You are on page 1of 7

OS CAMINHOS DA LIOFILIZAÇÃO ORGANIZACIONAL:

AS FORMAS DIFERENCIADAS DA REESTRUTURAÇÃO


PRODUTIVA NO BRASIL

Ricardo Antunes*

“Não demasiado antigas, há muitas profissões que


desapareceram, hoje ninguém sabe para que serviam
aquelas pessoas, que utilidade tinham... ”
Saramago, A Caverna

Foram de grande monta as transformações ocorridas no capita­


lismo recente no Brasil, particularmente na década de 1990 quando,
com o advento do receituário e da pragmática neoliberais, desenca­
deou-se uma onda enorme de desregulamentações nas mais distintas
esferas do mundo do trabalho. Houve, também, como conseqüência
da reestruturação produtiva e do redesenho da divisão internacional
do trabalho e do capital, um conjunto de transformações no plano da
organização sócio-técnica da produção, deu-se um processo de re-
territorialização da produção, dentre tantas outras conseqüências.

Professor Titular de Sociologia no Instituto de Filosofia e Ciências Hu­


manas da UNICAMP. Publicou, dentre outros livros, Os sentidos do tra­
balho (Boitempo Editorial) e Adeus ao trabalho? (Ed. Cortez/Ed. Uni­
camp). Coordena também a Coleção Mundo do Trabalho, pela Boitempo
Editorial. Este texto é parte do Projeto Integrado de Pesquisa Para Onde
Vai o Mundo do Trabalho?, que conta com apoio do CNPq.

Idéias, Campinas,9(2)/10(l): 13-24, 2002-2003


14 Anotações sobre o capitalismo recente e a reestruturação produtiva no Brasil Ricardo Antunes 15

Esta contextualidade fez com que a configuração recente do


nosso capitalismo fosse bastante alterada, de modo que ainda não I
temos um desenho conclusivo do que vem se passando. Somente
poderemos redesenhá-lo, ainda que preliminarmente, através do O capitalismo brasileiro, particularmente seu padrão de acumu­
desenvolvimento e realização de densas pesquisas concretas e re­ lação industrial desenvolvido desde meados da década de 1950 e
flexões analíticas capazes de oferecer esse (novo) desenho, que por especialmente no pós-64, desenvolveu uma estrutura produtiva
certo comporta tanto elementos de continuidade como de descon­ bi-fronte: de um lado, voltava-se para a produção de bens de
tinuidade em relação ao seu passado recente. consumo duráveis, como automóveis, eletrodomésticos etc., vi­
É aqui onde reside o objetivo central deste número especial da sando um mercado interno restrito e seletivo que se desenvolvia
Revista Idéias: buscar elementos que nos auxiliem na concreção do no país; por outro lado, objetivava também desenvolver a produ­
capitalismo brasileiro recente, bem como algumas das principais ção para exportação, tanto de produtos primários, como também
mutações que vêm ocorrendo no universo do trabalho urbano (e de produtos industrializados. Quanto à sua dinâmica interna, o
também rural), percorrendo também suas principais lutas e ações padrão de acumulação estruturava-se através de um processo de
cotidianas de resistência, num período marcado pela mundialização, superexploração da força de trabalho, dado pela articulação entre
transnacionalização e financeirização dos capitais, que certamente baixos salários, jornada de trabalho prolongada e de fortíssima
reconfiguram o nosso universo produtivo, industrial e de serviços. intensidade em seus ritmos, dentro de um patamar industrial signi­
Se já parece obsoleto falar na teoria dos três setores (Lojkine, ficativo para um país que, apesar de sua inserção subordinada,
1995), dada a enorme interpenetração entre as atividades industri­ chegou a alinhar-se entre as oito grandes potências industriais.
ais, agrícolas e de serviços (de que são exemplos as expressões Esse modelo econômico teve amplos movimentos de expansão ao
agro-indústria, indústria de serviços, serviços produtivos), também longo das décadas de 1950 a 70.
soa estranho, num país como o Brasil, falar-se abstratamente em Foi em meados dos anos 80, ao final da ditadura militar, que
sociedade pós-industrial. Para não falar em fim do trabalho. esse padrão produtivo começou a sofrer as primeiras alterações.
Nesse texto, de introdução ao presente volume, queremos tão Embora seus traços mais genéricos estejam ainda vigentes, foi
somente indicar alguns traços particulares e singulares da nossa possível presenciar algumas mutações organizacionais e tecnológi­
reestruturação produtiva do capital, através da exemplificação de cas no interior do processo produtivo e de serviços, num ritmo
alguns ramos e setores. Nos diversos textos que compõem a Cole­ inicialmente muito mais lento do que aqueles experimentados pelos
tânea, os leitores poderão encontram um quadro bastante amplo da países centrais. O Brasil, sob o fim da ditadura militar e no período
reestruturação do capital, bem como das formas multifacetadas, Sarney, nos anos 80, ainda se encontrava relativamente distante do
polissêmicas e heterogêneas de resistência que emerge do trabalho, processo de reestruturação produtiva do capital e do projeto neoli­
que certamente ajudarão bastante para uma melhor compreensão beral, já em curso acentuado nos países capitalistas centrais. Mas
das novas configurações no mundo do trabalho e seus embates no também já sofria os primeiros influxos da nova divisão internacio­
Brasil recente. Reestruturação produtiva que, na particularidade do nal do trabalho. Sua singularidade, dadas por um país de capita­
capitalismo brasileiro, comporta elementos de continuidade e des­ lismo hipertardio, fora afetada pelos novos traços universais do
continuidade, conforme veremos a seguir. sistema global do capital, redesenhando uma particularidade bra-

