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01 - TCC - Vitoria Vargas Lima
01 - TCC - Vitoria Vargas Lima
CORPO-CIDADE:
a experiência errática como exercício corpográfico
Juiz de Fora
Setembro/ 2021
Universidade Federal de Juiz de Fora
Faculdade de Arquitetura e Urbanismo
CORPO-CIDADE:
a experiência errática como exercício corpográfico
Juiz de Fora
Setembro/ 2021
2
Vitoria Vargas Lima
CORPO-CIDADE:
a experiência errática como exercício corpográfico
Data da Aprovação:
EXAMINADORES
______________________________________
Prof. Orientador: Carlos Eduardo Ribeiro Silveira
Juiz de Fora
Setembro/ 2021
3
Dedico este trabalho à rua, à beleza do
movimento, à potência do encontro e aos que
por estes caminhos se perdem.
4
Agradecimentos
Agradeço a todos que estão comigo neste longo percurso da vida. Edna,
Neowander, Valentina; Vergara, Letícia, Bernardo; Marcella, Vinícius, Maria; Cadu,
Cláudio, Lívia, Luan; e muitos outros que por aqui passaram, continuam e
adentrarão. Os encontros são o que tornam tudo possível.
5
"Ora, a rua é mais do que isso, a rua é um fator
de vida das cidades, a rua tem alma! [...] A rua
é o aplauso dos medíocres, dos infelizes, dos
miseráveis da arte. [...] A rua é generosa. O
crime, o delírio, a miséria não denuncia ela. A
rua é a transformadora das línguas. [...] A rua
nasce, como o homem, do soluço, do
espasmo. Há suor humano na argamassa do
seu calçamento. [...] A rua sente nos nervos
essa miséria da criação, e por isso é a mais
igualitária, a mais socialista, a mais niveladora
das obras humanas."
6
Resumo
A temática do presente trabalho traça um percurso por entre cidade, tempo, corpo e
movimento que, através das errâncias modernas, se apresenta como um
contraponto à atual cidade-espetáculo. A partir de uma revisão histórica e teórica,
compreendemos o corpo como fronteira, percurso e potência do encontro, cuja
abertura à alteridade proporciona o reconhecimento do outro. A cidade, constituída
por corpos e vivências, se encontra em constante consonância e grafia para com
estes corpos - individuais e coletivos. O enfoque teórico foi dado, a partir de autores
como Milton Santos, Guy Debord, Paola Berenstein Jacques e Francesco Careri,
nas teorias em torno da sociedade moderna que se opõem à descorporificação do
espaço. Através da concepção de lentidão, da atenção do flâneur, da viagem
deambulatória e da objetividade da deriva, compreendemos a concepção de
corpografias urbanas como desenredo desta correlação direta entre corpo e cidade.
Palavras-chave: (1) corpo. (2) cidade. (3) espetáculo. (4) errância. (5)
corpografia.
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Abstract
This work’s theme traces a path through the ideas of city, time, body and movement
which through modern wanderings presents itself as a counterpoint to the current
process of spectacularization. From a theoretical and historical review, we
understand the body as a frontier, a path and potency of encounter, which opening to
the difference provides and releases recognition of the other. The city, built by bodies
and experiences, is in constant consonance and impression with these bodies -
individual and collective. The theoretical focus was given to theories around modern
society that oppose the disembodiment of space, using authors such as Milton
Santos, Guy Debord, Paola Berenstein Jacques and Francesco Careri. Through the
conception of slowness, of the flaneur attention, to the ambulatory dreaming and the
psychogeographical objective of the drift, we understand the conception of urban
corpographies as an unrolling of this everlong correlation among body and city.
Palavras-chave: (1) body. (2) city. (3) spectacle. (4) wandering. (5) corpography.
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Sumário
Introdução 17
Considerações Finais 47
Referências Bibliográficas 49
9
Introdução
Para isto, estudaremos os processos urbanos que se deram a partir do século XIX e
as ações reativas a esta prática da disciplina - as errâncias modernas.
Compreendida por momentos (quase) análogos do urbanismo moderno às práticas
das errâncias - flanâncias, deambulações e deriva - transportam o homem comum
de volta às ruas, numa espécie de lentidão oposta à velocidade imposta pelo
sistema. É nesta perspectiva crítica à descorporificação urbana que utilizaremos as
errâncias como reafirmação da experiência corporal e da alteridade nas cidades.
A partir de conceitos elaborados por autores como Milton Santos, Guy Debord,
Francesco Careri, Paola Berenstein Jacques e outros, traçaremos o percurso da
aclamação do espaço visto “por baixo”, pela experiência vívida do corpo no espaço.
