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Ciência:

da filosofia
à publicação
Gilson Luiz Volpato

Ciência:
da filosofia
à publicação

6a edição

São Paulo, SP

Cultura Acadêmica

2013

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Ciência: da filosofia à publicação
Copyright @ Gilson Luiz Volpato, 2013
www.gilsonvolpato.com.br

Todos os direitos reservados. Não pode ser utilizada ou reproduzida em qualquer


meio ou forma, nem apropriada ou estocada em sistema de banco de dados, sem a
expressa autorização do detentor dos direitos autorias desta edição.

Capa: Fernanda Moreno Sanchez Volpato


Revisão Crítica: Helene Mariko Ueno
Revisão Gramatical: José Tereziano Barros Neto
(tereziano@uol.com.br)

Ficha catalográfica elaborada pela Seção Técnica de Aquisição e Tratamento da Informação


Divisão Técnica de Biblioteca e Documentação – Campus de Botucatu – UNESP
Bibliotecária responsável: Sulamita Clemente Colnago – CRB 8/4716

Volpato, Gilson Luiz.


Ciência: da filosofia à publicação/Gilson Luiz Volpato.
– São Paulo: Cultura Acadêmica, 2013
377 p.: il.; 23,5 cm

Inclui bibliografia
ISBN: 978-85-7983-282-6

1. Filosofia. 2. Ciência. 3. Comunicação. 4. Metodologia. 5. Estatística. I. Título.

CDD 001.42

Cultura Acadêmica Editora


Praça da Sé, 108 – Centro
CEP: 01.001-900 – São Paulo – SP
Telefone: (11) 3242-7171
www.culturaacademica.com.br

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4

Este livro não é para velhos, é para jovens;


mas jovens de espírito,
não importa a idade que tenham.

A man can do all things if he will.


[Leon Battista Alberti (1404-1472)]

Ou o séculoXXI é dedicado aos valores humanos, morais e éticos...


ou de nada valeram os avanços tecnológicos conquistados até aqui.
[Volpato 2000]

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HOMENAGEM PÓSTUMA

DEDICO este livro à educação brasileira. Aquela educação que me permitiu ingressar
numa universidade pública de bom nível. Aquela educação que me fez fascinar-me pelas
trilhas da ciência. Aquela escola pública na qual, muitas vezes, aprendi nos livros de
meus próprios professores. Aquela educação valorizada e competente. A educação
brasileira do ensino primário, ginasial e colegial, que vivi até o ano de 1974. Essa
mesma... a educação pública do ensino fundamental e médio que vi morrer, sucateada
por idéias medíocres e de ganância lucrativa. A educação brasileira que tivemos, de
excelência, e que poucos, mas poderosos, quiseram que não sobrevivesse. Se hoje somos
um país com educação pública sucateada não é porque não tivemos a competência de
construir a excelência, mas simplesmente porque ela foi assassinada por interesses não
educacionais.
Se hoje lhes escrevo este livro, é porque nasci no momento ainda certo, quando o
pobre podia receber estudo pré-universitário de primeira linha. E faço esta homenagem
porque os jovens precisam saber que houve um tempo em que nossa educação básica e
fundamental pública e gratuita era a excelência, mas foi sucateada, assassinada. Esse foi,
sem dúvida, o pior crime cometido contra nossa nação.
Será que, em breve, terei que homenagear também a universidade pública brasileira?

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AGRADECIMENTOS

Inicialmente, quero agradecer ao combustível que mantém aceso meu ideal de


contribuir para uma melhora da formação científica das pessoas. Esse combustível vem
de todas aquelas pessoas que têm confiado em meu trabalho, seja me levando para falar
para algumas platéias ou transferindo a outros as propostas que defendo. Essas pessoas
são muitas e não conheço a todas, mas cada uma perceberá meu agradecimento.
Como esta obra recebeu apoios específicos nas edições anteriores, não posso deixar
seus nomes perderem-se no tempo. São eles, na seqüência em que apareceram:
Katsumasa Hoshino; Yuriko Yanagizawa Nogueira de Almeida Pinto, Célia Maria Dória
Frasca Scorvo, Newton Castagnolli, Wagner Cotroni Valenti, Dorotéia Rossi Silva
Souza, Alfredo Pereira Jr., Míriam Celí Porto Foresti, Priscila Willik Valenti, Marize M.
DallAglio Hattnher, José Raimundo de Souza Passos, Maria Auxiliadora Campos
Dessen, Assaf Barki, Carla Patrícia Carlos, Edmundo José de Lucca, Maria Lúcia
Negreiros Fransozo, Oduvaldo Câmara Marques Pereira, Roberto Leung, Fernanda
Moreno Sanchez Volpato, Yara Fernandes Volpato e Naiara Fernandes Volpato. Na
confecção da ficha catalográfica contei sempre com o apoio de Enilze de Souza
Nogueira Volpato e Sulamita Selma Clemente Colnago.
Mais recentemente, o Dr. Marco Aurélio Leite, Depto. de Ciências Florestais,
Universidade Federal de Lavras, Lavras, MG, me enviou uma lista de pequenos
equívocos gramaticais, de digitação ou de sentido que estavam na quinta edição, os
quais corrigi nos locais onde os textos foram mantidos nesta sexta edição. Agradeço,
ainda, ao Dr. Paul G. Kinas, da FURG, RS, que me alertou e forneceu parte do material
para a análise da crítica às idéias de Popper, no que tange à indução.
E, finalmente, à minha família, esposa e filhas, que me motivam, me dão estrutura e
entusiasmo para enfrentar essa busca quase insana de meu ideal. Até mesmo a mais
novinha delas, que apenas se inicia nas primeiras palavras, mas que certamente
aprenderá a usá-las com sabedoria para o bem da humanidade.

7

SOBRE O AUTOR

Para que os leitores conheçam um pouco mais sobre os motivos que me levaram a
escrever este livro, tenho que reportar sobre minha ida à ciência. Na vida pré-
universitária já tinha o sonho de ser cientista, sem mesmo saber exatamente o que isso
significava. Tinha o sonho de construir leis gerais, teorias... construir o saber novo.
Fascinavam-me os animais e eu duvidava que mesmo aqueles pequenos animais de
jardim, com os quais eu passava horas brincando, pudessem ser apenas autômatos. Essa
inquietação, mais as disciplinas de Biologia e Psicologia no colegial1, me firmaram o
desejo de estudar o comportamento animal. Felizmente era um curso oferecido pela
Faculdade de Ciências Médicas e Biológicas de Botucatu (FCMBB), cidade na qual eu
residia e, portanto, um curso possível de ser feito por alguém de classe média baixa.
Entrei na FCMBB que, no ano seguinte, se tornou, sob os protestos de alunos, docentes
e discentes, a Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, a UNESP.
Minha preocupação com a ciência e o comportamento animal me conduziu à busca
por estágios. Numa ocasião, procurei um professor da área Zoológica para fazer estágio,
pois tinha coletado em minha casa alguns dados sobre o comportamento de abelhas e
precisava de orientação. Para minha surpresa, esse professor ignorou meus “achados” e
me propôs colocar porções de água com açúcar próximo à colmeia para ver como as
abelhas iam àquele local. Disse, inclusive, que eu deveria ir afastando essa fonte de
alimentos e que as abelhas marcariam os locais sem se perder dele. Ora, ele me
propunha a ver algo que já se conhecia. Isso me desmotivou completamente, o que já
revelava minha paixão pelo novo, pelo inusitado, característica importante para quem se
aventura na Ciência. Felizmente, um ano mais tarde conheci o Dr. Katsumasa Hoshino,
um exímio educador e cientista

1
Na versão moderna, Ensino Médio.

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e, talvez por ser psicólogo, conduzia muito bem a formação de um novato. Foi aí que
iniciei minha formação científica. Foi também aí que tive meus primeiros contatos com
a Filosofia, a Ciência, o estudo do comportamento animal... e de tudo isso me orgulho
muito. Fiquei sob essa orientação durante os últimos anos de minha graduação e toda
minha pós-graduação. Mas um mestre será sempre um mestre!
Certa vez, na volta para casa, o prof. Hoshino me disse que eu era um dos poucos de
seus estagiários que tinha interesses gerais. Eu não entendi se isso era bom ou ruim.
Parte deste livro nasce de minha intenção, ou pretensão, de mostrar algumas portas
para o caminho da ciência àqueles que, porventura, não sejam ou não tenham sido
agraciados com uma orientação adequada. De fato, o que discuto neste livro é o mínimo
que deveria ser contemplado numa boa orientação de Iniciação Científica e Pós-
graduação.
Minha busca por leis gerais me conduziu a acreditar, no início dos anos 80, que a
ciência deveria ser internacional. Isso balizou minhas publicações. Eram em inglês e
sempre priorizei o alcance internacional dos periódicos. Isso foi feito na pura crença
sobre o fazer ciência, pois ainda não chegavam até nós as pressões por publicações,
muito menos pela qualidade do periódico ou citações de nossos artigos. Era um ato de
fé, uma questão de amor à ciência na sua vertente geral e internacional. Meus estudos
sobre filosofia da ciência reforçavam esse caminho.
Minha batalha pelas publicações de boa qualidade foi marcada por muitos insucessos,
mas felizmente por alguns sucessos que me sustentaram nesse objetivo. As publicações
internacionais foram feitas com meus estagiários, que mais tinham a aprender do que
ensinar. Foi uma batalha dura e só mais recentemente, a partir de 2003, iniciei
publicações internacionais junto com cientistas destacados. E foi o suor desse
aprendizado, aliado à minha constante vontade de ensinar, que me colocaram no
caminho dos cursos sobre redação científica.
O primeiro curso formal sobre este assunto foi em nível de extensão universitária, em
1986, para alunos de graduação, uma empreitada que dividi com a Dra. Maria Lúcia
Negreiros Fransozo. Depois disso se seguiram outros cursos e, na pós-graduação, minha
primeira disciplina foi em 1989, junto ao Centro de Aquicultura da Unesp, em
Jaboticabal, SP. Havia apenas 4 alunos (um era meu doutorando) e as aulas eram
ministradas quinzenalmente às sextas-feiras. No ano seguinte, o número de alunos foi 8
e no próximo 22. A partir daí, a quantidade de alunos se manteve sempre crescente.
De meados da década de 90 até o final dessa década, a questão da publicação
científica se tornou parte integrante da carreira científica. Após a virada do século, isso
foi reforçado e continua num crescente que, conforme discuto neste livro, felizmente
tem acompanhado a evolução filosófica na ciência, com critérios cada vez mais pautados
pela qualidade e não pela quantidade.
Em 1998, já com grande demanda para ministrar cursos e workshops sobre redação
científica internacional, procurei reduzir essa pressão publicando meu primeiro livro... aí
nascia o Ciência: da filosofia à publicação. A partir daí, a carência da sociedade
científica brasileira sobre este tema, nas três grandes áreas do saber, me impulsionou

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cada vez mais para esta apaixonante missão de formação de cientistas, por meio de uma
avalanche de palestras, cursos, debates, e-mails e mais livros e, finalmente, a Internet.

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Em 2011 inaugurei minha página na Internet2 e minhas excursões pelo twitter3. A


página é um repositório de notícias e materiais sobre Ciência, Redação Científica,
Publicação Científica, Ética, Administração, Sociedade e Formação de Cientistas. Em
cada um desses blocos há 4 setores (Comentários, Livros, Artigos e Dicas). Há também
um bloco sobre Vídeos, com um resumo de meu curso completo, com 42 aulas (cerca de
8 h 30 min), e outro bloco com vídeos de curta duração no qual apresento meus Pontos
de Vista sobre temas relevantes nesta área. Finalmente, há um bloco de Agenda &
Contatos, onde listo meus cursos/palestras agendados, um espaço para debates e fontes
para contato.
A partir de minha vivência como educador, cientista e interessado pela filosofia da
ciência, fui construindo uma abordagem que contemplasse essa experiência no ensino da
ciência. Este livro espelha esse perfil, em que procuro mostrar a unicidade do processo
científico: originalmente, da filosofia à publicação; atualmente, da filosofia à aceitação
de nossas conclusões. Para isso, defendo que o cientista deve trilhar temas como
Filosofia, Criatividade, Metodologia, Estatística, Computação, Empreendedorismo,
Administração, Marketing, Publicidade, Lógica, Sociologia, Psicologia, Atualidades,
Política, Sociologia e Educação, pois é nesse conjunto que residem as principais idéias
do processo Ciência.
Gilson L. Volpato
Maio de 2012

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www.gilsonvolpato.com.br – Em 1 ano, recebeu cerca de 40 mil visitas
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@gilsonvolpato

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PREFÁCIO À SEXTA EDIÇÃO

É uma felicidade poder entregar-lhes a sexta edição do meu primeiro livro, o Ciência:
da filosofia à publicação. Este livro nasceu da vontade de ensinar os passos necessários
para se formar um cientista.
O Brasil se depara com uma encruzilhada. Seremos independentes apenas se
conseguirmos um discurso superior para com o restante do mundo. A globalização torna
esse processo mais urgente. Como este país maravilhoso poderia conseguir tal
independência? A ciência e a educação são, sem dúvida, um caminho genuíno. Não
conheço qualquer país desenvolvido onde não haja ciência e educação de boa qualidade.
É o pano de fundo necessário. Mais ainda: não há tecnologia de ponta se não houver
conhecimento de ponta... e é a ciência que produz esse conhecimento, é a educação que
possibilita essa ciência.
Nós, porém, nos perdemos nas raízes de nossa cultura, de nossa formação. As regras
da ciência internacional são ditadas pelos países mais fortes; seguem seus vieses
culturais. Entrar nessa luta significa seguir essas regras. É uma luta de culturas. Na
ciência temos que ser objetivos, diretos e lógicos, mas esse não é o nosso pano de fundo.
O brasileiro é prolixo, vem de formação prolixa. A ciência não admite jeitinhos,
improvisações, superficialidades, mas esse também não é o pano de fundo de nossa
sociedade. Entrar na ciência internacional requer mais, muito mais. Querem
internacionalizar a ciência, mas não internacionalizam a administração da ciência nem a
seriedade e competência governamental. Nossa tarefa requer uma conversão de postura.
Essa é a nossa dificuldade. Não é o inglês, é o pensamento.
Nossa sociedade parece estar tomando o rumo errado. Temos uma pós-graduação que
não forma cientistas, apenas doutores, seres especializados em produzir teses e artigos. E
basta fazer a tese para receber o título. Temos um grupo de coordenadores mais
preocupados com a Capes do que

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com a ciência. Temos nomes importantes fazendo diagnósticos equivocados, mas sendo
ouvidos e conduzindo milhões. Temos uma educação universitária sendo assassinada em
nome da democracia, da inclusão e da demagogia. Temos uma sociedade de ilusão, do
faz de conta, um país das aparências. Não precisa ser, basta parecer. Basta produzirmos
números, a qualidade não importa.
Minha andança pelo cenário científico brasileiro é vasta. Iniciei essa minha jornada
no ensino da ciência e da redação científica nos idos de 1986, há 26 anos. Meu primeiro
livro nessa área, nascido em 1998, já surgia na ingênua expectativa de que pudesse
reduzir as viagens para cursos e palestras, pois estavam se tornando muito numerosas.
Nos últimos 10 anos esse número tem sido imenso para uma única pessoa, algo em torno
de 60 a 80 por ano nas instituições públicas, com uma agenda que se fecha com quase
um ano de antecedência. Nessa demanda e contato, falo e converso com milhares de
cientistas e simpatizantes a cada ano. Vejo seus problemas, suas angústias, suas falhas,
seus sonhos e seus potenciais, seus olhos brilharem e chorarem. É uma riqueza
insubstituível. A amostragem é ampla, do interior dos estados mais pobres até as
universidades mais nobres de nosso país. Do menos experiente ao orientador expert.
Essa base é forte. Ela bate duro aqui dentro e me diz: as propostas de correção para
nossa sociedade científica estão no caminho errado. Democratizar a qualidade científica
é uma meta que o Brasil não pode ignorar. Os números devem refletir qualidade.
Queremos mágica, queremos qualidade sem investir em qualidade. Queremos uma
comunidade de cientistas de nível internacional sem darmos a base necessária. Vejam o
que ocorre no esporte olímpico brasileiro; o gene é brasileiro, mas a formação
geralmente é obtida num país desenvolvido. E querem repetir isso na ciência. Mas essa
fórmula, além de irresponsável e incompetente, é paliativa. Nossa sociedade precisa
respirar ciência, respirar ensino de qualidade, respirar cultura. O produto será
conseqüência.
Como produzir um percentual de cientistas de alto nível digno do tamanho de nossa
população? Não pode ser um processo casual. Dinheiro temos, falta-nos direção.
Vontade temos, faltam-nos oportunidades. Mas, falta algo mais... faltam mentes
brilhantes, desafiadoras, empreendedoras, que saibam conduzir este processo.
Precisamos de medidas competentes, de pararmos de tapar o sol com a peneira. Não
vamos criar essa sociedade apenas abrindo as portas das universidades. Isso só destruirá
o que ainda resta de ensino público de qualidade em nosso país. Temos que entender que
junto com essa abertura de portas deve vir, inexoravelmente, um ataque maciço,
restaurador e transformador na educação de base, a pré-universitária. Sem isso, todo o
restante é demagógico, apenas para produzir robôs da ciência e números para os donos
do mundo.
Neste livro me debruço a ensinar a ciência que acredito. Não há fórmulas mágicas
para que passemos a publicar em revistas internacionais de alto nível, nem para que
nossas revistas científicas passem a dominar o cenário internacional. Mas há um
caminho sério, não demagógico e competente. Ciência forte pode produzir pesquisa
forte; e esta pode se desdobrar em publicações de alto nível. Se isso é conseguido,
teremos matéria-prima (conhecimento e pessoas) insubstituível e necessária para a

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construção de um país de primeiro mundo. Plantar isso não é fácil, mas é urgente e
necessário. A visão atual não quer plantar um pé de jequitibá, mas quer visualizar sua
beleza e descansar à sua sombra. O futuro não é mágico; precisa ser construído. Se não
plantarmos os jequitibás hoje, eles não darão a beleza e o esplendor de sua existência
daqui a alguns séculos. É necessário plantar para além

de seus olhos, para aqueles que não conheceremos. É esse o mundo que temos que
construir. É essa a ciência que temos que almejar, pois dela brotam os frutos de uma
sociedade justa, inteligente, competente e feliz. E é o fazer desse mundo que inaugura
um mundo presente e real já noutra direção.
A primeira parte deste livro aborda a Filosofia, pois é a arte maior, o pano de fundo
daquilo que fazemos. É esse refletir que nos dá vida e nos faz entender a própria vida. A
segunda parte trata da ciência, da formação do cientista. Primeiro um diagnóstico do
quadro, em que mostro como deformar um cientista. Nos capítulos seguintes, me
debruço na tarefa do fazer ciência. E concluo com um último capítulo sobre como
formar um cientista. Essa é a proposta do livro, desde sua primeira edição, mas
temperada por um mundo de informações e experiências que espero trazer, a cada nova
edição: um tempero especial para uma receita milenar.
Gilson Volpato
Setembro de 2012

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PRIMEIRAS PALAVRAS

A atividade científica tem atraído a atenção de muitas pessoas, particularmente no


mundo de hoje. Além das descobertas interessantíssimas ao longo de sua história,
direcionou a atividade humana atingindo a todos. O avanço industrial, decorrência
importante da atividade científica, mudou não só aspectos físicos, mas também
concepções metafísicas de valor, ética, amor, política etc.
Esse grande impacto da ciência não a coloca como a principal atividade humana, mas
com certeza é uma das importantes formas de interferir no dia a dia do ser humano.
Pobres ou ricos, religiosos ou não, do primeiro ou do terceiro mundo, todos estão
sujeitos às conseqüências da ciência. É nesse panorama que vemos jovens procurando o
caminho da ciência. Uma escalada aparentemente natural para muitos.

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Mas o que é fazer ciência? Por que apenas alguns se destacam enquanto outros
desistem? Qual o caminho? Certamente são perguntas cujas respostas, se existem, não
são simples nem completas.
A atividade científica pode ser comparada à atividade de um músico que compõe para
uma orquestra. Ele deve coordenar uma série de instrumentos para que soem de forma
harmoniosa. Um som nunca é certo ou errado, apenas adequado ou não, dada a intenção
no momento da composição. Os instrumentos têm suas especificidades, mas há um
objetivo que os une (a música em apresentação). O sentimento do compositor necessita
ser interpretado. O som produzido não é inerte, pois afeta sentimentos, processos
humanos, pode mudar uma história. A música é escrita objetivamente numa partitura,
mas interpretada com subjetividade.
E o cientista? Neste livro mostro a validade do paralelo. Adiantarei apenas alguns
aspectos gerais. O cientista rege uma série de atividades (técnicas, perguntas, palestras,
dados coletados, testes estatísticos, redações, pressupostos filosóficos, formação de
pessoas, ensino, divulgação de achados, atividades administrativas etc.) que, no
conjunto, compõem a atividade científica. Como na música, cada som é fundamental,
mas no momento certo. Os excessos podem soar inadequados. Na orquestra, não se deve
priorizar os violinos em detrimento do triângulo, pois suas qualidades são insubstituíveis
em determinados momentos. Da mesma forma, não se relega as questões filosóficas,
nem se valoriza sobremaneira as potencialidades estatísticas. Tudo tem uma função que,
devidamente integrada, promove a ação dos grandes mestres.
Mas como encontrar o equilíbrio? O compositor não sabe tocar todos os instrumentos
que usa. Quem toca os instrumentos não necessariamente compõe melodias. Mas para
compor uma música (letra, melodia, acompanhamento, arranjos) é necessário conhecer a
essência das partes, suas potencialidades e funções.
É essa visão holística de ciência que se perde com a produção em massa propiciada
por uma desenfreada corrida de rankings. Nossa pós-graduação tem primado a formar,
em sua vasta maioria, técnicos especializados que, com suas visões estreitas e poderes
crescentes, tiram a beleza da ciência, da descoberta, transformando-a numa atividade
essencialmente técnica. E o culpado não é a ciência, mas a prática científica inadequada.
Este livro não livrará nossa ciência desse problema. A intenção é bem mais modesta.
É mostrar aos cientistas alguns equívocos e crenças científicas, além das potencialidades
lógicas da ciência (o que nos leva a uma atividade bem mais humilde) e as ligações
inexoráveis entre a prática científica e o pano de fundo filosófico e social. É nesse
universo que o desafio a entrar. Muitos precisarão de coragem para romper pré-
conceitos e experimentar uma nova reflexão, uma nova prática.
Toda atividade científica reflete, queiramos ou não, uma posição teórica. O problema
ocorre quando o cientista não percebe tais ligações, alienando-se nos escombros da
prática da pesquisa. É por essa razão que este livro aborda primeiramente as bases
filosóficas da ciência,

16

suporte primeiro da atividade técnica científica. As questões específicas e práticas


discutidas posteriormente são sempre acompanhadas de referências a outras partes do
livro, onde a base teórica pode ser encontrada. É nesse vai e vem, da técnica à reflexão
filosófica, que se constrói a prática científica.
As perguntas que constroem este livro foram colhidas de diversos contatos com
estudantes de graduação e pós-graduação e cientistas de diversos níveis. Retratam,
portanto, um pouco de nossa realidade, que não é restrita ao nosso país. As respostas a
essas perguntas não são dadas na forma de receitas. Apresento respostas com as
respectivas bases teóricas. Ao final do livro indico literatura complementar, desde
essencialmente técnica até obras mais gerais, mas todas com alguma grande riqueza para
completar seu caminho em direção à ciência de qualidade. Essas referências, no entanto,
nem sempre concordam com as idéias que apresento neste livro. Assim, pela
discordância, são leituras importantíssimas para a formação geral do cientista. Algumas
podem ser chamadas de “autoajuda”, mas aprendi que podemos incorporar idéias
interessantes desde que abandonemos os preconceitos em relação às suas fontes. A
abordagem que apresento é apenas o início de uma vasta discussão que o leitor deverá
fazer ao longo de sua carreira científica.

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PARTE 1

DA FILOSOFIA À CIÊNCIA

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NOÇÕES DA HISTÓRIA DA CIÊNCIA EMPÍRICA4

Na busca pela compreensão do mundo e do homem, a filosofia se dividiu em duas


abordagens principais: o entendimento por meio exclusivo do pensamento (a razão; o
raciocínio lógico, sem recorrer às impressões que nos chegam pelos órgãos do sentido
acerca do mundo e do homem) e o entendimento baseado nas informações que nos
chegam pelos órgãos sensoriais. Ou seja, ou apenas pensamos sobre as coisas, sem
considerar nossa experiência sensível (aquela que percebemos pelos órgãos sensoriais),
ou aceitamos que nossas experiências sensíveis sejam importantes para nossa
interpretação do mundo.
Essa foi a grande temática na divisão entre filosofia e ciência. A filosofia se inicia
com uma visão racional para o entendimento do mundo. Dos discípulos de Sócrates,
Platão segue para o lado racional e Aristóteles já considera a importância da experiência
sensível. Essa dicotomia, de alguma forma, fica subjacente na decisão dos filósofos
subsequentes. No século XVII, a grande cisão ficou evidente. A ciência moderna surge
aceitando apenas os conhecimentos embasados em evidências empíricas (ou seja,
precisamos das experiências de nossos sentidos para compreender o mundo e o homem).
A filosofia busca construir conhecimento predominantemente a partir da razão. É lógico
que essa dicotomia não é total. Na filosofia, a existência de evidências do mundo
sensível pode ser aproveitada; porém, na ciência, a obtenção de alguma evidência
“concreta” do mundo sensível é sempre necessária. Note, por exemplo, que nos
trabalhos de cientistas há um item chamado “Resultados”; o que pressupõe a
necessidade do item “Métodos”, que nos diz como os resultados foram obtidos. Ou seja,

4
O que segue foi bastante baseado na excelente obra de Bryan Magee (2001). Esse autor é filósofo e
se destaca pela forma simples e precisa com que divulga a filosofia da ciência. Acrescentei a esse pano de
fundo maior, outras informações, muitas delas vindas, ou entendidas, a partir de Atkinson (2011),
Blackburn (2008), Feitosa (2004), Oliva (2003), Ronan (1987 – 4 volumes), Franca (1978) e Russell
(1977 – 4 volumes).

19

reforça-se a presença de base empírica. No caso da filosofia, as demonstrações são pela


lógica (pode ou não incluir evidências empíricas; mas certamente elas não são um pré-
requisito como no caso da ciência).
As duas abordagens são importantes para o ser humano. Podem, ou não, ser
complementares. O fato é que o ser humano as coloca, muitas vezes, como divisor de
áreas e de abordagens. É comum o cientista não conhecer filosofia e o filósofo não
conhecer a prática da ciência. No método de redação científica que tenho proposto,
denominado Método Lógico para Redação Científica5, procuro mostrar a aplicação da
ciência na redação científica, a partir de reflexões e conceitos que vêm da filosofia.

O INÍCIO
Séc. VI a IV a.C. – PRÉ-SOCRÁTICOS
A filosofia surge quando o homem começa a querer entender o mundo por meio da
razão. Isso significa que ele usa seu raciocínio (razão) para explicar o mundo. Mais do
que isso, ele procura não se valer de abordagens teístas (religiosas, onde Deus é o
elemento que usamos para explicar as coisas), da autoridade6, da revelação (mitológica
ou religiosa) e da tradição (sabe-se que é assim, costuma-se explicar dessa forma, os
antecedentes assim explicavam). Ela surge na Ásia, mas só depois chega a Atenas, o
berço mais reconhecido da filosofia ocidental. Os pré-socráticos eram teorizadores
ousados. Buscavam levar às últimas instâncias o raciocínio sobre as coisas. A ênfase era
no entendimento do mundo, e não do homem (a partir de Sócrates, essências do homem
entram nessa discussão).

Tales de Mileto – Havia um único elemento que compunha tudo do mundo. Esse
elemento era a água. Tudo é feito de água.

Anaximandro (Séc. VI a.C.) – A Terra tem forma cilíndrica (nós ficamos no lado plano
do cilindro; ou seja, a Terra é plana, que era a informação mais corriqueira que se
tinha sobre o planeta) e flutua no espaço (possivelmente uma forma de se entender o
céu e o movimento dos astros e estrelas).

5
Resumido em Volpato (2011).
6
Um argumento de autoridade (= argumentam ad verecundiam ou argumentum magister dixit) é o uso
da respeitabilidade de quem fala como elemento fortalecedor daquilo que se diz. Na ciência moderna,
resquício disso é visto quando se atribui verdade a uma informação simplesmente porque ela foi expressa
por um “especialista”. Se quem fala tem algum atributo muito bom, então o que ele fala deve ser verdade.
Trata-se de uma falácia lógica. Um derivado dessa falácia é quando a autoridade é atribuída a coisas
inanimadas (por ex., a uma revista científica de renome: se está nela, então deve ser verdade).

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Anaxímenes (discípulo de Anaximandro) – Alguma coisa deveria sustentar a Terra; ou


seja, ela não flutuava livremente como assumia Anaximandro.

Heráclito (apogeu no início do séc. VI a.C.) – Enfatiza a mudança7: tudo é fluxo,


transformação. Admitia que, na essência, os opostos (ida e volta, subida e descida,
jovem e velho, cheio e vazio) são a mesma coisa. Assim, a realidade era algo instável
por natureza (a mudança é natural); tudo flui constantemente. Disso decorre que lutas
e contradições não devem ser evitadas.

Pitágoras (Séc. VI a.C.) – Busca explicar o mundo por meio da matemática. De sua
abordagem, busca-se encontrar relações matemáticas entre as partes do mundo.
Acredita-se que tenha sido o criador da palavra Filosofia. Deu o significado usado
atualmente à palavra Teoria e aplicou a palavra Cosmo para se referir a Universo.
Acreditava na reencarnação.

Xenófanes (Séc. VI a.C.) – Acredita na incapacidade humana de reconhecer verdades.


Ou seja, podemos apenas apresentar uma visão, um discurso sobre o mundo, mas
nunca saberemos se é verdadeiro. Note que esse é o primórdio do reconhecimento da
incapacidade humana para reconhecer verdades, uma postura fundamental para a
ciência.

Parmênides (Séc. V a.C.) – Discípulo de Xenófanes. Assumia que tudo que existe deve
ter sempre existido. Ou seja, rejeita o conceito de ter havido algum “nada”. Assim, o
mundo é algo monolítico (plenum, um bloco) e as mudanças são transformações
dentro desse bloco – um sistema fechado, imutável em seu conjunto (mudam-se
partes e relações, mas não o conjunto, o bloco monolítico). Esses conceitos foram
debatidos mais tarde, no século XX, por Einstein e Popper.

Empédocles (V a.C.) – Acrescenta mais três elementos à composição singular de Tales


de Mileto: assumia que o mundo era composto de água, terra, ar e fogo. Essa visão
influenciou pensamentos desde Aristóteles (VI a.C.) até o início do Renascimento
(aproximadamente, final do Séc. III ou início do Séc. IV).

Os Atomistas (ex. Leucipo e Demócrito) – Tudo se reduz a átomos (partícula não


divisível) e vazio. Explicam o universo em termos de relações de causa e efeito entre
essas partes, sem recorrer a explicações ideológicas8 (não há intenções, mas atos e
conseqüências). É o primórdio de uma explicação mecânica do mundo, mas também
do fortalecimento das relações causais, tão importantes na ciência moderna.

7
Seria um precursor da abordagem dialética e da dinâmica?
8
A explicação teleológica baseia-se em finalidades. O vapor pode ser uma finalidade da água frente à
temperatura; o coração bate com a finalidade de impulsionar o sangue; a mão existe para que possamos
pegar. Numa visão contrária, a temperatura faz a água evaporar (o vapor é conseqüência); pelo fato de o
coração bater, o sangue é impulsionado; pegamos as coisas porque temos mão.

21

22

Séc. V a.C. – SÓCRATES (~470 – 399 a.C.)

Em contraposição aos pré-socráticos, Sócrates enfatizou a filosofia moral e o método


crítico9 para a discussão e consideração das coisas. A reflexão sobre as coisas da vida
era essencial. Desenvolveu o Método Dialético, que consistia em fazer perguntas sobre
perguntas, na tentativa de estimular a discussão, confrontar as opiniões e entender a
essência das coisas. Buscar a essência das coisas é, por exemplo, ao discutir sobre
justiça, perguntar “o que é justiça?”. Frente à resposta, perguntava sobre algo que
apareceu na resposta... e assim sucessivamente. Era um sistema de constante indagação
sobre as coisas, assumindo que, dessa forma, poderíamos nos dirigir à essência das
coisas. Assim, Sócrates busca obter conhecimento apenas a partir da discussão e do
argumento. É uma abordagem racionalista, já suposta no início da Filosofia.
Como pretendia compreender a essência das coisas, naturalmente Sócrates admitia
coisas que existiam na essência, mesmo que não fossem de natureza material (por ex.,
justiça, que é conceituai, abstrata). Com o método dialético, ensinava as pessoas a
questionarem tudo e expunha a ignorância das pessoas, independentemente do poder ou
autoridade que possuíam. Em relação à moral, Sócrates foi o primeiro a deslocar a
questão dos “deuses” e levá-la diretamente ao homem; trata dos deveres do indivíduo
em relação a outro indivíduo.
O uso do método dialético na pedagogia implica o reexame do que as pessoas supõem
conhecer. Pressupõe também um relacionamento pessoal de solidariedade entre mestre e
discípulo, uma vez que a crítica é bem vista na concepção de Sócrates.

Séc. IV – III a.C. – PLATÃO10 (~430 – ~350 a.C.)

Discípulo de Sócrates. É o primeiro filósofo cujas idéias têm registros escritos. Sua
filosofia dominou a Europa por 6 ou 7 séculos. Ocupa-se do homem e do mundo (uma
junção de objetos de interesse entre os pré-socráticos e Sócrates). Para entender esse
universo, considera fundamental o uso da matemática e da física.
Concorda com Sócrates que devemos pensar por conta própria (nada é óbvio, tudo é
sujeito a questionamento). É precursor do racionalismo (séc. XVII e XVIII) na
concepção sobre

9
Via com muito bons olhos as críticas, ao contrário do que existe hoje, em particular em algumas
sociedades, como no Brasil. Veja que aqui muitas pessoas iniciam uma crítica dizendo que “não é crítica
não...”; isso ocorre porque a crítica não é bem vista. Mas Sócrates alimentava a crítica como algo bom
para o “bem pensar”. Na ciência, oficialmente, a crítica é bem vista... mas apenas oficialmente. Na
universidade brasileira, a crítica é tratada como em qualquer outro setor de nossa sociedade.
10
Sua casa era chamada “Academia”, possivelmente de onde se originou o sentido de academia para
os dias de hoje. Era o local onde adultos aprendiam (ensino superior).

23

como entender o mundo. Para ele, havia dois mundos: um concreto, sensível, e outro
ideal, abstrato, do qual as coisas que temos em nosso mundo são meras cópias (imagens
imperfeitas). Assumia que esse mundo abstrato tem uma ordem perfeita, que pode ser
lida pela matemática. Esse mundo ideal eqüivale à nossa alma e é composto de formas
perfeitas e imutáveis, consideradas divinas. O mundo que podemos apreender está
sempre em transformação, sendo decadente e imperfeito.
Note que na visão de Platão esse mundo imaterial, ideal, não existia como
conseqüência da crença num deus; ele era concebido a partir de uma argumentação
filosófica racional. Seu discurso não necessitava da existência de deuses. Ele é
fundamentalmente um racionalista; considera o ser humano dotado de intelecto, que
governa a paixão e a vontade. Ou seja, tudo é subordinado à razão.
Considera a arte uma forma de enfatizar o mundo por meio de nossos sentidos (em
oposição às idéias, à razão). Por isso considera que o artista nos desvia de nossa vocação
principal, que é o conhecimento do mundo das idéias.
Esse mundo ideal é sumarizado no Mito da Caverna. Imagine uma caverna que
contém prisioneiros acorrentados que olham para o lado oposto ao da entrada. Eles não
vêem o que se passa lá fora. Porém, as coisas que passam pela entrada da caverna
produzem sombras na parede à frente dos prisioneiros. A partir delas buscam interpretar
o que existe lá fora. Lá fora é a realidade que, para Platão, seria o mundo das idéias. O
que o nosso sentido nos mostra (as sombras) é enganoso. Se um desses prisioneiros
escapa e tem contato com a realidade lá fora, mesmo que retorne à caverna não
conseguirá convencer os demais a respeito do que viu. Não conseguirá convencê-los de
que o que vêem não corresponde à realidade. Será, no mínimo, ignorado por eles ou, no
máximo, morto por eles, que os considerariam um louco.

Séc. III a.C. – PLOTINO (2269 – 204 a.C.)

É o último dos grandes filósofos gregos. Seu pensamento desenvolveu o impulso


místico de Platão, sendo o criador do neoplatonismo. Era racionalista. Idealizava que o
essencial era a idéia (mundo das idéias de Platão), de forma que “para algo ser criado,
tem de ser pensado”. Estabelece 3 níveis de ser: o inferior é a alma, em que estão os
seres humanos; o intelecto, em que são preenchidas as formas ideais; e o nível superior é
o bem (os seres humanos reflexivos tentam ascensão à unidade com o bem).
No cristianismo, suas idéias repercutiram no sentido de que Deus idealizou e criou o
mundo e que os homens aspiram à unidade com Deus (o bem perfeito). Não era cristão e
nunca mencionou o cristianismo, mas sua filosofia estava próxima da de Sto. Agostinho
e Sto. Tomás de Aquino (veja à frente).

24

O INÍCIO DE UMA NOVA ERA

Até aqui vimos que a filosofia era fundamentalmente racionalista, ou seja, entendia-
se o mundo a partir do pensamento, sem sermos contaminados pelas enganosas
experiências vindas de nossos órgãos sensoriais. Aristóteles inicia o pensamento
empirista, que origina a Ciência no séc. XVII. Ele considerava que nossas experiências
sensíveis (vinda dos órgãos sensoriais) são relevantes e devem ser usadas para
entendermos o mundo. No século seguinte, Kant concilia em sua abordagem o
pensamento de Platão (racionalista) e Aristóteles (empirista).

Séc. IV a.C. – ARISTÓTELES (384 – 322 a.C.)

Aos 17 anos, iniciou seus estudos na Academia de Platão. Rejeitou os dois mundos
de Platão. Acreditava apenas no mundo que vivemos e vivenciamos. O que estiver fora
de nossa experiência não é nada para nós. Fora da experiência vagamos para a conversa
vazia. Descarta as formas ideais de Platão. É o prelúdio da necessidade da experiência
sensível (empirismo) para a construção do conhecimento (veja Francis Bacon adiante).
Diz que não devemos aceitar explicações que neguem nossas experiências. O
entendimento dessas experiências é a causa final de nossas investigações. E precursor do
pensamento empirista (séc. XVII e XVIII).
Investigou sobre Lógica, Física, Ciência Política, Economia, Psicologia, Metafísica,
Meteorologia, Retórica e Ética. Definiu vários termos (energia, dinâmica, indução,
demonstração, substância, atributo, essência, propriedade, acidente, categoria, tópico,
proposição e universal). Sistematizou a lógica, definindo formas válidas de inferência
(lógica Aristotélica).
Pergunta-se sobre o que é ser. Conclui que as coisas possuem uma parte material
(estrutura) e uma parte imaterial (forma). A forma diferencia as coisas materiais. Para
ele, a forma é algo deste mundo e não algo de outro mundo, como se referia Platão.
Considera que a forma é a causa de algo ser o que é. Divide o conceito de forma em
quatro tipos complementares de causa (razões): a) causa material, que é a estrutura
íntima e básica da “coisa11“ (do que é feita); é necessária, mas não suficiente, pois a
“coisa” é maior que sua estrutura; b) causa eficiente, que cria a “coisa”; c) causa formal,
que é o modelo mental que nos permite reconhecer a “coisa” como aquilo que ela é. É o
que dá à “coisa” a forma pela qual é identificada; d) causa final é a razão última para a
existência da “coisa”, o que levou o executor (causa eficiente) a construir a “coisa” até
seu formato final. Essas concepções são prelúdios do pensar sobre as relações de causa e
efeito (veja VII-10).
Para Aristóteles, a verdadeira essência de qualquer coisa é sua função e não sua
constituição material: por exemplo, a essência da caneta é o escrever; do ouvido, ouvir
etc.

11
Usei a palavra “coisa” para referir-me tanto a elementos inanimados (uma estátua) ou um ser vivo,
humano ou não.

25

Séc. IV a.C. – ALEXANDRE MAGNO (356 – 323 a.C.)

Foi discípulo de Aristóteles. Sua maior importância não está na criação de uma
concepção sobre o mundo ou o homem, mas por ter usado seu poder para também
divulgar a filosofia grega em cada lugar que conquistava. Esse mundo fora da Grécia,
conhecido como mundo helenístico, durou cerca de 300 anos. No Egito, batizou com seu
nome a cidade de Alexandria, sendo o principal centro cultural do mundo antigo até a
conquista pelo império Romano, no séc. I a.C. Com a morte de Alexandre Magno,
surgem muitas disputas políticas, que caracterizam 4 novas escolas de pensamento: os
cínicos, os céticos, os epicuristas e os estoicos.

CINISMO

Antístenes (444 – 365 a.C.) – Discípulo de Sócrates e quase contemporâneo de Platão.


Com a morte de Sócrates e a queda de Atenas, abraçou uma vida rude, simples.
Proclamava que não queria saber de governo, propriedade privada, casamento e
religião estabelecida.

Diógenes de Sínope (404 – 323 a.C.) – Seguidor de Antístenes, zombava das


convenções, fazia questão de chocar as pessoas com atos e costumes. Acreditava que
a diferença entre os valores verdadeiros e os falsos era a única coisa que importava.
Dizia ser um cidadão do mundo (cunhou o termo “cosmopolita”).

CETICISMO

A filosofia cética foi estabelecida por Pirro, um soldado de Alexandre Magno. Os


céticos são os primeiros relativistas da filosofia. Os filósofos anteriores (por ex.,
Sócrates e Xenófanes), mesmo admitindo que nada sabiam, achavam que o
conhecimento era possível se fizéssemos um esforço (visão positiva sobre o ato de
aprender). Os céticos admitem “nenhuma certeza definitiva”. A certeza não está no nível
do argumento, da demonstração, da prova (isso só foi reconhecido no séc. XX). Um
argumento prova que as conclusões decorrem das premissas, mas não que as conclusões
são verdadeiras. Note que todo argumento válido começa com um “se...”, pois pressupõe
uma condição para que a conclusão seja válida, e não comprovada. O cético mais
famoso e recente foi David Hume (veja à frente).

26

Pirro (~365 – 270 a.C.) – Seu ceticismo é também chamado de pirrorismo. Como
soldado de Alexandre Magno, percorreu muitos povos, com pensamentos e crenças
diferentes. Isso deve tê-lo levado ao ceticismo: via povos com pensamentos muito
diferentes sobre as mesmas coisas.

Tímon (320 – 230 a.C.) – Discípulo de Pirro, sustentou esse ceticismo com argumentos
intelectuais.

Arcesilau (315 – 240 a.C.) – Sucessor de Tímon, assumiu a liderança da Academia de


Platão, que ficou nas mãos dos céticos por 200 anos. Métodos principais de ensino; a)
expor argumentos igualmente poderosos para os dois lados de uma questão; b)
oferecer-se para refutar qualquer caso proposto por um de seus alunos.

Carnéades (214 – 129 a.C.) – Sucedeu Arcesilau na direção da Academia. Causou


sensação em Roma em palestras públicas em que expôs eficazmente as visões de
Platão e de Aristóteles... depois refutou tudo o que dissera.

EPICURISMO

Filosofia criada por Epicuro, desenvolvida intelectualmente e de natureza


materialista, arreligiosa e que cultuava o prazer.

Epicuro (~341 – 270 a.C.) – Sua abordagem buscava libertar as pessoas do medo da
morte e da vida. Contrariava a vida que buscava a glória, a fama e pregavam uma
vida incógnita. Aceitava que os átomos eram eternos e indestrutíveis (atomismo =
átomo + espaço), com movimentos imprevisíveis e nenhuma combinação que dure
para sempre (ou seja, objetos físicos são efêmeros). Considerava o homem um
conjunto de átomos. Diz que não devemos temer a morte porque enquanto existimos
não há morte e, quando morremos, não mais existimos. Foge da questão dos deuses;
considera-os num patamar muito distante, e que eles não querem se envolver nos
nossos problemas. Sua visão de “morte final” se contrapõe ao cristianismo que
aparece mais tarde. Como decorrência de sua filosofia – aceitar que nada há além da
morte; devemos aproveitar ao máximo nossa vida... a felicidade é aqui. Os epicuristas
constituíam uma sociedade aberta, com aceitação de mulheres e escravos. Essa
filosofia se assemelha muito com o humanismo científico e liberal do séc. XX.

27

ESTOICISMO

Foi fundado por Zenão de Cício12 (334 – 262 a.C). O estoicismo durou cerca de 500
anos como movimento organizado. Devido às conquistas de Alexandre Magno, o
movimento dos estoicos faz com que a filosofia grega se torne internacional. O
estoicismo admitia filósofos independentemente de classes sociais, desde escravos
(Epicteto) até imperadores (Marco Aurélio). O pensamento central do estoicismo é que
não há autoridade superior à da razão. Ou seja, o mundo que nos chega (natureza) é tudo
o que existe e essa natureza é governada por princípios racionais. Consideram que Deus
é esse espírito de racionalidade que inclui natureza e homem. Assim, colocam Deus no
mundo e não fora dele. Consideram que com a morte nos dissolvemos e retornamos à
natureza.

