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Volume 3 | Número 2 | Ano 2021

ISSN 2596-268X

DESENVOLVIMENTO COGNITIVO: SEUS FUNDAMENTOS CULTURAIS E


SOCIAIS (ALEXANDER ROMANOVICH LURIA)
COGNITIVE DEVELOPMENT: ITS CULTURAL AND SOCIAL FOUNDATIONS
(ALEXANDER ROMANOVICH LURIA)

Rafael Fonseca de Castro1

RESUMO

Esta resenha se refere a uma das obras de Alexander Luria de maior incidência
entre pesquisadores, psicólogos e educadores brasileiros. Contudo, sua obra
ainda é pouco referenciada no Brasil, seja em pesquisas ou em projetos
educacionais, o que justifica a publicação desta resenha e de outros
referenciais do autor. Sua primeira edição publicada na então União Soviética
data de 1974, sendo a versão aqui resenhada, a oitava edição brasileira, pela
Editora Ícone, traduzida da versão estadunidense original de 1976. Na
presente resenha, são abordadas todas as suas partes em formato de síntese,
com foco nos objetivos de cada etapa da pesquisa liderada por Luria à Ásia
Central, problematizando sobre seus principais achados e sobre algumas das
críticas recebidas.
Palavras-Chave: Desenvolvimento cognitivo; Fundamentos culturais e
sociais; Luria; Teoria Histórico-Cultural.
ABSTRACT

This review refers to one of Alexander Luria's works with the highest incidence
among Brazilian researchers, psychologists and educators. However, his work
is still not much referenced in Brazil, whether in research or in educational
projects, which justifies this review publication and other ones by the author. Its
first edition published in the Soviet Union is dated from 1974, and the version
here reviewed, the eighth Brazilian edition, by Icone Publishing company,

1 Universidade Federal de Rondônia – UNIR. Email: castro@unir.br


Revista Brasileira da Pesquisa Sócio-Histórico-Cultural e da Atividade
Brazilian Journal of Socio-Historical-Cultural Theory and Activity Research

translated from the original US version of 1976. In this review, all its parts are
addressed in synthesis format, focusing on the objectives of each stage of the
research led by Luria to Central Asia, discussing its main findings and some of
the criticisms received.
Keywords: Cognitive development; Cultural and social foundations;
Luria; Cultural-Historical Theory.

RESENHA

O neuropsicólogo russo Alexander Romanovich Luria (1092-1977)


costuma ser mais conhecido no Brasil como um colaborador de Vygotsky
(1896-1934), mas sua contribuição vai muito além dessa simplista
caracterização, sendo responsável por pesquisas inovadoras, muitas das quais
publicadas em mais de uma dúzia de livros e em mais de 100 artigos
científicos, culminando em algo próximo de 300 trabalhos (SHUARE, 2017).
Na opinião de Shuare (2017), Luria é, provavelmente, o psicólogo
soviético com maior publicação no exterior, com seus trabalhos traduzidos para
muitos idiomas. A obra de Luria é caraterizada por Shuare (2017) pela ligação
interna estreita entre os temas estudados, pela sua amplitude extraordinária e
por manter, na investigação de todos os temas que tratou, uma concepção bem
definida sobre a natureza da psiquê e sobre a Psicologia como Ciência.
Contudo, sobre o conhecimento de sua obra entre estudiosos
brasileiros, Oliveira e Rêgo (2010, p. 107) destacam que “sua criatividade como
investigador, valorizada na Psicologia, Neurologia e Linguística é ainda pouco
conhecida entre os pesquisadores do campo educacional brasileiro”. Torna-se
imperativo, visto suas importantes contribuições ao campo educacional, a
divulgação de suas obras, principalmente, aquelas que já possuem edições
publicadas em língua portuguesa, mesmo passados mais de dez anos desde a
afirmação pelas autoras acima.
O livro “Desenvolvimento Cognitivo: seus fundamentos culturais e
sociais”, já em sua oitava edição no Brasil, pela Editora Ícone, propicia uma
maior aproximação dos pesquisadores brasileiros com sua obra, tendo em vista
que a primeira edição no Brasil é de 1990. Trata-se de uma tradução da edição
estadunidense de 1976 (LURIA, 1976) e não da original russa, publicada na
antiga União Soviética em 1974. A pesquisa foi publicada mais de 40 anos
depois de concluído o estudo empírico sobre o qual se fundamenta, como
explicam Yasnitsky e Van Der Veer (2016), em função de mecanismos
institucionais criados no período pós-revolucionário, por meio de políticas