Através da elaboração de análises do corpo como elemento interativo junto ao meio
externo que habita, em completo diálogo com o tempo e o espaço, é que pautamos
os estudos aqui apresentados.
1. ESPAÇO > CAMINHAR DO LISO AO ESTRIADO / ESPETÁCULO
1
Walkabout, segundo Careri (2013, p. 44) é "o sistema de percursos através dos quais as populações
da Austrália mapearam todo o continente".
2
Homo faber pode ser entendido como “homem que trabalha e que sujeita a natureza para construir
materialmente um novo universo artificial”. (CARERI, 2013, p. 36).
18
sujeito à natureza material, enquanto Abel pode ser reconhecido como Homo
ludens3, cujo trabalho de movimento pode ser visto como menos fatigoso e mais
divertido (CARERI, 2013). Durante uma briga, Caim mata o irmão e é condenado ao
eterno vagabundear, sem rumo ou pátria, e de seu bando nascem as primeiras
cidades.
Segundo Careri (2013), o primeiro objeto situado da paisagem humana tem origem
na errância e no nomadismo. Uma pedra estirada no território em seu estado natural
pode não ter uma simbologia explícita, de forma a seguir naturalmente a linha do
horizonte e compor a paisagem ao seu redor, ainda sem sinais antrópicos. Porém,
quando rotacionada em 90° para com o horizonte e fincada verticalmente na terra ao
3
Homo ludens pode ser identificado como “homem que brinca e constrói um efêmero sistema de
relações entre a natureza e a vida”. (CARERI, 2013, p. 36).
19
encontro do céu, esse objeto se torna denso de significados. Os menires aparecem
no neolítico e são considerados a primeira ação humana de transformação física do
território, detentores do tempo e espaço, que estabelecem uma nova relação para
com o espaço e a paisagem que o circunda. É provável que essas pedras
exercessem inúmeras funções simbólicas, representativas e funcionais de acordo
com o lugar que eram fincadas, representando divindades, marcando ritos, traçando
rotas e orientando viajantes no território para os que o soubessem ler.
Pelo fim do século XIX, na Europa, a ocupação do território pela revolução industrial
ganhou novas caras e exibiu um grande desenvolvimento urbano em prol do
4
Segundo Choay (1979, p. 4), conforme o processo tradicional, uma nova ordem é criada da
adaptação da cidade à sociedade que habita nela.
5
Choay recorre ao dicionário Larousse para definir este significado (1979, p. 2)
20
esgotamento dos campos. Com um enorme crescimento demográfico, a cidade
maquinista rompe estruturalmente com seus precedentes ao apresentar também
novas funções urbanas e de meios de produção. O espaço estriado toma nova
forma e proporção com a racionalização das vias de comunicação, posta em prática
com a abertura de largas artérias e estações de transporte junto à locação de novos
órgãos de grande espectro. Segundo Françoise Choay (1979), grandes lojas, hotéis,
espaços de comércio e prédios para alugar juntam-se à nova espacialização dos
setores urbanos, sociais e econômicos, e criam uma nova disposição suburbana.
Formam-se, então, bairros residenciais destinados aos privilegiados nas periferias
deste centro enquanto as indústrias se alocam nos arrabaldes da cidade,
deslocando as as classes média e operária para os subúrbios.
A autora aponta que esta rápida solução espacial se apresenta próspera aos
capitães da indústria e detentores do capital, mesmo que prejudicial à classe
operária e pequenos burgueses, beneficiando aqueles que constituem um dos
elementos mais ativos da sociedade capitalista. A cidade toma forma própria de
maneira extraordinária como “um fenômeno exterior aos indivíduos que diz respeito”
(CHOAY, 1979, p. 4) e deixa de ser uma entidade espacial bem delineada. A questão
da habitação se torna o principal impasse, devido ao rápido inchaço das cidades, e
levanta questões higienistas de cunho intervencionista. A ausência de espaços
públicos em bairros populares e suas péssimas condições de moradia, distantes do
local de trabalho, emergem como principais sintomas desse crescimento
desenfreado. O urbanismo nasce com escopo de pretensão científica e propaga
soluções em prol da universalidade, sem abertura para dúvidas ou incertezas, a fim
de modificar estas questões.