PENSAMENTO CRISTÃO

Santo Agostinho (354 – 430 d.C.) – Nascido em Hipona13, inicialmente se dedicou à


filosofia maniqueísta14 do profeta persa Mani (III d.C), que considerava que o
universo é um campo de batalha entre o bem e o mal. Depois, estudou Platão e o
neoplatônico Plotino, tornando-se cético. Aos 32 anos, fundiu platonismo e
cristianismo. Parte de sua filosofia está presente em grandes filósofos que surgiram
posteriormente. Por exemplo, ao considerar que o tempo não é uma realidade para
Deus e, portanto, a passagem do tempo (fluxo) caracteriza apenas a experiência,
antecipando Kant. Ao dizer que toda existência está de forma inescapável no tempo
presente e que nosso intelecto é dominado por nossa vontade, antecipou
Schopenhauer. Achava que os céticos estavam errados, porque para duvidar de algo,
ou de tudo, esse algo ou esse tudo precisava existir. Assim, considerava que é
impossível duvidar de sua própria existência. Como estamos certos sobre nossa
própria existência, então o pressuposto dos céticos (duvidar de tudo) é falso.

Como o cristianismo não era uma filosofia, mas um produto histórico (Deus criou o
mundo, enviou seu filho, há registros históricos etc), esse pensamento fez com que o
platonismo fosse incorporado à visão de mundo cristã, sem contradizê-la. Qualquer
coisa que pudesse contradizer o pensamento cristão era considerada heresia. Os dois
mundos de Platão alicerçavam bem o cristianismo. Ao contrário do que pregava a igreja,
Sto. Agostinho defendia que a intervenção de Deus é necessária para nossa salvação
(assumia a predestinação). Assim, Deus escolhe os condenados. Esse pensamento
justificou muita matança dos considerados hereges que ocorreu em nome

12
Não confundir com o pré-socrático.
13
Atualmente Argélia, norte da África.
14
Maniqueísmo se refere ao pensamento que considera que no mundo as coisas estão entre o bem e o
mal, o bom e o ruim, o certo e o errado.

28

da religião cristã. Seu pensamento influenciou os católicos e os principais nomes do


protestantismo (Lutero, Calvino e Jansênio). Sua filosofia permaneceu por mais de mil
anos. Viveu os tempos finais do domínio Romano, cuja queda marcou o início da Idade
das trevas.

Séc. II – PTOLOMEU (90 – 168 d.C.)

Cláudio Ptolomeu15 era um astrônomo grego que viveu na Alexandria. Coloca a Terra
como o centro do universo. Autor do primeiro tratado sistemático de astronomia,
acreditava que a Terra é uma esfera pendendo solta no espaço, sendo o centro do
universo, com os planetas e estrelas girando ao seu redor em amplos círculos (Sistema
Ptolomaico).
Durante a idade média, quando a igreja procurava conciliar as filosofias com sua
doutrina, essa explicação foi bem aceita: Deus fez o mundo para estar no centro de tudo;
criou o homem à sua imagem e semelhança, e no céu criou o paraíso para onde as almas
vão após a morte do corpo. Embora esse quadro fosse simples e justificado pelo que se
via (a Terra imóvel e estrelas e planetas se movendo), a matemática exigida para
sustentá-lo era muito complicada.

FILOSOFIA MEDIEVAL

Até aqui, a filosofia ocidental era dominada pelo império Romano. Com sua queda, a
civilização grega, helenística e romana sucumbem, sendo sucedidas pela Idade das
Trevas e a tentativa de conciliar Platão, Aristóteles e o Cristianismo. As civilizações
romanas foram tomadas por forças pagas, freqüentemente em guerras entre si. Enquanto
isso ocorria na Europa, 600 a 1000 d.C, outras civilizações do mundo se desenvolviam
com fases áureas culturais no Islã, China e Japão.
O contato cultural entre a Europa e o mundo islâmico (Séc. XII e XIII) foi
fundamental para o desenvolvimento intelectual europeu, pois resgatou a literatura
perdida na Idade das Trevas. A invasão dos bárbaros não chegou à Irlanda, de forma que
muitos literatos e eruditos se refugiaram lá. Entre os séculos VI e VIII, a Irlanda foi um
posto avançado de civilização.
Neste período houve grandes debates sobre as provas da existência de Deus, quais
sejam:

15
Em latim, Claudius Ptolomaeus.

29

Argumento teleológico: tudo no universo se move segundo um propósito. Mais tarde,


as áreas da Física e Biologia rejeitaram esse conceito porque explicam o universo em
termos de causas e acaso.

Argumento cosmológico: sustenta que a simples existência de algo (universo) implica


que esse algo tenha sido criado. Não pode ter passado a existir do nada. A falha é que
isso leva a uma regressão infinita, pois para qualquer coisa se supõe um algo que a criou.

Argumento ontológico: (possivelmente elaborado por Anselmo – 1033-1109,


arcebispo de Cantuária por 16 anos) o termo ontológico é aplicado a qualquer discussão
sobre a natureza do ser. Basicamente, admite que “o ser mais perfeito” tem que ter todos
os atributos. Existir é um deles. Se ele não tiver esse atributo, não pode ser “o ser mais
perfeito”. Assim, “o ser mais perfeito” só pode existir. Embora saibamos que é uma
argumentação errada, foi apenas Kant que mostrou isso, embora a controvérsia ainda
persista e este argumento recentemente tenha ressurgido na filosofia.

Atualmente, o consenso entre os filósofos é que a existência de Deus não pode ser
provada. Isso não significa que ele não exista, mas apenas que sua existência não pode
ser provada nem racionalmente e nem empiricamente.
Uma constante na filosofia medieval foi o debate entre realistas e nominalistas. Os
realistas fundamentavam-se no mundo ideal de Platão; esse mundo existe, mas o que
vemos e vivenciamos são cópias imperfeitas dele. Aristóteles e os nominalistas negavam
esse mundo de idéias universais de Platão; para eles, os “universais” são nomes úteis
para certas características, mas não são uma cofta em si.
O debate entre realistas e nominalistas buscava saber o quanto essências universais
(por ex., conceituais) existiam de fato ou não. O mundo das idéias de Platão existia de
fato? Esse debate ganhou força neste período, em parte porque tinha implicações para
questões religiosas, como a natureza da Trindade.

Séc. IX – ERÍGENA (~810 – ~877)

João Estoco Erigia – foi o único filósofo importante na Idade das Trevas.
Considerando que Deus é correto e o raciocínio correto deve levar a conclusões corretas,
então não deve haver conflito entre razão e revelação divina. Seriam formas diferentes
para se chegar à mesma conclusão. Assim, procurou demonstrar racionalmente a fé.
Usava uma argumentação neoplatônica, na tradição de Santo Agostinho, porém mais
rígido que este. Por exemplo, se Deus é incognoscível, então Deus não poderia conhecer
a si próprio. Mais tarde, essa idéia foi generalizada por Kant, incluindo Deus e os seres
humanos.

30

Séc. IX-X – AVICENA (980 – 1037)

Ibn Sina, conhecido no mundo europeu por Avicena, é o principal filósofo árabe.
Concluiu que a mente tem existência própria e independente do corpo; assim, a morte do
corpo não resulta na morte da mente. Isso feria a crença muçulmana ortodoxa, que
aceitava que o indivíduo – corpo, mente e alma – ressuscitava após a morte.
A convicção de Avicena não vinha da experiência sensível, mas do raciocínio.
Imaginava que um ser suspenso no ar, sem sentir seu corpo, existisse apenas como
mente. Mesmo que essa mente imaginasse um membro de seu corpo, esse membro seria
externo a essa mente. Com isso, defendia uma filosofia dualista (corpo e mente).

RENASCIMENTO MEDIEVAL

Marcado pelo renascer do pensamento e civilização européia. Surgem as lendas


arturianas, escritas em torno de Carlos Magno e dos Nibelungos16. São construídas
catedrais góticas (vitrais + altura extraordinária + arcos agudos etc). Na Inglaterra são
fundadas as universidades de Oxford e Cambridge. O filósofo de destaque no séc. XIII
foi Tomás de Aquino.

Séc. XIII – ROGÉRIO BACON (~1220 – 1292)

O século XIII marca o início do renascimento medieval. Rogério Bacon foi um dos
primeiros professores em Oxford. Acreditava numa ciência unificada baseada na
matemática, mas incluindo observações e experimentos (chegou a fazer estudo original
em óptica). Cresce então a importância da observação prática na busca da verdade
empírica.

Séc. XIII – SANTO TOMÁS DE AQUINO (~1225 – 1274)

Ocupou posição de destaque na mente dos católicos romanos, pois em 1879 o papa
Leão XIII recomendou sua filosofia como modelo para o pensamento católico. Isso só
perdeu força quando o concilio Vaticano II, 1962-1964, abrandou essa importância.

16
Povo de uma lenda germânica.

31

Tomás de Aquino sintetizou tudo o que fora debatido anteriormente no chamado


atomismo, que conciliava um cristianismo platonizado e a filosofia de Aristóteles.
Mantém a distinção entre filosofia e religião e separa as coisas de fé daquelas racionais.
Baseado em Aristóteles, diz que todo nosso conhecimento racional deste mundo se
baseia na nossa experiência sensorial (nossa mente reflete a partir daí). Os animais só
usufruem de impressões sensoriais; ao homem também é possível entender de forma
racional essas experiências sensoriais. Aquino denomina esse tipo de conhecimento de
“intelectual”. Acha que os seres humanos nascem com esse poder intelectual. Ele usa a
expressão latina tabula rasa (ou tabula raspada), freqüentemente atribuída a John Locke,
para dizer que nascemos como uma página em branco. Desenvolve uma teoria do
conhecimento intransigentemente empirista... mas admite que esse mundo empírico é
criação de Deus.

Séc. XIII – XIV – GUILHERME DE OCCAM (1285 – 1347)

Levou a cabo algumas das críticas de Duns Escoto17. Desenvolveu uma abordagem
empirista abrangente. Seguiu-se a ele uma escola importantíssima representada por
Locke, Berkeley e Hume. A natureza não precisa de ordem nem regularidade. Apenas a
observação, a experiência e, posteriormente, o raciocínio podem dar uma base confiável
para o conhecimento da natureza. Sua tese mais conhecida é que entre explicações para
um fenômeno, a mais complicada tem mais chance de estar errada (Princípio da
Parcimônia). Devemos supor apenas o mínimo... as entidades não devem ser supostas
desnecessariamente (ver hipóteses ad hoc em 11-10). Einstein elaborou isso de forma
brilhante: “Tudo deve ser tornado o mais simples possível, mas não mais simples que
isso”.

INÍCIO DA CIÊNCIA MODERNA

A novidade na ciência moderna foi sua insistência em testar as teorias por confronto
direto com a realidade (observação e mensuração dos dados). Antes disso as teorias
eram testadas por meio de discussão e debates.

17
Duns Escoto (~1266 – 1308) era escocês. Estudou em Oxford. Na questão fé e razão, foi contra as
idéias de São Tomás de Aquino. Considerava que apenas pela razão se poderia entender as questões da fé
e que a filosofia deveria ser autônoma em relação à teologia.

32

Séc. XV – XVI – NICOLAU MAQUIAVEL (1469 – 1527)

A ligação que Maquiavel pode ter com a ciência é que busca fazer relatos objetivos,
no caso, voltados para a política. Assim, descreve como os mecanismos políticos eram
na prática. O termo maquiavélico ficou consagrado por indicar coisas perversas, imorais,
para as quais os fins justificam os meios. Porém, isso brota da constatação empírica das
práticas humanas no exercício da política.

Séc. XV – XVI – COPÉRNICO (1473 – 1543)

Era um clérigo polonês. Mostra que as dificuldades matemáticas necessárias ao


sistema ptolomaico desaparecem se o sol, ao invés da Terra, é colocado no centro do
universo. Isso explicava mais facilmente os movimentos planetários. Mas Copérnico
ainda supunha que os movimentos desse sistema eram circulares e com velocidade
constante. Atrasou a publicação do livro até o ano de sua morte (1543), pois previa a
confusão que daria, mas dedicou o livro ao papa. No ano seguinte essa obra foi
oficialmente condenada pela igreja, tanto católica quanto protestante (Calvino). As
idéias de Copérnico colocavam em choque as autoridades (e também a idéia de
autoridade); não apenas a igreja e a bíblia, mas os sábios do passado. Se erravam quanto
a isso, podiam muito bem ter errado em relação a outras coisas (esse era o choque).
Além disso, Copérnico destitui o homem da posição mestra de centro do universo.
Indiretamente, questiona o antropocentrismo (idéia de que o homem é o centro das
coisas).

Séc. XVI – TYCHO BRAHE (1546 – 1601)

Era dinamarquês. Construiu o maior e mais acurado volume de medidas


astronômicas, jamais realizado antes da invenção do telescópio – legou esse material ao
alemão Johannes Kepler. Neste século a ciência começa a ganhar espaço em relação à
religião como forma de explicação do mundo.

33

Séc. XVI – XVII – FRANCIS BACON (1561 – 1626)

Aos 23 anos era membro do Parlamento inglês na época da rainha Elisabete I e do rei
Jaime I. Chegou a Grão-chanceler, Barão e Visconde. Por aceitar suborno, foi deposto
de todos os seus cargos e passou o resto da vida escrevendo sobre filosofia, mas seus
principais livros foram publicados a partir de seus 36 anos.
Foi educado em Cambridge, onde desenvolveu hostilidade a Aristóteles. Tentou
instituir cátedras da nova ciência em Oxford e Cambridge, mas não conseguiu. Porém,
Carlos II (neto de Jaime I) fundou a Royal Society em 1662 e a maioria de seus
membros era baiconiana, e considerava Bacon o patrono intelectual da sociedade.
Newton e Danvin reconheceram a influência de Bacon sobre seus pensamentos. Foi uma
influência grande, tanto na Inglaterra quanto na França.
Bacon é reconhecido como o primeiro pensador a assumir que o conhecimento daria
ao homem poder sobre a natureza, promovendo avanço inimaginável no progresso
humano. Porém, considerava que ninguém, até então, havia se ocupado disso de forma
apropriada. Ele criticava tanto os racionalistas quanto os empíricos. Os primeiros por
falta de contato com a realidade; os outros porque não sabiam o que fazer com os dados
que coletavam. Assim, criou um método para a obtenção de conhecimento confiável e
útil, que foi a primeira forma sistematizada da ciência empírica.
Seu Método preconizava que devemos observar e registrar fatos (coletar dados,
evidências empíricas), o máximo possível. Como a subjetividade humana podia
atrapalhar essas observações, os dados deveriam preferencialmente ser coletados por
várias pessoas (o que todos vêem é mais objetivo e real). Dessa postura, defendia a
importância das sociedades científicas e faculdades. Alertava sobre o cuidado necessário
para não impor idéias sobre os fatos. Era a busca de fatos “objetivos”. A partir desses
dados, podemos identificar regularidades, padrões, conexões causais, que nos fornecerão
leis naturais. Bacon já chamava a atenção para a importância dos exemplos contrários,
porque assumia que somos levados a ver o que acreditamos. Embora a forte ênfase aos
dados “contrários” seja dada no século XX por Sir Karl Popper, a preocupação de Bacon
era com a qualidade dos dados, pois ele achava que dados confiáveis sustentavam as
idéias a ponto de construirmos leis científicas com caráter de “verdades” (veja mais em
II-8 e II-11).
A partir da constatação de dados iniciais, elaboravam-se hipóteses. O passo seguinte
era testá-las pelo “experimento crítico”. Se a hipótese é confirmada, então teremos
descoberto uma lei, da qual podemos deduzir fatos particulares (predições). Segue,
portanto, um processo indutivo (dos fatos particulares à hipótese) e um dedutivo (da lei
geral às predições particulares). Essa formulação teve uma influência imensa na ciência
do século XVII ao XX. Essa visão só foi superada no século XX quando Einstein e
Popper introduziram uma nova atitude científica.
Em resumo, Francis Bacon separou sistematicamente a ciência da metafísica18. Viu
que as explicações científicas eram essencialmente causais e não em termos de
18
A ciência construindo idéias a partir de fatos (base empírica) e a metafísica não tendo a necessidade
dessa base empírica.

34

propósitos ou metas. Ressaltamos: o papel central da observação e do experimento, além


de sua insistência na importância do exemplo negativo (que nunca devemos esquecer ao
tirar conclusões).

35

Séc. XVI – XVII – GALILEU GALILEI (1564 – 1642)

Nasceu em Pisa e faleceu em Florença, Itália. Foi o primeiro a mostrar o princípio da


objetividade em ciência – as experiências pessoais do observador, mesmo as mais
imediatas e diretas (ex. cores, cheiro), devem ser deixadas fora das observações
registradas pelo cientista. Ou seja, devemos nos pautar nas informações objetivas, sem
nossas interferências subjetivas. Adicionalmente, proclamou o princípio de que o poder
e a autoridade não deveriam interferir nas atividades da ciência na busca da verdade. A
difusão lenta dessa idéia trouxe mudanças radicais na vida intelectual e social da Europa.
Dos fundadores da ciência moderna, foi o primeiro a entrar diretamente em confronto
com a igreja. Foi condenado pela igreja19 por dizer que a Terra girava em torno de seu
próprio eixo e em torno do sol. Para se livrar da condenação, teve que prometer nunca
mais sustentar essas opiniões.
Entre seus feitos científicos, destacam-se:

o É discutível se foi o inventor do telescópio, mas certamente foi a primeira pessoa a


observar as estrelas por meio de um deles.
o Descobriu o princípio do pêndulo, revolucionando a indústria dos relógios, o
Inventou o termômetro.
o Mostrou que todos os corpos caem à mesma velocidade, a despeito de seu peso, se
não sofrerem interferência alguma.
o Viu que na queda dos corpos, a velocidade aumenta em ritmo uniforme (3,6 m/s).
o Mostrou que todo projétil se move numa parábola (lança a ciência da artilharia).
o Mostrou que todo corpo celeste tende a se mover em linha reta; se ele se curva, é
porque tem alguma força fazendo isso.
o Mostrou que quando várias forças agem ao mesmo tempo sobre um corpo móvel,
seu efeito sobre o movimento desse corpo é o mesmo que se tivessem agido separada e
sucessivamente – isso abriu portas para a ciência da dinâmica.

19
Em 1616, essa condenação foi feita de forma privada; em 1633 foi condenado em público.

36

Séc. XVI – XVII – JOHANNES KEPLER (1571 – 1630)

Mostrou que os planetas se movem em elipses e que o movimento é mais rápido em


algumas partes de suas órbitas. Isso destruiu a idéia de que os movimentos celestes são
padrões simétricos (que era uma base estética dos antigos gregos e viraria a base
religiosa na idade média).

Séc. XVII – HOBBES (1588 – 1679)

Estudou em Oxford e era amigo de Francis Bacon. Na França, manteve


correspondência com Descartes. Foi bom amigo do matemático Gassendi20. Na Itália
visitou Galileu.
Defendia que tudo o que existe no mundo é a parte material. O restante não existe.
Dizia que considerar conceitos filosóficos e teológicos como “substância incorpórea” era
autocontraditório e não podia significar absolutamente nada. Considerava todo objeto
móvel, inclusive o homem e o universo, como uma máquina. Com essa visão, foi o
fundador do que chamamos de materialismo metafísico moderno.
A primeira teoria totalmente mecanicista da natureza foi apresentada por Hobbes.
Dessa teoria, desenvolveu uma psicologia mecanicista, segundo a qual todo processo
mental era constituído de movimentos da matéria dentro do cérebro. Essas abordagens
(materialismo, mecanicismo e psicologia puramente física) foram desenvolvidas por
outros pensadores nos séculos seguintes (XVIII a XX).
Do contato com Galileu (tudo está em movimento, inclusive a Terra e o universo), se
encantou com a noção de movimento. Talvez o movimento tenha sido prioritário sobre a
questão da matéria. Na concepção de Hobbes, causalidade assumia a forma de impulso
(achava que toda mudança ocorria assim). Na psicologia, por exemplo, toda motivação
era algum tipo de ímpeto contínuo ou uma repulsa (em termos mais atuais, seriam
“apetite”21 e “aversão”).

20
Pierre Gassendi (1592-1655), filósofo e matemático francês, combateu a filosofia escolástica e
também a nova filosofia cartesiana. Era contra a noção de idéia inata, admitindo que toda idéia vem da
experiência empírica de nossos sentidos. Posicionou-se contra o dogmatismo daqueles que achavam
possuir o conhecimento definitivo das coisas. Defende a pesquisa experimental e o método indutivo.
21
O termo apetite se refere a afinidade, afiliação, aproximação.

37

Séc. XVII – JOHN LOCKE (1632 – 1704)

Empirista inglês. Contrapõe o conceito de “verdade inata” dos racionalistas. Acha


que se tivéssemos idéias e conceitos inatos (a partir dos quais construímos conhecimento
sobre a natureza do mundo), então deveríamos ter alguma verdade comum a todos nós
no nascimento e, mais ainda, haveria verdades universais a qualquer pessoa,
independente da cultura. Assim, conclui que nosso conhecimento vem da experiência
com o mundo físico. Segundo Locke, a mente humana, ao nascimento, é como uma
tabula rasa22, uma folha em branco onde são depositadas experiências. Nós não
acrescentamos nada a isso, exceto nossa razão a essas informações que nos chegam
pelos órgãos do sentido.
Apesar disso, Locke reconhece que algumas capacidades possam ser inatas, como a
percepção e o raciocínio. Noam Chomsky, no final do século XX, avançou nessa idéia,
sugerindo que há um processo inato comum a qualquer mente humana, gerando uma
estrutura básica e universal da linguagem.
Embora Locke fosse um empirista, foi mais moderado que Berkeley. Admitia a
existência de um mundo independente dos sentidos, uma forma de dualismo cartesiano
(mente e corpo).

Séc. XVII – XVIII – ISAAC NEWTON (1642 – 1727)

Era inglês. Num único ano, entre 23 e 24 anos de idade, analisou corretamente as
propriedades constituintes da luz, inventou o cálculo e formulou e discerniu a lei da
gravitação. Revisou e corrigiu Kepler e Galileu. Por exemplo23, reformulou as três leis
de Kepler sobre o movimento planetário, que seriam as leis do movimento de Newton, e
construiu um sistema de física matemática que permitiu traçar um quadro completo e
preciso sobre o sistema solar.
Esse tipo de investigação era chamado de Filosofia Natural. Era uma tentativa de
entender os mecanismos da natureza. A palavra filosofia aparece porque nessa época
ainda não havia distinção entre Filosofia e Ciência, o que só ocorreria no século XVIII.
Os estudos de Newton comprovavam, quase 2 mil anos após, a intuição de Pitágoras
de que o universo material era passível de explicação matemática; ou seja, os fenômenos
físicos são sujeitos a leis discerníveis pelos seres humanos e exprimíveis em equações.
Ou seja, se conhecermos as condições de um sistema físico, podemos prever seu estado
em qualquer tempo futuro. Isso significava que o homem podia predizer o futuro;
havíamos domado o universo. Esse

22
Expressão já usada por Tomás de Aquino, no século XIII.
23
Publicado no livro Principia, em 1687.

38

sentimento ficou ainda mais forte quando, na Revolução Industrial24, a mecânica


newtoniana foi posta a serviço do desenvolvimento de maquinarias.
Essas mudanças conceituais aceleraram os questionamentos sobre a existência de
Deus, com o homem sendo deslocado do centro do universo. Em resumo, acreditou-se
que na construção do conhecimento as autoridades tradicionais eram um cataclisma, que
a tradição era um estorvo. Essa nova visão não apenas destituía a igreja, mas também a
visão aristotélica usada em conjunção com a igreja. Nesta nova abordagem já não cabia
preocupações com a autoridade de quem expressava alguma afirmação, mas com as
provas que a sustentavam. Esses movimentos demoraram a ocorrer, mas foram centrais
para finalizar a Idade Média.

Séc. XVII – XVIII – GEORGE BERKELEY (1685 – 1753)

Foi um empirista mais radical que Locke. Construiu o chamado idealismo


imaterialista. Defendia que há apenas uma substância no universo, uma idéia monista.
Era idealista porque defendia que essa substância era a mente (pensamento) e não a
matéria. Basicamente, achava que o mundo era composto apenas de mentes que
percebem e de suas idéias. Ele não nega a existência de um mundo físico, mas assinala
que tudo nos chega por meio de nossa experiência; ou seja, só temos acesso às nossas
percepções. Acha que compreendemos apenas as coisas mentais, não as físicas. Para
evitar a crítica de que parte do mundo físico desaparece quando não estamos nele (por
ex., ao sairmos de um lugar), invoca que esse mundo físico ainda existe porque está na
percepção de Deus. Assim, tem que admitir que exista tal deus e que ele interage
constantemente com as coisas de nosso mundo.

Séc. XVII – XVIII – VOLTAIRE (1694 – 1778)

Voltaire era pseudônimo de François Marie Arouet, pensador francês de classe


média, formado em direito e que se dedicou à filosofia, particularmente a partir de um
período em que viveu na Inglaterra.
Voltaire concordava com Locke que não havia idéias inatas e nascemos como uma
tabula rasa. Porém, acreditava em verdades absolutas e defendia que não temos como
alcançá-las. Para ele, os acontecimentos históricos eram revistos em algum momento, o
que sustentava que toda idéia ou

24
Período em que as máquinas suplantam a mão de obra humana. Iniciou-se na Inglaterra no séc.
XVIII. Trouxe uma série de transformações sociais; por exemplo, o capitalismo tornou-se o sistema
econômico predominante. Considera-se hoje que vivemos três eras: a agricultura, a industrial e,
atualmente, a da informação (comunicação).

39

teoria pode ser desafiada. Essa visão o colocava contestando certezas e costumes da
época, o que lhe rendeu uma série de problemas.
Voltaire é precursor do pensamento liberalista. Para a ciência, sua influência está no
reconhecimento de que o conhecimento que construímos é provisório (algo bem
explorado por Karl Popper no séc. XX).

Séc. XVIII – DAVID HUME (1711 – 1776)

Hume foi um empirista britânico que deflagrou o principal ataque ao racionalismo,


cujo debate já se estendia de forma imperiosa desde Descartes. Para entender seu
pensamento e sua crítica ao racionalismo, precisamos compreender como ele dividiu a
mente. Considerou que há dois tipos de fenômeno: nossas impressões ou percepções
diretas sobre as coisas (sensações, emoções, paixões) e as idéias que temos sobre essas
coisas (pensamentos que decorrem de reflexões e imaginações).
Basicamente, Hume mostra que há apenas duas proposições: as demonstrativas, que
seguem uma argumentação lógica em si; e as prováveis, que necessitam da experiência
sensível. No primeiro caso estão as deduções e as demonstrações lógico-matemáticas (1
+ 1 = 2). Contrariá-las seria uma contradição lógica. No outro extremo estão as
prováveis, cuja razão nos dá apenas umaaproximação, mas que precisamos da
experiência sensível. Por exemplo, se quisermos saber se fulano está em sua casa, não
basta raciocinarmos sobre isso; precisamos de evidências empíricas para concluir.
Hume nos diz que por maior que seja nosso universo de evidências empíricas, nunca
poderemos estar certos de que no futuro nossas expectativas ocorrerão. Note que aqui
não está em jogo a questão da probabilidade ou estatística (surgida bem depois). A
questão é saber o quanto a indução garante a verdade da conclusão. Se algo se repete do
passado ao presente, nada garante que continuará a se repetir no futuro; há apenas uma
forte expectativa de que isso ocorra, ou seja, é um fenômeno psicológico e não lógico.
Isso também se aplica à causalidade. O fato de observarmos que um fenômeno x é
seguido invariavelmente do fenômeno y não implica logicamente que x cause y, pois
nada garante que no futuro y seguirá x.
Para Hume, apenas uma base psicológica sustenta que eventos passados ocorrerão no
futuro ou que conexão entre partes envolvem causalidade. Assim, mostra que é a crença
e o hábito que guiam o raciocínio científico e não a razão. Na realidade, ele nos fala que
repetições e confirmações de regularidades não confirmam essas regularidades. Mais
ainda, nos diz que associações entre variáveis não implicam logicamente relações de
causalidade; a causalidade requer conexão25 entre os elementos. O problema da indução
levantado por Hume incomodou muito, sendo superado apenas no século XX por
Popper.

25
A conexão é dada pelo mecanismo, que é o meio pelo qual a causa (ou agente interferente) provoca
o efeito (veja VII-10).

40

O RACIONALISMO

Embora o pensamento racionalista tenha raízes nos pré-socráticos, esse movimento se


fortalece a partir de Descartes, Spinoza e Leibniz. Basicamente, rejeitavam a experiência
empírica. Descartes e Leibniz eram matemáticos e achavam que os métodos dos
matemáticos podiam ser aplicados às tentativas de se entender o mundo. Admitiam que
devemos conhecer o mundo pela razão, considerando os dados dos sentidos (base
empírica) enganosos. Como vimos, essa dicotomia (empirismo e racionalismo) tem
raízes bem mais antigas, mas foi a partir da constituição de um método (Método de
Francis Bacon e Método de René Descartes) que historicamente caracterizamos a
distinção entre ciência e filosofia (veja Tabela 1 em II-1).

Séc. XVII – RENÉ DESCARTES26 (1596 – 1650)

Nasceu em Poiteirs, na França, e faleceu em Estocolmo, Suécia. O termo “cartesiano”


decorre de seu nome. É considerado, por Bertrand Russel, o pai da filosofia moderna.
Claramente contrapõe a abordagem empírica (ciência) de Bacon à racionalista (filosofia)
de Descartes. Era um exímio escritor, com estilo claro e sem jargões; foi um dos poucos
filósofos reconhecidos que escreveram em francês (o outro foi Leibniz).
Foi o criador da geometria analítica ou geometria coordenada. É dele a invenção do
gráfico de coordenadas cartesianas (gráfico com eixos x e y, sendo x a abcissa e y a
ordenada – veja em VII-11 e IX-9 a aplicação desse conceito na análise de dados).
Buscou conhecimento em outras áreas a partir da matemática. Admitia que podíamos
conhecer algo com certeza, dessa forma contrariando os céticos. É dessa busca que
nasce seu método.
A análise matemática partia de premissas muito simples, tão simples que era difícil
duvidarmos delas. Dessas premissas, partia-se para deduções27 lógicas irrefutáveis,
resultando em conclusões que não eram simples nem óbvias. A questão era saber se esse
método matemático podia ser estendido a questões não matemáticas. Nesse
conhecimento matemático existiriam premissas irrefutáveis para o início do processo?
Podemos conhecer com certeza algo fora da matemática? Isso levantava dúvidas
importantes:

26
Pronuncie “Renê Decarte”.
27
No argumento dedutivo, se as premissas são verdadeiras e a conexão lógica é válida (usado muito da
teoria dos conjuntos), a conclusão é verdadeira. Essa força vem de que a conclusão não diz muito mais do
que o conteúdo das premissas. Ao contrário, no argumento indutivo, a conclusão ultrapassa muito o
conteúdo das premissas; há maior alcance, mas as conclusões só podem ser probabilísticas.

41

a) Podemos confiar nas provas que vêm de nossos sentidos (órgãos sensoriais) ?
Não podemos confiar nisso cegamente. Veja que os seres humanos conseguem captar,
por seus órgãos sensoriais, parte da natureza. Note que a noite nos é escura, mas é
colorida para insetos noturnos cujos órgãos sensoriais captam radiações que não
conseguimos perceber. Da mesma forma, já pensou como pode ser o mundo perceptual
de um peixe elétrico, que percebe o mundo externo principalmente em termos de
alterações de campo eletromagnético? Esses exemplos não foram usados por Descartes,
mas ressaltam a problemática na qual estava imerso.
b) Como podemos saber, ao certo, se o que pensamos é sonho ou realidade?
Vivemos esta realidade ou tudo não passa de um grande sonho ou delírio?
c) Descartes questionava se esses erros e ilusões em nossa mente poderiam ser
impostos por algum “espírito superior” para nos iludir. Desse questionamento, elaborou
sua frase famosa: cogito ergo sum (traduzido como “Penso, logo existo”28), ou seja,
podemos duvidar de tudo, mas o fato de duvidarmos já nos mostra que existimos.

Descartes admitia que uma coisa não pode criar algo maior que ela. Esse raciocínio é
coerente com a abordagem da lógica dedutiva, que parte de premissas maiores para
concluir aspectos mais restritos (o oposto do empirismo). Partindo dessa admissão, dizia
que se podemos pensar num ser perfeito, então esse ser perfeito deve existir; esse ser
perfeito criou uma consciência dele mesmo dentro de nós (por isso podemos imaginá-
lo). Com isso, Descartes conclui que podemos ter certeza das coisas, inclusive fora da
matemática, pela razão e não pelas nossas experiências sensíveis (órgãos dos sentidos).
Assim, descarta os céticos e os empíricos.
O chamado Dualismo Cartesiano nada mais é do que admitir que o mundo é
composto de mente e matéria, que caracteriza o modo ocidental de ver o mundo. Essa
visão tem implicações práticas importantes. Por exemplo, ela serve para justificar a
visão religiosa que separa o homem (com corpo e alma) dos animais (apenas corpo).
Com isso, dá margem a um pensamento de que os animais são máquinas que não sentem
e não sofrem, o que possibilita que os homens os tratem sem os devidos cuidados. Isso
foi reforçado pela visão religiosa que coloca o homem como a imagem de Deus e o
centro do universo29. A visão dualista cartesiana é criticada, principalmente por Spinoza
e Schopenhauer. No século XX essa discordância aumenta, embora alguns pensadores
ainda concordem com ele.
De todos os filósofos antecedentes, Descartes foi o que mais nos indicou que a
certeza estava ao alcance do ser humano por meio do método racional (pelo pensamento
mais que pela observação). Basicamente, os pré-socráticos se ocupavam do que existe,
tentando saber do que era

28
Segundo Bryan Magee (2001), uma tradução um tanto equivocada, não apropriada. Porém, o sentido
geral dessa frase é mostrar que a única certeza que podemos ter é que existimos e isso vem da percepção
racional que temos.
29
Veja mais detalhes desse debate na atualidade sobre o bem-estar animal em Volpato et al. (2007).

42

constituído o mundo (a composição das coisas); os socráticos discutiram como devemos


viver neste mundo (moral e ética são priorizadas) e Francis Bacon e Descartes se
ocupam sobre o que conseguimos saber e como obter esse conhecimento. No caso de
Descartes, coloca a epistemologia (teoria do conhecimento) como matéria central na
filosofia.

O DEBATE RACIONALISMO – EMPIRISMO

Este debate percorreu, e ainda percorre, parte importante da filosofia do


conhecimento. A divergência dessas duas escolas epistemológicas está sobre o quê e
como podemos conhecer. Os empiristas reforçam a necessidade de nossa experiência
sensível (por meio de órgãos dos sentidos) e os racionalistas sustentam que atingimos o
conhecimento exclusivamente a partir do raciocínio (reflexão racional). Leibniz foi um
marco na junção desse debate.

Séc. XVII – XVIII – GOTTFRIED LEIBNIZ (1646 – 1716)

Viveu na Alemanha. Nasceu em Leipzig e morreu em Hanôver. Era filósofo e


matemático30. Foi diplomata e bibliotecário.
Pelo seu lado racionalista, assumia que conseguimos acessar qualquer conhecimento
a partir de reflexões racionais. Porém, reconhece que temos deficiências em nossas
faculdades racionais e, dessa forma, devemos também contar com a experiência sensível
para a construção do conhecimento.
Para Leibniz, como tudo no universo está conectado entre si, é possível descobrirmos
com nossa razão coisas que não nos são apresentadas diretamente, mas que podem ser
descobertas vasculhando-se essas conexões. Isso nos leva ao que Leibniz chama de
verdades da razão.
No entanto, ele reconhece que tal análise pode ser tão complexa (infinita) que o mais
simples e possível, em alguns casos, seria o recurso à experiência empírica. Assim,
mesmo que seja possível conhecermos racionalmente qual é a temperatura real na
superfície da estrela Betelgeuse, dada a análise infinita, seria mais razoável medirmos
empiricamente essa temperatura por meio de instrumento apropriado.
As idéias de Leibniz foram duramente criticadas no século XX. Porém, elas foram
importantes para David Hume e Immanuel Kant. O problema maior de Leibniz é que,
como racionalista,

30
Há certa polêmica sobre a invenção do cálculo infinitesimal por Newton ou Leibniz; é provável que
ambos tenham chegado a esse cálculo de forma independente.

43

achava que as idéias vindas da razão eram necessárias (impossíveis de serem


contraditas), enquanto aquelas da experiência eram contingentes (podiam ser contestadas
logicamente). Mas representou um avanço na abertura para uma conciliação entre razão
e experiência.

EM RESUMO

Vimos que parte fundamental do debate filosófico necessário para o entendimento da


ciência empírica foi travada em torno da abordagem racionalista ou empirista na
construção do conhecimento. A partir do séc. XVIII surgiram tentativas de conciliação
entre as duas abordagens, representadas aqui com Leibniz. Immanuel Kant (Séc. XVIII
– 1724-1804) propôs uma síntese importante: reconhece que não podemos conhecer as
coisas em si, mas que as impressões vindas pelos órgãos sensoriais (empírico) só fazem
sentido quando confrontadas e interpretadas pelos conceitos sobre essa coisa. É a
conjunção entre a impressão sensorial (intuições) que nos vem do “cão” e o conceito que
temos de “cão” que nos possibilita criar nosso conhecimento e entendimento sobre o
“cão”.
Ludwig Wittgenstein (Séc. XIX e XX – 1889-1951) usa a linguagem nessa discussão.
A linguagem é formada de proposições sobre as coisas do mundo. O mundo nos fornece
os fatos. As proposições são reflexos (imagens) dos fatos. Toda proposição que não
reflita fatos é sem sentido, o que nos remete apenas à linguagem que trata de fatos.
Na segunda metade do século XX grande debate se seguiu entre Karl Popper e
Thomas Kuhn, relatado em Lakatos e Musgrave (1979). Chama também a atenção a
posição de Paul Feyerabend31, discípulo de Popper e que seguiu, mais tarde, Thomas
Kuhn. Diferentemente de ambos, assumia que não há um método único pelo qual se
possa explicar como se constrói o conhecimento científico. Assume que é um vale-tudo.
Na prática da ciência atual, em muitas áreas e periódicos científicos de alto nível
ainda prevalece a rigidez da base empírica na sustentação das conclusões (idéias). Fica
também claro que apenas os dados são insuficientes para se construir o discurso
científico, sendo ele uma representação do cientista sobre os fatos que apresenta. E o que
fica como conhecimento científico é exatamente aquilo que consegue sobreviver nesse
meio midiático competitivo. Assim, cabe ao cientista entender esse panorama e entrar no
debate. Os conceitos que aqui se seguem visam dar esse entendimento, de forma que as
propostas apresentadas no resumo sobre o debate racionalista e empirista são facilmente
identificáveis. É a partir desse entendimento que a prática científica deve ser construída.
Filosofia e ciência se juntam na proposta humana de conhecer a natureza32.

31
Paul Karl Feyerabend (Viena, 13/01/1924 – Zurique (Genolier), 11/02/1994).
32
Natureza inclui o homem, seus pensamentos e relações sociais.

44

Referência

Lakatos I, Musgrave A (orgs.). 1979. A crítica e o desenvolvimento do conhecimento. Edusp.

Obras Consultadas

Atkinson S (ed.). 2011. O livro da filosofia. DK. Editora Globo.


Blackburn S. 1996. Dictionary of philosophy. Oxford University Press.
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Franca L. 1978. Noções de história da filosofia. 22a ed. Livraria Agir Editora.
Losee J. 1979. Introdução histórica à filosofia da ciência. Série O Homem e a Ciência, vol. 5.
Editora Itatiaia, Edusp.
Magee B. 2001. História da filosofia. 3a ed. Edições Loyola.
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Ronan CA. 1987. História ilustrada da ciência. Jorge Zahar Editor.
Russell B. 1977. História da filosofia ocidental. 3 volumes. 3a ed. Companhia Editora Nacional.

Literatura Complementar

Asimov 1.1993. Cronologia das ciências e das descobertas. Editora Civilização Brasileira S.A.
Balchin J. 2008. Os 100 cientistas que mudaram o mundo. Editora Madras.
Bréhier É. 1977. História da filosofia, v. 1-7. Editora Mestre Jou.
Chalmers AF. 1994. A fabricação da ciência. Editora Unesp.
Chalmers AF. 2000. O que é ciência afinal? Editora Brasiliense.
Gaardner J. 2000. O Mundo de Sofia. Editora Companhia das Letras.
Giles TR. 1993. Dicionário de filosofia: termos e filósofos. Editora Pedagógica e Universitária
Ltda..

45

Haven K. 2008. As 100 Maiores Descobertas Científicas de Todos os Tempos. 2a ed. Ediouro.
Horgan J. 1998. O Fim da Ciência – uma discussão sobre os limites do conhecimento científico.
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Montanelli I, Gervaso R. 1967. Idade média: treva ou luz? Editora Ibrasa.
Oliveira J, Garcez L. 2002. Explicando a Arte. Ediouro.
Omnès R. 1996. Filosofia da ciência contemporânea. Editora Unesp.
Paim A. 1974. História das Idéias Filosóficas no Brasil. Edusp.
Price DS. 1976. A Ciência desde a Babilônia. Série O Homem e a Ciência, vol. 2. Editora
Itatiaia, Edusp.
Sciacca ME 1968. História da filosofia. Editora Mestre Tou.
Strathern P. 1999. São Tomás de Aquino em 90 minutos. Jorge Zahar Editor.
Volpato GL. 2007. Bases teóricas para redação científica. Editora Cultura Acadêmica, Editora
Scripta. Woodford S. 1983. A arte de ver a arte. Zahar Editores.

46

PARTE 2
DO ERRO À FORMAÇÃO

47

CAPÍTULO I

A Deformação de Cientistas

Conhecer o que não fazer na formação de nossos futuros cientistas é um grande


avanço, pois evita cometermos erros decisivos. Enfrentar esta questão com sinceridade é
um primeiro passo fundamental.
Primeiramente, devemos entender que num processo democrático de ensino ninguém
forma ninguém; ao contrário, o aluno tem a chance de construir uma boa formação.
Basicamente, o ambiente oferece professores competentes, que têm prazer em ensinar, e
uma estrutura (física e social) condizente com um ambiente de ciência. O aluno, nesse
contexto, só precisa aproveitar. Nesse ambiente ele entra ávido pelos conhecimentos e
experiências que o levarão a ser um cientista. As direções lhes são dadas pelos
professores, mas a obtenção do conhecimento parte do aluno, que é impulsionada pelo
seu desejo de aprender. Bonito... mas não é assim, certo? Se fosse, seria o “céu”. A
realidade é bem outra. Em geral, temos um ambiente que nada tem de científico,
professores que não são cientistas e alunos que querem qualquer outra coisa, exceto
ciência. Mas, ao final, o sistema espera que formemos cientistas. É, a tarefa não é fácil!
Muitos equívocos existem (contraste com o capítulo XII), mas é importante frisar
aqui que o ensino da ciência não é apenas formal (nas escolas) e que, mesmo em seu
aspecto formal, não deve ocorrer apenas nas disciplinas especificamente destinadas a
esse fim, mas fazer parte do discurso geral em cada disciplina e orientação.

48

I-1 O que é ser cientista?

Já notou que as pessoas que fazem ciência geralmente se denominam pesquisadores,


mas não cientistas? Certa vez, no ano de 1992, eu estava num ônibus em Israel, num
percurso entre Rehovot e Bet-Dagan (próximo a Tel-Aviv), quando iniciei conversa com
um dos passageiros. Ele era russo. Fazia parte, na época, de cerca de 10% da população
de Israel que havia recentemente chegado ao país, deixando a Rússia no pós-
Perestroika33 de Gorbachev34. Os russos chegavam em busca de emprego e de uma vida
diferente. Durante a conversa, perguntei-lhe o que fazia. Ele respondeu: sou cientista!35
Nunca me esqueci disso e as reflexões sobre o porquê de a resposta mais comum aqui no
Brasil ser “sou pesquisador” me ressoaram por alguns anos.
Solucionar essa questão é fácil. Pesquisador é todo aquele que faz pesquisa, ou seja,
que investiga algo. Nem toda pesquisa usa o método científico (veja II-3). Podemos
fazer pesquisa a partir de referenciais artísticos, místicos, filosóficos, mas não
necessariamente científicos nos moldes definidos em II-1, II-2 e II-4. Podemos
pesquisar, por exemplo, quantas pessoas usam determinada marca de eletrodoméstico,
mas isso não é necessariamente ciência. Assim, todo cientista é um pesquisador, mas
nem todo pesquisador é um cientista. Para melhor entendimento, veja que um cientista
não apenas usa os métodos científicos (II-3), mas sua concepção de construção do
conhecimento é também diferente (veja II-10, II-11 e II-12). Ele inclui na rede de
conhecimento científico (Ciência) as conclusões de sua pesquisa, contribuindo para que
algo novo tenha sido adicionado nesse sistema de conhecimento. Ou seja, não basta ter
uma resposta, é necessário conectá-la com o discurso científico da área.
Se você faz ciência (veja II-2), então responda que é um cientista, pois ficaria
implícito que é também pesquisador. Ao responder que é pesquisador, não implica que
seja cientista. Um cientista usa também os vieses filosóficos (lógicos e epistemológicos)
sobre o fazer ciência. Além de pesquisar e concluir algo, ele deve inteirar essa conclusão
na rede de conhecimento científico existente e isso faz muita diferença.

33
Processo de reestruturação da União Soviética introduzido por Gorbachev, em 1985.
34
Mikhail Serguéievich Gorbachev (nascido em Stavropol, cidade do sudoeste da Rússia, em
02/03/1931) – foi secretário geral do Comitê Central do Partido Comunista da União Soviética, entre 1985
e 1991.
35
É evidente que ele pode ter se esquecido de como se diz “researcher” e lhe veio à mente apenas a
palavra “scientist” – mas isso nunca saberei.

49

I-2 Como impedir a formação de um cientista?

