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ANDRELINO CAMPOS DO UILOMBO A FAVELA A Produgao do “Espago Criminalizado” no Rio de Janeiro Leia também: MARCELO LOPES DE SOUZA ABC do Desenvolvimento Urbano O Desafio Metropolitano Mudar a Cidade INA ELIAS DE CASTRO Geografia e Politica O Mito da Necessidade ROBERTO LOBATO CORREA Trajetorias Geograficas PAULO CESAR DA COSTA GOMES A Condigéo Urbana Geografia e Modernidade LUIS HENRIQUE RAMOS DE CAMARGO A Ruptura do Meio Ambiente ROGERIO HAESBAERT O Mito da Desterritorializagao ANDRELINO CAMPOS DO QUILOMBO A FAVELA: A PRODUGAO DO “ESPAGO CRIMINALIZADO" NO RIO DE JANEIRO BERTRAND BRASIL Copyright © 2004, Andrelino Campos Capa: Leonardo Carvalho Editoragio: DFL 2005 Impresso no Brasil Printed in Brazil CIP-Brasil. Catalogacao na fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros - RJ C2id Campos, Andrelino ba Do quilombo a favela: a produgao do “espaco criminalizado’ no Rio de Janeiro/Andrelino Campos. - Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005. 208p.: mapas Inclui bibliografia ISBN 85-286-1159-0 1. Favelas - Rio de Janeiro (RJ). 2. Favelas - Aspectos sociais — Rio de Janeiro (RJ). 3. Marginalidade social ~ Rio de Janeiro (RJ). 4, Geografia urbana - Rio de Janeiro (RJ). I. Titulo. CDD - 910.1306760981531 05-3268 CDU - 911.375:728-058.34 (815.31) Todos os direitos reservados pela: EDITORA BERTRAND BRASIL LTDA. Rua Argentina, 171 — 12 andar — Sao Cristévao 20921-380 — Rio de Janeiro - RJ Tel.: (Oxx21) 2585-2070 — Fax: (0xx21) 2585-2087 Nao é permitida a reproducao total ou parcial desta obra, por quaisquer meios, sem a prévia autorizagéo por escrito da Editora. Atendemos pelo Reembolso Postal. AGRADECIMENTOS Agradecemos de maneira entusiasmada a Maria Beatriz, Marlene Cunha, Rosa Virginia — companheiras que j4 nao estao entre nés —, Sebastiao Soares (todos do Grupo de Trabalho André Rebougas) e a Marcelo Lopes de Souza (orientador da dissertacdo de mestrado, que se tornou ao longo desses 10 anos um grande amigo e cioso das questées tedrico-metodolégicas da Geografia). A todos o autor dedica os mais sinceros agradecimentos. Como as nossas vidas sao estruturadas nas mais diversas redes geograficas, sentimo-nos no dever de agradecer (sem exagero e sem poder citd-ias) a centenas de pessoas que contribufram para a cons- trucdo de uma consciéncia sobre os problemas sociais, tanto no que se refere as quest6es étnico-raciais como pelas questées teéricas que per- mitiram um olhar mais atento sobre a realidade urbana brasileira. Nesse sentido, agradecemos a Claudio Barbosa, velho companheiro de velhas lutas no campo da Geografia, e a todos os colegas do Departamento de Geografia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) / Facul- dade de Formacao de Professores (FFP), onde o autor vem desempe- nhando a sua atividade profissional desde 1999; aos membros do Sempre Negro da UERJ; ao mestre de tantos mestres Roberto Lobato Corréa, que contribui para que seus alunos entendam que 0 rigor tedri- co 6a melhor arma de um pesquisador. Ao André, aluno de graduacao, amigo e alguém muito importante para a realizado deste livro. A Yara do Nascimento Sodré, que muito fez para que esse projeto se tornasse realidade. Ao Rafael, pela sua dedicacao e correcao no trato com aque- les que Ihe chegam em busca da primeira oportunidade. Agradecemos ao CNPq pela concesso de bolsa, entre marco de 1996 e abril de 1997, que, apesar do curto periodo, contribuiu para a realizacao da pesquisa. Certo de que nao poderia citar todos, o autor agradece com entu- siasmo a todos que, de alguma maneira, contribuiram para a realizacao deste livro. Muito obrigado a todos. SUMARIO Dedico este livro a Arion Abadde, filho querido, e a Rose Preficio, pelo Professor Marcelo Lopes de Souza 13 | Aruom, mae de Arion Abadde, grande companheira e . " 3 Introdugio 19 alguém muito atenta as questées sociais. 1. O QUILOMBO E A EXPANSAO URBANA NO RIO DE JANEIRO 31 1.1 Quilombo: espago de resisténcia 4 ordem imperial 31 1.2 Quem eram os quilombolas? 33 1.3 Nagao: qual era o projeto de nagéo? 41 2. DO QUILOMBO A FAVELA: A CONSTRUGAO DOS TERRITORIOS “CRIMINALIZADOS” NA METROPOLE DO RIO DEJANEIRO 51 2.1 Surge a primeira favela — as trés versdes 51 | 2.2 Surge a primeira favela (década de 1870) — a primeira versao 55 2.3 Surge a primeira favela (1897) — a segunda versio 57 2.4 Surge a primeira favela (1894) — a terceira versio 59 3. DO QUILOMBO A FAVELA: A TRANSMUTAGAO DO TERRITORIO CRIMINALIZADO 63 3.1 Libertados, porém subalternos 63 3.2 A diaspora dos afrodescendentes no espago urbano carioca: a desconstrugao do espago favelado 66 4. AEXPANSAO DOS NUCLEOS FAVELADOS NO ESPAGO URBANO DO RIO DEJANEIRO 79 7 5. A PRODUGAO DO “ESPACO” CRIMINALIZADO: ESTAGNACGAO ECONOMICA, TRAFICO DE DROGAS DE VAREJO E VIOLENCIA URBANA 87 5.1 Area de Planejamento 1: a origem do processo de favelizacéo dacidade 92 5.2 Area de Planejamento 2: dinamismo territorial, fator importante para a favelizagéo da Grande Tijuca e da Zona Sul 98 5.3 Area de Planejamento 3: seré um “barril de pélvora” em 200 favelas? 