21
Indústrias e industrialismo, democracia, rivalidade de classe, mas também
lucro, exploração do homem pelo homem, alienação no trabalho constituem,
a partir das primeiras décadas do século xix, as bases do pensamento de
owen, fourier, ou carlyle, em sua visão de cidade moderna. (CHOAY, 1979,
p. 6)
6
A autora se volta à definição de nomadologia apresentada por Deleuze e Guattari, cuja defesa se
faz de forma que “Escreve-se a história, mas ela foi escrita do ponto de vista dos sedentários, e em
nome do aparelho unitário do Estado, pelo menos possível, inclusive quando se falava sobre
22
simultâneo histórico das errâncias urbanas. A autora subdivide, de forma rápida, os
principais momentos do urbanismo moderno em três etapas, sendo a primeira a
[...] a modernização das cidades, de meados e final do século XIX até início
do século XX; as vanguardas modernas e o movimento moderno
(Congressos Internacionais de Arquitetura Moderna, CIAMs), dos anos
1910-20 até 1959 (fim dos CIAMs); e o que chamamos de modernismo
(moderno tardio), do pós-guerra até os anos 1970. (JACQUES, 2005, p. 21).
nômades. O que falta é uma Nomadologia, o contrário de uma história [...] Nunca a história
compreendeu o nomadismo [...]” (DELEUZE, GUATTARI, 1980, apud JACQUES, 2005, p. 20)
7
Em seu artigo Errâncias Urbanas: a arte de andar pela cidade, Jacques cita Oiticica para
exemplificar a principal crítica dos errantes modernos, o que ele chamou de "poetizar o urbano”
(JACQUES, 2005, p. 24)
23
cidade atrai. Neste sentido, o distanciamento entre sujeito corpo e objeto cidade se
mostra trágico ao eliminar, na prática profissional e vivência física da cidade, o que o
espaço urbano contém de mais urbano (JACQUES, 2005), ou seja, seu viés
antrópico, exprimido pelo corpo. A passividade, a monotonia e a repressão tátil que
atinge o ambiente urbano moderno (SENNETT, 2003) condena o corpo à privação
sensorial; o espaço público, ponto de encontro, tensão e atrito entre corpo físico e
corpo cidade, se vê perdido na experiência da velocidade.
24
rédeas do planejamento urbano diretamente relacionadas à privatização dos
espaços e ao capital financeiro, controla e expulsa os corpos indesejáveis do meio
urbano. Este processo de aniquilação da experiência corporal e cidadã cujas
cidades contemporâneas se vêem presas é compreendido como espetacularização
urbana.
8
Guy Debord foi um escritor marxista francês, pensador da Internacional Situacionista e da
Internacional Letrista, e autor do conceito da sociedade do espetáculo, apresentado em seu livro
homônimo (1997).
9
De acordo com Britto e Jacques, gentrificação é caracterizada como o “enobrecimento de áreas com
expulsão da população mais pobre” (2009, p. 338) que anteriormente a ocupava.
10
Arquitetura hostil é o nome dado ao design de elementos que tem o intuito de orientar e restringir
determinados comportamentos a fim de manter a ordem, controlar o uso e possibilitar a exclusão de
certos grupos sociais do espaço urbano.
25
que tem como produto apenas o agir” (LEPECKI, 2013, p. 48). É nesse aspecto de
controle dos corpos que a sociedade moderna, ditada pelas condições de produção,
encontra o espetáculo, que de acordo com Debord (1997), o era diretamente vivido
se torna representação; uma relação social entre pessoas cuja mediação é feita por
imagens.
É então que o autor compara a polícia à arquitetura, como uma tangível que detém o
poder de garantir “a reprodução e a permanência de modos predeterminados de
circulação individual e coletiva” (Ibid., p 54). Ainda, em suas próprias palavras,
é ela que garante que, desde que todos se movam e circulem tal como lhes
é dito (aberta ou veladamente, verbal ou espacialmente, por hábito ou por
porrada) e se movam de acordo com o plano consensual do movimento,
todo o movimento na urbe, por mais agitado que seja, não produzirá nada
mais do que mero espetáculo de um movimento que, antes de mais nada,
deve ser um movimento cego ao que o leva a mover-se. (LEPECKI, 2013, p.
54)
11
André Lepecki, professor do Department of Performance Studies, New York University, incorpora no
artigo Coreo-política e coreo-polícia (2013) o conceito de “police” a partir das propostas de Jacques
Rancière, que entende a polícia como um elemento já corporificado na organização e compreensão
da pólis.
12
O autor utiliza de outros teóricos para definir coreografia como composição de um elo
estético-político, conectada ao espectro da função política por sua matriz, definida como “disposição e
manipulação de corpos uns em relação aos outros” (HEWITT, 2005, p. 11, apud LEPECKI, 2013, p.
46.)