Há diversas formas para se evitar que uma pessoa se torne um cientista. Aqui me
aterei àquelas menos evidentes e presentes em sistemas que se dizem formadores de
cientistas.
Elas decorrem de visões equivocadas sobre o que é ser um cientista. Assim, esses
equívocos tiram o aluno dos trilhos da ciência, ao mesmo tempo em que seus
promotores bradam estar formando cientistas. Essa é a conseqüência comum de qualquer
atitude humana que não examine profundamente os pressupostos teóricos subjacentes
aos atos. É exatamente por isso que neste livro examino a formação de cientistas a partir
de sua inevitável base teórica.
Um cientista é uma pessoa curiosa, crítica com o que percebe e empreendedora para
conseguir as respostas à suas indagações. Na atualidade, deve também ser ávido por
inserir suas conclusões na comunidade científica, fazendo com que essa comunidade
aceite e use essas conclusões. Esse perfil exige habilidades e desejos que não podem ser
apagados desde a tenra formação da criança até a emancipação do cientista já adulto.

I-3 Como as agências de fomento à pesquisa podem prejudicar a formação de um


cientista?

a) Seleção errada de orientadores. O pressuposto é que para ensinar seja preciso, no


mínimo, conhecer; ou seja, cientistas são formados por cientistas. As agências de
fomento acertam quando incluem na análise das solicitações de bolsas de pesquisa o
currículo dos orientadores. Porém, essa análise pode conter equívocos. Hoje já se
reconhece que o número de publicações não significa capacidade científica (veja
capítulo IV). Participar da ciência internacional é requisito para o cientista em
praticamente todas as áreas. Dessa forma, seleções que não prestigiem isso acabam
por conduzir o aspirante a cientista a um mundo equivocado que o distanciará cada
vez mais da ciência de bom nível. Recentemente, a Fapesp36 solicitou a seus revisores
que julguem o número de citações que os proponentes têm recebido, mais do que o
fator de impacto das revistas onde publicam37. É um começo em direção à avaliação
da eficiência, mas ainda é mais exceção do que regra.

b) Ênfase no desempenho na graduação. Particularmente no caso das bolsas de


Iniciação Científica (IC), o privilégio que se dá às notas obtidas nas disciplinas de
graduação pode envolver um sério engano. De um lado, admite-se que o sistema de
ensino da graduação é um bom referencial para selecionar pessoas com maior
potencialidade para a ciência. Como mostrarei

36
Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo.
37
Veja http://www.fapesp.br/sumula - item 7.

50

nas questões seguintes deste capítulo, o quadro é triste e usar esse cenário como
critério de avaliação curricular é incorporar tais equívocos. Isso ainda leva a outro
problema quando notas ou reprovações impedem os alunos de concorrer ou manter
suas bolsas. Ao aluno reprovado nos anos iniciais da graduação sobra o desestímulo
na continuidade dos estudos. Uma sensação de inevitabilidade futura decorrente de
um deslize passado. Dar a chance de recuperação, particularmente numa fase inicial
da formação, talvez seja o melhor estímulo que uma mente brilhante precise. Mais
ainda, os critérios de avaliação na graduação variam enorme-mente entre os docentes,
seja entre disciplinas, cursos e instituições.

c) Prestigiar equívocos na concepção dos projetos. Uma agência de fomento reforça


esse tipo de equívoco quando não estimula projetos ousados, idéias malucas, mas
também quando aprova mesmices. Há projetos financiados e que claramente não
trazem grandes novidades à área. Basta olhar o volume de teses produzidas
anualmente; considere que geralmente produzem mais de um artigo, mas pouco se
acrescenta à ciência. Atualmente, a palavra inovação já é mais ouvida nos círculos
acadêmicos, até mesmo governamentais. Estamos descobrindo que ciência tem que
ser inovadora. Mas isso ainda é incipiente. É evidente que o espaço para projetos
ousados e inovadores será sempre um pequeno percentual dos financiamentos, mas
devem ser estimulados.

d) Solicitar equívocos na redação dos projetos. Quando uma agência exige certos
formatos redacionais nos projetos, o solicitante deve optar por segui-los, ou não
solicitar o fomento. Assim, esses formatos têm força formadora impositiva. Vou citar
4 exemplos, pois outros serão visíveis ao longo do livro. Estimular prolixidade,
solicitando e aplaudindo projetos longos, incute na cabeça do aprendiz que isso faz
parte da comunicação científica. Mas quem perambula pela ciência internacional sabe
que é exatamente o oposto. Escreve demais quem não sabe exatamente o que quer
dizer, porque se soubesse escreveria apenas o essencial e necessário para se fazer
entender. Outro equivoco é a exigência de hipótese. O recurso metodológico de usar
hipótese é uma das importantes ferramentas do cientista, mas não é a única forma de
fazer ciência. Há problemas cujas respostas não requerem hipótese e podem gerar
pesquisas de altíssimo nível (veja VII-10), publicadas em revistas tão boas quanto
Science e Nature. Ao ignorar as pesquisas sem hipótese, priva-se a chance de que
essas perguntas sejam respondidas. Isso decorre de uma incompreensão da lógica
básica do processo científico por parte dos responsáveis pelo fomento, muitas vezes
facilitada pela tendência superficial de falar de ciência a partir da experiência de sua
própria área38. Se a agência exige que o projeto de pesquisa separe a Introdução e a
Justificativa em tópicos distintos, incute outro erro. Muitos alunos levam anos para
entender o equívoco dessa exigência e ficam perambulando na ciência de baixo nível

38
A melhor forma de saber o que é padrão na ciência é olhar o que é comum a várias áreas,
entendendo que os vieses de área são distorções culturais do processo científico. Quando há vícios
característicos de sua área, não pense que ela está acima das demais; possivelmente esteja bem abaixo.

51

enquanto incorporam isso aos seus manuscritos. Em qualquer lugar do mundo (talvez
não em alguns setores do Brasil), a Introdução é o lugar onde situamos o problema
que originou

52

a pesquisa e onde justificamos os objetivos escolhidos, apresentando-os39 (veja X-2,


X-16 e X-17). O quarto exemplo é a especificação de objetivos gerais e objetivos
específicos. Por falta de instrução, a maioria erra e coloca nos objetivos específicos
passos metodológicos. Lembre-se que a metodologia é guiada pelo objetivo, seja
específico ou geral, e não se confunde com ele (volto a esse ponto em VI-9). Sinto
saudade da época em que ao menos a Fapesp dava a seguinte diretriz para se construir
o projeto: faça um projeto de pesquisa que tenha condições de ser analisado pela
assessoria científica. E os pesquisadores faziam!

I-4 Como as instituições de ensino e pesquisa podem prejudicar a formação de um


cientista?

a) Permitindo orientação por inexperientes. Em geral, basta ser professor


universitário ou pesquisador para que lhe seja facultado orientar ao nível de
graduação. Quando pessoas inexperientes iniciam essas orientações, geralmente não
se produz boa ciência e os resultados, quando muito, vão parar em resumo de algum
congresso regional ou nacional. Note que isso é menos freqüente na pós-graduação,
porque o sistema Capes40, ou mesmo de outras agências de fomento, exige um limiar
de qualidade e experiência científica dos orientadores.

b) Não estimulando a formação científica. Há universidades, muitas delas


particulares, e instituições de pesquisa que consideram a produção de ciência como
mera formalidade. Não facilitam a vida do aluno para os estágios de orientação
científica nem oferecem disciplinas (exceto as obrigatórias) ou atividades canalizadas
para a formação científica. Por considerarem as pesquisas como mera formalidade
para atender critérios de agências avaliadoras, mesmo os professores não são
estimulados a fazer ciência. Tanto professores quanto alunos são submetidos a grades
curriculares que os forçam a passar quase todo o tempo dentro de sala de aula, sem
maiores chances de interação e busca ativa pelo conhecimento. Relegam para
segundo plano atividades de formação geral do indivíduo.

c) Não valorizando a pesquisa na instituição. Não acreditam na ciência como meio


construtivo para o país. Nesses casos, a formação dos alunos fica restrita ao ensino
em sala de aula. Para se formar cientistas, o local deve “respirar” ciência; se
“empolgar” com ciência; “viver” ciência. No passado, já ouvi de colegas “você faz
ciência porque gosta, mas sua função na universidade é dar aulas” – isso em minha
instituição, que é uma universidade pública paulista.

39
No caso de textos sobre a pesquisa já realizada (por ex., artigos, teses), pode-se substituir o objetivo
pela conclusão (veja X-16 para detalhes).
40
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Capes.

53

d) Enfatizando a dicotomia entre pesquisa e ensino. Hoje muitas instituições


reforçam esse erro. É comum que isso se inicie pela divisão de setores, comissões e
pró-reitorias específicas para

54

pesquisa e para ensino (leia-se, ensino de graduação – leia-se, ainda, não ensino
formador de cientista). Uma alegação comum é dizer que a pesquisa atrapalha o
ensino; ou que o ensino atrapalha a pesquisa41. Conseguem separar duas atividades
intrinsecamente imbricadas!

e) Não favorecendo horários para os alunos freqüentarem estágios. Ao retirar do


aluno horas para realizar estágios de pesquisa científica, está-se impingindo ao aluno
uma dura carga de trabalho, caso insista em fazer pesquisa. Ou seja, se o aluno quiser
se envolver com pesquisa, terá que “pagar” por isso, enquanto o ensino decoreba
corre livremente nas salas de aula. Ele terá que fazer pesquisa na hora do almoço, nos
finais de semana... parece até que está fazendo algo que é proibido!

f) Permitindo que não cientistas governem. Ao fazerem isso, as distorções sobre a


formação de cientistas começam a ficar evidentes. As nomeações posteriores só
reforçam esse equívoco. Como dirigentes que não fazem ciência criarão ambiente de
ciência? Se conseguirem, é exceção. Varias atividades e valorizações passam antes
pelos nossos critérios de prioridades. Se elas não reconhecem a formação científica, o
clima fica ainda mais difícil.

À medida que as instituições são oficiais e têm poder, seus atos marcam e gravam
profundamente a vida dos formandos, estejam eles em qualquer nível. Assim, uma
imposição de formulário ou um requisito para avaliação curricular impõem
subliminarmente conceitos sobre ciência. Dada a posição dessas instituições, esses
equívocos chegam como “verdades”, cujos prejuízos posteriores podem ser
imensuráveis.
Devemos lembrar que nossos cientistas estão, cada dia mais, concorrendo com os
melhores do mundo, pois deste país se espera uma potência em nível internacional. Mas
o desempenho é mais que a própria formação do cientista; requer também estrutura
administrativa e investimento compatíveis. Enquanto gastamos duros meses para reparar
um equipamento enfrentando burocracia e incompetência administrativa, nossos
concorrentes de países desenvolvidos resolvem o mesmo problema em poucas semanas,
ou dias.
Assim, buscar independência científica é mais do que formar cientistas; é dar a eles
condições adequadas de trabalho.

I-5 Como os professores podem prejudicar a formação de um cientista?

a) Promovendo ensino paternalista. Este tipo de ensino torna o professor a figura


central do aprendizado. Ele não ensina o aluno a pescar, mas lhe leva o peixe (ou
apenas mostra onde está!). Ele

41
Se a pesquisa atrapalha o ensino, então a melhor formação de alunos está nas escolas particulares;
mais ainda, quanto mais se produz cientificamente, pior deve ser o ensino de nossas instituições. Você
acha isso verdade?

55

não dá autonomia ao aluno. Em alguns casos há professores que chegam a se


fantasiar ou fazer teatrinhos para “estimular” os alunos desinteressados. Quando esses
professores assumem essa postura, reforçam no aluno que a eles basta existir, pois
aprender não é função deles; compete ao professor ensinar. Ensino paternalista
reforça alunos passivos, sem incentivo a uma postura empreendedora e crítica,
condição necessária a um cientista. O aprendizado é assunto de duas mãos: o aluno
que quer aprender e o professor que quer facilitar esse aprendizado. Falha num desses
elementos compromete a aprendizagem.

b) Incutindo no aluno a dicotomia entre ensino e pesquisa. Conforme já salientei


(veja I-1), o cientista gera ciência e forma cientistas; portanto, é cientista e educador.
Ao reforçar a dicotomia, estimula-se no aluno que se dirija a um desses lados. Se
segue para a pesquisa, terá grande chance de se tornar mais um publicador que não
gosta de ensino; se vai para o ensino, mais um transmissor de informações que
desdenha a pesquisa.

c) Não usando a sala de aula para ensinar postura científica. A postura científica
requer qualidades como as apresentadas em 1-1, V-8 e XII-2. Essas qualidades devem
ser estimuladas e vivenciadas pelas pessoas o mais precocemente possível. Ao não
estimulá-las, reforçam-se padrões de conduta e comportamento que afastam o
indivíduo do perfil científico. Note que a maioria dos alunos passa muito tempo em
sala de aula, num sistema que enfatiza a excelência do professor. O que acha que
ficará na cabeça desse aprendiz?

d) Reprimindo posturas críticas dos alunos. Dentre todas as qualidades de um


cientista, a capacidade crítica é uma das principais. Serve inclusive para que ele
consiga propor novas idéias (veja capítulo V). A partir do momento em que o aluno
começa a ser reprimido por manifestar críticas, a maioria tenderá a evitá-las. Esse é
um dos maiores crimes contra uma mente questionadora.

e) Fazendo provas e discussões que não exigem raciocínio. Para o aluno, a prova
reflete o que deveria saber segundo a opinião do professor e, portanto, o que de mais
nobre se quis ensinar naquela disciplina. Quando a prova é medíocre, força-se o olhar
do aluno para os aspectos medíocres da disciplina. Incute nele que o volume de
informações é mais importante do que saber criticá-las e aplicá-las. Hoje vivemos a
era da comunicação e da informação e sabemos que o enfoque mudou: informações
existem aos montes... faltam mentes que consigam trabalhá-las. O cientista vive
exatamente esse dilema. Milhares de artigos são publicados mensalmente... quais ler?
O que fazer com eles? Essa é a questão. A informação científica pode ser encontrada
num livro, num artigo, numa página da Internet. Mas saber o que fazer com elas é
função dos cientistas. Veja a redação de um artigo de revisão: requer conhecimento

56

da literatura e capacidade de síntese e criatividade para elaborar conclusões novas a


partir de um universo já publicado42.

42
Infelizmente, no Brasil várias agências importantes acham que a revisão é um trabalho de segunda
categoria (algumas sequer as aceitam ou investem em revistas do tipo Annual Reviews). Contrariamente,
nos melhores periódicos do mundo as revisões são escritas por experts e as revistas dedicadas a esse perfil
possuem altíssimo fator de impacto. De outro lado, as revisões da literatura presentes nas teses no Brasil,
ou publicadas em periódicos regionais, não ultrapassam o nível da compilação e da mesmice.

57

I-6 Como os orientadores podem prejudicar a formação de um cientista?

a) Tentando ensinar sem conhecer. Formar um cientista envolve ensinar a arte da


pesquisa científica, e muito mais. Como o “muito mais” já é pedir demais, vamos
ficar com a arte da pesquisa científica. Ela envolve boas idéias, planejamento
impecável, execução primorosa, análise profunda e comunicação fascinante. Como
ensinar isso se o orientador não realiza isso na sua rotina? Como dar as dicas ao aluno
para que tenha boas idéias se o próprio orientador só pensa pesquisa de baixo
escalão? Como fazer um planejamento do estudo se não se conhecem delineamentos?
Como instruir na coleta de dados se não temos prática? Como analisar dados se temos
equívocos sobre os pressupostos dessa atividade na ciência de bom nível? Como
ensinar a arte da Redação Científica se nem o orientador consegue publicar em
periódico respeitável?

b) Praticando a orientação poleiro. Esta orientação consiste em colocar mestrando


para orientar graduando; doutorando para orientar mestrando e pós-doutorando
orientando doutorando (Volpato 2009). Inicialmente, cabe notar que o aluno escolheu
um orientador, mas acabou ficando sem essa orientação direta (afinal, ele não
escolheu o aluno). Essa postura pressupõe que a formação do cientista se resume no
aprendizado de técnicas. Mesmo na ciência internacional de bom nível este sistema
de orientação é comum, pois ele é eficiente na produção de papers. Mas orientar é
mais que isso, é a arte de formar cérebros. Lógico que alguns aprendem dessa forma,
mas muitos se sentem desestimulados ou são deformados. Nesta proposta, pessoas
inexperientes assumem o controle (veja item a desta questão, I-4a e capítulo XII).

c) Não concluindo o processo da pesquisa científica. Geralmente a parte que fica é a


publicação da pesquisa realizada. A não conclusão passa ao aluno a falsa impressão
de que basta coletar dados e concluir o TCC43, ou enviar um resumo (mesmo que
expandido) a um congresso. É evidente que não. A pesquisa só é concluída quando
publicada e o objetivo do cientista é atingido quando sua publicação é incorporada à
Ciência. Sem isso, o cientista (de)formado não aprendeu o processo todo e terá que se
virar sozinho para complementar sua formação. Como a crítica de revisores de
revistas internacionais é uma das melhores escolas de redação e publicação, o
cientista privado desse ambiente por não submeter artigos poderá vir a ser mais um
daqueles que gastam dinheiro em pesquisa que não leva a nada.

d) Permitindo a orientação “linha de montagem”. Se a questão é publicar bastante,


uma produção em série resolve. Um tem idéias, o outro planeja, outros coletam
dados, alguns analisam e concluem, e alguém redige e submete para a publicação. Se
um orientador desvincula o ensino da pesquisa, muito possivelmente concebe a

43
TCC = Trabalho de Conclusão de Curso.

58

formação científica como a criação de publicadores de papers. E o pior é que nem


isso farão com qualidade, porque

59

aprendem partes de um processo único. Um violinista não compõe uma orquestra,


nem a rege. Para isso é necessário o maestro. No laboratório, mesmo que num grupo
de pesquisa, cada cientista ou aspirante a cientista não é um elemento isolado, como
um violinista numa orquestra. Ele deve ser o todo. Nesse sentido, cada elemento
desse grupo deve aprender todo o processo e saber coordená-lo. Somente esse
conjunto dará elementos suficientes para que o cientista se desenvolva e exerça com
maestria sua função.

e) Enfatizando a especialização precoce. Forma o aluno numa visão restrita do


processo. Cada vez mais saberá muito de pouco, ou nada de muito, como diz o velho
ditado. Quando o programa PET-Capes44 foi idealizado, e na primeira década de sua
existência, a proposta era um bom e sonoro não à especialização precoce. Deveria ser
dada ao aluno uma formação geral, oportunidade para aprender outras coisas antes
que caísse na inevitabilidade da especialização. Mas, com o tempo (meados da
década de 90), esse programa foi sendo enquadrado nos moldes da pós-graduação
(por ex., avaliações por meio de conceitos, ênfase nas notas de graduação, perda de
credibilidade nos orientadores conforme o número de grupos do PET aumentava
drasticamente).

I-7 Como o próprio aluno pode prejudicar sua formação científica?

Lembre-se que a vida profissional que está em jogo é a do aluno. Se ele relegar seu
sucesso a outros poderá se dar mal. É melhor cuidar dos próprios interesses.

a) Não se preocupando com os equívocos vistos nas questões anteriores. Muito do


que foi dito até aqui pode ser evitado pelo aluno. Conhecer esses equívocos, portanto,
é crucial para seu ponto de partida. Justificar danos atribuindo culpa a outros é típico
daqueles que não assumem responsabilidade e se acham vítima da vida. Vá atrás da
sua formação diferenciada.

b) Achando que é vítima da vida e o mundo lhe deve favores. Não se faça de coitado.
Ou você luta por você ou dependerá sempre da sorte de alguém querer lhe dar
presentes. Uma postura empreendedora aprende com o passado e sai à luta para
mudar o presente e o futuro. Se você é pobre, não vai resolver culpar o sistema. Se
tem alguma complicação de saúde, enfrente-a ou conviva com ela. Faça o seu
máximo. Se acha que tem azar, comece a refletir sobre o que é “azar”; parece algo
mais relacionado à falta de visão de oportunidade e falta de preparo para quando a
oportunidade chega. Lembre-se, você merece ser um

44
No início, chamado de Programa Especial de Treinamento. Atualmente significa Programa de
Estudo Tutorial. Fui o idealizador do primeiro grupo PET da Unesp de Botucatu, em 1988 – PET em
Ciências Biológicas. Minha proposta PET lembra em muito minha proposta de formação de cientistas
mostrada em Volpato (2001), que visa a formação geral do cientista.

60

profissional competente como outros e é desse profissional que seu país precisa.
Levante-se e vá à luta. Conhecer suas limitações é fundamental, pois o coloca da
forma certa na sua própria história.

c) Não sendo ambicioso. Você não deve se contentar com qualquer formação. Você e
seu país merecem o melhor. Contente-se com o que conseguir, mas sempre que houver
chance de progredir, progrida. Quando não se é ambicioso, parasse antes, deixam-se
passar oportunidades importantes. Desperdiçam-se tempo e chances. Por que o outro
pode e você não?

d) Não aproveitando as horas extraclasse para crescer cientificamente. Perder tempo


é a coisa mais fácil do mundo; otimizá-lo é uma arte (Volpato 2009). Se acha que o
tempo está curto, compute quantas horas gasta com atividades que não o levam para
frente. Fica horas procurando o que deveria estar no lugar certo, mas não está? Gasta
tempo falando desnecessariamente, ou conversando com quem não deve? Fica horas
na mídia social e depois reclama de falta de tempo? Lembre-se, tempo existe (assim
como dinheiro)... basta conquistá-lo. Objetividade e foco são fundamentais para não
se perder tempo (e objetividade e foco são cruciais na vida do cientista).

e) Temendo ser corrigido ou experimentar coisas novas. Crescer não é apenas


acumular passivamente (veja Dennett 2002 e 11-11). Crescer é também, e
principalmente, modificar-se. Se entrar numa discussão e sair como antes,
possivelmente não cresceu (um pouco talvez, pois pode ter fortalecido alguns de seus
argumentos). Mas se mudar de opinião, certamente terá novos horizontes pela frente.
Mas como saber se mudamos para o caminho certo ou para o caminho errado? Não
há como saber... só podemos arriscar. Construir ciência é erguer um sólido edifício
sobre o pântano45. Conhecer envolve sair à busca de novas opiniões. Costumo dizer
que se um dia você se achar “muito bom”, não se iluda... está na hora de mudar a
vizinhança. Não tenha medo de errar; aprenda com cada erro e modifique seu futuro
(veja Dennett 2002).

f) Evitando conversas com outras pessoas. Cada pessoa é um mundo. Não seja
preconceituoso... cada um sempre pode lhe acrescentar algo. Tente conhecer e não se
impor. Essa postura lhe permite sempre crescer, com novas idéias e entendendo que o
mundo pode ser bem maior do que parece. Nem sempre boas dicas ou idéias vêm dos
especialistas das mesmas áreas. Converse com pessoas diferentes, de fora de seu
círculo. Do contrário, reverberará sobre seus limites. Há pessoas que passam a vida
universitária sempre ao lado dos mesmos, sem chances de beberem de outras fontes.

g) Não sendo autodidata. Se quer algo, vá atrás. Não espere que outros façam isso
por você, pois certamente as coisas excelentes não lhe chegarão. Para aprender algo,

45
Não é minha esta alusão, mas não conheço a fonte.

61

estude. Informações não faltam, é só buscá-las. Poupe o tempo de seus colegas


apenas para questões cruciais, aquelas que não conseguiu resolver sozinho. Saia do
vício do ensino formal que coloca alunos numa classe e alguém tagarela
conhecimentos. Para ser cientista você

deve gostar de buscar conhecimento novo, aquele que não há em lugar algum e você
o inscreverá no grande livro da humanidade.

h) Preferindo a área à orientação. Dilema: gosto de uma área, mas o orientador é


muito limitado. O que fazer? Alternativa 1 – vá para área correlata, desde que consiga
um excelente orientador, pois área pode-se trocar a qualquer momento, mas formação
científica é mais complicada. Alternativa 2 – encare a realidade da falha do orientador
e corra por fora nesse quesito, assim garantindo sua boa formação científica. Caso na
alternativa 2 não consiga “correr sozinho”, não pense duas vezes para ficar com a
alternativa 1. Muitos alunos são levados a achar que a área é mais importante. Com
isso se submetem a orientação equivocada, que pode ditar toda a sua postura
profissional a partir daí. Lembre-se, orientação modela cérebro.

i) Não estando preparado para grandes oportunidades. Como já me referi no item b,


não atribua seu insucesso ao azar. As oportunidades surgem para todos... acredite
nisso. A diferença é que alguns não vêem a oportunidade (por falhas de formação) e
outros podem não estar preparados no momento em que ela aparece. Você teve a
grande chance de fazer um estágio em Harvard... mas na época não sabia inglês
suficiente; até se preparar, a oportunidade já passou. Agir por antecipação é parte
preciosa do que a ciência pode dar ao ser humano. Uma generalização científica lhe
permite fazer predições (veja II-10), agir antes. Quanto mais se prepara, mais
antecipado estará frente às oportunidades. Depois, é só usufruí-las.

Referências

Dennett DC. 2002. Como cometer erros. p. 151-158. In: Brockman J, Matson K (eds.). As coisas
são assim: pequeno repertório científico das coisas que nos cercam. Companhia das Letras.
Volpato GL. 2001. Ciência: da filosofia à publicação. 3a ed. Funep/Unesp.
Volpato GL. 2009. Administração da vida científica. Cultura Acadêmica.

Literatura Complementar

Alves R. 2002. A alegria de ensinar. 13a ed. Editora Papirus.


Alves R. 2005. A escola que sempre sonhei sem imaginar que pudesse existir. 11a ed. Editora
Papirus.
Alves R. 2007. Estórias de quem gosta de ensinar. Editora Papirus.

62

Alves R. 2008. Ostra feliz não faz pérola. Editora Planeta.


Alves R. 2012. Pimentas: para provocar um incêndio não é preciso fogo. Editora Planeta.
Barbosa C. 2011. A tríade do tempo. Sextante.
Barbosa RLL (org.). 2004. Trajetórias e perspectivas da formação de educadores. Editora
Unesp.
Brockman J, Matson K (eds.). 2002. As coisas são assim: pequeno repertório científico das
coisas que nos cercam. Companhia das Letras.
Buarque C. 2000. A aventura da universidade. Editora Unesp.
Gardner H (org.). 2009. Responsabilidade no trabalho. Editora Bookman.
Gleiser M. 2007. Cartas a um jovem cientista. Editora Campus.
Gordon K. 2010. Líderes que mudaram o mundo. Larousse do Brasil.
Harvard Business Review. 2002. Empreendedorismo e estratégia. Editora Campus.
Hunter JC. 2004. O monge e o executivo; uma história sobre a essência da liderança. Editora
Sextante.
Keough DR. 2010. 10 mandamentos para fracassar nos negócios. Editora Sextante.
Kida T. 2007. Não acredite em tudo o que você pensa; os 6 erros básicos que cometemos quando
pensamos. Editora Campus.
Oliveira S. 2010. Geração Y: o nascimento de uma nova versão de líderes. Integrare Editora.
Penteado W. 2007. Cartas a um jovem indeciso: que profissão escolher?Editora Campus.
Popper KR. 2006. Em busca de um mundo melhor. Editora Martins Fontes.
Semler R. 2006. Você está louco: uma vida administrada de outra forma. Editora Rocco.
Sertek P. 2007. Empreendedorismo. 4a ed. Ipbex.
Spencer J. 2002. Quem mexeu no meu queijo? 33a ed. Editora Record.
Volpato GL. 2007. Bases teóricas para redação científica. Editora Cultura Acadêmica, Editora
Scripta.
Volpato GL. 2009. Administração da vida científica. Editora Cultura Acadêmica.
Watts DJ. 2011. Tudo é óbvio: desde que você saiba a resposta. Editora Paz e Terra.

63

CAPÍTULO II

Ciência

II-1 O que é ciência?

A ciência é uma das formas de o homem abordar o universo. Portanto, para uma
melhor compreensão do seu significado, é necessário conhecermos as demais formas
existentes e como elas se relacionam entre si.
Considero cinco formas pelas quais o ser humano aborda o universo: ciência,
filosofia, religião, arte e loucura. Suas principais características são mostradas na
Tabela 1 e explicadas em seguida.

64

Tabela 1. Características das formas de abordagem do universo.


Principais Formas de Abordagem
Características Ciência Filosofia Religião Arte Loucura
Explicativo + + + – ?
Lógico + + + – ?
Provisório + + – – ?
Empírico + – – – ?
Estético – – – + ?
+: presença; -: não necessário ou não procede; ?: não se sabe

Na história do conhecimento humano, duas visões são comumente apresentadas, ou


contrastadas: a racional, pela qual o conhecimento é construído a partir de nossa razão,
sem necessidade de se confrontar com fatos da natureza; e a empírica, que admite a
necessidade de se ter algum indício do mundo natural para se construir conhecimento
aceitável46.
O termo “mundo natural”, embora bastante empregado na história da filosofia e da
ciência, apresenta algumas confusões de entendimento. Assim, mostro aqui como o
considero, sem preconceitos de áreas. Faz parte do mundo natural tudo o que for
material ou imaterial; todos os organismos e materiais do universo. Nesse sentido, o ser
humano faz parte desse mundo. As “mentes”, os “pensamentos” as interações sociais
desses organismos (humanos ou não) e seus produtos também pertencem ao mundo
natural.
Embora toda forma de obtenção de conhecimento que fuja da magia ou outras forças
sobrenaturais e use pensamento lógico tenha sido geralmente chamada de filosofia ou
ciência (formas racionais de consideração do conhecimento), a ciência (referida daqui
para frente) é a ciência empírica surgida no século XVII e reinante na atualidade (veja
Parte 1 deste livro). Antes dessa ciência moderna, tudo era filosofia. Veja, por exemplo,
que filósofos como Aristóteles, Rogério Bacon, Maquiavel, Francis Bacon, Leibniz e
Kant, entre outros, consideravam a base empírica como útil para a construção do
conhecimento sobre o mundo natural.
Na ciência, o mundo físico é fundamental para se aceitar as construções teóricas
sobre o universo. Mesmo que algumas questões pareçam tratar de aspectos metafísicos
(além dos físicos), como a psique e as interações sociais, a visão na abordagem científica
é pautada pela contraposição de quaisquer enunciados teóricos (metafísicos) com o
mundo físico ao qual se referem ou de onde se originam (por ex., atividade cerebral e
mente; manifestação comportamental e pensamento).
O surgimento da ciência rompe metodologicamente com a prática puramente
filosófica de aceitação das idéias sem a confrontação com os fatos (prática racionalista).
Empírico diz respeito ao

46
Esta divisão é bem ilustrada na Parte 1 (Da Filosofia à Ciência) deste livro.

65

concreto e observável. Assim, na ciência são aceitos apenas os enunciados teóricos que
podem ser sustentados empiricamente. Mesmo que o objeto de estudo não seja, de fato,
observável, a postura do cientista é a de buscar elementos para a confrontação dos
enunciados com fatos concretos do mundo que observa. Ao estudar, por exemplo, a
origem dos seres vivos (que jamais poderá ser vista), o cientista busca sustentação em
elementos observáveis, mesmo que indiretos, como a reconstrução do cenário primitivo,
a produção laboratorial de DNA a partir de elementos mais simples etc. É essa
abordagem uma das características marcantes da ciência. É por isso que nos textos
científicos há um capítulo denominado “Resultados” (parte da base empírica) e outro
“Material e Métodos47“ (veja Volpato 2007). É evidente que o cientista racionaliza sobre
os fatos, mas sempre havendo fatos.
Outras duas características da abordagem científica são: uso do discurso lógico e
reconhecimento de que o conhecimento é provisório. Porém, nem sempre a ciência
reconheceu sua incapacidade de identificar a verdade (veja Parte 1 e II-8), sendo essa
postura adotada mais sistematicamente a partir do século XX e, assim mesmo, por
poucos cientistas, apesar da evolução do conhecimento nessa área (veja séc. XVII e
XVIII na Parte 1 deste livro). Tal fato deve-se provavelmente ao distanciamento que
muitos cientistas mais práticos mantêm em relação à reflexão filosófica.
A filosofia também admite a incapacidade do ser humano para ter consciência de
verdades, embora nem sempre tenha sido assim (veja a Parte I e II-8 e II-11), e também
usa o discurso lógico. Porém, ao contrário da ciência, não se preocupa necessariamente
em contrapor seu universo teórico com o mundo físico (embora alguns filósofos mais
antigos já usassem tais contraposições – por ex., Aristóteles, Rogério Bacon, Guilherme
de Occam e Maquiavel). Ou seja, ciência e filosofia se distinguem pelo método de
estudo: em particular, a valorização que dão à confrontação das idéias com a base
empírica. Assim, um texto filosófico não precisa ter Material e Métodos nem
Resultados, embora possa se valer de tais dados.
Para falar de religião, inicialmente defino-a como toda postura que procura
explicações por meio de entidades imateriais divinas e, num certo sentido, governantes
do mundo. Assim, os diversos tipos de cristianismo, islamismo, induísmo, judaísmo,
umbandismo são religiões. O elemento básico que os congrega é essa crença nas
entidades imateriais. A religião ocupa-se do mundo físico e metafísico, pode usar a
lógica no discurso e procura explicar os fenômenos do universo. Porém, diferentemente
da ciência e da filosofia, cada doutrina religiosa admite como condição sine qua non a
verdade sobre seus respectivos deuses ou dogmas. Essa condição é crucial e tem
implicação importante. A abordagem religiosa admite que o homem consiga conhecer e
ter consciência dessa verdade (por ex., Deus existe). Uma verdade que transcende o

47
É irrelevante discutir se esse capítulo deveria ser intitulado “Material e Métodos”, ou “Materiais e
Métodos”, ou “Métodos”, ou ainda “Procedimentos”, ou quem sabe “Estratégicas e Técnicas”, ou
qualquer outro derivado. O mundo científico internacional, que melhor espelha o comportamento do
cientista neste aspecto, revela que cada corpo editorial opta por uma forma, todas justificáveis, ou
injustificáveis, como queiram, mas que o sentido de todas elas é sempre o mesmo e todos sabemos qual é
(veja X-11).

66

tempo. Esse ponto é fundamental, pois se essa verdade for eliminada, a religião
desaparece. Ao contrário, no caso da ciência e da filosofia, a negação de teorias e
paradigmas não elimina essas duas formas de ver o mundo. Mesmo que na ciência e na

67

filosofia também recorramos, em dados momentos, a dogmas (postulados necessários)


para darmos continuidade ao processo de compreensão do universo, a história da ciência
e a história da filosofia mostram que esses dogmas podem ser derrubados com o avanço
do conhecimento. Essa postura de destruição dos próprios dogmas (veja II-10) não está
presente na religião, dada a necessidade intrínseca de convicção sobre a existência de
suas entidades imateriais.
Mas é instrutiva a comparação da ciência com a religião. Por que o religioso tem essa
convicção na verdade sobre a existência de Deus? Ele age assim por conceber que se
trata de uma revelação divina (Deus revelou para ele). Se um religioso convicto disser a
um cientista ateu convicto (veja II-16) que conversou com Deus, como esse cientista
poderá afirmar que esse religioso está enganado? Para afirmar o erro do religioso, o
cientista ateu, necessariamente, estará colocando a sua verdade (que Deus não existe)
sobre a do religioso (que Deus existe). E não há nada que o autorize a agir dessa
maneira. As dificuldades para aceitar a inexistência ou existência de Deus são iguais, do
ponto de vista lógico48. A experiência do religioso, conversar com Deus, é única e é
dele49. A diferença fundamental entre ambos, o religioso e o cientista descrente, é que o
primeiro aceita sua experiência pessoal como indício para construir um mundo
explicativo, enquanto o cientista não. O cientista precisa da evidência empírica e ela
deve ser “visível” a outros (universalidade das evidências; um sentido de objetividade);
se for só dele, não tem valor. Esse é um preceito da forma científica de ver o mundo.
Quando apresentamos os resultados num texto científico, mostramos também os
procedimentos usados para obtê-los, de forma que outros cientistas poderão até mesmo
repetir o estudo, devendo encontrar as mesmas evidências. Esse preceito de
reprodutibilidade da evidência científica é fundamental para a abordagem científica.
Assim, não estamos discutindo sobre verdades, mas sobre referenciais que nos validam
aceitar discursos sobre o mundo natural. E esses referenciais divergem entre o religioso
e o cientista exatamente nesse ponto; o primeiro aceita a experiência individual para
validar idéias, o segundo não.
Outra forma de abordagem do universo é a arte. Ao contrário das três formas
anteriores, na arte não nos restringimos a um dos mundos, físico ou metafísico, nem
estamos preocupados com o discurso lógico ou com a verdade das coisas50. Tampouco

48
Podemos admitir que o princípio da parcimônia permita pendermos mais para o lado do ateu. Ou
seja, esse princípio estabelece que devemos aceitar uma hipótese mais complexa apenas após termos
eliminado hipóteses mais simples. No caso, incluir um elemento novo (Deus) no sistema é tornar o
sistema mais complexo; o mais simples seria explicar esse sistema com os elementos que todos, sem
controvérsias, aceitam existir. Porém, esse princípio é apenas uma ferramenta metodológica estratégica
útil para encurtar caminho na busca de soluções (pois nada garante que as explicações mais simples sejam
as verdadeiras em todos os casos), mas não uma ferramenta que dispõe sobre verdades. Portanto, aplicá-la
neste caso não é apropriado.
49
A interpretação considerando se foi Deus ou algum delírio dependerá do ponto de vista de quem
fizer a interpretação, e não dos fatos presentes.
50
Isto não nega que algumas correntes artísticas possam agir dessa forma, mas de longe não
representam a essência de toda a atividade artística.

68

interessa se as evidências vêm de uma experiência individual ou universal, reproduzível


ou não. Na arte nos ocupamos com a estética51 do mundo,

51
Mais comum na época moderna, mas que, do ponto de vista da lógica das abordagens, é
extremamente coerente com a atividade de qualquer artista contemporâneo.

69

a harmonia (geralmente bela) entre as partes de um todo. O artista, em geral, não se


refere à verdade de uma paisagem. Ele ocupa-se com as relações de forma, som,
movimento, cor etc. É a estética na comunicação do sentimento e das idéias. É por essa
estética que diferenciamos um conjunto de palavras como conto, prosa, poesia etc;
diferenciamos música de ruído; borrão de tela artística52; e assim por diante.
Embora seja relativamente fácil caracterizar cada uma das abordagens citadas acima,
a quinta forma, a loucura, é bem mais complexa. Historicamente, concebia-se que a
loucura era determinada nas pessoas pelos deuses. Homero, figura lendária ou real, fala
sobre a influência das moiras, as irmãs que teciam o fio que conduz a vida, num sentido
de controle do destino humano... elas determinavam o comportamento. Sócrates fala de
quatro formas de loucura, também determinadas por forças externas: a profética, sendo o
oráculo o meio de comunicação com os deuses; a ritual, aonde se chega ao êxtase por
meio de danças e rituais; a amorosa, dominada por Afrodite; e a poética, governada
pelas musas. Bem mais tarde, o médico francês Pinei53 desloca o foco do
comportamento “louco” para uma abordagem mais racionalista (sem se basear nas
causas teístas). Hegel, por outro lado, incorpora a razão ao comportamento humano
anormal. Segundo ele, a loucura não é oposta à razão, e nem a perda da razão, mas parte
integrante do ser. Ele atribui lógica à loucura. Foucault54 auxilia a contextualizar a
loucura e discuti-la no plano político e legal.
Mesmo com a participação de pacientes com quadros de loucura (delírios, alterações
do pensamento, alucinações, desconfigurações da realidade) na arte55, não podemos
caracterizá-los simplesmente como artistas. São artistas, de certa forma, mas
acompanhados de quadros clinicamente diagnosticados como algum tipo de loucura.
Seja como for, a determinação da forma de pensar sobre a loucura é, ainda, matéria
especulativa; exceto nos quadros de insanidade clínica em que abordagens científicas
são adotadas, mas longe de se chegar à essência do pensamento. Talvez seja impossível
caracterizar a insanidade, ao contrário do que fizemos acima com as outras formas de se
ver o mundo. Mas isso não nos impede de colocá-la como uma das formas de o ser
humano ver o mundo. Lógico que a sociedade dos “normais”, de certa

52
Veja, por exemplo, a evolução da situação da Arte de Rua (Pixo, Sticker – adesivos –, Lambe-
Lambe), em particular o debate entre os grafiteiros e os responsáveis pela bienal de Arte, em São Paulo,
edição de 2008 – a manifestação de uma grafiteira do Rio Grande do Sul resultou em sua prisão por 53
dias... Em 2010, São Paulo realiza a bienal de grafites e pichações, se destacando no mundo pela inserção
dessa forma de comunicação na Arte. Veja também a inserção de certos estilos musicais como Arte,
anteriormente não aceitos como atividade artística por alguns críticos ou dominantes. Enfim, tudo isso
mostra que o conceito do que se considere estético na Arte varia no tempo e espaço.
53
Philippe Pinei (França: Saint André, 20/04/1745 – Paris, 25/10/1826). Considerado por muitos como
o pai da Psiquiatria.
54
Michel Foucault (França: Poitiers, 15/10/1926 – Paris, 25/06/1984). Contrário ao Existencialismo de
Sartre e ao Humanismo. Mesmo contra sua vontade, acaba sendo associado à visão estruturalista. No
início de sua vida acadêmica discorre sobre a doença mental e a loucura.
55
Veja o excelente trabalho da psiquiatra junguiana Nise da Silveira (Maceió, 15/02/1905 – Rio de
Janeiro, 30/10/1999), parte sobre a Arte de seus pacientes.

70

71

forma, os marginaliza. Mas ninguém detém a verdade sobre a situação... apenas a


maioria. Pode-se dizer que o louco distorce a realidade. Mas, real se confunde com
verdade. Distorcer pressupõe também uma verdade referencial. Portanto, me limito a
dizer que se trata de outra forma de ver o mundo. Quando um louco nos diz que existe
uma série de bolas coloridas ao seu redor, podemos chamá-lo de louco, mas jamais
podemos ter certeza absoluta que aquilo não exista e seja apenas uma elucubração de sua
mente. Alguns cientistas poderão dizer que se trata da alteração em certas regiões
encefálicas, mas isso é insuficiente, pois nada impede que essas supostas alterações
apenas permitam ao “louco” perceber realidades que os “normais” não conseguem ver.
Trata-se de um discurso pautado pela soberania da maioria. Será que o mundo é apenas
o que os “normais” percebem? A maioria será realmente sempre o “normal”?
Do ponto de vista lógico podemos assumir que a loucura é outra forma de ver o
mundo, mesmo com nossa dificuldade para caracterizá-la objetivamente. O raciocínio é
simples: se existe o louco e sua forma de ver o mundo não é considerada dentro dos
vieses anteriores (científico, filosófico, religioso ou artístico), embora possa perambular
entre eles; e se o louco vê o mundo por um prisma que lhe é particular; então, trata-se de
outra forma de ver o mundo.
E o que seria o senso comum, tão enfatizado pelos autores como uma forma de
conhecimento? Meu ponto de vista é que o chamado senso comum nada mais é que uma
mistura desordenada dos quatro primeiros prismas de abordagem referidos acima, e não
uma abordagem diferente. O conhecimento do senso comum é obtido por ensaio e erro,
o que aprendemos em nosso dia-a-dia, sem necessariamente muita crítica. Embora seja
um conjunto de informações que se incorporam em nosso cabedal de conhecimento,
seria uma forma diferente de ver o mundo natural? Tudo o que aprendemos pela
“metodologia” do senso comum passa por nossos critérios mais íntimos de aceitação das
informações, caracterizados pelas quatro formas de conhecimento discutidas acima
(ciência, filosofia, religião e arte). Mas no senso comum não há coerência entre as
distinções dessas quatro formas. Um fato pode ser observado e discutido numa visão
científica ou filosófica, mas o fato seguinte pode ser entendido por outra ótica (por
exemplo, artística ou religiosa). A percepção de algo, por exemplo, uma flor
resplandecente à beira de uma estrada, também não foge dos filtros acima. A flor pode
ser bela, pertencer a determinada espécie, simbolizar uma dádiva divina etc.
Uma visão que reúna todas as formas aqui apresentadas (mesmo com exceção da
loucura) seria outra forma de conhecimento? Provavelmente não. Se observarmos um
mesmo fato pelas abordagens apresentadas, talvez estejamos mais próximos da
verdade... mas nada nos garante que, de fato, estejamos!
Volto à definição de ciência. Já sugeri seu lugar em relação às outras formas de
abordagem do universo. O próximo passo é apresentar mais elementos para sua
caracterização.
Para bem caracterizarmos a ciência, é necessário considerarmos seu método de
construção do conhecimento (empirismo) e sua concepção sobre a natureza do
conhecimento humano. O primeiro aspecto será brevemente considerado a seguir e o
segundo é mais detalhado em II-7, II-8 e II-11).

72

Vários estudiosos tentaram estabelecer o que seria o método científico (veja II-2 e II-
4). Todos apresentaram visões particulares, incompletas ou não consensuais. Na
contramão dessas tentativas, Feyerabend (1993) admite que não existe um método
científico único. Segundo ele, há várias e

73

diversificadas formas que cientistas usaram para construir conhecimento científico. Ele
admite que é um verdadeiro “vale-tudo”. Apesar disso, algumas atitudes como o
controle de variáveis (para que a base empírica tenha validade em alguns casos), o
princípio da parcimônia e o teste de hipótese são freqüentemente usadas na ciência,
embora longe de serem regras rígidas de conduta (veja II-3). Dessas, o controle de
variáveis é essencial para se investigar relações entre elementos da natureza.
Em resumo, ciência é a forma humana de construir e aceitar generalizações acerca do
universo sustentadas em bases empíricas, valendo-se de um método (mais ou menos
variável), do discurso lógico e admitindo que essas generalizações são conjeturais
(podem ser derrubadas no futuro).
Por razões históricas, no entanto, podemos ter num trabalho uma mescla de
abordagens, por ex., a científica e a filosófica. Nesse quadro, é comum que o cientista
use o suporte empírico para validar conclusões, mas que também teça generalizações
sem essa base, fornecendo suas impressões (logicamente conduzidas) do problema. Há
revistas que aceitam o uso dessas duas abordagens. Mas, se o veículo for estritamente
científico, sem o cunho filosófico, o autor não conseguirá espaço, tendo que se restringir
apenas ao que pode dizer a partir da base empírica56.
Pela influência filosófica, pode ocorrer que alguns autores da ciência qualitativa usem
as opiniões de certos autores como “verdades”, a partir das quais constroem
conhecimento. Esse tipo de citação (o que o autor disse, mas não demonstrou) não é
válido na ciência, pois opiniões são diferentes de demonstrações57 (estas requerem
evidências empíricas fortes). Na filosofia, o que os outros filósofos falam é importante, e
eles não precisam de base empírica para demonstrar suas afirmações; basta a
argumentação lógica.