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stalinistas de controle total da produção científica. E como Michael Cole explica


logo no prefácio do livro, tratar das minorias nacionais na então União Soviética
era assunto delicado na época da realização do estudo, já que se buscava a
integração de todos os povos no regime socialista e industrializado. Não havia,
portanto, um clima favorável à investigação de diferentes modalidades de
funcionamento intelectual presentes em diferentes grupos sociais – e a
pesquisa de Luria se dirige justamente a essa questão.
O livro publicado no Brasil conta com um prefácio do próprio Luria, com
um Prólogo de Michael Cole e está dividido em oito partes: 1. O Problema; 2.
Percepção; 3. Generalização e abstração; 4. Dedução e inferência; 5.
Raciocínio e solução de problemas; 6. Imaginação; 7. Auto-análise e
autoconsciência e; 8. Conclusão; além da Bibliografia.
Nesta resenha, abordo, em formato de síntese, cada uma de suas
partes, com foco nos objetivos de cada etapa da pesquisa liderada por Luria e
seus principais achados. Evitando um caráter laudatório, ou somente descritivo
da obra, mas sempre com a preocupação de não ultrapassar os limites do que
se convenciona na academia para uma resenha de livro, trago alguns dos
estudos que criticam partes dos experimentos de Luria publicados na referida
obra.
Inicialmente, cabe contextualizar a pesquisa sobre a qual o livro se
baseia. E nada melhor que o próprio Luria para o fazê-lo:
A história deste livro é um pouco fora do comum. Todo o seu
material de observações foi coletado nos anos de 1931 e 1932,
durante a restruturação radical da União Soviética: a
eliminação do analfabetismo, a transição para uma economia
coletivista e o realinhamento da vida pelos novos princípios
socialistas [...] O programa experimental descrito neste livro foi
concebido como resposta a esta situação e a partir de uma
sugestão de Vygotsky [...] Fizemos nossas pesquisas nas
regiões mais remotas do Uzbequistão e Kirghizia, nas
“kishlaks” (vilarejos) e “dzahailaus” (terras de pastoreio nas
montanhas) (LURIA, 2017, p. 7).

No Prefácio, após contextualizar os desafios da pesquisa empreendida,


Luria alerta sobre a apresentação desigual das partes que compõem o livro e
agradece seus diversos colaboradores, em especial, Vygotsky: “[t]enho uma
dívida profunda para com meu mestre e amigo L. S. Vygotsky (cuja morte
ocorreu logo após a conclusão deste trabalho)” (LURIA, 2017, p. 9). No
Prólogo, Michael Cole apresenta uma síntese da vida, da obra de Luria e um
“pouco do clima intelectual e social da época em que Alexander Luria, ainda
jovem, partiu para a Ásia Central” (Ibid, p. 11). Prefácio e Prólogo são leituras

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prévias obrigatórias do livro para uma efetiva compreensão de suas partes