Idéias, Campinas, 9(2)/10(l):13-24, 2002-2003 ldéias, Campinas, 9(2)/10(l): 13-24, 2002-2003


16 Anotações sobre o capitalismo recente e a reestruturação produtiva no Brasil Ricardo Antunes 17

sileira diferenciada, ao menos em alguns aspectos, frente à estrutu­ gados, surgimento dos CCQ’s (Círculos de Controle de Qualida­
ração anteriormente existente. (Antunes, 2002 e 1997) de) e dos sistemas de produção just-in-time e kanban, dentre os
Foi nessa década de 80 que ocorreram os primeiros impulsos do principais elementos.
processo de reestruturação produtiva em nosso país, levando as Durante a segunda metade de década de 1980, com a recupera­
empresas a adotarem, inicialmente de modo restrito, novos padrões ção parcial da economia brasileira, ampliaram-se as inovações tec­
organizacionais e tecnológicos, novas formas de organização social nológicas, através da introdução da automação industrial de base
(e sexual) do trabalho. Observou-se a utilização inicial da informa­ microeletrônica nos setores metal-mecânico, automobilístico, petro­
tização produtiva, principiaram-se os usos do sistema just-in-time, químico e siderúrgico. No setor automobilístico pode-se verificar a
germinava a produção baseada em team work, nos programas de instalação de novas linhas, destinadas à produção de novos veículos,
qualidade total, ampliando também o processo de difusão da mi- que coexistiam com as antigas linhas de montagem, configurando
croeletrônica. Deu-se o início, ainda preliminarmente, dos métodos um grau relativamente elevado de diferenciação e heterogeneidade
denominados “participativos”, mecanismos que procuram o “en­ tecnológica e produtiva no interior das empresas, heterogeneidade
volvimento” (em verdade adesão e sujeição) dos trabalhadores e que será uma marca particular da reestruturação produtiva no Bra­
das trabalhadoras aos planos das empresas. sil. (Antunes, 2002, Alves, 2000 e Previtalli, 2002).
Iniciava-se, ainda de modo incipiente, o processo de liofilização Foi nos anos 1990, entretanto, que a reestruturação produtiva
organizacional, cujos determinantes foram: 1) a necessidade das do capital desenvolveu-se intensamente em nosso país, através da
empresas brasileiras buscarem sua inserção na “competitividade implantação de vários receituários oriundos da acumulação flexível
internacional”; 2) as imposições das empresas transnacionais que e do ideário japonês, com a intensificação da lean production, do
levaram à adoção, por parte de suas subsidiárias no Brasil, de novos sistema just-in-time, kanban, do processo de qualidade total, das
padrões organizacionais e tecnológicos, em alguma medida inspira­ formas de subcontratação e de terceirização da força de trabalho,
dos no toyotismo e nas formas flexíveis de acumulação; 3) a necessi­ daquilo que, seguindo Juan Jose Castillo, vimos denominado como
dade das empresas nacionais responderem ao avanço do novo sindi­ liofilização organizacional. (Castillo, in Antunes, 1999:52-59)
calismo e da rebeldia do trabalho, que procurava estruturar-se mais Do mesmo modo, verificou-se um processo de descentralização
fortemente nos locais de trabalho e que teve forte traço de confronta­ produtiva, caracterizada pela relocalização industrial, onde empre­
ção, desde as históricas greves do ABC paulista, no pós-78. (Antu­ sas tradicionais, como a indústria de calçados ou a indústria têxtil,
nes, 2002 e Alves, 2000). sob a alegação da concorrência internacional, iniciaram um movi­
Inicialmente, ainda nos primeiros anos da década de 80, a rees­ mento de mudanças geográfico-espaciais, buscando níveis mais
truturação produtiva caracterizou-se pela redução de custos através rebaixados de remuneração da força de trabalho, acentuando os
da redução da força de trabalho, de que foram exemplo os setores traços de superexploração do trabalho.
automobilístico e o de autopeças e, posteriormente, os ramos têxtil No setor calçadista, por exemplo, várias fábricas transferiram-se
e bancário, dentre outros exemplos. De modo sintético pode-se da região de Franca, no interior do estado de São Paulo, ou da região
dizer que a necessidade de elevação da produtividade ocorreu do Vale dos Sinos, no estado do Rio Grande do Sul, para estados do
através de reorganização da produção, redução do número de Nordeste, como o Ceará e Bahia. Indústrias consideradas modernas,
trabalhadores, intensificação da jornada de trabalho dos empre­ do ramo metal-mecânico e eletrônico, transferiram-se da Região da