II-2 O que é uma pesquisa científica?

Pesquisa é toda atividade realizada para se descobrir a resposta a alguma indagação.


Há vários meios para realizar essa atividade, mas no caso da ciência, eles devem ser
condizentes com a própria definição de ciência (veja II-1). Assim, podemos definir a
pesquisa científica como a atividade que utiliza a metodologia e os pressupostos
científicos na busca de resposta a indagações. Ela pode apresentar hipóteses condutoras
ou não (veja VII-10) sobre qualquer tipo de objeto de estudo, mas a busca por base
empírica como evidência é fundamental. Ou seja, metodologicamente podemos
pesquisar cientificamente os tipos de escova de dente que os alunos usam. Em
contrapartida, podemos investigar as vacinas contra a AIDS baseados em preconceitos e
outras abordagens não científicas; quem sabe atribuindo

56
Isto é especialmente válido se você não é um cientista renomado. Esta contradição aceita o
argumento da autoridade, num universo em que formalmente esse argumento não é válido.
57
Não uso o termo demonstração no sentido matemático. Refiro-me apenas à validação de idéias a
partir de evidências universais... serão sempre provisórias, na concepção de Karl Popper (veja II-8, II-9 e
11-11).

74

essa doença a forças diabólicas. Na realidade, pode-se tanto pesquisar um assunto


científico usando metodologia não científica, quanto pesquisar assunto não científico por
meio de metodologia científica.
Mas nem toda pesquisa que usa o método científico implica, necessariamente,
construir Ciência. Para que seja ciência é necessário que o conhecimento produzido seja
contextualizado e passe a pertencer ao conjunto de conhecimento já existente, mudando-
os ou corroborando-os (veja II-11), ao menos em parte. Se a conclusão de uma pesquisa
com metodologia rigorosamente científica não for ligada ao arcabouço teórico da
ciência, ficará desconectada no tempo e no espaço. Fazer ciência é mais que fazer
pesquisas. Todo cientista é um pesquisador, mas nem todo pesquisador é um cientista58.
A ciência visa explicar o mundo natural.

II-3 Resumidamente, o que caracteriza o método científico?

Abaixo explico os quatro principais fundamentos metodológicos que auxiliam a


caracterizar o chamado Método Científico. Todo o restante na prática da pesquisa é
subalterno a esses quatro fundamentos.

1) Base empírica. Como já explicado acima, o maior pressuposto do método


científico é que cada idéia sobre o mundo natural (veja II-6) seja sustentada por fatos
que podemos constatar objetivamente nesse mundo. Ou seja, busca contrapor idéias a
fatos “observáveis” (veja Francis Bacon, na Parte 1, e VII-10). Para fazer isso,
também inclui um conjunto de práticas que evitam, ou minimizam, as chances de
uma conclusão equivocada, como mostradas a seguir.

2) Amostragem. Se buscamos descrever algo cientificamente, podemos descrevê-lo


baseados na observação desse algo, em sua totalidade ou de parte dele (por ex., a
população, seja de organismos ou coisas inanimadas). Este segundo caso é mais
comum, pois raramente podemos estudar o todo. Assim, vemos uma parte e
aceitamos, por indução, que o todo se comporta como ela. Se constatamos a opinião
de certo número de pessoas que representam a população brasileira, tomamos essa
opinião como sendo a de brasileiros. Esse pressuposto, comumente usado na ciência
baseada em amostragens, requer cuidados. Por exemplo, deve-se garantir que a
amostra estudada seja representativa do todo ao qual se dirigirá a conclusão (veja
Zahar 1997 e Volpato e Barreto 2011).

58
Note como muitas pessoas da área científica têm receio em dizer que são cientistas... dizem que são
pesquisadores. Por quê?

75

3) Controle de variáveis. Se queremos testar hipótese onde se imagina que uma


variável (A) interfira em outra (B), temos que isolar a suposta ação de A de tal
maneira que a modificação de B só possa ser explicada pela ação de A (e não por
outras variáveis59). Para isso, usamos vários recursos de condições “controle”.
Estrategicamente, isso pode ser feito de várias formas, para as quais a inventividade
do cientista passa a ser elemento fundamental. Por exemplo, ele não precisa interferir
no sistema (experimentação); basta contar com variações naturais, pois o que está em
jogo é a variação do agente interferente e não como essa variação foi produzida.

4) Teste de hipótese. Assumimos o raciocínio do Modus Tollens. Ou seja, deduzimos


da hipótese o que necessariamente deva ocorrer no mundo empírico caso essa
hipótese esteja correta; a partir daí, confrontamos isso com os resultados obtidos na
pesquisa (que é planejada para avaliar se esses resultados esperados ocorrem). Se os
resultados esperados ocorrem, assumimos que a hipótese é corroborada (sustentada);
se não ocorrem, a hipótese é negada60. Este raciocínio lógico guia a construção de
delineamentos para estudos que testam hipóteses.

II-4 As pesquisas qualitativas também usam base empírica?

Não devemos confundir evidência empírica com a forma como a “enxergamos” ou


podemos obtê-las. A evidência empírica é a informação que nos chega através dos
órgãos do sentido e que consideramos “real”. A partir dessa realidade revelada pelos
nossos sentidos, podemos decidir sobre conjecturas e idéias sobre o mundo natural.
As pesquisas qualitativas e as quantitativas apenas se diferenciam pela forma como
obtêm a base empírica. Enquanto na quantitativa precisamos de informações numéricas,
na qualitativa, como o nome diz, nos preocupamos mais com a qualidade das
informações (em oposição à quantidade). Podemos trabalhar com as palavras das
pessoas, apenas analisando a lógica e os sentidos do discurso. As análises qualitativas
permitem entrar mais a fundo nas informações de cada indivíduo investigado
(geralmente trabalhamos com poucos indivíduos). Trata-se de uma análise mais
detalhada de uma menor quantidade, ao passo que na quantitativa geralmente analisamos
menos detalhadamente cada característica, mas num número maior de sujeitos. Não é
um elemento distintivo, pois podemos entrevistar centenas de pessoas numa pesquisa
qualitativa e avaliar menos de uma dezena de sujeitos numa abordagem quantitativa.

59
O mesmo raciocínio é valido quando estudamos interações multivariadas, em que mais de duas
variáveis interagem.
60
Esta é a base do falseacionismo de Karl Popper (veja II-9), mas, no caso de hipóteses mais gerais,
pode apenas representar o falseacionismo ingênuo (II-9 e Lakatos e Musgrave 1979).

76

Em ambas, ao contrário do que alguns podem julgar, estudamos diretamente alguns


sujeitos para conhecermos o todo maior que eles representam. Essa noção é básica na
ciência (veja Zar 1999). Caso a finalidade última fosse conhecer apenas aqueles sujeitos,
quando eles desaparecessem a pesquisa geralmente perderia sua validade. Mas isso não
ocorre. Mesmo quando estudamos alguns índios de uma aldeia, esperamos conhecer
mais aquela aldeia e, dela, a comunidade indígena da região e assim sucessivamente. É
função inequívoca da ciência conhecer as regularidades subjacentes aos fenômenos
individuais (veja detalhes na Parte 1 deste livro). Assim nascem as leis sociológicas, as
leis econômicas, bem como as leis da física, química, biologia etc.
Veja, o fato de a base empírica ser obtida por uma metodologia própria, diferente
entre as áreas, não significa que não seja base empírica. Assim, é uma impropriedade
referir-se às metodologias quantitativas e qualitativas (quanti e quali, como são
geralmente chamadas) como ciência quantitativa e ciência qualitativa. Ambas são
ciência e, epistemologicamente, devem ser complementares no entendimento dos
fenômenos naturais.
Devemos lembrar que o universo que estudamos é bem maior que nossas abordagens
metodológicas. Essa postura frente ao conhecimento a ser adquirido nos faz entender
que cada parte pode ser importante. Podemos discordar de algumas ferramentas
(metodológicas), mas isso deve ser visto com cautela. Não podemos fazer isso se
transformar em “igrejinhas do saber”, onde a aceitação passa a ser ato de fé. Se há erros,
devemos apontá-los e discuti-los profundamente. Se forem divergências entre prismas
teóricos, ou filosóficos, então temos que entender que nenhum deles é suficiente para
negar o outro e, portanto, ambos podem ser aproveitados.

II-5 Nas Ciências Humanas as coisas são mesmo diferentes?

Não, as coisas não são diferentes na área de Ciências Humanas. Desde que seja
ciência, é tudo igual. As conclusões emergem da análise dos fatos (estes podem vir de
metodologias quantitativas ou qualitativas - veja VII-3). Se isso é igual, o que seria
diferente?
São comuns alegações de que nas ciências humanas “as coisas são diferentes”. Por
isso, vou me ater com mais detalhe a esta questão. Temos que considerar que um viés
em várias disciplinas das ciências humanas é a consideração do ser humano como algo
muito diferente das demais formas de seres vivos. Em outras áreas a interpretação não é
bem assim. Abaixo mostro alguns argumentos que indicam maior dificuldade de
investigar animais não humanos.
A maior complexidade dos fenômenos que envolvem seres humanos é apenas
aparente. Quando estudamos o comportamento de um organismo não humano, digamos
um cachorro, uma ave ou um peixe, muito se enganam os que pensam que se tratam
apenas de “comportamentos geneticamente determinados, condicionamentos e reflexos”.
Há todo um mundo desses animais,

77

grande parte do qual sequer temos idéia. Note que para uma mariposa a noite é colorida.
Os peixes percebem estímulos que não imaginamos (imagine como seria perceber o
mundo por meio principalmente de alterações em campos eletromagnéticos, como
ocorre com os vários peixes elétricos). Algumas aves percebem variações de pressão de
que não temos idéia e se orientam por elas. O campo acústico também é muito diferente
entre o ser humano e outros animais. Enfim, estudar esses organismos é tentar entender
um mundo completamente diferente, sem poder raciocinar como os nossos elementos ou
conversar diretamente com eles. Isso é muito complexo e difícil. Veja que os primatas,
golfinhos e elefantes sabem que eles são eles: distinguem-se dos demais. Ou seja, têm
consciência de sua própria existência e de sua diferenciação enquanto sujeito (não
precisamos aceitar isso em termos humanos, pois eles não são humanos). Do contrário,
não se reconheceriam num espelho (veja Plotnik et al. 2006). Esses autores sugerem que
haja uma evolução convergente, possivelmente relacionada à complexidade social e
capacidade de cooperação. Segundo eles, essa distinção aumentada entre o “eu” e o
“outro” pode permear as tendências altruísticas compartilhadas por esses animais de
grandes cérebros.
No caso dos estudos sobre a sociedade humana, aparentemente há mais variáveis
envolvidas, mas é pura ilusão. Apenas conhecemos mais essas possibilidades e as
consideramos. Se marcianos, cuja vida fosse baseada em princípios e mecanismos
completamente diferentes dos nossos, chegassem à Terra para nos estudar,
possivelmente nos estudariam como o fariam com qualquer outro mamífero (talvez com
comportamentos mais sofisticados, mas apenas isso, sem a inclusão de elucubrações
epistemológicas, psicológicas e sociológicas).
Em resumo, o que quero mostrar é que a idéia de que a ciência na área das Ciências
Humanas é diferente pode vir de uma história que sempre considerou o homem como
um ser diferente. Trata-se de um retrocesso epistemológico ao antropocentrismo e ao
antropomorfismo já pregado pelo cristianismo há muito tempo.
É natural o homem se colocar no centro das coisas. Hoje ficamos abismados com as
idéias de Ptolomeu colocando a Terra no centro do universo. O método científico é
aplicado nas ciências humanas da mesma forma como em outras áreas. Seriam as
relações aí mais complexas que aquelas existentes nos estudos de ecologia, que se ligam
a todas as variáveis do sistema, incluindo até a participação humana? Certamente não.
Há ferramentas epistemológicas que fornecem ao homem meios para tais investigações.
As barreiras que se criam para tais usos são, muitas vezes, produto de preconceitos
arraigados numa longa história vinda de debates filosóficos. Em alguns casos essa
história rompeu esses preconceitos; em outros, reforçou-os.
Minhas respostas às perguntas II-1, II-2, II-3, II-4, II-6 subsidiam melhor esta
questão. Trata-se de um tema que requer uma visão bem geral do problema. Quando
falamos de seres humanos, não podemos negligenciar os avanços sobre esses
organismos. Quando se estuda sociedades de animais não humanos, também não se deve
negligenciar os conhecimentos das sociedades humanas.

78

Uma atitude que prejudica em muito o desenvolvimento científico de um indivíduo é


a criação de feudos do saber. Quando se classifica determinada postura e, a partir daí,
refere-se a

79

essa classificação com desdém, está-se criando uma postura seletiva e preconceituosa.
Por exemplo, quando dizemos que tal coisa é reducionismo, ou que é inatismo, ou
positivismo, ou holismo, ou pós-moderno, ou eclesiástico... seja o que for, muitas dessas
divisões revelam uma forma autoritária de se contrapor a algo. Se uma visão tem erros,
eles devem ser evidenciados. Não basta classificá-la e assumir que tal classificação é
equivocada, porque normalmente temos ainda várias dessas classificações com
seguidores em nossa ciência contemporânea... afinal, quem tem razão? A única coisa
que se consegue com essas discriminações é a suposição de que o nosso ponto de vista
está correto e, portanto, qualquer categoria que não seja pertinente à nossa estará errada.
Na realidade, quanto menos conhecemos de um assunto, mais palpites prováveis
aparecem. Quando o conhecimento é mais sólido, menos palpites podem ser aceitos.
Embora a divisão das posturas humanas em caixinhas do saber (como dizia meu
orientador) possa ser importante como estratégia de estudo, ela não significa que o
mundo seja reduzido a uma ou poucas dessas caixinhas. Há divergências entre
pensadores como Platão e Aristóteles (Magee 2001), Freud e Jung (Jung 1998), Newton
e Einstein (Einstein e Infeld 1980), Popper e Kuhn (Lakatos e Musgrave 1979), mas
cada uma dessas abordagens resultou em correntes de pensamento com representantes
sérios na ciência atual. Assim, não podemos acreditar que a verdade fique apenas em
uma de cada divergência. Inicialmente teríamos que imaginar que o mundo que nos
cerca cabe na mente humana, ao menos no sentido de que as impressões que captamos
do mundo são suficientes para que dele façamos um panorama adequado.
A humildade em reconhecer nossa pequena participação nesse processo é um
primeiro grande passo. Somos e seremos eternamente limitados. Enquanto alguma
corrente de pensamento não for sumariamente descartada, não poderemos dizer que está
errada, sem que esbarremos na possibilidade de estar apenas olhando o mundo de outro
ângulo. Quando a derrubamos como explicação válida para o conhecimento humano
(por ex., a explicação pela mitologia, a visão de que a Terra era achatada, ou que era o
centro do sistema solar, ou mesmo do universo), todos concordam e essa passa ser uma
percepção humana mais geral, mas, mesmo assim, longe de consideramos uma verdade
que se mantenha além da percepção humana.
Portanto, ciência é ciência; a distinção genuína está entre ciência bem construída
daquela mal elaborada. O que ocorre, por razões históricas, é que a abordagem filosófica
vem sendo usada conjuntamente à científica (uma sem dar relevância à base empírica -
racionalismo - e a outra fundada no empirismo). Isso não é um problema, mas tem que
ficar claro que há uma distinção, principalmente quando conversamos com pessoas de
diferentes formações, ou quando escolhemos revistas para nossas publicações. O que
ressalto é que a metodologia científica funciona perfeitamente bem nas Ciências
Humanas, assim como nas demais.

80

II-6 O que é Ciência Natural? E Ciência Formal?

A ciência natural61 estuda o mundo natural. Já apresentei em II-1 uma breve descrição
do que seja esse mundo natural. Assim, ele é tudo o que existe de real. Porém, as
classificações clássicas muitas vezes partem de equívocos.
A divisão clássica considera que as ciências naturais estudam o mundo natural, a
natureza, enquanto que as ciências sociais e as humanas estudam o comportamento e a
sociedade humana. Ou seja, de início já se coloca o homem fora da natureza. Essa visão
antropocêntrica, que coloca o homem no centro das coisas, é arcaica e não condiz com
os conhecimentos científicos sobre a biologia das espécies (aceitemos ou não, o ser
humano é uma espécie, pertencente ao Reino Animalia). Além disso, o mundo é
composto tanto de formas vivas como não vivas e, nesse sentido, o homem pertence às
formas vivas. Falar em natureza não é apenas falar em água, rochas, animais não
humanos, vegetais e outras formas de vida, clima etc. É também falar do homem, da sua
psique e da sociedade humana, incluindo as ferramentas tecnológicas. Afinal, se a
construção de uma abelha (a colmeia) é parte da natureza, por que o carro não o seria?
Esta minha abordagem considera como natural tudo o que existe no mundo, inclusive o
homem e suas produções. Se partíssemos de outro referencial, um antropocêntrico, então
as produções humanas ficariam fora do mundo natural. Mas neste segundo referencial
possivelmente teríamos que desconfiar de nossa existência como ser natural. Uma visão
religiosa pode colocar o homem como o filho de Deus, diferente em princípio das
demais coisas existentes na Terra, e reforçaria essa visão antropocêntrica. A ciência
natural estuda, a seu modo, o mundo natural, humano ou não. Colocar o homem em
outro patamar é retornar à época da Santa Inquisição.
A ciência formal, por outro lado, é diferente. Ela não estuda um sujeito
eminentemente presente no mundo natural. Ela estuda uma linguagem, uma forma de se
abordar o mundo natural. Temos aí a matemática e a lógica. Elas explicam relações que
existem no mundo natural. São duas formas de se “ler” o mundo. Partem de
conhecimento que deve ser aceito, a partir dos quais são deduzidos outros
conhecimentos. Por exemplo, o conhecimento matemático inicia com “se x é verdadeiro,
então...”. Essa condicional mostra que todo o discurso seguinte depende dessa condição
inicial. Mas não é igual à religião, onde o discurso posterior a essa premissa inicial não é
demonstrado, mas continua no mundo da fé. No caso da matemática, a idéia inicial pode
ser uma condicional não demonstrada, mas na seqüência as comprovações são
universais; ou seja, são concluídas por quaisquer outros cientistas... não depende
puramente da vontade.
Podemos considerar lógica e matemática como linguagem que lê o mundo natural.
Sabemos que outras espécies animais também têm conceitos lógicos (igual, diferente,
contém, está contido, maior, menor, pertence etc.) e conseguem contar certas unidades
(matemática). Não quero considerá-las como construtoras de lógica e matemática, mas

61
Excluído o referencial antropocêntrico, fico me perguntando o que seria artificial?

81

que o assunto dessas disciplinas parece transcender o homem. Porém, sua forma de
estudo é muito diferente daquele da ciência empírica.

82

Mesmo que estudos empíricos possam ser feitos para avaliar deduções matemáticas,
incoerências entre a prática e a teoria não serviriam para negar a teoria, mas rejeitariam a
prática como imperfeita. Essa característica das ciências formais as tornam diferentes.

II-7 O que é conhecimento científico?

Na questão II-1 caracterizei a abordagem científica e em II-3 resumi características


essenciais do método científico. Agora vamos incluir na discussão o aspecto social do
conhecimento científico. Ou seja, não basta adquirirmos o conhecimento pelo método
científico e considerarmos esse conhecimento como provisório. Defendo que para ser
considerado conhecimento científico deve também ser aceito por parcela significativa62
da comunidade científica (Volpato 2008). E isso muda tudo!
Nas últimas duas décadas, tem sido possível medir a aceitação do conhecimento,
graças aos avanços computacionais e da Internet. Mede-se quantas vezes cada trabalho é
citado, permitindo avaliar esse perfil do cientista ao longo de sua carreira (veja IV-3 e
IV-10). Mesmo quando a citação é feita para criticar certo conhecimento, admite-se, no
mínimo, que esse conhecimento foi importante o suficiente para ser discutido. A falta de
citação revela total desprezo dos seus pares pelo conhecimento produzido. Vários
índices são baseados nas citações que, mesmo com algumas ressalvas, representam na
academia o necessário para entrar no debate científico da especialidade.
O uso de citações é um desdobramento natural da atividade genuína de qualquer
cientista. Ao consultarmos cientistas sobre determinada indagação, ele nos responderá
com base no que conhece e aceita. Mesmo que ele mostre conhecimentos discordantes,
certamente ele dá algum valor a esses achados. Mas se um conhecimento publicado não
entrou na discussão, seja por falta de novidade, por estar errado ou por ter sido
divulgado em periódico de baixa infiltração, não será considerado pela comunidade
científica.
Seria científico esse conhecimento desconhecido? Pode ser científico quanto à
abordagem e metodologia, mas não perambula pela comunidade científica.
Evidentemente, tal noção mostra que o conhecimento científico depende de questões
sociais ligadas à sua aceitação. Admite também que um conhecimento obtido pelo
método científico pode permanecer não aceito por parcela expressiva da comunidade
científica, embora publicado. Esse conhecimento pode também ser descartado algum
tempo após sua aceitação. A história das descobertas científicas está repleta de exemplos
desse quadro. Ou seja, quem define o que é conhecimento científico válido é a
comunidade científica da área, o que é extremamente natural e razoável. Por essa razão,
a tarefa do cientista vai muito além da descoberta... ele precisa fazer com que seus pares
aceitem suas descobertas; do contrário, as levará consigo ao túmulo.

62
Por parcela significativa não me refiro numericamente, mas àquela parcela que faz a diferença; e
dela que, muitas vezes, o conhecimento vai aos livros textos e à comunidade não científica.

83

Talvez isso não soe muito científico, mas lembre-se que situações similares ocorrem
em qualquer outro setor da comunidade humana. As coisas não são em si, mas
dependem de como são mostradas e vistas.
É importante considerar esse aspecto do conhecimento científico – a aceitação por
parcela expressiva da comunidade científica. Sem essa aceitação, conclusões científicas
importantes permanecem desconhecidas, sem utilidade na construção de novos
conhecimentos. Não basta pesquisar, é necessário publicar; mas não basta publicar, é
necessário convencer!

II-8 As conclusões científicas são verdadeiras?

Nesta questão, me refiro à verdade como uma constatação consciente de algo que não
questionamos e confiamos que não mudará, ao menos em tempo suficiente para que a
aceitemos como “a verdade”. Essa questão da verdade está presente na atividade de
qualquer cientista; afinal, ele busca construir conhecimento novo. Ela aparece na
demarcação entre ciência e religião (veja II-l e II-16); é crucial na construção e
expressão de conclusões. Ela é o pano de fundo que nos guia para sabermos até onde
avançar nas conclusões e saber o que é uma conclusão e o que é uma sugestão quando
redigimos o item conclusões (veja item IX-2 e X-8).
O consenso popular sobre a verdade refere-se à exatidão das afirmações. Para isso, é
necessário admitir que exista a verdade. No caso da ciência natural, admitir que exista
um mundo real. Descartes63 chega a essa conclusão por meio de um raciocínio lógico-
matemático (veja Parte 1). Ele é capaz de criticar essa existência. Portanto, se há critica,
ele pensa. Se pensa, deve necessariamente existir. Essa sua lógica simples é muito
importante64. Mas, quando falamos em verdade, precisamos conhecer o gabarito real
para compararmos se nossas idéias correspondem à verdade. E aí voltamos ao ponto de
partida! Para sabermos se o que temos é verdadeiro precisamos conhecer a verdade!
Conforme visto na Parte 1 deste livro e nas questões II-1, II-3 e II-11, historicamente
o ser humano discutiu muito sobre como atingir a verdade. Quando a ciência empírica
surgiu, a confrontação de enunciados teóricos com fatos fortaleceu os enunciados
teóricos que se mantiveram frente aos testes empíricos (é a realidade corroborando
idéias). A construção de tecnologias também reforça que algumas verdades tenham sido
atingidas. Ou seja, saímos das especulações lógicas e temos agora referenciais do mundo
real: se um avião voa, é sinal de que algumas idéias de base para sua construção são
verdadeiras. Esse pragmatismo reforça as teorias e fortalece a ciência. Porém, ele não é
decisivo, visto que idéias equivocadas podem

63
René Descartes (La Haye en Touraine, 31/11/1596 – Estocolmo, 11/02/1650).
64
Veja também a obra do filósofo irlandês George Berkeley (Condado de Kilkenny, 12/03/1685 –
Oxford, 14/01/1753).

84

produzir alguma tecnologia válida. No início da descoberta da eletricidade, pensava-se


que a corrente elétrica seguia do pólo positivo para o negativo (mais tarde viram que é o
contrário, pois quem se move é o elétron, que é negativo); mas isso não impediu que, na
época, se produzissem efeitos práticos com a nova descoberta.
Aqui mostro, de forma pontual, as barreiras lógicas, biológicas e epistemológicas na
busca pela verdade. A primeira trata dos tipos de erro; a segunda, das limitações
sensoriais; e a terceira dos pressupostos teóricos. Tais bases serão retomadas e
desenvolvidas ao longo deste livro, o que permitirá uma melhor percepção das
imbricações entre as questões aqui tratadas.
A primeira barreira para que tenhamos consciência sobre o status de verdade de
nossas idéias e conclusões é lógica. Imagine que houve um assassinato. Quem foi o
assassino? Se o Sr. João confessar o crime, é possível que ele esteja mentindo. Se José
viu o assassinato, ele também pode estar mentindo. Por mais provas que existam, elas
podem se mostrar equivocadas no futuro, o que nos levaria a condenar um inocente ou
absolver um culpado. Alguns casos nos Estados Unidos revelaram tardiamente que o
condenado à morte era inocente; um exemplo de decisão definitiva (morte) aplicada a
partir de conclusões não definitivas (sentença à morte). Este dilema é o que caracteriza,
na estatística, os dois tipos de erro: tipo I, ou α, que é dizer que algo existe, quando ele
não existe; tipo II, ou β, que é afirmar que algo não existe, quando ele existe (Volpato e
Barreto 2011). Note que não é uma questão de rigidez; quanto mais reduzimos um tipo
de erro, mais aumentamos o outro. Eles são inerentes à nossa capacidade de conhecer o
mundo.
A segunda barreira é sensorial. Se consideramos que as informações vindas do
mundo são importantes para construirmos conhecimento (em oposição ou
complementação à visão racionalista, em que o puro raciocínio bastaria – veja Parte 1),
então temos que considerar o quanto podemos confiar em nossos sistemas sensoriais na
percepção dessas informações (nossa base empírica). Kant reconhecia claramente nossas
limitações sensoriais para a construção de conhecimento. Isso também foi mostrado, por
outra ótica, nas questões II-6, II-7 e X-8. Ou seja, quando colocamos o homem como
mais uma espécie de organismo vivo na Terra, percebemos o quanto somos limitados na
percepção dos fatos e fenômenos que ocorrem nesse mundo. Se, por outro lado, damos
ao ser humano poderes dos deuses, então nos colocamos acima deste mundo.
A terceira limitação, que chamo de epistemológica65, refere-se aos efeitos de nossos
pressupostos teóricos na percepção da realidade. Vimos em II-1 cinco formas pelas
quais o ser humano aborda o mundo. Cada uma delas possui seus referenciais teóricos,
mesmo que no caso da loucura não possamos identificá-los claramente, nem supor que
há um pressuposto teórico construído racionalmente. Da forma como foram
apresentados, tais referenciais representam óculos, a partir dos quais enxergamos o
mundo. Se um cientista só aceita conhecimento

65
É evidente que a limitação lógica é também epistemológica, mas uso esses dois termos para
diferenciar uma questão menos controlável (lógica) de outra mais facilmente perceptível (pressupostos
teóricos).

85

que tenha base empírica, ou que possa ser testado empiricamente, não considerará, ou
terá restrições, para aceitar conclusões racionalistas66 (veja II-1). Da mesma forma, se a
experiência pessoal não tem valor para a demonstração de um conhecimento científico,
as idéias religiosas passam a ser fantasias. Mas, se a fé é um requisito importante, muitas
explicações científicas se tornam sem sentido. A alternativa de considerar conhecimento
válido como aquele advindo da imbricação das formas de abordagem (filosófica,
científica, religiosa, artística e louca) não resolve. Nada garante essa verdade, exceto
nossa crença de que o mundo é o somatório dessas formas; mais ainda, pressupõe-se que
os aparatos humanos de constatação do mundo são suficientes para sua construção.
Embora Kant tenha ressaltado como nossas concepções interferem na forma como
apreendemos os fatos do mundo, mesmo os mais “concretos” (veja Parte 1 e II-1),
Duhem foi um dos primeiros epistemólogos a mostrar que as proposições científicas
dependem da teoria; ou seja, que as observações são impregnadas de conceitos (baseado
em Zahar 1997).
Sobre essa terceira barreira é instrutivo ler o capítulo III de Chalmers (2000). Esse
autor mostra de forma muito clara como considerar que os dados não determinam nossas
idéias, mas nossas idéias impregnam os dados que captamos. Olhamos sempre parte da
realidade, e essa percepção é determinada pelas nossas pré-concepções. Por exemplo, ao
olharmos um agrupamento de animais, podemos nos atentar para a relação
interindividual, para a locomoção do grupo, para aspectos morfológicos dos indivíduos,
para os sons emitidos, ou mesmo para o volume de carne que representam etc, tudo isso
condicionado à nossa formação anterior. Outro exemplo ocorre freqüentemente nas
defesas de tese ou dissertação. É comum os examinadores analisarem os textos com
prisma muito fechado em suas respectivas especialidades. Assim, se há na banca
examinadora um fisiologista, um psicólogo, um ecologista, um matemático, um
educador... cada um reclamará que faltou alguma coisa relativa à sua especialidade. Mas
o estudo é um só... o que muda é o prisma de abordagem!
A verdade científica possui um complicador a mais. Ela exige assumirmos que
existam regularidades subjacentes aos fenômenos naturais. Partindo disso, o objetivo dos
cientistas é conhecer essas regularidades, pois assim terá condições de predizer eventos
futuros. A prática científica também reforça essa interpretação. Quando um médico
receita um remédio a seu paciente, está pondo em prática a idéia de que os sucessos
anteriores na prescrição daquele medicamento justificam seu sucesso futuro, mesmo que
aplicado a outro paciente. Essa postura existe; porém, há uma margem de erro67. Receita
o medicamento quando julga que tal erro é demasiado pequeno. De fato, é uma análise
custo-benefício: possibilidade de erro x risco da não medicação. Na prática, no entanto,
muitas pessoas usam os conhecimentos científicos como verdades e se esquecem das
possibilidades de erro (Oreskes et al. 1994).

66
Apenas o uso do raciocínio (razão) é suficiente para entender o mundo.
67
É comum nas bulas de remédios alertas dizendo que até o momento não foram encontradas
contraindicações... o que significa: você pode ser a primeira!

86

II-9 Indução: problema ou solução?

A indução é o processo de construir generalizações universais a partir da observação


de casos particulares. O famoso problema da indução, levantado por David Hume68 no
século XVIII e reforçado por Karl Popper no século XX (veja Parte 1 e II-8 e X-2),
evidencia que não se conseguem verdades por esse processo. O raciocínio é simples: por
mais que um determinado evento venha se repetindo em dadas condições, nada garante
que ele se repita no momento seguinte. Ou seja, a verdade da conclusão fica sempre na
dependência de eventos futuros; portanto, sempre provisória. Na época de Hume, a força
da ciência de Francis Bacon era a verdade. E Hume disse à sociedade científica que a
base da ciência é uma base psicológica, de expectativa, mas não lógica. Isso fez com que
alguns cientistas abandonassem a ciência, enquanto outros adotaram uma visão
pragmática (se funciona, está bom).
Popper é mais enfático e destitui a indução como um processo lógico válido de
construção de conhecimento. A idéia básica é que não há número possível de casos
particulares (e serão sempre finitos) que justifique logicamente (comprove) um
enunciado geral. Por exemplo, mesmo tendo o sol nascido durante todos os dias
passados, desde sua existência, não se deduz logicamente que seja uma condição lógica
necessária que ele nasça amanhã. Há apenas expectativa de que isso ocorra. Afinal, ele
pode explodir na próxima noite.
Vemos isso também em exemplos mais próximos ao cotidiano científico69. Um
medicamento usado com sucesso até o presente não implica, logicamente, que
continuará tendo esse sucesso no futuro. De fato, a eliminação de medicamentos da
prática médica ocorre em função de se perceber que as generalizações sobre sua eficácia
para a saúde são mais limitadas do que se supunha. Um triste exemplo é o caso da
talidomida, que apenas tardiamente descobriram que causava malformação em fetos.
Mesmo a anatomia humana não fica fora disso. Embora o coração esteja mais deslocado
para o lado esquerdo do corpo, há casos em que aparece no lado direito. Embora o
“padrão” seja as pessoas terem dois rins, há indivíduos com apenas um rim.
Em livros sobre lógica é comum a constatação dessa restrição do raciocínio indutivo.
Enquanto o argumento dedutivo revela conclusões sólidas, que não avança além das
premissas, na argumentação indutiva a conclusão avança mais que as premissas, mas é
mais incerta (veja X-2). Isso ocorre para conclusões universais (por ex., todo x é y), cuja
validade dependerá de casos que possam ocorrer no futuro; ou mais especificamente, a
não ocorrência de casos que a neguem no futuro. Como não podemos prever o que
aparecerá no futuro, esse conhecimento permanece sempre provisório. Porém, Popper
afirma que podemos ter certeza quando negamos um enunciado geral, porque sua

68
David Hume (Edimburgo, 7/05/1711 - Edimburgo, 25/08/1776).
69
Na ciência natural (veja II-6), basicamente buscamos duas coisas: entender as regularidades dos
fenômenos naturais, o que é feito por indução, elaborando generalizações com caráter preditivo; ou
entender eventos passados (por ex., buscar evidências históricas para dizer quem foi o responsável por
certo evento histórico).

87

negação não dependerá de casos futuros, uma vez que o evento negador já ocorreu e os
casos futuros confirmadores não mudam essa negação.

88

Popper ainda faz outra crítica à indução. Ele simplesmente não aceita que possamos
olhar algo sem uma teoria70 prévia. Se pedirmos a alguém para observar um cão,
certamente ele observará coisas diferentes de outro observador, embora algumas delas
possam ser iguais entre eles. Isso ocorre porque cada um olha o mundo por uma ótica
pré-determinada. Essas duas críticas à indução levam Popper a propor o método
dedutivo como a única alternativa válida para a ciência.
O recurso à base inata inicial do conhecimento já foi evocado. O indivíduo nasce com
algum conhecimento inato e, a partir daí, tudo o que capta já tem um pressuposto (uma
teoria anterior). A validade de tal base inata já foi matéria de muito debate. Por exemplo,
o problema nature/nurture71 nos estudos comportamentais debate o quanto os
comportamentos são inatos ou aprendidos. Numa visão oposta, os behavioristas radicais
e empiristas assumiam que o indivíduo nascia como uma tabula rasa (denominação
usada por Santo Tomás de Aquino e também por John Locke – veja Parte 1), sem
qualquer conceito prévio e tudo era adquirido gradativamente ao longo de sua vida.
Independentemente da geração inicial de algum conhecimento (inata ou adquirida),
parece certo que o conhecimento do cabedal de um indivíduo interfere na forma como
olha e interpreta as coisas do mundo. Nesse sentido, as hipóteses seriam sempre
anteriores às observações. Porém, parece-me extremamente óbvio que um fato novo
(uma experiência vinda de fora, como um resultado inesperado numa pesquisa
científica) pode ser elemento para insights que culminem com uma nova teoria. Neste
sentido, embora os pré-conceitos afetem o como vemos a experiência empírica sensível,
essa base empírica também pode determinar nossos conceitos.
Numa abordagem mais recente, Jaynes (2003)72 desfere severa critica à abordagem de
Popper sobre a indução, reforçando a visão de Stove (1982, visto em Jaynes 2003) que
coloca Hume, Popper e pensadores da mesma linha sob o rótulo de irracionalistas.
Obviamente um termo provocativo, pois ao menos Popper defendia duramente o
pensamento racional e objetivo.
No sentido de Popper, uma teoria estaria sendo testada contra um número finito de
alternativas (Jaynes 2003). Mas Jaynes (2003) considera que a inferência Bayesiana
determina a plausibilidade de uma hipótese (e não seu status absoluto) em relação a um
conjunto finito e bem definido de alternativas. Esse crítico inclui que a função da
indução não é produzir conclusões verdadeiras, mas nos indicar quais predições73 são
mais fortes a partir das hipóteses e dados disponíveis.

70
Neste caso teoria significa qualquer ordenação teórica que guie nosso conhecimento.
71
O termos nature versus nurture foi cunhado, no sentido moderno, por Francis Galton (16/02/1822 -
17/01/1911) (previamente usado por Shakespeare em The Tempest). Era primo de Charles Darwin e
também foi o criador do conceito de correlação; foi o primeiro a aplicar métodos estatísticos para
comparar diferenças entre seres humanos e introduziu o uso de questionários para pesquisas descritivas
em comunidades humanas (surveys).
72
Meu conhecimento das idéias de Jaynes vieram pela observação do Dr. Paul G. Kinas, da FURG,
RS, que me forneceu parte do material sobre a crítica às idéias de Popper sobre a indução.
73
Uma predição é uma derivativa de uma hipótese (ou teoria); na ciência empírica, indica algo que
deva ocorrer no mundo empírico caso a hipótese esteja correta.

89

A corroboração de uma teoria por dados futuros nos dá maior confiança sobre as
hipóteses que levaram a essa teoria (Jaynes 2003). Se isso se mantém por muito tempo,
com muitos dados

90

corroborando a teoria, acreditaremos nela a ponto de considerá-la uma lei (veja II-10). A
confirmação não nos diz nada novo, apenas nos dá mais confiança sobre o que já
sabíamos. Mas a real contribuição da indução é quando as predições se mostram erradas
ou incompletas, o que nos dá dicas para aprimorarmos esse conhecimento. Podemos
também determinar conseqüências de teorias que consideramos falsas; isso ajuda quando
buscamos examinar conseqüências de nossa teoria favorita, mas não sabemos o que
procurar. Neste caso, podemos considerá-las válidas (mesmo que não acreditemos nisso)
para supor suas predições e, a partir delas, dizer algo também sobre a nossa teoria
predileta. Na visão probabilística Bayesiana, atribuímos a uma hipótese uma
probabilidade de ela ser verdadeira, mas na visão frequentista, testamos a hipótese (certa
ou errada).
De fato, a crítica de Jaynes (2003) faz sentido no contexto prático da ciência. A
ciência usa o método empírico. Os dados são coletados para avaliarmos hipóteses,
predições de hipóteses. Mas note que essas hipóteses devem ter um caráter
probabilístico. Uma preocupação básica do método científico é considerar a experiência
empírica para se concluir sobre as idéias. Isso mostra a força da indução na construção
do conhecimento. Um exame das publicações científicas da atualidade mostra que
fazemos exatamente isso, independente de área do conhecimento.
Embora os resultados não produzam verdades, constroem conhecimento
fundamentado na base empírica e sustentado com o que se tem no momento, sem a
pretensão de que seja uma verdade que transcenda o tempo. Os cientistas, por
ingenuamente acreditarem no poder confirmatório da indução, ainda permanecem
procurando confirmar suas hipóteses. Isso se reflete também nas revistas científicas
quando tornam mais difícil a publicação de artigos que negam hipótese74. No capítulo
VII, sobre planejamento da pesquisa, ficará mais claro este aspecto.
Até aqui vimos que a busca da verdade é muito problemática. De um lado, as
limitações humanas ao conhecer o universo. De outro, a incapacidade metodológica de
se conseguir verdade nas induções que construam generalizações de caráter preditivo. O
que nos resta?
Em resumo, não temos condições de garantir se as conclusões científicas são
verdadeiras nem por quanto tempo se sustentarão como verdade. Podemos apenas dizer
sobre sua adequação frente ao conhecimento da época, uma decisão relativista. Veja as
implicações disto na definição que apresento para conhecimento científico em II-7.
Infelizmente, essas problemáticas sobre a indução e a verdade científica permanecem
desconhecidas da maioria dos cientistas, levando a duas posições mais comuns: ou
sustentam a verdade de suas generalizações pelas comprovações cabais obtidas de
amostras; ou, por medo de errar, atrelam enfaticamente as conclusões às condições do
trabalho: “considerando as condições metodológicas deste estudo e os resultados aqui

74
Numa banca de doutorado em universidade pública brasileira renomada, constatei uma professora
eminente instruir o aluno a identificar as conclusões de seu estudo e, sem seguida, colocá-las como
hipótese no objetivo do trabalho. É absurdo, e desvio de conduta ética, sustentado pelo medo em negar
hipóteses.

91

obtidos, concluímos que...”. Se a atividade do cientista é produzir conhecimento, como


pode se isentar da Epistemologia?

92

II-10 O que são hipótese, tese, teoria, lei, hipótese ad hoc, predição, argumento,
falácia, postulado, dogma e mito?75

A hipótese é uma resposta a uma pergunta, mas que ainda não foi testada. Portanto, é
sempre uma afirmativa. Quando é testada, sua corroboração ou sua negação se
transformam na conclusão. Para que seja uma hipótese científica, ela deve ter condições
de ser negada. Ou seja, é necessário que alguma condição derivada da hipótese possa
negá-la caso ocorra. Se isso não existir, ela não é científica.
Examine a hipótese “Deus existe”. Veja que não há nenhum derivado lógico dela que,
se ocorrer, permita negar essa hipótese. Em outras palavras, que fato poderia negar essa
hipótese? Assim, ela não é científica nos moldes da ciência empírica. Isso não a exclui
como tema para discussão filosófica, ou mesmo crença.
Agora, retorne à discussão sobre o conceito de verdade (item II-8). Se as
generalizações científicas são provisórias, os sentidos correntes de hipótese, tese, teoria
e lei tendem a se aproximar. A alternativa que uso é diferenciar esses termos não pelo
seu conteúdo de verdade (pois seria impossível), mas pelo alcance empírico (grau de
generalidade) e pelo fato de terem sido ou não testados. Alcance empírico refere-se aos
elementos do mundo físico aos quais a generalização diz respeito. A Tabela 2 resume
essa proposta, partindo-se da visão clássica.
Os fatos são considerados no nível real, sendo diretamente observados. Esse nível não
se confunde com verdade, mas é aceito como real para os especialistas da área. Pode ser,
por exemplo, mensuração de um íon (que não se vê, mas cuja existência é aceita),
respostas a um questionário, contagem de número de células, ou número de indivíduos,
enfim, qualquer variável operacional (veja VI-3). Note que nem sempre alguém externo
ao círculo científico reconhecerá algo como um fato. Veja quando um especialista
examina uma radiografia ou as imagens de um ultrassom. Esse especialista vê coisas que
o não especialista não vê. É o acordo de área que assume certas coisas como fato,
embora em geral os fatos sejam bem universais.
Ao contrário do fato, considerado real pela comunidade científica, os outros
elementos (como hipótese e lei na Tabela 2) estão no nível abstrato, das idéias. Nesse
nível conceituai, podemos distinguir aqueles que foram confrontados com a realidade
dos fatos (testados) daqueles que ainda não o foram, separando aqui hipótese e tese de
teoria e lei. A diferenciação entre hipótese e tese não é feita pela necessidade de teste,
mas a partir de uma análise relativa entre duas proposições: a hipótese é mais específica
e “subalterna” à tese. Os testes das hipóteses possibilitam julgamento sobre a validade
da tese. Em outras palavras, a tese é testada pelo teste empírico da(s) hipótese(s)
subjacente(s).
A teoria, por outro lado, é uma explanação mais geral, cujas teses subjacentes já
foram testadas em algum nível. Ou seja, a teoria é um conhecimento explicativo de certa
forma já consolidado, mas eternamente provisório. Com essa noção, quero abandonar o
uso do termo lei na ciência, pois este só terá sentido se assumirmos que ele se diferencie
75
Para esta temática, sugiro ler Bickenbach & Davies (1997). Para o conceito de paradigma, veja II-11
e V-9.

93

da teoria, o que só é conseguido assumindo que possui um grau diferente de “verdade”.


Para evitar essa diferenciação qualitativa de difícil caracterização objetiva proponho
considerar todas as generalizações desse nível num mesmo status.

94

Tabela 2. Diferenciação entre conceitos usados na construção do conhecimento.


Status
Nome Nível Testado Características Sugestão
Clássico
Lei idéia Sim Verdade Teoria aceita como verdadeira, inquestionável Teoria**
Teoria idéia Sim Provisório Afirmativa que é sustentada por teses(s) Teoria**
Tese idéia Não Provisório Afirmativa que é sustentada por hipótese(s)* Tese**
Hipótese idéia Não Provisório Afirmativa que pode ser diretamente Hipótese
confrontada pelos fatos
Fato observado Real Reconhecido universalmente pelos pares Evidência
* Hipo-tese = hipótese (abaixo da tese).
** se há teoria, há tese; se há tese, há hipótese.

No seguimento da questão, restam os conceitos de hipótese ad hoc, predição,


argumento, falácia, postulado, dogma e mito. A hipótese ad hoc é, antes de tudo, uma
hipótese; uma construção teórica sem o intuito de ser testada, pois apenas visa evitar que
a hipótese principal seja derrubada. Veja o exemplo abaixo.