subsequentes.
Em “O Problema”, seção que abre o livro, Luria remonta às
necessidades de uma nova ciência psicológica e de estudos que levassem em
conta a constituição histórica e cultural (política e econômica) dos sujeitos
investigados, pois a Psicologia, até então, “procurou leis para a atividade
mental dentro do organismo” (Ibid, p. 18). Luria perpassa conquistas da ciência
psicológica em uma síntese de seu desenvolvimento se referindo a eminentes
psicólogos, filósofos e sociólogos marcantes entre o fim do século XIX até a
metade do século XX. Na sequência, apresenta uma breve problematização do
que intitulou “a evolução sócio-histórica da mente”, as premissas iniciais, a
situação, os procedimentos e o plano da pesquisa empreendida nos anos de
1931 e 1932. Para Luria, o plano desenvolvido e a pesquisa realizada
permitiram uma demonstração das alterações psicológicas fundamentais que
ocorreram na consciência humana durante um realinhamento revolucionário
vigoroso da história social da então União das Repúblicas Socialistas
Soviéticas: “o desenraizamento rápido de uma sociedade de classes e a
convulsão cultural que criou perspectivas de desenvolvimento da sociedade
jamais imaginadas” (Ibid, p. 35).
Na seção 2, Luria aborda a “Percepção”, justificando que a análise de
aspectos da percepção forneceria evidências claras da formação histórica dos
processos psicológicos. Para ele, “a percepção é uma atividade cognitiva
complexa que emprega dispositivos auxiliares e envolve uma participação
íntima da linguagem” (Ibid, p. 38). Foram realizados procedimentos de
percepção relacionados a grupos de cores e de formas completas e
incompletas. Um total de 58 pessoas participou, de diferentes grupos
populacionais e com qualificações educacionais e experiências de vida
diversificadas: Mulheres ichkari (analfabetas), Homens camponeses
(analfabetos), Ativistas das fazendas coletivas, Mulheres estudantes em cursos
pré-escolares (semialfabetizadas) e Mulheres das escolas de professores
(recém alfabetizadas).
Os dados desses procedimentos mostraram que, “mesmo processos
relativamente simples, envolvendo a percepção de cores e de formas
geométricas, dependem consideravelmente da experiência prática dos sujeitos
e de seu ambiente cultural” (Ibid, p. 63). Para Luria (2017), os dados sugerem
que as conclusões das investigações da época, sobre percepção de cor e
forma, aplicavam-se somente aos indivíduos formados com influências culturais
e acadêmicas, isto é, a pessoas com um sistema de códigos conceituais para

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os quais tais percepções estão adaptadas. De acordo com Luria e seus


colaboradores, em outras condições sócio-históricas, nas quais a experiência
de vida é basicamente determinada pelas experiências práticas, sem qualquer
efeito de escolarização, o processo de codificação é diverso porque a
percepção de cor e de forma se adapta a um sistema diferente de experiências
práticas, sendo designada por um sistema diferente de termos semânticos e
estando sujeita a leis diferentes.
Para a pesquisa sobre “Generalização e abstração”, descrita na terceira
seção do livro, Luria explica que a “classificação categorial implica pensamento
verbal e lógico complexo que explora o potencial da linguagem de formular
abstrações e generalizações para selecionar atributos e subordinar objetos a
uma categorial geral” (Ibid, p. 65).
Os experimentos relativos a essa parte da pesquisa foram conduzidos
em condições informais – mais frequentemente, em uma casa de chá, onde,
após longas conversas sem compromisso com os sujeitos, discutia-se o
material do teste como se fosse um jogo. Essa forma de conduzir a
investigação revolucionou não apenas as pesquisas no campo da Psicologia e
do desenvolvimento humano, mas contribuiu fortemente para caracterizar o
que conhecemos sobre pesquisa etnográfica aplicada a diversos campos das
ciências sociais e psicológicas. Na concepção de Luria, “[o]uvir o sujeito
analisar sua própria solução, bem como a de um “alguém” hipotético, revelava
mais coisas a respeito dos processos psicológicos que determinaram suas
respostas” (Ibid, p. 72).
No procedimento junto aos participantes, apresentava-se a eles
desenhos de quatro objetos, três pertencentes a uma categoria e um quarto a
outra. Luria e sua equipe selecionaram objetos a serem classificados de tal
modo que poderiam ser agrupados de acordo com um de dois princípios: “(a)
referência a uma categoria taxonômica e (b) participação em uma situação
prática. O grupo de objetos (um clássico dos estudos da Teoria Histórico-
Cultural), composto por um martelo, uma serra, uma tora e um machado
cumpria com esses requisitos, segundo Luria (2017). Dos resultados obtidos,
Luria destaca que os sujeitos não alfabetizados substituíam uma tarefa teórica
por uma prática, reproduzindo relações práticas entre os objetos apresentados:
Eles não viam necessidade de comparar e agrupar objetos em
termos abstratos e subordiná-los a categorias específicas [...]
Reproduziam procedimentos retirados de sua experiência
diária de trabalho. Consequentemente, agrupavam os objetos
de maneira estritamente idiossincrática, reconstruindo uma
situação gráfica na qual os objetos pudessem funcionar juntos
(LURIA, 2017, p. 73).

