You are on page 1of 21
CAPITULO VII A ESTETICA DAS LUZES FIM DO BARROCO, IMPERIO DA MUSICA A aproximagao a uma civilizagdo € necessariamente arbitra- tia. Foi ao nivel dum corpo de ideias abstractas, em vaivém cons- tante, é facto, com o social, isto 6, na relagao do homem com o espaco e do homem andrégino consigo mesmo, que tentamos apreender a civilizag&io das Luzes. Restava, uma vez construido o modelo, experimentar o seu valor. Intitulamos esse trabalho: aten- gao das ideias as coisas, passando do grosseiro ao subtil, do bruto ao complexo. £ na elaboragio do belo que se apreende melhor uma civi- lizagdo. A civilizagio das Luzes, 0 s XVIII duma Europa privilegiada numerosa,_mediterranica_e_atlintica, confunde-se_ jase, na percepcao que dela t 05 hoje, com wma. estética com ama ate deviver ‘Com {oda a modéstia, deixemos ficar um titulo que promete mais do que cumpre. A estética das Luzes: entenda-se pura e simplesmente o esforco dos homens da Europa entaéo_mais numerosa para constr a _sua_volta atio de_beleza, uma beleza para a indispensdvel_relack0—ontotogiea —recorde-se que 0 auge estético do século XVII é uma oragao pronunciada pelo 6rgao— uma_beleza para enquadrar a vida, uma vida que, conquistando dez anos 4 média abstracta, duplicou ptaticamente o tempo obtido para o homem. A estética das izes, isto é, o grande, o intermindvel combate do homem e das coisas com vista a criacao, para seu uso, dum enquadramento de beleza em movimento. Nao existe, a partida, uma estética das Luzes no horizonte 1680. Nio € certo que haja, um século mais tarde, uma con- cepcdo de belo valida para o Mediterraneo, para a Europa do Norte, para a Inglaterra e para a Russia, para a musica e para a arquitectura, para a corte e a cidade, para as geracdes, de decénio em decénio mais numerosas, que partem do conheci- 55 a needa mento por-ver-fazer e ouvir-dizer para a grande solidariedade inter-secular dos que tém acesso a linguagem superior do escrito. Mas, de 1680 a 1780, nesse século de duplicagao do nimero de homens na Europa e na decuplicagio dos conhecimentos, da-se © milagre duma relativa unificago. Esta unificag&io tem causas externas, e é por isso que nao é necessariamente um ganho. De- tiva da multiplicagio das comunicagdes e do efeito de dominio exercido pela Inglaterra e pela Franga sobre 0 conjunto do espago cultural europeu, tanto mais eficaz quanto tal acgfo 6, ao nivel das elites e, como se viu, do Estado no Leste, acompanhada por uma vontade de recuperacao, ou seja de alinhamento sistematico pelo Ocidente. Tal unificagio deriva em todo o lado do recuo das culturas populares. A alfabetizagio maciga das populagées, sempre que se verificou, mormente no Ocidente, funciona como uma frente de aculturagio. Se existe uma estética das Luzes, dominante e simplificadora, vamos ter de a descobrir no final do periodo que a histéria demografica e intelectual nos ensinou a recortar no horizonte 1750. Esta estética que triunfa_no fim do século XVIII é a duma elite, parado: almenie dum ntimero fnfimo. E assim que se coloca a partida esta pergunta escaldante: belo para quem e por quem? Serio precisos ainda muitos anos de pesquisas para se conseguir fornecer uma resposta global a. essa pergunta ingénua. * A pequena Europa dos anos 1680 ocupa um espago imenso, na ordem do belo, um espago fraccionado. Porque a estética de fins do século XVII é, menos do que se gosta de dizer, uma estética do pequeno numero, Na ordem do belo, a Europa, em 1680, escreve-se no plural. E deixamos para tras, € claro, 0 novo e grande problema da Europa das «culturas tradicionais». Beleza do vestudrio, beleza do canto coral, arrumacado do espago aldeao em casa e fora da casa, todo um dominio infinitamente miltiplo em que o século XVIII realiza, muitas vezes sem inovagado fun- damental, com materiais tradicionais legados pelo passado, um mimero impressionante de obras-primas. A maior parte das casas de madeira da Transilyania, desmontadas e reconstruidas no mu- seu da casa camponesa de Bucareste, 6 contemporanea das Luzes. Mas ser que lhe pertence de verdade? Pode duvidar-se. A etno- grafia da Europa tradicional esta em boa parte por construir. Ficar4, portanto, para outra altura a camada inferior das duze: tas: (2) culturas camponesas ‘que ficam escondidas, sob. a civili- zacHo una, em. curso