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Universidade Federal de Juiz de Fora

Faculdade de Arquitetura e Urbanismo

Vitoria Vargas Lima

CORPO-CIDADE:
a experiência errática como exercício corpográfico

Juiz de Fora
Setembro/ 2021
Universidade Federal de Juiz de Fora
Faculdade de Arquitetura e Urbanismo

Vitoria Vargas Lima

CORPO-CIDADE:
a experiência errática como exercício corpográfico

Monografia apresentada à Faculdade de


Arquitetura e Urbanismo da Universidade
Federal de Juiz de Fora, como requisito parcial
para conclusão da disciplina Trabalho de
Conclusão de Curso I.

Orientador: Prof. Carlos Eduardo Ribeiro


Silveira.

Juiz de Fora
Setembro/ 2021

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Vitoria Vargas Lima

CORPO-CIDADE:
a experiência errática como exercício corpográfico

Monografia apresentada à Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade


Federal de Juiz de Fora, como requisito parcial para conclusão da disciplina
Trabalho de Conclusão de Curso I.

Data da Aprovação:

Juiz de Fora, 08/09/2021

EXAMINADORES

______________________________________
Prof. Orientador: Carlos Eduardo Ribeiro Silveira

Juiz de Fora
Setembro/ 2021

3
Dedico este trabalho à rua, à beleza do
movimento, à potência do encontro e aos que
por estes caminhos se perdem.

4
Agradecimentos

Agradeço a todos que estão comigo neste longo percurso da vida. Edna,
Neowander, Valentina; Vergara, Letícia, Bernardo; Marcella, Vinícius, Maria; Cadu,
Cláudio, Lívia, Luan; e muitos outros que por aqui passaram, continuam e
adentrarão. Os encontros são o que tornam tudo possível.

5
"Ora, a rua é mais do que isso, a rua é um fator
de vida das cidades, a rua tem alma! [...] A rua
é o aplauso dos medíocres, dos infelizes, dos
miseráveis da arte. [...] A rua é generosa. O
crime, o delírio, a miséria não denuncia ela. A
rua é a transformadora das línguas. [...] A rua
nasce, como o homem, do soluço, do
espasmo. Há suor humano na argamassa do
seu calçamento. [...] A rua sente nos nervos
essa miséria da criação, e por isso é a mais
igualitária, a mais socialista, a mais niveladora
das obras humanas."

João do Rio, A alma encantadora das ruas.

6
Resumo

A temática do presente trabalho traça um percurso por entre cidade, tempo, corpo e
movimento que, através das errâncias modernas, se apresenta como um
contraponto à atual cidade-espetáculo. A partir de uma revisão histórica e teórica,
compreendemos o corpo como fronteira, percurso e potência do encontro, cuja
abertura à alteridade proporciona o reconhecimento do outro. A cidade, constituída
por corpos e vivências, se encontra em constante consonância e grafia para com
estes corpos - individuais e coletivos. O enfoque teórico foi dado, a partir de autores
como Milton Santos, Guy Debord, Paola Berenstein Jacques e Francesco Careri,
nas teorias em torno da sociedade moderna que se opõem à descorporificação do
espaço. Através da concepção de lentidão, da atenção do flâneur, da viagem
deambulatória e da objetividade da deriva, compreendemos a concepção de
corpografias urbanas como desenredo desta correlação direta entre corpo e cidade.

Palavras-chave: (1) corpo. (2) cidade. (3) espetáculo. (4) errância. (5)
corpografia.

7
Abstract

This work’s theme traces a path through the ideas of city, time, body and movement
which through modern wanderings presents itself as a counterpoint to the current
process of spectacularization. From a theoretical and historical review, we
understand the body as a frontier, a path and potency of encounter, which opening to
the difference provides and releases recognition of the other. The city, built by bodies
and experiences, is in constant consonance and impression with these bodies -
individual and collective. The theoretical focus was given to theories around modern
society that oppose the disembodiment of space, using authors such as Milton
Santos, Guy Debord, Paola Berenstein Jacques and Francesco Careri. Through the
conception of slowness, of the flaneur attention, to the ambulatory dreaming and the
psychogeographical objective of the drift, we understand the conception of urban
corpographies as an unrolling of this everlong correlation among body and city.

Palavras-chave: (1) body. (2) city. (3) spectacle. (4) wandering. (5) corpography.

8
Sumário

Introdução 17

1. ESPAÇO > CAMINHAR DO LISO AO ESTRIADO / ESPETÁCULO 18


1.1. a cidade moderna > produção e urbanismo 20
1.2. espaço público > desencarnação e espetáculo 24

2. VOLTA DO CORPO PARA BAIXO / LENTIDÃO > ERRANTES MODERNOS


2.1. o flâneur 29
2.2. a deambulação surrealista 31
2.3. deriva psicogeográfica e ludicidade 32

3. EXPERIÊNCIA / CORPO SOCIAL / CORPOGRAFIA


3.1. pele, fronteira > experiência da alteridade 38
3.2. corpo, educação e repetição > sociedade e cotidiano 40
3.3. corpografias urbanas > inscrição mútua 43

Considerações Finais 47

Referências Bibliográficas 49

9
Introdução

Em meio a tantas ruas, galerias, avenidas e travessas; carros, trilhos, placas e


sinais; luzes, ordens, escolhas e rapidez; por onde anda o corpo na cidade? A
condição moderna de organização urbana, funcional e segregacionista, aliada às
novas tecnologias de deslocamento e produção modificaram crucialmente a relação
do corpo-indivíduo para com o corpo-urbano. A briga pela atenção e a corrida contra
o tempo marcam os tempos modernos dentro de uma sociedade onde reina o
espetáculo. O presente trabalho busca retomar a pauta do corpo na cidade, ambos
compreendidos como organismos em constante movimento que a todo tempo se
grafam, a partir de uma revisão histórica e bibliográfica sobre os objetos de estudo
acima citados.

O afastamento da dimensão corporal na pólis contemporânea está diretamente


relacionado ao processo vigente de espetacularização das cidades. Performado pelo
desempenho do capital, a dinâmica da cidade-espetáculo reúne uma série de fatores
que combinam a gentrificação com a homogeneização e a apaziguação dos espaços
públicos, promovendo um falso consenso urbano que tende a podar a experiência
corporal e política dos cidadãos. É nesta problemática que trabalharemos para
compreender tanto as consequências, quanto possíveis desvios, à desencarnação
dos espaços.

Para isto, estudaremos os processos urbanos que se deram a partir do século XIX e
as ações reativas a esta prática da disciplina - as errâncias modernas.
Compreendida por momentos (quase) análogos do urbanismo moderno às práticas
das errâncias - flanâncias, deambulações e deriva - transportam o homem comum
de volta às ruas, numa espécie de lentidão oposta à velocidade imposta pelo
sistema. É nesta perspectiva crítica à descorporificação urbana que utilizaremos as
errâncias como reafirmação da experiência corporal e da alteridade nas cidades.

A partir de conceitos elaborados por autores como Milton Santos, Guy Debord,
Francesco Careri, Paola Berenstein Jacques e outros, traçaremos o percurso da
aclamação do espaço visto “por baixo”, pela experiência vívida do corpo no espaço.
Através da elaboração de análises do corpo como elemento interativo junto ao meio
externo que habita, em completo diálogo com o tempo e o espaço, é que pautamos
os estudos aqui apresentados.
1. ESPAÇO > CAMINHAR DO LISO AO ESTRIADO / ESPETÁCULO

O caminhar, ação do corpo em movimento sobre a superfície terrestre, traça sua


história junto aos primórdios da humanidade. Modificador de significados dos
espaços atravessados mesmo antes de sua consciência simbólica, o ato de cruzar o
espaço nasce de forma natural junto à necessidade de sobrevivência humana, como
a busca por alimentos e informações (CARERI, 2013). Das movimentações de caça
do paleolítico às transumâncias nômades, o espaço de uso meramente utilitário se
tornou um espaço racional, composto de significados, a partir da abstração do
pensamento. É a partir dessa simples ação que se registra o primeiro vestígio
antrópico no espaço, físico e simbólico, capaz de sugerir uma ordem artificial no
território natural, como conclui Francesco Careri:

O caminhar, mesmo não sendo a construção física de um espaço, implica


uma transformação do lugar e dos seus significados. A presença física do
homem num espaço não mapeado - e o variar das percepções que daí ele
recebe ao atravessá-lo - é uma forma de transformação da paisagem que,
embora não deixe sinais tangíveis, modifica culturalmente o significado do
espaço e, consequentemente, o espaço em si, transformando-o em lugar. O
caminhar produz lugares. (CARERI, 2013, p.51)

Representado tanto na religião (como espaço de rito), quanto na literatura (como


espaço de narração), o espaço construído pelo andar acompanha a história da
humanidade. Enquanto a população da Austrália narrou suas andanças, conhecidas
como walkabout1, mapeando o território com cantos e histórias, os egípcios
traduziram as migrações no ka, símbolo da eterna errância. Esta mesma é também
narrada no mito de Caim e Abel, retratado no livro de Gênesis; porém, como forma
de condenação. Em uma divisão de trabalho, Caim é apresentado como alma
sedentária, responsável pela agricultura e dono de toda a terra, enquanto seu irmão
Abel, de alma nômade, é dedicado ao pastoreio e dono de todos os seres. Contudo,
essa cisão culminou também em uma divisão de espaço e tempo: Caim,
etimologicamente interligado ao Homo faber2, detém em suas mãos um trabalho

1
Walkabout, segundo Careri (2013, p. 44) é "o sistema de percursos através dos quais as populações
da Austrália mapearam todo o continente".
2
Homo faber pode ser entendido como “homem que trabalha e que sujeita a natureza para construir
materialmente um novo universo artificial”. (CARERI, 2013, p. 36).

18
sujeito à natureza material, enquanto Abel pode ser reconhecido como Homo
ludens3, cujo trabalho de movimento pode ser visto como menos fatigoso e mais
divertido (CARERI, 2013). Durante uma briga, Caim mata o irmão e é condenado ao
eterno vagabundear, sem rumo ou pátria, e de seu bando nascem as primeiras
cidades.