26
Neste espetáculo da repreensão, a aniquilação da sensibilidade do movimento, que
o autor denomina como coreopoliciamento13, predetermina uma “cinética do cidadão
em que as relações movimento e lugar, ou política e chão, são permitidas apenas se
permanecem relações reificadas, inquestionáveis, imutáveis, e que reproduzem o
consenso sobre o seu “bom senso”. A construção social regida pelo sistema em que
a sociedade moderna está inserida intende o controle cidadão, da sua pele, dos
seus sentidos e de suas ações. Como contraponto à censura, o rompimento com o
caminhar mecânico e dirigido serve como um antídoto para a espetacularização
dessensibilizada do espaço. Para tal fim, Lepecki propõe o termo coreopolítica como
resposta ao seu neologismo, compreendido como uma
13
Lepecki, 2013, p. 55.
14
Milton Santos, em sua série Técnica, espaço, tempo: Globalização e meio técnico científico
informacional, define “homem lento” como personagem do homem comum, pobre e local, que nas
metrópoles emergentes resiste às forças externas da globalização. Neste contexto, a compreensão
do território, lugar cujas relações humanas afetivas se estabelecem, se contrapõe à alienação e perda
de identidade, tanto individual, quanto coletiva, impostas pela globalização.
27
2. VOLTA DO CORPO PARA BAIXO / LENTIDÃO > ERRANTES
MODERNOS
28
2.1. o flâneur
15
Segundo Jacques, “a importância de Baudelaire entre os errantes urbanos reside na recriação da
figura mítica do flâneur, brilhantemente analisada e atualizada, no século XX, por Walter Benjamin”
(2012, p. 41), mesmo que a temática já tivesse sido utilizado por outros autores anteriormente.
16
Walter Benjamin (1892 - 1940), filósofo, sociólogo, crítico e ensaísta Alemão associado à escola de
Frankfurt; trecho da obra “Passagens”, publicado primeiramente em 1982.
17
Pseudônimo de Paulo Barreto (1881 - 1921), jornalista, cronista, tradutor e teatrólogo brasileiro,
membro da Academia Brasileira de Letras. Seu livro A alma encantadora das ruas foi publicado em
1908, e nele contém crônicas e reportagens escritas de 1904 a 1907, no Rio de Janeiro.
29
conectado sempre à observação e à vadiagem. Esta figura, cujo enredo se conecta
aos notáveis e aos humildes de forma conhecedora e igualitária, é descrita como
18
A respeito do conceito de topologia imaginária: “Os espaços híbridos entre real e imaginário, como
vimos, se embasam fortemente sobre a dimensão da experiência corporal e, diante disso, tornam
mais evidente a apropriação do espaço pelo sujeito, que não apenas passa por ele, mas vivencia-o;
habita-o. Essa dinâmica pode ser melhor compreendida pelos estados de devaneio. [...] Nesse
sentido, falamos de uma distensão da consciência, que permite criar e habitar uma topologia
imaginária percebida mas, muitas vezes, não visível”. (FREITAS, apud FREITAS, 2020, p. 138)
30
inquietude de não apenas representar o movimento, mas levá-lo à prática no
espaço, foi estruturada série de rolês urbanos a lugares banais da cidade. Esta
ação, para além do corpo individual, elevou a ação do flânerie, efêmero e
vagabundo, à operação estética (CARERI, 2013, p. 74) em concordância com a
experimentação do espaço real. Ao inverter a lógica usual do objeto de arte dentro
das galerias e levar a obra para um lugar banal da cidade, sem deixar rastros ou
outra manifestação material, o feito elevou a obra de arte e sua concepção às
esferas do tempo e espaço, de forma efêmera e finita, limitando-a à ação e só.
Após essa virada na acepção do percurso, o espaço surrealista toma vida como um
organismo, que apresenta humores e reações, provocações e laços, e evoca no
corpo de quem o caminha uma série de impressões e significados. O termo
deambulação emite a essência da desorientação, podendo ser definido como “um
chegar caminhando a um estado de hipnose, a uma desorientadora perda do
controle, é um medium através do qual se entra em contato com a parte
inconsciente do território.” (CARERI, 2013, p. 80)
31
Os “vazios”, representados por territórios baldios e abandonados pelos itinerários
turísticos das cidades, são considerados espaços inconscientes da cidade e tidos
como foco desta exploração errática. Tudo se torna paisagem - não apenas
campestre, mas também urbana - pronta para ser percebida, experimentada e
descoberta num grande e maravilhoso cotidiano onde tudo pode acontecer. É destas
primeiras deambulações que nasce a vontade de realizar a construção de mapas
influenciadores fomentados a partir da percepção subjetiva de cada um. As pulsões,
as repulsas, os afetos e indiferenças: sentimentos manifestados no corpo do cidadão
refletem o inconsciente não só do corpo-homem, mas também do corpo-cidade, e
permitem reconhecer zonas e mapear significados.