102 5.4 Area de Planejamento 4: ricos e favelados na planicie de Jacarepagué 111 55 Area de Planejamento 5: poucas favelas, velhos problemas em reas proletérias 115 6. AS ESTRATEGIAS DE SOBREVIVENCIA DAS ASSOCIAGOES DE MORADORES EM FAVELAS CONTROLADAS PELO TRAFICO DE DROGAS DE VAREJO NA METROPOLE DO RIO DEJANEIRO 133 7. CONSIDERAGOES FINAIS 157 REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS 165 ANEXOS 171 1) GRAFICO 1. Municipio do Rio de Janeiro: participagao percentual da populagao favelada em relacao 4 populacao total (1950-1991) 81 Tl) TABELAS 1, Populagao da Corte e da provincia do Rio de Janeiro (1821) 33 2. Municipio do Rio de Janeiro: favelas, populacao total e populagéo favelada (1950-1991) 80 3. Participacao do Estado do Rio de Janeiro no Produto Interno Bruto — PIB (1970-1990) 82 om 68 OU 4. Regides metropolitanas — Percentual de pobres urbanos (1981-1991) 83 5. Municipio do Rio de Janeiro: variacdo do crescimento da populacao favelada, segundo a rea de planejamento (AP) (1980-1991) 90 6. Municipio do Rio de Janeiro: sintese de favelas territorializadas e taxa média de territorializagdes, segundo a 4rea de planejamento (1995-1997) 111 7. Estado do Rio de Janeiro: condenados pela Lei 6.368, artigo 12 e/ou 14, segundo a etnia, entre 1986 e fevereiro de 1996 122 8. Estado do Rio de Janeiro: condenados pela Lei 6.368, artigo 12 e/ou 14, segundo o grau de instrucgdo, entre 1986 e fevereiro de 1996 123 9. Estado do Rio de Janeiro: condenados pela Lei 6.368, artigo 12 e/ou 14, segundo a origem, entre 1986 e fevereiro de 1996 124 10. Estado do Rio de Janeiro: menores detidos por trfico e consumo de drogas entre 1991 e 1997 125 III) LISTA DE MAPAS 1, Municipio do Rio de Janeiro: distribuicdo das favelas em 1942 74 2. Municipio do Rio de Janeiro: distribuicdo das favelas em 1948-1950 75 3. Municipio do Rio de Janeiro: processo de favelizacao no final do século XIX até a década de 1990 91 4, Municipio do Rio de Janeiro: espacializacao das favelas localizadas na Area de Planejamento 1 (1991-1993) 93 5. Municipio do Rio de Janeiro: distribuigao das favelas territorializadas pelo trafico de drogas de varejo na Area de Planejamento 1 (1995-1997) 95 6. Municipio do Rio de Janeiro: distribuicao das favelas localizadas na Area de Planejamento 2 (1991-1993) 101 7. Municipio do Rio de Janeiro: distribuigao das favelas territorializadas pelo trafico de drogas de varejo na Area de Planejamento 2 (1995-1997) 102 ou 9 8. Municipio do Rio de Janeiro: distribuicéo das favelas localizadas na Area de Planejamento 3 (1991-1993) 103 9. Municipio do Rio de Janeiro: distribuicao das favelas territorializadas pelo trafico de drogas de varejo na Area de Planejamento 3 (1995-1997) 107 10. Municipio do Rio de Janeiro: distribuicdo das favelas localizadas na Area de Planejamento 4 (1991-1993) 113 11. Municipio do Rio de Janeiro: distribuic&o das favelas territorializadas pelo trafico de drogas de varejo na Area de Planejamento 4 (1995-1997) 114 12. Municipio do Rio de Janeiro: distribuicao das favelas localizadas na Area de Planejamento 5 (1991-1993) 116 13. Municipio do Rio de Janeiro: distribuicao das favelas territorializadas pelo trafico de drogas de varejo na Area de Planejamento 5 (1995-1997) 117 IV) QUADROS 1. Relacdo de favelas visitadas durante as pesquisas de campo tealizadas entre 1995 e 1996 136 2. Percepcao do aumento da violéncia nas 16 favelas visitadas entre 1995e 1996 137 3. Nacleos de poder que atuam nas favelas visitadas entre 1995 e1996 140 4, Relacdo entre as associagées de moradores visitadas e 0 trafico de drogas de varejo entre 1995e 1996 141 5. Relacdo entre os moradores e os traficantes de drogas de varejo entre 1995e 1996 142 6. Acesso de politicos as favelas visitadas entre 1995 e 1996 143 7. Processo de urbanizaco nas favelas e o trafico de drogas de varejo entre 1995e 1996 145 8. Percepcao das associagées de moradores frente as redes de trafico de drogas (1995-1996) 146 9. Beneficios proporcionados pelo trafico de drogas de varejo a comunidade (1995-1996) 147 oe 710 A 10. Relacao entre o trafico de drogas de varejo e o baile funk (1995-1996) 150 11. Imagem que 0 favelado tem sobre a policia (1995-1996) 152 12. Imagem que o favelado tem sobre a Justiga (1995-1996) 154 V) LISTA DE ANEXOS 1, Relagao de bairros do Municipio do Rio de Janeiro 171 2. Roteiro de entrevista1 174 3. Roteiro de entrevista2 176 4, Municipio do Rio de Janeiro: relagao das favelas localizadas na Area de Planejamento 1 (1980-1993) 177 5. Municipio do Rio de Janeiro: relago das favelas consideradas territorializadas na Area de Planejamento 1 (1995-1997) 179 6. Municipio do Rio de Janeiro: relagao das favelas localizadas na Area de Planejamento 2 (1980-1993) 181 7. Municipio do Rio de Janeiro: relacao das favelas consideradas territorializadas na Area de Planejamento 2 (1995-1997) 183 8. Municipio do Rio de Janeiro: relagdo das favelas localizadas na Area de Planejamento 3 (1980-1993) 185 9. Municipio do Rio de Janeiro: relagao das favelas consideradas territorializadas na Area de Planejamento 3 (1995-1997) 195 10. Municipio do Rio de Janeiro: relagao das favelas localizadas na Area de Planejamento 4 (1980-1993) 199 11. Municipio do Rio de Janeiro: relagdo das favelas consideradas territorializadas na Area de Planejamento 4 (1995-1997) 203 12. Municipio do Rio de Janeiro: relagao das favelas localizadas na Area de Planejamento 5 (1980-1993) 204 13, Municfpio do Rio de Janeiro: relagao das favelas consideradas territorializadas na Area de Planejamento 5 (1995-1997) 208 PREFACIO UM “OLHAR AFRODESCENDENTE" SOBRE AS CIDADES BRASILEIRAS Marcelo Lopes de Souza Niicleo de Pesquisas sobre Desenvolvimento Sécio-Espacial (NuPeD) da UFRJ ‘A personalidade do sdbio é indivisivel. Nao se pode distin- guir o homem de ciéncia do homem de cariter, tao profunda- mente interligados estéo um e outro.” Com essas palavras inicia Orlando Valverde o prefdcio a primeira edicdo da coletanea Capitulos de geografia tropical e do Brasil, que contém textos do importante gedgrafo alemao Leo Waibel, que no Brasil trabalhou na segunda metade da década de 1940. E forcoso, todavia, reco- nhecer que obra e cardter se encontram, freqiientemente e em grau varidvel, em uma situacdo de tensao na vida de muitos pes- quisadores e intelectuais. Muitas vezes nao se vive conforme aquilo que se prega, e nao é raro que se transmita a sensacao de que a indignacdo civica e a critica social tém hora e local marca- dos para acontecerem — a saber, as palestras e os escritos acadé- Micos. Nao séo poucos os que abandonam a outros a coeréncia de ensinar e inspirar com o préprio