de edificagio no.século XVIII. “A: historia da arte ignora-as, Vamos ter.de renunciar momentaneamente a 56 integr4-las numa sintese impossivel duma histéria verdadeira- mente total. Mesmo ao nfvel da elite dos que léem correntemente, ao nivel portanto das boas hist6rias da arte, o espago estético da Europa, cerca de 1680, é um espaco fraccionado. Mais sem da- vida do que no fim da Idade Média, talvez mais até do que no fim do Renascimento. Veja-se a arquitectura. A Italia, em meados do século XVII, levou o barroco aum ponto que é dificil de ultrapassar; um auge duplo: Bernini e Borromini. Na Igreja de Santa-Maria-della-Vittoria em Roma, a capela de Santa Teresa. JA se disse tudo sobre a Transverberacgao. Data de 1646. Vinte anos depois o cavaleiro Bernini acaba as colunatas. de Sao Pedro. Elas fazem convergir para a fachada de Maderna, para a loggia das béncSos, os milhares de olhos das grandes multid6es peregrinas nos anos jubilares. A Scala Regia, num espaco espartilhado entre a Basilica de Sao Pedro e o pago pontificio, continua a ser uma das obras-primas do trompe-loeil. Borromini realiza em 1667 a fachada de frontdes incurvados de Sdo-Carlos-das-Quatro-Fontes que, durante um século, ocupou a imaginac&o arquitectural da Alemanha catélica e da Europa da- nubiana. A Itélia comanda na direcgio do Norte um espaco barroco que a vitéria do Kahlenberg estende através da planicie pandénica até a Transilvania. O horizonte 1680 é, para toda a Alemanha do Sul, o da substituigio dos arquitectos italianos por uma gera- Go de arquitectos alemies que vao ultrapassar, se tal for possivel, Pposigdes de Bernini e de Borromini. O primeiro barroco sul- -alemao danubiano foi dominado por italianos, veja-se Guarino Guarini. Este oratoriano, matematico e filésofo, € também um te6rico. Tinha nascido em Modena em 1524. Construiu e conce- beu na Itdlia (deve-se-lhe em Turim o palacio Carignano e Sao Lourengo), em Portugal, na Franga, mas sobretudo na Alemanha do Sul, na Austria e na Boémia onde propés mais do que reali- zou. Veja-se Santino Solari (comega em 1614 a Catedral de Salz- burgo), Barelli e Zucalli (comecaram em. 1663 em Munique a Igreja dos Teatinos), Lurago (a Catedral de Passau a partir de 1668), Pertini em Wurtzburgo (a Haug Kirche comecada em 1670). Carlo Canevale tinha concebido o plano da Igreja dos Servitas em Viena (1651-1677), Francesco Caratti.a. fachada do Palacio Czernin em Praga, com trinta e duas colunas colossais imbrin- cadas, que.jogam melhor com a rara luz do Norte do que sim- ples pilastras; e 6 também a um italiano, Domenico Martinelli, que se deve, entre 1692.e 1705, no Liechtenstein, em Viena, o antecorpo central do palacio mais alto.do que as partes laterais, uma. solucdo. que fara fortuna no espa¢o austro-alemio. 57 Comegam depois as produgées da pléiade de gigantes, de Bernard Kischer von. Erlach* (1656-1723), Johann Lukas” von Hildebrandt * (1668-1745), Andreas Schliiter (cerca de 1664-1714), Compreende-se que, em 1691, Hans Jakob Wagner von Wagenfels, no seu Ehren-Ruff Deutschlands, tenha podido proclamar, em igualdade com a Itélia, a superioridade da arquitectura alema sobre a arquitectura francesa, no clima galéfobo da Liga de Augsburgo. A i Uma estética barroca domina a Italia, a Alemanha catolica, a Europa danubiana em expansio; ganha novo félego na Penin- sula Ibérica e nos seus prolongamentos americanos com a geracao dos Churriguera (José Benito, 1665-1723; Joaquin, 1674-1724, 6 Alberto, 1676-1740). Mas na Franca, apés os éxitos estrondosos de meados do século, viria a esbarrar com certas resisténcias, E inutil Jembrar o significado do fracasso de Bernini em Paris, em 1665 e 1666, a opcéo de Colbert, a Colunata de Perrault, no momento em que as grandes Academias (Lebrun na presidéncia da Academia de Pintura, a Academia das Ciéncias e a Academia de Franca em Roma em 1666, a Academia de Arquitectura em 1671) prometem as opcdes classicas dos anos 1660 a longa duragio da institui¢ao. A Europa barroca, portanto, a Franga oficial opde a s6lida barreira duma estética classica. Mede-se sem dificuldade o poder de irradiagio da excepgao a partir das linhas direitas das fachadas de Versalhes, Uma Franga classica (j4 em tempos mostramos a estreiteza e a ambiguidade desta vitoriay) embutida desde o principio dos anos 1660 