Dessa origem ambígua, o nomadismo e a sedentariedade constroem diferentes


modos de habitar a terra e conceber a própria arquitetura, nascida da contraposição
entre o espaço de ir e o espaço de estar. Junto a essa compreensão dialética do
movimento, a arquitetura é vista como construção física e simbólica do espaço.
Segundo Deleuze e Guattari (1997), o espaço nômade é um grande vazio, liso,
menos denso e mais líquido, cuja única impressão física no território é o rastro. A
cidade nômade é o próprio percurso, desenhada pela ação do caminhar, cuja
compreensão abrange simultaneamente leitura e escrita do território, percepção e
criação. Já por outro lado, o espaço sedentário é descrito pelos autores como um
espaço mais denso, sólido e cheio, “estriado, por muros, recintos e percursos
delimitados por entre recintos” (DELEUZE, GUATTARI, 1980 apud CARERI, 2013, p.
40).

O percurso efetua um importante papel em ambas apropriações do espaço:


enquanto no sedentário ele estrutura e da vida à cidade, no nômade este é
considerado simbolicamente como o lugar no qual acontece a própria cidade. O
curso em que se desenvolve a vida em comunidade itinerante ocupa segmentos do
território de tempos em tempos, se portando não como um vestígio do passado, mas
como o presente a cada momento. O território é então lido e mapeado de forma
instantânea, e sua geografia se mantém em contínua mutação a partir do
deslocamento do sujeito. Este espaço liso, considerado pelos sedentários como
vazio, se mostra não tão vazio de forma que é cheio de rastros invisíveis que se
transformam no tempo de acordo com o mapa mental do andarilho (CARERI, 2013).

Segundo Careri (2013), o primeiro objeto situado da paisagem humana tem origem
na errância e no nomadismo. Uma pedra estirada no território em seu estado natural
pode não ter uma simbologia explícita, de forma a seguir naturalmente a linha do
horizonte e compor a paisagem ao seu redor, ainda sem sinais antrópicos. Porém,
quando rotacionada em 90° para com o horizonte e fincada verticalmente na terra ao

3
Homo ludens pode ser identificado como “homem que brinca e constrói um efêmero sistema de
relações entre a natureza e a vida”. (CARERI, 2013, p. 36).

19
encontro do céu, esse objeto se torna denso de significados. Os menires aparecem
no neolítico e são considerados a primeira ação humana de transformação física do
território, detentores do tempo e espaço, que estabelecem uma nova relação para
com o espaço e a paisagem que o circunda. É provável que essas pedras
exercessem inúmeras funções simbólicas, representativas e funcionais de acordo
com o lugar que eram fincadas, representando divindades, marcando ritos, traçando
rotas e orientando viajantes no território para os que o soubessem ler.

A escrita dos menires sobre o território brinca também com os entendimentos de


geografia e geometria ao introduzir a pedra isolada como ponto, a composição
rítmica de mais de uma pedra como linha e o agrupamento de menires em forma
circular como plano ou superfície. Ao desenhar figuras abstratas artificiais de
encontro ao caos natural, o percurso traçado ao longo dessas grandes rochas criou
o espaço à volta, que foi transformado mais tarde no espaço interno. Esta
delimitação física entre espaços, marca do espaço estriado, restringe também o
percurso errático nas vilas e campos agrícolas e o transforma em traçado, ruas e
estradas, dando vida à arquitetura da cidade sedentária.

Deixemo-nos com essa construção inicial do espaço antrópico, constituinte do que


conhecemos como urbe, para fazermos um salto temporal à cidade ocidental pós
revolução industrial. Com o advento da máquina, a expansão da sociedade industrial
dá origem a uma nova ordem4, regida pela transformação dos meios de produção e
transporte, que impõe novas funções urbanas. De acordo com Françoise Choay
(1979), esta nova ordem dá origem a uma disciplina que se diferencia do
pensamento das artes urbanas anterior pelo seu caráter crítico, reflexivo e de
ambição científica. O urbanismo, para a autora, é entendido pela acepção original do
termo, cuja definição se dá por "ciência e teoria da localização humana”5 e será
melhor dilacerado logo à frente.

1.1. cidade moderna > produção e urbanismo

Pelo fim do século XIX, na Europa, a ocupação do território pela revolução industrial
ganhou novas caras e exibiu um grande desenvolvimento urbano em prol do

4
Segundo Choay (1979, p. 4), conforme o processo tradicional, uma nova ordem é criada da
adaptação da cidade à sociedade que habita nela.
5
Choay recorre ao dicionário Larousse para definir este significado (1979, p. 2)

20
esgotamento dos campos. Com um enorme crescimento demográfico, a cidade
maquinista rompe estruturalmente com seus precedentes ao apresentar também
novas funções urbanas e de meios de produção. O espaço estriado toma nova
forma e proporção com a racionalização das vias de comunicação, posta em prática
com a abertura de largas artérias e estações de transporte junto à locação de novos
órgãos de grande espectro. Segundo Françoise Choay (1979), grandes lojas, hotéis,
espaços de comércio e prédios para alugar juntam-se à nova espacialização dos
setores urbanos, sociais e econômicos, e criam uma nova disposição suburbana.
Formam-se, então, bairros residenciais destinados aos privilegiados nas periferias
deste centro enquanto as indústrias se alocam nos arrabaldes da cidade,
deslocando as as classes média e operária para os subúrbios.

A autora aponta que esta rápida solução espacial se apresenta próspera aos
capitães da indústria e detentores do capital, mesmo que prejudicial à classe
operária e pequenos burgueses, beneficiando aqueles que constituem um dos
elementos mais ativos da sociedade capitalista. A cidade toma forma própria de
maneira extraordinária como “um fenômeno exterior aos indivíduos que diz respeito”
(CHOAY, 1979, p. 4) e deixa de ser uma entidade espacial bem delineada. A questão
da habitação se torna o principal impasse, devido ao rápido inchaço das cidades, e
levanta questões higienistas de cunho intervencionista. A ausência de espaços
públicos em bairros populares e suas péssimas condições de moradia, distantes do
local de trabalho, emergem como principais sintomas desse crescimento
desenfreado. O urbanismo nasce com escopo de pretensão científica e propaga
soluções em prol da universalidade, sem abertura para dúvidas ou incertezas, a fim
de modificar estas questões.

Porém, a construção urbanística de forma simultânea ao desenvolvimento da cidade


industrial faz que inúmeros pensadores vigentes, oponentes à visão da disciplina de
cunho único científico e descritivo, proponham uma grande polêmica ao defender
que a observação deve ser crítica e normativa. Impulsionados por sentimentos de
cunho políticos e humanitários, estudiosos criam metáforas do tumor para designar
as cidades e denunciar problemas técnicos sociais na formação destas. Segundo
Choay (1974), a crítica desses teóricos não pode ser separada de uma crítica geral
à sociedade industrial, visto que as irregularidades urbanas denunciadas surgem
como resultado de moldes sociais, econômicos e políticos. Ela ainda ressalta que

21
Indústrias e industrialismo, democracia, rivalidade de classe, mas também
lucro, exploração do homem pelo homem, alienação no trabalho constituem,
a partir das primeiras décadas do século xix, as bases do pensamento de
owen, fourier, ou carlyle, em sua visão de cidade moderna. (CHOAY, 1979,
p. 6)

Advinda da nova ordem industrial, a disciplina está diretamente relacionada à


produção capitalista voltada para o mercado mundial e de massas, o que pode nos
ajudar a traçar a lógica da produção formal e ideológica da cidade neste período.
Segundo análise de Costa (2012), o urbanismo do século XIX buscou a separação
sociofuncional-espacial da cidade ao mesmo tempo que mirou novas formas de
apropriação e uso do espaço de acordo com a modernidade e suas novas
tecnologias regidas pelo funcionamento industrial. A existência e aplicação destas
teorias de como intervir no urbano, que vêm a ser o urbanismo moderno, surge das
tensões travadas entre a esfera pública e privada que, impulsionada pela produção
capitalista e acúmulo de capital empreendido pela especulação imobiliária e pela
indústria do espaço construído (COSTA, 2012), se legitimou. Ainda, o autor defende
que

A construção e as intervenções nas cidades, no período do assim chamado


urbanismo moderno, é fruto do amálgama das lutas sociais pelo direito à
cidade; da formulação de um conjunto de ideias, teorias e experiência que
visavam uma nova estética, uma nova sensibilidade, ligada a uma
modernidade que passava pelo avanço tecnológico, pelos novos modos de
ver e viver a cidade, ao mesmo tempo em que intentava mitigar os avanços
e aspectos desastrosos que a sociedade capitalista industrial como um todo
havia posto em movimento (COSTA, 2012, p. 143-144).

Como vimos, da urgência de transformar as antigas cidades em metrópoles


modernas, nasce o urbanismo enquanto disciplina e exercício profissional
(JACQUES, 2005). A cidade moderna é rápida e tem suas antigas ruas de pedestres
transformadas em grandes vias para automóveis. Os novos meios de transporte
ditam a espacialidade urbana e, de forma veloz e funcional, transformam o percurso
ao reduzir as possibilidades da experiência física do caminhar em prol da máquina.
Assim como apresenta Jacques (2005), tanto podemos falar de forma simultânea à
história das cidades e a uma história do nomadismo, ou melhor, de uma
nomadologia6, quanto podemos assimilar a própria história do urbanismo com quase

6
A autora se volta à definição de nomadologia apresentada por Deleuze e Guattari, cuja defesa se
faz de forma que “Escreve-se a história, mas ela foi escrita do ponto de vista dos sedentários, e em
nome do aparelho unitário do Estado, pelo menos possível, inclusive quando se falava sobre

22
simultâneo histórico das errâncias urbanas. A autora subdivide, de forma rápida, os
principais momentos do urbanismo moderno em três etapas, sendo a primeira a

[...] a modernização das cidades, de meados e final do século XIX até início
do século XX; as vanguardas modernas e o movimento moderno
(Congressos Internacionais de Arquitetura Moderna, CIAMs), dos anos
1910-20 até 1959 (fim dos CIAMs); e o que chamamos de modernismo
(moderno tardio), do pós-guerra até os anos 1970. (JACQUES, 2005, p. 21).

e paralelamente traça um breve histórico das errâncias urbanas, divididos em três


períodos

[...] de forma quase simultânea a esses três momentos da história do


urbanismo moderno, que corresponderiam às diferentes críticas aos três
momentos do urbanismo: o período das flanâncias, de meados e final do
século XIX até início do século XX, que criticava exatamente a primeira
modernização das cidades; o das deambulações, dos anos 1910-30, que
fez parte das vanguardas modernas mas também criticou algumas de suas
idéias urbanísticas do início dos CIAMs; e o das derivas, dos anos 1950-60,
que criticou tanto os pressupostos básicos dos CIAMs quanto a sua
vulgarização no pós-guerra, o modernismo. (JACQUES, 2005, p. 21).

