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{Ml EsTADOS-GERAIS RAN HALEVI a vigéncia do Antigo Regime, os Estados-Gerais representavam um expediente de excegdo, sem autonomia, sem continuidade, e que nfo deixava qualquer trago de suas atividades. S6 deviam a sua reunido 2 iniciativa do governo que os mantinha ou os mandava embora, conforme bem entendesse. Eram desprovidos de qualquer autoridade em matéria de governo e mesmo de legislacao. E, se Ihes acon- tecia tomar parte na elaboragao de certas ordenagdes, em termos de direito, nem por isso deixava de ser 0 rei 0 tinico legislador para o reino, assim como autor das leis € como dispensador e abonador dos privilégios. Até 1789, esse atributo essencial per- maneceria um principio intangfvel da autoridade monérquica: diante de uma conjun- tura de excegao, 0 monarca fazia apelo a “representagio” do reino para obter um consenso que Ihe apoiasse a politica, ou, mais simplesmente, subsidios extraor- dinérios. Quando morreu Lufs XI, no ano de 1483, os Estados-Gerais foram con- vidados a emitir um parecer sobre a organizagio da regéncia. Apés um longo inter- valo, Francisco II os convocou, em 1560, para remediar a crise financeira e apaziguar 0s espiritos depois dos tumultos provocados pelas inovagdes religiosas. Os Estados- Gerais foram ainda reunidos em Blois: em 1576-77 para regular a situacao religiosa em seguimento & formagao da Liga; e em 1588-89 pelas mesmas razdes, complicadas pela questéo dindstica que colocava a existéncia de um herdeiro protestante. Depois do assassinato de Henrique IV, a regente Maria de Médicis, as voltas com a rebeliao dos Condés, foi forgada a convocar os Estados em 1614. Seria necessario aguardar mais de um século antes que fossem novamente convocados. Desde o fim da Idade Média até a Revolucdo, 0 ato de representar sempre conservaria 0 sentido muito restritivo que Ihe reconheciam ao mesmo tempo os governantes e os governados: 0 povo, mediante delegagao, mas sem intermediario, apresentava ao rei o espelho de seu reino, enviando-Ihe seus desejos, queixas e ad- verténcias. Um ato que caracteriza a propria natureza do Antigo Regime, no qual 0 individuo s6 dispunha de existéncia politica através de suas ligagdes organicas: a ordem, 0 corpo, a comunidade, o privilégio. “Representar”, antes de 1789, nao impli- cava forcosamente, portanto, representatividade, nem mesmo eleigao. Era, antes de mais nada, entrar em comunhio, transmitir, operacdo 4 qual a designagaio de deputa- dos permanecia estreitamente subordinada, constituindo apenas 0 reconhecimento dos atributos que qualificam tal ou qual individuo para levar aos Estados as reivindi- cagdes de suas comunidades. Com efeito, a forma antiga do mandato imperativo 53 AconTEcIMENTos transformava 0 mandatério nao no autor de uma vontade politica, mas num simples mensageiro, 0 porta-voz escrupuloso de um caderno de contetido bem preciso que impedia toda iniciativa e toda autonomia pessoal. De tal forma que, antes de 1789, a eleigao dos deputados aos Estados era forgosamente uma questo secundaria, assim como 0 recurso ao sufrdgio era uma forma de procedimento desprovida da signifi- cago politica que Ihe conferiria, bem mais tarde, a democracia moderna. er Em 1788, como no passado, foi uma crise politica que levou Lufs XVI a con- sultar os seus “Estados”. Os riscos da conjuntura, a crise do absolutismo e a peda- gogia do século conjugaram seus esforgos para forgé-lo a isso: escassez de géneros e tumultos populares, déficit financeiro de um Estado que nao dispunha mais de recur sos € de expedientes fiscais, pressdo imperiosa da opinido publica, resistencia sobre- tudo das pessoas de destaque © dos parlamentos, opostos a qualquer reforma das finangas