Idéias, Campinas, 9(2)/10(l):13-24, 2002-2003 Idéias, Campinas, 9(2)/l 0(1): 13-24, 2002-2003
18 Anotações sobre o capitalismo recente e a reestruturação produtiva no Brasil Ricardo Antunes 19

Grande São Paulo para áreas do interior paulista (São Carlos), ou rante os anos 80, teve uma tendência limitada e seletiva, foi partir
deslocaram-se para outras áreas do país, como o interior do Rio de da década seguinte que ele ampliou-se sobremaneira. (Antunes,
Janeiro (Resende), ou ainda para o interior de Minas Gerais (Juiz de 2002 e Alves, 2000).
Fora), ou outros estados como Paraná, Bahia, Rio Grande do Sul etc. Outro exemplo importante podemos encontrar no setor financei­
(Alves, 2000). Ainda nesta mesma década, no contexto da desregula- ro. Aqui também se pode presenciar intenso impacto em seu pro­
mentação do comércio mundial, a indústria automobilística brasileira cesso de reestruturação, sendo que os trabalhadores/as bancário/as
foi submetida a mudanças no regime de proteção alfandegária, sendo foram fortemente atingidos pelas mudanças no trabalho, funda­
reduzidas as tarifas de importação de veículos. (Previtalli, 1996). mentadas, principalmente, nas tecnologias de base microeletrônica
Desde então as montadoras vêm intensificando o processo de e em mutações organizacionais. Novas políticas gerenciais foram
reestruturação produtiva, através das inovações tecnológicas, in­ instituídas nos bancos, principalmente, através de seus programas
troduzindo robôs e sistemas CAD/CAM, envolvendo mudanças no de “qualidade total” e de “remuneração variável”. Conforme nos
lay-out das empresas, bem como através da introdução de mudan­ mostraram Jinkings (1995 e 2002) e Segnini (1998), a política de
ças organizacionais, envolvendo uma relativa desverticalização em concessão de prêmios de produtividade aos bancários que supera­
direção a uma certa horizontalização, com a consequente redução vam as metas de produção estabelecidas, acrescida do desenvolvi­
de níveis hierárquicos, implantação de novas fábricas de tamanho mento de um eficiente e sofisticado sistema de comunicação em-
reduzido e estruturadas com base em células produtivas e amplian­ presa-trabalhador bancário, através de jornais, revistas ou vídeos
do a rede de empresas terceirizadas. As unidades produtivas mais de ampla circulação nos ambientes de trabalho, bem como da am­
antigas e tradicionais, como a Volkswagem, Ford e da Mercedes- pliação do trabalho em equipe, tudo isso acarretou um significativo
Benz, situadas no ABC paulista, também desenvolveram um forte aumento da produtividade do capital financeiro, além de buscar
programa de reestruturação, visando sua adequação aos novos im­ também a “adesão” dos bancários às estratégias de autovalorização
perativos do capital, no que concerne aos níveis produtivos e tec­ do capital, reproduzidas nas instituições bancárias.
nológicos e às formas de “envolvimento” da força de trabalho. Como conseqüência das práticas flexíveis de contratação da
(Previtalli, 1996 e 2002). força de trabalho nos bancos (através da ampliação significativa da
Depois de um ensaio inicial significativo, mas estancado pela terceirização, da contratação de trabalhadores por tarefas ou em
crise que se abateu sob o governo Collor, foi com o Plano de Esta­ tempo parcial), vêm ocorrendo uma maior precarização dos empre­
bilização Econômica, denominado Plano Real, a partir de 1994, gos e dos salários, aumentando o processo de desregulamentação
sob o governo Fernando Henrique Cardoso, que os programas de do trabalho e de redução dos direitos sociais para os empregados
qualidade total, o sistema jiist-in-time e kanban, bem como a intro­ em geral e para os terceirizados em particular. (Jinkings, 2002 e
dução de ganhos salários vinculados à lucratividade e à produtivi­ Segnini, 1998).
dade das empresas, sob uma pragmática que se adequava forte­ Do ponto de vista do capital financeiro, essas formas de con­
mente aos desígnios neoliberais, encontraram uma contextualidade tratação permitem às empresas ganhos enormes de lucratividade,
propícia para o desmanche vigoroso da reestruturação produtiva, ao mesmo tempo em que atingem fortemente a capacidade de re­
da liofilização organizacional e do enxugamento empresarial. sistência dos bancários, fragmentando-os e dificultando sua orga­
Portanto, se o processo de reestruturação produtiva no Brasil, du­ nização sindical. Apoiados no incremento informacional, os pro-