exemplo. wer 12 gh Andrelino Campos é um caso de coerente, sinérgica e inspi- radora conjungao de cardter e obra, vida e trabalho. Completam-se onze anos que conheci Andrelino, quando este esteve presente a uma palestra que proferi na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), a propésito de uma pesquisa que, naquele momento, mal se iniciava, sobre os impactos sécio-espaciais do trfico de drogas de varejo nas cidades brasileiras. Apés 0 deba- te, durante o qual Andrelino nao se furtou a polemizar — sem- pre do seu jeito polido e refletido, mas decidido, que o caracteri- za —, formulei o convite para que ele fizesse a prova de selecao para o mestrado em geografia da UFRJ, sugestao que foi pronta- mente aceita. Nao demorou, e ele, mesmo antes de entrar para o curso de mestrado, integrou-se 4 minha equipe de pesquisado- res, entéo ainda em formacao. Nessa época, ha dez anos, Andrelino era professor de geografia, atuando nos niveis funda- mental e médio de ensino. Tinha conseguido se formar jé havia muito tempo, sempre lutando com incomparavel tenacidade para superar as vicissitudes de uma infancia e uma adolescéncia pobres. Se pobreza acrescentarmos 0 fato de que, muitas vezes, ele foi também alvo, no quotidiano, do preconceito que atinge outros afrodescendentes no Brasil, torna-se verdadeiramente admirdvel que Andrelino, ao longo de sua biografia, tenha sabido n&o apenas superar problemas e nao apenas fazer de sua indigna- 40 motivo e alimento para o seu engajamento politico e profissio- nal, mas, ainda por cima, tenha conseguido nao responder a irra- cionalidade com o édio, mas com a serenidade de quem nao quer somente vencer e, sim, sobretudo, convencer (isto é, vencer com). O livro que o leitor ou a leitora tem agora em mos 6, com algumas poucas modificagées, sobretudo alguns acréscimos, a dissertagéo de mestrado que Andrelino de Oliveira Campos defendeu em maio de 1998, na UFRJ, sob a minha orientacao. Preméncias outras e a necessidade de agarrar certas oportunida- des, para garantir a sobrevivéncia material e ascender profissio- nalmente, explicam, basicamente, o porqué de terem decorrido varios anos entre a defesa e a publicagdo. Todavia, se me permi- = 4 a tem o chavao, ha males que vém para o bem; o hoje professor universitario Andrelino Campos (docente da Faculdade de Formacado de Professores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro — UERJ), doutorando na UFRJ, possui, com a maturida- de e o distanciamento critico que o tempo lhe trouxe, condig6es de proceder a uma revisao do trabalho melhor do que lhe teria sido possivel ha seis anos. Do quilombo 4 favela, a despeito e para além de sua vocacéo para um bom transito interdisciplinar, é um marco no ambito especifico da geografia brasileira. Um marco tanto intelectual quanto politico, lato sensu. Conquanto o geégrafo brasileiro mais conhecido e mais lido, dentro e fora da geografia, fosse negro, Milton Santos (1926-2001) nao chegou a legar, em seus trabalhos, uma reflexao de félego sobre a condicao do negro no Brasil atual. Instigado a se pronunciar sobre a situagao dos afrodescendentes brasileiros e as conseqiiéncias de sua estigmatizagao, Milton Santos, em seus tltimos anos de vida, externou opinises fortes a respeito, com a coragem de sempre, como “os negros ainda sor- riem, mas vao comecar a ranger os dentes”. Na verdade, o ranger de dentes ja podia ser ouvido ha muito, e, tendo o barulho se avolumado na década de 1990, o préprio quadro convidava o grande intelectual a tomar uma posicdo mais explicita. Infeliz- mente, porém, esse posicionamento quase nao se refletiu em seus textos, inclusive ou principalmente naqueles que, como 0 livro Oespago dividido, o tornaram internacionalmente conhecido e ver- sam sobre os problemas e a dinamica urbanos no Brasil e nos pai- ses “subdesenvolvidos” em geral. Dessa “missao” de revelar, no olhar sobre as iniqiiidades, os contrastes e as injusticas que tipifi- cam as cidades brasileiras, uma sensibilidade que nao seja apenas “classista” (dendincia da exploragao de classe no interior do capi- talismo), mas que incorpore uma vivéncia direta dos preconceitos especificos que sofrem os afrodescendentes e nao apenas os Ppobres dentre eles. Dessa “misséo” é sobretudo Andrelino Campos aquele que, a meu juizo, entre os gedgrafos de formacao, vem se desincumbindo com profundidade e serenidade. = 3 3 Sobre a referida “missdo” (palavra perigosa, que, pelo me- nos, tenho a prudéncia de pér entre aspas), lembro-me de ter, desde o comeco de nossa convivéncia profissional (porta de entrada para uma amizade que me envaidece), provocado Andrelino duplamente. Por um lado: por que exigir que um negro, por ser negro, tenha de escrever sobre negros ou temas especificamente relativos 4s condicdes de vida dos negros? Isso ndo seria uma forma de arrogancia condescendente (como aque- la dos cientistas sociais dos paises ditos “desenvolvidos”, que muitas vezes acham que nés, da periferia, servimos bem, mas tAo-somente, para produzir estudos empiricos sobre os nossos proprios paises, devendo deixar a reflexdo teérica para eles)? Mas, por outro lado: se os negros — ou, mais geralmente, como com razao prefere Andrelino, aqueles que se assumem como afrodescendentes, independentemente de serem negros ou mes- tigos — nao oferecerem, eles proprios, andlises temperadas por sua sensibilidade e sua vivéncia especificas, quem fara isso por eles? Cientistas sociais brancos ou pseudobrancos, mesmo aque- les realmente progressistas e coerentes em seu humanismo, nao podemos substituir os afrodescendentes nessa empreitada. Nés podemos, sim, ser solidérios na luta, e podemos ser interlocutores valiosos; e que sejamos! Mas que nao se tente mimetizar um olhar que, em um sentido profundo, nao é 0 nosso (porque nao crescemos recebendo caretas e comentarios de desconfianga ou