monérquicas que nao fosse sancionada por Estados-Gerais. Mas bastou que ‘© governo consentisse com isso para que surgissem bruscamente outras coisas em Jogo, além de um ator inédito: o Terceiro-Estado, que a cdlera popular, 0 apelo aos direitos naturais e a reivindicagao igualitéria reuniram momentaneamente na dentincia dos senhores, dos privilégios, do despotismo ¢ numa aspirago comum — obter uma Tepresentagao igual das duas primeiras ordens reunidas, por em pratica sua prepon- derancia mediante 0 voto individual e no o voto por ordem. No fim do inverno de 1789, ao final de uma campanha eleitoral agitada, a Franca empreendeu redigir suas admoestagdes e designar seus representantes, aqueles mesmos que iriam, alguns meses mais tarde, se apropriar da soberania nacional. No entanto, as eleiges para os Estados-Gerais, como alis os outros escrutinios revolucionatios, sio quase ignoradas pela historiografia revolucionéria, de direita ou de esquerda, do século XIX ou do século XX. E um epis6dio a que dedicam com freqliéncia apenas algumas linhas preguigosas, reduzido a uma espécie de elo mecanico entre as reivindicagdes dos patriotas — notadamente deliberacio em comum e voto individual -, ¢ a derrubada do Antigo Regime. Como se s6 houvesse significacdo ¢ interesse em suas conseqiiéncias longinquas, postulado muito bem partilhado, pois os resultados das eleigdes podem ajustar-se as interpretages do surto revolucionério menos concilidveis. Celebradas ou condenadas, as vitorias sucessivas do Terceiro-Estado (Assembléia Nacional, noite de 4 de agosto, Declaragio dos Direitos) retirariam assim qualquer carter problematico a tal consulta. Esgotariam seu sentido, explicariam seu resultado e dispensariam, portanto, que o observador nisso se detivesse. Unanimidade do siléncio, portanto, e da indiferenga que, na verdade, acoberta motivos mais profundos. Traduz a dificuldade de levar em consideragao juntamente sufrdgios e adverténcias, objetos do pleito eleitoral e coisas politicas postas em jogo. Sobretudo a dificuldade de conciliar com a ruptura fundadora de 1789 um episédio que inevitavelmente a torna problemitica. 54 Estapos.cerais Com efeito, as eleigdes de 1789 marcaram tanto um fim quanto um surto. Fo- ram as tiltimas do Antigo Regime e as primeiras da Revolugao. Ligam-se o bastante a um e & outra para que no se as possa classificar: procedimento tradicional das instituigdes monérquicas, mas também jogo de poder. Enquanto os quadros pediam a reforma do regime, abriam caminho a sua dissolugéo, delegando a Versalhes os au- tores de uma nova legitimidade politica, institu(da pela soberania nacional e os direi- tos do homem. . . Em tal devolugio, a velha monarquia tomou uma parte involuntéria, mas incon- testével. No momento de reatar, depois de um século e meio, os elos que a ligavam a uma tradi¢o perdida, instaurou um dispositivo juridico e politico que abriu caminho ao triunfo do Terceiro-Estado. Por assim dizer, fixou os termos desse caminho € prescreveu as modalidades antes de oferecer ao Terceiro-Estado a sua primeira vitima. Assim sendo, a Revolugao deve tanto a seus autores quanto ao regulamento eleitoral do dia 24 de janeiro. A novidade extrema desse documento decorre, em primeiro lugar, de sua propria existéncia. Pela primeira vez, em 1789, as cartas de convocagao, até entao simples formalidade, mais protocolar do que juridica, foram unidas a um verdadeiro c6digo eleitoral cuja mimicia, a preocupagdo sem precedentes com a unidade e a eqilidade demonstravam uma transformagao do direito puiblico. Era, no entanto, um texto ambiguo, contraditério, a meio caminho da tradigao € da inovacio, justaposicao empirica dos usos antigos e do espirito novo. Por um lado Tetomou 0 quadro e a forma