Hipótese: O mordomo matou o patrão.

Suponhamos que os dados coletados revelem a inadequação dessa hipótese; ou seja,


que o mordomo é inocente. Por exemplo, alguns álibis podem ter sido apresentados pelo
mordomo, provando sua presença em outro local no momento do crime. No entanto,
para se tentar manter essa hipótese como verdadeira, podemos recorrer a hipóteses ad
hoc (suportes adicionais não testados), como supor que o mordomo tenha conseguido
um sósia seu para lhe garantir tal álibi (ele não estava em outro lugar, mas sim seu
sósia). Assim, enquanto não se derruba a hipótese ad hoc, não se pode derrubar a
hipótese principal. Ou seja, as hipóteses ad hoc aparecem como muletas a um raciocínio,
procurando mantê-los. O que ocorre é que, muitas vezes, outras hipóteses ad hoc são
formuladas de forma a sempre postergar o teste efetivo da hipótese principal. Nesse
caso, estamos resistindo à derrubada de uma idéia por meio de criação de hipóteses ad
hoc. O caráter ad hoc significa a adição da hipótese com a finalidade de manter a
hipótese principal.
Apesar desse aspecto, é necessário ressaltar que várias hipóteses ou generalizações de
maior nível necessitam de suportes ad hoc em certos momentos, dado o grande alcance
empírico de suas idéias, mostrando-se mais tarde a validade desses enunciados. Em
resumo, não se pode julgar a adequação de uma hipótese pela existência ou não de
amparos ad hoc, embora seja intuitivo que a necessidade exagerada desse recurso
enfraqueça a hipótese principal. Num texto científico, procure evitar o uso desses
suportes, pois são vistos com desconfiança.

95

As predições são conseqüências necessárias previstas a partir de alguma


generalização (hipótese, tese ou teoria). O raciocínio é simples, como aquele mostrado
no Modus Tollens na questão II-3, item 4. Se a idéia está correta, os eventos esperados
são suas predições. Se a agressão aumenta quando os animais estão isolados, então
animais isolados brigarão mais que os agrupados quando confrontados entre si. Se a
educação é a base real para as condutas humanas, então as transformações de conduta
impostas por leis são paliativas. Assim, se retiramos a exigência do cinto de segurança
para aqueles que andam de carro, a predição é que eles voltarão a não usá-lo.
O argumento é um tipo de raciocínio que pode ser dedutivo ou indutivo.
Estruturalmente, possui duas ou mais premissas, que são afirmações, de caráter geral ou
particular, que sustentam uma conclusão. Veja o exemplo abaixo.

Argumento dedutivo

Premissa 1: Todos os vertebrados sentem dor.


Premissa 2: Os peixes são vertebrados.
_______________________________________________________

Conclusão: Os peixes sentem dor.

Esquema de raciocínio
(Peixes) Є (Vertebrados) Є (sentir dor), ou
Vertebrado = Sentir dor
Peixes = Vertebrado
logo, Peixes = Sentir dor

Argumento indutivo

Premissa 1: O peixe 1 sentiu dor.


Premissa 2: O peixe 2 sentiu dor.
Premissa 3: O peixe 3 sentiu dor.
Premissa n: O peixe n sentiu dor.
________________________________________

Conclusão: Os peixes sentem dor.

Esquema de raciocínio: por indução, se aconteceu no passado, se repetirá no futuro


(veja II-9).

96

O que é fantástico no argumento lógico é que, se sua construção não envolve falácias
(erros lógicos de raciocínio76), todos concluem a mesma coisa. Se eu lhes disser que
todos os homens são mortais e que Sócrates é homem, todos concluirão que Sócrates é
mortal. Considerando que o conhecimento científico requer que os pares aceitem as
idéias (veja II-7), o raciocínio lógico é uma potente ferramenta.
Os postulados são proposições (princípios ou fatos) que se admite sem
demonstração. São pontos de partida que, em certos momentos, são essenciais para se
construir um arcabouço teórico. O dogma é também admitido sem demonstração, mas é
aceito como uma verdade absoluta impossível de ser modificada no futuro. Indiscutível!
É intransigente e não aceita refutação. O mito também se apresenta como explicação
dogmática, pois se busca sua afirmação mesmo com fatos contrários (os fatos cedem ao
mito e não o contrário – sempre se busca acrescentar algo ao mito a fim de mantê-lo,
mesmo frente a dados que o contradizem – é uma matéria de fé). O mito é uma fábula
sobre a natureza.

II-11 Como ocorre progresso na ciência?

O conceito de progresso em ciência também mudou à medida que os conceitos sobre


verdade e ciência foram se modificando. No surgimento da ciência empírica, a crença
era de que o conhecimento científico garantia verdades. O método proposto era o
indutivo e se admitia que esse processo gerava conclusões indubitavelmente certas.
Assim, o método científico consistia em observar casos particulares e induzir hipóteses
gerais. Confirmações sucessivas dessas hipóteses aumentavam seu alcance e grau de
certeza até se tornarem leis. As leis tinham caráter de verdade e eram, portanto,
imutáveis. Como decorrência, a ciência era o conjunto dessas leis e seu progresso
consistia no acréscimo de novas leis (verdades) ao conjunto pré-existente.
Com o desenvolvimento dos conceitos sobre o caráter provisório de qualquer lei
científica (veja II-8), o conceito de progresso científico foi alterado. Atualmente se
aceita que todo conhecimento científico é provisório. Assim, a ciência progride, tanto
pelo acréscimo de novas generalizações quanto pela modificação de generalizações pré-
existentes. Esse progresso, no entanto, não garante o avanço em direção à verdade. Pode
ser, inclusive, o afastamento em relação à trilha da verdade, mas a ciência não consegue
averiguar se estamos nos afastando ou nos aproximando da verdade (veja II-8). Ou seja,
a verdade “absoluta”, irrestrita no tempo e no espaço, não é preocupação científica. O
que se pode conseguir com a ciência são explanações coerentes com o sistema de
conhecimento científico da época, o qual pode ser modificado no futuro. Assim,
progresso científico está mais para modificação do que para verdade. Progredimos em
ciência à medida que explicamos mais fenômenos, que

76
Dois exemplos de falácia: 1) Todas as aves que voam têm asas; os pingüins são aves e têm asas;
logo, os pingüins voam. 2) A frase a seguir está errada; a afirmação anterior não é verdadeira.

97

alteramos formas de se considerar os fenômenos, mas nunca saberemos (nem temos


como saber) se estamos caminhando em direção à verdade.
No século XX, dois grandes filósofos se opuseram em relação ao como ocorria a
troca de teorias no sistema científico. São eles Karl Popper e Thomas Kuhn. A diferença
entre eles reside no quanto aceitam o papel da crítica e das evidências nessas
transformações.
Popper defendeu que resultados falseadores das hipóteses e teorias têm um papel
importante na substituição das teorias (Veja II-8 e II-9). Considera que as predições de
uma teoria (mesmo que via hipóteses) consistem em elemento de teste suficiente para
que a comunidade científica aceite ou rejeite uma teoria. Ele reforça que a crítica é
fundamental, devendo o cientista buscar mais a negação de suas idéias do que as
confirmações. Alega que as confirmações apenas mantêm as idéias num caráter
provisório porque sempre dependerão da não ocorrência de negações no futuro. As
negações, por outro lado, decorrem de fatos já ocorridos e, portanto, dão mais
estabilidade ao conhecimento no futuro.
Thomas Kuhn defendeu que as teorias aceitas pela comunidade científica são aquelas
que se coadunam com os paradigmas do momento histórico que essa comunidade
compartilha. Ele introduziu o termo paradigma na problemática da construção do
conhecimento científico a partir de seu famoso livro “A estrutura das revoluções
científicas”, cuja primeira edição foi publicada em 1962. Paradigma é, em termos gerais,
o conjunto de modelos conceituais que certa comunidade acorda entre si e mantém a
coesão do grupo. A ação desse paradigma é tão forte que muitas vezes os dados são
rejeitados por contrariarem essa expectativa teórica. Assim, uma teoria é substituída por
outra pela mudança de paradigmas, que não é um evento necessariamente racional nem
freqüente. A partir dessa mudança, outras teorias passam a ser aceitas enquanto outras
são rejeitadas. Note que essa postura é bem diferente da proposta por Popper.
Segundo Margaret Masterman (1979), em seu famoso livro Kuhn emprega a palavra
“paradigma” em 21 sentidos. No entanto, Masterman os agrupou em três:

a) Paradigmas metafísicos (metaparadigmas): trata-se mais de uma entidade


metafísica do que de uma entidade científica. Refere-se a crenças, mitos,
especulações metafísicas bem sucedidas, ou a algum modelo, uma nova maneira
de ver as coisas, um princípio geral que governa a própria percepção, um mapa
ou algo que determina uma grande área da realidade.

b) Paradigmas sociológicos: refere-se à realização científica universalmente


reconhecida, concreta, conjunto de instituições políticas, decisão judicial aceita.

c) Paradigmas de artefato ou de construção: uma forma mais concreta para o uso


do termo paradigma, referindo-se a manual ou obra clássica, fornecedor de
instrumentos, instrumentação real, paradigma gramatical (linguisticamente),
analogia (ilustrativamente), figura de gestalt (psicologicamente) e baralho de
cartas anômalo.

98

99

Kuhn em momento algum equipara paradigma a teoria científica. Seu uso de


paradigma metafísico é mais amplo que as teorias científicas e ideologicamente anterior
a elas. Apesar disso, e trocando em miúdos, a idéia geral é de uma noção ampla que
norteia as pessoas em suas decisões, um grande modelo.
O tipo de paradigma mais importante para a ciência é o metaparadigma. Embora
Kuhn não o confunda com teoria, trata-se claramente de uma noção geral que guia as
teorias. Nesse sentido, e procurando trazer esta discussão para a prática da ciência, o
efeito dos paradigmas também ocorre com as teorias. As teorias podem ser consideradas
noções gerais (embora mais restritas que os metaparadigmas) que guiam, ou mesmo
cegam, os cientistas nas suas formas de ver o mundo. Veja que em algumas áreas da
ciência, ou mesmo da filosofia, elas servem de referenciais teóricos que agregam grupos.
Veja a psicanálise, o behaviorismo, o cognitivismo, a teoria keynesiana, o monetarismo,
a teoria da evolução biológica, a sociobiologia, o construtivismo, o sociointeracionismo,
a mecânica quântica e a mecânica clássica, a teoria burocrática de Weber etc. Embora
em diferentes níveis de abrangência, essas “apostas” teóricas são construtos teóricos que
agrupam cientistas. Nesse sentido, mantêm relação com a noção de paradigma proposta
por Kuhn, mesmo que ele não reduzisse os paradigmas a teorias.
Na atualidade, está muito em voga a noção de sustentabilidade. Lógico, é natural que
surgisse com maior ênfase neste século, pois as coisas estão se tornando insustentáveis.
Veja que os paradigmas surgem, ou passam a ser aceitos, a partir de certos contextos
histórico-político-geográficos. A ações humanas passam a ser regidas por uma noção
teórica mais ampla (por ex., a sustentabilidade) e várias idéias que se coadunam a ela
são vistas com maior alegria. Isso guia avalanches de projetos dentro do novo
paradigma, pois são as idéias mais inovadoras. Com o passar do tempo, caso o
paradigma não seja substituído, passa a se tornar “regra” e é nesse ponto que passa a
prejudicar o processo inovador (muitos projetos são negados por contrariarem a “nova
ordem” estabelecida).
Segundo Popper, a ciência progride por meio da substituição de teorias, em que os
dados false-adores das idéias têm papel fundamental. Para Kuhn, essa substituição
ocorre por um acordo entre as pessoas, guiado subliminarmente pela mudança de
paradigmas. Conforme entendo, quando esse acordo não é conseguido podem-se criar
escolas do pensamento, o que posterga o acordo para o futuro.
Durante o reinado de um paradigma estabelecido, predomina a ciência normal
(termos de Kuhn), que reforça esse paradigma. Ele serve também para depurar o
paradigma que, em seu início, pode não estar completamente claro. Eqüivale à analogia
com a construção de uma casa. Quando se muda uma parede de lugar faz-se uma grande
revolução do pensamento (ciência revolucionária nos moldes de Kuhn); quando se
coloca tijolos sobre o risco de uma parede idealizada na planta, consolida-se essa
idealização e faz-se ciência normal. A ciência revolucionária é exceção; a ciência normal
é a regra.

100

Costumo usar a estrutura de paradigmas proposta por Kuhn para aplicá-la a casos
mais específicos77. Explico melhor. Veja em sua especialidade quais são as noções
teóricas que você assume a priori; ou seja, numa postura paradigmática. Ela tem o
mesmo efeito dos grandes paradigmas. Encontrar outras explicações implica lidar,
embora num universo mais restrito, com os mesmos problemas da mudança

77
Possivelmente Kuhn vire-se no túmulo ao saber disto, mas a analogia lógica estrutural me parece
perfeitamente válida.

101

de paradigmas. Embora no círculo de sua especialidade, os preconceitos e os


ensinamentos padrões estabelecidos darão duro para evitar tais mudanças. Apesar de as
revistas científicas de alto nível buscarem inovações desconcertantes (veja V-l), o crivo
dos revisores está ainda sob a ótica de seus próprios “paradigmas” da especialidade.
Sugiro aqui o termo modelos da especialidade para expressar esse uso do conceito de
paradigma num universo restrito ao dia a dia do cientista.
Com isso, quero reforçar a importância de uma mente rebelde na construção dos
projetos de pesquisa. Repetir mesmices não leva a grandes avanços, exceto quando a
mesmice ainda não é tão generalizada; você defende algo já publicado, mas que ainda
não é tão universalmente aceito. Veja em Volpato (2010) as fases de desenvolvimento
de uma descoberta científica. Uma vez encontrada a nova idéia (fase da descoberta), ela
é publicada e permanece um tempo, quando outros autores devem reforçá-la (fase de
consolidação), até uma fase em que se torna aceita e direciona os pensamentos da
especialidade (fase de aceitação). É na terceira fase que a descoberta científica pode
atuar de forma “paradigmática”, ou seja, como modelos da especialidade. A busca do
cientista revolucionário é atuar construindo novos modelos dessa terceira fase. O
cientista normal atuaria na fase 2.

II-12 Qual a diferença entre ciência básica e ciência aplicada?

A dicotomia entre ciência básica e ciência aplicada, tão comum nos corredores da
ciência, é infundada e produto de interpretações equivocadas do que seja ciência. Da
forma como essa dicotomia é colocada, presume-se, em primeira instância, que existam
duas ciências: a básica e a aplicada. Por extensão desse conceito, deveríamos admitir
que existam duas formas científicas de se construir conhecimento, a básica e a aplicada.
Esse equívoco ocorre porque essa definição se baseia no produto final e não no
mecanismo para gerar conhecimento. E ciência é uma forma de gerar conhecimento e
interpretar o mundo (veja II-1). Na ciência produzimos conhecimento que pode ser
aplicado imediatamente (ciência aplicada) ou não (ciência básica). A diferença entre o
conhecimento básico e o aplicado não está na forma de construção (ciência), mas na sua
correspondência social: serve para agora ou não.
Podemos, então, distinguir claramente dois níveis de conhecimento: a) conhecimento
sem aplicação prática imediata e b) conhecimento que trata de questões práticas
imediatas, com chance de construir tecnologia. A tecnologia em si é o produto da
aplicação do conhecimento científico. Muitos chamam o primeiro de ciência básica e o
segundo de ciência direcionada. Esses dois qualificadores (básica e direcionada) são
também equivocados, pois a ciência dita básica também é direcionada por outros
conhecimentos e para determinadas teorias. Essa questão só existe quando resolvemos
avaliar o conhecimento pelas suas conseqüências práticas. É evidente que a ciência deve
atuar nos problemas sociais a curto e médio prazo, mas é também evidente que a busca
por conhecimento não deve se limitar a isso, pois do contrário nunca enveredaríamos por
caminhos novos. Deixar a mente vasculhar as curiosidades humanas sempre foi um bom
tempero nessa

102

103

questão. É evidente que o bom senso deve dimensionar o quanto, num dado momento,
devemos investir mais em pesquisas de aplicação imediatista ou não. Conseguir o bom
tempero é tarefa dos bons gestores e administradores.
Seja qual for o enfoque do seu trabalho, o importante é que construa ciência de bom
nível. Não se constrói um país livre e independente apenas com ciência “básica”,
tampouco só com ciência “aplicada”. O comum é um vai e vem entre os conhecimentos
aplicáveis e os não aplicáveis no momento. O importante é que a ciência seja de bom
nível e devemos mirar nisso durante a formação de nossos cientistas. Do contrário,
nossas tecnologias não funcionarão perfeitamente, e o salto quantitativo que o país vem
dando na ciência internacional será apenas uma construção vazia com grande chance de
sucumbir.
Lembremos que o descobridor do raio laser não saiba exatamente para que ele
serviria. Da mesma forma, Mendel mostrou os mecanismos genéticos sem
possivelmente ter noção do que estava criando. A própria teoria da seleção natural, de
Charles Darwin, é hoje usada na Epistemologia (veja teoria epistemológica
evolucionária – Popper 1972)
Uma implicação atual dessa dicotomia é a preferência que muitas agências de
fomento à ciência têm dado às pesquisas de cunho aplicado. Fazendo uma analogia com
uma indústria, imagine que ela deve possuir matéria-prima para fornecer seu produto.
Caso se preocupe demasiadamente com o produto, poderá se esquecer da matéria-prima
e aí o produto se esgota. No caso da ciência, a matéria-prima é o conhecimento e o
produto, as soluções tecnológicas resultantes. O que usamos são esses produtos que
resolvem nossos problemas. Mas se um país investir maciçamente apenas nas atividades
que resolvem problemas atuais, poderá se dar mal no futuro. Problemas novos podem
surgir, para os quais novas soluções precisarão de novos conhecimentos.
Costumo tratar esta questão com o seguinte exemplo: imagine que um tipo de lavoura
importante para nossa alimentação começa a morrer. Sem dúvida, parar essa mortalidade
é fundamental. Mas como fazer isso se não sabemos o que está causando essa
mortalidade? Depois de algumas observações, descobrimos que se trata de um inseto,
pois sempre que ele está presente a lavoura começa a definhar. Descobrimos até que o
tal inseto é conhecido como Nebulsosus marginalis. Mas agora vem o problema: nada
sabemos sobre ele. Num primeiro momento usamos o que conhecemos sobre outros
insetos para resolver a questão, mas logo percebemos que isso não funciona com o N.
marginalis.
O drama todo fica maior quando olhamos para a literatura e consultamos especialistas
e descobrimos que ninguém conhece os hábitos desse inseto. O caminho natural é
buscarmos rapidamente conhecê-lo: seu hábito alimentar, reprodução, ciclo de vida,
preferências climáticas etc. Mas todos sabemos que isso pode durar alguns anos antes
que possamos controlá-lo sem destruir o restante do ambiente (ou seja, não vale matar o
doente, ou explodir a terra, para eliminar o vírus, a bactéria ou o parasita). Ficamos
desanimados ou desesperados!

104

Mas eis que surge uma notícia surpreendente. Um pesquisador (Dr. Curio Osos) de
um país pouco conhecido havia estudado muito sobre a vida do N. marginalis. Ufa,
salvos pelo gongo!

105

Temos agora um volume de conhecimento que nos levará rapidamente ao controle desse
inseto diferente de seus parentes.
O que decorre dessa estória é que quando o Dr. Osos estudou esse inseto, a questão
da praga talvez nem tivesse ainda sido levantada. Ele estudou porque achou interessante.
Porém, no momento em que surgiu o problema na lavoura, rapidamente esse corpo de
conhecimento passou do mundo básico para o mundo extremamente aplicado. E assim é
a ciência. Importância social depende do contexto, do momento.
É evidente que um país não tem condições de financiar todas as elucubrações dos
cientistas na fé de que poderão ser úteis no futuro. Porém, também não pode bloquear
certas pesquisas “malucas” porque elas poderão fazer a diferença no futuro. Os
administradores estão, geralmente, pensando em investir no que é prioritário, naquilo
que tem baixa possibilidade de erro. Essa não é postura de um empreendedor.
Investir em mesmice também atrapalha. Quanto mais o país é retrógrado em
conceitos sobre ciência, mas fará pesquisa arcaica e menos investirá nas idéias
inovadoras (não importa o quanto alardeiem estar envolvidas com a causa da inovação).
Temos, em nosso país, costume de investir em mesmices e medo de investir no risco.
Pesquisa de risco fica na gaveta, tanto por parte de alguns cientistas, quanto por parte de
financiadores. Note que não é uma questão apenas dos financiadores, mas muitas vezes
dos pares que dão o parecer técnico à proposta de pesquisa. Portanto, a mudança teria
que ser mais geral entre os cientistas.
Ressalto outro aspecto para tirar a impressão de que, ao final, o que importa é aquilo
que gere tecnologia, mesmo que em longo prazo. A tecnologia nos ajuda a resolver
problemas. Porém, o ser humano se depara também com problemas de outra natureza,
cuja solução também lhes é extremante importante, mesmo que não signifique presença
de tecnologia. Indagações e inquietações sobre as coisas podem gerar perguntas
perturbadoras. Alguns se perguntam de onde viemos ou o que somos neste universo.
Perguntas existenciais, em vários formatos, merecem respostas. Pesquisas nesse sentido
podem não gerar lucro, podem não resultar em tecnologia, mas são importantes. É
também genuíno querer conhecer os seres que nos cercam, pelo puro prazer de conhecê-
los e nos espantar com suas formas diferentes de vida e soluções de problemas.
Enfim, a ciência se presta a tudo isso. Essa é a conseqüência da fascinante evolução
de nosso sistema nervoso, que nos premia com ideais fantásticas, inclusive com a
criação da ciência, umas das brilhantes formas de se ver o mundo. Talvez por isso
mesmo seja uma das únicas a gerar tecnologia.

106

II-13 Basta tecnologia?

Não, definitivamente não. Enquanto a tecnologia nos dá um mundo maravilhoso,


vivemos um mundo assombroso. Hoje temos computadores potentes, programas
incríveis, comunicação super rápida por e-mail e outras formas virtuais. Certamente isso
ajuda muita gente. Uma operação cirúrgica pode ser feita à distância, informações são
obtidas em tempo real etc. Mas também temos os vírus, a captação inadequada e
criminal de dados pessoais e vários tormentos que antigamente não existiam. É culpa da
tecnologia? Óbvio que não! É culpa da formação equivocada do ser humano. O
investimento maciço em questões economicamente produtivas desviou o ser humano de
reflexões mais humanísticas e isso tem levado a uma deformação moral e ética das
pessoas. Achar que essa é uma questão menor é uma estúpida forma de considerar o
mundo e as pessoas.
No Brasil, o inconsciente do oportunismo se viu retratado na propaganda de cigarro
feita, na ocasião, pelo jogador Gerson. Nessa propaganda ele dizia que devíamos levar
vantagem em tudo... numa alusão de que fumar certo tipo de cigarro lhe dava essa
vantagem. Daí para que isso virasse regra de conduta não precisou muito (foi como
faísca em gasolina).
Vamos ler isso de outra ótica. Foi essa frase que corrompeu a sociedade ou isso
apenas catalisou uma realidade já existente? É esse oportunismo que já havia nas
pessoas (e certamente não é genético e tem raízes culturais78) que tem incentivado o lado
discriminatório, desonesto e perverso de nossa sociedade. E essa sociedade usa a
tecnologia para atender aos seus interesses últimos. A culpa não pode ser da tecnologia,
mas de quem a usa indevidamente. Um revólver mata? Lógico que não. Quem mata é o
ser humano, usando um revólver. Na ausência do revólver, certamente mataria de outra
forma. A você bastaria ter uma arma para se transformar num assassino? Acredito que
não.
Na frase que coloquei no início deste livro procuro definir meu quase desespero
frente a esta questão.

Ou o século XXI é dedicado aos valores humanos, morais e éticos... ou


de nada valeram os avanços tecnológicos conquistados até aqui.

Por que temos que tornar a vida um inferno, quando poderíamos nos ajudar? O pano
de fundo de tudo isso é o sistema altamente competitivo em que vivemos? Tenho minhas
dúvidas. O caráter das pessoas parece o problema principal. Poderíamos competir com
outra intenção.

78
Toda a culpa não deve recair à nossa colonização, mas certamente esse processo explica parte de
nossas condutas. A colonização vem com o intuito de levar riquezas para o país de origem. Além disso, a
própria Lei de Degredo, que fez com que muitos condenados em Portugal fossem extraditados para o
Brasil, colaborou para a constituição de uma sociedade baseada em oportunismo, imoralidade e safadeza.

107

Acredito muito no poder da educação. Ensine desde cedo o amor, e terá o amor.
Ensine a deslealdade, e criará seu próprio inferno. Se criamos, fomentamos ou
estimulamos a ignorância, a arrogância e a deslealdade, hoje somos vítimas delas.
Qualquer governo que não invista, de forma maciça, na educação de sua população é
demagógico ou profundamente equivocado. Esse é o único caminho para qualquer
sociedade... por que não seria para a nossa? Enquanto a moral e a ética não se tornarem
referenciais básicos no nosso dia a dia, estaremos longe de qualquer mudança
significativa.

II-14 Devemos preferir as pesquisas aplicadas?

O que mostro aqui é que o direcionamento para as pesquisas aplicadas é uma decisão
particular do cientista, não uma imposição da ciência. A ciência é uma estratégia
humana para construir conhecimento. E conhecimento não serve apenas para resolver
problemas práticos. Aliás, nem sempre um estudo com implicações práticas se inicia
dessa forma.
A questão básica é: para que serve a ciência? Parece-me bastante natural
imaginarmos que a ciência, assim como qualquer outra atividade humana (arte, política,
comércio, trabalho, turismo, religião, filosofia, esporte etc), deva ser direcionada para
tonar o ser humano mais feliz. As relações humanas são complexas e nem sempre a
felicidade criada para alguns se compatibiliza com a felicidade de outros, o que se
desdobra em relações sociais complexas. Mas ainda acho genuíno e válido insistirmos
que o objetivo da ciência é aumentar e manter a felicidade das pessoas.
Como conseguir felicidade? Precisamos mais que boa saúde, embora ela seja
importante. Precisamos mais que dinheiro, embora ele também ajude. Precisamos mais
que bens materiais, embora eles também nos satisfaçam.
O surgimento da ciência não veio de uma necessidade médica ou econômica, mas da
inquietação humana diante dos problemas existenciais. A busca por um conhecimento
mais seguro, mais aceitável foi, muito possivelmente, o principal estopim para se
encontrar o método científico. Vimos em II-1 como as inquietações existenciais
direcionaram as discussões filosóficas. Lógico que elas também foram temperadas por
questões práticas, mas estas não foram o cerne da questão. Vejam que a máxima de
Descartes (Penso, logo existo) estava muito além de questões médicas ou econômicas. A
preocupação dos empiristas e dos racionalistas era também uma preocupação em
conseguir uma “ferramenta” que nos desse um raciocínio, um conhecimento adequado.
Francis Bacon, ao criar a raiz da ciência moderna, tinha essa mesma preocupação. O
próprio nascimento da Filosofia relaciona-se com a preocupação com o entendimento do
mundo (inicialmente, sua composição). O entendimento do universo também permeou
muitos filósofos na história do conhecimento humano.
É a partir do estabelecimento de uma metodologia voltada para os fatos concretos,
mas ainda preocupada em criar conhecimento confiável, que a tecnologia resultante
desse conhecimento ganha força. Antes disso, em vários momentos vimos pensadores se
atrelando ao poder dominante, reflexo de uma necessidade social, mas não intelectual.

108

109

É evidente que a tecnologia depende da ciência e não o inverso. Hoje essa afirmação
pode assustar alguns, pois não se fala em ciência sem se pensar em equipamentos e
outros produtos tecnológicos usados nas investigações científicas. Porém, esse uso da
tecnologia não é uma dependência na essência, mas apenas uma expansão tecnológica
que nos amplia a qualidade da base empírica. Os procedimentos lógicos básicos (o
método científico) de construção do conhecimento continuam os mesmos.
Com essa ressalva, voltemos à questão inicial. A ciência é uma ferramenta humana
que lhe dá conhecimento confiável (veja II-2 e II-3). Que esse conhecimento deva ser
voltado aos interesses humanos não tenho dúvida. A questão é saber quais são esses
interesses. Hoje vivemos uma sociedade tecnológica altamente competitiva. É natural
que isso desvie e atraia a atenção de todo empreendimento humano, inclusive a ciência.
Entendo isso como um acontecimento histórico, mas não como um norteamento
filosófico. Será que o ser humano perdeu o interesse em saber de onde viemos, para
onde estamos indo, se estamos sós ou não no universo, qual o significado de tudo à
nossa volta, há uma razão maior para a complexa vida humana, o que é a mente?
Outra forma de abordar esta questão é considerando a gênese das produções
tecnológicas. Uma pesquisa aplicada, como é concebida hoje, visa a resolver um
problema prático claramente delimitado e conhecido. Por exemplo, podemos fazer
pesquisa para melhorar a qualidade do ensino, para reduzir o risco de uma epidemia,
para otimizar o uso de combustíveis para motores, para facilitar as construções civis,
para acelerar e melhor qualificar nossa comunicação etc. O problema é claro e, partindo
dele, investigamos as lacunas do conhecimento e oferecemos respostas que se tornarão
(ou diretamente propiciarão) a própria tecnologia.
Mas que dizer da pesquisa que deseja conhecer como vivem certos animais que não
possuem interesse econômico (não são pragas, nocivos nem comestíveis), como é a
dinâmica social de certas tribos indígenas, qual a galáxia mais distante da nossa (mesmo
sabendo que possivelmente nunca chegaremos lá), por que alguns animais são tão
coloridos, o que é a mancha de Júpiter, como resolver o enigma da corrida entre Aquiles
e a tartaruga (proposto por Zenão de Eleia), dentre outras? Num mundo tecnológico, o
que não resolve questões práticas é visto com desdém. Parece que toda a atividade
humana deve ser voltada para engraxar esse sistema.
Essa problemática entra na ciência à medida que os projetos relevantes passam a ser
apenas aqueles que apresentam uma aplicação eminente. E o discurso se reveste do
paradigma democrático e social, ganhando ainda mais força. Se a sociedade financia a
pesquisa, nada mais justo que o resultado da pesquisa seja revertido para essa sociedade.
Uma forma capitalista de tratar as coisas, baseado no investir para obter retorno. O pior
é que esta abordagem algumas vezes prioriza o retorno tecnológico, nem sempre em
termos de esclarecimento de dúvidas existenciais, ou simplesmente do prazer de se
conhecer mais sobre o nosso mundo.

110

Mesmo a geração de uma tecnologia não se inicia com a pesquisa direcionada79.


Muitas pesquisas feitas pelo belo prazer de se conhecer algo, pela instigação da
curiosidade humana, revelaram

79
Diz-se daquelas pesquisas que mesmo sem clara expectativa de construção de uma tecnologia, estão
voltadas para um problema prático de interesse; ou seja, estão direcionadas para esse problema.

111

conhecimento que, mais tarde, se mostrou altamente tecnológico. Veja que o monge
Gregory Mendel estava possivelmente preocupado apenas em entender um fenômeno
biológico, que eram as relações entre características das plantas (no caso ervilhas) na
descendência. O fato de a ervilha ser comestível talvez tenha sido mero acaso. O
desdobramento de suas descobertas no fortalecimento e direcionamento da genética
também não podia ser previsto nessa ocasião. O mesmo se pode dizer hoje das pesquisas
que recebem o Ig Nobel80?
O fato é que podemos manter a ciência como uma atividade de descoberta das
curiosidades humanas, ou direcioná-la estritamente para as questões aplicadas que, na
atualidade, significam as engajadas na manutenção de nosso sistema tecnológico e
econômico. De um lado satisfazemos curiosidades, de outro resolvemos problemas
práticos de sobrevivência. Coloco de forma bem dividida nesses dois blocos para
reforçar que eles existem. É lógico e salutar que a opção não recaia em apenas um deles.
Sem dúvida, todas as questões levantadas pelo ser humano são genuínas e merecem
investigação. Até mesmo saber se há vida após a morte, mesmo que as ferramentas
científicas ainda não sejam suficientes para nos dar esse tipo de resposta.
No filme Contact, a Dra. Eleanor “Ellie” Arroway (interpretada por Jodie Foster) se
dirige a uma Fundação que financia projetos para pedir apoio em sua pesquisa que
investiga contatos com vidas inteligentes em outros planetas. Após apresentar sua
proposta aos técnicos, recebe a seguinte resposta: “Bela apresentação Dra. Arroway.
Mas, embora nossa Fundação financie projetos experimentais, devemos confessar que
sua proposta não parece ciência, mas sim ficção científica”. Frente a isso, e já sendo sua
última esperança, ela desabafa:”[...] é loucura [...] é birutice. Quer ouvir outras
birutices?” E dispara uma pequena lista: avião, quebra da barreira de som, ida à lua,
energia atômica, missão para Marte. Ela pede a eles um pouco de visão, uma percepção
geral das coisas.
É essa percepção estreita que está dando um caráter imediatista para a ciência nos
dias de hoje. Isso se reflete na alocação de verba para pesquisa e algumas áreas são
claramente prejudicadas porque não conseguem fornecer o tipo de resposta tecnológica
imediata que as agências de fomento vislumbram. Mas isso geralmente é uma
característica da área, no momento histórico em que se encontra, e não ciência
desinteressante ou infundada.
A visão capitalista da ciência a coloca como uma atividade que deve retribuir
benfeitorias para a sociedade, mas prioriza as benfeitorias práticas, aplicadas, de forma a
resolver problemas ditos relevantes. Nesse sistema, as pesquisas que atendem a esse
quesito são favorecidas com financiamentos, enquanto outras ficam ignoradas.

80
O mote do Ig Nobel Prize é: “Research that makes people laugh and then think” (www.
http://improbable.com/ ig/). Por exemplo, dois prêmios de 2011 foram: Is a sigh “just a sigh”? Sighs as
emotional signals and responses to a difficult task – (Teigeni, 2008) e Beetles on the bottle: male
buprestids mistake stubbies forfemales (Coleoptera) – (Gwynne & Rentz, 1983).

112

II-15 A ciência é amoral?

Preocupação constante de muitas pessoas são os efeitos maléficos que podem advir
da aplicação de certos conhecimentos científicos. Por exemplo, as destruições por
bomba atômica, as poluições pela indústria, as mortes acidentais nos transportes etc.
Esses efeitos não decorrem do conhecimento, mas da forma como o homem o utiliza.
Atribuir a culpa à tecnologia derivada de ciência eximiria a responsabilidade da
ciência e do cientista? Lógico que não! Porém, em muitos casos é impossível prever o
desdobramento tecnológico e prejudicial que determinado conhecimento pode trazer à
sociedade. Além disso, muitas vezes há prejuízos e vantagens decorrentes das
descobertas e, privando-se do conhecimento, priva-se também das vantagens decorrentes
dele.
O conhecimento científico é amoral, mas o cientista não. Antes de tudo, o cientista é
um cidadão. Cabe a ele lutar para a boa aplicação do conhecimento gerado.
A ciência está aí. A tecnologia também. O que faremos com isso depende de nós. Se
o conhecimento que produziu a bomba atômica já matou muita gente, também já curou
muitas pessoas. Se a produção de carros já matou muitas pessoas, também já salvou
várias. O que leva a matar ou curar, prejudicar ou ajudar, está além da tecnologia ou do
seu conhecimento de suporte; está na participação moral e política de cada cidadão.
Nesta sociedade científica de “publicadores de papers”, o que ainda falta é um
investimento mais forte na formação ética e moral. A pós-graduação deveria se envergar
nessa tarefa, mas aparentemente não o está fazendo com a intensidade necessária81.
Numa sociedade inteligente, a produção de conhecimento deve vir acompanhada de
exemplos práticos. Enquanto no Brasil as universidades continuarem repetindo82 os
erros de nossos políticos, não vejo qualquer chance de mudança séria.

II-16 O cientista pode ser religioso?

Inicialmente, considere a distinção que fiz (II-1) entre ciência e religião. Assim, o
religioso considera que tem consciência sobre, no mínimo, uma verdade absoluta: Deus
(ou forma similar)

81
Hoje, com exceções, as pós-graduações são voltadas estritamente aos critérios Capes. E tais critérios
atendem mais à competitividade do que à formação científica. Formamos toneladas de pesquisadores e
raros cientistas e educadores. Certamente um sistema falido. Note que as defesas de tese julgam a pesquisa
e raramente o aluno, mas é ele que recebe o título.
82
Muitos que criticam nossos políticos fazem exatamente a mesma coisa em seu pequeno nicho
(atribuindo isso à política universitária). A moral transcende o campo de atuação!

113

existe83. Se Deus não existir, o discurso religioso desaparece. Por exemplo, se não há
espírito, não há espiritismo! Se não há Cristo, não há cristianismo!
Ao contrário, o cientista admite que nossas certezas têm caráter provisório. Mesmo
que diga um enunciado verdadeiro, não tem como saber se, de fato, é verdadeiro (II-8),
no sentido de uma verdade que transcende o tempo. Além disso, o cientista só considera
discursos baseados em evidências que possam ser universais (obtidas por quaisquer
pessoas, desde que obedecidas certas condições descritas).
Essas divergências são complexas. O cientista considera que todo seu conhecimento é
provisório e aceita as evidências universais. No caso do religioso, considera-se que ele
detém ao menos um conhecimento não provisório (que transcende o tempo) e que ele
aceita se basear na experiência pessoal. Todo x Nem Todo! Universal x Pessoal! Se um
religioso lhe disser que conversou com Deus, só nos resta aceitar enquanto uma
experiência dele. Se dissermos que isso não pode ter acontecido, estaremos impondo
nossa verdade sobre a dele, o que pressupõe que detemos esse tipo de verdade. E se
Deus existir e, de fato, tiver conversado com ele? Neste caso a questão recai no que
consideramos como experiência válida para construção do conhecimento. O pensamento
científico não consegue negar a experiência do religioso, mas também não consegue
aproveitá-la para elaborar conhecimento.
Neste dilema, uma postura científica apenas assume que a hipótese “Deus existe”, ou
“Deus não existe”, não é científica, pois não temos como imaginar situação factual
(empírica) que a negaria.
A convivência com essa dicotomia, no entanto, não é epistemologicamente fácil, pois
implica aceitação de premissas contraditórias (todo x nem todo e universal x pessoal).
Se assumirmos como necessária a coerência entre nossos pressupostos teóricos, então
não poderemos ser, ao mesmo tempo, cientistas e religiosos tentando discorrer sobre o
mesmo mundo. Se, por outro lado, admitirmos a incoerência como um processo normal
e humano, então podemos naturalmente ser cientistas e religiosos.
O que devemos evitar neste dilema é a tentativa de mostrar a validade de uma
proposta sobre a outra simplesmente pela maior aceitação social de uma delas. O drama
de Galileu Galilei frente à inquisição religiosa cristã justifica esta questão. As posturas
de Santo Agostinho e Tomás de Aquino servem de base para esse casamento entre
ciência e religião. Hoje a dominação científica ainda faz com que alguns discursos
religiosos procurem colocar o arcabouço científico para maior aceitação social de sua
crença.

83
Costumo dizer que a única pessoa a ter certeza absoluta da verdade sobre a vida pós-morte (que tem
implicações sobre a crença em Deus) é o ateu (embora eu considere o ateísmo um ato de fé): se Deus não
existir, o ateu passou a vida com essa verdade e, após morrer, tudo termina, tendo encontrado a verdade
em vida; por outro lado, se Deus existir, saberá ao morrer.

114

Referências

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115

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Kelley T, Littman J. 2007. As 10 faces da inovação. Editora Campus.
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pesquisa. 20a ed. Editora Vozes.
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Lopes JL. 2001. Unificando as forças da natureza. Editora Unesp.
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Russell B. 1975. Meu desenvolvimento filosófico. Zahar Editores.
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filosofia e problemas. Editora da Unesp/Cambridge.

118

CAPÍTULO III

Publicação Científica

III-1 O que publicar?

Publicamos a essência da busca científica. Publicamos conhecimento. E o que é esse


conhecimento senão as conclusões de nossos estudos? A coleta de dados, tão venerada
por muitos cientistas, é apenas a fase de levantamento de evidências. A ciência começa a
partir daí.
Considere que um mesmo conjunto de dados pode ser interpretado de mais de uma
forma. A escolha por uma dessas interpretações (veja II-1 e II-8) pode depender da força
dos dados (visão popperiana) ou dos paradigmas da época (visão kuhniana) ou do
cientista, ou da combinação de ambas. Essa interpretação é produto de seu discurso, que
se baseia nos seus resultados (quantitativos ou qualitativos), no conhecimento já
publicado (literatura) e no raciocínio lógico. Quando publicamos um texto cientifico,
mais do que evidências, apresentamos um discurso. Na Introdução dizemos sobre que
problemática nos debruçamos e qual e porque foi nosso objetivo. Nos Métodos dizemos
como montamos nossa pesquisa e nos Resultados, os dados (quantitativos ou
qualitativos) que encontramos. De posse disso, na Discussão84

84
Se lhe disserem que na Discussão você deve comparar seus achados com a literatura, não acredite.
Lá você apresenta seu discurso. Nesse discurso poderá, em alguns lugares, usar a literatura, mas a essência
do texto da Discussão não é essa comparação... é a explicitação e defesa de seu discurso.

119

mostramos ao leitor como que da pesquisa realizada (Métodos e Resultados) e do que se


sabe na literatura chegamos às nossas conclusões. É só isso. O artigo reflete o caminho e
a busca do cientista.
Portanto, a essência de um artigo são as conclusões. As outras partes são a
contextualização da pesquisa no universo da ciência e as evidências que lhe permitiram
apresentar essas conclusões. Em outras palavras, você publica seu discurso que, por ser
científico, necessita de base empírica (seus dados e aqueles da literatura).

II-2 Por que publicar?

A publicação não é o fim último da atividade numa pesquisa. É um meio. Dentro da


academia, é um meio para que nossa comunidade conheça nossas idéias, nossa
argumentação, e possa decidir se as aceita ou não. O objetivo é que nossas conclusões
sejam aceitas pelos cientistas de nossa área acadêmica. Enquanto essa aceitação não
ocorre, de nada adiantou a publicação. Mas, sem ela, nunca saberemos se nossas idéias
serão ou não aceitas. Por isso ela é um passo necessário, mas não suficiente.
Portanto, há uma razão mais nobre na publicação, do que o acréscimo de uma linha
no currículo Lattes de carreiristas. A função nobre da publicação é a participação ativa
na discussão de idéias no ambiente científico. É estimulante e o número de publicações
do cientista deve ser conseqüência dessa participação.
Você encontra uma problemática interessante. Busca respostas na literatura e não
encontra. Resolve, então, descobrir a resposta. Faz testes, examina, critica... até
encontrar uma resposta que você acredita ser adequada. Agora é preciso convencer as
outras pessoas que se interessam pelo mesmo problema (veja II-7). É aí que a publicação
se torna necessária. O fato de você estar convencido da resposta que encontrou não
significa muita coisa. É apenas o passo inicial do processo. Se conseguir convencer
muita gente, possivelmente sua resposta esteja adequada, ao menos no contexto do
momento histórico que vive. Além disso, com a publicação você está dando às suas
idéias a possibilidade de serem criticadas. Não fuja dessa oportunidade de crítica.

III-3 O que diferencia as revistas científicas das revistas de divulgação científica?

Apenas por uma questão de ordenação das idéias, farei a distinção seguinte. As
revistas científicas são aquelas que divulgam conhecimento científico primário. Ou seja,
divulgam pela primeira vez aquele conhecimento. A revista científica requer um crivo
prévio à publicação, representado pela análise anônima do trabalho por cientistas
especialistas na área do artigo. Esse processo dá credibilidade ao conhecimento que é
aceito para ser publicado. Quanto mais reconhecida é a revista, mais se assume que esse
crivo é forte e acredita-se que os trabalhos ali

120

publicados têm menor chance de erros. Lógico que nem sempre é assim, mas em termos
gerais isso funciona bem.
O sistema descrito acima requer que o texto seja escrito com linguagem científica, o
que implica que para o cidadão não cientista as palavras do texto não sejam de todo
conhecidas, as análises sejam fechadas (tanto as estatísticas quanto as qualitativas), as
representações gráficas estranhas, a literatura de suporte inacessível e a argumentação
pesada. O texto científico está geralmente no idioma inglês, o que representa mais uma
barreira. Nesse universo entram as revistas de divulgação.
Elas se baseiam em pesquisas publicadas nas revistas científicas e as divulgam com
uma linguagem sem jargões científicos, dirigidas ao público não científico85. Elas
representam a transposição entre o círculo científico e o não científico. Esse papel
também é desempenhado por alguns jornais (impressos, na Internet ou mesmo no rádio
ou televisão). Porém, nas revistas de divulgação científica o cuidado é maior para que a
reportagem seja fiel ao conteúdo do trabalho científico original. Dentro do jornalismo,
temos o jornalismo científico, que forma jornalistas que se especializam em
determinadas áreas para melhor entenderem o conteúdo e os jargões do trabalho
científico (ou de uma entrevista com um cientista), que será sua fonte primária de
informação.
Desde que a informação seja transmitida com exatidão, seu conteúdo é tão válido
quanto aquele da publicação original. Porém, os cientistas evitam usar tais fontes para
seus textos, visto que a chance de surgirem erros ou imprecisões acerca das informações
contidas no artigo original não é desprezível. Além disso, às vezes a informação pode vir
de alguma revista científica de pior escalão, o que complica ainda mais a credibilidade.
Assim, recorrer à fonte original (primária) da informação reduz a possibilidade de
equívocos.

III-4 O que é uma revista científica internacional?

Considere que uma revista científica é um veículo de disseminação de achados


científicos originais dentro da academia. Se for internacional, espera-se que cumpra essa
função no ambiente internacional. Assim, do ponto de vista lógico, defino a revista
científica internacional como aquela com estas duas características: a) publica artigos de
cientistas de vários países e b) seus artigos são considerados por cientistas de vários
países.