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No livro, nesta seção, Luria ainda divulga resultados específicos


relativos a “Testes de detecção de semelhança”, “Testes sobre definição de
conceitos” e sobre “O significado de termos genéricos”. Como resultados
gerais, Luria concluiu que o material examinado demonstra as modalidades de
generalizações que caracterizam o pensamento de pessoas que foram
moldados por condições sociais, econômicas e culturais diferentes das nossas;
e que as evidências reunidas indicam que os processos utilizados para
apresentar abstrações e generalizações não assumem uma forma invariável
em todos os estágios do crescimento mental. Esses processos são, eles
próprios, produtos do desenvolvimento socioeconômico e cultural.
Mello (2001), em contraposição às avaliações de Luria e seus
colaboradores para essa parte do estudo, entende que foi utilizada o que
intitula monovalência da palavra, pois, para Luria, o significado literal da
palavra “ferramenta” deveria estar relacionado unicamente com a sua função
como “categoria” e dentro de somente uma única possível significação
categorial – digamos, instrumentos de metal que servem para o trabalho. Para
Mello (2001), se a cultura é produzida historicamente pela ação dos seres
humanos no mundo, e se a cognição é relativa a essas ações e relações,
relegar às experiências imediatas o papel de algo que limita é, em si,
contraditório com a perspectiva assumida – sócio-histórica –, a menos que
outros fatores entrem em jogo nessa avaliação. Frente ao grupo categorial
exposto no estudo, na opinião de Mello (2001), observa-se a penetração do
raciocínio categórico solicitado pelo pesquisador, mas também vemos que um
conceito foi construído de modo a justificar e a amparar o seu ponto de vista,
legitimando-o diante do entrevistado.
A seção 4 aborda dados sobre “Dedução e Inferência”, após Luria e sua
equipe tentarem analisar a estrutura psicológica desses processos e as
mudanças estruturais que ocorrem quando as formas de atividade das pessoas
participantes são reestruturadas. Para Luria,
uma pessoa capaz de um pensamento abstrato reflete o
mundo externo mais profunda e completamente e chega a
conclusões e inferências a respeito do fenômeno percebido,
tomando como base não só a sua experiência pessoal, mas
também os esquemas de pensamento lógico que
objetivamente se formam em um estágio avançado do
desenvolvimento da atividade cognitiva (LURIA, 2017, p. 135).

Os primeiros experimentos nesse sentido tinham a intenção de mostrar


como o processo de inferência, a partir de silogismos, ocorria. Era apresentado

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aos sujeitos um silogismo completo, incluindo as premissas maior e menor.


Solicitava-se, então, que repetissem o sistema inteiro para determinar se
haviam percebido componentes como partes de um único esquema lógico ou
como julgamentos isolados. A equipe também realizou experimentos sobre
Repetição de silogismos e sobre o Processo de dedução.
Para os sujeitos analfabetos, de acordo com Luria (2017), os processos
de raciocínio de dedução, associados à experiência prática imediata, seguiram
regras bem conhecidas, pois esses sujeitos fizeram julgamentos excelentes
sobre fatos que lhes diziam respeito diretamente, podendo chegar a todas as
conclusões que eles implicavam. Mas esse quadro se modificou quando eles
precisavam mudar para um sistema de pensamento teórico: frequentemente,
os sujeitos ignoravam todas as premissas, continuando a raciocinar somente a
partir da experiência imediata; revelou-se, também, uma não-aceitação dos
sujeitos à universalidade das premissas e; ainda, os sujeitos não tinham mais
nada a fazer a não ser tentar responder à questão através de adivinhação ou
recorrer à experiência concreta, imediata. Esses dados são oriundos dos
sujeitos cuja atividade cognitiva foi formada a partir da experiência e não por
meio de instrução sistemática ou de formas mais complexas de comunicação.
Os outros sujeitos, semialfabetizados ou alfabetizados, mostraram um quadro
diferente: eles podiam aceitar as premissas iniciais do silogismo como base
para o raciocínio seguinte e podiam captar a sua universalidade; os
julgamentos, inicialmente feitos em um contexto familiar, eram gradualmente
“transferidos” para áreas independentes, assumindo os aspectos comuns da
dedução abstrata verbal e lógica. “À medida que os pensamentos teóricos se
desenvolvem, o sistema [cognitivo] se torna cada vez mais complexo” (Ibid, p.
136).
Outra vez, Mello se mostra contrária às conclusões de Luria ao destacar
a transcrição da entrevista de Abdurakhm:
Em ambas as falas ela responde adequadamente,
considerando os critérios definidos por Luria, embora o tema
central de sua fala não seja a intenção de responder, mas sim
de afirmar uma tese, que inferimos ser: “é preciso ver para
dizer”. A fala do entrevistador é insistentemente a mesma:
solicitar de Abdurakhm uma ação – responder baseada nas
palavras das premissas – que ela, de forma complexa, recusa
e justifica, afirmando sua tese. A nosso ver, em sua justificativa,
há indícios que sugerem que sua “incapacidade” de responder
está mais ligada a fatores culturais do que cognitivos (se
entendermos o termo no seu estrito senso) (MELLO, 2001, p.
104).