das convocagGes anteriores, ordenou a reunido dos habi- tantes das grandes cidades por corpos e companhias de oficios, manteve 0 antigo tipo de representago por mandato imperative e 0 procedimento tradicional das recla- maces. Multiplicou as excegdes e derrogacdes em nome dos privilégios adquiridos. Conservou, sobretudo, a separagao das ordens ¢ ficou calado quanto & reivindicacdo principal do Terceiro-Estado: deliberagio e voto em comum. Mas, por outro lado, concedeu ao Terceiro-Estado pelo menos uma represen- taco dupla e consagrou os principios que fundam a representagdo politica modema. As frases por que comega o regulamento so, sob esse aspecto, elogiientes: “O rei, dirigindo as diversas provincias submetidas a obedecé-lo cartas de convocagao para os Estados-Gerais, quis que seus stiditos fossem todos chamados a concorrer as eleigdes que vém formar essa grande e solene assembléia. Sua Majestade desejou que das extremidades do reino e das residéncias menos conhecidas fosse a cada um garan- tido comunicar-lhe seus votos e suas reclamagGes.” Mantém-se, portanto, a estrutura da admoestagao: 0 rei consultava a nagdo por meio da suiplica dos corpos. Mas ao mesmo tempo reconhecia-se 0 direito de sufrégio a todos os membros da terceira ordem com a idade de pelo menos vinte cinco anos e inscritos no registro dos impostos. Nao se estabeleceu qualquer distingdo entre direito de eleicao e direito de elegibilidade: todo individuo com acesso as assembléias eleitorais adquiria, por isso mesmo, a faculdade de lutar pelos sufrégios de seus concidadaos. A igualdade politica, outrora contingente, tributéria da vontade dos individuos, de certos grupos de 55 Acconrecimentos Pressdo ou da arbitragem monérquica, encontrava no cédigo eleitoral sua sangio juridica: pela primeira vez 0 povo penetrava de direito, macigamente, na vida ptblica. Coisa insepardvel da igualdade politica: a cidadania, que transformava os stidi- tos do reino em membros do corpo politico, em nome da idéia do progresso. Nao seria possivel excluir da vida piblica, disse Necker aos homens de destaque, toda uma classe de homens tao estreitamente unida & prosperidade do Estado pelo comércio, a industria e as artes...: “Estamos cercados de cidadaos preciosos, cujos trabalhos enriquecem o Estado e aos quais 0 Estado, por uma justa retribuigao, deve a estima e a confianga” (6 de novembro de 1788). O desenvolvimento da economia, 9 incremento das Luzes, a generalizagao da cidadania, tudo contribufa para anular a imprescritibilidade dos usos passados ¢ enfraquecer a referéncia as convocagdes anteriores. Reconhecé-lo diante das pessoas de destaque equivalia, para 0 governo, aceitar 0 veredicto da razao histérica, nfo mais encarnada pela monarquia, mas por uma nova figura soberana e ingovernavel: a opiniao piiblica. A idéia de uma proporcionalidade justa entre a importancia da representacao e a importancia das circunscrigdes era também filha do século. A igualdade dos direi- tos ordenava, com efeito, um tipo de representaco modema que instaurava uma relagdo estavel entre representantes e representados na formagao do poder politico. Assim, para impedir declaragdes que poderiam a justo titulo fundamentar-se nos “usos antigos”, foi igualmente decidido aumentar, de modo consideravel, o nimero de deputados aos Estados-Gerais: 0 texto previa um milhar, quase 0 dobro dos Iuga~ res ocupados em 1614. Era, no entanto, o princfpio da proporcionalidade incom- pativel com a idéia de mandato imperativo, em que a palavra dos mandantes tinha uma importincia infinitamente superior a0 nimero de mandatérios. Nao constitui 0 menor dos paradoxos o fato de tantos contemporiineos, a comecar pelos aristocratas, terem sustentado com igual vigor 0 mandato