desprezo por conta de nossa pele e nosso cabelo), e muito menos se busque falar em nome dos afrodescendentes. Isso nao seria parceria, nao seria didlogo, nao seria camaradagem: seria tutela. Daf a imprescindibilidade dos andrelinos. E dai, na esteira disso, a importancia e o pioneirismo de Andrelino. Aquele apa- rente dilema com o qual eu o provoquei, ele, por assim dizer, 0 tem resolvido (e sua tese de doutoramento, no momento em fase adiantada de elaboracdo, exemplificara isso em um patamar ainda superior) da unica forma que me parece teérica, politica e eticamente razodvel: assumir e valorizar o particular sem perder de vista o universal; mover-se no plano mais abstrato, sem, oe 16 Og jamais, esquecer-se de onde se fala, e por quais razées se fala aquilo que se fala. Referéncias e debates tedricos gerais, nas cién- cias sociais, nunca sao isentos de sotaque — e nem poderiam ou deveriam ser. A grandeza do engajamento profissional de Andrelino, inse- paravel de sua biografia e de sua luta cidada, est4 em clamar por universalidade ao resgatar, com elevado brio intelectual, um “particularismo militante”, descortinando o amplo alcance de sua mensagem e as largas implicagdes de uma problematica que é central 4 formago sécio-espacial brasileira. INTRODUGAO O processo de construcao espacial da cidade, em geral, nao vem, ao longo da histéria, contemplando os grupos denomina- dos “minorias’. O fazer a cidade pertence aos grupos socialmen- te mais representativos, que participam do processo como sujei- tos hist6ricos, enquanto aos demais resta acompanha-los como massa, sem nenhuma determinacao, seja qual for a instancia ana- lisada: politica, econdémica ou social. A violéncia!, que grassa no tecido sécio-espacial urbano de algumas metrépoles brasileiras, tem como uma de suas origens a estrutura fundidria estabelecida desde o periodo imperial. Tal estrutura € conseqiiéncia da legislacao discriciondria elaborada pelas elites rurais que dominavam o Legislativo e os cargos- chave do Império, e favoreceu em muito a concentracao da pro- 10 termo “violéncia” admite uma grande gama de interpretagées e entendi- mentos. Aqui, optamos pela acepgéo dada por MICHAUD (1989:1-10), que defen- de o principio, explicando que “HA violéncia quando, numa situagio de intera- 40, um ou varios atores agem de maneira direta ou indireta, maciga ou espar- sa, causando danos a uma ou varias pessoas em graus varidveis, sejam em inte- gridade fisica, em sua integridade moral, em suas posses ou em suas participa- Ges simbélicas e culturais”. Oe priedade tanto no campo quanto na cidade, proporcionando o aumento das distancias sociais entre os grupos mais pobres e aqueles mais ricos. A concentragao de terra ganha significado preocupante no sentido de que foi em sua esteira que se forma- ram as maiores fortunas do pais. Além desse fato, ao impedir que milhares de brasileiros tivessem acesso a parte das terras, ela pos- sibilitou a existéncia de um exército de miseraveis que vive das sobras da sociedade. Hoje, os problemas sofreram agravamento em fungéo da complexificagao da sociedade brasileira. Deixaram-se para tras, em nivel de importancia, os roubos de fazendas (quando a socie- dade era basicamente rural) ou os furtos de residéncias nas cida- des (perdeu a sua importancia para a seguranga publica), para enfrentar problemas ligados ao chamado trafico de drogas, que para o Estado assume a condicao de tema estratégico, tal a pro- porgao a que chegou nos tltimos anos, sobretudo no caso das duas maiores metrépoles do pais: S40 Paulo e Rio de Janeiro. A estratégia mais usual, normalmente a mais exigida pela socieda- de, a pelo aumento do contingente das forcas de repressao com o aumento de policiais nas ruas. Porém, tal estratégia, apesar de grandes inversdes de recursos puiblicos, nacionais e internacio- nais, vem se mostrando inécua, pois o problema é estrutural e nao policial, indo além da conjuntura atual. Entao, buscar solu- ¢6es, como o sitiar favelas, por exemplo, na regido metropolitana do Rio de Janeiro, sobretudo do Municipio do Rio de Janeiro, é nao tentar enfrentar o problema da violéncia urbana, coma devi- da correcdo, como um problema social e nao apenas policial, como vem sendo feito desde o periodo imperial. O Rio de Janeiro, dada a especificidade do espago urbano — a favela e 0 tréfico de drogas de varejo—, se configura diferentemen- te de todas as outras cidades brasileiras. E freqiiente a apropria- ¢4o do espaco por novos grupos que chegam, atualmente, a fazer © papel de gestor do espaco favelado, como se fosse, em alguns casos, propriedade particular. Esta situagao é grave, pois as favelas ws 20 OF cariocas abrigam cerca de um quinto da populagao da cidade, e as relagdes vém se deteriorando a ponto de algumas autoridades federais levantarem a controvertida tese do “Estado paralelo”2, que, conceitualmente e também na pratica, nao se sustenta. Como a situacgao presente em qualquer sociedade nao é re- sultado de alguns poucos anos de experiéncia, a situacdo atual de violéncia nas grandes cidades brasileiras foi gerada ao longo de um processo. Historicamente, sobretudo na Cidade do Rio de Janeiro, as favelas, assim como os corticos, surgiram no cendrio urbano carioca para suprir 0 hiato formado pelo déficit habita- cional, abrigando, inicialmente, em sua grande maioria, uma massa de pobres que procuravam habitar proximo aos locais onde era oferecido trabalho, principalmente para aqueles que nao detinham qualificagao profissional. Por nao se constituirem em individuos fenotipicamente enquadrados nos ideais de mo- narquistas e, posteriormente, de republicanos, nos termos coloca- dos por CHALHOUB (1996a; 1996b), SODRE (1988) e CUNHA (1985)3, entre outros tantos autores, eles observam que os negros escravos ou alforriados foram excluidos da pratica politica e marginaliza- dos economicamente, apontados pela sociedade da época — permanecendo até os dias atuais, agora de maneira mais subjeti- va — como “vadios”, “vagabundos”, “desocupados” (BASBAUM, 1976:179-83) e outros termos depreciativos sociais, que, na base, 7 Esta tese foi levantada mais uma vez pelo ministro-chefe do Gabinete Militar, general Alberto Cardoso, que declarou que “... j4 existe no Rio um ‘Estado Paralelo’ comandado pelos traficantes, que atuam em outras ‘zonas liberadas’ do pais (...)”