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Mas a hipótese basilar de Luria não é a de que são justamente os


fatores culturais que afetam os cognitivos? Que não são justamente essas
formas culturalmente distintas de pensar que levam a mudanças cognitivas?
Mello (2001) não visualiza dessa forma esse momento da pesquisa e
argumenta de forma contrária à Luria. A autora lembra que Abdurakhm (e
também Khamrak) são pessoas que viveram toda a sua vida num vilarejo
isolado de Kashgar, o qual se caracterizava pela cultura oral, sendo assim,
podemos pensar sobre o papel das palavras nessa cultura, como forma básica
de relacionamento interpessoal e de conhecimento: a palavra tem peso de
responsabilidade, e é critério de verdade. A falsa palavra, nesse contexto,
corresponde a falta grave. Talvez, por isso, a dificuldade de Abdurakhm e seus
companheiros em formular um juízo que, a seu ver, parece “descalçado”,
porque baseado unicamente nas palavras de um “estranho”.
Na seção 5, Luria apresenta e discute procedimentos e principais
resultados dos experimentos sobre “Raciocínio e Solução de Problemas”.
Segundo Luria (2017), em muitos aspectos, a resolução de problemas é uma
capacidade que envolve um modelo de processos intelectuais complexos.
Nesse ponto do livro, os resultados dos testes apresentados são seguidamente
relacionados a atividades escolares, como quando Luria explica que “cada
problema escolar conhecido se resume a uma estrutura psicológica complexa
na qual o objetivo final (formulado com o problema da questão) é determinado
por condições específicas” (Ibid, p. 157). Para Luria, ao tentar resolver um
problema escolar, “o estudante cria um esquema geral lógico que determina o
rumo para a próxima investigação. Tal esquema, por sua vez, determina a
tática de raciocínio e a escolha das operações que podem levar à tomada de
decisão” (Ibid, p. 157). A defesa da Educação formal, por Luria, é enfatizada na
passagem abaixo:
Somente através da educação formal e a criação simultânea de
“atividades teóricas” especiais a situação poderia mudar e os
processos de resolução de problemas se tornariam uma
atividade discursiva independente, assumindo formas similares
às formas comuns do pensamento verbal, lógico e discursivo
que podemos detectar nas crianças em idade escolar (LURIA,
2017, p. 158).

Como resultados dos testes de Solução de Problemas Simples, é


interessante destacar que os sujeitos que viviam em vilas distantes e não
haviam sido influenciados pela instrução escolar eram incapazes de resolver os
problemas mais simples. Conforme arguiu Luria (2017), a dificuldade básica
estava em abstrair as condições do problema da experiência prática

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irrelevante, em raciocinar dentro dos limites de um sistema lógico fechado e em