Os errantes modernos traçam suas andanças pela própria metrópole e recusam os


planos modernistas ao se voltarem para a escala do corpo. Esses nômades urbanos
"defendem que as ações na cidade não podem se tornar um monopólio de
especialistas" (Ibid., p. 20) e denunciam os meios de intervenção urbanística vigente.
Artistas, escritores, estudiosos e entusiastas da cidade que puseram em prática a
errância também a narraram em seus trabalhos, e a partir destes podemos
apreender o espaço urbano de outra forma. Tendo em vista a disposição crítica de
tais sujeitos, o simples ato de caminhar torna-se, por si só, uma crítica ao urbanismo
enquanto prática intervencionista. Como bem coloca Jacques (2005), o grande juízo
dos errantes urbanos aos urbanistas modernos talvez tenha sido o fato que estes,
ao se depararem com tantas preocupações formais e funcionais, teriam esquecido
da inevitável relação entre o corpo físico e o corpo da cidade.

É através do corpo, da experiência física e sensorial desenvolvidas junto ao


caminhar, que todo potencial poético urbano7 se faz imprescindível a todos que a

nômades. O que falta é uma Nomadologia, o contrário de uma história [...] Nunca a história
compreendeu o nomadismo [...]” (DELEUZE, GUATTARI, 1980, apud JACQUES, 2005, p. 20)
7
Em seu artigo Errâncias Urbanas: a arte de andar pela cidade, Jacques cita Oiticica para
exemplificar a principal crítica dos errantes modernos, o que ele chamou de "poetizar o urbano”
(JACQUES, 2005, p. 24)

23
cidade atrai. Neste sentido, o distanciamento entre sujeito corpo e objeto cidade se
mostra trágico ao eliminar, na prática profissional e vivência física da cidade, o que o
espaço urbano contém de mais urbano (JACQUES, 2005), ou seja, seu viés
antrópico, exprimido pelo corpo. A passividade, a monotonia e a repressão tátil que
atinge o ambiente urbano moderno (SENNETT, 2003) condena o corpo à privação
sensorial; o espaço público, ponto de encontro, tensão e atrito entre corpo físico e
corpo cidade, se vê perdido na experiência da velocidade.

1.2. espaço público > desencarnação e espetáculo

Se o que há de mais importante na cidade é a dimensão humana e as possibilidades


que ela proporciona - dos encontros e da experiência física e cotidiana -, o espaço
público é encarregado de ser o principal palco para tais ações. Reconhecido como
locus do conflito (BRITTO; BERENSTEIN, 2009), o espaço onde a vivência pública
urbana é desenvolvida contém agentes e projetos de diversas ordens e intenções,
muitas vezes contraditórias e divergentes, que compõem um dissenso cinético. A
pólis é tida como um espaço de circulação, de pessoas e ideias supostamente livres,
assim como é considerada como um espaço supostamente neutro apto à construção
de edificações e emblemas que representam a sociedade e seus constituintes
(LEPECKI, 2013). Construído como meio político em seu cerne, segundo Gomes
(2008), afirmar a livre expressão da heterogeneidade nos espaços públicos constitui
um dos fundamentos da democracia.

Entendemos, então, que a simples permanência e uso dos espaços públicos é um


exercício político a ponto que cada ação produzida nestes tem potencial
transformador e questionador. É aqui que se trava o diálogo político, em meio à
discussão de valores e regras, a partir da possibilidade de adesão ou conflito às
ações propostas. Porém, conforme a visão hegemonista contemporânea dos
projetos urbanos capitalistas, a cidade é transformada em um produto meramente
mercadológico e funcionalista, cheio de imagens publicitárias e fachadas sem
corpos. A redução da experiência corporal à funcionalidade do espaço construído
de acordo com representações programadas e repetidas, tende a pacificar o espaço
público e transformá-los em cenários desencarnados (BRITTO, JACQUES, 2012) de
maneira a assolar a própria esfera pública. A transformação dos espaços urbanos
em cenários está diretamente ligada à especulação imobiliária que, ao guiar as

24
rédeas do planejamento urbano diretamente relacionadas à privatização dos
espaços e ao capital financeiro, controla e expulsa os corpos indesejáveis do meio
urbano. Este processo de aniquilação da experiência corporal e cidadã cujas
cidades contemporâneas se vêem presas é compreendido como espetacularização
urbana.

Na então compreendida cidade-espetáculo, no sentido proposto por Guy Debord8,

o ambiente urbano tende a se caracterizar como uma cenografia e a


experiência urbana cotidiana, por sua vez, então, acaba resumida à
utilização e circulação disciplinadas por princípios segregatórios,
conservadores e despolitizadores que conferem um sentido mercadológico,
turístico e consumista ao seu modo de operação. (BRITTO, JACQUES,
2009, p. 338)

Segundo as autoras Fabiana Britto e Paola Berenstein Jacques (2009), de tão


consolidado tal processo se encontra, “muitos de seus ‘efeitos’ acabam por tornar-se
a própria ‘lógica’ organizativa da dinâmica urbana” (p. 338) e acabam por ditar, de
forma genérica e generalista, certo padrão cultural comportamental. O espaço
público, então, perde sua conformação dissensual em prol de uma tese identitária e
segregacionista que, a fim de uma coexistência pacífica entre diferentes, os destina
para espaços de convivência entre iguais e aniquila possíveis conflitos de
interesses. A disciplinação do corpo no espaço coloca o outro, tido como caos em
potência, para fora do eu; para fora do grupo de “eus”. A gentrificação9 exemplifica,
em um grande espectro, a expulsão produzida pelo desenho econômico nas
cidades; a arquitetura hostil10 formaliza a higienização socioeconômica no espaço
público e a repulsa do outro, que a anos já se fazia no limite entre o público e o
privado.

Pode-se considerar que o espaço da cidade é produzido por tangíveis de estrutura


material e imaterial. Composto por prédios, ruas, vias de circulação e leis, o espaço
construído detém “o suporte material necessário para conter a efemeridade, a
precariedade, o deslimite e a imprevisibilidade ontológica da política, ou seja, do agir

8
Guy Debord foi um escritor marxista francês, pensador da Internacional Situacionista e da
Internacional Letrista, e autor do conceito da sociedade do espetáculo, apresentado em seu livro
homônimo (1997).
9
De acordo com Britto e Jacques, gentrificação é caracterizada como o “enobrecimento de áreas com
expulsão da população mais pobre” (2009, p. 338) que anteriormente a ocupava.
10
Arquitetura hostil é o nome dado ao design de elementos que tem o intuito de orientar e restringir
determinados comportamentos a fim de manter a ordem, controlar o uso e possibilitar a exclusão de
certos grupos sociais do espaço urbano.

25
que tem como produto apenas o agir” (LEPECKI, 2013, p. 48). É nesse aspecto de
controle dos corpos que a sociedade moderna, ditada pelas condições de produção,
encontra o espetáculo, que de acordo com Debord (1997), o era diretamente vivido
se torna representação; uma relação social entre pessoas cuja mediação é feita por
imagens.

O papel da imagem como controle pode ser analisado em diversos elementos da


sociedade moderna, como, por exemplo, na ação da polícia, apresentado por
Lepecki11 junto ao conceito de coreo-polícia. O autor traz exemplos de como a
imagem construída, junto à cobertura midiática e audiovisual, da polícia e como sua
conduta primária de regra aos corpos atingem a sociedade. De uma forma não
metafórica, a coreografia12 “articula as políticas invisíveis que tecem o dia a dia de
todos nós” (2013, p. 52), a exemplo de quando

um policial diz que é para circular, ou ir para algum lugar específico, ou


apenas para sair da sua frente já, sua fala opera como um eficientíssimo
comando coreográfico: o movimento correspondente é imediatamente
executado, do melhor modo possível. [...] Essa imagem da polícia como
coreógrafa da cidade e seus fluxos de circulação aparece claramente nas
mais comerciais, inocentes e insuspeitadas produções. (LEPECKI, 2013, p.
52)

É então que o autor compara a polícia à arquitetura, como uma tangível que detém o
poder de garantir “a reprodução e a permanência de modos predeterminados de
circulação individual e coletiva” (Ibid., p 54). Ainda, em suas próprias palavras,

é ela que garante que, desde que todos se movam e circulem tal como lhes
é dito (aberta ou veladamente, verbal ou espacialmente, por hábito ou por
porrada) e se movam de acordo com o plano consensual do movimento,
todo o movimento na urbe, por mais agitado que seja, não produzirá nada
mais do que mero espetáculo de um movimento que, antes de mais nada,
deve ser um movimento cego ao que o leva a mover-se. (LEPECKI, 2013, p.
54)

11
André Lepecki, professor do Department of Performance Studies, New York University, incorpora no
artigo Coreo-política e coreo-polícia (2013) o conceito de “police” a partir das propostas de Jacques
Rancière, que entende a polícia como um elemento já corporificado na organização e compreensão
da pólis.
12
O autor utiliza de outros teóricos para definir coreografia como composição de um elo
estético-político, conectada ao espectro da função política por sua matriz, definida como “disposição e
manipulação de corpos uns em relação aos outros” (HEWITT, 2005, p. 11, apud LEPECKI, 2013, p.
46.)

26
Neste espetáculo da repreensão, a aniquilação da sensibilidade do movimento, que
o autor denomina como coreopoliciamento13, predetermina uma “cinética do cidadão
em que as relações movimento e lugar, ou política e chão, são permitidas apenas se
permanecem relações reificadas, inquestionáveis, imutáveis, e que reproduzem o
consenso sobre o seu “bom senso”. A construção social regida pelo sistema em que
a sociedade moderna está inserida intende o controle cidadão, da sua pele, dos
seus sentidos e de suas ações. Como contraponto à censura, o rompimento com o
caminhar mecânico e dirigido serve como um antídoto para a espetacularização
dessensibilizada do espaço. Para tal fim, Lepecki propõe o termo coreopolítica como
resposta ao seu neologismo, compreendido como uma

comobilização da ação e dos sentidos, energizada pela ousadia do iniciar o


improvável, no chão sempre movente da história, e que pode prescindir
mesmo do espetáculo do cinético da circulação e do agito, pois o que
importa é implementar um movimento que, ao se dar, de fato promova o
movimento que importa. Que pode ser, por exemplo, simplesmente parar.
(2013, p. 55)

A compreensão cinética e a atenção à dinâmica da cidade produz o sujeito político,


que aceita e exercita em toda potência o dissenso urbano e é capaz de modificar a
lógica do espaço a partir de uma intenção. O movimento atento do caminhar
consciente, sensibilizado e atento aos sentidos, acompanha tal sujeito e é capaz de
modificar o espaço uniforme com sua presença discordante. Cunhada pelo geógrafo
Milton Santos, utilizaremos da definição de homem lento14, que reflete um estado de
atenção e postura em oposição ao ritmo frenético de meios e produção globalizada.
É sobre essa corporeidade que nos debruçaremos nas próximas etapas, a fim de
analisar e compreender respostas ao processo veloz e homogeneizador da
espetacularização urbana.