o dadá intuíra que a cidade podia ser um espaço estético no qual operar
através de ações cotidianas e simbólicas, e convidava os artistas a
abandonar as formas costumeiras de representação indicando a direção da
intervenção dirigida no espaço público. O surrealismo - talvez ainda sem
compreender completamente o seu alcance enquanto forma estética - utiliza
o caminhar como meio através do qual indagar e desvelar as zonas
inconscientes da cidade, aquelas partes que escapam do projeto e que
constituem o que não é expresso e o que não é traduzível nas
representações tradicionais. Os situacionistas acusarão os surrealistas de
não terem levado às extremas consequências as potencialidades do projeto
dadaísta. O "fora da arte", a arte sem obra e sem artista, o rechaço da
representação e do talento pessoal, a busca de uma arte anônima coletiva e
revolucionária serão colhidos, juntamente, com a prática do caminhar, pela
errância dos letristas/situacionistas. (CARERI, 2013, p. 83)
32
como palco para superação da arte. O grupo acolhe o perder-se pela cidade como
possibilidade de antiarte e o adota como meio “estético-político através do qual
subverter o sistema capitalista do pós-guerra" (CARERI, 2013, p. 83). É neste
espírito que nasce o termo deriva, técnica do andar sem rumo diretamente
influenciada pelo cenário da arquitetura da cidade. Nesta prática, a arquitetura tem
de se tornar apaixonante, e esta é a grande restrição (DEBORD, FILION apud
JACQUES, 2012, p. 179) para o que viria a se tornar um grande jogo - em vista que
a deriva, antes de se tornar um método, era considerada uma distração.
A psicogeografia19, por sua vez, seria considerada, por estes, como um jogo - “O
jogo psicogeográfico da semana”20 - da mesma forma que a construção de situações
21
- “A construção de situações será a realização contínua de um grande jogo” . É
neste encontro do racional com o irracional, do consciente com o inconsciente, que
mora o território da deriva. Como disse Francesco Careri (2013), a ‘errância
construída produz novos territórios a ser explorados, novos espaços a ser habitados,
novas rotas a ser percorridas” [...], o andar sem rumo que levará "à construção
consciente e coletiva de uma nova cultura"’ (p. 97). A ideia dessa situação
construída, definida como “momento de vida, concreta e deliberadamente construído
mediante a organização coletiva de um ambiente unitário e de um jogo de
19
“Estudo dos efeitos precisos do meio geográfico, conscientemente organizado ou não, que atuam
diretamente no comportamento afetivo dos indivíduos” autor anônimo, "Definitions", Internationale
Situationniste, n. 1, 1958, citado por CARERI, 2013, p. 90.
20
Potlatch nº 1, junho de 1954, citado por JACQUES, 2012, p. 219.
21
Potlatch nº 7, agosto de 1954, citado por JACQUES, 2012, p. 219.
33
22
acontecimentos” (p. 90), permite ao artista experimentar a cidade, libertando-o da
condição de simples espectador. Neste viés, em decorrência dos letristas, em 1957
nasce um grupo que se intitula Internacional Situacionista (IS).
Esta proposta de volta ao corpo, individual e coletivo, como meio crítico, estético e
político é feita a partir da deriva situacionista, que trouxe uma nova intencionalidade
ao caminhar errante. Nesta prática, a aleatoriedade não é o principal ponto de base,
mas sim a construção dessa operação pautada em regras que constituem o jogo, o
que a permite traçar um caminho junto ao destino - e não apenas consistir nele.
Dentre essas regras, elencadas por Debord e outros integrantes do IS, as principais
estabelecidas foram sobre definições prévias de espaço e tempo, abrangendo
extensão, direção e duração, mas também sobre o como, cuja preferência é pelos
grupos de 2 a 3 pessoas. Porém, vale a pena salientar que “jogar significa sair
deliberadamente das regras e inventar as próprias regras, libertar a atividade criativa
das construções socioculturais” (CARERI, 2013, p. 97) no intuito de contestar e se
rebelar contra o controle social. Surge então a necessidade de se chegar a
conclusões objetivas, facilitadas pelo confronto de impressões dos participantes
desse grande jogo em conjunto da produção e análise de mapas psicogeográficos.