Idéias, Campinas, 9(2)/10(l): 13-24, 2002-2003 Idéias, Campinas, 9(2)/10( 1): 13-24, 2002-2003
20 Anotações sobre o capitalismo recente e a reestruturação produtiva no Brasil Ricardo Antunes 21

gramas de ajustes organizacionais reduzem ao máximo a estrutura um aumento sem precedentes das Lesões por Esforços Repetitivos
administrativa e os quadros funcionais das instituições financeiras. (LER), que reduzem a força muscular e comprometem os movi­
Como conseqüência, foram desativados ou bastante reduzidos mentos daqueles que são portadores da doença.
grandes centros de computação, serviços e compensação de che­ Em contrapartida, os programas de “qualidade total” e de “re­
ques, ao mesmo tempo em que setores inteiros foram extintos nas muneração variável”, amplamente difundidos no setor, recriam
agências bancárias e centrais administrativas. Enquanto crescem estratégias de dominação do trabalho que procuram obscurecer e
em poderio econômico os grandes conglomerados financeiros pri­ nublar a relação capital e trabalho. Os trabalhadores bancários são
vados, com taxas de lucro enormes, o número de bancários no país constrangidos a tornam-se “parceiros”, "sócios”, “colaboradores”
reduziu-se de aproximadamente 800 mil no final dos anos 80 para do bancos e das instituições financeiras, num ideário e numa prag­
menos da metade em 2002. (Jinkings, 2002). mática que aviltam ainda mais a condição laborativa. (Jinkings,
Em relação à divisão sexual do trabalho, na medida em que se 2002)
desenvolviam os processos de automatização e flexibilização do
trabalho bancário, presenciou-se paralelamente um movimento de
feminização da categoria que, entretanto, não foi seguida por uma II
equalização quanto à carreira e salário entre homens e mulheres
nos bancos. Uma série de mecanismos sociais de discriminação - Esse processo de reestruturação produtiva (que exemplificamos
reproduzidos e intensificados nos ambientes de trabalho - vêm acima através dos setores automobilístico e bancário), mas que
estabelecendo relações de dominação e de exploração mais duras atingiu a quase totalidade dos ramos produtivos e/ou de serviços,
sobre o trabalho feminino, que vão se traduzindo em desigualdades acarretou também alterações significativas na estrutura de empre­
e segmentações entre gêneros. (Segnini, 1998 e Jinkings, 2002) gos no Brasil. Se durante a década de 1970, segundo Pochmann
As mudanças apontadas nas características pessoais e profissio­ (2000), no auge da expansão do emprego industrial, o Brasil che­
nais dos bancários são, portanto, expressões da reestruturação pro­ gou a possuir cerca de 20% do total dos empregos na indústria de
dutiva em curso e de seus movimentos de tecnificação e racionali­ transformação, 20 anos depois, a indústria de transformação ab­
zação do trabalho. Visando adequar sua força de trabalho às moda­ sorvia menos de 13% do total da ocupação nacional. Como re­
lidades atuais do processo produtivo, as instituições financeiras sultado do processo de reconversão econômica, registraram-se,
exigem uma “nova qualificação” para os trabalhadores do setor, segundo o autor, ao longo dos anos 90, novas tendências nas
que parece ter mais uma significação ideológica do que tecno- ocupações profissionais. Com “a mudança da dinâmica industrial
fiuncional. Conforme nos mostra Jinkings, num contexto de cres­ voltada para o mercado interno”, dada “a motivação dependente
cente desemprego e de aumento de formas precárias de contrata­ de maior inserção competitiva externa, a economia nacional co­
ção, os assalariados bancários são compelidos a desenvolver uma meçou a conviver, pela primeira desde os anos 30, com perda
formação geral e “polivalente”, na tentativa de manter seu vínculos absoluta e relativa de postos de trabalho na indústria de manufa­
de trabalho, sendo submetidos à sobrecarga de tarefas e a jornadas tura. Entre as décadas de 1980 e 1990, por exemplo, a economia
de trabalho extenuantes. Agravaram-se os problemas de saúde brasileira perdeu próximo a 1,5 milhões de empregos no setor de
destes trabalhadores/as nas últimas décadas e observou-se também manufatura”. (Pochmann (2000), idem).

Idéias, Campinas, 9(2)/10(l): 13-24, 2002-2003 Idéias, Campinas, 9(2)/l0(1): 13-24, 2002-2003
22 Anotações sobre o capitalismo recente e a reestruturação produtiva no Brasil Ricardo Antunes 23