13
Lepecki, 2013, p. 55.
14
Milton Santos, em sua série Técnica, espaço, tempo: Globalização e meio técnico científico
informacional, define “homem lento” como personagem do homem comum, pobre e local, que nas
metrópoles emergentes resiste às forças externas da globalização. Neste contexto, a compreensão
do território, lugar cujas relações humanas afetivas se estabelecem, se contrapõe à alienação e perda
de identidade, tanto individual, quanto coletiva, impostas pela globalização.

27
2. VOLTA DO CORPO PARA BAIXO / LENTIDÃO > ERRANTES
MODERNOS

Durante séculos, acreditávamos que os homens mais velozes detinham a


inteligência do Mundo. A literatura que glorifica a potência incluiu a
velocidade como essa força mágica que permitiu à Europa civilizar-se
primeiro e empurrar, depois, a "sua" civilização para o resto do mundo.
Agora, estamos descobrindo que, nas cidades, o tempo que comanda, ou
vai comandar, é o tempo dos homens lentos. Na grande cidade, hoje, o que
se dá é tudo ao contrário. A força é dos "lentos" e não dos que detém a
velocidade elogiada por um Virilio em delírio, na esteira de um Valéry
sonhador. Quem, na cidade, tem mobilidade - e pode percorrê-la e
esquadrinhá-la - acaba por ver pouco, da cidade e do mundo. Sua
comunhão com as imagens, frequentemente prefabricadas, é a sua
perdição. Seu conforto, que não desejam perder, vem, exatamente, do
convívio com essas imagens. Os homens "lentos", para quem tais imagens
são miragens, não podem, por muito tempo, estar em fase com esse
imaginário perverso e ir descobrindo as fabulações. É assim que eles
escapam ao totalitarismo da racionalidade [...] (SANTOS, 2006, p. 220 -
221)

Para os errantes – praticantes voluntários de errâncias – são sobretudo as


vivências e ações que contam, as apropriações feitas a posteriori, com seus
desvios e atalhos, e estas não precisam necessariamente ser vistas (como
ocorre com a imagem ou cenário espetacular), mas sim experimentadas,
com os outros sentidos corporais. (JACQUES, 2008)

“espécie de poetizar do urbano



AS RUAS E AS BOBAGENS DO
NOSSO DAYDREAM DIÁRIO SE ENRIQUECEM

VÊ-SE Q ELAS NÃO SÃO
BOBAGENS NEM TROUVAILLES SEM CONSEQUÊNCIA

SÃO O PÉ
CALÇADO PRONTO PARA O DELIRIUM AMBULATORIUM RENOVADO A
CADA DIA”

(Hélio Oiticica, EU em MITOS VADIOS/IVALD GRANATO, texto release da


participação do artista no evento Mitos Vadios promovido por Ivald Granato,
São Paulo, 1978, apud JACQUES, 2012, p. 164)

28
2.1. o flâneur

O século XIX abriu precedentes para a retomada do caminhar, de forma estética e


cotidiana, como produção e crítica do espaço a partir de artistas e autores que
tomavam a cidade como campo de vida e trabalho. O surgimento do flâneur, na
Paris de Baudelaire15, dá início ao considerado primeiro momento das flanâncias
modernas. Constituído, de acordo com Benjamin, de um “transeunte que caminhava
a esmo pelas ruas, anônimo, porém à vontade na multidão, tomado pela embriaguez
própria à deambulação descompromissada” (FREITAS, 2020, p. 132), o flâneur cria
uma prática dialética do transitar entre interior e exterior, refletida pela nova forma de
vivência nas cidades - onde as identidades se mostram mais restritas, numa
perspectiva burguesa da importância da privacidade e do espaço privado. O espaço
público é considerado, por estes, como abrigo para tantas individualidades quanto
dentre as quatro paredes privadas, e o utilizam como espaço de deleite vívido e
estudo. O flâneur, portanto, pode ser considerado um amante do aspecto coletivo,
abrigado pelas ruas, que de forma individual busca transitar e participar, à beira do
invisível, como um observador sensível e distanciado.

Como grande acompanhante das flanâncias do fim do século dezenove e início do


vinte, a literatura se fez presente de forma vasta e extensa, cuja companhia
proporcionou a estes sujeitos uma nova existência, teórica e prática. Estes escritos
abriram campo para a preparação do olhar, atento e ativo, do flâneur a partir de
práticas prévias. Segundo Benjamin16, o estudo destes autores e “aquilo que ele
aprendeu deles ganhava a forma de uma imagem em seu passeio vespertino antes
do aperitivo” (BENJAMIN apud FREITAS, 2020, p. 134), cuja formação arremata a
experiência corporal presente pela cidade.

No Brasil, João do Rio17 retrata a figura do flâneur ligada ao espírito vagabundo,


“cheio de curiosidades malsãs e os nervos com um perpétuo desejo
incompreensível” (1995, p. 5) cujo exercício se dá por entre vagabundear e refletir,

15
Segundo Jacques, “a importância de Baudelaire entre os errantes urbanos reside na recriação da
figura mítica do flâneur, brilhantemente analisada e atualizada, no século XX, por Walter Benjamin”
(2012, p. 41), mesmo que a temática já tivesse sido utilizado por outros autores anteriormente.
16
Walter Benjamin (1892 - 1940), filósofo, sociólogo, crítico e ensaísta Alemão associado à escola de
Frankfurt; trecho da obra “Passagens”, publicado primeiramente em 1982.
17
Pseudônimo de Paulo Barreto (1881 - 1921), jornalista, cronista, tradutor e teatrólogo brasileiro,
membro da Academia Brasileira de Letras. Seu livro A alma encantadora das ruas foi publicado em
1908, e nele contém crônicas e reportagens escritas de 1904 a 1907, no Rio de Janeiro.

29
conectado sempre à observação e à vadiagem. Esta figura, cujo enredo se conecta
aos notáveis e aos humildes de forma conhecedora e igualitária, é descrita como

um ingênuo quase sempre. Pára diante dos rolos, é o "eterno convidado


sereno" de todos os bailes, quer saber a história dos boleiros, admira-se
simplesmente, e conhecendo cada rua, cada beco, cada viela, sabendo-lhe
um pedaço da história, como se sabe a história dos amigos (quase sempre
mal), acaba com a vaga ideia de que todo o espetáculo da cidade foi feito
especialmente para seu gozo próprio. [...] E de tanto ver o que os outros
quase não podem entrever, o flâneur reflete. As observações foram
guardadas na placa sensível do cérebro; as frases, os ditos, as cenas
vibram-lhe no cortical. Quando o flâneur deduz, ei-lo a concluir uma lei
magnífica por ser para seu uso exclusivo, ei-lo a psicologar, ei-lo a pintar os
pensamentos, a fisionomia, a alma das ruas. E é então que haveis de
pasmar da futilidade do mundo e da inconcebível futilidade dos pedestres da
poesia da observação... (RIO, 1995, p. 6)

A futilidade, em termo de descompromisso produtivo e autonomia do tempo livre, se


assemelha à concepção do vagabundear e marca o tempo lento, anti-sistêmico, do
errante moderno. A ação de flânerie

é ir por aí, de manhã, de dia, à noite, meter-se nas rodas da populaça,


admirar o menino da gaitinha ali à esquina, seguir com os garotos o lutador
[...] é estar sem fazer nada e achar absolutamente necessário ir até um sítio
lôbrego, para deixar de lá ir, levado pela primeira impressão, por um dito
que faz sorrir, um perfil que interessa, um par jovem cujo riso de amor causa
inveja...
É vagabundagem? Talvez. Flanar é a distinção de perambular com
inteligência. Nada como o inútil para ser artístico. (RIO, 1995, p. 5)

A literatura das flanâncias exerce grande importância nas práticas errantes ao


integrar imagens visíveis e mentais na constituição da experiência, induzindo no
sujeito uma topologia imaginária18 que o possibilita vivenciar o espaço, a ponto de
habitá-lo, mesmo que por poucos instantes, a partir da apropriação integral deste.
Como coloca Freitas (2020), a estruturação “dessa topologia imaginária é parte
importante nos processos de deriva ou do delirium ambulatorium como prática
artística, tanto como método do fazer como do fruir artístico, a partir da experiência
do artista e do participador” (p. 138).

Em 1921, o Movimento Dadaísta se juntou para realizar uma ação esteticamente


consciente de ocupação e deriva urbana plenamente divulgada e documentada. Da

18
A respeito do conceito de topologia imaginária: “Os espaços híbridos entre real e imaginário, como
vimos, se embasam fortemente sobre a dimensão da experiência corporal e, diante disso, tornam
mais evidente a apropriação do espaço pelo sujeito, que não apenas passa por ele, mas vivencia-o;
habita-o. Essa dinâmica pode ser melhor compreendida pelos estados de devaneio. [...] Nesse
sentido, falamos de uma distensão da consciência, que permite criar e habitar uma topologia
imaginária percebida mas, muitas vezes, não visível”. (FREITAS, apud FREITAS, 2020, p. 138)

30
inquietude de não apenas representar o movimento, mas levá-lo à prática no
espaço, foi estruturada série de rolês urbanos a lugares banais da cidade. Esta
ação, para além do corpo individual, elevou a ação do flânerie, efêmero e
vagabundo, à operação estética (CARERI, 2013, p. 74) em concordância com a
experimentação do espaço real. Ao inverter a lógica usual do objeto de arte dentro
das galerias e levar a obra para um lugar banal da cidade, sem deixar rastros ou
outra manifestação material, o feito elevou a obra de arte e sua concepção às
esferas do tempo e espaço, de forma efêmera e finita, limitando-a à ação e só.

