You are on page 1of 80
Biblioteca-FFPNM série ® rincipios Ligia Militz da Costa Professora titular de Literatura Brasileira na Universidade Federal de Santa Maria A poética de Aristoételes Mimese e verossimilhancga Edigao revista © Ligia Militz da Costa Diretor editorial adjunte —Femando Paixio Coordenadora editorial Gabriela Dias. Editor adjunto Carlos 8, Mendes Rosa Editora assistente Baby Siqueira Abrao Revisio Ivany Picasso Batista (coord.) Estagidrias ‘Aline Rezende Mota e Bianca Santana ARTE Edisio Antonio Paulos Assistente Claudemir Camargo Capa e projeto grafico Homem de Mello & Troia Design Editoragio eletronica Moacir K. Matsusaki EDIcAo ORIGMAL Diresa0 Samira Youssef Campedelli e Benjamin Abdala Junior Edigio ‘Nelson dos Reis Preparacio de texto Claudemir Donizeti de Andrade Revisio Carlos José da Silva Felix Edigo de arte (mioto) Milton Takeda CIP-BRASIL. CATALOGACAO-NA-FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ. C873 2ed. Costa, Ligia Militz da, 1942- A ppostica de Arist6teles / Ligia Militz da Costa. - 2.e. Atica, 2006 80p, -(Prinefpios ; 217) Inclui bibliografia comentada ISBN 85-08-10223-2 1. Aristételes. Postica. 2, Mimeses na literatura. 1, Titulo. I. Série 06-1224. cpp ssi DU 821.1402 ee eeeeeeeee ISBN 978-85-0810223-5 (aluno) TMPORTANTE, Aa comprar um livto, voc remunera e reco- IMhece trabalho do autor eo de muitos outros profsstonals ISBN 978-85-0810224-2 (professor) | crvojvidos na producio editorial ena comercialzagao das pear ee ee em cea rues 2008 divulgadores, distribuidores, livreiros, entre outros. Ajude- 2° imprassao ee er eran Tinpresio Impressio e acabamento: Grifica Ave-Maria Py, Todos 0 direitos reservados pela Editora Atica, 2006 i 4 [Av Otasiano Alves de Lima, 4400 ~ Sto Paulo, SP~ CEP 02909-900 ae eis 4n 3990-2100 - Fe: (11) 3990-1784 Se Intemet: www.atica.com br — www aticaeducacional.com.br acon aus Biba bi; ‘Oteca-py FPA : Sumario A questo da mimese 5 O texto aristotélico 6 2. Revisio comentada da Poética 9 Abertura do texto (cap. I, §§ 1e2) 9 Critérios distintivos da mimese (cap. I, § 3, a0 cap. 3) 10 A poesia e suas espécies (cap. IVe V) 13 A teoria da tragédia (cap. Via XXII) 18 A teoria da epopéia (cap, XXII e XXIV) 37 A poesia (arte literdria) e a verossimilhanga (cap. XXV) 40 ‘A superioridade da tragédia sobre a epopéia (cap. XXVI) 44 3. Amimese e a verossimilhanga na Poética 47 Principais aspectos do texto 47 Proposigdes conceituais. 53 4, A permanéneia do conceito de mimese na teoria da literatura contemporfnea 55 Mimese e lingiiistica estrutural 56 ‘Mimese e representagio social 59 Mimese e hermenéutica 64 5. Conclusio 70 6. Vocabulario critico 72 7. Bibliografia comentada 75 1 O inicio A questao da mimese Nos comecos da civilizacdo grega, a palavra mimesis ndo se apresentava com uma significacdo unica. A ativi- dade de imitar, que estava na base de todas as suas acep- ¢Ges, nunca correspondeu, entretanto, a qualquer realismo grosseiro. Entre os antigos, Platéo (4277-347? a.C.) concedeu @ palavra importancia capital, compreendendo-a como um tipo de produtividade que nao criava objetos “origi nais’’, mas apenas cépias (e/kones) distintas do que seria a “verdadeira realidade””. Platao é 0 primeiro a expor, com clareza e fundamentacao, as afirmacdes surgidas sobre as teorias do belo no inicio do pensamento ocidental. Ele expressa a ligacdo existente, em toda a Antigiiidade, entre a concep¢ao de arte e o carater ontoldgico de valores meta- fisicos ¢ empenhativos. Vinculada a uma origem divina c misteriosa, a arte participa, nessa concep¢ao, do ser origind- rio, devendo por isso “‘imitar’’, no seu contetido, a reali- dade das formas ¢ das idéias primigénias. Como na maioria das vezes isso nao acontece, ou seja, a mimese é apenas Oo verossimil e nao visa a esséncia das coisas, nem & verdadeira natureza dos objetos particulares, ela é falsa e iluséria, sendo prejudicial e perigosa ao discurso ideal do