num oceano de formas barrocas. Este esquema é dema- siado simples. Resta a Europa do Norte. Norte profundo que ter- mina em Londres. Na Franca, sera preciso um século para a estética do Renascimento expulsar dos seus derradeiros bastides a fidelidade 4 antiga arte de construir. A medida que nos afasta- mos do centro de difusao italiano, prolonga-se o tempo da insen- sive] substituigéo. A Inglaterra, préxima e comunicante, conser- vou ao longo do século XVI, apesar de Inigo Jones (1573-1652) e da simetria das belas mans6es isabelinas da bacia de Londres, Os seus bastides géticos. O proprio Inigo Jones, o paladino, teve de se submeter a vontade deliberada duma procura que era muito precisa, Deve-se-lhe a capela gética de Lincoln’s Inn. Christopher Wren, o «reconstrutor» de Londres apés 0 incéndio, o «Bramante» de Saint-Paul, 6 também o autor, no limiar dos anos 80 (1681- -1682), em Oxford, capital do espirito e conservatério das formas, da Tom Tower gética de Christ Church College. No comecgo da Restaurag&o, o arcebispo de Cantudria, William Juxon (1660- -1663) péde encomendar o grande hall gético de Lambeth Palace. 58 Um gotico inglés, certamente minoritario, mas vivo, € contem- poraneo tanto de Bernini como de Mansart, Essa Inglaterra gotica no horizonte 1680 constitui o angulo sudoeste duma Europa do Norte ainda por definir e que, no plano arquitectural, continua a ser o conservatério vigoroso das solugdes francesas, em ressur- géncia, do glorioso século XIII. Duas estéticas vivas, quase em pé de igualdade e uma terceira que nao estd decidida a morrer. Ai esta, no maximo da simplificacio, o que nos ensina a historia afinal minoritaria das igrejas e dos paldcios. _ . E tal como a arquitectura, a musica. Sera necessario evocar © episddio famoso e revelador de 1752? No primeiro de Agosto de 1752, © grupo italiano dos Bufdes estreia-se na Opera com a Serva padrona de Pergolesi*. Esta obra-prima da Opera. bufa data de 1734. Representada em 1746 em Paris, mas para italianos, tinha passado completamente despercebida. O piblico da Opera, em 1752, recebe-a apoteoticamente. O partido filos6fico clama vitéria. Em Novembro, o bariao d’Holbach, ao abrigo do anoni- mato, abre as hostilidades; Jean-Jacques Rousseau, na sua Carta sobre a Musica Francesa, a 25 de Novembro de 1763, desenca~ deia, pela violéncia dos seus ataques contra a tradicao musical francesa, aquilo a que se convencionou chamar a polémica dos Bufdes. A polémica dos Bufdes marca, se se quiser, 0 ponto de partida ao cabo do qual, em fins do século XVIII, aparece o espago unificado duma Europa musical. Mas em 1680 vamos ja longe da conta. No universo musical francés manda Lully que morre em 1687. Marc-Antoine Charpentier (1636-1704) e Michel-Richard de La Lande (1657-1726) estdo preparados para ocupar o lugar dele. Um universo musical francés que resiste a fuga rumo a Alemanha do Sul e 4 Europa danubiana das modas italianas. Note-se, antes de mais nada, a sobreposigéo das duas geografias. A Europa de Lully é a de Mansart e de Perrault. A Europa de Frescobaldi, de Corelli, de Scarlatti e de Vivaldi corresponde, grosso modo, ao espaco dominado pela estética arquitectural de Borromini, de Bernini, de Fischer von Erlach e de Hildebrandt. Na linha da polémica célebre entre d’Holbach e Jean-Jacques por um lado, na réplica contundente de Jean-Philippe Rameau por outro, nas suas Observagées sobre o nosso instinto para a musica (1754), a historiografia francesa foi sensivel essencialmente a tragica tensdo moda francesa/moda italiana: «[...] nos séculos XVII e XVIM, a linguagem musical ainda nao tinha sido inter- nacionalizada. A escola francesa e a escola italiana nao estavam ainda separadas por um grande numero de particularidades que permitiam distinguir & primeira vista a origem dum cantor, dum instrumentista, dum trecho; a maneira de tratar os ornatos, a realizagio do «baixo cifrado», a textura harmonica [...] permi- 59 tiam sem quaisquer falhas situar a personagem ou a obra aquém ou além-Alpes» (E. Bortel.) Este fosso profundo segundo um eixo Noroeste/Sudeste do espago musical europeu data do comego do século XVII. Est4 relacionada com o triunfo progressivo da misica instrumental de estilo concertante e de contraponto, com a explosao desse compromisso genial e multiplo que é a Opera italiana, No