. Essa declaracao foi feita a respeito dos tiroteios acontecidos na favela do Cantagalo, em Ipanema, Zona Sul do Rio de Janeiro, no inicio do més de janeiro de 1998 (Jornal do Brasil, 25/1/98, pp. 1-2, “General diz que o tréfico 6 0 Estado paralelo no Rio”). 3 Estes autores trabalham com a perspectiva historica que possibilitou o proces- So de construcao da exclusao e segregaco sdcio-espaciais de negros. Apesar de existirem outros trabalhos, esses sero fundamentais para que possamos cons- truir a nossa argumentagao ao longo deste livro. ma 77) OS tinham como pano de fundo o preconceito racial, fruto do estig- ma legado pela Coroa portuguesa ainda no século XVII+. As estratégias de sobrevivéncia e também de resisténcia que foram desenvolvidas pelas massas pobres, seja nos corticos loca- lizados na 4rea central da cidade, seja nas favelas (espacos con- temporaneos), em face das varias intervengdes do Estado, colocaram-nas sempre em condigao de conflitos eminentes com 0 poder publico. Esse estava quase sempre associado aos interes- ses dos grupos socialmente dominantes. A apropriacao do espa- co pelos mais pobres, segundo o entendimento de diversos auto- res conservadores, era (e €) considerada como uma transgresséo ao ordenamento do solo urbano. A esses grupos, a Lei de Terras de 1850 nao contemplou e/ou ratificou as posses antigas, criando um descompasso entre os que puderam tomar a si o direito de 40 termo “estigma” é empregado aqui com o mesmo sentido usado por M. L. Tucci Carneiro, que, por sua vez, est4 apoiada em E. Goffman. Segundo este autor, 0 termo “estigma” caracteriza aqueles grupos ou individuos que estéo inabilitados para a aceitacao social. O estigma é classificado em trés niveis: a) por deformidade fisica; b) por culpa de cardter individual e c) por estigmas tri- bais, de raca, religido e nacdo. Este tiltimo é definido como aquele que pode ser transmitido através de linhagem e contaminar todos os membros de uma familia (COFFMAN, E., apud CARNEIRO, 1988:152). Quanto a questo do preconceito, a autora aceita dois principios: a) segun- do o entendimento de C. P. Boxer, “o século XVII foi o marco para a discrimina- cdo legalizada e especifica contra os negros e os mulatos, considerando-se a estreita relagdo existente entre a escravatura humana e a pureza de sangue”. A confirmagao deste fato é dada por uma lei promulgada em agosto de 1671 (Boxer, C. P., apud CARNEIRO, id., ibid., p. 153); b) no entendimento de Kabengele Munanga, “o conceito de pureza de sangue [usado inicialmente para discriminar 0 judeu-novo com bases econémico-ideol6gicas] estendeu-se posteriormente ao negro e ao mulato, que passaram a ser considerados tam- bém como representantes das racas infectas”. Ressalta o autor que “Em benefi- cio do branco, o negro é alienado tanto no produto e na forma de seu trabalho, como na sua pessoa. Para isto, o sistema econdmico que produziu o escravo produziu também a maneira de produzir escravos biolégica e socialmente” (MUNANGA, K., apud CARNEIRO, id., ibid., p. 153). Os destaques acima sao nossos. — 2 MF possuir terras devolutas e os que ficaram excluidos do proceso, como constata Ligia Maria Os6rio SILVA (1990:332). Como a questao da propriedade é central na organizacgaéo espacial da sociedade brasileira, consubstanciada pela questéo habitacional, as teses desenvolvidas sobre o surgimento das favelas como locus de moradia dos mais pobres sao aceitas ape- nas como um fenémeno urbano. Inicialmente, abrigaram pes- soas que perderam seus locais de moradia, ou retornadas de alguma batalha, e foram autorizadas pelo Poder Piblico a se esta- belecer provisoriamente nas encostas dos morros da 4rea central da cidade; ou para os mais pobres que necessitavam ficar pr6xi- mos do local de trabalho; ou ainda para abrigar aqueles cativos fugidos das areas rurais, pois a cidade representava a possibilida- de de passarem como libertos. Contudo, as mais importantes apontam para a questao do déficit habitacional ou a questao de localizar-se préximo dos locais onde ofereciam trabalhos. Notamos que todos os estudos preocuparam-se em delimitar tanto espacial como temporalmente o fenémeno espacial. Tendo em vista a insuficiéncia conceitual para dar conta de fenémeno tao importante, acredita-se que seria melhor entender os quilombos periurbanos, que acolhiam os negros fugidos dos cativeiros e brancos pobres e/ou com problemas com a justica da época, como lugares com reais possibilidades de abrigar tais Ppopulagées, pois se localizavam em Areas de dificil acesso, porém sem a caracteristica que em geral lhes é imputada de isolamento social. O intercambio comercial e de informacées era a base que consubstanciava as relacGes entre grupos socialmente diferentes, que Flavio dos Santos Gomes denominou em seu trabalho “cam- Po negro” (GOMES, 1995), que tem o seu correspondente nas favelas atuais como redes de solidariedade5. 