filésofo. Distante das mais altas exigéncias pedagdgicas e morais € limitada a representar, num terceiro nivel, as formas origi- narias, a mimese foi depreciada por Platao. Privilegiando a verdade, o fildsofo considerou as imagens miméticas como imitagdio da imitag&o, j4 que elas imitavam a prépria pessoa e o mundo do artista, os quais, por sua vez, j4 eram imitagéo (sombra e miragem) da ‘“‘verdadeira’” realidade original. Discipulo de Platao, Aristoteles (384-322 a.C.) recebeu do mestre a palavra mimese. Refutou, contudo, 0 conceito platénico, enaltecendo o valor da arte justamente pela auto- nomia do processo mimético face a verdade preestabeleci- da. Aristoteles transformou a obra numa producao subje- tiva e carente de empenho existencial e alterou, com isso, a relacdo que ela apresentava com a sacralidade original. De ontoldgica, a arte passa a ter, com ele, uma concep¢ao estética, ndo significando mais ‘‘imitacao’”’ do mundo exte- rior, mas fornecendo “‘possiveis’’ interpretagdes do real através de acdes, pensamentos e palavras, de experiéncias existenciais imaginarias. Afastada da perfeicao, da divin- dade e da verdade primigénia, a mimese afirma-se como a representacéo do que ‘‘poderia ser’’, assumindo o cardter de fabula. O critério do verossimil, que merecera a critica de Platdo por ser apenas ilusdo da verdade, torna-se, com Aristételes, o principio que garante a autonomia da arte mimética. O texto aristotélico Reconhecido como o texto fundador da teoria da lite- ratura do.Ocidente, a Poética consiste no primeiro tratado sistematico sobre o discurso literario. E discurso literario, SSS no texto aristotélico, identifica-se com a noc&o de mimese poética. Na verdade, a Poética é um texto eliptico e obscuro, um conjunto de anotagdes resumidas para serem utilizadas didaticamente por Aristételes nas suas atividades como pro- fessor. Os enunciados nao desenvolvidos que compdem seus 26 capitulos justificam a resisténcia que a obra apre- senta para uma elucidac&o mais univoca de seu contetido ao longo do tempo. Mal conhecida na Idade Média, época ligada mais aos problemas légicos e metafisicos, a Poética passou a ser divulgada na Europa em prinefpios do século XVI, quando humanistas italianos do Renascimento traduziram, comenta- ram e interpretaram o texto, praticamente estabelecendo a doutrina aristotélica. A partir dai, exerceu ampla e significa- tiva influéncia nos séculos que se seguiram. A mimese € reconhecida como a nocio de capital importancia na Poética, ainda que Aristételes ndo tenha chegado a defini-la nitidamente nos seus escritos. Junto com a mimese, 0 mito e a catarse formam a base de sua teoria da arte pottica (literdria). O texto, contudo, circunscreve- se aos limites da tragédia e da epopéia, oferecendo apenas como promessa o estudo posterior de outras espécies de “poesia”, como € 0 caso da comédia, citada no inicio do capitulo VI. Nao ha, entretanto, nenhuma referéncia con- creta da existéncia de outro documento dessa natureza con- tendo a continuac&o prometida do estudo tedrico das demais espécies. As edigGes existentes da Poética, atualmente, baseiam- se sobretudo na tradig&o manuscrita de cinco documentos fundamentais: ° dois manuscritos gregos: 0 Parisinus 1741, que data do século X e é o manuscrito principal, e 0 Ricardianus 46, datado do século XIV, 0 qual, embora mutilado, com- plementa 0 Parisinus 1741; © um manuscrito drabe: a Versdo Arabe, do século X, que remete ao texto grego através de uma versio siriaca; 8 Bo * dois manuscritos latinos: 0 Toletanus, escrito em torno de 1280, e o Etonensis, de 1300, os quais testemu- nham a traducdo latina da Poética, efetuada em 1278 por M. Moerbeke. 