22
Anônimo, "Definitions", Internationale Situationniste, n. 1, 1958, citado por CARERI, 2013, p. 90.
34
propõem um limite espacial, como ilhas, conectadas por um meio fluido, como o
oceano. O primeiro mapa psicogeográfico da IS foi realizado por Debord, “La Guide
psychogéographique de Paris”, sintetizando e fragmentando a cidade em cheios e
vazios intencionais. Foi utilizado do imaginário turístico da cidade para descrevê-la e
propor, aos viajantes, uma desorientação orientada:
Figura 1. Guide psychogéographique de Paris, por Guy Debord, 1957. Disponível em:
<https://www.researchgate.net/profile/Catherine-Dossin/publication/263215322/figure/fig4/AS:7773831
28883200@1562353989126/Guy-Debord-Guide-psychogeographique-de-Paris-Discours-sur-les-passi
ons-de-lamour.ppm>
35
A objetividade crítica e analista trazida pelos situacionistas junto à contraposição ao
funcionalismo moderno fez surgir o Urbanismo Unitário (UU), definido como “teoria
do emprego conjunto de artes e técnicas que concorrem para a construção integral
de um ambiente em ligação dinâmica com experiências de comportamento”23
(JACQUES, 2003, p. 66). Foi a partir da concepção afetiva do espaço, mapeada e
analisada psicogeograficamente, que a IS apresenta o UU como possibilidade de
criação e atuação no espaço vivido em sua integralidade. A transformação radical do
cotidiano pela concepção da arte do viver transformaria a revolução em forma de
ação total; ao invés de se construir fragmentos e objetos predeterminados, se
construiria o espaço na íntegra com este fim.
23
Internacional Situacionista, IS n° 1, junho de 1958.
36
continuaremos a analisar os meios de ação contemporâneas no campo. É
importante salientar que, “o foco dos errantes não é exatamente o andar em si, mas
o estado em que eles se colocam ao andar sem rumo” (JACQUES, 2003, p. 271)
configurando um estado de corpo errante por entre percursos indeterminados. A
junção racional de um estado de atenção e risco, que provém da experiência em si,
se relaciona com o que De Certeau (apud JACQUES, 2003) põe como um saber
espacial próprio da prática e seus praticantes, provindo de um conhecer subjetivo,
lúdico e emocional, mais relacionado à desorientação territorial “de baixo” oposta à
tradicional visão aérea, entendida à distância e acima. É esta “visão”, que não está
restrita literalmente ao sentido visual, mas sim à experiência sensorial e participativa
do corpo como um todo, que garante outra forma de reconhecimento e entendimento
do espaço urbano. Ou seja,
37
3.1. pele, fronteira > experiência da alteridade
Questões sobre o que é dentro, o que é fora, o que é entre. O que é um, o que é
todo, o que é outro. Conversas que compõem a sociedade e suas culturas -
variáveis e múltiplas - de forma a acompanhar o percurso da humanidade. O eu
individual, corpo uno e cheio de dentros, está em constante troca com o outro, que
vem do fora. A pele, órgão limite entre o corpo do indivíduo e o mundo externo,
funciona como uma fronteira. Porém, “fronteiras não são limites: são espaço entre
dois” (CERTEAU, apud HISSA, NOGUEIRA, 2013, p. 57) que detém o grande
potencial do encontro, da experiência do diferente, o caráter do percurso. Como o
simples movimento de respiração, que traça seu percurso a partir do movimento do
diafragma que faz o ar entrar pelas narinas, chegar à corrente sanguínea e alcançar
os pulmões, para então voltar à atmosfera traçando um novo caminho pela
expiração, o espaço é composto por trocas e relações móveis de interior e exterior;
um e outro. O que ora é fora, ora pode ser dentro.
38
urbano. A aniquilação do espaço público e seu caráter dissensual e representativo
se dá pela fabricação de falsos consensos, vendidos pelo sistema, que promovem a
devida esterilização da experiência da alteridade nas cidades (JACQUES, 2013, p.
14).
Milton Santos afirma que, aos pobres, que não experimentam a cidade da
pressa, resta a invenção. Os homens lentos desconhecem – ou
desconsideram – as regras inscritas no cotidiano urbano e, justamente por
isso, para eles, sua memória é inútil. Em seus ritmos lentos, produzem
novos sentidos na cidade; encaminham novos significados à cidade-corpo.