imperativo e a proporcionalidade. Com um século e meio antes, o bailiado (ou a senescalia), instncia judici que caira em completo desuso no fim do Antigo Regime, é que foi retido como quadro da eleigio. A nobreza designava diretamente seus delegados no centro da instincia em assembléia plendria. O direito de eleger e de ser eleito foi entregue @ todos os membros da segunda ordem, proprietirios ou nao. Os primeiros foram con- vocados individualmente ¢ podiam votar em qualquer parte onde possuissem feudos, diretamente ou por procuragao (foi o caso, notadamente, das mulheres e dos me- nores). Os segundos, convocados por cartazes, s6 participavam das assembléias onde tinham domicflio. Para o clero coexistiam dois registros distintos. Os cardeais, os arcebispos, 0 bispos e todos os titulares de beneficios e de um posto paroquial elegiam diretamente. Os cénegos € 0s religiosos nomeavam a dois graus. Cada comunidade designava geralmente um representante que ia ao bailiado, 0 que garantia ao baixo clero uma preponderancia sensivel nas assembléias eleitorais e, mais tarde, nos Estados-Gerais (pelo menos 204 curas para cerca de 50 bispos ou coadjutores e 18 vigdrios-gerais). ‘A eleicao dos deputados do Terceiro-Estado se fazia em diversos graus, pelo menos dois, muitas vezes trés e as vezes quatro. Nos campos, as assembiéias ‘ia 56 Esrapos-cerais primérias, reunidas no ambito das pardquias, designavam proporcionalmente dois deputados para 200 lares ou menos, trés para 300, quatro para 400 etc. Os burgos e as cidades pequenas delegavam uniformemente quatro representantes. As cidades impor- tantes tinham um procedimento de dois graus: cada corporagao de oficios nomeava um deputado para 100 membros; as corporacées das artes liberais e os habitantes livres, ou no inclufdos numa corporagao, conseguiam dois para 100. Todos esses eleitos formavam a Assembléia do Terceiro-Estado da cidade, que por sua vez desig- nava os deputados da Assembléia do bailiado. ji Nessa altura, 0 procedimento se complicava devido & distingdo entre dois tipos de jurisdigdo. Os bailiados ditos “principais” delegavam diretamente aos Estados- Gerais; os cleitos das diversas localidades da instincia reuniam-se no centro da mesma, redigiam o cademno do Terceiro-Estado ¢ elegiam seus deputados. Mas havia outras circunscrigGes que compreendiam varios bailiados, entre os quais um principal € um ou varios secundarios. Entio, cada uma das assembléias do bailiado procedia, primeiro, de uma maneira auténoma; depois da fusio das reivindicagées num sé cademo, designava um quarto de seus membros, que se transferiam para o centro do bailiado principal, tiltima etapa da consulta, a fim de nomear os deputados aos Esta- dos-Gerais. A reducio ao quarto (grau suplementar da eleigdo) destinava-se nao apenas a “evitar que fosse excessivo 0 mimero de membros das assembléias” e a “diminuir os trabalhos e os gastos de viagem" (artigo 34), mas também a impedir que 0s analfabetos que haviam escapado ao filtro das assembléias primérias gozassem de qualquer possibilidade de alcangar a deputagao. Paris, onde s6 se votaria no fim de abril, foi dotado de um regime particular: 60 distritos, 60 assembléias primérias de bairro, encarregadas de delegar & reunido da ci- dade que clegia, em iltima instancia, os 20 deputados aos Estados-Gerais. Ali o critério eleitoral que mistura estatuto e dinheiro era sensivelmente mais seletivo do que na provincia. Era fixado em pelo menos seis libras por cabega para todos aqueles que nao eram convocados ex-oficio: os graduados das faculdades, os titulares de ProfissGes e das comissdes, os detentores de cartas de mestria. Por fim, 0 escrutinio adotado pelo goveo era plurinominal em diversos turnos © por maioria absoluta; os