85
Algumas vezes se enquadram neste público cientistas de outras áreas. Para um médico poderá ser
intransponível a leitura de um artigo de física publicado, por exemplo, na revista Living Reviews in
Relativity. Seria mais bem compreendido se aparecesse uma reportagem desse artigo na revista Pesquisa
Papesp ou Ciência Hoje.

121

Note que nesta definição estou considerando a revista como um veículo internacional,
que serve à comunidade internacional (que só pode ser composta de pessoas de vários
países). Do contrário, é regional (seja de um ou de alguns países).
Uma característica importante da revista internacional é que emprega idioma
internacional, que na ciência é o inglês (veja III-9). Do contrário, não teria como atingir
a abrangência internacional necessária. Mas notem que na atualidade há uma verdadeira
inflação de revistas científicas em inglês. Os cientistas recebem hoje por e-mail
“convites” de várias revistas para submeterem seus artigos. Quando olhamos mais
cuidadosamente, são revistas que ainda não estão nas melhores bases de dados
internacionais (por ex., WoS86). Com essa estratégia, é bem provável que essas revistas
publiquem artigos de cientistas de vários países, mas mesmo assim não seriam
internacionais porque não seriam, possivelmente, citadas de forma ampla por cientistas
de vários países.
Em apoio a esta classificação temos o índice de internacionalização, publicado por
Kosmulski (2010). Ele indica o perfil da revista (do cientista ou de uma instituição) em
função de quantos países ela atinge. Veja detalhes em IV-9.

III-5 Como classificar as revistas científicas?

A classificação de revistas científicas mais usada no mundo atualmente é feita por


meio do fator de impacto87, conforme lista publicada anualmente pelo Journal Citation
Reports (JCR -veja IV-6 e IV-8 para detalhes). No Brasil, a mais comum é a Qualis,
feita pela Capes e que rege parte importante das avaliações da pós-graduação. A idéia
básica no Qualis é classificar as revistas por meio de seu fator de impacto, mas
dividindo-as em blocos proporcionais à mediana da área em consideração. Mas por que
simplesmente não usar o fator de impacto? Independentemente das críticas que se façam
ao fator de impacto, uma vez que esteja sendo considerado no sistema, admite-se que
possa ser empregado. Portanto, o motivo é outro e é histórico. O FI é restrito ao JCR, um
segmento de uma empresa americana (Reuters) que detém os direitos autorais de uso
desse índice. Apenas as revistas inseridas na base de dados dessa empresa (ISI) têm o
fator de impacto calculado. Até recentemente, o Brasil tinha poucas revistas no JCR
(veja Fig. 3, item IV-8). Assim, a adoção direta do FI pela Capes tiraria dos cursos da
pós-graduação quase a totalidade das revistas brasileiras. Nesse sentido, embora o FI
sirva como referência para o Qualis, no seu início outros indicadores eram considerados
de forma a favorecer as revistas nacionais. Conforme as revistas brasileiras foram

86
Veja Web of Science, uma base que faz parte do ISI.
87
Fator de Impacto = n° citações recebidas num período/nº de artigos publicados nesse período. As
citações são dos mesmos trabalhos que aparecem no denominador. Citações ocorridas no período, mas
referentes a artigos publicados antes do período especificado não entram nessa fórmula. O período
classicamente usado é de 2 anos; mais recentemente aparece também o FI para 5 anos... mas poderíamos
ter para qualquer período estabelecido. Para detalhes, veja IV-9.

122

se tornando mais agressivas e entrando no JCR, o uso do FI para o Qualis foi facilitado.
Em meados de 2008, o novo Qualis (que classifica as revistas em Al, A2, BI, B2, B3,
B4, B5 e C) introduziu o referencial do FI de forma mais incisiva. Atualmente, ele passa
a ser necessário para classificações acima de certo nível, mas sua maior influência é nos
níveis a partir de B2 até Al. Com isso, o Qualis introduz gradativamente o FI, que tem
como desdobramento cultuar nos autores e editores brasileiros a noção de publicação
internacional, mostrando o caminho para nossas revistas. Acredito que em alguns anos
(talvez 10) possamos estar usando critérios internacionais para as revistas científicas na
pós-graduação, sem termos que criar mecanismos de proteção à safra brasileira.
Porém, sem ignorar esse caminho das classificações das revistas científicas no Brasil,
mas procurando contribuir com o autor mais ousado, lhes apresento uma forma lógica e
mais universal de classificação, considerando 4 níveis88.

Revistas Regionais (veja III-4)

Nível RI: sendo regionais, são conhecidas e respeitadas ao menos no alcance de um


país. Têm impacto regional.

Nível R2: são restritas a uma região dentro de um país, ou mesmo a uma instituição.
Não têm impacto na sociedade científica. Incluem revistas iniciantes ou
aquelas que não conseguiram assento na ciência nacional.

Revistas Internacionais (veja III-4)

Nível I1: são conhecidas por várias especialidades. Transcendem uma área.
Conseguem isso por dois mecanismos, não excludentes: publicam artigos
de várias áreas e/ ou artigos com temas de interesse geral (por ex., saúde
humana). Ex: Science, Nature, PNAS, PLoS ONE.

Nível I2: são conhecidas e respeitadas dentro de uma especialidade.

As distinções de abrangência espacial pressupostas na classificação acima foram mais


recentemente aparelhadas com o índice de internacionalização publicado por Kosmulski
(2010) (veja IV-9).

88
A classificação que apresento é lógica e, portanto, pode ser usada em outros universos. Por exemplo,
podemos classificar as revistas de divulgação científica neste mesmo critério. Como exemplo, Scientific
American seria I1, Ciência Hoje e Pesquisa Fapesp seriam R1.

123

III-6 Qual é o formato de uma revista científica?

As revistas podem ter vários formatos. Temos revistas exclusivamente impressas (são
raras, mas eram a totalidade até meados de década de 90). Atualmente o formato mais
comum são as revistas eletrônicas (que ficam em websites na Internet) com versões em
papel. Gradativamente, revistas essencialmente eletrônicas surgem e acredito estarão
predominando dentro de 10 anos.
A maioria das revistas possui uma capa, onde identificam as principais chamadas do
interior daquele fascículo. O corpo da revista pode conter vários itens, como Editorial,
Cartas ao Editor (Letters to the Editor), comentários (Comments), Errata, Notícias
(News), Artigos (Reviews89, Short Communications, Full Papers). Antigamente as
revistas incluíam até obituário de pessoas de destaque. Dessas possibilidades, as mais
comuns e consistentes são: Editorial e Artigos.

III-7 Qual é o formato de um artigo científico?

Numa revista científica, o formato dos artigos (principalmente Full Papers) varia em
função de costumes de áreas ou, mais recentemente, pela pressão por se conseguir
espaço num ambiente altamente flexível e competitivo (a Internet). Porém, há um
formato mais comum e veremos que é assim exatamente porque segue a base geral da
construção do conhecimento científico.
Na Figura 1 indico a estrutura básica da pesquisa (segunda coluna a partir da
esquerda), diferenciando a parte intelectual da operacional (primeira coluna). Na terceira
coluna (em cinza) está a divisão de um artigo científico comumente encontrado nas
revistas científicas. E na última coluna da direita mostro que padrões de atividade
representam cada etapa anterior.

89
Não apresentam dados empíricos originais; baseiam-se no que já foi publicado, mas elaboram
conclusões inéditas.

124

Figura 1. Estrutura lógica do processo de investigação científica como base para


estrutura das revistas científicas. As revistas mais clássicas seguem o padrão lógico
destacado em cinza.

Além do formato tradicional (IMRD90), há revistas que o alteram buscando melhor


comunicação com o leitor. Um formato desse é o IRDM, onde a seção Métodos é
colocada no final do artigo. Porém, como para entender o artigo é importante o leitor
conhecer o delineamento da pesquisa, essa informação pode ser incluída logo após o
objetivo da pesquisa (na Introdução), ou num item próprio, denominado Delineamento,
ficando o formato IDRDM. Há ainda revistas que separam as conclusões do item
Discussão. Embora todas as conclusões apareçam na Discussão, criar um espaço para
elas é uma estratégia para destacá-las (afinal, são a essência do artigo).
Outras partes do artigo (Título, Autores, Endereços, Resumo, Palavras-chave,
Financiamento, Agradecimentos e Referências) aparecem fora do corpo principal do
texto. Mais recentemente, algumas revistas têm solicitado a inclusão da participação que
cada autor teve no trabalho. Veja discussão mais detalhada em Volpato (2008). Como é
difícil criar uma regra internacional de autoria (menos por falta de princípios, mais por
falta de aceitação), uma saída das revistas com essa exigência é explicitar os conceitos
dos autores sobre autoria, e a comunidade julgará.

90
Introdução, Métodos, Resultados e Discussão.

125

III-8 O que está mudando nas revistas científicas?

A evolução das revistas científicas é muito instrutiva ao cientista. É um espelho da


evolução da comunicação científica. Nesse processo, foi preocupação no passado a
transformação de livros em revistas (por serem menores, ficava mais ágil e o tempo
entre a redação e a publicação reduzia muito) (veja Volpato 2008). Depois disso, digno
de nota é a transformação das revistas impressas nas totalmente virtuais, o que só
começou a ser possível a partir da década de 90, com a popularização da Internet. No
Brasil, a primeira revista que assumiu o formato integral digital foi The Journal of
Venomous Animais and Toxins (ISSN 0104-7930)91, da Unesp92 (Barraviera et al. 2011).
Porém, dentro do ambiente da Internet, que hoje é praticamente uma exigência, as
coisas estão também se transformando. Durante os últimos anos, do final da década de
90 até hoje, o padrão das revistas eletrônicas é a apresentação dos artigos no formato
pdf, cujo conceito subjacente é o da colocação na Internet de uma forma impressa. Ou
seja, transformamos o que seria impresso num visual igual, mas disponível na Internet.
A inclusão de links que levam o leitor à referência ou à página do artigo citado, ou ainda
da citação da figura/tabela à figura ou tabela completas, ou mesmo a inclusão de vídeos,
representaram avanços fantásticos na comunicação científica.
No início de 2011, a Elsevier anunciou que até o final de 2011 todos os artigos de
suas revistas estariam num novo formato, que essa editora denominou “The article of the
future”93. Basicamente, ele associa o padrão pdf à versatilidade de um Blog ou similar.
As informações de dentro do texto principal (figuras, tabelas, vídeos), ou as adicionais
(autores, endereços etc), podem ser movidas numa coluna à direita do texto, de forma
independente deste. Ou seja, criou-se uma página mais interativa para cada artigo. Mais
ainda, o leitor consegue interagir com os gráficos (com o cursor, mede distâncias, obtém
resultados numéricos de cada ponto) e fotos ou desenhos; interagem com locais, indo
direto a mapas de localização espacial. Ou seja, o artigo usa muito da ferramenta
computacional para prover ao leitor uma fonte incalculável de informação. A revista
JOVE (www.jove.com) publica o artigo em formato de vídeo, o que nos permite
vislumbrar um futuro interessante.

91
Mantida e editada pelo Centro de Estudos de Venenos e Animais Peçonhentos da UNESP –
CEVAP. Iniciada em 1995, sempre em inglês, tinha periodicidade semestral e era distribuída em disquetes
de 3,5”. A partir de 1998, além de CD-Rom, integrou a SciELO e passou a ser acessível via Internet. Em
2003 expandiu o escopo para as Doenças Tropicais, passando a ser denominada The Journal of Venomous
Animais and Toxins including Tropical Diseases (JVATiTD - ISSN 1678-9199). Em 2004 passa a
periodicidade quadrimestral e exclusivamente online (www.jvat.org.br). A partir de 2005 se tornou
trimestral e, em 2006, entrou para o Science Citation Index Expanded (ISI - Web of Knowlegde - Thomson
Reuters *) e para o Scopus * (Elsevier). Em 2010 integra a Base de Dados EBSCO.
92
Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”.
93
Assista ao vídeo em www.articleofthefuture.com/

126

A editora americana Public Library Science94 também é inovadora. Sua revista mais
famosa é a PLoS ONE, que iniciou publicações em 2006 e já conta com mais de 28 mil
artigos publicados. A PLoS ONE publica dezenas de artigos por dia (com taxa de
aceitação de manuscritos < 10%). Cada artigo publicado pode receber comentários dos
leitores. Esses comentários são divididos em temas (relativos a partes do artigo) e no
texto do artigo ficam numerações nos locais onde cada leitor inseriu algum comentário.
Clicando nesse número o leitor acessa o comentário, podendo qualquer pessoa incluir
mais comentários. Essa já é uma dinâmica comum em blogs e jornais não científicos e
que chega ao meio científico.
É difícil prever o caminho que esses formatos tomarão, mas é fácil saber que será no
sentido de dar maior visibilidade a cada artigo, bem como permitir uma maior
participação dos leitores. Mais ainda, caminham para facilitar a vida do leitor. Se
antigamente o leitor ia atrás da revista, atualmente ele vai direto ao artigo. A revista vem
depois, como um elemento de qualificação (embora isso não seja inequívoco).

III-9 Em qual idioma publicar?

Segundo reportagem de Sabine Righetti, na Folha de São Paulo, em evento da Fapesp


ocorrido em 2011 discutiu-se a questão do idioma da publicação. Comentaram que
mesmo o Brasil sendo o 13° país na lista dos que mais publicam artigos, 60% desses são
em português. Eu acrescento que dos 40% que estão em inglês, poucos são vistos na
ciência internacional. Ou seja, nossa ciência é pouco considerada. Não importa que o
Brasil esteja na “bola da vez”... ainda estamos longe da main stream.
Eu achava que a discussão sobre o idioma da publicação era questão encerrada e que
a ciência nacional apenas buscava os meios para internacionalizar (que vai além do uso
do inglês). Mas parece que estamos mais atrasados. Vi pessoas importantes de nosso
país defendendo que há artigos que devem ser publicados em português e outros em
inglês (acho uma distorção).
Um infeliz desdobramento desse raciocínio é publicar em periódico parcialmente em
inglês: por ex., título, resumo e palavras-chave em inglês, e o restante em português.
Imagine a cara de um leitor que não lê português! Tampouco resolve incluir figuras e
tabelas em inglês, porque o texto científico é maior que os resultados. Nenhum cientista
de bom nível usará resultados de um artigo sem se certificar da metodologia e da
discussão! E mais ainda, o leitor fica sem o principal do artigo, que são as conclusões
(veja III-l).

94
Editada pela Public Library Science, São Francisco, CA, USA. O Fator de Impacto da PLoS ONE
em 2010 foi 4,411 para dois anos e 4,610 em 5 anos, com o Immediacy Index = 0,515 (veja IV-9). Essa
editora publica as seguintes revistas: PLoS ONE, PLoS Biologogy, PLoS Computational Biology, PLoS
Genetics, PLoS Medicine, Neglected Tropical Diseases e PLoS Pathogens.

127

III-10 Quem paga os custos das revistas científicas?

Toda publicação envolve um custo e alguém deve pagá-lo. O que é pago provoca
reflexão sobre o custo-benefício. Se o autor tem que pagar para publicar, pensará se
aquela revista merece esse esforço. Se é grátis, submete qualquer coisa a qualquer lugar.
Caso a qualidade de sua ciência seja fraca, corre o risco de pagar para publicar em
revista ruim. Porém, o mais comum é que revistas sem prestígio não cobrem, pois do
contrário ficarão sem artigos. Mas essa não é uma regra linear nem simples. Não dá para
dizer sobre a qualidade de uma revista simplesmente pelo fato de cobrar ou não
pagamento para publicação.
Os motivos usuais de cobrança para autores são o pagamento para submeter o
manuscrito (em poucas revistas), o pagamento para publicar caso o artigo seja aceito
(mais comum; geralmente acima de 1.000,00 dólares) e o pagamento para baixar o
artigo (muito mais comum; geralmente em torno de 30,00 dólares). Em alguns casos a
cobrança é indireta, por ex., assinantes da revista ou membro de associação não pagam
para publicar, mas pagam anuidade. Note que nesse universo é raro que o corpo editorial
de uma revista pague ao revisor anônimo (o comum é que seja anônimo e sem
remuneração).
A grande polêmica neste início de 2012 teve como foco a editora científica holandesa
Elsevier, a maior do mundo. O movimento partiu do Dr. Tyler Neylon, um matemático
que abandonou a Academia e é dono de uma pequena empresa em New York. O apoio
que a Elsevier dá a projetos de lei em discussão nos Estados Unidos sobre custos para
liberação do conhecimento científico fermentou o debate. Esse matemático disse em
entrevista ao Jornal “Folha de São Paulo”95 que fica impossível fazer pesquisa e ter que
pagar taxas consideráveis por artigo (se precisar de 100 artigos para escrever um
manuscrito, gastará cerca de US$ 4.000; se quiser assinar uma revista, o preço médio é
US$ 22 mil). E note que algumas editoras exigem que se assine um pacote de revistas,
obrigando os leitores a pagarem mesmo por aquelas que não usarão. Dr. Neylon fez um
abaixo assinado, que ganhou grande repercussão na mídia internacional, em que os
cientistas assinantes assumem que não publicarão em revistas da Elsevier, nem aceitarão
convites para serem editores ou revisores dessa editora.
A situação descrita acima traz à tona uma problemática antiga que é a do custo para
liberação de informação. Há países que não conseguem comprar várias revistas e,
portanto, ficam defasados. O próprio Tyler Neylon considera a alternativa da editora
Public Library Science razoável. Ela disponibiliza seus artigos gratuitamente, mas cobra
do autor o custo da publicação. Segundo Neylon, isso é melhor porque você paga por
um artigo que foi aceito e não para iniciar uma pesquisa. Ele diz que os cientistas que
circulam a ciência de melhor nível possuem suportes financeiros para esse tipo de
pagamento, de forma que o próprio fomento à pesquisa se responsabiliza por custear tais
artigos. Essa alternativa apenas transfere o problema, porque hoje mesmo revistas sem
muito prestígio cobram para publicação. Basta que a revista tenha um

95
www.folha.com, 17/02/12; 12:03 h.

128

129

público suficiente e garantido (como ocorre com algumas revistas regionais – nível R2,
descritas em III-5), para a cobrança se tornar viável. Há também autores que não
conseguem publicar em revistas melhores e, portanto, ficam reféns dessas revistas
medianas (pagam para publicar mal).
Ao que me parece, se quisermos democratizar o conhecimento científico, então cada
governo deve arcar com os custos em seu próprio país. Escrevi “... as a philosophical
matter, scientific knowledge should be available to everyone in the scientific community
regardless of economic condition. Considering this aim, one practical possibility relies
on altruistic investments from governments to support free access to scientific literature
to every scientist in the world. The necessary return on the investments is expected to
come from the benefits science may provide to humankind.” (Volpato 2004).
Os gastos seriam proporcionais ao número de revistas que cada país possui e que
pode ser resolvido internamente. No Brasil, por exemplo, já fazemos isso. A maioria das
revistas é gratuita e a plataforma SciELO tem essa filosofia do acesso livre. Embora
gratuitas, geralmente são sustentadas por instituições governamentais de fomento ou
universidades e institutos de pesquisa; ou seja, verba pública.

III-11 Quais são as principais qualidades de um periódico científico?

Saber decidir sobre a qualidade de um periódico científico é fundamental. Para


autores, dá referenciais para escolher o periódico para publicação. Para leitores, indica
leituras com menores chances de erro. Para editores, norteia sobre qualidades
fundamentais que sua revista deve ter ou almejar.
Abaixo sumarizo as principais características qualitativas de uma revista científica, o
que poderíamos chamar de os 10 Mandamentos das revistas científicas.

a) Divulgar conhecimento científico para ampla comunidade científica, sem se


restringir a instituições, sociedades ou países.
b) Adotar explicitamente o idioma inglês96.
c) Adotar peer review anônimo, preferencialmente com revisores de outros países.
d) Estar indexada no Web of Science e Scopus, além dos principais indexadores
específicos da área.

96
Exceto em revistas sobre gramática de uma nacionalidade. Porém, mesmo aqui poderá impedir ou
dificultar estudos comparativos entre idiomas. O que quero reforçar é que a necessidade de um idioma
regional na revista é muito mais exceção do que regra e jamais é permeado pelo idioma do sujeito de
estudo.

130

e) Estar em formato eletrônico.


f) Dispor os artigos gratuitamente pela Internet.
g) Permitir submissões online de manuscritos a partir do site da revista.
h) Publicar novidades para a comunidade científica.
i) Apresentar layout consistente, estilo apropriado e redação correta, de forma a
tornar a leitura dos artigos agradável também aos leitores de áreas correlatas.
j) Ser internacional (Níveis II ou 12 em III-4).

Mesmo que a revista não tenha todos esses quesitos, é importante que esteja
caminhando em direção a eles. Sem isso, não se pode esperar muita coisa dela; passa a
ser apenas um meio de administrar ociosidades.

III-12 Onde encontrar as melhores revistas?

Muitas áreas possuem indexadores próprios, onde os especialistas fazem suas buscas.
Apesar disso, a base de dados Web of Science (WoS) ganha destaque sobre todas elas. O
motivo principal disso é que a WoS está na WoK (Web of Knowledge), a mesma
instituição que calcula o fator de impacto das revistas (veja IV-9). Nesse sentido, se a
revista não está nesse indexador, não tem fator de impacto. Enquanto vivemos a
supremacia desse índice, essa realidade ainda direciona a WoS como o indexador que
faz a diferença para as revistas. Quando outros índices forem igualmente considerados,
então o quadro será outro e possivelmente os indexadores mais específicos ganharão
mais força.
A revista científica deve dar grande visibilidade ao seu artigo. Os leitores não
precisam assinar a revista, mas ler seu artigo. Nesse sentido, serviços de métrica das
citações de autores devem incluir as revistas almejadas. Estar fora disso significa não
participar do debate científico. Na mão contrária à da WoK e Scopus, métricas
científicas gratuitas estão sendo disponibilizadas por empresas poderosas como Google e
Microsoft. Em reportagem na revista Nature, Butler (2011) cita que essas duas empresas
lançaram ferramenta gratuita que permite aos cientistas analisarem estatísticas de
citações, visualizarem redes de pesquisadores e os principais campos de pesquisa. Esta
possibilidade, segundo Butler, dá oportunidade a quem não quiser usar as métricas das
bases de dados WoS (da Reuters) ou Scopus (Elsevier). Uma delas é o Scholar Google,
criado em 2004, que em 2011 lançou o Google Scholar Citations (GSC). A outra
ferramenta lançada foi a Microsoft Academic Search (MAS) em 2009.
Independentemente de uma análise dessas duas ferramentas, fica claro que a métrica em
ciência tem despertado o interesse, por razões variadas, de várias pessoas. Fica difícil
prever os desdobramentos disso, mas parece-me que reforçam o valor das citações na
construção do conhecimento científico, apesar de algumas restrições naturais.

131

III-13 Como escolher a revista para publicação?

Com bases nos 4 níveis das revistas científicas (veja III-5), e por tudo o que defendo
neste livro, você tem referenciais suficientes para perceber que a ciência é internacional
e que você deve participar desse debate. A temática toda deste livro lhe dá orientações
para conseguir publicar nessas revistas (II e 12). Uma delas é que a definição deste nível
deve preceder a escolha do projeto a ser realizado (veja VII-1).
Mesmo estando no nível certo, o passo decisivo é a escolha acertada da revista: ela
permite que seu manuscrito seja analisado de forma correta e dá visibilidade ao seu
artigo, caso seja publicado. Mas como fazer essa escolha correta?

o Examine se o tema e o enfoque de seu artigo estão de acordo com o escopo da


revista.
o Confirme a informação acima encontrando alguns artigos desse assunto
publicados na revista.
o É comum que, das revistas que você cita em seu manuscrito, ao menos uma seja
potencial para publicar seu trabalho (afinal, serviu de base a ele).
o Veja o fator de impacto da revista para ter uma noção do grau de novidade
esperado para o artigo. Confira a novidade de seu artigo considerando o que vê
nos artigos dessa revista.
o Veja se a revista é paga e se terá condições de arcar com as despesas (e se
concorda com o pagamento para publicar).
o Considere que nas revistas muito especializadas os revisores farão críticas mais
específicas, principalmente metodológicas. Note que algumas vezes essas críticas
se tornam intransponíveis, mesmo que não sejam tão relevantes para seu estudo.
Nesse caso, prefira revistas mais gerais.
o Arrisque-se a submeter a uma revista um pouco acima do que acha que caberia
ao seu artigo.

Uma falácia freqüente é acreditar que os jovens cientistas devem galgar


gradativamente cada um dos quatro níveis que apresentei (iniciando nas regionais R2 até
chegar às internacionais I1 – veja III-5). Errado! Se os critérios de qualidade entre I1 e
I2 possuem diferenças importantes, em relação ao nível R há um verdadeiro abismo que
o separa dos demais. O que é considerado aceitável nos periódicos internacionais
geralmente não é aceito nos regionais. Assim, treinar no nível R não o coloca mais
próximo do nível I.

132

III-14 Como é o processo de publicação de artigos?

Basicamente, você submete o manuscrito ao(s) editor(es) e, imediatamente após a


submissão, você recebe informação de que seu artigo foi recebido e inicia-se o processo
de análise. Seu manuscrito recebe um número de identificação, que permite o
acompanhamento do processo de análise e que deve ser indicado em qualquer novo
contato com o editor. O editor examina se o manuscrito tem interesse para a revista. Se
tiver, envia para revisores; do contrário, diz que não se encaixa no perfil (qualidade do
objetivo, força metodológica, enfoque ou abrangência das conclusões).
Durante a submissão, algumas revistas pedem que você indique nome de possíveis
revisores (assessores, referees) para julgar seu manuscrito. Não se alegre. Dessas
sugestões, os editores geralmente acatam um dos revisores indicados, mas certamente
incluem outros da escolha dos editores. Com isso estão testando e ampliando o quadro
de revisores da revista97.
O passo seguinte é receber a resposta do editor, que demora de 1 a 3 meses nas boas
revistas internacionais. Passados 3 meses sem resposta, comece a cobrar o editor. Note,
no entanto, que esses prazos variam entre áreas, mas não muito mais que isso.
Basicamente, o artigo analisado pode ser: a) aceito sem alterações (ou pequenas
alterações – minor changes); b) revisto após correções mais profundas e c) não aceito.
Em todos os casos, o editor explica sua decisão final e inclui o parecer dos revisores
(normalmente 2 ou 3). Caso o artigo não tenha sido aceito, o que é mais regra do que
exceção, o autor geralmente pode recorrer, apresentando ao editor suas contra-
argumentações aos comentários dos revisores. Em alguns casos, pode-se inclusive
solicitar outros revisores. Mas, dependendo do teor da negação, o melhor é buscar outra
revista.
Uma vez que o artigo seja aceito, o autor deve providenciar o pagamento, se for o
caso, e outras exigências da revista (por ex., assinar transferência de direitos autorais).
Nessa fase, ainda, o editor pode requerer pequenos ajustes. Um ponto importante é que o
editor, mesmo o editor de estilo, não altera seu texto (nem uma vírgula sequer) sem que
você veja e concorde com a alteração. Porém, se for uma alteração necessária e você não
concordar em fazê-la, poderá ter seu artigo rejeitado mesmo nessa fase.
Depois de formatado o artigo, o autor receberá uma prova, que é o artigo diagramado
no formato da revista. Ela deve ser lida cuidadosamente, para serem feitas as correções
necessárias. Não demore para responder, pois isso atrasará sua publicação. Essa fase é
crucial, pois a responsabilidade sobre os erros recai sobre os autores e, de certa forma,
indicam o zelo deles para com a publicação e, quem sabe, com a pesquisa. A correção,
no entanto, deve limitar-se aos aspectos ortográficos. Não se pode mudar o conteúdo,
pois nesta fase o artigo já saiu das mãos do editor científico.
Ao contrário do que se fazia antigamente, hoje a tendência é que os artigos sejam
publicados conforme as provas são revisadas e aceitas. Na forma mais antiga, a revista
espera que um
97
Possuir um amplo quadro de nomes de revisores dá maior versatilidade para os editores no
julgamento dos manuscritos. Portanto, nunca indique revisores que não sejam qualificados.

133

134

conjunto de artigos feche um volume, de forma que os primeiros artigos aprovados


esperam os últimos. No Brasil, acredito que a primeira revista a adotar esse sistema de
publicação em fluxo contínuo foi a Annual Review of Biomedical Sciences98, a partir de
2004, ano em que ficou exclusivamente online. Nos casos das revistas que possuem os
dois formatos, impresso e online, costuma-se usar o ahead of print para adiantar a
divulgação do artigo online enquanto a versão impressa ainda não está disponível.

III-15 Como os revisores avaliam nosso manuscrito?

Infelizmente, no Brasil ainda não temos uma cultura de cursos para revisores. Temos
alguns cursos, mas os revisores, que são os cientistas em geral, muitas vezes se acham
suficientemente instruídos para revisar um manuscrito em sua especialidade. Com isso,
incutem seus próprios erros nos jovens cientistas que se aventuram nas revistas mais
fracas.
Do ponto de vista lógico, dois aspectos devem ser avaliados num manuscrito: a forma
e o conteúdo. A forma não se refere às normas da revista, pois isso é copy and paste!
Trata-se de seguir uma estrutura lógica de pensamento e também obedecer ao estilo
científico na redação.
A análise de conteúdo é prioritária e é ela que pode negar o manuscrito. A forma, por
outro lado, embora seja passível de correção, pode estar tão ruim que leva à negação do
manuscrito, impedindo sua análise de conteúdo. Mais ainda, o descumprimento a
algumas normas (por ex., número de palavras) pode inviabilizar a própria submissão. Na
análise dos manuscritos, os elementos mais comumente analisados são:

Pré-análise para envio aos revisores

1. O tema da pesquisa faz parte do escopo da revista?


2. As conclusões obtidas estão no nível de novidade esperado para esta revista?
3. O trabalho está apresentado segundo as normas da revista?
4. A redação está em nível aceitável (inglês de bom nível)?

98
http://arbs.biblioteca.unesp.br/index.php/arbs/index

135

Revisores: análise de conteúdo

1. O objetivo é relevante? (ele é importante e havia motivos lógicos para que fosse
escolhido?)
2. A Introdução contextualiza o problema investigado e fundamenta a proposta de
pesquisa? Há excesso de informações?
3. A metodologia é robusta (delineamento e técnicas específicas) e coerente com o
objetivo da pesquisa?
4. Os resultados são confiáveis, evidentes e necessários para o objetivo e conclusão
do estudo?
5. A discussão fundamenta fortemente as conclusões obtidas?
6. O trabalho tem informações sobrando, ou faltando?
7. Há conclusões fracas ou especulações?
8. As referências importantes foram consideradas?

Revisores: análise de forma

1. O título é atrativo e traduz a principal novidade do estudo?


2. Com poucas palavras, o resumo indica claramente a beleza e a novidade do
estudo? Há revistas que preferem um resumo estruturado (veja em XI-2).
3. As palavras-chave são condizentes com o estudo?
4. Nos Métodos a seqüência de apresentação é adequada?
5. Os principais resultados serão facilmente percebidos pelo leitor?
6. Há repetição de informação (figuras x tabelas; texto x figuras; texto x tabelas)?
7. As figuras e as tabelas são autoexplicativas?
8. A discussão segue uma seqüência lógica adequada?
9. Há excesso de citações bibliográficas no texto?
10. As frases e parágrafos seguem o estilo científico?
11. As citações de literatura estão todas referidas nas Referências; e as das
Referências estão todas citadas no texto?

136

III-16 Como deve ser a carta de encaminhamento ao editor?

A carta de encaminhamento (Cover Letter) é um documento crucial. Ela pode


empolgar o editor, ou ajudá-lo a rejeitar seu estudo sem análise dos revisores. Não pode
ser longa. Evite comentários supérfluos e vá direto ao ponto. Diga qual é a principal
novidade de seu estudo (em uma ou duas frases, se possível) e porque acha que essa
revista deve publicá-lo. Se fez revisão do inglês por alguma empresa internacional, diga
isso de antemão. Alguns editores podem não gostar da redação a partir de seu endereço.
Deixe besteiras de lado, como dizer que espera que o artigo seja aceito (óbvio, senão
não o submeteria) e que fica à disposição para eventuais esclarecimentos (óbvio, isso é
regra). Ou seja, esqueça a prolixidade nacional... você está entrando num outro mundo.

III-17 Quanto tempo demora para receber a resposta do editor?

O tempo médio é muito variável entre revistas, mas é possível expressar uma noção
geral. Coloco o tempo de 3 meses como um referencial razoável. Há revistas que pagam
para os revisores, de forma que os prazos dados aos revisores são cumpridos. Mas a
regra é que seja um serviço voluntário, em nome da ciência. Porém, revistas de boa
qualidade possuem revisores que são cientistas proeminentes da ciência internacional.
Em geral essas pessoas são sérias e cumprem seus compromissos, ou não aceitam emitir
parecer quando vêem que não conseguirão atender ao prazo. Além disso, em revistas
conceituadas o cientista se sente lisonjeado pela deferência ao seu nome e procura fazer
tudo no devido prazo. Quando a revista é pouco reconhecida tem menos chance de
conseguir esse empenho do revisor.
Uma análise que pode ser feita é sobre as datas de submissão e aceitação (algumas
incluem as resubmissões) dos artigos publicados na revista. Dessa análise pode-se ter
certa idéia da velocidade de análise dos manuscritos e sua edição na revista. Seja como
for, revistas boas (veja III-5) são geralmente rápidas, porém, nem toda revista rápida é
boa.
Para editores de revistas pouco prestigiadas, uma estratégia consiste em enviar cada
manuscrito para análise de vários revisores (digamos 6), dando-lhes o prazo de 30 dias.
Se dois atenderem ao prazo, emite-se a decisão editorial. E os outros? Quando
responderem, apenas agradeça (afinal, estão atrasados). Se perceber alguma informação
relevante, poderá incluí-la no seguimento do debate, caso haja. A credibilidade de uma
revista passa pela sua velocidade de análise dos manuscritos.

137

III-18 Meu manuscrito foi negado... o que devo fazer?

Não se desespere, é o mais comum. Examine o motivo da negação, com cuidado e


sinceridade. Lembre-se que é melhor ter um manuscrito negado do que publicar
equívocos. Veja os revisores como pessoas que fazem um serviço “anônimo”,
geralmente voluntário, para evitar que você publique coisas erradas. Poucos autores
percebem esse lado dos revisores.
Faça uma análise inteligente. Se o revisor errou, mostre que ele está errado. Se ele
estiver certo, corrija o manuscrito. Não parta do pressuposto que o revisor não gosta de
você. Em revistas de bom nível internacional ele possivelmente nem o conhece.
Sua decisão agora será: responder ao revisor ou trocar de revista. Pelo teor da crítica
você saberá qual o melhor caminho. O revisor pode lhe mostrar que seu artigo não está
naquele nível de revista; neste caso, submeta para revista de menor nível de exigência.
Se ele lhe indicar críticas transponíveis, então insista nessa mesma revista.

III-19 Como devo responder aos revisores?

Para uma resposta correta, você precisa primeiro entender cada crítica. E para isso
precisa ser um cientista bem preparado. A maioria dos revisores de revistas do nível
internacional faz a crítica de forma sucinta, nem sempre didática, e espera que você
entenda as razões. Se entender corretamente o “âmago” da crítica, então terá condições
de responder adequadamente.
Alguns revisores querem que o autor faça outro trabalho e se distanciam do seu
manuscrito. Nesse caso, mostre claramente qual era sua intenção e porque ela é
suficientemente importante. Cuidado na interpretação dessa crítica, porque às vezes o
revisor lhe sugere outros objetivos exatamente por considerar que o que você fez não
tem relevância científica.
Nunca destrate o revisor, mas também não mostre fraqueza. Se ele foi ríspido com
você, trate-o na mesma altura, sem se tornar grosseiro. Se ele foi grosseiro, trate-o de
forma rígida, mas não seja grosseiro. É nesse tratamento que você deve se impor, sem
perder a linha. Nunca perca a chance de elevar o nível de uma conversa.
Como somos de um país considerado subdesenvolvido (em desenvolvimento na
melhor das alternativas), revisores de países ricos podem ser mais agressivos conosco.
Não se intimide. Enfrente como uma discussão científica. Mostre sua argumentação.
Lembre que o debate deve ser lógico, baseado em fatos e na lógica da ciência.
No debate com os revisores, lembre-se que a decisão é sempre do editor. Considere-o
como juiz do processo e recorra a ele quando achar que alguma questão está emperrada.
Algumas vezes poderá solicitar que outro revisor analise seu manuscrito. A consideração
do editor dependerá da argumentação apresentada nessa solicitação.

138

Ao responder ao editor, no encaminhamento faça um breve comentário sobre alguma


questão central da crítica e de como a abordou. Ao apresentar sua resposta a cada crítica,
mostre onde houve alteração no texto do manuscrito. Uma boa dica é que você tente
incluir no texto uma resposta a cada crítica, ao invés de apenas responder algumas delas
ao revisor. Lembre-se que se foi dúvida do revisor, poderá ser dúvida do leitor, mas no
caso do leitor você não terá chance de se defender. Porém, cuidado! O texto sairá com a
sua assinatura, seu nome, e é você que deverá se responsabilizar por ele. Só inclua
aquilo com o que você concorda.

III-20 O que significa retracted no contexto da publicação científica?

Quando a maioria das revistas era exclusivamente impressa, ao se perceber erro num
artigo publicado não restava alternativa senão a publicação de alguma errata; mas o
artigo continuava existindo. Com as revistas eletrônicas, essa situação mudou. Os
editores podem ser advertidos pelos leitores de que algum trabalho publicado está
cientificamente errado ou com resultados inventados ou “roubados”. A partir daí,
desdobra-se um processo para avaliação. Confirmando-se o erro do artigo, no formato
eletrônico o texto permanece publicado, mas inclui-se uma clara indicação de que a
revista o retira porque estava errado. Uma forma comum é colocar tarja vermelha em
cada página do artigo com a palavra retracted.
Um artigo que tenha sido rejeitado pela revista após publicação não deverá ser
considerado em revisões e mesmo avaliações de desempenho posteriores. Porém, o
quanto isso já está ocorrendo em todas as bases de dados ainda não é bem claro.

III-21 Como os autores e editores de periódicos podem se ajudar para melhorar as


revistas brasileiras?

O corpo editorial, com seu processo de seleção de artigos por pares (peer review),
atua como nosso grande professor nas questões de ciência e redação científica. Essa é
uma nobre função de todas as revistas. No entanto, quando cometem equívocos nas
análises e interpretações, incutem ou mantêm erros na comunidade científica.
Um erro conceitual premente que nos afasta da ciência internacional é achar que
nossas revistas são feitas para brasileiros. Elas são feitas para cientistas, independente de
nacionalidade. Nesse sentido, devem publicar artigos em inglês e ser amplamente
divulgadas na comunidade científica internacional. Se a revista não está na WoK, terá
pouca chance de obter participação de cientistas internacionais de relevância, como
autores, revisores e/ou editores. Portanto, esse parece um primeiro caminho (ao menos
enquanto continua a supremacia dessa instituição – veja IV-8).

139

Estando nessa base de dados, a tarefa é conquistar o mundo internacional, mesmo tendo
baixo fator de impacto (o que é comum no início).
Culturalmente, o brasileiro busca resolver os problemas por meio do famoso
“jeitinho”. Cuidado, na ciência de bom nível esse não é o caminho. Como dizia meu
orientador, “improvisa quem não sabe fazer direito”. Vamos enfrentar os problemas com
competência. Assim, se quiser aumentar o fator de impacto de sua revista, faça isso sem
buscar citações a qualquer preço. Vise aumentar qualidade e visibilidade dos artigos que
publica99. Com isso a citação deve melhorar. Sei que existe um preconceito latente
contra países como o nosso, mas essa é a luta. Cabe aos editores estar nos principais
congressos internacionais de sua área, serem pessoas reconhecidas internacionalmente
em sua especialidade e, com essa competência, atrair olhares para “sua” revista. O peso
da instituição que apoia a publicação também é outro elemento que pode auxiliar.
Mais importante de tudo, escolha com rigor artigos que façam a diferença. São eles
que levarão a revista para cima. Sei que, por equívoco conceitual, algumas bases de
dados exigem certo número de artigos e certa periodicidade, o que pode pressionar os
editores a aceitar manuscritos ruins apenas para atender a esses critérios. Uma
alternativa é ignorar essas bases. Se não for possível, uma alternativa, não excludente, é
desligar-se dos sistemas de fechamento de volumes para a publicação. Publique os
artigos à medida que são aprovados e, quando chegar no tamanho que considera
adequado para um volume, ou fascículo, feche-o e comece outro. Mas como fica a
versão impressa? Ora, você dará um jeito, mesmo porque raramente será lida ou
procurada. O que existe está em pdf ou HTML na Internet.
Assim, pontualmente, vejo que os editores auxiliam as nossas revistas das seguintes
formas:

o divulgando a revista no meio internacional, sendo auxiliado aqui pela


notoriedade científica internacional dos editores;
o escolhendo artigos de real interesse para a área;
o zelando por uma apresentação lógica, objetiva e inteligente de cada artigo.

E o autor, como pode ajudar nossas revistas? Entendo que há duas possibilidades
honestas e viáveis. A primeira aplicável ao autor que ainda não está consagrado no
cenário internacional. A segunda para aquele que tem reconhecimento incontestável no
exterior.
Um autor sem competência científica reconhecida internacionalmente dificilmente
ajudará nossa revista por meio de seus estudos. É ele quem precisa de ajuda e é a revista
que poderá ajudá-lo. Assim, nessa fase é preferível que esse autor dirija suas publicações
para o cenário internacional (que podem incluir revistas brasileiras, desde que atendam
ao critério de internacionalização – veja III-4 e IV-9). E nessa jornada ele ajuda as
revistas brasileiras caso não se esqueça de citar os

99
Lembre-se que o fator de impacto mede da eficiência do corpo editorial (veja IV-10).

140

141

bons artigos que estão nas revistas brasileiras. Não se trata de apologia para a citação de
artigos de revista nacionais, mas da divulgação honesta daquilo que temos de bom. É
comum que o brasileiro evite citar colegas do próprio país, reflexo de uma cultura
dominada por países mais fortes. Se a luta no cenário internacional já é difícil, com esse
autopreconceito fica mais difícil ainda.
Se advogamos que os brasileiros têm artigos de boa qualidade, por que não citá-los
em nossos discursos científicos? Lógico que para isso devem estar em inglês e em bom
nível de apresentação e disponibilidade ao público. Portanto, autores brasileiros podem
publicar em revistas do exterior, desde que de boa qualidade e incluindo, sempre que
uma análise honesta permitir, artigos de brasileiros ou artigos publicados em revistas
brasileiras.
Outra situação em que nossos autores podem ajudar as revistas brasileiras é quando
eles conquistam posição de relevância internacional em suas áreas. Com seu nome
reconhecido internacionalmente, deveriam publicar alguns artigos nas revistas
brasileiras, conferindo maior destaque à revista nacional no exterior. O que muitas vezes
ocorre, no entanto, é que esses autores consagrados enviam para nossas revistas apenas
seus artigos de pior qualidade. Defendo fortemente que os autores capazes de ajudar
nossas revistas por meio de seus artigos são aqueles que já romperam a barreira da
necessidade curricular; aqueles em que alguns artigos a mais não farão diferença (veja o
relato sobre o Dr. Larry Dill em IV-7).
As duas formas de contribuição propostas aqui são honestas e eficientes. Fora elas,
não adianta ficar forçando nossos autores a nos citarem (isso cria a ilusão de um alto
fator de impacto, mas não revela mais que a festa brasileira fechada no próprio
umbigo100). Vamos à luta, vamos mostrar ao mundo que temos competência científica.

Referências

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internacionais de EAD. In: Litto FM, Formiga M (org.). Educação à Distância - o estado da
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org/10.5016/1806-8774.2004v6pi]
Volpato GL. 2008. Publicação científica. 3a ed. Editora Cultura Acadêmica.

100
Como diz Caetano Veloso, em Dom de iludir: “Cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é”.

142

Literatura Complementar

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Packer AL, Meneghini R. 2006. Articles with authors affiliated to Brazilian institutions
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143

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33(supl.): S42-S44.
Volpato GL. 2008. Publicação científica. Editora Cultura Acadêmica.
Volpato GL. 2011. Para entendermos um pouco o drama brasileiro de publicação.pdf disponível
em www.gilsonvolpato.com.br (item Publicação Científica, seção Artigos). Postado em
02/10/2011.
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Enfermagem 3(3): 375.
Volpato GL. 2012. The power of scientific writing and publication. Brazilian Journal of
Veterinary Pathology 5(1): 1-3.

144

CAPÍTULO IV

Avaliação da Atividade Científica

IV-1 Por que avaliar a atividade científica?

A ciência é uma atividade cuja realização envolve gastos financeiros. Mas não é só
isso. Quando investigamos organismos, humanos ou não, geralmente temos aí um custo
de bem-estar, ou às vezes até da vida nas formas não humanas. Esse custo já é, per se,
motivo para que queiramos saber se nossa atividade está sendo bem conduzida.
Acrescento a isso a implicação do conhecimento científico. Se relevante, como se
apregoa na boa prática científica, será usado por cientistas fora de nossa área e pelo
público não científico. Espera-se que tenha um desdobramento, aplicado ou não (veja II-
12, II-13 e II-14). Portanto, deve ser bem feito. Eis outra razão para monitorarmos a
qualidade dessa ciência desenvolvida.

145

IV-2 Em termos gerais, como devemos direcionar a avaliação da atividade


científica?

