os chifrudos mandando a capangada no meu rastro,


que nem fosse boi fugido da invernada. (Gargalhadas).

(Para estático de repente. Mudança de luz. Volta o clima anterior. O


Homem, meio desconcertado, se dirige ao Carcereiro)
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O senhor me desculpe... o exagero e tal... mas veja, senhor, estou
lhe mostrando o meu retrato por inteiro, e não é 3x4, é a alma, o
corpo e os desejos de um homem, um homem mesmo, valente,
com três mortes nas costas. (Olha veemente para o Carcereiro. Um
olhar profundo, de verdade, súplica e decisão). Eu vi um moço no
pátio. Bom, ver eu já tinha visto, mas assim... sem reparar... como
se vê todo mundo. É o moço da cela 704. O prisioneiro do 704.
Sabe... ele me olhou de um jeito... tão firme...tão pra dentro de
mim... eu estremeci. (Afirmando) Não que ele tivesse jeito, isso não.
A imagem dele era de gente que constrói. Mas foi ele que me
encarou. Ele encarou o meu desejo enrodilhado. Nossa... aquele
olhar de segredo... meio que de desconfiança, meio que desejo...
Que moço bonito. (Riso sem graça) Não... nem tão bonito assim...
Um homem inteiro, um macho de verdade. Um... sei lá... um santo...
um demônio...que... me enfeitiçou! (Justificando) Olha... eu tenho
que contar pro senhor, tá entendendo? É porque tem coisas que...
não dá...que a gente não pode esconder, não consegue esconder,
por mais que faça força. Então... é por causa dessas doideiras da
alma e do espírito...
(Som no fim do corredor. Um forte barulho. Coisas caindo.
Vozes. Gemidos. Passos apressados do carcereiro e o ruído do
seu cassetete nas barras das grades. O Homem fala mais alto,
segue contando)

... é... essas coisas da alma e do espírito, soltas dentro de mim,


cavalgando que nem cavalo bravo, acendendo o fogo da carne.
Fogo da carne... fogo da carne...

(Ele vai repetindo a última frase até ficar inaudível. Já não


se ouve nada no corredor. Em silêncio ele caminha meio
tonto pela cena. Movimentos desconexos. Para. Respira
fundo. Corre até o limite da cela. Fala para o corredor
vazio)

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HOMEM

(Olha para a lateral esquerda fixamente como se visse o Carcereiro


que não está. Fala pausadamente. Justificando. Já é quase manhã)

Ei, senhor Carcereiro... Olha, Sinto vergonha de estar me expondo


assim, diante do senhor, que parece arregalar os olhos, para ver
mais claro. O que fazer? Só ao senhor posso confiar o meu
segredo. Pode acreditar... aqui nós precisamos de ter uma
felicidade, por mais pequena, senão a noite não passa e as
sombras nos arrastam para o lado do demônio. Os pensamentos se
soltam perigosos. (Fala mais baixo, não importa mais quem ouve)
Se estou falando devagar, é de propósito, porque essas coisas
exigem cuidado, e não se fala tudo de uma só vez. Daqui a pouco
ficará pensando que não estou bom do juízo. Pode até achar que é
por causa de bebida. Já faz um tempo que não coloco álcool na
boca e nem provo de mulher rapariga. (Triste) Era ele que tava
aqui... tá mais não... sei o que ele fez de tão ruim não. Tá lá, na
solitária... porra, Bateram muito nele, eu sei. Por uma semana,
passou a pão e água, o senhor sabe. De nada reclamou. Ele não
fala nada, eu sei. Não reclama, por isso sofre mais. Vai sair de lá
mais santo do que quando entrou. Não sei por que o atazanam
tanto. Ele cada vez mais se fecha nos pensamentos lá dele. No
ímpeto desse momento, eu queria era estar com ele naquela
solitária. Ele não fala nada, eu sei. Não reclama, por isso sofre
mais. Vai sair de lá mais santo do que quando entrou. Não sei por
que o atazanam tanto. Ele cada vez mais se fecha nos
pensamentos lá dele. (Constatando que fala para ninguém, vai até a
cama e acende um cigarro. Fica em silêncio observando a fumaça,
depois pega o cinzeiro e senta-se no chão desleixado, impotente)
Veja bem... é uma besteira...eu peço apenas um favor. Um favor
que vou pagar com dinheiro, cigarro, droga, o que o senhor desejar.
E, se possível, longe da vista dos outros. (Fala para si mesmo) Eu
queria mesmo é que o senhor levasse esse cordão para ele,
naquela cela, a última do corredor. Basta levar lá, que ele sabe para
que é. Só isso... só. 8
(Luz cai em resistência. Ele apaga o cigarro e se deita. Escuro. Aos
poucos luz crescente vai revelando a cela vazia por um pequeno
momento. Amanhece. Sirene. Vozes. Som das grades que se
abrem. O Homem está de costas para a plateia e entra na cela.
Grades se fecham. Um rádio próximo toca um reggae. Passos no
corredor. O Carcereiro se aproxima fazendo um barulho irritante
com barra de ferro nas grades)