A articulação dadaísta contesta, então, as formas tradicionais de se intervir na


cidade, exercidas majoritariamente pelo grupo dos arquitetos e urbanistas, e propõe
um novo espectro possível de ação no espaço urbano para além da disciplina, pelo
corpo de artistas e errantes. A união entre a arte e a vida, introduzida pela
dessacralização da arte, abre caminhos para um novo tipo de conexão entre o
sublime e o cotidiano. Com a “exploração do banal, o dadá dá início à aplicação das
pesquisas freudianas do inconsciente da cidade” (CARERI, 2013, p. 77), temática
amplamente estudada e aprofundada em movimentos subsequentes.

2.2. a deambulação surrealista

A passagem do movimento dadá para o surrealismo foi marcada pela mudança de


intencionalidade ao realizar um percurso errático pelo território natural, em 24,
movido pelo acaso e pela "exploração pelos limites entre a vida consciente e a vida
de sonho" (BRETON apud CARERI, 2013, p. 78). Como relata Careri,

A viagem, empreendida sem escopo e sem meta, tinha-se transformado na


experimentação de uma nova forma de escrita automática no espaço real,
uma errância literário-campestre impressa diretamente no mapa de um
território mental. (CARERI, 2013, p. 78)

Após essa virada na acepção do percurso, o espaço surrealista toma vida como um
organismo, que apresenta humores e reações, provocações e laços, e evoca no
corpo de quem o caminha uma série de impressões e significados. O termo
deambulação emite a essência da desorientação, podendo ser definido como “um
chegar caminhando a um estado de hipnose, a uma desorientadora perda do
controle, é um medium através do qual se entra em contato com a parte
inconsciente do território.” (CARERI, 2013, p. 80)

31
Os “vazios”, representados por territórios baldios e abandonados pelos itinerários
turísticos das cidades, são considerados espaços inconscientes da cidade e tidos
como foco desta exploração errática. Tudo se torna paisagem - não apenas
campestre, mas também urbana - pronta para ser percebida, experimentada e
descoberta num grande e maravilhoso cotidiano onde tudo pode acontecer. É destas
primeiras deambulações que nasce a vontade de realizar a construção de mapas
influenciadores fomentados a partir da percepção subjetiva de cada um. As pulsões,
as repulsas, os afetos e indiferenças: sentimentos manifestados no corpo do cidadão
refletem o inconsciente não só do corpo-homem, mas também do corpo-cidade, e
permitem reconhecer zonas e mapear significados.

A deriva surrealista serviu, para estes, como “investigação psicológica da própria


relação com a realidade urbana” (CARERI, 2013, p. 83), operação que pode ser
proposta de forma direta ao cruzar a cidade. Em suma, o desenvolvimento das
errâncias modernas desenvolvem uma costura de ações e defesas. Como bem
sintetiza Careri,

o dadá intuíra que a cidade podia ser um espaço estético no qual operar
através de ações cotidianas e simbólicas, e convidava os artistas a
abandonar as formas costumeiras de representação indicando a direção da
intervenção dirigida no espaço público. O surrealismo - talvez ainda sem
compreender completamente o seu alcance enquanto forma estética - utiliza
o caminhar como meio através do qual indagar e desvelar as zonas
inconscientes da cidade, aquelas partes que escapam do projeto e que
constituem o que não é expresso e o que não é traduzível nas
representações tradicionais. Os situacionistas acusarão os surrealistas de
não terem levado às extremas consequências as potencialidades do projeto
dadaísta. O "fora da arte", a arte sem obra e sem artista, o rechaço da
representação e do talento pessoal, a busca de uma arte anônima coletiva e
revolucionária serão colhidos, juntamente, com a prática do caminhar, pela
errância dos letristas/situacionistas. (CARERI, 2013, p. 83)

2.3. deriva psicogeográfica e ludicidade

Já na década de 50, surge um novo movimento denominado Internacional Letrista,


cujo pressuposto nega a separação entre arte e vida, reconhecendo o cotidiano

32
como palco para superação da arte. O grupo acolhe o perder-se pela cidade como
possibilidade de antiarte e o adota como meio “estético-político através do qual
subverter o sistema capitalista do pós-guerra" (CARERI, 2013, p. 83). É neste
espírito que nasce o termo deriva, técnica do andar sem rumo diretamente
influenciada pelo cenário da arquitetura da cidade. Nesta prática, a arquitetura tem
de se tornar apaixonante, e esta é a grande restrição (DEBORD, FILION apud
JACQUES, 2012, p. 179) para o que viria a se tornar um grande jogo - em vista que
a deriva, antes de se tornar um método, era considerada uma distração.

O conceito da deriva, explicitado por Debord (2003c), está

indissoluvelmente ligado ao reconhecimento de efeitos de natureza


psicogeográfica e à afirmação de um comportamento lúdico-construtivo, o
que o torna absolutamente oposto às tradicionais noções de viagem e de
passeio. Uma ou várias pessoas que se dediquem à deriva estão rejeitando,
por um período mais ou menos longo, os motivos de se deslocar e agir que
costumam ter com os amigos, no trabalho e no lazer, para entregar-se às
solicitações do terreno e das pessoas que nele venham a encontrar. [...]
Assim, o modo de vida pouco coerente, e até certas brincadeiras
consideradas duvidosas, que sempre foram muito apreciadas por nosso
grupo – como, por exemplo, entrar de noite em prédios em demolição,
zanzar de carona por Paris em dia de greve de transportes, pedindo para ir
a um ponto qualquer no intuito de aumentar a confusão, perambular pelos
subterrâneos das catacumbas cuja entrada é proibida ao público – são
decorrentes de um sentimento mais geral que corresponde exatamente ao
sentimento da deriva. O que é possível pôr por escrito são apenas algumas
senhas desse grande jogo. (DEBORD, apud JACQUES, 2012)

A psicogeografia19, por sua vez, seria considerada, por estes, como um jogo - “O
jogo psicogeográfico da semana”20 - da mesma forma que a construção de situações
21
- “A construção de situações será a realização contínua de um grande jogo” . É
neste encontro do racional com o irracional, do consciente com o inconsciente, que
mora o território da deriva. Como disse Francesco Careri (2013), a ‘errância
construída produz novos territórios a ser explorados, novos espaços a ser habitados,
novas rotas a ser percorridas” [...], o andar sem rumo que levará "à construção
consciente e coletiva de uma nova cultura"’ (p. 97). A ideia dessa situação
construída, definida como “momento de vida, concreta e deliberadamente construído
mediante a organização coletiva de um ambiente unitário e de um jogo de

19
“Estudo dos efeitos precisos do meio geográfico, conscientemente organizado ou não, que atuam
diretamente no comportamento afetivo dos indivíduos” autor anônimo, "Definitions", Internationale
Situationniste, n. 1, 1958, citado por CARERI, 2013, p. 90.
20
Potlatch nº 1, junho de 1954, citado por JACQUES, 2012, p. 219.
21
Potlatch nº 7, agosto de 1954, citado por JACQUES, 2012, p. 219.

33
22
acontecimentos” (p. 90), permite ao artista experimentar a cidade, libertando-o da
condição de simples espectador. Neste viés, em decorrência dos letristas, em 1957
nasce um grupo que se intitula Internacional Situacionista (IS).

No livro Apologia da Deriva, Paola Berenstein Jacques (2003) logo na apresentação


destaca a Internacional Situacionista como um

grupo de artistas, pensadores e ativistas - lutava contra o espetáculo, a


cultura espetacular e a espetacularização em geral, ou seja a não
participação, alienação e passividade da sociedade. O principal antídoto
contra o espetáculo seria seu oposto: a participação ativa dos indivíduos em
todos os campos da vida social, principalmente no da cultura. O interesse
dos situacionistas pelas questões urbanas foi uma consequência da
importância dada por estes ao meio urbano como terreno de ação, de
produção de novas formas de intervenção e de luta contra monotonia, ou
ausência de paixão, da vida cotidiana moderna. (JACQUES, 2003, p. 13)

Esta proposta de volta ao corpo, individual e coletivo, como meio crítico, estético e
político é feita a partir da deriva situacionista, que trouxe uma nova intencionalidade
ao caminhar errante. Nesta prática, a aleatoriedade não é o principal ponto de base,
mas sim a construção dessa operação pautada em regras que constituem o jogo, o
que a permite traçar um caminho junto ao destino - e não apenas consistir nele.
Dentre essas regras, elencadas por Debord e outros integrantes do IS, as principais
estabelecidas foram sobre definições prévias de espaço e tempo, abrangendo
extensão, direção e duração, mas também sobre o como, cuja preferência é pelos
grupos de 2 a 3 pessoas. Porém, vale a pena salientar que “jogar significa sair
deliberadamente das regras e inventar as próprias regras, libertar a atividade criativa
das construções socioculturais” (CARERI, 2013, p. 97) no intuito de contestar e se
rebelar contra o controle social. Surge então a necessidade de se chegar a
conclusões objetivas, facilitadas pelo confronto de impressões dos participantes
desse grande jogo em conjunto da produção e análise de mapas psicogeográficos.

A importância psicogeográfica para a ação da deriva situacionista está


intrinsecamente relacionada à presença de pontos fixos que contrastam com o que
se há de súbito, o que induz à dificuldade ou facilidade de entrada e saída do que
podemos chamar de zonas. Estas zonas são espaços que detém certas
características que afloram, no andarilho, reações emocionais e físicas, que

22
Anônimo, "Definitions", Internationale Situationniste, n. 1, 1958, citado por CARERI, 2013, p. 90.

34
propõem um limite espacial, como ilhas, conectadas por um meio fluido, como o
oceano. O primeiro mapa psicogeográfico da IS foi realizado por Debord, “La Guide
psychogéographique de Paris”, sintetizando e fragmentando a cidade em cheios e
vazios intencionais. Foi utilizado do imaginário turístico da cidade para descrevê-la e
propor, aos viajantes, uma desorientação orientada:

o hipotético turista deve seguir as setas que unem unidades de ambiente,


zonas homogêneas determinadas com base em relevos psicogeográficos. A
cidade passou pelo crivo da experiência subjetiva, que a mediu segundo os
seus próprios afetos e paixões - constituídos ao frequentar os lugares e ao
escutar as próprias pulsões - e confrontou-os com os de outras experiências
subjetivas. (CARERI, 2013, p. 92)

Figura 1. Guide psychogéographique de Paris, por Guy Debord, 1957. Disponível em:
<https://www.researchgate.net/profile/Catherine-Dossin/publication/263215322/figure/fig4/AS:7773831
28883200@1562353989126/Guy-Debord-Guide-psychogeographique-de-Paris-Discours-sur-les-passi
ons-de-lamour.ppm>

35
A objetividade crítica e analista trazida pelos situacionistas junto à contraposição ao
funcionalismo moderno fez surgir o Urbanismo Unitário (UU), definido como “teoria
do emprego conjunto de artes e técnicas que concorrem para a construção integral
de um ambiente em ligação dinâmica com experiências de comportamento”23
(JACQUES, 2003, p. 66). Foi a partir da concepção afetiva do espaço, mapeada e
analisada psicogeograficamente, que a IS apresenta o UU como possibilidade de
criação e atuação no espaço vivido em sua integralidade. A transformação radical do
cotidiano pela concepção da arte do viver transformaria a revolução em forma de
ação total; ao invés de se construir fragmentos e objetos predeterminados, se
construiria o espaço na íntegra com este fim.