Quando a avaliação da atividade científica recai sobre a avaliação do cientista,


surgem muitas confusões. É evidente que estão ligadas e se encontrarão em algum
momento. De uma forma geral, podemos avaliar a qualidade de cada trabalho produzido
pelo cientista. A somatória dessas produções poderá dar algum indicativo do
desempenho científico desse cientista. Mas note que a análise de cada trabalho é mais
relevante para as questões levantadas na questão anterior (IV-1).
Seja qual for o foco da avaliação, no trabalho ou no indivíduo, alguns referenciais
parecem menos polêmicos. Vamos ver alguns deles e suas bases lógicas.

o A avaliação deve ser vinculada à base ética e moral das condutas que estão
sendo avaliadas. Assim, não basta mostrar que fez algo relevante, é necessário
que isso tenha sido obtido de forma honesta. Este quesito é suficiente para
destruir qualquer currículo, não importa a altura que tenha.

o Não avalie atividades meio101. No caso da ciência, atividades meio seriam


projetos em desenvolvimento, resumos em congresso, teses e submissão de
manuscritos. Atividades meio mostram boa intenção, disposição para fazer,
dedicação ao assunto, mas não indicam qualidade102. Tentar é uma coisa;
conseguir é outra. Uma sociedade não é solidamente construída apenas por
intenções; é necessário que elas se desdobrem em ações efetivas. Algumas
propostas educacionais em nosso meio têm incentivado a avaliação da boa
intenção. Lógico que entre a boa vontade e a falta de vontade, ficamos com a
primeira. Mas a questão não é essa. O problema é que a boa vontade é condição
necessária, mas não suficiente. Você daria diploma a um aluno que sempre se
mostrou com muita força de vontade para aprender, mas que não conseguiu bom
desempenho nas disciplinas? Que profissional um país precisa?

o Avalie atividades fim. No caso, o impacto da produção científica no meio


científico e fora dele. A avaliação do impacto no meio científico é feita,
atualmente, pela análise numérica das citações (no futuro pode chegar na
qualidade do motivo da citação). Isso é coerente com o conceito de
“conhecimento científico” que apresentei em II-7. O impacto na comunidade não
científica é mais difícil de avaliar. A absorção do tema pela mídia pode não ser

101
Isto não significa, em hipótese alguma, adotar a máxima de que os fins justificam os meios. É outra
coisa!
102
Já vi em universidades pessoas proporem que se considere tudo, pois reflete o perfil mais geral do
indivíduo. Mas reflete também o quanto ficou rodando sem conseguir nada de mais importante e
consistente. Soube de professor que sugeriu que se computasse inclusive indicação de suplência em
bancas para pontuação na avaliação da atividade acadêmica. Daqui a pouco vamos pontuar os e-mails de
famosos que recebemos.

146

um bom referencial. A geração de patentes fica restrita a algumas áreas e o


retorno

147

financeiro admite o viés econômico como critério de qualidade. Por isso ainda
estamos nos restringindo mais à avaliação dentro do círculo acadêmico. No caso
de avaliação de instituições, avaliar sua qualidade fora da ciência já conta com
alguns indicadores interessantes e viáveis.

o A somatória de atividades de baixa qualidade não pode sugerir alta qualidade.


Isso significa, por exemplo, que a publicação de um conjunto de artigos ruins
jamais eqüivale a um artigo de boa qualidade. Cinqüenta coisas erradas
significam uma coisa certa? É muito comum as avaliações numéricas levarem a
este equívoco. Se num certo período um pesquisador publicou 72 artigos em
revista com fator de impacto igual a 0,5, sua somatória será 36. Isso não eqüivale
a um artigo publicado na Nature (FI2011 = 36,280). Assim, a avaliação deve
mesclar análise qualitativa e quantitativa. Se é ruim, é ruim... número alto aqui
significa muito ruim. Se é excelente, é excelente... nesse caso, número baixo
significa pouca freqüência, mas com excelência.

o A qualidade científica é conseqüência de buscas e caminhos acertados. Se quer


melhorar a qualidade científica, não mire nos índices; mire na ciência. Os índices
devem se modificar à medida que sua postura se modifica. Por analogia, se quiser
emagrecer, não brigue com a balança; lute com você mesmo.

IV-3 Por que a citação de trabalhos pelos cientistas é um critério importante na


avaliação da atividade científica?

Fazer ciência empírica significa explicar coisas do mundo natural, por meio de
evidências empíricas. Uma vez que o cientista tenha certa explicação, com base em suas
evidências, é natural que ele procure comunicar esses achados para seus pares, que são
outros cientistas interessados no mesmo tema. Essa comunicação é feita por meio da
publicação do trabalho numa revista científica (veja III-3 e III-4) ou, mais raramente, em
livros. Na maioria das áreas os conhecimentos em livros apenas sintetizam ou
congregam conhecimentos divulgados nas revistas científicas.
Ao fazer uma pesquisa, o cientista precisa idealizá-la e planejá-la, o que requer que
use parte do conhecimento disponível na literatura científica. Além disso, após obter
seus resultados, procurará interpretá-los e colocá-los num contexto teórico mais amplo,
o que também requer os conhecimentos disponíveis. E assim que a informação de uma
publicação científica entra no trabalho de um autor. Ao usar essa informação ele cita a
fonte primária em que ela foi publicada. É a isso que nos referimos quando falamos em
citação. Ou seja, há uma conexão, seja na idealização da pesquisa ou na interpretação
final dos dados, entre o que já está publicado e aquilo que está por vir.
É evidente que, ao menos em princípio, os cientistas usem as informações que
aceitam; ou que critiquem aquelas que acham merecedoras de crítica. É nesse ambiente
que

148

a citação que um cientista faz de uma informação (por ex., um artigo) se conecta com
outros conhecimentos na ciência. Assim, não ser citado significa que você está sendo
ignorado pelos seus pares.
Os mais otimistas podem alegar que não são citados porque estão muito à frente de
sua comunidade. Embora possa ser verdade, uma análise ponderada da situação deve ser
feita, porque, se houve engano, toda uma carreira poderá ser perdida na irrelevância e
prepotência.
Nas últimas décadas a Internet trouxe a facilidade de rastreamento do conhecimento
publicado entre as demais publicações. Em algumas bases de dados o autor é avisado
por e-mail cada vez que um de seus artigos é citado em alguma publicação. Mais ainda,
ao entrar na base de dados e investigar o perfil de determinado autor, pode-se conhecer
cada um de seus artigos e quantas citações cada um deles recebeu, bem como quem
foram as pessoas que os citaram e em quais artigos estão referidos.
Essa facilidade incrementou o uso de alguns indicadores de desempenho científico,
bem como estimulou o surgimento de outros indicadores (veja IV-9). O principal ponto
positivo das citações é que elas representam quase que uma “votação” sobre o trabalho
dos pares. Não se trata de uma decisão de grupo restrito, mas da sua comunidade
acadêmica. Saber trabalhar com os vieses dessa comunidade é também tarefa do
cientista.
No entanto, algumas críticas persistem sobre o uso das citações na avaliação da
qualidade científica. De um lado, há citações tendenciosas entre amigos e grupos
estabelecidos, o que pode ser solucionado conforme o volume de citações aumenta
vertiginosamente. Outra crítica é que a citação não elimina o problema das autorias
fraudulentas, de forma que um indivíduo pode ser muito citado porque participa, de
forma fraudulenta, de muitos artigos por ano. Esse é um problema real, mas novamente
o problema não é da citação e sim da autoria fraudulenta que se espelha na citação.
Critica-se também alegando que a citação pode ser muito diferente quando aparece
numa revista de prestígio (por ex., Nature ou Science) ou numa revista regional menos
conhecida. Esta critica, no entanto, traz uma enorme confusão sobre o papel da citação.
Confunde “uso do conhecimento” (que é medido pela citação, independente do veículo)
com “visibilidade do conhecimento” (que é maior quando a citação ocorre em revistas
de maior prestígio). Essa distinção é fundamental. A citação indica “uso” imediato e não
“visibilidade”. Se um cientista citou o artigo A na Science e outro citou o artigo B numa
revista regional, para cada citação, o conhecimento publicado (em A e em B) foi usado
na construção de um único artigo. Assim, A foi igual a B em termos de uso. Lógico que
se espera que o artigo citado na Science seja mais visto em função disso e atraia mais
citações no futuro; mas pode não atrair. Ou seja, a expectativa precisa ser confirmada
com citações reais. Portanto, o papel crucial da citação deve recair no seu uso imediato e
não na expectativa futura. Podemos ainda indagar que o artigo na Science tenha uma
contribuição mais interessante à ciência do que aquele na revista regional, mas isso
depende de uma avaliação de conteúdo, ou novamente na expectativa trazida pela
soberania da Science.

149

IV-4 A pressão por publicação produz fraudes?

Se ouvir que a pressão por publicação tem levado os cientistas a cometerem fraudes
(invenção de resultados, roubo de idéias e resultados, autorias fraudulentas etc), não
acredite! O que leva à fraude é o caráter moral103 da pessoa. A pressão pode testar a
força desse caráter, mas só isso. Alguns cedem rapidamente, outros são mais resistentes,
e alguns são sumariamente inflexíveis com as questões morais. Certamente esse desvio
não será apenas na pesquisa científica, mas também na administração, nas aulas, na sua
participação social enquanto cidadão.
Se a pressão por publicação levasse à fraude científica, então teríamos que admitir
que a pobreza levaria ao roubo. Mas isso não é verdade. Sabemos de muitos pobres que
não roubam; e muitos ricos que roubam como opção de vida.
No dia a dia, por falta de uma reflexão mais profunda, ou uma moral mais sólida, o
indivíduo pode ser levado a entrar na roda-viva das fraudes que aumentam a
produtividade. Mas isso não as justifica. É fraude, ato imoral, de qualquer forma. O que
temos que fazer para reduzir esses quadros é tornar a discussão ética mais presente na
vida dos cientistas, bem como valorizarmos as reflexões filosóficas como elementos
importantes de conduta. O que me espanta não é ver as raposas velhas cometendo
fraudes, mas os jovens que se iniciam na ciência reproduzirem tais práticas.

IV-5 Por que há tanta diferença entre áreas no processo de avaliação das revistas e
dos cientistas brasileiros?

A natureza da pergunta que suscita a pesquisa tem um peso nessa diferença de


avaliação entre áreas, menor do que normalmente lhe atribuem. De um lado, enquanto
algumas perguntas são respondidas numa tarde, outras levam anos. Saber se a variação
térmica brusca altera a cor de certo animal pode ser visto num dia. Mas saber quais são
as causas relevantes do aquecimento global poderá requerer um programa de pesquisa de
alguns anos. Porém, em cada área teremos pesquisas mais rápidas e outras mais
demoradas. A escolha da pesquisa para a finalidade certa é uma decisão do cientista. Se
quiser fazer algo que necessite 3 ou 4 anos para um projeto de mestrado engessado em 2
anos, terá problemas.

103
Refiro-me à moral mais que à ética. A ética é um conjunto de princípios acordado por certo grupo.
Os presidiários têm sua ética, da mesma forma como os políticos e os cientistas e qualquer outro grupo
humano. Portanto, ter ética não significa que ela seja uma boa ética. O que dará o adjetivo “bom” ou
“ruim” serão outros referenciais, que aqui chamo de morais. Entre os cientistas há alguns acordos éticos
sobre quais atitudes seriam morais ou imorais. No fundo, quero dizer que é fácil sabermos o que é certo e
o que é errado na ciência. Use a base lógica e histórica da ciência para entender esses referenciais.

150

Assim, essas diferenças entre áreas não decorrem de lógica, mas das histórias de cada
uma delas. A lógica científica, em seus aspectos gerais (veja II-1, II-3 e VII-10), é a
mesma.
Resumidamente, a história que conto em Volpato (2011) mostra que foi criado no
Brasil o conceito de ciência nacional, que ficou isolada do mundo. Isso foi mais forte
nas áreas que tratavam de “coisas brasileiras”, como agrárias, saúde, educação etc. Com
esse fechamento, as áreas foram desenvolvendo costumes, vícios que se mantinham
dentro de uma cultura bairrista. As áreas mais básicas sempre perambularam pelo
mundo da ciência internacional.
A grande revolução que ocorreu nesse sistema iniciou-se no final da década de 90,
mas se catalisou no final da primeira década do século atual, devido à adoção, pela
Capes, de critérios internacionais de avaliação. Mesmo sendo critérios criticáveis, eles
despojavam a simples enumeração de artigos e ressaltavam a necessidade de se olhar
para a qualidade das produções. A Capes não inventou isso, apenas nos colocou no meio
do mundo. Lógico que trouxe muita revolta, mas menos porque os critérios eram errados
e mais porque esses critérios significavam mudança no status quo de vários cientistas,
por outra ótica, conceituados. O que dizer de cientistas considerados no melhor patamar
brasileiro conseguidos com 99% da produção científica publicada em revista em que
esse próprio cientista era editor chefe? Fosse um caso isolado, não seria ressaltado. Mas
o perfil de publicação em periódicos de baixo escalão só sobrevivia quando apenas o
número de publicações importava. Foi nesse ponto que ocorreu a grande reviravolta.
Essa triste história nos explica um pouco as raízes mais recentes de diversas áreas.
Mesmo dentro de uma mesma grande área (biológicas, humanas ou exatas), temos
variações consideráveis. Óbvio que não podemos misturar áreas de pesquisa quando
fazemos avaliações. Cada uma deve ser avaliada dentro de seu referencial. Uma análise
no JCR do ISI mostra que as áreas componentes da Science Edition têm muito mais
revistas que aquelas da Social Sciences Edition. Além disso, o perfil de fator de impacto
delas também é bem diferente. Em momento algum isso significa diferença de qualidade
entre as áreas, mas perfil diferente. Umas citam mais, outras menos. A diferença
qualitativa que interessa é em relação ao impacto internacional e à consideração que a
própria área faz da ciência desenvolvida.
Uma das falhas cruciais num sistema de avaliação é a tentativa de julgar coisas
diferentes a partir de um mesmo referencial. Esse talvez seja o principal motivo que leve
órgãos avaliadores a personalizar referenciais de avaliação. Porém, note que essa
personalização pode ter duas vertentes. Ou ela é feita para evitar distorções genuínas, ou
apenas para manter status quo em áreas que se negam a crescer além de restritos
referenciais nacionais. Conhecendo nossa história, e tendo-a acompanhado criticamente
por 26 anos, acredito que as duas coisas acontecem no Brasil.

151

IV-6 Qual a melhor base para direcionarmos a avaliação da qualidade científica na


Academia?

Inicialmente analiso a base teórica para esta questão. Depois vou à prática.
O cientista faz pesquisa para descobrir coisas novas. Cada vez que descobre alguma,
sente-se impelido a contá-la a seus colegas. Se essa descoberta é interessante, seus
colegas não apenas a aplaudem, mas começam a usá-la em seus sistemas de raciocínio.
Isso faz todo o sentido. Por isso surgiram as publicações (inicialmente em livros e
posteriormente priorizando artigos); por isso temos que publicar em lugares que deixam
nosso texto visível; por isso temos que escrever bem; por isso temos que saber a
repercussão de nossos achados na comunidade. Por isso defini conhecimento científico
atrelado à aceitação da idéia na comunidade científica (veja II-7). Acredito que esta
história já está mais do que clara para você, que leu o capítulo II, em que tratei das bases
da ciência.
A ciência implica uma rede de conhecimentos que se substancia (ciência normal) e se
modifica (ciência revolucionária) ao longo do tempo (veja 11-11). Participar dessa rede
significa colocar nela conhecimento próprio. Isso exige que o grupo de especialistas que
cuida de cada pedaço dessa rede permita tal participação. Ou seja, não basta gerar o
conhecimento, ele deve entrar nessa rede. As duas coisas são igualmente difíceis: criar o
novo conhecimento e fazê-lo ser aceito na comunidade.
Na tarefa de construir a rede de conhecimento da ciência, os cientistas incluem suas
informações novas e, mais que isso, as conectam com a literatura existente. Essa
conexão cumpre as seguintes necessidades: a) fornecer base para se idealizar a pesquisa
(citações em Introduction e Methods num artigo); b) validar os resultados obtidos (em
Methods e Discussion); c) somar informações aos resultados apresentados para sustentar
conclusões mais amplas (em Discussion).
Agora vamos à prática. Como medir essa participação de nosso conhecimento na
nossa comunidade científica? Como a discussão científica se dá prioritariamente por
meio da publicação de artigos, me limito a esse universo, mas vários aspectos são
extrapoláveis a outras formas de divulgação do conhecimento.
Cada vez que algum cientista usar algo de seu trabalho, isso só ficará registrado se
esse cientista citar o seu estudo. As citações que aparecem no texto refletem o uso que
estão fazendo de suas contribuições. Mesmo que a citação seja uma crítica ao seu
trabalho, ele foi importante o suficiente para merecer ser criticado. A ausência de
participação no debate ocorre apenas quando nossos estudos não aparecem nesse meio,
são ignorados. E veja que não temos como saber quantos cientistas não encontraram
nosso estudo, ou não entenderam, ou o consideraram desprezível, ou mesmo usufruíram
daquele conhecimento sem publicar esse discurso. Tudo isso está fora de nossa
possibilidade de avaliação. Mas quando seu trabalho é citado num texto científico, sem
dúvida ele passou a fazer parte da rede de conhecimento. É lógico que essa participação
pode ser mais ou menos importante – voltarei a isso daqui a pouco.

152

Embora não haja nada errado com a citação como base teórica para se avaliar a
participação do cientista no meio científico, há problemas práticos que precisam ser
discutidos. Um deles é a autocitação, que comentarei em mais detalhes em IV-3, IV-7 e
IV-9. Outro, mais complexo, é a citação fraudulenta – aquela que privilegia amigos;
além da citação alienada, o autor foi citado simplesmente porque estava ali naquela hora.
Conforme argumentei em IV-4, e argumentarei em X-29, fraude é tema ético e moral.
Mas vamos examinar as citações entendendo que fraudes ocorrerão. Primeiramente,
quero comparar a citação como um processo genuíno de eleição democrática. Para votar
é preciso publicar, para ser votado é preciso publicar; isso define o público participante.
Trabalhos mais votados, fraude à parte, mostra que foi mais reconhecido, ou mais
considerado (mesmo que criticado), pela comunidade científica. Esse é um quadro que
confronta a avaliação por meio de grupos seletos de pessoas, geralmente não escolhidas
por critérios puramente científicos. O que lhe parece mais genuíno: ser avaliado por um
comitê de meia dúzia ou pela comunidade científica a quem seu trabalho é dirigido? E
me refiro a uma avaliação dentro da academia; portanto, feita por cientistas (veja III-3).
Em qualquer sistema de votos há problemas, não tenha dúvida disso. Ou será que os
melhores políticos são sempre os escolhidos? As pessoas votam nos candidatos famosos,
nos que lhes prometem algo em troca, nos que encontram casualmente, naquele que lhe
foi indicado por terceiros etc. Isso é natural, embora tenha problemas. Quanto mais essas
pessoas são politicamente instruídas, melhor fica o sistema de votos.
O mesmo ocorre na citação. Os motivos que fazem os autores escolherem os artigos
que citam vão além do conteúdo específico. Em alguns casos o artigo é tão inovador que
não há substituto. Mas, na maioria das vezes, o autor escolhe alguns por motivos
diversos, como, por exemplo: a) facilidade de ter acesso à íntegra do texto; b) qualidade
da revista; c) conhecimento sobre o grupo de pesquisa; d) nacionalidade dos autores do
texto; e) clareza da exposição no artigo; f) idéias sustentadas por dados e metodologia
fortes; g) indicação durante o peer review. Seja qual for a razão, muitas delas podem
indicar qualidade científica, mas algumas podem significar apenas contatos e amizades.
Esse é o ambiente e, até o momento, não temos nada melhor. Lógico que uma seleção
mais criteriosa ajudaria para sabermos quais trabalhos devem ser citados; mas ainda
esbarraríamos com problemas de ordem técnica, tanto na definição dos critérios quanto
na operacionalização da avaliação num espectro de centenas ou milhares de citações
sobre trabalhos de um único autor.
Em resumo, defendo que a citação ainda é um bom critério para avaliar a qualidade
científica de um pesquisador. Se não é citado, certamente não está ajudando no grande
debate. Se é citado, isso pode ser medido com certa objetividade. Lógico que todas as
citações, independentemente do motivo, entram com o mesmo peso, quando, na
realidade, não têm. Mas haveria alternativa?

153

IV-7 Devemos considerar as autocitações na avaliação da atividade científica?

Há uma verdadeira desconfiança sobre as autocitações. Elas são citações do autor


sobre trabalhos de sua própria autoria. No caso de revistas, seria numa revista artigos
citarem outros artigos dessa mesma revista. Centrarei a discussão na avaliação do autor,
mas ela é válida também para análises de revistas e instituições.
Em função desse quadro, há pessoas que simplesmente eliminam as autocitações das
análises. Puro engano. A eliminação automática de autocitações possivelmente exclui
um percentual de contribuições genuínas desse mesmo autor. Ou seja, para evitar um
erro cometemos outro.
No caso das autocitações em relação ao fator de impacto das revistas, um estudo104
realizado em 2002 pela Thomson (a agência que gerencia a WoK/WoS e o JCR) analisou
4.816 revistas do JCR e constatou que em 82% delas (mediana = 9,04) a taxa de
autocitações105 foi de até 20%; segundo o estudo, acima desse valor a taxa é considerada
alta.
Atualmente, parece claro que a autocitação de autores precisa também ser analisada.
Taxas excessivas podem indicar conduta suspeita. Em minha área de atuação, cito um
caso exemplar, que voltarei a citar em IV-10. O Dr. Larry M. Dill é canadense e uma das
maiores autoridades científicas de sua área (ecologia comportamental). Em setembro de
2012 ele possuía 9.447 citações no WoS, com 3,82% de autocitações. Nesse caso, não
há dúvidas sobre a qualidade das publicações. Um caso triste no Brasil foi com a
Brazilian Journal of Pharmacognosy (Revista Brasileira de Farmacognosia). Por meio
de um processo de recrutamento de citações nos trabalhos que eram submetidos a essa
revista, ela conseguiu a proeza de entrar no JCR com o maior fator de impacto (ver IV-
9) da história do Brasil (FI2009 = 3,462). Porém, numa análise do próprio JCR
constatamos que esse cálculo considerou 720 citações recebidas, das quais 652 eram
autocitações (90%). Excluídas todas as autocitações (o que também não é correto), o FI
seria 0,327. Esse fato chamou a atenção e um dos desdobramentos é que seus editores
atuais estão cientes do verdadeiro poder de impacto da revista, que segue numa trajetória
de melhorar qualitativamente esse perfil. Citei dois extremos para mostrar que no espaço
intermediário existem todos os tipos de combinações. Estabelecer limites é difícil, mas
certamente o bom senso ajuda.
No caso das revistas científicas brasileiras, seja por desorientação, por
impossibilidade, ou mesmo por estratégia (o famoso “jeitinho brasileiro”), o quadro das
autocitações ainda predomina nos índices. Acredito que isso ocorra também em outros
países que ainda não conseguiram o reconhecimento internacional. É uma ocorrência
natural, pois enquanto você não é conhecido internacionalmente, apenas os vizinhos
mais próximos o conhecerão (veja perfil das revistas famosas na Tabela 3, item IV-9).
Mas quero chamar a atenção nesse quadro para termos consciência de que a autocitação

104
O estudo pertence à Thomson Scientific e foi preparado por Marie E. McVeigh, gerente de
desenvolvimento de produto dessa empresa.
105
Artigos publicados na revista A citando outros artigos também publicados na revista A. Ou seja, as
citações da revista A vêm de artigos publicados nela mesma.

154

155

não é o caminho. Temos que lutar e estabelecer estratégias para que outros nos citem,
por reconhecimento e competência de nossa produção científica. Assim, o caminho sério
é um só: melhorar a ciência que produzimos e a divulgação dessa ciência. Sem isso, não
vejo alternativa mais honesta e genuína. Na Figura 2 mostro a distribuição das taxas das
autocitações que foram computadas para o fator de impacto de 2011 (Fonte: JCR-ISI)
das revistas brasileiras da Science Edition. Observe que ainda temos uma taxa elevada
de autocitações sustentando nossos índices, mas o cenário é otimista, porque 54,2% de
nossas revistas contemplam até 20%106 de autocitações. Como vimos, uma taxa
considerada um limite aceitável de autocitações, mas cerca de 70% delas incluíram mais
de 10% de autocitações. A internacionalização da atividade científica é um requisito
necessário, até mesmo uma política nacional, já possuindo, inclusive, forma de ser
medida (veja o índice de internacionalização em IV-9).

Figura 2. Distribuição do percentual de autocitações nos artigos que computaram o fator


de impacto de 2011 nas revistas brasileiras. Note que metade do número total de revistas
possui até 20% de autocitações.

IV-8 Como está o Brasil no ICR?

A participação das revistas brasileiras no JCR melhorou muito. Mostro a evolução


para as revistas consideradas na Science Edition e na Social Sciences Edition (Fig. 3) do
JCR. Note que em 2009 houve um grande incremento nas revistas brasileiras nessa base
de dados, aferindo seus respectivos fatores de impacto.

106
Nossas taxas iguais a zero (em 6 revistas) estão associadas a baixíssimas taxas de citação e podem
ter sido influenciadas por esse perfil.

156

Figura 3. Evolução da participação das revistas brasileiras no Journal Citation Reports


(JCR), da Web of Knowledge, ISI.

157

Essas edições da Web of Knoweledge (WoK) apresentam dois perfis dentro da


ciência. A Science Edition inclui as revistas mais ligadas às chamadas ciências duras
(Hard Science). Abaixo indico a maioria das disciplinas107 abrangidas nessas edições
(para limitar espaço, indico apenas áreas gerais, que geralmente incluem várias
modalidades).

Science Edition: Biológicas (Agricultura/Agronomia, Biologia, Ecologia, Esporte,


Medicina, Odontologia, Paleontologia, Psicologia, Química, Veterinária); Exatas
(Astronomia, Computação, Engenharia, Estatística e Probabilidade, Física,
Instrumentos e Instrumentação, Matemática, Robótica, Telecomunicações, Geologia)
e Humanas (Educação, História e Filosofia da Ciência).

Social Sciences Edition: Administração, Antropologia, Biblioteconomia, Ciências


Políticas, Ciências Sociais, Comércio, Comunicação, Criminologia, Direito,
Economia, Educação, Estudos Culturais, Ética, Geografia, História, Lingüística,
Psicologia, Psiquiatria, Sociologia e Transporte.

Porém, a análise da Figura 3 merece atenção. O aumento da participação das revistas


brasileiras no JCR reflete, sem dúvida, uma atitude mais agressiva de nossos editores
buscando essa base. Mas essa não parece ser toda a história.
As Figuras 4 e 5 revelam que em 2009 houve um aumento global das revistas e dos
países que participam do JCR. Note que o aumento ocorrido com o Brasil a partir de
2009 (Fig. 3) se repete com o restante da América Latina e com os demais países (Figs.
4 e 5). Isso indica fortemente que o avanço do Brasil foi um fenômeno global e não uma
ação isolada. Mas, por que isso ocorreu em 2009?

107
A classificação em grandes áreas, Biológicas, Exatas e Humanas é apenas uma aproximação, pois
em vários casos uma área pode contemplar mais de uma dessas grandes áreas (por ex., Telecomunicação,
Química, Educação, Psicologia etc). Em função disso, veja que algumas áreas aparecem tanto na Science
Edition quanto na Social Sciences Edition. Acredito que mesmo com as várias particularidades, esta lista
dê uma noção clara para você perceber o perfil dessas duas Edições do JCR. Em termos gerais, a Social
Sciences Edition tende mais para a área de Humanas e a Science Edition para as Biológicas e Exatas.

158

Figura 4. Evolução da participação das revistas no JCR. Valores excluídos o Brasil. Há


aumento evidente a partir de 2009 em todos os casos.

Figura 5. Evolução do número de países que participam do JCR. Ressalta-se um


incremento em 2009 ou a partir dele.

159

Longe de conhecer as razões exatas desse fenômeno de 2009, procuro apresentar uma
história a que muitos têm se referido como fenômeno Scopus (Fig. 6). O JCR pertence
ao ISI, uma empresa norte-americana que detém os direitos autorais para o cálculo do
Fator de Impacto das revistas (criaram esse Fator na década de 60). Em 2004 chega à
Internet a Scopus, uma base similar à WoK (e WoS), criado pela empresa concorrente
Elsevier.

Figura 6. Representação hipotética sobre uma possível influência no caminho das


revistas brasileiras até a WoK e o JCR. WoK = Web of Knowledge; JCR = Journal
Citation Reports; Capes = Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior. Veja texto para explicações.

A política na Scopus foi incluir várias revistas, num processo seletivo bem menos
rígido que aquele do ISI (enquanto o JCR incorporava cerca de 6 mil títulos de revistas,
a Scopus apresentava mais de 15 mil títulos). É evidente que esse maior número de
revistas da Scopus tinha o potencial de dar maior visibilidade às pesquisas dos cientistas,
particularmente daqueles que publicavam em revistas que não faziam parte do JCR. É
possível que se tenha travado aí certa concorrência (menos ciência, mais comércio) entre
ISI e Scopus. Coincidentemente ou não, após 2004 o tema “revistas regionais” passou a
ser mais comum e aceitável no ISI. Se esses passos levam o ISI a absorver mais revistas,
acho ótimo, pois em minha opinião os indexadores criam um crivo desnecessário108 ao
108
Note que os critérios de indexação apenas mais recentemente têm considerado com mais ênfase as
citações; anteriormente questões formais e estruturais das revistas tinham um peso muito maior.

160

debate científico, quando o crivo real deveria vir dos revisores, editores e leitores. Essa
competição ISI-Scopus teria facilitado a entrada de várias revistas no ISI-JCR.
De outro lado, a CAPES percebe o processo de globalização que se inicia na década
de 90 e entende que a internacionalização da pós-graduação (entenda-se, naquele
momento, da pesquisa científica) era imperativa. Com isso, inclui, cada vez mais,
requisitos de avaliação internacional na pós-graduação, o que inicia um processo de
migração de várias áreas da ciência nacional para a ciência internacional. Essa mudança
arrasta consigo as revistas científicas do Brasil. Nesse cenário, todos os fatores confluem
para uma mesma direção, a da internacionalização da ciência brasileira

161

(da pesquisa e das revistas científicas). Esse fenômeno, se real, parece refletir no
aumento do número de revistas brasileiras no JCR a partir de 2009 (facilitação + busca
pelos editores). O tempo para uma revista ser submetida e aceita no JCR é algo em torno
de 3 a 4 anos (a Scopus iniciou em 2004). Além disso, em 2008 a Capes fez uma
alteração drástica na classificação Qualis das revistas (válida a partir de 2007), ligando
os níveis das revistas ao Fator de Impacto; ou seja, somente as revistas brasileiras
avaliadas pelo JCR obteriam bons desempenhos Qualis. Isso impulsiona mais ainda
nossos editores em busca do JCR e, por competência, muitos conseguem.

IV-9 Quais os índices mais usados na avaliação da atividade científica?

Embora o número de citações que um cientista ou uma revista recebem da


comunidade científica reflita certa qualidade, esse valor, dissociado de um contexto, fica
inexpressivo e pode ser enganoso. Nesse sentido, os índices corrigem muitos desses
problemas. Abaixo destaco apenas os principais índices, visto que em Volpato (2008)
dedico mais espaço a esta discussão.

Fator de Impacto

O fator de impacto (FI) é um índice que pondera a procura que os cientistas de uma
área estão tendo por artigos de determinado periódico em relação ao volume de artigos
que esse periódico publica109. Ele foi idealizado por Garfield, na década de 60 no século
passado, sendo publicado anualmente pelo Institute for Scientific Information (ISI), que
o divulga pelo Journal Citation Reports (JCR), os quais atualmente pertencem à
empresa Americana Reuters. Seu uso na avaliação da qualidade científica começou a
ficar amplamente conhecido pelos cientistas a partir do final da década de 90,
possivelmente como conseqüência da globalização e das facilidades da Internet nesse
processo. Para exemplificar seu cálculo, imagine que queiramos saber qual é o fator de
impacto de determinado periódico para o ano de 2012. O cálculo é da seguinte forma:

N° de citações em 2012
_____________________________________________________
FI =
Nº de artigos publicados em 2010 e 2011

Na fórmula acima, as citações no numerador são específicas dos artigos publicados


no período considerado (2010 e 2011), cujo número total aparece no denominador.
Outras citações, oriundas de artigos mais antigos, ou mesmo de 2012, não são
computadas nesse cálculo.

109
Note que é uma medida de eficiência (veja IV-10).

162

A consideração de um período de 2 anos (no ex., 2010 e 2011) não tem razões
lógicas, mas a prática mostrou que é um referencial condizente com a maioria das áreas.
Mesmo assim, como a velocidade de publicação pode ser muito mais lenta em algumas
áreas (principalmente devido a especificidades metodológicas), a partir de 2007 o ISI-
JCR tem divulgado também o FI para o período de 5 anos; ou seja, pondera-se o número
de citação num ano (ex., 2012) pelo período de publicação de 5 anos (ex., artigos de
2007 a 2011). Há também o Immediacy Index, que computa o número de citações
dividido pelo número de artigos publicados, todos num mesmo ano.
Um lado positivo do FI é que a avaliação não é feita por um comitê “super
poderoso”110, mas é produto da resposta que a comunidade científica dá aos artigos da
revista em análise. É similar a uma votação (aliás, qualquer índice que use a “citação”
como indicador de qualidade pressupõe isso). Como toda votação, tem seus problemas,
mas me parece mais genuíno que outras ingerências conceituais. Isso impõe ao cientista
que sua atividade não mais considere apenas o trabalho em si, mas a relação com sua
comunidade científica (no mínimo) (veja II-7).
Conforme o FI foi sendo mais divulgado no mundo científico, críticas começaram a
surgir. Em minha opinião, a maioria dessas críticas é infundada e reflete apenas o
descompasso entre os cientistas e a realidade da divulgação científica que requer
impacto entre os pares. Se de um lado muitas dessas críticas emergiram, de outro pouco
se evoluiu para se detectar erros do fazer ciência para se melhorar qualitativamente essa
atividade no mundo. Abaixo examino algumas das críticas.

O FI não indica o alcance geográfico do estudo: uma revista pode ter fator de impacto
alto apenas com citações de autores e revistas de seu próprio país. Ou seja, não indica
a internacionalização (abrangência) da revista (veja adiante). É evidente que este
problema seria percebido em algum momento, particularmente quando revistas
regionais (veja III-5) passassem a ter fator de impacto igual ao de revistas
internacionais (veja III-4) numa mesma área no JCR. No caso do Brasil, a revista de
maior FI na Social Sciences Edition é a Revista de Saúde Pública, com FI = 1,328,
que é similar à Public Health (FI = 1,350), sendo que esta última publica artigos de
mais países comparativamente à primeira. Na Science Edition, por ex., veja a
excelente revista brasileira Brazilian Journal of Medicai and Biological Research
com FI2011 = 1,129, um valor similar ao Scandivavian Journal of Clinical &
Laboratory Investigation, com FI = 1,156, mas a revista do exterior possui mais
artigos de outros países, indicando maior internacionalização. Portanto, analise o FI
juntamente com o índice hi (internacionalização), descrito por Kosmulski (2012)
(explicado adiante).

O FI pode estar contaminado com autocitações: inicialmente, veja análise do problema


das autocitações em IV-7. No JCR você encontra dados sobre as autocitações (totais e
para o período do FI considerado), bem como o valor do FI excluindo-se as
110
De certa forma, esse tal comitê fica substituído pela empresa que realiza essa análise, sendo esse um
ponto de crítica (veja adiante nesta questão).

163

autocitações. Veja na Tabela 3 alguns casos em revistas famosas, onde o impacto da


autocitação é mínimo. Assim, o FI deve ser analisado conjuntamente com a taxa de
autocitações.

164

Tabela 3. Efeito das autocitações famosas (ordenadas pelo FI) no fator de impacto (FI)
de revistas científicas

Revista FI 2011 FI2011 Redução do FI (%)


sem autocitações
CA-A Câncer J Clin 101,78 101,488 0,029
New England Journal of Medicine 53,298 52,415 0,166
Nature 36,28 35,707 0,158
Cell 32403 31,827 0,178
Science 31,201 30,778 0,136
JAMA 30,026 29,368 0,219
Britsh Medical Journal 14,093 13,285 0,573
PLoS Biology 11 452 11,315 0,120
PNAS 9,681 9,366 0,325
PLoS O N E 4,092 3,666 1,041
Dados obtidos como exemplos em algumas revistas do ISI-JCRM11. A redução percentual do FI indica a
redução desse fator quando se excluem autocitações. A autocitação significa que a citação da revista
ocorreu em artigo publicado nessa mesma revista.

Os valores obtidos podem não corresponder à realidade: alguns editores têm procurado
alegar, inclusive em publicações, que há erros nos cálculos fornecidos pelo ISI. Neste
aspecto, acho que o debate atualmente pode ser considerado público e acredito que
erros dessa natureza sejam mínimos, por entender que a instituição procure zelar pela
qualidade de seu trabalho. Mesmo assim, tal crítica não recai sobre o FI, mas sobre
possíveis erros, ou mesmo manipulações de terceiros. Além disso, critica-se também
que a política sobre quais artigos são considerados (fullpapers, short
communications, review, letters etc.) não é clara, o que também não recai sobre o FI,
mas sobre a empresa que o calcula. É muito importante distinguirmos a crítica ao
conceito daquela à sua operação ou uso inadequado.

É restrito às revistas do ISI: novamente uma crítica que não atinge o conceito do FI,
mas seu uso. Como ele é produto registrado do ISI, não pode ser calculado por outra
instituição. Isso, sem dúvida, restringe os cálculos às revistas que estão nessa base de
dados. Este aspecto toma maiores proporções quando revistas passam a ser avaliadas
por esse critério, uma vez que nem todas têm FI divulgado pelo ISI e, por isso, as
revistas se esforçam para pertencer ao ISI-JCR. Esse é um problema para o meio
acadêmico, mas que tem sido solucionado gradativamente com um maior número de
revistas nessa base; porém, ainda aquém do desejado. Por ora, o que podemos fazer é
comparar apenas as revistas que estão

165

no ISI, sem atribuir mérito ou demérito às demais. Quando se atribui demérito111 às


que não estão no ISI-JCR, atribui-se qualidade ao periódico com base nos critérios de
seleção usado pelo ISI para inclusão/exclusão de revistas, o que retorna ao problema
de um grupo restrito definindo qualidade científica. Se a proposta é usar as citações,
que representam a resposta da comunidade científica, então esta questão é inaceitável.
Defendo, claramente, que todas as revistas têm o direito de ser avaliadas pelo mesmo
critério. Se o FI é o critério, que seja calculado para todas; se isso não é possível, que
se use outro critério (por ex., índice h e índice de internacionalização - veja à frente
nesta questão).

Os periódicos de revisão são privilegiados: trata-se de uma crítica equivocada, se


atribuída ao FI. Esse fator apenas mede o impacto, mas não avalia os motivos. É
evidente que revistas de revisão terão maior impacto, dada a importância e
necessidade desses estudos na área acadêmica. Mas isso é apenas o motivo. O erro
novamente não recai sobre o FI, mas à forma de sua utilização. Se compararmos uma
revista de uma especialidade restrita contra uma revista de revisão, temos que
ponderar (de forma qualitativa, evidentemente) a avaliação por esses perfis. Ou seja,
devemos comparar sem misturar perfis... Mesmo assim, os maiores fatores de
impacto nem sempre estão com as revistas de revisão (o maior fator de impacto de
2011 foi da CA-A Câncer Journal for Clinicians, com FI = 101,780).

Número de revistas na área: Numa rápida olhada no JCR, fiz uma amostragem aleatória
por sorteio (~14% do universo total na Science Edition) e obtive um forte indicativo
de ausência de correlação entre o número de revistas na área e a mediana do FI nessa
mesma área (Fig. 7). O mesmo ocorreu quando correlacionei o FI com o maior valor
de FI da área e também com o menor FI (Fig. 7). Isso faz sentido, porque o FI não
está relacionado com o número de citações, mas com a relação entre citações e
artigos publicados.

111
Note que o sistema Qualis faz exatamente isso.

166

Figura 7. Ausência de correlação entre o fator de impacto e o número de revistas na


área. Dados coligidos do JCR-ISI, para o ano de 2010. FI = mediana do fator de impacto
na área.

O FI depende do número de referências em cada artigo: embora a citação deva ser feita
em função de sua necessidade lógica no texto, na prática vemos que há áreas com
mais citações por artigo do que outras. Isso pode ser decorrente do próprio fluxo de
publicações na área ou mesmo por costume. Assumindo este raciocínio, pode-se
esperar que em algumas áreas o número de citações seja sistematicamente maior que
em outras. Se isso ocorre, o FI das áreas com menor fluxo de citações no texto poderá
ser menor. Novamente, trata-se de uma restrição sobre o uso do FI; ou seja, não
podemos comparar revistas de áreas com perfis muito diferentes em termos de
número de referências/artigo. Porém, tenho muita convicção de que este problema é
muito mais exceção do que regra. Se numa área as citações são poucas porque há
poucos artigos, então o denominador no cálculo do FI (número de artigos) também
seria reduzido, influenciando pouco o FI. Um teste desta hipótese de restrição ao FI
deve ser feito, mesmo que trabalhoso (a plataforma do ISI não é amigável quanto ao
fornecimento de dados).

Regionalismo de áreas e periódicos: veja que o regionalismo, em princípio, não afeta o


FI. Como o FI é uma relação (citado/publicado), não tem associação com o número
de citações nem com a origem delas. Assim, o FI não indica abrangência do impacto
no cenário internacional. O regionalismo, no entanto, pode ser facilmente percebido e
mensurado pelo índice de internacionalização (veja à frente nesta questão).

167

Citação depende da revista onde aparece: vejam IV-3. Basicamente, supõe-se que uma
citação ocorrida em revista de prestígio deva contar mais que uma citação em revista
menos conhecida. Se o foco é a visualização, isso é verdade. Mas se centramos no
uso imediato do conhecimento, em ambos os casos (revista de prestígio ou
desconhecida) houve a participação da citação na construção de um artigo científico.
Assim, a citação em periódico científico indica “uso” do conhecimento, enquanto que
a ponderação dessa citação pelo prestígio da revista que a cita indica “possibilidade”
futura de “uso”. O que interessa para o conhecimento científico é o “uso” (veja II-7,
IX-2, IX-11 e, especialmente, Fig. 21 no item IX-10).

Em resumo, considero o FI uma medida válida dentro de seus limites. O que não
podemos fazer é querer que ele indique mais do que é permitido e, nesse sentido, seu uso
para comparações de revistas deve ser cauteloso. Por outro lado, muita crítica ao FI pode
advir da vontade de uma ciência mais acanhada se defender num cenário que, devido à
globalização, exige participação e qualidade internacional, recaindo sobre a questão da
citação.
Quando a Capes utiliza o FI na avaliação dos periódicos, o problema não é o FI, mas
o fato de ser restrito a um grupo de revistas (uma vez que só é calculado e divulgado
pela empresa JCR-ISI) e pelo fato de as áreas da Capes incluírem perfis de ciência muito
diferentes entre si, embora as avaliações fiquem interiorizadas nessas áreas.

Índice h

Este índice foi descrito em 2005 por Hirsch e busca ponderar o número de
publicações pela qualidade em termos de citações. Esse conceito é interessante, porque
apenas artigos com certo número de citações passam a ser considerados. Ou seja, a
citação é o ponto de definição de qualidade, cujo índice valoriza indivíduos que possuem
maior número de artigos com tal qualidade.
Na prática, ele pode ser calculado como expresso na Tabela 4 (Volpato 2008):

a) Faça uma lista com os artigos e as respectivas citações recebidas por artigo até o
momento, ordenando esses artigos do mais citado até o menos citado.

b) Numere cada artigo em ordem decrescente de citações recebidas (número de


ordem).

c) Compare o número de citações com o número de ordem do respectivo artigo.


Quando o número de citações for menor que o número de ordem, o índice h será
esse número de ordem menos 1.

168

Exemplo:

Tabela 4. Cálculo prático do índice h.


Artigo N° de citações N° de Ordem
A 12 1°
B 8 2°
C 5 3o
D 4 4°
E 3 5o
F 1 6°
Índice h = 4 (possui 4 artigos, cada um tendo recebido 4 ou mais citações); os demais
receberam menos que 4 citações. Cálculo: como 3 < 5º, então h = 5 - 1 = 4 (baseado em
Volpato 2008).

O índice h é divulgado pelo ISI (WoS, citation reports) e pela Scopus (Citation
Tracker) e pode ser obtido para o perfil de um cientista, de uma revista ou de uma
instituição. Como as revistas indexadas nesses dois sites não são exatamente as mesmas,
há alguma diferença nos resultados.
Cuidado ao avaliar o índice h de algum cientista, pois deve se certificar de que todos
os artigos que foram listados são, de fato, desse autor, e não de um homônimo. Do
contrário, o índice pode ser superestimado. Cientistas renomados internacionalmente
geralmente apresentam índice h acima de 30 e dos mais famosos, incluindo aqueles com
prêmios Nobel, o índice é acima de 100.
Uma correção interessante ao índice h é o quociente m (Hirsch 2005), em que o valor
h é dividido pelo número de anos desde a primeira publicação do autor. Com o
quociente m, fica mais razoável comparar desempenho entre cientistas com tempos
diferentes de atuação. O índice h dá maior peso aos cientistas mais velhos, uma vez que
com o passar dos anos é esperado que se aumente o número de citações de cada artigo
publicado.
O número de citações que um autor recebe ao longo de sua carreira científica reflete o
uso que a comunidade científica faz de seu trabalho, para fundamentação ou crítica.
Evidentemente, a taxa de citação reflete também o comportamento da área em termos de
publicação (veja comentários sobre o FI). Nas áreas em que as taxas de publicação são
altas, esse índice será também alto para os cientistas que participam dessa atividade de
publicação. Portanto, assim como o FI, o índice h deve ser utilizado numa mesma área.