CENA 3

HOMEM
(Acende um cigarro e penteia os cabelos molhados. Senta-se no
banquinho e olha para o carcereiro)
É... tá até um céu bonito lá atrás do muro, heim? Sol quente lá fora.
(Triste. Pensativo) Coração aperta quando entro aqui e sei que tô
sozinho. De novo... Ele lá, na cela 704. Solitária... ali sim, é onde
bebê chora e mamãe não ouve. Eu aqui... sabe que eu tá gosto de
ver o senhor aí parado me olhando... tenho medo não... acho
interessante. Eu penso que o senhor tá querendo saber mais
de mim. Está conferindo tento por tento, as minhas
palavras. Não precisa dizer nada, que eu sei. Dá para
perceber, mesmo que, no princípio, o senhor se mostrasse
desinteressado. Agora não. O senhor tá me olhando de
modo diferente. (Afirmando) No fundo, o senhor sabe que
eu me viro. E é isso que é... a gente tem que se virar, dar um jeito
em tudo. Até na sorte. O dinheiro ajuda. Tenho algum comigo. O
senhor sabe, a gente só furta do homem, porque de Deus é
impossível. E ele eu queria, nem que fosse furtado. Roubado
mesmo! (Levanta-se e encara o Carcereiro) O senhor sabe o que é
coragem? Não estou falando dessas de pegar boi pelo rabo, de
bater com onça de frente, não, senhor. Falo de outra, dessa de ser 9
macho, de não desistir de ser homem e desejar tanto ser devorado
por esse homem, ser atacado por esse demônio. Quanto mais eu
aqui... só, quanto mais penso nele, mais eu sinto essa dor na boca
do estômago. Eu já nem quero comer. Tô emagrecendo. De
tristeza? Claro. (Vai até o criado e pega um retrato e um espelho)
O senhor conversa com retrato? Pois eu converso. Fico
conversando enquanto cuido do meu corpo, muito mais agora.
Limpo a cara com gilete. Aparo as unhas com tesoura ou canivete.
Eu sinto necessidade de ficar mais bonito, mais jovem, pra agradar.
E olha, veja bem... já falei e vou repetir. O que eu tenho no meio
das pernas só foi usufruto de mulheres de boa vida, de má fama,
de vagabunda mesmo! Mas foi usufruto só de mulher!