Paralelamente à retração do emprego industrial, entre as déca­ produtiva industrial e de serviços no país, ele também mescla-se
das de 1970 e 1990, os serviços aumentaram, em média, 50% sua com novos processos produtivos, conseqüência da liofilização
participação relativa na estrutura ocupacional, sendo em boa medi­ organizacional, dos mecanismos da acumulação flexível e das
da direcionadas para o setor informal, que incorporou parcelas práticas toyotistas que foram (parcialmente) assimiladas no setor
expressivas de trabalhadores, sobretudo no comércio, comunica­ produtivo brasileiro.
ções e transportes. Ainda segundo o autor: “Na década de 1990, os Se é verdade que a baixa remuneração da força de trabalho -
serviços passaram a absorver mais postos de trabalho, sem com­ que se caracteriza como elemento de atração para o fluxo de capital
pensar, entretanto, a destruição dos empregos verificada tanto no externo produtivo em nosso país - pode se constituir, em alguma
campo quanto na indústria. Atualmente, o aumento do desemprego medida, em alguns ramos produtivos, como elemento obstaculiza-
aberto reflete justamente a incapacidade da economia brasileira dor do avanço tecnológico em nosso país, devemos acrescentar,
para gerar expressivos postos de trabalho, não obstante o setor de por outro lado, que a combinação obtida através da superexplora-
serviços continuar absorvendo uma parte dos trabalhadores que ção da força de trabalho com padrões produtivos tecnologica­
anualmente ingressam no mercado de trabalho ou que são demiti­ mente mais avançados, constitui-se em elemento central, no verda­
das dos setores industrial e agro-pecuário”. (idem). deiro discreto charme do capitalismo brasileiro. Isto por que, para os
Se, em 1999, o Brasil estava em terceiro lugar em volume de capitais (nacionais e transnacionais) produtivos, interessa a confluên­
desemprego aberto, representando 5,61% do total do desemprego cia entre força de trabalho "qualificada", “polivalente”, multifun­
global (sendo que sua população economicamente ativa represen­ cional”, preparada para operar com os equipamentos informacio-
tava 3,12% da PEA mundial), em 1986, esse índice encontrava-se nais, percebendo, porém, salários bastante dilapidados, sub-
em 13° lugar no desemprego global, representando 2,75% da PEA remunerados, em patamares muito inferiores àqueles alcançados
global e 1,68% do desemprego mundial. (Pochmann, 2000 e 2001). pelos trabalhadores nas economias avançadas. E, vale acrescentar,
Portanto, a partir dos anos 90, com a intensificação do processo vivenciando condições de trabalho fortemente precarizadas. Viven-
de reestruturação produtiva do capital no Brasil, sob a condução ciando condições que se aproximam do avesso do trabalho.
política em conformidade com o ideário e a pragmática definidas
* * *
no Consenso de Washington e aqui seguidas pelos governos Collor