5A expressao rede de solidariedade empregada por SOUZA designa uma relagao de compadrio envolvendo varios individuos e alguns atores na complexa relagéo estabelecida nas favelas cariocas (SOUZA, 1996a, pp. 428-29). -— 3 oe O quilombo existe desde quando negros® importados (eram mercadorias) da Africa comecaram a ser utilizados nas lavouras e logo passou a representar para o Estado e, sobretudo, para os grupos dominantes uma ameaca a ordem estabelecida. Do ponto de vista dos quilombolas, significava tao-somente a possibilida- de de resisténcia ao senhoriato e ao proprio Estado colonial (MOURA, 1987; 1988; RIBEIRO, 1996). Tendo em vista que a Abo- ligdo da Escravatura encontrou ainda esses espacos habitados, pois, como relata a literatura pertinente, o Estado nao foi capaz de extingui-los ao longo dos periodos colonial e imperial, perma- neceram como tal até a cidade incorporé-los ao espaco urbano ou agrario. Portanto, admitir que o espaco quilombola fora transmu- tado em espaco favelado é¢ inclui-los no processo maior, ou seja, éadmitir que as populacées pobres, através de suas apropriacoes dos espacos periurbanos, ilegais 4 luz do poder piblico, partici- param da construgao do espago urbano das cidades. A favela, como espaco transmutado, adensou-se de forma significativa 4 medida que a reforma do espaco urbano do Rio de Janeiro avangava no sentido de adequé-lo aos investimentos capitalistas. Se, por um lado, a cidade ganhava as feigdes de modernidade (ABREU, 1988), deixando-a cada vez mais parecida com as cidades européias (SODRE, op. cit.), de outro lado in- crementavam-se cada vez mais os nticleos favelados com a extin- ao de reas de cortigos que ainda abrigavam populacoes pobres, principalmente negras, egressas de cativeiros. Além deste fato, ressalta-se que ainda coexistiam as principais dificuldades: o déficit habitacional e a relacdo de proximidade com os locais que ofereciam empregos. 6 O termo “negro”, apesar de seu uso corrente, é recente. Foi utilizado pela primeira vez em sentido politizado, na segunda década do século XX, para dis- tinguir do que até entdo era do uso corrente — 0 “homem de cor”—, expressao fartamente utilizada quando, no alto de nossos preconceitos, pensamos nao estar em situagdo de ofensa ao negro, preferencialmente, e as outras desig- nag6es de forma menos acentuada. —1 4 Em decorréncia das dificuldades criadas em torno desses es- pagos transmutados, acredita-se que, de certo modo, tornaram- se faceis de ser controlados por grupos diferentes do Estado, denominados pelos juristas e cientistas sociais como organiza- Ges criminosas, como, por exemplo, os banqueiros do jogo do bicho (doravante denominados banqueiros do bicho), e, mais recentemente, os grupos que controlam trafico de drogas de varejo, sobretudo nas favelas cariocas. Nesse caso, a diferenca entre uma e outra estrutura ilegal é distinguida pelo uso abusivo da violéncia contra a “populacao hospedeira”7, praticada pelos grupos que vendem drogas. 7 O uso da expressao “populacdo hospedeira” é a tentativa de estabelecer algum nivel de comparacao entre a populagao favelada em sua relacdo nem sempre amistosa com os controladores e 0 comportamento dos parasitos com seus hospedeiros. A bem do esclarecimento, cabem algumas explicagées sobre predador/hospedeiro. Para tanto, apoiaremo-nos em Roger Dajoz (1973), ao escrever que: “O parasitismo — uma espécie de parasita, geralmente a menor — inibe o crescimento ou a reproducdo de seu hospedeiro e depende direta- mente dele para se alimentar” (id., ibid., p. 190). Ressalta ainda o autor que “a coabitacao de duas espécies pode ter sobre cada uma delas uma influéncia nula, favoravel ou desfavordvel” (id., ibid., p. 189). Posto tal pressuposto da ecologia geral, pensamos em combinar tal procedimento com o comportamen- to do homem e seu dom para a “violéncia”, conforme nos relata MICHAUD (op. cit; ver nota 1). Sabemos que estamos fazendo uma extrapolagao, pois, na com- peticao estabelecida entre predador e hospedeiro, existe apenas a relagao de sobrevivéncia de uma espécie em detrimento da outra e néo a violéncia. Em nossa assertiva, estamos tendendo a acreditar que a existéncia de uma organizacdo criminosa controlan- do os espacos favelados na metrépole do Rio de Janeiro é um dos impedimen- tos 4 construcéo da cidadania desse segmento da populacéo, combinando, obviamente, com os fatores histéricos. O alinhamento involuntério e/ou volun- tério cria dificuldades maiores para a populacdo mais pobre que vive nesses espacos, possibilitando as acusagées da “cidade senhorial” (CHALHOUB, 1996, op. cit.) de abrigar “criminosos” e, portanto, manter inteiro o “mito da marginalida- de”, nos termos apontados por PERLMAN (1977), que vem impregnando a socie- dade desde h4 muito tempo, perdurando até os dias atuais. Como sabemos, 0 proceso de dominacao, salvo raras excegdes, é também efetuado com violéncia contra a populacao, servindo os moradores como am 2 "yr A tendéncia entre alguns autores, principalmente ligados as ciéncias juridicas, como Luiz Flavio GOMES e Rati CERVINI (1995), H. F. MAIEROVITCH (1995) e Antonio S. FERNANDES (1995) consiste em defender que a solucao possivel para este impasse social 6 eli- minar estes atores do convivio da sociedade. Isso poderia ser obtido, segundo esses autores, através do Estado, fazendo com que este ampliasse a sua forca policial. Entretanto, parece-nos que tal estratégia, a bem da verdade, secular, nao vem obtendo sucesso na reducao da violéncia urbana. Outros autores ligados sobretudo as ciéncias sociais, como, por exemplo, E. Campos COELHO (1987), Luiz Eduardo SOARES (1993; 1996), Janice PERLMAN (1977), Marcelo Lopes de SOUZA (1994; 1995a; 1995b; 1996a; 1996b; 1996c), todos acreditam que ampliar a forca policial nao representa a solucao do problema. Alguns indicios nos levam a acreditar nesta possibilidade, pois, apesar das constantes disputas entre grupos ligados venda de drogas de varejo por territérios favelados, alguns ainda permanecem como verdadeiros icones do denominado crime organizado, palco de uma estabilidade que outros territ6rios controlados na cidade nao conhecem. Essa configuracao espa- escudos humanos” para a protecao dos membros das quadrilhas que controlam esses espacos. O “escudo humano” é acionado tanto contra os grupos rivais como contra a