Se falo isso, é para o senhor não pensar que sou um qualquer,


desses que se viram por aí. Isso não. Há uma diferença. Foi uma
coisa estranha o que aconteceu. Bateu forte o gostar. Nunca em
minha vida havia pensado em tais coisas. Posso até jurar. E
mangava dos que tinham esses ideais por sina. Mas a coisa
aconteceu, sem que a gente contribuísse.
Por dentro, eu até lutei. Tinha medo que os outros pensassem
errado de mim. Que descobrissem o que se passava comigo. Eu
seria obrigado a matar mais um ou dois. Viajava muito por essas
ideias. Mas por mais que fosse durão, meu peito apertava, tinha
fogo por dentro, ficava que nem fera enjaulada. E não é pra dizer
que ele é bonito. Não, senhor, não é. Um condenado como eu, nem
sei ao certo que crime cometeu. Às vezes, quando tiro um cochilo,
sonho que estou no campo preparando o chão pra o plantio, meu
coração se alegra, pois minha mulher vem chegando, dando a
impressão de menina nova. Depois eu acordo e no meio da noite só
vejo fumaça, neblina e escuridão. Fico louco de tristeza.

(Som do Carcereiro batendo com o ferro na grade. Seus passos


distanciando. O Homem fica inquieto e anda de um lado para o
outro no limite da cela)

Ei, vai não. Escuta, eu não estou tomando o tempo do senhor com
bobagens não. É verdadeiro demais. Meu espírito que está
revelando tudo isso pro senhor. Uma conversa séria demais. Quase
uma confissão. Quase não, é uma confissão, tudo muito sagrado. 10
(Silêncio. Somente se ouve o reggae baixinho no rádio de uma cela
próxima. O homem, depois de um tempo, fala pra si mesmo)

Na verdade é muito mais do que isso. É uma coisa que estala aqui
dentro da gente e a gente escuta. Eu tanto temia que isso pudesse
acontecer. Mas eu fiquei... sei lá... eu chegava, escutava, indagava
dos fatos. Muitos presos maldavam das minhas interrogações.
Outros, por não me quererem bem mesmo, zombavam de mim, de
jeito debochado. Eu aguentava, não abria a boca. O que haveria de
fazer? Os olhos daqui enxergam longe, mesmo atrás das grades,
espero que pelo menos respeitem os meus sentimentos, guardando
silêncio. Porque nesse corredor tudo acaba se tornando comum,
pelo jeito natural mesmo, pela força das armas ou pelo peso do
dinheiro. O senhor sabe... assim é que é... o senhor sabe. (Ele
passa as mãos pelos cabelos suspirando) Ai... que eu morro... eu...
eu...
(Ele parado no centro da cena. Efeitos de luz refletidos pela grade
da janela. Dia. Tarde. Noite. Madrugada. Dia. Tarde. Noite. Manhã.
Tarde. Noite. Madrugada. Ele gira com os efeitos de luz. De repente
apenas um foco ilumina o Homem. Ele canta)

MÚSICA - DESEJO
Meu benquerer
escondo mais não
meu corpo vibra
nervos, calor
a noite diz que sim
Que sim
ela diz que sim
um cigarro
acendo um cigarro
um pra ele
outro pra mim.

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Palavra nenhuma.
fala sozinha a fumaça
tempo muito
ou pouco tempo?
cigarros mais
se acendem e se apagam
medo nos olhos
coração louco dispara
nos dedos dele
meus dedos tocam leve
tremem bobas as pernas
morro agora, será?
é assim? Como assim?
Vem. Me diz.
Vem logo. Vem.

(Noite. Luz intimista. Ele sentado na cama)

HOMEM
Cheios de afeto eram os meus sentimentos. Queria ele junto de
mim, na mesa, no pátio, em todos os lugares. Como queria... Sua
imagem não sai da minha cabeça... que pele tão bonita, novelada
ao redor dos lábios, rijo de fala, de gestos, músculos. Nos olhamos
poucas vezes, e palavras, se trocamos, foram duas ou três, nem
mais. Mas a amizade veio chegando entre os poucos momentos de
folga e continuava depois que a gente se apartava. No começo, a
coisa era pouca, cheia de importunações no virar das horas. Depois
é que veio a angústia do benquerer, que era só meu. Um coração
discordando do outro, uma voz não batendo com a outra.
Havia um sofrimento, uma parecença com Cristo ou São José, no
rosto, na barba e nos olhos dele. Tinha também aquele ar perdido,
distante.
Sabe, acho que penso nele porque penso.
Sem culpa, sem pecado nenhum, desses que a igreja bota na
cabeça da gente. Não tem outro jeito e não adianta remar contra.