Os homens lentos exploram diferentes e imprevisíveis experiências. Novos
modos de vida são inventados nas zonas opacas [...] Os pobres, os homens
lentos, evidenciam que não se pode usar a memória como matéria
24
De acordo com Guattari (2003) “o ser humano contemporâneo está fundamentalmente
desterritorializado” (apud ALLEMAND, ROCHA, p. 4)
25
Definido por Ana Clara Torres, citado por JACQUES, 2012.
39
congelada, pois, de fato, a memória é geradora do futuro (BOSI, 2007) e
não mercadoria. Assim, eles “escapam do totalitarismo da racionalidade”
(SANTOS, 2008, p. 325), como, também, “escapam aos rigores das normas
rígidas” (SANTOS, 2008, p. 232), criando novos territórios urbanos. Ao se
desvencilharem das normas de controle, eles grafam, no terreno, caminhos
de resistência à reprodução da cidade luminosa, criando usos não previstos,
gerando movimento e novos sentidos; eles recolocam o encontro, a seiva do
urbano, em cena. (HISSA, NOGUEIRA, 2013 p 59)
O errante se confronta com vários outros urbanos nas suas errâncias pela cidade
(JACQUES, 2012, p. 22). Essa experiência não planejada, “desviatória dos espaços
urbanos, são usos conflituosos e dissensuais que contrariam ou profanam [...] os
usos que foram planejados” (Ibid.). A essência do errante “vai de encontro à
alteridade na cidade, ao Outro, aos vários outros, à diferença, aos vários diferentes;
ele vê a cidade como um terreno de jogos e de experiências” (Ibid.) sendo assim, um
exercício voluntário de afastamento do que seria já conhecido em prol da busca pela
alteridade.
40
Sob essa abordagem, o processo de aprendizado social, inclusive corporal, é
baseado em uma disciplina repetitiva cíclica. Ciane Fernandes utiliza da perspectiva
de Foucault (1988) para explorar o assunto:
26
Pina Bausch (1940 - 2009) foi uma dançarina e coreógrafa alemã, líder do Wuppertal Tanztheater e
importante nome da corrente da dança-teatro.
27
O termo foi utilizado por Laban “para descrever dança como uma forma de arte independente de
qualquer outra, baseada em correspondências harmoniosas entre qualidades dinâmicas de
movimento e percurso no espaço. [...] As peças de dança então criadas incorporavam movimento
cotidiano, bem como movimento abstrato ou “puro” numa forma de narrativa” (FERNANDES, 2007, p.
26)
41
Neste primeiro exemplo, o caminhar não faz parte do saber, já que “o aprendizado
ocorre apenas no destino, onde o professor, mais uma vez, se posiciona na frente da
sala para dirigir-se aos alunos” (Ibid.). Entretanto, já no segundo, “a atenção da
criança é capturada – ou, na visão do adulto que a acompanha, distraída – por
qualquer coisinha” (Ibid.), que torna esse pequeno aprendiz numa espécie de
detetive. Para ele, a rua é um labirinto. A curiosidade toma conta da pessoa, que
segue sempre atenta, numa “visão de comando ou vislumbre de um fim. O desafio
consiste em não sair da trilha, e para isso ela precisa se manter alerta” (Ibid., p. 24).
Mas, com o passar da idade, o “crocodilo devora o detetive, e a disciplina engole a
curiosidade” (Ibid., p. 24).
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A sociedade da disciplina, descoberta por Foucault, está relacionada a ‘micro-poderes que visavam
a administração dos corpos e estuda os dispositivos utilizados para isso desde o século XVII. Tais
dispositivos, chamados de panóplias corretoras, serviam para disciplinar os corpos “rebeldes” ou
anormais nas sociedades de disciplina. São exemplos de panópticos as fábricas e as escolas, ou
seja, espaços onde tudo está nos devidos lugares e o corpo se movimenta de uma só maneira ou o
menos possível’ (ALLEMAND, ROCHA, 2017, p. 263)
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No mundo digital, onde as cidades são inteligentes (nos espaços de interesse a
estas mesmas), o trabalho, o entretenimento e a arte também se encontram no meio
eletrônico e virtual. “As disciplinas do corpo e as regulações da população
constituem os dois pólos em torno dos quais se desenvolveu a organização do poder
sobre a vida” (FOUCAULT, 1988, apud ALLEMAND, ROCHA, 2017, p. 256),
evidenciando a força do gerenciamento social dos corpos. Tempo e espaço, trabalho
e lazer unem-se em um só aparelho, aparato digital que cumpre o papel ao mesmo
tempo que dissolve necessidades básicas da vida cotidiana. Ao apaziguar as
diferenças, tratando supostamente todos como o mesmo, o sujeito se vê em um
full-time job, competitivo e individual, que o obriga a fazer de tudo para aparecer.