e FHC, presenciamos várias transformações, configurando uma
realidade que comporta tanto elementos de continuidade como de Os textos seguintes, que compreendem este volume duplo da
descontinuidade em relação às fases anteriores. O que permite Revista Idéias, em seu sentido polimorfo e multiforme, nos ofere­
supor que no estágio atual do capitalismo brasileiro combinam-se cem um panorama presente nos diversos setores e ramos produti­
processos de enorme enxugamento da força de trabalho, acrescido vos, que auxiliam na compreensão do desenho atual do capitalismo
às mutações sócio-tecnicas no processo produtivo e na organização brasileiro e de sua reestruturação produtiva, com um olhar atento
social do trabalho. A flexibilização, a desregulamentação, a tercei­ para as formas modernas (e pretéritas) de precarização do trabalho,
rização, as novas formas de gestão da força de trabalho etc., estão bem como fotografam, com bela sensibilidade, as formas cotidia­
presentes em grande intensidade, indicando que o se o fordismo nas da ação, resistência e rebeldia do trabalho, tanto nas cidades
parece ainda dominante quando se olha o conjunto da estrutura como nos campos.

Idéias, Campinas, 9(2)/10( 1): 13-24, 2002-2003 Idéias, Campinas, 9(2)/l0(1): 13-24, 2002-2003
24 Anotações sobre o capitalismo recente e a reestruturação produtiva no Brasil

Bibliografia

ALVES, Giovanni. (2000). O novo e precário mundo do trabalho,


São Paulo: Ed. Boitempo.
ANTUNES, Ricardo. (1995). Adeus ao trabalho? Ensaio sobre as
metamorfoses e a centralidade do mundo do trabalho. São
Paulo: Ed. Cortez/Ed. Unicamp.
____________________(org.) (2002). Neoliberalismo, trabalho e
sindicatos: reestruturação produtiva no Brasil e Inglaterra.
São Paulo: Ed. Boitempo.
__________________ . (1999). Os sentidos do trabalho. Ensaio
sobre a afirmação e a negação do trabalho. São Paulo: Ed.
Boitempo.
__________________ (1995). O Novo Sindicalismo no Brasil.
Campinas: Ed. Pontes.
JINKINGS, Nise. (1995). O mister de fazer dinheiro, São Paulo:
Ed. Boitempo.
______________ (2002). Trabalho e resistência na fonte misterio­
sa, Campinas: Ed. Unicamp.
LOJKINE, Jean. (1995). A revolução informacional, São Paulo,
Ed. Cortez.
POCHMANN, Marcio. (2001) O emprego na globalização, São
Paulo: Ed. Boitempo.
____________________.(2000). “Nova Divisão Internacional do
Trabalho e as Ocupações no Brasil”, Unicamp, mimeo.
PREVITALLI, F. S. (1996). Reestruturação Industrial: Um estudo
de caso sobre o processo de subcontratação nos níveis infe­
riores da cadeia produtiva do setor automobilístico. Disserta­
ção de Mestrado. UNICAMP/IFCH, Campinas.
_________________. (2002). Controle e resistência na organiza­
ção do trabalho no setor automotivo. Tese de Doutorado.
UNICAMP/IFCH, Campinas.
SEGNINI, Liliana. (1998) As mulheres no trabalho bancário,
Edusp, São Paulo.

Idéias, Campinas, 9(2)/10(l): 13-24, 2002-2003

You might also like