eleitores votavam num homem, e no por uma lista. De- Viam, em conseqiiéncia, designar seus representantes, um apés 0 outro e, no caso de cada um dos candidatos, formar uma maioria absoluta. Nos niveis inferiores da hierarquia eleitoral, o voto era ptiblico; era secreto em seu tiltimo estigio. Havia acesso automatic & Assembléia Eleitoral, no caso dos privilegiados, e sufrégio quase universal no caso do Terceiro-Estado: esses dois tragos resumiam, s6 eles, as contradigdes de um processo que misturava até o paradoxo o “organico” com 0 “democratico”. E um processo, no entanto, que faz com que aparega uma profunda unidade de conjunto que nao deixa de lembrar o escrutinio do distrito moderno. Haveria, com efeito, esforgos verdadeiros para que se atingisse rapidamente uma repartigio justa das circunscrigdes eleitorais. Tais esforgos, no entanto, nao esgotaram as incertezas que as pesquisas empreendidas as pressas sobre as convo- cages anteriores deixavam subsistir: nmero, populagio e sobretudo jurisdigzio das s7 AcontECIMENTos instincias. Os bailios e funcionérios locais, aos quais se pedira que dessem dados precisos sobre os contornos de suas instancias, confessavam com freqiiéncia a difi- culdade que encontravam. Existia na época uma multidao de jurisdigdes cujos limites ndo coincidiam necessariamente com os supostos limites dos bailiados. Em mais de 400, poucas havia que nao tivessem coincidéncias de jurisdigo com instancias que ndo tivessem par6quias contestadas ou pardquias subdivididas, as quais se viam chamadas a comparecer, muitas vezes no mesmo dia, a duas ou mais assembléias. E havia algumas que, “para manter a influéncia”, nao hesitavam em multiplicar os com- parecimentos. Como na comunidade de Loudun, que chegou a delegar simultanea- mente em Chinon, em Saumur e sobretudo em Loudun, cuja jurisdigao nao abrangia, no entanto, mais de uma casa. Essas confuses e essas incertezas mostravam bem a incapacidade do governo para adaptar suas velhas circunscrigdes as novas disposig6es regulamentares. O que 0 obrigava a refazer constantemente 0 seu texto, ao sabor das reclamagdes que lhe chegavam de quase toda parte. Sob esse aspecto, pelo menos pode-se dizer que a existéncia de um regulamento eleitoral nao mudou muito as velhas préticas de bar- ganha e de compromisso das convocagdes passadas. Tanto assim que numerosos privilegiados — cidades, grupos ¢ individuos — viam nas modalidades da consulta simples instrugdes, desprovidas de qualquer cardter obrigatério. A comecar pelo duque de Orléans, em suas famosas Instrucées, e até determinados ministros preocupados em poupar a nobreza e sobretudo 0 alto clero, gue surdamente temia a preponderdncia dos curas nas assembléias eleitorais. Alhures, os vicios da divisao eleitoral tormavam o texto de Necker inoperante, absurdo e sobretudo pouco eqiiitativo. Com cada rol separado tendo direito a dois representantes, chegava a haver dois ou trés povoados isolados delegando mais do que um centro de bailiado. Acontecia também que se declarasse faltoso um cam- panério, uma terra nao habitada ou uma comunidade composta por uma s6 casa, um tinico eleitor que se supunha dever deliberar, redigir um cahier e... eleger dois de- putados. ‘Sub-representagdo, por um lado, comunidades “quiméricas” por outro: o dese- quilibrio parece tao mais paradoxal quanto é, a0 mesmo tempo, conforme ao regu- lamento e incompativel com um de seus fundamentos essenciais, o princfpio da pro- porcionalidade. Na Franca rural, de uma pardquia a outra, a reuniao dos eleitores apresentava muitas vezes 0 mesmo cenério. Se o palco era sempre ocupado por camponeses, quem © animava eram outros: os presidentes das assembléias, que transformavam uma competéncia juridica no