policia — conforme os relatos de diversos lideres de associagoes de moradores, em entrevistas as equipes do Niicleo de Pesquisas sobre Desen- volvimento Sécio-Espacial (NuPeD) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) — Departamento de Geografia —, coordenado pelo professor Marcelo Lopes de Souza, orientador desta pesquisa, em varias datas, entre 1995 e 1997. A populacdo passa a ser ent4o uma garantia da presenga de controladores diferentes do Estado, situagao agravada pela configuracao espacial das favelas. Por isso, a relacao entre hospedeiro e predador, envolvendo o comportamento acima descrito, é estabelecida a partir de um processo violento de dominacao. ‘A bem da verdade, a relacéo entre a populacdo das favelas do Municipio do Rio de Janeiro e o Estado geralmente foi construida como um caso de policia e n4o como uma questio social. Daf as facilidades encontradas pelos diversos atores com intencionalidade de controlar esses espacos. Cr cial, estabelecida pelos banqueiros do jogo do bicho$, vencida a “fase priméria”®, mudou muito pouco nestas tiltimas décadas. Diferente dos banqueiros do jogo do bicho, os traficantes de drogas de varejo, de forma inconteste, sao mais eficientes no con- trole dos espacos favelados do que outras estruturas ditas crimi- nosas. Enquanto os banqueiros do jogo do bicho usaram a dissi- mulacao para estabelecer e controlar os espacos habitados pelos mais pobres, os traficantes de drogas, ainda em sua “fase prima- tia”, utilizam-se da forga como uma das poucas estratégias empregadas para conquistar e permanecer nos territérios. No processo de formagao de seu territério, o jogo do bicho, ao vencer sua “fase primdria”, passou a ganhar a confianca da populacado através dos investimentos em escolas de samba e assistencialismo. Ultrapassada essa etapa, por volta de meados da década de 1970, eles passaram a investir em campanhas poli- ticas.9 Parece-nos comum que a associacao entre aqueles que possuem recursos e os politicos vem se tornando muito corri- queira nos tiltimos anos — ver Comissao Parlamentar de Inqué- rito (CPI) do Trafico de Drogas, instalada na Camara dos Depu- tados, 1999-2000 —, bicheiros e grandes traficantes de drogas (atacadistas e varejistas) fazendo parte dessa estrutura. Nesse ambiente construfdo pelo sentimento de desconfian- ¢a, a sociedade vem transformando a vitima em culpada, através 8 Os bicheiros, apesar de sua importancia no cenério carioca, sobretudo na organizacao do carnaval, vém perdendo espaco na representacao social junto A populacao mais pobre dessa sociedade. Acreditamos que a morte de Castor de Andrade possa ser um marco da atuacdo deles. Entretanto, mesmo reduzindo a importancia desse fenémeno, ainda assim é um grupo importante a ser consi- derado na organizacdo de algumas estruturas sociais. Parte do carnaval carioca ainda continua sob o dominio de grandes banqueiros. 9 Estamos designando como “fase priméria” aquela em que um dado territério 6 disputado através das armas. Como sabemos, os banqueiros do jogo do bicho venceram essa etapa em 1975, quando Mariel Mariscot tentou conquistar os ter- ritérios da area central da cidade, sobretudo a Praga Mau e adjacéncias. Nesse confronto, um dos tiltimos noticiados pela imprensa carioca, Mariscot foi assas- sinado, terminando com as disputas territoriais na cidade. -— 7 9 da marginalizagaéo econémica e social, e também criminalizando seus espacos de moradia. E ainda, para agravar o sentimento de desconfianga dos favelados em relagao ao Estado, alguns seg- mentos da sociedade aplaudem operagées como Rio I, Rio II ou as constantes operagées policiais realizadas nas favelas (ganhan- do preferéncia aquelas que tém como “saldo positivo” a morte de alguns “bandidos”, que sao culpados antes de se provar que real- mente 0 sao). Tendo em vista os problemas da insergao social e da produ- Gao de exclusao ao longo da formagado do Estado brasileiro, e que alguns segmentos sociais, além de discriminados, foram segrega- dos em espacos rejeitados pela sociedade em geral, pretende-se saber: Quais sao as estratégias de sobrevivéncia que os grupos segrega- dos espacialmente e marginalizados economicamente vém desenvolven- do para buscar sua insergdo na sociedade? Este livro esta estruturado em seis capitulos, em que aborda- remos os mais distintos problemas sociais, entre os quais desta- camos: a permanéncia ou remogio territorial das populagses mais pobres da cidade, sobretudo dos afrodescendentes!0, 10 O termo “afrodescendéncia” vem em decorréncia de uma aproximagao vi- gorosa com a ideologia africanista presente desde a década de 1970, com 0 Teatro Experimental do Negro — TEN. Podemos dizer que era uma saida ao conformismo que instava os movimentos sociais negros a uma semiparalisia, juntamente com a maioria dos movimentos sociais que se colocavam contra 0 regime militar. Porém, a afrocentricidade nao se torna suficiente, tendo em vista que os valores serao assumidos para fixacéo dessa nova identidade, necessariamente precisam ser fixados em relacao aos valores e aos compromissos daqueles que estéo no mesmo campo de luta, ou seja, a busca de maior justiga social em torno das questdes étnico-raciais. Este estagio é eminentemente politico, rejei- tando-se, a priori, qualquer vinculacao decorrente da discussao sobre raca ou suas varidveis, ou ainda de exclusividade de um determinado segmento social, pois se aceita a afrodescendéncia como uma possibilidade associativa de livre escolha, contrariando algumas teses presentes no movimento negro de associ- aco compuls6ria A questao de cor da pele. A cor da pele nao traz necessaria- mente os individuos para o interior da questao politica, mas apenas coloca a questdo da especificidade, que, no necessariamente, sera reconhecida como oe 28 No primeiro capitulo, trabalhar-se-4 com as seguintes pers- - pectivas: 