século XVI nao era nada assim. «A histéria da musica do Renascimento é a histéria da supremacia da gloriosa hegemonia do génio franco-belga sobre todos os outros centros artisticos da Itdlia, da Espanha e dos estados germanicos» (M. Expert). eee Mas a referida tensio é simplificadora. Uma andlise mais atenta permite a Norbert Dufourcg, no seu Joao-Sebastido Bach, mestre de érgao, distinguir nas fontes do génio do mestre as prin- cipais tradigoes cuja fusio se opera ao longo de todo o sé- culo XVIII. Uma tradigéo espanhola, inglesa e neerlandesa, uma tradicao francesa, uma italiana; uma Alemanha meridional e danubiana sob o dominio dos mestres italianos, prestes a mudar de misica, da mesma forma que a Itdlia, depois de perder o impulso adquirido, muda de arquitectura; um Norte imenso que se articula nas Provincias Unidas e se estende a toda a Alemanha protestante das planicies, 4 Escandin4via e ao Baltico; cinco Euro- pas musicais, portanto, trés delas, pelo menos, a custa dum agru- pamento no seio das grandes articulagdes habituais, a Italia e€ 0 seu prolongamento pela Alemanha alpestre, a Franga nas pro- ximidades duma Inglaterra esquartelada, o Norte. Uma geografia que nao é comandada simplesmente por tradigdes de escrita, mas também, e muito mais, por tradigdes de feitura. Voltaremos ao assunto. Uma Europa resolutamente dividida em trés grandes zonas, pelo menos. No horizonte 1680, a unidade veio antes ou vira depois. 1680-1690. Ser perceptivel a viragem do século? B, de facto, mas através dum conjunto de sinais modestos que, vistas bem as coisas, sio uma decepcdo. Vamos recordar brevemente esses sinais, para depois procurarmos compreender. Na medida em que o grande espaco estético europeu apareceu, no fim do século XVII, como um espaco fraccionado, apesar da grande vit6ria do barroco, os sinais que marcam a viragem do século XVII esto longe de ser univocos. Afectam quase exclusivamente 0 sector francés lato sensu e podem, em certa medida, ser inter- pretados dentro duma problemdtica do alinhamento. Em 1680- -1690, o barroco italiano termina a conquista da Alemanha caté- lica e da Europa danubiana. Nenhuma ruptura, antes uma linha de desenvolvimento, A Reforma catélica descobriu o modo de 60 expressio arquitectural e plastico que corresponde simultanea- mente a teologia dos clérigos, 4 representagao intelectual das eli- tes e as necessidades da sensibilidade popular. Veremos como. Desenvolvimento, linha de declinio, quebra. : . Nada de surpreendente hé no facto de o gético tardio inglés ter travado, um pouco antes da Glorious Revolution, o seu tiltimo combate: é facil ver nele a liquidacio dum arcaismo. Na Ale- manha Central e na Alemanha do Norte, o facto essencial para o futuro reside na construgdo da infra-estrutura material de gran- des 6rgaos de estilo novo: o fenémeno Joao Sebastiao Bach, se nao fosse isso, teria sido, em boa parte, impossivel. Sabe-se que a geografia do fabrico introduz no jogo uma das grandes falhas culturais da Europa tradicional. O érg&éo nasceu no Norte, no espago medieval privilegiado da estrutura setentrional dos Paises Baixos. O rei da musica instrumental pde em funcionamento um conjunto complexo de técnicas dificeis de dominar. A Italia, que criou a 6pera e popularizou esse espectdculo da Corte, permanece fiel a uma forma musical que nao deixa de ser arcaica, que recorre ainda largamente ao suporte da voz humana. O érgao italiano, até finais do século XVII, é um instrumento modesto, lateral, delicado. A Alemanha catélica, no essencial, permanece- -lhe fiel. «Na Alemanha do Sul, no século XVII, um érgio repu- tado pela dogura dos timbres, pela luminosidade das vozes, pela poesia das suas harmonias, um 6rgdo italiano de pedal reduzido, teclado simples ou duplo, raramente triplo.» (Norbert Dufourcq.) O 6rgio do Norte, que cobre a Alemarha protestante, do mar do Norte ao Baltico, é mais parecido com os érgios franceses, neer- Jandeses e até espanhdis, um imponente instrumento com milti- plos registos manuais, um pedal com dez ou quinze registos — numerosos cambiantes, coloridos, vivos, fontes de oposicgdes cons- tantes.» O espaco privilegiado da Alemanha média: Vestefdlia, Turingia, Saxonia, Silésia, o tempo privilegiado do tltimo quartel do século XVII, verao a realizagio da indispensdvel e tardia