derivar a resposta apropriada de um sistema de raciocínio determinado pela
lógica do problema e não da experiência gráfica prática.
Entre os 16 camponeses analfabetos de vilarejos isolados, doze
conseguiram resolver os Problemas Simples e apenas três resolveram os
Problemas Conflitantes apresentados, sendo que nenhum deles conseguiu
resolver nenhum Problema de forma imediata; enquanto os sete jovens com
alguma educação formal resolveram todos os Problemas Simples e todos os
Problemas Conflitantes. Cabe destacar uma das mais importantes conclusões
de Luria sobre essa parte do estudo: “a significância da escolaridade está não
somente na aquisição de novos conhecimentos, mas também na criação de
novos motivos e modos formais de pensamento verbal, discursivo e lógico
divorciado da experiência prática” (LURIA, 2017, p. 178).
A seção 6 aborda a “Imaginação”. Quais são as características
psicológicas da imaginação nos diferentes estágios de desenvolvimento social
e histórico? Para Luria (2017), até então, não havia meios confiáveis para
fornecer resposta completa a essa questão. Essa resposta se trata, ao mesmo
tempo, de uma justificativa sobre as limitações dos diversos estudos realizados
na época, como, também, dos dados apresentados nessa seção da própria
investigação de Luria.
Luria (2017) escreveu que não foi a tarefa dessa parte do experimento
estudar as formas de imaginação acessíveis apenas às pessoas altamente
capacitadas, como contadores de histórias e akyns (poetas ou cantores
populares), mas, antes, aquelas formas que caracterizam qualquer pessoa
comum cuja experiência prática fosse típica de um dado contexto histórico.
Aqui, reside mais um grau de inovação para pesquisas sobre o
desenvolvimento cognitivo humano, explicado pelo próprio Luria:
Desenvolvemos uma série adequada de observações,
compreendendo bem as limitações de um método
excessivamente simplificado e da natureza limitada das
conclusões a que poderíamos chegar. O procedimento, de
certo modo, representa o reverso de uma abordagem com
questionário: os próprios sujeitos eram solicitados a fazer
quaisquer três perguntas ao experimentador (LURIA, 2017, p.
183).

Frente a esse procedimento diferenciado, inclusive, de todo o resto do


estudo empreendido por Luria na Ásia Central, mesmo no que chamou de
“método excessivamente simplificado”, chamou a sua atenção a considerável
dificuldade dos camponeses analfabetos: cerca de 1/3 deles se recusou a

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levantar qualquer questão. Eles afirmavam, relatou Luria (2017), que não
sabiam o que perguntar e que “conheciam apenas o seu trabalho” (p. 183):
Mesmo quando a tarefa era restrita e lhes era dito que os
entrevistadores eram de Moscou e sugerido que eles
perguntassem sobre a vida em outras cidades, diziam que
“nunca haviam estado em lugar nenhum” ou “como você
poderia perguntar sobre cidades que você nunca tinha visto?”
[...] Eles demonstravam uma capacidade limitada para formular
ativamente qualquer questão (Ibid, p. 193).

Essa etapa da pesquisa revelou falas marcantes dos participantes, como


de Burkhash, um kirghiz analfabeto da região de Uch-Kurgan: “Eu não posso
imaginar sobre o que perguntar. Eu apenas sei do trabalho pesado, nada
mais... Para fazer questões você precisa de conhecimento, e nós só
arrancamos mato nos campos. Seria melhor você perguntar” (Ibid, p. 184).
Para Luria (2017), não seria correto concluir, com base nas transcrições, que
esses sujeitos não tinham interesse por coisa nenhuma, pois eles revelaram
interesse ativo por suas experiências pessoais diretas. No entanto, eles
acabavam se mantendo dentro de uma estrutura “imaginativa” reproduzida
quase que, exclusivamente, vinculada a suas experiências práticas imediatas e
apresentando acentuada dificuldade em se libertarem dessas experiências e
de formular questões que pudessem ir além delas.
Por outro lado, os sujeitos que haviam sido submetidos a um curto
período de instrução sistemática, e estavam ativamente envolvidos na vida das
fazendas coletivas, formulavam questões sem hesitação e sem o recurso de
qualquer situação hipotética imaginária como ajuda. Suas questões, também
destacou Luria (2017) apresentavam um conteúdo muito mais amplo. Eram
questões de conhecimentos relacionados a problemas urgentes da vida social,
mostrando-se diretamente relacionadas ao conhecimento adquirido ou
associadas a interesses cognitivos estáveis vinculados ao trabalho coletivo ao
qual estavam fortemente envolvidos desde a sua implantação. Para Luria
(2017), esses dados confirmam que a vida mental desses sujeitos mudou
radicalmente devido ao trabalho social coletivo e a, pelo menos, alguma
instrução formal sistemática recebida – o que evidencia fortemente reflexos da
Revolução de 1917 na vida dessas pessoas, inclusive, do ponto de vista do
seu desenvolvimento intelectual.
“Auto-análise e Autoconsciência” é a temática abordada na seção 7 do
livro e o interesse principal dos experimentos que produziram os dados
apresentados nessa seção residia nas atividades mentais superiores e mais
complexas, nas quais a influência modeladora da experiência social pode ser