0 quilombo como estrutura de resisténcia 4 ordem constituida; sera discutido ainda quem eram os produtores desse espaco que fugia & ordem estabelecida; e, por ultimo, pretende- mos saber qual era 0 projeto de nacao para o Brasil. No segundo capitulo, pretende-se discutir quais sdo as teses sobre a formacao do espago favelado na Cidade do Rio de Janeiro. No terceiro capitulo, enfrentaremos a questao da formacao de favelas sob a légica, acredita-se, inovadora. Tentaremos incluir a formacao das favelas em um processo maior de constru- gao do espaco urbano, ligando quilombo e favela em um unico processo de formacao do espaco urbano da Cidade do Rio de Ja- neiro. Procura-se também neste capitulo acentuar o inicio do processo de producao da didspora de afrodescendentes, a pro- ducao da segregacao sécio-espacial na cidade. No quarto capitulo, tentaremos ligar as teorias sobre crimina- lidade e seus rebatimentos espaciais. Além dessas preocupacées, buscaremos entender os momentos em que ocorreram os rompi- mentos das identidades territoriais em func4o da modernizacao do espaco urbano carioca. Outros problemas estarao presentes também neste capitulo, como a problemitica da associagao entre as escolas de samba e os banqueiros do jogo do bicho. Nesse sen- elemento politico, é somente a decorréncia do fentipo: negros de todos os matizes brancos de todos os matizes foram classificados e passou a ser lugar- comum a aceitagao dessa classificagao, isto 6, nao esté em questao a escolha de cada um dos membros pertencentes ao grupo em tela; enquanto a afro- descendéncia diz respeito as escolhas de individuos singulares ou coletivos de associarem-se em torno das questées étnico-raciais. Nesse caso, nao importa a cor da pele, pois, entre todos que abracam esta nova identidade, o preconceito decorrente das desvantagens nao recai sobre todos os afrodescendentes, mas Sobre os negros (de forma preferencial), mulatos (secundariamente) e os pardos (como aquele status social sem uma definicdo fenotipica, resultado do que PINTO (1998) denominou “cotas de transferéncia”, como parte da politica de “embranquecimento”. Como podemos observar, a constituicao da identidade afrodescendente requer, sobretudo, o reconhecimento da diferenca como fator fundamental para que possam avangar as relagées sociais no interior da Sociedade. mF tido, estaré sendo privilegiada uma outra questao, que se acredi- ta de relevancia para andlise, como a expansao dos nticleos fave- lados e a constituicao de novas territorializagées: o trafico de dro- gas de varejo e sua atuagao nas favelas. O quinto capitulo se constitui na parte referente ao campo, em que se aproveitou a divisdo da Cidade do Rio de Janeiro em cinco 4reas de planejamento para proceder a anilise das favelas registradas. Tentaremos estabelecer quais foram os processos que possibilitaram a expansao de cada uma das dreas de planejamen- to no que diz respeito ao processo de favelizagao e seus desdo- bramentos para a cidade. Verificaremos 0 que vem levando algu- mas areas ao processo de estagnac4o econémica e ao avanco de outras areas, como novos polos de crescimento econdémico, ser- vindo como elemento de atragao de novos nticleos favelados. No sexto capitulo, teremos como foco as associagoes de mo- radores no que se refere 4 maneira como vém enfrentando os problemas da violéncia urbana, discriminagao e outros proble- mas sociais. Nesta fase, sera interessante entender como funcio- nam as relacées dessas entidades com os diversos segmentos sociais e, fundamentalmente, com o Estado e outras instancias de poder estabelecidas legalmente na sociedade. Temos ainda a lamentar que as informagées de seguranca publica ndo sejam disponibilizadas, deixando o nosso trabalho com sérias dificuldades. Para que o nosso objetivo principal nao seja totalmente esvaziado, foi montado um arquivo, denomina- do ARQTOX, no Nticleo de Pesquisas sobre Desenvolvimento Sécio-Espacial (NuPeD), com 0 objetivo de suprir a falta de infor- macoes oficiais sobre 0 trafico de drogas de varejo nas favelas. No foi intenco do nticleo produzir informac6es sistematizadas que substituissem as informacées oficiais, mas indicar quais as favelas que esto e/ou estiveram sob 0 controle de quadrilhas armadas entre 1995 e 1997, sendo este, entao, o perfodo de abran- géncia do nosso arquivo. As informagées contidas no ARQTOX sao originadas na imprensa carioca, sendo também o resultado de nossos trabalhos de campo, realizados no mesmo perfodo de 1995 a 1997. we 300g 1 aH O QUILOMBO E A EXPANSAO URBANA NO RIO DE JANEIRO 1.1 Quilombo: espaco de resisténcia 4 ordem imperial tem alguns pontos em comum com as atuais favelas bra- sileiras, sobretudo aquelas localizadas nas grandes cida- des. Ambas as estruturas espaciais foram e sao estigmatizadas ao longo da histéria sécio-espacial da cidade. Se, no passado, a tesisténcia era constitufda em torno do nao-aprisionamento dos Negros (primeiro ocorrendo apenas com 0s escravos e, posterior- mente, com os negros que se tornaram livres), ao longo do sécu- lo XX a resisténcia aconteceu em torno da permanéncia nos locais “escolhidos” para moradia. Entre resistir e serem coptados pela acgao dos grupos dominantes associados aos interesses do Estado, que no passado procuravam estender a cerca, seja para ampliar as suas propriedades, seja para valorizar as terras urba- Nas, os segmentos de baixa ou nenhuma renda tomam em geral um posicionamento politico que venha a priorizar a permanén- cia no espaco apropriado. Os quilombos, em geral tidos como espago de resisténcia existente no campo, séo pouco estudados na sua modalidade urbana. Entretanto, ALGRANTI (1988) registrou a presenca de alguns desses quilombos no Rio de Janeiro, capital da provincia. O quilombo, como espaco de resisténcia 4 ordem imperial, oe UM

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