sintese entre as duas técnicas e, mais do que isso, entre dois mun- dos de misica. «Tal como o organista, o fabricante de érgios viaja e as suas deslocagdes contribuem para a evolug&o da arte. Onde quer que ele se estabeleca, impde os seus métodos e gostos, mas tem também de satisfazer 0 cliente e de se adaptar aos cos- tumes locais. E o Orgéo que fica a ganhar com tal permuta de ideias e técnicas.» Dois grandes nomes resumem esta mutacio: André e Gottfried Silbermann. Comegam a trabalhar no fim do século XVII. Fica a dever-se-lhes o instrumento do dominio musi- cal da Alemanha Central sobre a Europa das Luzes. Mas, para se compreender a perturbacio estética do hori- zonte 1680-1690, é 4 Franca que temos de ir. Nada de surpreen- 61 en 4 dente. © tal deslize, de acordo com o. modelo que propusemos, do sistema mecanicista para o sistema bis que, pela tradicional crise da consciéncia europeia, conduziu a filosofia das Luzes, foi na Franga que se dev. Na Franca e na Inglaterra. & natural que as primeiras repercussdes estéticas (muito embora as interac- goes dum plano para outro sejam dificeis de abarcar) comecem por ser percebidas no espaco francés, Somos tentados a interrogar primeiramente a arquitectura, arte por exceléncia, porque se telaciona com o habitat, porque organiza 0 espaco privilegiado do lar onde o etnégrafo (Marcel Mauss va de 0 notar) nos ensina a descobrir o mecanismo secreto duma civilizagao. A sua resposta € discreta mas sem equi- vocos, Louis Hautecoeur j4 o tinha notado. A viragem arquitectu- ral na Franca nao corresponde & do reino mas aos dois tltimos decénios do século XVII, o horizonte 80 da crise de consciéncia. Trahard, esse, colocava em tempos ao nivel da expressio literaria, cerca de 1720, a explosio, o alastrar da nova sensibilidade, a manifestacao literéria do sensualismo lockiano. Mas os primeiros sinais precursores vem de muito antes. Procurando bem, encon- tramo-los de certeza no momento fatidico: «Por volta de 1680- -1690 nasceram tipos inéditos de paldcios e palacetes.» SA0 obra da numerosa equipa Jules Hardouin-Mansart. Este arquitectc é um plural, um plural liberto pelo acabamento da grande-obra no complexo versalhés. O Grande Trianon nao tera possibilidade de ocultar o refluxo das encomendas do principe, agora todo. ocupado pelo grande afrontamento militar da Sucessio da Espanha. Na Corte como fora dela, pouca coisa distingue estas reali- zagées de outras mais raras do tempo de Colbert. Pouca coisa, de facto. Mas também 6 certo que a primeira mutagiio 6 a do niimero, Os tltimos anos do século XVII anunciam as Luzes, fenémeno urbano, por uma decisiva valorizagio desse espago urbano, Os tltimos dias felizes da aristocracia rural situam-se porventura entre 1620 e 1650; uma veste vermelha e branca cujo arquétipo foi pelo jovem Mansart desenhada para Balleroy, tes- temunha a promogio aristocratica da nova nobreza proveniente, no século XVI, da mercancia desviada pelo Estado e fixada, no século XVII, nos gabinetes pela magistratura. Construiu-se rela- tivamente pouco, para 14 das grandes encomendas oficiais, de 1660 e 1680, quando a elite da nobreza toma o caminho da Corte. Paradoxalmente, construiu-se muito nos tltimos decénios do sé- culo XVII. Este movimento da construcao de luxo situa-se, o que € revelador, ao arrepio da conjuntura rural, em correlagao posi- tiva, € certo, com os indices do comércio externo. Nos tltimos anos que Jules-Hardouin Mansart (morto em 1708) passa na Direccfo das Construgées, e depois com Antin 62 que ali se mantém até 1763, a construgo civil luxuosa transfor- ma-se. Depois dos belos solares rurais da primeira metade do século XVII, as construgdes sumptuosas de Versalhes, a era dos palacetes de Paris e da provincia, reflexos das novas orienta- gdes da economia e da sociedade, progresso da cidade. As elites, no limiar da crise de consciéncia que vai produzir o pensamento eminentemente social das Luzes, sao irresistivelmente atraidas pelo espaco urbano. Oppenord*, Boffrand*, R. de Cotte* e Jumel correspondem as novas necessidades criadas pela dispersio da Corte, pelo casamento recente da aristocracia com Paris. Vejam-se as ampliagdes do Palais-Royal. Delas se encarregou Oppenord, parece, em 1708. R. de Cotte trabalha para o conde de Toulouse. Deve-se-lhe a galeria dourada. O paldcio