instrumento de uma ambigdo politica, Tal enquadra- mento essencialmente chicaneiro do procedimento, que se encontrava alids em cada nivel da hierarquia eleitoral, era ao mesmo tempo ilegal ¢ imprevisto. Exigindo que toda assembléia priméria fosse presidida pelo juiz do lugar ou, em sua falta, por um funciondrio piblico, o regulamento autorizou um actimulo desenfreado de pre- sidéncias. Isso permitiu a0 homem da justiga local aumentar sua influéncia nao ape- nas na deliberagdo da assembléia e na elaboragao das reivindicagdes, mas também nas 58 Estapos-cerals eleig6es propriamente ditas. Era, no entanto, uma ascendéncia limitada. Embora 0 cahier se inspirasse muitas vezes num modelo preestabelecido, nunca o reproduzia textualmente. Por trés do texto juridico e notarial, distingue-se sempre um fundo de reivindicagées cujo teor e espirito ndio enganam. A gente dos campos s6 devotava aos negécios ptiblicos uma fraca tengo e limitava suas exigéncias a desejos de ordem social ¢ administrativa. Era menos “revolucionéria” do que o imagina Tocqueville, mas muito menos timida do que 0 acreditava Taine ou o que sugere seu desapareci- mento no momento do voto, a despeito de uma arrasadora preponderancia numérica. Com efeito, emergiam do bailiado sobretudo os mais présperos e os mais ins- truidos: lavradores independentes que constitu‘am a camada “politica” da sociedade tural e homens de lei e de administragio de quem eram os porta-vozes. Desapare- clam, em compensagio, os trabalhadores, os vinhateiros, os jomaleiros... 0 que pode parecer previsivel aos que conhecem a influéncia das pessoas de destaque nos meios Turais sobre 0 procedimento, Mas essa verificagio prosaica nao revela tudo, pois em tal estagio clementar da consulta, a filtragem dos homens resultava provavelmente mais de uma acomodagao combinada que de uma competicio imprevisivel, menos de uma “manipulagao” vinda do alto que de um consentimento vindo de baixo. Assim, Podia estabelecer-se uma pacifica distribuigao de tarefas entre representantes e repre- sentados: a uns cabia a prerrogativa da admoestagio, a outros a honra dos mandatos;, Por um lado a voz de uma comunidade, por outro a ambigdo de um individuo, duas logicas de representagdes conjugadas sem principio em virtude das cartas monérquicas. © inventario dos comparecimentos as assembléias de bailiados (principais e secundarios) est4 disponivel, ainda que sumério: o ntimero de eleitores diretos aos Estados-Gerais, confundidas as trés ordens, situa-se entre 105 mil e 110 mil. Desse total, representou s6 o Terceiro-Estado cerca de 40%, o clero e a nobreza, respectiva- Mente, um terco € um quarto, mais ou menos, Se pensarmos apenas no nimero, as ordens privilegiadas conseguiram cerca de 60% da “massa eleitoral”, preponderdncia explicada sobretudo pela laminagao da redugdo a um quarto, imposta a0 Terceiro- Estado notadamente nos bailiados principais ¢ secundérios reunidos. Em compen- Sagao, nas instancias principais sem secundérias, o Terceiro-Estado manteve bastante nitidamente sua preeminéncia numérica. Muito evidentemente, a porcentagem glo- balmente majoritéria dos privilegiados nao podia incidir nas operagdes eleitorais Propriamente ditas, pois em principio as ordens deliberavam e votavam separada- mente. Mas tal vantagem nao deixou, por isso, de conferir uma ressonancia particu- lar & reivindicagao de votar e de eleger em comum. Nessa hipétese, e supondo que 0 governo houvesse mantido para o Terceiro-Estado a eleico por graus, este se poderia ter achado em minoria em grande néimero de assembléias... eke Foi no espaco do bailiado que o escrutinio de 1789 rompeu em definitive com as convocagGes passadas. Ali ndo havia eleigGes arranjadas por antecipagio, nio 59 AconteciMeNTos