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particularmente marcada. A hipótese inicial de Luria era de que os processos


de percepção das próprias qualidades, a autoanálise e a autoavaliação, são
moldadas pelas condições de existência social.
Mais uma vez, Luria salienta que o método da pesquisa foi simples: ao
longo de uma conversa, perguntava-se aos sujeitos como avaliavam o seu
próprio caráter, de que forma eles se diferiam de outras pessoas e que traços
positivos e dificuldades poderiam discernir neles mesmos. “Esperávamos ser
capazes de comparar dados obtidos em conversas com sujeitos de diferentes
grupos que haviam experimentado diferentes formas de comunicação e
diferentes níveis de Educação” (Ibid, p. 195). Participaram 52 sujeitos dessa
série de estudos, dos quais: 20 eram do primeiro grupo (camponeses
analfabetos de vilarejos remotos); 15 eram do segundo (membros ativos das
fazendas coletivas) e; 17 do terceiro grupo (estudantes de escolas técnicas ou
pessoas com, pelo menos, um ou dois anos de Educação formal).
Em geral, descreveu Luria (2017), os sujeitos do primeiro grupo
fracassaram na tarefa, pois, normalmente, ou se recusavam a mencionar
qualidades positivas e negativas deles próprios ou lidavam com a questão
descrevendo apenas aspectos concretos e materiais de sua vida. As conversas
com o segundo grupo continuaram a girar em torno das necessidades materiais
ou de circunstâncias pessoais. Contudo, as pessoas desse grupo mostraram
uma tendência mais pronunciada em analisar suas próprias características de
acordo com a avaliação dos outros e uma tentativa de avaliá-las sob os seus
próprios pontos-de-vista. De acordo com Luria (2017), o papel da avaliação
social, sob influência da qual a autoavaliação se estrutura, vem a ser mais e
mais preponderante. No terceiro grupo, a autoanálise envolve avaliações
externas do trabalho social da própria pessoa e de qualidades e situações
envolvidas na tentativa de avaliar as qualidades humanas, diferindo
radicalmente daquelas referenciadas pelos outros grupos. Há, também, uma
análise mais refinada das formas de comportamento, levando gradualmente à
análise de propriedades internas da personalidade humana.
Luria (2017) conclui essa seção chamando atenção para o fato de
estarem lidando, durante a pesquisa, com mudanças muito mais fundamentais:
a formação de novos sistemas psicológicos, capazes de refletirem não apenas
a realidade externa, mas, também, o mundo das relações sociais e o mundo
interior da própria pessoa enquanto moldado em relação a outras pessoas.
Como “Conclusão”, Luria aponta que os fatos demonstraram, de
maneira convincente, que a estrutura da atividade cognitiva não permanece
estática ao longo das diversas etapas do desenvolvimento histórico e as

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formas mais importantes de processos cognitivos – percepção, generalização,


dedução, raciocínio, imaginação e autoanálise da vida interior – variam quando
as condições de vida social mudam e quando rudimentos de conhecimento são
adquiridos.
[...] as mudanças sócio-históricas não se limitam a introduzir
novo conteúdo no mundo mental dos seres humanos; elas
também criam novas formas de atividade e novas estruturas de
funcionamento cognitivo. Elas promovem o avanço da
consciência humana para outro estágio (LURIA, 2017, p. 217).

Desde a sua publicação, os métodos e os resultados da expedição à


Ásia Central vêm sendo observados e criticados por diversos pesquisadores,
russos e de outros países, como também aqui no Brasil. Para Lamdan e
Yasnitsky (2016), por exemplo, Vygotsky e Luria teriam falhado em
compreender que o contexto de instabilidade política e social da região poderia
ter comprometido as situações experimentais. Entretanto, Costa (2016)
observa que o argumento desses autores peca quando é centralizado apenas
um tipo de teste e ignorar que o próprio Luria (1992) destacou a não utilização
de testes padronizados e o uso de “sessões experimentais” foram
premeditados justamente para não deixar os sujeitos desconfiados ou
perplexos. Além disso, completa Costa (2016), os autores não discutem que
Luria chega aos mesmos resultados encontrados na expedição por meio de
outras formas de experimentos (p.e. Luria, 1976; 2001), além de apontar que
outros autores como Rivers, Alpor e Deregowski também observaram o mesmo
fenômeno.
O trabalho realizado pelos intitulados revisionistas da obra de Vygotsky
(e também de seus contemporâneos e de pós-vygotskianos proeminentes) vem
ganhando destaque, ainda assim, o próprio Alex Kozulin, no prefácio da
coletânea de Yasnitsky e Van Der Veer (20016), alerta os leitores por estarem
entrando em um território contestado, mas que os textos têm o mérito de trazer
uma análise ideológica e social detalhada de um período importante da história
soviética2. Entre os revisionismos desse grupo, também há críticas aos
métodos e às análises dos resultados encontrados por Luria em sua expedição
à Ásia Central, assim como nos estudos da pesquisadora brasileira Mello
(2001).