Não tem macieza de voz, não. É tudo muito forte, muito bruto. Não
sei onde busco palavras para falar com ele. 12
Burro não sou. Sei ler e escrever, direitinho. Talvez por isso ele me
escuta. Gosto dele assim como é. Um gostar que vem fino, furtado,
do meio para dentro do peito. Ele soube bem depressa que dei um
jeito dele ficar comigo na mesma cela.

Santo eu não sou. Nem árvore, nem pedra, nem edifício. Assentam-
me bem os desejos da carne.

Então, ele puxou o retrato de uma mulher e me mostrou. É minha


noiva, falou. Minha companheira dos dias e das noites. Bonita
mulher, não tinha como negar. Acho que os seios dela, as curvas
do corpo, da bunda, não saíam de sua memória.

Ficou assim, espiando o retrato por mais de dez minutos, pedindo


para eu olhar e admirar também. Pois olhei e me interessei pela
beleza dela. Era como se ele dissesse: olhe para ela e olhe para
você. A diferença era tanta que meu rosto se cobria de vergonha. A
desvantagem estava comigo.
Aí eu apanhei o retrato da minha mulher. Uma morena sacudida,
com cheiro de mato, seios pesados, os cabelos pretos escorridos,
os olhos transbordando rios e matas verdes. Bonita mulher, ele
falou. Eu olhava a dele e ele a minha. Depois ele começou a rir. Riu
muito. Eu, por minha vez, ria também, de acordo com ele, sem
procurar o motivo da graça. Rimos até ele ter um acesso de tosse.
Depois limpamos o riso e ele voltou ao que era.
Até que numa noite, uma noite que bulia com os nervos da gente,
fazia muito calor.
Mais ainda no meu corpo.
Eu olhava para ele com vontade de bater a cabeça e dizer que sim,
que não podia esconder por muito tempo mais o meu bem-querer.
Acendi um cigarro para ele e outro para mim.
Não falamos mais.
Só as baforadas falavam.
Demos um tempo, um espiando o cigarro do outro se acender e se
apagar.
Como dizer para ele? Como não dizer? Fazer um gesto, espichar a
mão para tocá-lo no braço, eu já fizera. Na perna? Não. 13
Os toques de mão, assim de leve, às vezes, quando se queria
mostrar um antigo ferimento, uma cicatriz.
Convinha guardar distância.
Pudor.
Batia o coração, preso e descompassado.
O medo dos olhos dele não entenderem o que os meus queriam
dizer. O medo que o coração pudesse sair para fora, despertar,
mostrar as suas razões...
O cigarro ajudava.
Mal apagava um, acendia outro.
Agradecia com um sorriso.
Com uma boa palavra.
Os meus dedos tocavam de leve nos dedos dele.
Assim é que se fazia.
Não podia mostrar a minha estima de uma vez só.
Sabedoria se aprende com o tempo.

A gente passava tudo a limpo. As histórias, os acontecimentos do


dia.
Fugir da prisão, eu não fugia. Nem carecia. Só se ele quisesse. Se
um morresse, o outro morreria também.