de Toulouse e o castelo de Rambouillet, o palacio do Meno e o castelo de Sceaux fazem parte destas novas implantages, Comega a desergio do Marais, a aristocracia, a magistratura e o capital desenham um zoning especial do espaco urbano. A espada e a elite da toga comecam a colonizacéo do «faubourg» Saint-Germain (€ cercado por uma muralha entre 1704-1707, espago privilegiado na cidade, de que 0 projecto de Turgot conserva a traca), a finanga inchada, mercé das necessidades do Estado comprometido numa Iuta dificil contra a primeira coalizio (Liga de Augsburgo e Sucessio da Espanha), langa os primeiros alicerces do «faubourg» Saint-Honoré, O palé- cio Matignon é um bom testemunho desta fase, assim como as loucuras da Chaussée d’Antin. Paris nao é a Franga. Caen, Valognes, Pont-l’Rvéque, Bayeux na Baixa Normandia, Sens, Auxerre, Avallon, Dijon, Beaune, Macon, Besangon, Chilons-sur-Marne, Verdun no leste, Bor- déus, Nantes, o Havre, gracas a brutal recuperacio, logo muito cedo, das actividades maritimas, conservam os testemunhos dum estilo Regéncia (duma Regéncia que comeca por volta de 1690). Promogio da rede urbana para fora da capital, promogao por- tanto da cidade. Tal demonstrag&o vale também para a Inglaterra vitoriosa dos comegos da Glorious Revolution, de Guilherme e Maria até a rainha Ana. Respondendo a necessidades novas no espago urbano, esta nova arquitectura, sob uma aparéncia de continuidade, abre-se a inovagao criadora. Exteriormente, a forma é classica, O palacio urbano de antes da Regéncia nao rompe com as solucées tipica- mente francesas do tempo de Francois Mansart e de Perrault. Fica, pois, salva a aparéncia, o invélucro permanece intacto. Mas © corpo e a alma mudam. O palicio da Ante-Regéncia dissimula atras das fachadas classicas uma decoragdo que rompe com o passado. Ao nivel do paldcio urbano, a Ante-Regéncia francesa é essencialmente a contradigio fundamental entre o coracdo e 0 63 invélucro, uma nova forma da decoragaio barroca cujo insélito é tanto mais gritante quanto se refugia atrés da enganadora apa- réncia duma ordenagao exterior classica. Esta solugdo francesa dos anos 1690-1700 vira a ter, na Alemanha e na Inglaterra, pelo menos meio século de espantoso éxito. Ela exprime a seu modo a partilha laica das ideias. B o simbolo das tensdes e das ambi- guidades dos sistemas de referéncia das Luzes. Entre a arquitectura e a decoracéo, rompeu-se inesperada- mente o equilfbrio. A arquitectura desta Ante-Regéncia do hori- zonte 80 da crise de consciéncia péde ter sido considerada (€ ver © Palais-Royal de Oppenord) como tributaria da arte do decora- dor. O involucro é, portanto, a certa altura, influenciado pelo interior, pela orgia de volutas dum barroco que se prepara para viver a Ultima metamorfose do rococ6. & facil interpretar a trans- formacao da decoragio do palacete urbano, no horizonte 1690, como a reabsorcio duma anomalia, a contracgio do paréntesis classico franco-inglés pela avalanche da Europa barroca. A vira- gem 1690 comeca por ser isso, mas é mais do que isso. Essa revo- lucéo modesta é capital porque afecta o meio circundante. Si- tua-se, portanto, no espago mais carregado de conotagoes afecti- vas. A mutagao de cendrio que, do palacete parisiense, parte 4 conquista geografica e social da Europa, por fatias sucessivas, pode situar-se grosseiramente na linha barroca. Mas entre o bar- roco teolégico e politico ao servico das afirmagdes fundamentais da Reforma catélica, ao servigo da elaboraco dificil do Estado monérquico, na hora dos Sténde, e a decoracéo voluptuosa que aparece no horizonte 1690, ao servico do olhar, para a festa dos sentidos, na intimidade alargada do lar dos poderosos, vai uma grande diferenga. Uma vez que a pintura tende para a decoracaio, € natural determo-nos nela e, visto partir tudo da Franga e da Inglaterra e nfo haver pintura auténoma inglesa antes do comego do sé- culo XVII, ha que interrogar a arte pictural francesa. E por volta de 1680 que comeca o periodo de transi¢&o; sera necessario falar também aqui duma Pré-Regéncia? Procurando caracterizar a passagem, Albert Chatelet e outros antes dele propdem-nos uma Regéncia conquistadora, consequéncia duma histéria excessiva- mente fraccionada. Os anos 1715-1723 «nao tiveram capacidade para fazer nascer um estilo novo. Conheceram