havia votos sem debates, sem contestagdes, sem surpresa. Panfletos, lemas, agdes discretas, coalizées inéditas, candidatos “invisiveis”, eleitos imprevistos; a mobili- zacdo eleitoral em sua tiltima etapa ilustra, mediante mil exemplos, a andlise que dela fez Augustin Cochin. O que ele pés em evidéncia foi o paradoxo fundamental de um procedimento que justapunha um voto “democratico” a uma consulta “tradicional”, a divisdo das vozes e a unanimidade dos desejos. Uma confusao de princfpios de con- seqiiéncias inevitaveis: 0 voto separado das ordens, que destacava a nobreza de sua influéncia natural, € a sucesso de etapas eliminat6rias imposta ao Terceiro-Estado neutralizavam, por assim dizer, a preponderancia das tradicionais pessoas influentes, deixando campo livre a um pessoal novo e especializado, andnimo e poderoso. Conhecedores dos mecanismos de depuragao e de exclusio, tinham uma tarefa muito mais fécil, pois as eleigdes se faziam, como de costume, sem candidatos, sem pla- taformas, sem 0 confronto necessério das idéias e dos programas. E foi em tal vazio que justamente se instalaram as novas redes de poder, promotoras da “sociabilidade democrética” formada nas “sociedades de pensamento” 4 margem da sociedade organica: circulos, clubes, museus, sociedades patridticas, gabinetes de leitura ¢ lojas franco-macénicas. No teatro de confrontacZio que a convocago inaugurou, apenas tais, 6rgios podiam oferecer “quadros, formulas, homens prontos”; s6 tais praticos da “democracia direta” sabiam mobilizar vozes, “neutralizar” adversdrios que incomo- davam, “peneirar” uma multiddo de votantes inorgénica. Essa anélise revela o caréter fluido, incerto, ambfguo das relacdes entre mobili- zagio eleitoral e campanha de opinido, entre 0 peso do que era escrito ¢ 0 dos aparelhos. Observacées, Instrucdes, Memoriais, brochuras — essa imensa literatura (da qual se conhece muito mal, alids, o destino no meio do povo, a sorte que teve) nao basta para fornecer as chaves do escrutinio; pelo contrério, mascara muitas vezes © que estava realmente em jogo, coisas muito mais prosaicas mas menos facilmente distinguiveis. Vale dizer que a retérica igualitéria estava longe de garantir em toda parte sempre 0 acesso A deputacdo. Quantos adversérios ruidosos do absolutismo, promo- tores de reformas ¢ da contestacao politica viram-se derrotados por candidatos des- conhecidos, is vezes ausentes, na hora fatidica do voto? Quantos deputados obscuros, que nao tomariam qualquer parte ativa nos trabalhos da Assembléia Constituinte, embora representassem cerca de 70% dos eleitos do Terceiro-Estado, deviam suas eleicdes a solidariedades forjadas muito antes de 1789, a margem do debate politico? Se a tese de Cochin estivesse confirmada, poder-se-ia entéio dizer que o Antigo Regime, antes de desaparecer, organizou a primeira deputacao da Revolucdo Francesa em matéria de data. 60 Esravos.cerais ORIENTAGAO BIBLIOGRAFICA Brerre, Armand. Recueil des documents relatifs a la convocation des Etats généraux de 1789. 4 vols. Paris, 1895-1915. Cavart, Jacques. Le Régime électoral des Etats généraux de 1789 et ses origines (1320-1614). Paris, Sirey, 1952. Cuantien, Roger ¢ Richet, Denis (sob a diregao de), Représentation et vouloir poltique. Autour des Etats ‘généraux de 1614; Paris, Editions de I'Ecole des Hautés Etudes en Sciences Sociales, 1982. Cociin, Augustin. “La campagne électorale de 1789 en Bourgogne” e “Comment furent élus les députés aux Btats généraux”, L'Esprit du Jacobinisme (reedigio quase integral de Les sociétés de pensée et la démocratie. Etudes d'histoire révolutionnaire, Patis, Plon, 1921, com um texto complementar), apre- sentado por Jean Baechler. 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