2Mais detalhes sobre os revisionistas da obra de Vygotsky e de pesquisadores próximos, com


destaque para os estudos de Anton Yasnitsky, Rene Van Der Veer, Eli Lamdan e Ekaterina
Zavershneva, em Yasnitsky e Van Der Veer (2016).

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Brazilian Journal of Socio-Historical-Cultural Theory and Activity Research

Luria encarava com normalidade tanto os comentários elogiosos como


os apontamentos de possíveis equívocos e/ou limitações do referido
empreendimento. Como ele próprio fez questão de enfatizar em diversas
passagens, o texto representa um projeto-piloto, e que seria tarefa de outros
pesquisadores, trabalhando naquelas partes do mundo onde ainda existem
sociedades não-letradas, aperfeiçoar a interpretação desses achados. Como
bem observa Mello:
A pesquisa justifica-se, portanto, ao comparar resultados de
entrevistas de sujeitos não alfabetizados de vilarejos isolados
com sujeitos em processo de alfabetização e trabalhadores de
fazendas coletivas reestruturadas pela revolução soviética. O
pesquisador encontra-se num lugar intermediário: o contexto
da produção de sua teoria é o da crença na civilidade, na
ciência e na razão emancipatória como instrumentos de
revolução social. Nesse sentido, as formas lógicas dos sujeitos,
que ele percebe, mas não assimila, são o arcaico a ser
superado em nome da boa-nova materialista histórica. Esses
são os limites e as possibilidades de Luria (MELLO, 2001,
p. 113). (grifo meu)

Corroboro com essa observação, também entendendo que Luria estava


mais interessado, do que qualquer outra coisa, em obter e analisar dados da
transição marcada pelo momento histórico ímpar em virtude do qual tantas
pessoas acabaram sendo influenciadas naqueles anos.
Luria encerra o livro destacando que as características básicas da
atividade mental humana podem ser entendidas como produtos da história
social e que estão sujeitas a mudanças quando as formas de prática social se
alteram, sendo, portanto, sociais em sua essência. O autor associa os achados
da pesquisa ao processo revolucionário na URSS a partir de 1917, sublinhando
que as mudanças revolucionárias radicais permitiram observar, num curto
período, fundamentais alterações que levariam séculos para ocorrer em
condições normais.
O livro “Desenvolvimento Cognitivo: seus fundamentos culturais e
sociais” é uma referência não somente entre os pesquisadores da
Neuropsicologia, da Psicologia e da Educação, mas um marco entre as
pesquisas desenvolvidas nesses campos e aplicadas a outras áreas do
conhecimento. Trata-se, ainda, de uma leitura obrigatória aos pesquisadores
dedicados aos estudos vinculados à Teoria Histórico-Cultural.

REFERÊNCIAS

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ISSN 2596-268X
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controversy of 1932. In: A. YANITSKY; R. VAN DER VEER (Orgs.), Revisionist
revolution in Vygotsky studies. London and New York: Routledge.
LURIA, A. R. 1976. Cognitive Development: Its cultural and Social
Foundantions. Cambridge, Massachusetts and London, England: Harvard
University Press.
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sociais. 8a. ed. São Paulo: Ícone.
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2a. ed. Porto Alegre: Artes médicas.
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de Pesquisa, n. 112, p. 99-124, mar.
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cultural de Luria para a pesquisa contemporânea. Educação e Pesquisa, São
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SHUARE, M. 2017. A Psicologia soviética: meu olhar. São Paulo: Terracota
Editora.
YASNITSKY, A.; VAN DER VEER, R. 2016. Revisionist revolution in Vygotsky
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