2 Revisao comentada da Poética Uma leitura/reescritura completa da Poética, pautada no seu contetido e ordem seqiiencial através do cotejo de trés tradugGes! e das notas e estudos que as complementam, permite uma remontagem exegética do texto, capaz de fun- cionar, por um lado, com a objetividade de um sumario abrangente e, por outro, como um quadro referencial eluci- dativo para as indagacdes progressivas acerca da mimes Considerando o tema de que trata, a Poética pode ser seccionada em sete topicos, conforme a disposicao e subdi- visdes apresentadas a seguir. Abertura do texto (cap. |, 88 1 e 2) — proposta de estudo da poesia ¢ de suas espécies como artes miméticas No paragrafo inicial do primeiro capitulo, Aristoteles aponta a poesia como o alvo de sua investigacao ¢ dimen- " ARISTOTELES. Poética, Porto Alegre: Globo, 1966; ARISTOTELES, HorAcio, LONGINO. ‘A poética classica, Sao Paulo: Cultrix, 1981; Arisrore, La poétique. Paris: Seuil, 1980. 10 siona, como num indice, a extensdo de seu estudo acerca da arte poética: tratara da poesia em si mesma (como géne- ro); de suas espécies — consideradas segundo sua finali- dade prépria; da maneira como devem ser compostos os mitos (histérias ou fabulas), para que o poema resulte per- feito; e da natureza das partes que constituem o poema. Quando diz, no final do pardgrafo, que comecara, como ¢ natural, pelas coisas primeiras, fica evidenciado que se utili- zara do método de classificagéo do naturalista, que obe- dece & ordem prépria da natureza, comecando pelas nogdes mais elementares. No segundo paragrafo, o autor procede a enumerac’o das espécies de poesia — epopéia, tragédia, comédia, diti- rambo, aulética e citaristica —, ressaltando, primeiro, 0 ponto comum entre elas: todas sdo, em geral, imitagdes? (construgdes miméticas); depois, fala de suas diferengas: diferem entre si porque imitam segundo meios, objetos ou modos diversos. Critérios distintivos da mimese (cap. |, § 3, ao cap. Ill) — meios, objetos e modos Ainda no primeiro capitulo sao apresentados os meios através dos quais se da a imitacao. Citando as cores e as figuras como meios utilizados por alguns artistas (pintores De maneira geral, 0 termo grego mimesis € traduzido por “imitagdo™ vomo aparece nas tradugdes de Eudoro de Sousa e Jaime Bruna. Na versio francesa de Roselyne Dupont-Roc ¢ Jean Lallot, entretanto, o termo € traduzido por “representagao"’, preferido a “imitagdo” por suardar um sentido teatral ¢ por conter polivaléncia semantica propria da mimese: a de nao privilegiar nem o objeto-modelo, nem o objeto produzido, contendo a ambos simultaneamente (Introduction, In Agislort. La poétique. Paris: Seuil, 1980, p. 17-20). i e escultores) e também a voz (suporte sonoro), Aristdteles passa a enfatizar aqueles que so os meios proprios das artes poéticas: o ritmo, a linguagem (canto) e a harmonia (metro). A aulética e a citaristica exemplificam as artes que se utilizam somente da harmonia e do ritmo; a danca serve-se apenas do ritmo e, desenhando coreograficamente figuras com 0 corpo, imita caracteres, emogdes e agdes; mas a arte que se vale exclusivamente da linguagem como meio de imitacao, podendo servir-se do ritmo (géneros metrificados) ou nao (prosa), como combinar diferentes metros ou ndo usar nenhum, nao possui denominacdo espe- cifica.> Esse fato determina que as diversas composicées imita- tivas, como os mimos de Séfron e de Xenarco e os didlo- gos socréticos, no possam ser indicadas por um termo comum. Ao contrdrio, 0 que acontece é a designacdo dos poetas pelo tipo de metro que usam e nao pela imitardo que praticam, como € 0 caso dos chamados “‘poetas elegia- cos’? — os que usam o distico elegiaco: um hexdmetro seguido de um pentdmetro — e dos “‘poetas épicos’? — os que usam o metro herdico: hexAmetro dactilico. Aristoteles ressalta criticamente a inadequacao do termo “poeta”? a todo aquele que se vale do metro para expor um assunto. Cita Empédocles e Homero para mostrar 0 primeiro como mais naturalista (fisidlogo) do que poeta, € © segundo, como poeta propriamente dito, apesar de os dois serem versificadores. Com isso, reforga a importancia do critério dos objetos sobre o dos meios na abordagem da arte poética e exemplifica essa posicao, estendendo e legi- timando a condicéo de poeta a Querémon, que, mesmo 3 Jaime Bruna aponta o termo “literatura’” para designar a reunidc des- ‘sas composicdes imitativas (A poética cldssica. So Paulo, Cultrix, 1981, cap. I, nota 3, p. 19). Roselyne Dupont-Roc ¢ Jean Lallot referem esse conjunto geral como “composition en mots” (La poétique, cap. 1, nota 8, p. 150). 