Foi então, no meio de uma dessas conversas, como se quisesse


deixar uma folga na cama, que ele se afastou para um lado.
O da parede. O outro ficou vazio, como se apanhado em surpresa.
E era como se dissesse: Por que não vem?
Cabem dois.
Vem logo.
Tremedeira nas pernas.
Bom que ele não via.
A cama ficou lá, larga de um lado.
A chama do cigarro acendendo e apagando.
As minhas mãos calosas suando barato.
E aquilo foi aumentando.
Dei uns suspiros, assim meio desconsolados.
Ele quieto, testando a minha coragem. Dizia nada, não.
Mas a cama falava por nós dois.
O vazio que não se preenchia. 14
Por que a natureza providenciava aquelas coisas?
Botava a gente em provação?
Feito um bicho que sai da sua toca para entrar em outra, saí da
minha e escorreguei para a dele.
Assim devagar, camaleão mudando de cor, cobra de pele.
Ele abaixou os braços e amparou a minha cabeça.
Afundou os dedos nos meus cabelos.
Devia ser mesmo outro homem que estava ali, daquele jeito, não
eu.
Mas estava e continuava.
A boca emitia ruídos pequenos, aflitos, de uma aflição de liberdade,
alívio, quase de reza, perdão.
Não me furtei em reconhecer as espertezas daquele corpo não
diferente do meu.
O calor já não era tanto e a noite ganhara encanto.

(Ele respira profundamente, pega a corrente e se deita enrodilhado,


como no útero. A luz cai em resistência até o escuro)
CENA 4
(Barulho do ferro do carcereiro sobre as barras das celas.
Seus passos se aproximando.Súbita luz muito clara e irreal
vinda da janela. O Homem desperta
sobressaltado.Trêmulo, acende um cigarro e vai se
acalmando, aguardando a chegada do Carcereiro)

HOMEM

(Mostrando tranquilidade) Ah! O Senhor Carcereiro! (Ofuscado


pela luz) Bem, é noite? Dia? Estou um pouco zonzo... sei lá.
(Vai até o limite da cela) Eu... não estou conseguindo dormir direito.
15
As imagens são como pesadelo. (Mudando) Ah, sobre o que eu
estava te contando... eu...não queria, acho. Não queria nada. Mas
ele me encarava. Aí, um dia, ele ficou me espiando meio sem jeito,
sem querer espiar. Então, nem sei bem por quê, resolveu destravar
a língua. Falava demais, como se o não-falar o arrebentasse por
dentro. Fiquei sabendo muito e mais de sua vida. O crime cometido
por ele não é igual aos nossos, gente comum. Então, tudo não tinha
resposta e tudo era segredo.
Agora a gente está apartado. Levaram ele. Castigo de quinze dias.
O motivo, não sei. Denúncia, vingança ou falação de delator.
e eu confesso ao senhor, que, ... aqui... sem ele... Fico assim, a
boca ressecada, os olhos fechados, a alma e os sentidos lá com
ele. (Pedindo) Senhor Carcereiro, eu só quero que o senhor leve
esse cordão para ele, naquela cela, a última do corredor. Basta
levar lá, que ele sabe para que é. O meu coração e o dele batem
juntos. A essa hora, tenho certeza, ele está excitado, pensando em
mim.

O senhor deve acreditar.


Meu coração e o dele batendo juntos, a gente se sabe assim. Veja,
senhor carcereiro.

Essa ponta do cordão, feita em laço, ele vai colocar lá nele.

Essa outra ponta fica comigo, que é para eu fazer os movimentos


de puxar para cima e para baixo, do jeito que só a gente sabe.

O senhor vai fazer isso por mim, senhor carcereiro, não vai?

Eu sei que vai.

Pode deixar que eu pago.

Dinheiro, droga, cigarros, o que o senhor quiser e desejar.

(Ele entrega uma corrente imaginária ao Carcereiro)

Gratidão! Gratidão Senhor Carcereiro.

(Caminha devagar para a cama. Deitado, se cobre. Delira)

Meus pensamentos atuando e regozijando no corpo dele, num 16


mútuo vaivém erótico propiciado pelo estímulo e pelo êxtase da
nossa corrente.

Meu coração e o dele batendo juntos.

Perdidos, arrebatados.

Loucos de fúria e desejo.

Furor insano. Fogo da carne.

Ai.....

Meu amor!

Meu amor, amor, amor...

(O Homem, sob os lençóis, insinua o princípio de uma masturbação.


A luz vai caindo até o B.O.)

FIM
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