t&éo-somente 0 desabrochar duma evolugao que tinha j4 sido esbocada nos derra- deiros decénios do século XVII e que permanecer4 viva apés a morte do Regente, De facto, é no decorrer de varios decénios que se vio estender as manifestagdes picturais desta época de tran- sic¢Zo. Elas surgem por volta de 1680 nas obras dos pintores que ent&o se tornam conhecidos em Paris.» Poderia colocar-se numa 64 primeira linha Largilliére, Rigaud, Desportes e Antoine Coypel. Largilligre nasceu em 1656, Rigaud em 1659, Coypel e Desportes em 1661; depois, numa segunda linha, a brilhante geragéo que conta com Jean-Francois de Troy (1679-1752), Oudry (1686-1755), Le Moine (1688-1737) e, evidentemente, Jean Antoine Watteau (1684-1721). O alinhamento pictural francés passa curiosamente por uma orientag&o na direccao do Norte, por uma redescoberta de Rubens. A viragem pictural francesa situa-se por alturas da geracio de Largilliére e nao da de Watteau: numa palavra, é a vit6ria dos rubenistas sobre os poussinistas. « do Norte que vem. © gosto por uma paleta vibrante, como a busca duma traducdo das qualidades tacteis da matéria que entao se afirmam. Dai tam- bém o favorecerem-se os temas do quotidiano.» (J. Thuillier, A. Chatelet.) Mas tal mudanga de tematica supde sobretudo uma modificacao ao nivel da encomenda. Da mitologia herdica, a aris- tocracia de sangue, dos cargos e da financa passa para «os amo- tes dos deuses e as cenas galantes». Modifica-se o mercado, O Estado, ultimada a sua implantagio em Versalhes, absorvido por outros trabalhos, apaga-se. «Os grandes empreendimentos decorativos rareiam.» O palacete urbano, num espago caro, tem a tendéncia de sacrificar as galerias sumptuosas em favor de divi- sdes intimas. A inflexao social da encomenda, a evolugio do gosto, a pro- mogao do corpo, a contracgao escatolégica que se esboga — aten- Gao das ideias as coisas —, a redugSo e a fragmentacSo das super- ficies a_cobrir contribuem para a importante modificagio dos temas. Temas que atraem os coloridos frescos da carne feminina adolescente. A modificagio insinua-se onde menos se espera. Quando o ja velho Luis XIV da trabalhos destinados aos netos, a arte nascida no turvo laboratério dos novos palacetes i- sienses infiltra-se na encomenda oficial. Vejam-se os arranjos da Ménagerie de Versalhes, destinados 4 jovem duquesa de Borgo- nha, em 1699, logo seguidos pelas transformacdes do palacio de Meudon destinado ao Delfim. E nessa mesma altura que o mobi- liétio esboca uma evolucio. Ha que mobilar os novos palacios. Os méveis passam a ocupar menos espago, a ser menos nume- Tosos. A poltrona e a cadeira, «que, com espaldares menos volu- mosos e mais confortaveis, se tornam mais faceis de mover, que, gracas a esculturas douradas ¢ rebuscadas, se tornam preciosas pela propria madeira e no pelos panejamentosy (P. Verlet) dao lugar & curva. Veja-se o pé Regéncia: aparece pouco antes de 1700, esboca pela base a curvatura Luis XV. O corpo busca o con- forto. A camilha e a preguiceira tornam-se auxiliares duma arte mais confortavel da conversacio, aparecem nos interiores privi- legiados do horizonte 1700. © leito liberta-se das superstruturas, 65 Os panejamentos yao recuando, a cama grande com colunas desa- parece dum quarto mais aquecido. Multiplicam-se os acessérios: afirma-se a banqueta de bilhar, nascida nos fins do século XVII; © pé de mesa, a mesa pé-de-galo, a «chaise d’affaires», de fabrico requintado e discreto que a transforma em poltrona ou em banco carregado de in-folios, as pequenas mesas ambulantes e as cémo- das mais pequenas, mais leves, que comegam a elevar-se acima do cho, todos esses méveis mais numerosos e mais variados sio indissocidveis da nova decoragéo que dé lugar ao imprevisto, & curva, aos entrangados com, aqui e ali, uma ponta discreta de erotismo. * Tais séo alguns dos aspectos desta viragem dos anos 1680- -1700, Interpreté-la? Comecemos antes por colocé-la na sua ver- dadeira dimensio. Nada ha de absolutamente fundamental a opor a estética das Luzes a estética da Europa dos anos 1620-1680, a que, a falta de melhor, chamamos a um tempo barroco e classico. Nada que se compare com a inflexdo que opde, de cada um dos lados da primeira fase do Renascimento, a estética tra- dicional da cristandade medieval ao tempo unificadamente soli- d4rio que se