2 combinando todos os metros, construiu uma representacdo: a rapsédia Centauro. O capitulo I fecha-se voltando 4 sintese reiterativa de que ha artes que se utilizam nao s6 da linguagem (canto), mas também dos dois outros meios (ritmo e metro), como € 0 caso da poesia ditirambica, dos nomos, da tragédia e da comédia, que diferem entre si, porque os usam conjun- tamente e, outras, em separado. Na seqiiéncia do estabelecimento das diferencas entre as artes miméticas, o autor passa a tratar do objeto da imi- tacdo, representado nos homens em aco. Estes se caracte- rizam eticamente como bons ou maus, uma vez admitido © principio de que o vicio e a virtude distinguem as pessoas em matéria de cardter. A imitacdo que o poeta faz sera, necessariamente, de homens melhores, piores ou iguais a nés, a exemplo do que fazem os pintores, como Polignoto, que representou homens superiores, Pauson, inferiores, ¢ Dionisio, homens semelhantes a nés. Essa diferenca quanto ao objeto de imitacdo esta pre- sente também na arte da danga, da flauta e da citara, como nos géneros poéticos que usam a linguagem em prosa ou verso como meio; a mesma diferenca é responsdvel ainda pela distincdo entre tragédia e comédia: a primeira repre- senta os homens melhores do que so e, a segunda, piores. Nesse capitulo (II), Aristételes associa a mimese, a partir do dominio poético, com a transformacao ética do objeto- modelo, para melhor (como faz Homero) ou para pior (como Hegémon de Tasos e Nicécares). A Poética reconhece explicitamente como géneros somente a tragédia,.a epopéia e a comédia, ou seja, as espé- cies miméticas que implicam a transformacao do carater do modelo (homem comum) para melhor (tragédia e epo- péia) ou para pior (comédia). A representacaio de seres semelhantes aos comuns, como o fazem Dionisio (na pintu- ra) e Cleéfon (na poesia), mesmo que dada como possivel 13 (8 1, cap. TI), ndo engendra a formacao de um género poé- tico na tipologia de Aristoteles. ¢ © modo como se realiza a imitacdo € o terceiro critério distintivo da mimese. Os modos sao dois: 0 narrativo, quando se narra pela voz de uma personagem, a exemplo de Homero, ou em primeira pessoa, ¢ 0 dramético, quando as proprias pessoas imitadas agem, so os autores da representacao. ‘Comparando as artes miméticas, a imitagao de Sofo- cles (autor de tragédias) ¢ a de Homero (autor de epopéias) se aproximam, se for considerado o objeto que imitam: ambas representam seres superiores aos comuns. S6focles, igualmente, pode ser comparado a Aristéfanes (autor de comédias), do ponto de vista do modo da imitacéo. Ambos imitam pessoas agindo, fazendo o drama. A partir do fato de que os poetas imitam pessoas em aco (drontas), Aristé- teles registra a afirmaco, defendida por alguns, de ser essa a origem etimolégica, a causa do uso da palavra ‘‘drama” para tais formas de composicao. O final do pardgrafo que conelui o capitulo III retine, no entanto, elementos que reve- lam a situagdo polémica quanto as origens da tragédie e da comédia, através da etimologia dos termos em que so expressas. A poesia e suas espécies (cap. VeV) a) causas do aparecimento (LV) Duas causas naturais dao conta do surgimento da poesia: © 0 homem tem uma tendéncia congénita para imitar e encontrar prazer nas imitacdes; * o homem tem uma disposi¢o congénita para a melo- dia e o ritmo. 4 A observacdo & desenvolvida por Roselyne Dupont-Roc ¢ Jean Lallot, quando examinam as relagGes entre a mimese ea ordem ética (op.

You might also like