Em suma, a cidade situacionista é lúdica e espontânea, que mesmo ao conservar a


busca pelo suprimido da cidade dos surrealistas, utiliza do jogo como meio de
reapropriação do território. A crítica desta cidade lúdica tem a ver diretamente com a
questão do trabalho e o uso do tempo na sociedade, cuja imposição do tempo útil
devora o tempo para lazer. Como bem explicita Careri (2013),

era preciso resguardar do poder a utilização desse tempo não produtivo,


que, em caso contrário, teria sido conduzido ao sistema de consumo
capitalista por meio da criação de necessidades induzidas. É a descrição do
processo de espetacularização do espaço atualmente em ato, no qual se
impõe aos trabalhadores que também produzam durante o tempo livre,
consumindo seus próprios proventos dentro do sistema. Se o tempo do
espairecimento se transformava cada vez mais em tempo de consumo
passivo, o tempo livre tinha de ser um tempo dedicado ao jogo, tinha de ser
um tempo não utilitarista, mas lúdico. Por isso, era urgente preparar uma
revolução fundada no desejo: procurar no cotidiano os desejos latentes das
pessoas, provocá-los, reativá-los e substituí-los por aqueles impostos pela
cultura dominante. Assim, o uso do tempo e o uso do espaço escapariam às
regras do sistema e chegariam a autoconstruir novos espaços de liberdade,
ter-se-ia feito realidade o slogan situacionista "morar é estar em qualquer
lugar como na própria casa". Desse modo, a construção de situações era o
modo mais direto de realizar na cidade novos comportamentos e de
experimentar na realidade urbana os momentos do que teria podido ser a
vida numa sociedade mais livre. (2013, p. 98)

Dada a importância da experiência corporal no ambiente urbano como reivindicação


espacial, estética e política resgatada pelas vanguardas do século XX,

23
Internacional Situacionista, IS n° 1, junho de 1958.

36
continuaremos a analisar os meios de ação contemporâneas no campo. É
importante salientar que, “o foco dos errantes não é exatamente o andar em si, mas
o estado em que eles se colocam ao andar sem rumo” (JACQUES, 2003, p. 271)
configurando um estado de corpo errante por entre percursos indeterminados. A
junção racional de um estado de atenção e risco, que provém da experiência em si,
se relaciona com o que De Certeau (apud JACQUES, 2003) põe como um saber
espacial próprio da prática e seus praticantes, provindo de um conhecer subjetivo,
lúdico e emocional, mais relacionado à desorientação territorial “de baixo” oposta à
tradicional visão aérea, entendida à distância e acima. É esta “visão”, que não está
restrita literalmente ao sentido visual, mas sim à experiência sensorial e participativa
do corpo como um todo, que garante outra forma de reconhecimento e entendimento
do espaço urbano. Ou seja,

para o errante, são sobretudo as vivências e ações que contam, as


apropriações com seus desvios e atalhos. A cidade é apreendida pela
experiência corporal, pelo tato, pelo contato, pelos pés. Essa experiência da
cidade vivida, da própria vida urbana, revela ou denuncia o que o projeto
urbano estratégico exclui, pois mostra tudo o que escapa ao projeto, as
táticas e micropráticas cotidianas do espaço vivido, ou seja, as apropriações
diversas do espaço urbano que escapam às disciplinas urbanísticas
hegemônicas, mas que não estão, ou melhor, não deveriam estar, fora do
seu campo de ação. (JACQUES, 2003, p. 272)

3. EXPERIÊNCIA / CORPO SOCIAL / CORPOGRAFIA

Terreno, piso, chão: convite – aparentemente inevitável – ao deslocamento


do corpo; depositário de passos e vestígios; superfície de inscrições feitas
de cultura. O corpo: anúncio de movimento; detonador de ações e
memórias; dentro-fora; interno-externo; inexaurível. A vida urbana é feita
das relações corpo-cidade, espaço-movimento, afeto-ação. (HISSA,
NOGUEIRA, 2013, p. 56)

O errar, ou seja, a prática da errância, pode ser pensado como instrumento


da experiência de alteridade na cidade, ferramenta subjetiva e singular – o
contrário de um método cartesiano. A errância urbana é uma apologia da
experiência da cidade, que pode ser praticada por qualquer um, mas o
errante a pratica de forma voluntária. (JACQUES, 2012, p. 23)

37
3.1. pele, fronteira > experiência da alteridade

Questões sobre o que é dentro, o que é fora, o que é entre. O que é um, o que é
todo, o que é outro. Conversas que compõem a sociedade e suas culturas -
variáveis e múltiplas - de forma a acompanhar o percurso da humanidade. O eu
individual, corpo uno e cheio de dentros, está em constante troca com o outro, que
vem do fora. A pele, órgão limite entre o corpo do indivíduo e o mundo externo,
funciona como uma fronteira. Porém, “fronteiras não são limites: são espaço entre
dois” (CERTEAU, apud HISSA, NOGUEIRA, 2013, p. 57) que detém o grande
potencial do encontro, da experiência do diferente, o caráter do percurso. Como o
simples movimento de respiração, que traça seu percurso a partir do movimento do
diafragma que faz o ar entrar pelas narinas, chegar à corrente sanguínea e alcançar
os pulmões, para então voltar à atmosfera traçando um novo caminho pela
expiração, o espaço é composto por trocas e relações móveis de interior e exterior;
um e outro. O que ora é fora, ora pode ser dentro.

Hissa e Nogueira (2013) levantam uma questão: se a densidade própria da rua é o


corpo e a densidade necessária à cidade é a rua, até onde a relação entre estas
duas partes é individual e coletiva? Afinal, no atual cenário urbano, hegemônico e
controlado, é necessário reafirmar o caráter público e comum da rua, cujos limites
impostos pela modernidade se interpõem entre o corpo e o espaço, restringindo o
movimento e “abrindo intervalos entre experiência e terreno” (2013, p. 58). É pelo
corpo que experimentamos a vida e descobrimos os sentidos, as paixões, os
pensamentos; reafirmar sua presença no cotidiano é reafirmar estar vivo.

Porém, a possibilidade de experiência na metrópole contemporânea se mostra


diluída em meio à homogeneização dos desejos, construída e operada pelo capital
financeiro e midiático, que intende produzir a pacificação de conflitos entre diferentes
(JACQUES, 2012). A distância do outro é vendida por imagens de risco, o medo da
diferença é comprada pelo recuo. Esta apaziguação busca domesticar, controlar e
insensibilizar a experiência com a dissolução de corpos ativos. Citado por Jacques
(2012), Giorgio Agamben defende em Ensaio sobre a destruição da experiência
(1978) que “para a destruição da experiência, uma catástrofe não é de modo algum
necessária, e que a pacífica existência cotidiana em uma grande cidade é, para esse
fim, perfeitamente suficiente” (p. 14). Como já vimos, a espetacularização das
cidades é um dos principais, quiçá o mais recorrente, esterilizadores do corpo

38
urbano. A aniquilação do espaço público e seu caráter dissensual e representativo
se dá pela fabricação de falsos consensos, vendidos pelo sistema, que promovem a
devida esterilização da experiência da alteridade nas cidades (JACQUES, 2013, p.
14).

A amenização dos corpos, tanto do corpo da cidade, quanto do corpo do sujeito,


proporciona a desterritorialização do ser humano contemporâneo24. A grande carga
de informações e desejos, imagens impossíveis atreladas à necessidade de
produção e consumo imposta pelo capitalismo, promove a “busca de algo que
jamais encontraremos e, por isso, dificilmente territorializados” (ALLEMAND,
ROCHA, 2017, p. 4). O corpo, então, perde a potencialidade de território,
compreendido como tal a partir da constante troca com outros - corpos, espaços,
tempos - e passa a não só desconhecer, como a se desrelacionar com o meio. A
experiência fica à mercê da compra e venda de imagens do que seria esta, e o
homem deixa de vivê-la diretamente pela própria apreensão corporal e visceral do
que nos toca.

É aí que entra a relevância do “Outro urbano que resiste à pacificação e desafia a


construção desses pseudoconsensos publicitários” (JACQUES, 2012, p. 15). Sua
simples existência, marcada pela prática cotidiana e vivência na cidade, explicita
conflitos que a sociedade tenta mascarar. Esses outros, já conhecidos por nós como
homens lentos, habitam o que Santos dizia ser “espaços do aproximativo e da
criatividade” (apud JACQUES, 2012, p. 15) representado por zonas opacas da
cidade, lugares esquecidos tanto pelo capital quanto pelo poder público, que vivem
às margens das zonas luminosas, devoradas pelo processo do espetáculo. Ao
inventar táticas de sobrevivência às margens do que não é feito pra ele, o sujeito
corporificado25 resiste de forma criativa no cotidiano e ocupa, de forma vívida, íntima
e anônima, o espaço público.

Milton Santos afirma que, aos pobres, que não experimentam a cidade da
pressa, resta a invenção. Os homens lentos desconhecem – ou
desconsideram – as regras inscritas no cotidiano urbano e, justamente por
isso, para eles, sua memória é inútil. Em seus ritmos lentos, produzem
novos sentidos na cidade; encaminham novos significados à cidade-corpo.
Os homens lentos exploram diferentes e imprevisíveis experiências. Novos
modos de vida são inventados nas zonas opacas [...] Os pobres, os homens
lentos, evidenciam que não se pode usar a memória como matéria

24
De acordo com Guattari (2003) “o ser humano contemporâneo está fundamentalmente
desterritorializado” (apud ALLEMAND, ROCHA, p. 4)
25
Definido por Ana Clara Torres, citado por JACQUES, 2012.