Britto (2013) conclui que a cidade é “um campo de processos em que o corpo está
coimplicado” (p. 37), cujos modos de existência se desenvolvem de forma recíproca.
É na organicidade desta relação cujos corpos - tanto urbano, quanto individual - são
grafados entre si pelo seu próprio desenvolvimento e a vida pública é estabelecida.
Deste modo, a partir da ressalta deste “caráter transitório de suas configurações que
se reorganizam continuamente e não correspondem a uma síntese apaziguada das
relações vividas, mas a um estado constante de conflito” entre corpos dissonantes
que a cidade, “assim implicada na corporalidade de seus habitantes é, por definição,
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a condição da esfera pública que possibilita a política. E o corpo, uma de suas
instâncias de ocorrência.” (Ibid.)
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O empobrecimento da experiência urbana pelo espetáculo, leva a uma
restrição das possibilidades perceptivas do corpo que, então, se configura
sob um padrão de corporeidade mais restrito, e os espaços urbanos se
tornam simples cenários, espaços desencarnados. Os novos espaços
públicos, cada vez mais privatizados e não apropriados pelos habitantes,
nos levam a repensar, então, as relações entre urbanismo e corpo, entre
corpo urbano e o corpo do cidadão. (BRITTO, JACQUES, 2008, p. 80)
Voltamo-nos à ordem que o corpo não está livre das construções sócio-espaciais,
mas se encontra repleto de influências do meio externo - nessa atual (e grande
maioria) condição urbana. Para a disciplina30, o estudo corpográfico “pode ser útil
para apreender as pré-existências espaciais registradas no próprio corpo através
29
explicar fenótipo estendido
30
Refiro-me aqui ao urbanismo como disciplina teórica e prática profissional, que tradicionalmente
planeja e intervém nas cidades.
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das experiências urbanas" e “auxiliar no questionamento crítico dos atuais projetos
urbanos cenográficos contemporâneos, que vêm sendo realizados no mundo inteiro
segundo uma mesma estratégia genérica, homogeneizadora e espetacular.“
(BRITTO, JACQUES, 2008, p. 83 - 84). Assim, a experiência ordinária na cidade
pode mobilizar percepções espaciais e corporais mais complexas, que podem ser
estimuladas pela conscientização desta relação corpográfica. O estímulo de
corpografias “nos corpos daqueles que pretendem apreender os espaços urbanos
de outra forma, de uma forma não espetacular ou de resistência, daqueles que
pretendem estudar as cidades de uma forma corporal, ou seja, incorporada”
(BRITTO, JACQUES, 2008, p. 84) permitiria uma melhor compreensão do espaço
urbano. Logo, esta “poderia conduzir a uma reflexão e uma prática mais incorporada
do urbanismo.” (Ibid.) e apresentar-se como espécie de “articulação entre políticas
culturais e territórios urbanos.” (Ibid., p. 85.)
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Considerações Finais
Feita esta análise histórica e teórica sobre o movimento dos corpos, desde a
construção primária da urbe à cidade globalizada contemporânea, concluímos que
corpo e espaço estão em total concordância, de forma temporal, a produzir sempre,
um no outro, influências e grafias. Pela compreensão das então chamadas
corpografias urbanas, podemos propor uma análise, física e subjetiva, desta
correlação entre os objetos estudados. Em vista que somos seres humanos,
majoritariamente urbanos, constituídos por um corpo material que serve como
fronteira para com o externo, com o desconhecido, a temática por si só se mostra
instigante e necessária. Esta, por sua vez, se agrava a cada instante em que nos
afastamos da participação cidadã e política do espaço público, interpretada pela
experiência do corpo vivido e experimentado, devido ao rápido processo de
espetacularização das cidades.
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mente como um, é essencial para que haja a ação na sua essência. Como proposto
pelos situacionistas, assim como pelos praticantes das artes do corpo e da
performance, é necessário haver uma entrega do corpo ao tempo e ao espaço. A
pele nos oferece, então, todo seu potencial de fronteira, de encontro, para que seja
possível nascer o estado de alerta, observador e participador, do errante. É no
encontro do corpo individual com o outro, com o coletivo e com o diferente, que vive
a experiência.
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Referências Bibliográficas
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DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.
________. Errâncias urbanas: a arte de andar pela cidade. Arqtexto, v.7, p.16-25.
Rio Grande do Sul: UFRGS, 2005.
RIO, João do. A alma encantadora das ruas. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal
de Cultura, Dep. Geral de Doc. e Inf. Cultural, Divisão de Editoração, 1995.
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