segue 4 viragem do retorno ao antigo. No interior deste continuum em que os periodos se sucedem de acordo com cronologias diferentes — durante muito tempo, no geral, a Italia antecipa, a Europa mediterranica sé perde o seu primado na invengao e na difusio das formas por volta de 1700 —, os estilos engendram-se por deslize, tem a plasticidade dindmica das estru- turas auténomas formadas. As maiores modificagdes, ousemos dizé-lo, ou sio nitidamente anteriores ou nitidamente posteriores. O século XVIII afirmou de todas as maneiras a sua solidariedade com o passado, isto 6, afirmou a ruptura com a estética medieval eo reconhecimento do antigo como arquétipo das artes e das formas, A grande quebra na ordem do pensamento (é ver Voltaire) situa-a o século XVIII ao nivel da matematizagéo do conheci- mento, com o nascimento da andlise algébrica e com a fisica de Galileu, mas, no plano da estética, afirma incansavelmente a sua solidariedade menos com o antigo do que com o antigo re-inter- pretado dentro dos canones do Renascimento italiano. Por onde se vé que a mais importante mutago estética do século XVII, a dos anos 1750, é indissociével dum novo olhar sobre o antigo, duma promogao do conhecimento histérico. Sabe-se até que ponto a descoberta do dérico arcaico da Sicilia, 0 estudo arqueolégico das formas antigas desitalianizadas terio sido fecundos e liber- tadores. Elas permitiram uma mudanga vinda de Norte (a ingla- terra precede a Franca) que abala e remodela no seu conjunto 66 © espago da Europa das formas. Nao devemos desorientar-nos com a vit6ria dos rubenistas ou com o nascimento do estilo Luis XV através da primeira voluta do pé da cadeira Regén- cia—a verdade 6 que todo o século XVIII ¢ solid4tio com as opgdes do Renascimento italiano nos seus aspectos classicos, do Renascimento interpretado pela idade barroca italiana nos seus aspectos rococé e rocaille, E ela que é revolucionaria e nada de comparavel na ordem estética se produzira antes do século XIX. O Renascimento italiano comanda pelos seus modelos, pela via- gem a Roma que continua a ser obrigatoria para o artista do Norte, mas também pelo escrito. O Renascimento italiano aqui, o barroco italiano acolé. Quando Sir Christopher Wren recons- truiu Saint-Paul, edificando o segundo lugar de culto, em gran- deza, da Cristandade, Wren, o antigo pedreiro, o menos suspeito de ter cultura livresca, nao deixa de ter diante dos olhos, pela gravura ou pelas vedute, os modelos italianos. Como nao ver a filiago de Saint-Paul no modelo italiano certamente escolhido, Santa-Inés-in-Agone, construida entre 1625 e 1627 por Borromini e Rainaldi? «E claro —nota E. H. Gombrich— que, embora nunca tenha ido a Roma, Wren seguiu o arquitecto barroco na concepgdo geral e também nos efeitos.» Saint-Paul 6 muito mais vasta do que Santa Inés, «mas, tal como ela, tem uma cipula central, torres laterais e um portico de inspiragio romana a en- quadrar a entrada principal». Igual analogia entre as torres, mor- mente no que respeita ao segundo andar. B claro que Wren se inspira livremente, com a marca do génio que lhe é proprio: «A fachada de Saint-Paul nao é curva, desapareceu a sugestio de movimento, em favor da robustez e da estabilidade.» Império da forma, império também do livro. Que pensar da tirania do pseudo-Vitrivio, do Vitravio revisto e corrigido, glosa da glosa, comentario do comentario, 4 luz da edigio italiana do século XV, indefinidamente retomada, traduzida, adaptada atra- vés de toda a Europa do livro. Vitrivio tem a desculpa do antigo. Mas, ent&éo e Palddio? Em muitos aspectos, Andrea di Pietro, dito Paladio (1508-1580), tera sido para a Europa das Luzes um. contemporaneo capital. A sua obra arquitecténica é exigua, com- parada com a influéncia dos seus escritos, A Inglaterra do sé- culo XVIII viu Roma através das gravuras dele. Devem-se-lhe, enquanto arquitecto, a basilica de Vicenza, a Villa Rotonda que data de 1550, com quatro fachadas idénticas, «comportando cada uma delas um portico de templo jénico e o interior é uma sala que lembra um Pantedo.» O absurdo na imitag&o servil dum antigo interpretado em sentido contrario, Paladio tem, de facto, um outro titulo de gloria; deve-se-lhe, essencialmente, o famoso teatro olimpico de Vicenza, a ideia se nio a realizagao, j4 que o 67

You might also like