39
congelada, pois, de fato, a memória é geradora do futuro (BOSI, 2007) e
não mercadoria. Assim, eles “escapam do totalitarismo da racionalidade”
(SANTOS, 2008, p. 325), como, também, “escapam aos rigores das normas
rígidas” (SANTOS, 2008, p. 232), criando novos territórios urbanos. Ao se
desvencilharem das normas de controle, eles grafam, no terreno, caminhos
de resistência à reprodução da cidade luminosa, criando usos não previstos,
gerando movimento e novos sentidos; eles recolocam o encontro, a seiva do
urbano, em cena. (HISSA, NOGUEIRA, 2013 p 59)

O errante se confronta com vários outros urbanos nas suas errâncias pela cidade
(JACQUES, 2012, p. 22). Essa experiência não planejada, “desviatória dos espaços
urbanos, são usos conflituosos e dissensuais que contrariam ou profanam [...] os
usos que foram planejados” (Ibid.). A essência do errante “vai de encontro à
alteridade na cidade, ao Outro, aos vários outros, à diferença, aos vários diferentes;
ele vê a cidade como um terreno de jogos e de experiências” (Ibid.) sendo assim, um
exercício voluntário de afastamento do que seria já conhecido em prol da busca pela
alteridade.

3.2. corpo, educação e repetição > sociedade e cotidiano

Todo corpo é único, na compreensão individualizada de pertencimento à própria pele


e subjetividades. Porém, esse corpo singular é constituído, a todo tempo, de trocas
com o meio externo. Para Lacan (1986), a imagem corporal é formada ainda na
infância através de contínuas internalizações de imagens externas que constituem
um mapa corporal de significações sócio-culturais a respeito do corpo. A imagem
corporal é constituída, então, da repetição do mapa ambiental e sócio-familiar no
que tem de subjetivo e físico do indivíduo (FERNANDES, 2007). É por essa
construção imagética que a estrutura simbólica e física, de gestos e postura, de uma
sociedade é difundida.

A identidade corporal individual não é autêntica nem contrastante à


sociedade. O corpo individual é um corpo social - uma construção a nível
psico-físico, constantemente permeada e controlada por repetitivas normas
de disciplina em meio a relações sociais e de poder. (FERNANDES, 2007, p
36.)

40
Sob essa abordagem, o processo de aprendizado social, inclusive corporal, é
baseado em uma disciplina repetitiva cíclica. Ciane Fernandes utiliza da perspectiva
de Foucault (1988) para explorar o assunto:

Através da disciplina repetitiva, formas sociais gradualmente permeiam e


dominam maneiras pessoais (corporais) de percepção e expressão. Através
da repetição, corpos são disciplinados e controlados, tornando-se
economicamente úteis. (FERNANDES, 2007, p. 95 - 96)

A autora analisa a obra de Pina Bausch26 e os estudos sobre a dança-teatro27 para


esmiuçar o processo de tomada de consciência simbólica/social/corporal. A partir de
histórias pessoais, subjetivas e coletivas, a coreógrafa utiliza da repetição,
metodologia de “educação” da sociedade, para inverter seus efeitos e promover
“novas maneiras de perceber e expressar, e para expor criticamente essa relação de
poder entre corpos individuais e sociedade” (Ibid., p. 96). A lógica inicial significante
do movimento pode vir a se corromper e se dessignificar, num jogo sobre a mutação
das coisas e do ser humano, até alcançar um novo significado - tanto para o artista,
quanto para o público. Daí nasce uma experiência corpo a corpo, entre ambas
subjetividades, impulsionada por diversos impulsos e reações no encontro entre
diferentes.

Tim Ingold (2015), antropólogo contemporâneo, utiliza dessa lógica de educação,


disciplinada, temporal e fragmentada, em uma analogia com o caminhar, o descobrir
e o se perder. No sentido que nos é conhecido da palavra, “educar é inculcar o
conhecimento dentro das suas mentes'', o oposto à variante etimológica “educere,
ou seja, ex (fora) + ducere (levar). Nesse sentido, educar é levar os noviços para o
mundo lá fora” (INGOLD, 2015, p. 23). Assim, o autor compara a caminhada de
crocodilo (similar à nossa fila indiana, onde cada corpo se alinha com o outro em
uma linha reta, frente com costas), muito utilizada no sistema de ensino para
encaminhar os estudantes de local ao outro, com o caminhar livre e menos regrado
de uma criança pela cidade no caminho da escola.

26
Pina Bausch (1940 - 2009) foi uma dançarina e coreógrafa alemã, líder do Wuppertal Tanztheater e
importante nome da corrente da dança-teatro.
27
O termo foi utilizado por Laban “para descrever dança como uma forma de arte independente de
qualquer outra, baseada em correspondências harmoniosas entre qualidades dinâmicas de
movimento e percurso no espaço. [...] As peças de dança então criadas incorporavam movimento
cotidiano, bem como movimento abstrato ou “puro” numa forma de narrativa” (FERNANDES, 2007, p.
26)

41
Neste primeiro exemplo, o caminhar não faz parte do saber, já que “o aprendizado
ocorre apenas no destino, onde o professor, mais uma vez, se posiciona na frente da
sala para dirigir-se aos alunos” (Ibid.). Entretanto, já no segundo, “a atenção da
criança é capturada – ou, na visão do adulto que a acompanha, distraída – por
qualquer coisinha” (Ibid.), que torna esse pequeno aprendiz numa espécie de
detetive. Para ele, a rua é um labirinto. A curiosidade toma conta da pessoa, que
segue sempre atenta, numa “visão de comando ou vislumbre de um fim. O desafio
consiste em não sair da trilha, e para isso ela precisa se manter alerta” (Ibid., p. 24).
Mas, com o passar da idade, o “crocodilo devora o detetive, e a disciplina engole a
curiosidade” (Ibid., p. 24).

Como território da experiência e do prazer, o corpo desenvolve um grande papel nos


vínculos de poder, assim sendo “uma instância a qual os governos pensam dever
controlar'' (FOUCAULT, 1988 apud ALLEMAND, ROCHA, 2017, p. 263). É neste
cenário que, atualmente, encontra-se a sociedade de controle, em congruência com
a já vigente sociedade de disciplina28, cujo funcionamento se dá “por comando
contínuo e comunicação instantânea” (DELEUZE, 1992 apud ALLEMAND, ROCHA,
2017, p. 264). As ruas passam a ser vigiadas por câmeras de segurança,
conectadas a tempo real com computadores e celulares, que se tornaram o olho de
quem vê e captura.

É na necessidade de conexão instantânea, onde o tempo voa e o sujeito pega seu


embalo ou fica fora da festa, que os dispositivos de dominação, constantes e
despercebidos, exercem seu poder sobre os corpos. O controle rapidamente se
apodera não só das grandes corporações, que movem o que se deve ou não seguir
e fazer, mas também do sujeito que de tão controlado, se sente no poder de fazer o
mesmo sobre outros. “De tal modo, nós mesmos reprimimos o outro no seu fazer
improdutivo, pois não há alteridade, todos têm de ser iguais” (ALLEMAND, ROCHA,
2017, p. 256) afinal, o capitalismo nos impõe a demanda do trabalho diário e regrado
em prol da “dignidade”. Como pode então o outro estar ‘se divertindo na rua [...] no
horário em que todos deviam estar “trabalhando”?’ (Ibid.)

28
A sociedade da disciplina, descoberta por Foucault, está relacionada a ‘micro-poderes que visavam
a administração dos corpos e estuda os dispositivos utilizados para isso desde o século XVII. Tais
dispositivos, chamados de panóplias corretoras, serviam para disciplinar os corpos “rebeldes” ou
anormais nas sociedades de disciplina. São exemplos de panópticos as fábricas e as escolas, ou
seja, espaços onde tudo está nos devidos lugares e o corpo se movimenta de uma só maneira ou o
menos possível’ (ALLEMAND, ROCHA, 2017, p. 263)

42
No mundo digital, onde as cidades são inteligentes (nos espaços de interesse a
estas mesmas), o trabalho, o entretenimento e a arte também se encontram no meio
eletrônico e virtual. “As disciplinas do corpo e as regulações da população
constituem os dois pólos em torno dos quais se desenvolveu a organização do poder
sobre a vida” (FOUCAULT, 1988, apud ALLEMAND, ROCHA, 2017, p. 256),
evidenciando a força do gerenciamento social dos corpos. Tempo e espaço, trabalho
e lazer unem-se em um só aparelho, aparato digital que cumpre o papel ao mesmo
tempo que dissolve necessidades básicas da vida cotidiana. Ao apaziguar as
diferenças, tratando supostamente todos como o mesmo, o sujeito se vê em um
full-time job, competitivo e individual, que o obriga a fazer de tudo para aparecer.

3.3. corpografias urbanas > inscrição mútua

Partindo da compreensão que corpo e cidade estão em constante relação através da


experiência urbana, "a cidade é lida pelo corpo como um conjunto de condições
interativas e o corpo expressa a síntese dessa interação descrevendo sua
corporalidade" (BRITTO, JACQUES, 2008, p. 79). É nessa perspectiva que as
autoras Fabiana Britto e Paola Berenstein Jacques apresentam o conceito de
corpografia urbana, descrito como um

tipo de cartografia realizada pelo e no corpo, ou seja, a memória urbana


inscrita no corpo, o registro de sua experiência da cidade, uma espécie de
grafia urbana, da própria cidade vivida, que configura o corpo de quem a
experimenta [...] A corpografia é uma cartografia corporal (ou
corpo-cartografia, daí corpografia), ou seja, parte da hipótese de que a
existência urbana fica inscrita, em diversas escalas de temporalidade, no
próprio corpo daquele que a experimenta, e dessa forma também o define,
mesmo que involuntariamente (BRITTO, JACQUES, 2008, p. 79)

Britto (2013) conclui que a cidade é “um campo de processos em que o corpo está
coimplicado” (p. 37), cujos modos de existência se desenvolvem de forma recíproca.
É na organicidade desta relação cujos corpos - tanto urbano, quanto individual - são
grafados entre si pelo seu próprio desenvolvimento e a vida pública é estabelecida.
Deste modo, a partir da ressalta deste “caráter transitório de suas configurações que
se reorganizam continuamente e não correspondem a uma síntese apaziguada das
relações vividas, mas a um estado constante de conflito” entre corpos dissonantes
que a cidade, “assim implicada na corporalidade de seus habitantes é, por definição,

43
a condição da esfera pública que possibilita a política. E o corpo, uma de suas
instâncias de ocorrência.” (Ibid.)

Tendo em vista esse caráter dinâmico, recíproco e contínuo da relação estabelecida


entre corpo e cidade, a corpografia se estabelece como uma cartografia cujo objeto
cartografado não se distingue de sua representação (BRITTO, 2013). É justamente
essa natureza intrínseca que possibilita a proposição do conceito, que, segundo
Britto (2013, p. 37), serve como uma “pista de análise das condições relacionais que
o ambiente urbano representa aos seus habitantes”. Junto a Jacques (2008), as
autoras explicitam que estas corpografias podem ser “cartografadas, mapeadas,
representadas ou ilustradas [...] mas estas não precisam ser representadas para se
tornarem visíveis'' (BRITTO, JACQUES, 2008, p. 84). A movimentação corporal do
sujeito que experienciou a cidade, por si só, já faz com que suas corpografias sejam
reveladas, permitindo a compreensão do espaço urbano a partir do estudo desses
padrões de ação.

É importante salientar que este exercício vive de forma voluntária e involuntária no


corpo do cidadão ordinário, cuja prática da experimentação dos espaços ‘dão-lhe
"corpo" pela simples ação de percorrê-los’ (BRITTO, JACQUES, 2008, p. 83). É
nesse ponto que a corpografia pode ser vista como uma espécie de desvio à atual
espetacularização das cidades contemporâneas, cuja própria experiência da cidade
a mantém viva no corpo dos que a experimentam. Para estes,

a cidade deixa de ser somente uma cenografia no momento em que ela é


vivida. E mais do que isso, no momento em que a cidade - o corpo urbano é
experimentada, esta também se inscreve como ação perceptiva e, dessa
forma, sobrevive e resiste no corpo de quem a pratica. Os espaços menos
espetaculares da cidade resistem, assim, nesses corpos moldados pela sua
experiência, ou seja, resistem nas corpografias resultantes de sua
experimentação, uma vez que esses corpos denunciam por sua simples
presença a existência, a domesticação dos espaços mais
espetacularizados, sua transformação cenográfica. (BRITTO, JACQUES,
2008, p. 83)

Estas então denominadas cenografias urbanas são consequências do atual


processo hegemônico de espetacularização das cidades, onde “a cidade
contemporânea passou a ser concebida como uma simples imagem de marca, ou
logotipo" (Ibid., p. 80). Torna-se de entendimento, então, que

44
O empobrecimento da experiência urbana pelo espetáculo, leva a uma
restrição das possibilidades perceptivas do corpo que, então, se configura
sob um padrão de corporeidade mais restrito, e os espaços urbanos se
tornam simples cenários, espaços desencarnados. Os novos espaços
públicos, cada vez mais privatizados e não apropriados pelos habitantes,
nos levam a repensar, então, as relações entre urbanismo e corpo, entre
corpo urbano e o corpo do cidadão. (BRITTO, JACQUES, 2008, p. 80)

Como contraponto, motivado pela prática das errâncias, o viés da experiência


corporal acusa o que o “projeto urbano exclui, pois mostram tudo o que escapa ao
projeto tradicional, explicitando as micro práticas cotidianas do espaço vivido, as
apropriações diversas do espaço urbano” (BRITTO, JACQUES, 2008, p.80), e eleva
a percepção da cidade para além da imagem rasa do espetáculo. A dinâmica do
corpo na cidade se mostra, então, como um relevante fator de análise e
compreensão do espaço urbano, visto que “reconhecer a cidade como um ambiente
de existência do corpo [...] implica reconhecê-la como fator de continuidade da
própria corporalidade de seus habitantes” (Ibid., p. 82). Nesta continuidade
corpo-espacial, as autoras propõem a cidade como um fenótipo estendido29 do corpo
de seus habitantes e suas corpografias. É neste devir que

pensar a cidade como extensão fenotípica do corpo permite reconhecê-la


como fator de diferenciação das danças formuladas pelos corpos de seus
habitantes, a partir de suas corpografias mas, também, justamente por isso,
como fator limitador das condições de variação de seus padrões de
composição. (BRITTO, JACQUES, 2008, p. 82)

As corpografias urbanas, assim, permitem, de um lado, compreender as


configurações de corporalidade como memórias corporais resultantes da
experiência pública de espacialidade que as dinâmicas socioafetivas
promovem em qualquer contexto urbano e, de outro lado, compreender as
configurações urbanas (planejadas ou não) como memórias espacializadas
dos corpos que as experimentaram – na medida em que as cidades são
tanto resultantes quanto promotoras de usos (ou atualização) dos princípios
organizativos que a vida pública instaura, pela mediação dos sistemas de
poder. As corpografias expressam o modo particular de cada corpo conduzir
a tessitura de sua rede de referências relacionais cuja dimensão política de
ocorrência implica necessariamente num sentido específico de “condição
urbana”. (BRITTO, 2013, p. 38)

Voltamo-nos à ordem que o corpo não está livre das construções sócio-espaciais,
mas se encontra repleto de influências do meio externo - nessa atual (e grande
maioria) condição urbana. Para a disciplina30, o estudo corpográfico “pode ser útil
para apreender as pré-existências espaciais registradas no próprio corpo através

29
explicar fenótipo estendido
30
Refiro-me aqui ao urbanismo como disciplina teórica e prática profissional, que tradicionalmente
planeja e intervém nas cidades.

45
das experiências urbanas" e “auxiliar no questionamento crítico dos atuais projetos
urbanos cenográficos contemporâneos, que vêm sendo realizados no mundo inteiro
segundo uma mesma estratégia genérica, homogeneizadora e espetacular.“
(BRITTO, JACQUES, 2008, p. 83 - 84). Assim, a experiência ordinária na cidade
pode mobilizar percepções espaciais e corporais mais complexas, que podem ser
estimuladas pela conscientização desta relação corpográfica. O estímulo de
corpografias “nos corpos daqueles que pretendem apreender os espaços urbanos
de outra forma, de uma forma não espetacular ou de resistência, daqueles que
pretendem estudar as cidades de uma forma corporal, ou seja, incorporada”
(BRITTO, JACQUES, 2008, p. 84) permitiria uma melhor compreensão do espaço
urbano. Logo, esta “poderia conduzir a uma reflexão e uma prática mais incorporada
do urbanismo.” (Ibid.) e apresentar-se como espécie de “articulação entre políticas
culturais e territórios urbanos.” (Ibid., p. 85.)

46
Considerações Finais

Feita esta análise histórica e teórica sobre o movimento dos corpos, desde a
construção primária da urbe à cidade globalizada contemporânea, concluímos que
corpo e espaço estão em total concordância, de forma temporal, a produzir sempre,
um no outro, influências e grafias. Pela compreensão das então chamadas
corpografias urbanas, podemos propor uma análise, física e subjetiva, desta
correlação entre os objetos estudados. Em vista que somos seres humanos,
majoritariamente urbanos, constituídos por um corpo material que serve como
fronteira para com o externo, com o desconhecido, a temática por si só se mostra
instigante e necessária. Esta, por sua vez, se agrava a cada instante em que nos
afastamos da participação cidadã e política do espaço público, interpretada pela
experiência do corpo vivido e experimentado, devido ao rápido processo de
espetacularização das cidades.

Ainda, quando no viés academicista dos estudos urbanísticos, o tema se mostra de


grande importância ao possibilitar novas reflexões e possibilidades de intervenção
sobre o espaço, que ao ser percorrido, revela o que o projeto urbano tradicional
cartesiano ignora. Ao voltarmos nossa atenção para a importância do corpo como
constituinte deste espaço que habita, pela mera condição corporal da lentidão, as
possibilidades de análise e compreensão do espaço abordado podem ser levadas a
outras instâncias e objetivos. A utilização das errâncias como metodologia de
pesquisa propõe esta volta da visão “para baixo”, para a escala do corpo, de forma
atenta e participativa. Nada menos que uma proposta de redescoberta da
experiência da alteridade, da abertura para o outro e da plena vivência urbana como
contraponto ao espetáculo.

Porém, como alcançar este estado de corporeidade? Como se perder em uma


cidade já conhecida, num espaço previamente grafado no corpo de quem o habita?
Como acionar a errância no corpo ordinário, cotidiano? Destas perguntas,
previamente esmiuçadas por teorias ao longo dos anos, partimos para uma próxima
fase do trabalho. É no espírito lúdico, na concepção de jogo que propomos uma
primeira abertura à experiência da atenção. A conscientização do sujeito, corpo e

47
mente como um, é essencial para que haja a ação na sua essência. Como proposto
pelos situacionistas, assim como pelos praticantes das artes do corpo e da
performance, é necessário haver uma entrega do corpo ao tempo e ao espaço. A
pele nos oferece, então, todo seu potencial de fronteira, de encontro, para que seja
possível nascer o estado de alerta, observador e participador, do errante. É no
encontro do corpo individual com o outro, com o coletivo e com o diferente, que vive
a experiência.

Nesta perspectiva, pretende-se continuar este trabalho, que se deu de forma


estritamente teórica, para a experiência prática da rua, da cidade e seus arredores.
Aqui, é importante nos colocarmos no tempo e espaço desse desenvolvimento:
Brasil, 2021. A presente monografia foi escrita durante a pandemia global de
COVID-19, num dos países mais impactados pelo vírus que, até o presente
momento, contabiliza mais de 580 mil vidas perdidas. Nesta atual conjuntura, em
que a rua não deve virar casa e o contato com o outro representa perigo, o
distanciamento físico se torna questão de necessidade. Tendo em vista tal ponto, foi
adotado o partido da espera como ato político. Porém, em vista dos avanços da
vacinação em massa e controle da situação pandêmica, contamos com o panorama
de poder voltar às ruas num momento próximo - e muito aguardado.

Com o intuito de provocar corpos ordinários, quaisquer estes sejam, a entrar no


jogo, pretende-se elaborar um material expositivo, analítico, propositivo e instigante
a ponto de suscitar questões, comportamentos e experiências urbano-corporais.
Para isto, intende-se traçar paralelos entre consciencia e educação neste desenrolar
do projeto, auxiliado pelos meios de representação - imagética, audiovisual, literária,
performática ou ainda qualquer outra linguagem - artística de expressão. O método
do caminhar, elaborado pelo vagabundear do flâneur, pelo sonhar da deambulação,
pela análise psicogeográfica da deriva e pela essência do percurso, deve se unir
para a tomada de consciência e possibilidades de abrangência corporal e cultural.

É no espírito da saudade, misturado ao desejo e atropelado por um trem de


emoções e sentimentos, tatuados no corpo, que a rua vive em nós. E com esta
mesma carne, cravada nas pedras da cidade, busco conquistar navegantes para
desbravar, numa síncrona dissonância, o mar do espaço urbano. Até mais, marujo!

48
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