169

Índice de internacionalização (hi)

Este índice é bem mais recente e, certamente, não agradará aos que ainda apostam na
ciência regional. Ele é uma pequena modificação do índice h e, por isso, é referido como
hi (índice h de internacionalização). Ele foi descrito por Kosmulski em 2010.
O hi indica quantos países citaram determinado autor (revista ou instituição), usando
os referenciais do índice h. Assim, ele pode ser obtido como o índice h expresso na
Tabela 4. Você deve substituir a coluna “artigos” por países. A partir daí, liste todos os
países que citaram o rol de artigos em análise (de um autor, de uma revista ou de uma
instituição), indicando quantas citações ocorreram a partir de cada país. Com isso,
calcule o hi da mesma forma que o índice h. O hi indica, por exemplo, que determinado
autor foi citado por hi países ao menos hi vezes. Se o hi for 15, isso indica que o autor
em análise foi citado pelo menos 15 vezes em 15 países. Se for 25, ele é citado ao menos
25 vezes em 25 países e assim sucessivamente.
O hi fornece um elemento fundamental para distinguir a ciência internacional da
ciência regional, medindo o grau de abrangência da ciência que se pratica. Considerando
que, conceitu-almente, não existe ciência regional ou nacional, então ele mede nossa
habilidade para produzir ciência.
Uma análise das revistas nacionais por meio do hi subsidiaria muito a comparação de
nossas revistas. No entanto, acredito que a forte pressão para atender às revistas caseiras
não permita ainda esse uso. Assim, ressalto que a ferramenta existe, necessitando apenas
da vontade política, e teórica, para usá-la.
Como nota de precaução, vale lembrar que o uso de qualquer valor numérico para
expressar qualidade corre risco de distorções. Mas isso não significa que os índices
devam ser ignorados. Eles são úteis. O problema é o uso desses índices. Assim, o uso
adequado de um índice de qualidade requer que os usuários façam as devidas
ponderações. Pesquisas da moda, ou economicamente interessantes, podem levar a altos
índices de citação. Artigos bem redigidos podem melhorar em muito a qualidade
aparente da pesquisa realizada. Portanto, o ambiente da avaliação da qualidade científica
ainda está envolto por problemas práticos, mas gradativamente vemos que os índices
supostos estão, cada vez mais, tentando medir o impacto que os trabalhos causam na
comunidade científica, quantificando isso a partir de respostas dos próprios cientistas
(citações).

IV-10 Que rumo a avaliação da atividade científica está tomando?

Conhecer para onde se dirige a história é fundamental. Vejo freqüentemente


coordenadores de pós-graduação reclamarem que a Capes novamente mudou o rumo da
avaliação. Sempre digo que quem faz ciência de qualidade não precisa se preocupar com
isso, porque a Capes deve chegar até essas pessoas. Ou seja, esteja à frente da Capes que
ela se guiará até você.

170

O problema é quando a Capes está à nossa frente e ficamos desesperados para atender
aos seus critérios. Acredito que, mesmo com muitos equívocos, a Capes vislumbra que o
país cresça cientificamente. Atualmente, isso significa acertar os rumos para a ciência
internacional (veja a exigência de internacionalização para os cursos notas 6 e 7). Então,
vemos que o caminho é para o óbvio e não para algo estranho.
O curioso é insistirmos em fazer uma ciência regional (veja III-4). São erros
conceituais que colocam a Capes como o grande terror de muitos orientadores. Óbvio
que alguns a vêem com terror, devido aos equívocos que essa coordenação incorpora em
alguns momentos. Por exemplo, em algumas áreas uma publicação medíocre pode ter o
mesmo peso de uma publicação de alto nível. Mas neste caso meu conselho é que você
insista na qualidade, pois ela ainda lhe dará maior conforto.
Os indícios a seguir justificam esse meu otimismo em relação à qualidade científica.
Quando os coordenadores se dizem assustados e “pegos de surpresa” pelas medidas da
Capes, eu imagino o quanto estão fora da realidade. Basta uma olhada no que ocorre no
universo da publicação científica e o caminho fica claro. É fácil prever o que ocorrerá
daqui a 5 ou 10 anos. Tenha certeza que não voltaremos ao estágio reconfortante de 15
anos atrás, quando as publicações medíocres garantiam qualidade a cursos igualmente
medíocres.
Uma rápida olhada sobre o que tem ocorrido na avaliação científica nos últimos 30
anos mostra um cenário animador (caminhamos em direção aos preceitos filosóficos do
fazer ciência). De um lado, a avaliação científica passou de uma análise quantitativa das
publicações para análises quantitativas do impacto que elas têm na comunidade
científica. Isso pode ser visto por índices como FI, índice h, índice de
internacionalização, relação entre número de citações/número de artigos, ponderações
sobre as autocitações, entre outros.
Eu tenho proposto que a evolução da análise da comunicação científica siga em
direção à análise da eficiência.
Primeiramente, vamos entender o que é eficiência. Na Física, eficiência é w/energia;
ou seja, é a relação entre o trabalho executado e a energia necessária para realizar esse
trabalho. Assim, um sistema eficiente realiza certo trabalho com a necessidade de menor
energia.
Tenho extrapolado esse conhecimento para a análise da atividade científica. Em
nosso caso, o trabalho realizado seria o impacto atingido na sociedade científica. Ou
seja, escrevemos um artigo para divulgar nossas conclusões e esperamos que elas sejam
aceitas e usadas pela comunidade científica112. A citação de nosso trabalho pela
comunidade científica revela essa aceitação, mesmo que seja como assunto a ser
criticado (mereceu, ao menos, ser criticado... mas foi aceita inicialmente por editores e
revisores, o que mostra não ser algo tão absurdo).

112
É evidente que podemos esperar que esse efeito na sociedade acadêmica transborde para a
sociedade não científica, com conseqüências positivas; porém, isso não pode ser um imperativo quando
pensamos em avaliação da qualidade científica, porque o desdobramento pode vir muito tardiamente
quando a investigação trata de aspectos básicos da ciência.

171

Com isso, a eficiência científica é a produção de conhecimento que é usado pela


comunidade científica ponderada pelo número de artigos113 publicados. Isso faz toda a
diferença. Lembre-se que produzir artigo científico demanda tempo e dinheiro. Portanto,
o conceito de eficiência científica avalia exatamente o quanto se produz de útil pelo
custo dessa produção. Assim, produzir trabalhos não relevantes, de baixa qualidade,
puxam a eficiência para baixo porque entram no denominador.
Agora demonstro que esse conceito já vem sendo usado pela comunidade científica
há vários anos. Vamos começar pela pós-graduação.
Quando a Capes avalia a produção de um programa de pós-graduação, ponderando
essa produção pelo número de orientadores, estão fazendo uma análise de eficiência.
Mais ainda, a Capes está também interessada em saber se essa eficiência se deve a
poucos indivíduos do grupo ou se ela é mais homogeneamente compartilhada nesse
grupo.
Como reação a essa medida da Capes, a maioria dos programas de pós-graduação
procura aumentar a medida de eficiência, descredenciando orientadores menos
produtivos. Isso é uma maquiagem, mas que todos fazem para não perder na
concorrência final. Porém, isso não aumenta efetivamente a eficiência; quando esse
recurso se esgotar, então teremos que pensar em mecanismos para aumentar a eficiência
(citações/artigos) dos professores que permanecem no quadro de orientadores do
programa.
A medida de eficiência é vista também quando olhamos na WoS, item Create
Citation Reports, e encontramos dados sobre o número de citações que cada artigo
recebeu. Veja, por exemplo, o caso do Dr. Larry M. Dill, um pesquisador Canadense de
reconhecido nome na ciência. Ele possuía, até meados de setembro de 2012,145 artigos
na WoS. Nos últimos 20 anos, ele publicou cerca de 4 artigos/ano, conseguindo, com
isso, receber mais de 500 citações/ano nos últimos 6 anos. Isso revela eficiência: poucos
artigos, mas muito usados pela comunidade científica. Até esse período, ele recebeu
9.447 citações, das quais apenas 3,7% são de autocitações. Um total de 6.817 artigos o
citaram, dos quais apenas 1,6% foram autocitações. Na WoS encontramos também a
relação sobre o número de citações/artigo. No caso desse professor, sua relação é, no
período considerado, de 65,15/artigo, com índice h = 43. Esse dado (citações/ artigo) é
um índice de eficiência, pois mede produção/esforço.
O conceito de eficiência é extremamente importante. Ele nos leva a caminhar no
sentido de economia. Reduzindo o número de artigos produzidos, mas melhorando a
qualidade de cada um deles, otimizamos recursos, contribuindo para menores gastos,
menos lixo de pesquisa, menos incômodo a organismos vivos, menor perturbação
ambiental por pesquisas, entre outros ganhos.
Acredito que esse conceito seja almejado por muitos. Ele também é coerente com o
conceito da Slow Science, que nos pede exatamente isso: menor velocidade e maior
qualidade.

113
Evidentemente, podemos extrapolar para além de artigos, incluindo outras publicações científicas
válidas.

172

Porém, o conceito de eficiência contraria os carreiristas e “publicadores


quantitativos”. Na visão dessas pessoas, devemos fazer o máximo, a qualquer custo, e
alguma coisa boa deve sobrar. Não acho que a humanidade passe por um momento
compatível com tal postura. A falta de análise de eficiência prioriza a má administração
das atividades. Faz-se muito porque não se planeja o que fazer.
Quando o dinheiro estiver, de fato, escasso e/ou a vida dos organismos for mais bem
considerada, a exigência por eficiência será imperativa. Quando nosso tempo para lazer
for valorizado, também teremos a eficiência ao nosso lado. Ou seja, não consigo supor
outro caminho de qualidade que não a análise, numérica ou não, de eficiência (relação
entre esforço e produção).
Finalmente, temos que nos atentar para o que nos diz o índice de internacionalização
(hi) publicado recentemente (Kosmulski 2010). Ele indica que está sendo necessário
distinguir o alcance da ciência produzida. Se duas revistas têm FI=2, sabemos que
ambas estão sendo citadas duas vezes mais do que publicam. Mas esse desempenho
pode decorrer de duas situações bem distintas: uma é citada apenas pelos cientistas de
uma instituição, ou de uma região (por ex., país ou continente); a outra pode ser citada
por cientistas de todo o mundo. O hi poderia ser próximo de 1 num caso e acima de 100
no outro. Isso mostra que ele é um diferenciador importante para se avaliar a ciência que
está sendo desenvolvida. O hi mostra uma procura por distinguir “ciência” de “pesquisa
restrita”. Se isso surgiu em 2010, pode sinalizar para onde devemos caminhar. Note que
uma ciência geral auxilia os casos particulares de qualquer região; enquanto a pesquisa
particular só serve para aquela particularidade.
Mais ainda, note que os indicadores da SciELO também apontam para essa qualidade,
quando avaliam as citações e as autocitações. O próprio currículo Lattes caminha, no
setor “citações” (que em sua versão original era chamado “indicadores de qualidade”),
para a busca das citações e do índice h, privilegiando o ISI. A própria evolução do
Qualis da Capes é um indicador dessa busca por uma ciência internacional e abrangente,
embora ainda bastante tímida. Algumas áreas, com mais influências retrógradas, ainda
conseguem baixar esses crivos ou colocar revistas completamente regionais, de baixo
impacto, no nível A1114. Tal postura pode resolver problemas pessoais imediatos, mas
não é uma medida que pensa no bem-estar da ciência nacional no futuro.
A leitura de tudo isso que está à nossa volta é bem reveladora. Em resumo, vejo que a
avaliação da qualidade científica caminha no sentido de valorizar desempenho segundo
eficiência e abrangência. É esse caminho que nossa ciência deve buscar.
Na Figura 8 vemos a situação do Brasil em relação ao conceito de produção por força
bruta. Ele ocupa o 15° lugar em número de artigos publicados e o 20° quanto ao número

114
Esta medida, que coloca algumas revistas nacionais em nível muito acima do que de fato estão, não
nos ajuda. Trata-se de uma medida conciliatória que retardará em muito nossa busca por excelência.

173

de citações. Porém, ele despenca vertiginosamente quando se avalia sua eficiência, que é
dada pela análise de citações/artigos (Fig. 9). Isso significa que estamos publicando
muito para emplacar pouco.
Considerando que pesquisa gera custo (financeiro ou não), deveríamos atentar
urgentemente para essa tendência brasileira. Estamos gastando muito com ciência, mas
estamos ainda muito acanhados na conversão desse esforço em conhecimento científico
(veja II-7). Veja que o Brasil está à frente da Suíça em termos de número de artigos
publicados (valores brutos não corrigidos por número de cientistas ou tamanho da
população). Mas note que a Suíça é a primeira em termos de eficiência científica (Fig.
9). Se considerarmos que muitas das citações recebidas pelos artigos de brasileiros são
endógenas, proveniente principalmente de brasileiros (autocitações no cenário entre
países), o quadro fica ainda mais triste ao revelar a pouca voz científica que temos no
mundo. Essa análise vem das citações recebidas por nossa ciência e não dos serviços de
marketing que faz com que o Brasil apareça bem cotado, inclusive com destaques em
revistas de prestígio. Temos que analisar a realidade e não o “reality show” da ciência.
Quando olhamos outros setores vemos também certa ineficiência do Brasil. Pessoas
que vão às universidade de países ditos do primeiro mundo geralmente se deparam com
o seguinte cenário: eles ficam menos tempo na universidade, mas produzem muito mais.
Ao analisarmos o número de horas que os graduandos passam assistindo aulas
expositivas em países como Alemanha, França, Inglaterra e Estados Unidos, vemos que
nesses países isso fica entre 8 a 14 horas por semana, enquanto que no Brasil isso
remonta a mais de 30 horas semanais. Seriam nossos alunos duas vezes melhores que
aqueles desses países desenvolvidos? Ou olhamos para a eficiência, ou nosso cenário
futuro estará ainda mais dificultado. Aprendi que para curar uma doença precisamos,
inicialmente, de um diagnóstico correto. Enquanto taparmos o sol com a peneira,
continuaremos investindo muito para produzirmos pouco. Ineficiência em país pobre é
irresponsabilidade social.

174

Figura 8. Produção científica avaliada por força bruta. Note que o Brasil está entre os
20 primeiros países. Dados obtidos no sciencwatch.com.

175

Figura 9. Eficiência da produção científica brasileira segundo classificação na


sciencewatch.com. Note que o Brasil possui apenas cerca de 55% da eficiência do 20°
país (Irlanda).

IV-11 Como avaliar um periódico científico?

Assim como os cientistas, as revistas científicas são avaliadas pela comunidade


científica. Cada autor busca a revista mais compatível com a qualidade de seu artigo, de
forma que conhecer meios corretos de avaliação dos periódicos é necessário. Além
disso, agências que financiam total ou parcialmente os periódicos precisam avaliar essas
revistas para distribuir os recursos com base nas suas inferências de competência. Na
avaliação de um periódico, a escolha de critérios adequados de competência é
fundamental. Não se trata de adotar ou não critérios, mas de compreendê-los.
Infelizmente, muita confusão acontece nesta problemática e, portanto, explicitarei
abaixo alguns dos critérios mais usados.
Saber decidir sobre a qualidade científica de um periódico científico é fundamental.
Isso dá referenciais para o autor escolher o periódico para publicação; para editores,
norteiam sobre qualidades fundamentais que sua revista deve ter ou almejar.
Um resumo das principais qualidades de uma revista científica está nos 10
mandamentos das revistas científicas, apresentado em III-11. Mesmo que a revista não
tenha todos esses quesitos, é importante que esteja caminhando em direção a eles. Sem
isso, não se pode esperar muita coisa de um periódico. São quesitos fundamentais e que
sustentarão a qualidade do periódico e a visibilidade dos artigos nele publicados.
Abaixo discorro mais detalhadamente sobre alguns indicadores de competência das
revistas científicas. Ao final, apresento falsos indicadores de qualidade.

176

Indicadores da Competência dos Periódicos

Sistema de peer review anônimo: desde a criação da primeira revista científica, a


avaliação por pares tem sido a regra. E isso não é costume, mas percepção de que o
sistema funciona. Embora essa avaliação seja anônima (o autor não conhece os
revisores), as respostas e comentários são apresentados ao editor, que é o mediador e
juiz do processo. Ou seja, arbitrariedades não ocorrem tão freqüentemente e
impunemente nesse processo, caso o juiz seja justo. Evidentemente, o anonimato
pode pressupor que o autor irá à desforra caso seu artigo seja negado. Embora não se
espere isso, sabemos hoje que a alegação comum dos autores à negação de seus
manuscritos é que foram avaliados com discriminação. Se isso é freqüente, então a
manutenção do anonimato se justifica. Por outro lado, já vivenciei a situação de ter
um manuscrito negado em periódico internacional por um amigo meu, que solicitou
ao editor que me fosse dado conhecimento de seu nome. Isso só mostra para o autor
que a crítica não foi pessoal, mas profissional. Atualmente, a questão tem se
complexado pelas facilidades das revistas eletrônicas, em que sistemas mais abertos
de crítica são utilizados, ou mesmo sistemas em que se publica a discussão entre
autores e revisores.

Qualidade do corpo de revisores: ela é fundamental. São eles que emitem decisões,
principalmente sobre a qualidade de conteúdo do artigo. A decisão final é do editor,
mas baseado nas opiniões dos revisores do manuscrito. Cientistas de ótima qualidade
no meio científico têm condições e experiência para realizar boas análises de
manuscritos. Se não o fazem por desprezo ou falta de tempo, isso é outra questão. As
revistas de baixa qualidade ou desconhecidas geralmente atraem artigos de autores
mais inexperientes ou de baixa qualidade. Com isso, os manuscritos possuem erros
primários, o que não agradaria aos revisores mais conceituados. Embora esses
revisores devessem atuar como educadores para ensinar os autores por meio das
sugestões nos manuscritos, o que ocorre é que geralmente se ausentam da tarefa de
análise de manuscritos de baixa qualidade. Com isso, os revisores mais críticos e com
maior experiência na área se concentram nas revistas de melhor qualidade. Mesmo
que essa situação seja criticável, ela é real e precisa ser claramente expressa. Assim,
avaliar o perfil do corpo de revisores permite saber, mesmo que indiretamente, a
respeitabilidade que o periódico tem frente a esses profissionais.

Perfil dos editores: Raramente editores inexperientes na ciência conseguirão impor uma
qualidade internacional de alto nível ao periódico. Lembremos que os editores são os
juízes do processo de seleção de artigos. Há casos em que o editor nunca publicou um
artigo sequer no exterior (mas é editor de periódico nacional). Ora, como poderá
estabelecer um perfil internacional para essa revista? É como padre dando conselhos
sobre casamento! Nesse sentido, a qualidade curricular dos editores é importante por
mostrar que têm experiência naquilo de que a revista necessita.

177

Qualidade dos autores: este é outro critério importante de qualidade. Avalie o perfil
curricular dos autores que têm publicado no periódico em análise e poderá perceber
se é uma valorização

178

da pesquisa ou se é o último recurso ao manuscrito. Cientistas competentes escolhem


revistas de boa qualidade. Cientistas incompetentes buscam as de baixo escalão, pois
a chance de ser negado é pequena.

Qualidade do conteúdo dos artigos: esta é uma análise mais difícil de ser feita, mas é
importante. Pode ser feita por amostragem aleatória. Eu costumo dizer que a
qualidade de um periódico não é medida pelos melhores artigos publicados, mas sim
pelo de pior qualidade, pois ele indica o nível mínimo do crivo seletivo que a revista
consegue impingir na análise de manuscritos. Uma simples análise do conteúdo dos
artigos de um único fascículo já é muito reveladora e não é tão dispendiosa. Essa
análise deve ser restrita à lógica do artigo, no sentido de mostrar se as conclusões,
como estão expressas, são válidas ou não.

Citação dos artigos pela comunidade da área: é um critério muito bom (veja base
conceituai em II-7). É bastante objetivo para ser quantificado e reflete a opinião da
comunidade da área do periódico. Ou seja, quem dá a “nota” são os próprios
cientistas daquela área. Porém, algumas ressalvas devem ser feitas antes que usemos
erroneamente este conceito (veja as ressalvas ao fator de impacto em IV-9). No caso
de revistas, nunca compare periódicos de diferentes áreas. Considere também a
classificação das revistas apresentadas em III-5. Neste caso, periódicos internacionais
mais gerais não devem ser comparados com aqueles de uma especialidade.

Idioma do periódico: conforme já discutido em III-9, o idioma científico é francamente


o inglês. Iniciar ou manter uma revista fora desse idioma é contrariar um dos
preceitos básicos da publicação científica: a ampla acessibilidade da informação para
a comunidade de interesse. Como já discutido (veja III-3), não se deve confundir uma
publicação técnica, de interesse e uso não científico, com uma publicação científica.

Fluxo de publicação (periodicidade): um maior fluxo de publicação de uma revista


(semanal, mensal, bimensal, semestral etc.) implica que tenha mais submissões
recebidas. Não é possível manter uma revista de periodicidade mensal com poucos
artigos submetidos por mês. Essa periodicidade, então, reflete, de forma indireta, a
busca que a comunidade científica faz por esse veículo de comunicação, o que pode
indicar sua qualidade. Ressalve que por “comunidade” não estou me referindo à
comunidade local ou regional. Refiro-me à comunidade internacional. Mas veja neste
quesito a restrição colocada no bloco seguinte (Falsos Indicadores de Competência
dos Periódicos).

Qualidade formal dos artigos: além do conteúdo, a revista deve ser formalmente bem
apresentada. Evidentemente, o critério formal é inferior ao de conteúdo, pois de nada
vale uma revista com excelente layout e detalhes técnicos de formatação e
sistematização do texto, se o conteúdo científico é pobre. Mas para o leitor é
importante ler um texto com poucos erros, num visual atrativo e convidativo para a

179

leitura. A sistematização das formas (citações, referências, figuras, tabelas, abstracts


etc.) torna o texto mais fácil de ser entendido.

180

Indexadores: alguns indexadores refletem qualidade científica dos periódicos. O


simples “estar indexada” não significa absolutamente nada. Qualquer revista, por pior
que seja, acaba achando algum indexador. O que garante qualidade é a inclusão nos
indexadores conceituados, como: Web of Science (WoS)115 (do ISI) e Scopus116 (para
me referir aos gerais, sem cunho de especialidade ou área). Porém, como o fator de
impacto é calculado apenas pela WoK, esse indexador é mais procurado pelos
editores e cientistas.

Velocidade de análise e publicação: os autores buscam revistas que dêem visibilidade


aos seus artigos, com credibilidade científica na área, mas que sejam rápidas na
publicação. A primeira parte do atraso ocorre na análise do manuscrito. Revistas de
boa qualidade são interessantes para os revisores e estes geralmente cumprem os
prazos para analisar os manuscritos (normalmente em até um mês). Revistas menos
reconhecidas, ou de pior qualidade, geralmente atraem artigos de pior qualidade, são
evitadas por revisores mais renomados e os editores ficam menos potentes para exigir
dos assessores uma análise mais rápida. Além da análise do manuscrito, revistas de
boa qualidade procuram acelerar o tempo para publicação. Mesmo que a forma
impressa demore mais, as publicações ahead of print já liberam o artigo para a
comunidade científica. Quando o volume de manuscritos aceitos é muito grande, as
boas revistas aumentam a taxa de rejeições; além de conclusões corretas, os
manuscritos devem ter alto grau de novidade.

Versão online: na atualidade, qualquer periódico que não esteja na forma eletrônica já
está defasado. Muitos editores, assustados com a rápida mudança conceituai na
confecção dos periódicos, mantêm a forma dupla: eletrônica e impressa. Este é
apenas um período transitório e, à medida que o meio digital ganha estabilidade de
preservação do material, as formas em papel vão desaparecendo... e nossas árvores
agradecem!

Falsos Indicadores de Competência dos Periódicos

Localização institucional do corpo editorial: A instituição de origem do corpo


editorial pouco importa no processo de avaliação de qualidade do periódico. Um
corpo editorial restrito a uma única instituição, mas cujos membros sejam cientistas
de boa qualidade internacional, poderá ter maior chance de organizar um periódico de
bom nível do que um corpo editorial formado por profissionais medíocres
pertencentes a várias instituições ou países. Será que um corpo editorial de Harvard
ou MIT traria necessariamente prejuízo à revista?

115
Pertence ao ISI, Institute for Scientific Information, e é publicado pela Thomson Scientific. Requer
assinatura. Pode ser acessado de universidades públicas brasileiras. Disponível em
http://www.isiwebofknowledge.com/
116
É publicado pela Elsevier. Requer assinatura. Pode ser acessado de universidades públicas
brasileiras. Disponível em http://www.scopus.com/scopus/home.url

181

Indexadores: exceto os indexadores internacionalmente reconhecidos, como Web of


Science, Scopus, Index Medicus, Biological Abstract etc, os demais nada ajudam na
avaliação de qualidade. Não basta ser um indexador do exterior, é necessário que seja
amplamente aceito e respeitado pela comunidade científica da área em que se insere a
revista. O indexador indica que a revista passou por um crivo de qualidade, mas que
geralmente não está diretamente relacionado com a qualidade do conteúdo dos artigos
que publica.

Número de artigos publicados: embora o número de artigos publicados (fluxo de


artigos) possa indicar que o periódico está sendo prestigiado pela comunidade
científica da área, pode também significar baixo crivo crítico de análise e, portanto,
aceitação fácil de manuscritos. Com certeza um alto fluxo de publicação na Nature e
numa revista regional não expressam a mesma qualidade.

Divulgação da lista de revisores: primeiramente, ressalve que não basta constar quem
são os revisores; é necessário que estejam atuando como revisores. Como referido no
bloco acima, o que importa é a qualidade do corpo de revisores e não a divulgação ou
não de seus nomes. Se isso fosse um critério importante de qualidade, certamente
seria a prática mais usual nas melhores revistas do mundo. Além disso, publicar o
nome dos revisores pode ferir o critério de anonimato, pois dá uma dica aos autores
para saber quem avaliou seu estudo.

Avaliação com anonimato na autoria: algumas revistas colocam em sua prática de


revisão de artigos o envio de manuscrito sem identificação de autoria para os
revisores. Embora isso, à primeira vista, denote seriedade e imparcialidade, na prática
pode refletir outra coisa. Com essa atitude admite-se, a priori, que o revisor possa ser
desonesto e que mudará seu parecer em função do que conhece do autor. Revisor que
pretende ser desonesto na análise do manuscrito achará um jeito de ser. O sistema de
análise por pares (peer review) está passando por contínuas críticas e reestruturação,
pois o problema parece real. A revista Nature tem publicado, desde muitos anos,
vários artigos de excelente qualidade tratando desse problema e muitos artigos e
debates têm tomado conta da Internet e das revistas científicas. Isso mostra que o
tema é atual, importante e polêmico. Mas, certamente não se resolve com o
anonimato da autoria. A tendência mais moderna é ampliar as possibilidades de
crítica ao texto, bem como garantir que texto algum seja perene após a publicação.
Essa visão é extremamente coerente com o conceito de evolução do conhecimento
científico (veja II-11) e, mais uma vez, a prática científica se aproxima das bases
filosóficas da ciência (veja Volpato 2007). Vejam, por exemplo, como as revistas
PLoS têm agido.

Referências

182

Hirsch JE. 2005. An index to quantify an individuais scientific research output. PNAS
102:16569-72.
Kosmulski M. 2010. Hirsch-type index for international recognition. J Informetr 4(3):
351-7.

183

Volpato GL. 2007. Bases teóricas para redação científica. Cultura Acadêmica e Scripta
Editora.
Volpato GL. 2008. Publicação científica. 3ª ed. Cultura Acadêmica.
Volpato GL. 2011. Para entendermos um pouco o drama brasileiro de publicação.pdf
disponível em www.gilsonvolpato.com.br (item Publicação Científica, seção
Artigos). Postado em 02/10/2011.

Literatura Complementar

Alberts B, Hanson B, Kelner KL. 2008. Reviewing Peer Review. Science 321:15.
Benos DJ, Kirk KL, Hall JE. 2003. How to review a paper. Advances in Physiology
Education 27(2): 47-52.
Carraher DW. 1999. Senso crítico. Editora Pioneira.
Epstein I. 2002. Divulgação científica; 96 verbetes. Editora Pontes.
Garfield E. 1955. Citation indexes to science: a new dimension in documentation
through the association of ideas. Science 122:108-11.
Garfield E. 2003. The meaning of the impact factor. International Journal of Health and
Clinical Psychology 43(2): 363-9.
Hook EB. 2007. Prematuridade na descoberta científica; sobre resistência e
negligência. Editora Perspectiva.
Oliveira S. 2010. Geração Y: o nascimento de uma nova versão de líderes. Integrare
Editora.
Packer AL, Meneghini R. 2006. Articles with authors affiliated to Brazilian institutions
published from 1994 to 2003 with 100 or more citations: I – The weight of
international collaboration and the role of the networks. Anais da Academia
Brasileira de Ciências 78(4): 841-53.
Packer AL, Meneghini R. 2006. Articles with authors affiliated to Brazilian institutions
published from 1994 to 2003 with 100 or more citations: II - Identification of
thematic nuclei of excellence in Brazilian science. Anais da Academia Brasileira de
Ciências 78(4): 855-83.
Pinto AC, Andrade JB. 1999. Fator de Impacto de revistas: qual o significado deste
parâmetro? Química Nova 22(3): 448-453.
Rodrigues E. 2008. Histórias impublicáveis sobre trabalhos acadêmicos e seus autores.
Editora Planta.
Russell B. 1979. O impacto da ciência na sociedade. Zahar Editores.
Sokal A, Bricmont J. 1999. Imposturas intelectuais: o abuso da ciência pelos filósofos
pós-modernos. Editora Record.

184

Volpato GL. 2008. Indicadores de qualidade da publicação científica. Tropical Plant


Pathology 33(supl): S42-S44.
Volpato GL. 2008. Publicação cientifica. Editora Cultura Acadêmica.
Volpato GL. 2010. Pérolas da redação científica. Editora Cultura Acadêmica.
Volpato GL. 2011. Para entendermos um pouco o drama brasileiro de publicação.pdf
disponível em www.gilsonvolpato.com.br (item Publicação Científica, seção
Artigos). Postado em 02/10/2011.
Volpato GL. 2011. Método lógico para redação científica. Editora Best Writing.
Volpato GL. 2011. Science, publication and scientific writing. Revista Eletrônica de
Enfermagem 13(3): 375.
Volpato GL. 2012. The power of scientific writing and publication. Brazilian Journal of
Veterinary Pathology 5(1): 1-3.

185

CAPÍTULO V

Criação

V-l Por que a pesquisa precisa de uma boa idéia?

O objetivo do cientista é descobrir coisas novas. Há coisas novas extremamente


interessantes e coisas novas que já são relativamente esperadas. Quando você lê um
texto, qual desses dois tipos de novidade gostaria de encontrar?
Ler um texto envolve gasto de tempo e, às vezes, até gasto financeiro, quando
compramos o artigo (no Brasil, muitos artigos internacionais que lemos são pagos pelo
governo Brasileiro, via Capes). Todo esse esforço para descobrirmos algo que já
prevíamos? Será que esse esforço não mereceria ser recompensando com informação
inusitada, algo que faça brilhar os olhos do leitor?
Novidade de idéias permite novidade de ações. Permite que vislumbremos novos
caminhos, novas alternativas. Uma sociedade se beneficia muito com isso. É evidente
que num dado momento precisamos fazer estudos para corroborar se certas novidades
são realmente válidas ou gerais. Mas, passada essa fase de consolidação (veja Volpato
2010, p. 30), a idéia se torna aceita e confirmações dela se tornam corroborações do
óbvio, algo sem novidade para as mentes desafiadoras dos cientistas inovadores.

186

São essas questões que nos remetem à busca de boas idéias. Nossa comunidade
merece algo interessante! Como conseqüência, o sistema de avaliação científica (veja
III-14 e III-15) premiará o grau de novidade dos artigos à medida que esses têm mais
chance de ser bastante citados e comentados pela comunidade científica.

V-2 O que é uma boa idéia?

Primeiramente, devo esclarecer o que entendo por uma boa idéia. Pelas questões
discutidas em II-8, fica claro que não há pretensão de se referir a boa idéia no sentido de
verdade. No sentido que procuro dar, boa idéia significa uma alternativa que soluciona
eficazmente (da melhor forma disponível) uma questão. Frente a questões sem resposta
conhecida (comum nas fronteiras do conhecimento), geralmente essas idéias quebram
expectativas. Aliás, a quebra de expectativa pode gerar um fato cômico (examine a
estrutura lógica das piadas) ou uma boa idéia.
Quando um biólogo descobre uma nova espécie, sem dúvida trata-se de um feito
prodigioso de sua mente, pois necessitou concluir sobre o fato de ser uma espécie nova.
Porém, alguma sorte o acompanhou nessa jornada, pois necessitou ter encontrado
exemplares adequados. Este é um caso de novidade que requer também a sorte de se
encontrar o fato.
Num aspecto diferente está a descoberta de como colocar um ovo em pé, ou a peça
seguinte na montagem de um quebra cabeça. Os elementos estão ali, mas a alternativa
(como colocá-las) necessita maiores reflexões. Como encontrar a saída? Qual é a boa
idéia?. No final do último século, a diversidade animal era, como atualmente, um fato
notório. Apesar disso, a conclusão sobre o processo gerador de tal diversidade coube a
poucos cientistas, muitos deles personalizados na figura de Charles Darwin com a teoria
da evolução (seleção natural). O que difere essa idéia daquela referida no parágrafo
anterior é que aqui os elementos materiais estão presentes a todos os investigadores, mas
somente alguns conseguem descobrir uma ordenação adequada. Nesse caso não depende
de encontrar um novo elemento do ambiente físico. É óbvio que esse tipo de
conhecimento depende da própria evolução do conhecimento humano (em termos de
informações), mas apenas alguns desenvolveram os elementos cognitivos necessários e
estão historicamente instalados no lugar e momento certos para fazer a síntese adequada.

V-3 Poderia me mostrar exemplos de boa idéia?

Se vasculharmos os corredores da história das descobertas, vemos que muitas delas


partiram de uma boa idéia (veja Beveridge l981, Moore 2008, Asimov 1993). É um
mundo fascinante e deve ser lido por todos os cientistas, independentemente de sua área
de atuação.

187

Vou frisar alguns exemplos que me impressionaram, mas longe de serem os melhores
vasculhados entre os milhares existentes. O primeiro deles é o clips. Trata-se de dobrar
um material rígido em certa forma que se torna um utensílio muito prático e usado. Não
é o material que faz a diferença, mas a sua forma.
Outro exemplo, comentado em diversos cursos, mostra que uma indústria de pastas
de dente estava tentando resolver o problema de alguns tubos de pasta serem embalados
sem possuir pasta eu seu interior. A medida que os direitos dos consumidores passaram
a ser mais respeitados pela legislação, esse problema de distribuição de alguns tubos de
pasta de dente vazios tornou-se uma preocupação real para as empresas. Frente a isso, a
empresa contratou engenheiros que conseguiram construir um equipamento que pesava
os tubos de pasta de dentes enquanto corriam na esteira. Quando o peso era abaixo de
um limite, o sistema parava a esteira e o tubo era retirado por sistema mecânico. Era um
sistema caro, mas valia a pena. Embora os resultados tenham mostrado que o problema
desapareceu, esse sistema não foi implantado pelos operadores que cuidavam dos tubos
de pasta de dentes. Seria mágica? Constatou-se que esses operadores resolveram fazer as
coisas do jeito deles. Colocaram ao lado da esteira um ventilador: cada vez que um tubo
vazio passava, erra arrastado pelo vento e saía da esteira. Uma medida que envolveu ver
o problema de outra ótica... portanto, uma boa idéia.
No caso abaixo, diga que número deve aparecer para completar a seqüência lógica
representada pelos números abaixo:

A solução deste enigma envolve pensar de forma diferente. Isso é necessário para se
ter uma boa idéia. Nem sempre as soluções mais óbvias são as melhores. Se você insistir
em fazer contas com esses números (o que pareceria óbvio uma vez que são números),
nunca encontrará a solução. Deverá pensar no nome dos números. Essa é a mudança de
visão, uma condição necessária para quem pretende pensar diferente, ter uma boa idéia.
Note que todos os números estão em seqüência crescente e todos começam com a letra
d. Qual é o próximo número que começa com d? Ele está bem distante, mas será fácil
encontrá-lo.
Alguns pesquisadores fizeram a seguinte pergunta: será que os elefantes africanos
sabem que eles são eles? Ou seja, têm uma noção do “eu”? Aparentemente uma
pergunta para quem não tem o que fazer! Mas não é bem assim. Da literatura científica
sabe-se que a capacidade de autor-reconhecimento, e de identificar o “outro”, é uma
característica associada à existência de um alto grau de sociabilização e da exibição de
comportamentos de ajuda. Conhecer tal característica num grupo de animais nos dá
referenciais importantes para nos guiar no tratamento desses animais. Essa

188

189

habilidade de “saber que ele é ele” é demonstrada em primatas e numa espécie de


golfinho, além de nos seres humanos. Caso exista nos elefantes, amplia-se o número de
grupos taxonômicos com tal propriedade.
Como fizeram isso? Simples, estudaram a reação de elefantes frente ao espelho (veja
Plotnik et al. 2006). No meu caso, que trabalho com peixes, quando coloco espelho, eles
ficam brigando com a imagem refletida e não param. Mas o elefante reagiu diferente.
Mais ainda, os pesquisadores pintaram, num dos lados da cabeça do elefante, um X
branco. Quando o elefante se deparou frente ao espelho, usou a tromba para raspar essa
marca, ou seja, da imagem dirigiu-se ao próprio corpo. O estudo teve os devidos
controles (sobre a tinta da marca e a presença de objeto estranho, que era o espelho), de
forma que a conclusão ficou forte e o estudo, mesmo investigando apenas 3 animais e
com resposta em apenas 1 deles, foi publicado numa excelente revista (PNAS). Um
estudo simples, com uma demonstração interessante.
Vejamos ainda outros casos interessantes e simples, que decorrem de uma boa idéia:

a. o famoso ovo de Colombo: para se colocar um ovo em pé foi necessário apenas


quebrar um pouco o lado colocado como base.
b. tubo de pasta de dentes: pode-se aumentar o lucro de uma fábrica de pastas de
dentes se o diâmetro do bico de saída do tubo de pasta for aumentado. Por quê?
Porque os consumidores avaliam a quantidade de pasta pela extensão de pasta
colocada na escova, e não pelo volume da quantidade depositada!
c. uso do PowerPoint para apresentações orais: o sistema mais tradicional é que as
pessoas façam um único arquivo onde há um conjunto de slides ordenados
seqüencialmente um após o outro. Com isso ministra-se uma aula com a exposição de
cada um dos slides auxiliando a fala do expositor. Comum e muito usado... por que
questionar? Veja que há problemas aí. Ao controlar o tempo você pode perceber que
deverá correr com a apresentação para não se atrasar (principalmente em aulas de
concursos ou eventos com horários programados). Isso leva as pessoas a passar vários
slides, não dando sequer tempo para o público “digerir”. Fica patente a falta de
preparo do apresentador. Embora a solução também signifique falta de preparo, ao
menos o público não percebe e desvia a atenção do foco da apresentação. Trata-se de
criar links invisíveis nos slides, de forma que, ao serem clicados, pula-se um grupo de
slides da apresentação. Com isso pode-se passar de um tópico ao outro sem que se
perceba uma descontinuidade. Veja mais em XI-5.
d) Restaurante de comida por quilo: veja qual é a grande idéia. Reduz muito o serviço
de garçons, pois o cliente faz uma parte desse serviço. Geralmente você procura o
restaurante quando está com fome... a disponibilidade da comida facilita que você
pegue mais do que normalmente pegaria. Essa facilidade é o mesmo recurso que os
supermercados usam para aumentar as vendas em relação às mercearias, que
antigamente vendiam no balcão (o cliente pedia o que queria para o vendedor). Esse
mesmo recurso é usado em qualquer

190

sistema que coloque os itens à venda para sua livre escolha (lojas online, lojas de
roupas etc). A distribuição dos alimentos facilita que você pegue itens e, mais ao
final, descubra itens apetitosos que terão que ser somados aos já existentes no prato.
Enfim, a fórmula é simples: dê chance de escolha para o cliente no momento em que
ele estiver motivado a comer... e ele comerá em excesso. Além disso, o ambiente já
conta com sua alimentação rápida, para receber novos clientes. Do ponto de vista de
estrutura de idéia, ela é boa; mas não significa que precisemos concordar. Compare-a
com as vendas em restaurantes à la carte, assim como comparei as mercearias aos
supermercados.

V-4 Sou um excelente aluno... serei um cientista criativo?

Esta questão depende de sabermos o que é “excelente aluno”. Se referir-se aos


conceitos expressos em XII-5, certamente terá grandes chances de ser um cientista
criativo. Porém, se essa qualidade está embasada nos erros apresentados no capítulo I,
muito possivelmente não será um cientista, quanto mais um cientista criativo.
Se o sistema de ensino não valoriza atividades criativas, mas primordialmente
memorização, bom desempenho nesse sistema significa apenas melhor capacidade de
memorização. Ter boa memória é importante, mas não é o distintivo. Um cientista
criativo deve conseguir olhar os problemas de diversos ângulos, e isso deve ser treinado
na escola; deve não ter medo de errar, buscar novas opções e ser ousado, entre outras
qualificações. Atente ao quanto o processo de ensino-aprendizagem em que você está
envolvido favorece esses quesitos. A partir daí saberá o quanto uma boa nota poderá lhe
indicar o caminho para ser um cientista criativo.
Numa análise rápida sobre o sistema universitário brasileiro, me parece que o
caminho das boas notas não leva, inevitavelmente, à formação de bons cientistas, quanto
mais cientistas de excelência. A pós-graduação tampouco tem ajudado nisso (veja a
criatividade das teses defendidas!). O que me parece é que a diferença está no
orientador. Os afortunados que ficam nas mãos dos excelentes cientistas orientadores
têm maior chance de se tornar cientistas criativos. Mas só isso também não basta (veja
V-8 e XII-7).
A alternativa é o aluno conhecer as capacidades necessárias para se tornar um
cientista de alto nível e lutar, por conta própria, para ter esse perfil. Nessa busca deve
usar o que tem de bom à sua volta, mesmo reconhecendo que algumas características
terá que aprender e desenvolver em outro ambiente.
Essa análise nos mostra um quadro simples: se nota não garante os melhores
cientistas, por que é usada para seleção de bolsistas por algumas agências de fomento? É
evidente que algum mérito há em se tirar boas notas... ao menos o indivíduo consegue
romper com maestria as barreiras impostas; mas é fundamental que características
promissoras para se tornar um excelente cientista sejam também avaliadas.

191

No caso das empresas, elas fazem testes dos mais variados para selecionar pessoas
mais adequadas para o perfil desejado. Ou seja, meios de seleção das habilidades
necessárias a um cientista existem. Faltam meios e, talvez, vontade de usá-las.
A opção por formar uma quantidade imensa de pesquisadores na expectativa de que
alguns sejam de excelência é perversa demais com aqueles que têm o sonho alimentado,
mas não conseguem os postos desejados. Como sistema oficial de formação de
cientistas, a escola (de pré-universidade até a pós-graduação) deveria ter essa função
como seu mais alto requisito para os casos que se apliquem à ciência. Infelizmente, essa
meta é ainda incipiente no Brasil.

V-5 Por que é difícil ter uma “boa idéia”?

Não existe fórmula para se ter uma boa idéia, mas conhecer os obstáculos para se ter
uma boa idéia pode ajudar muito. Donald R. Keough foi presidente da Coca-Cola e, na
ocasião, ao ser convidado para ministrar uma palestra sobre como ser bem sucedido nos
negócios, respondeu que não saberia; mas poderia falar sobre como fracassar nos
negócios (Keough 2010).
Para uma mente inteligente e motivada, conhecer os caminhos do fracasso auxilia
muito. Se é impossível ditarmos os passos para se tornar um cientista, podemos dizer
com mais facilidade o que tira o indivíduo desse caminho. Lógico que é sempre uma
questão complexa e que não poderá ser reduzida a uma fórmula, mas quanto mais
informações tivermos sobre o que atrapalha, melhor.
Barber (1961) já expunha motivos que levam os cientistas a negar idéias
interessantes. Ele mostra motivos da resistência dos cientistas a novas idéias. Esse autor
cita Beveridge (1959), que assinala que “there is in ali ofus a psychological tendency to
resist new ideas”. Ele também chama a atenção para o fato de Francis Bacon (veja Parte
1) sugerir que várias idéias preconcebidas afetam nosso pensamento, particularmente em
relação à inovação.
Em 2007, eu resumi alguns fatores enganosos que levam os cientistas a descartar
algumas idéias. São elas: crença no apoio estatístico e matemático (o que não tem esse
apoio é descartado), crença nas técnicas sofisticadas (só é bom o que requer metodologia
complexa e geralmente cara), crença na produção tecnológica (estudos que geram
tecnologia ou que têm aplicação prática em curto prazo são melhores), crença nos
especialistas (só eles sabem o que é bom e novo), crença na estabilidade do
conhecimento (o que está bem estabelecido não deve ser questionado), crença nas
eternas impossibilidades (tudo é difícil de ser tentado... então é melhor fazer o trivial) e
o papel da revisão da literatura (veja V-14).
Ao longo deste capítulo pretendo dar uma visão mais abrangente sobre o que nos
atrapalha. Por ora é importante ficar atento às armadilhas que nos rodeiam, muitas delas
vindas de crenças infundadas adquiridas ao longo de nossa formação. Tudo o que o
impeça de pensar de forma livre e independente, bem como arriscar no inusitado, o
afastará da chance de criar algo novo. E pesquisa sem novidade não interessa.

192

Você não precisa fazer uma pesquisa com novidade para a Nature ou Science a cada
projeto. Mas deve procurar inovar em cada projeto. Ele tem que ter algo diferente, que
mostre à sua comunidade científica que você pensou de forma muito diferente dos seus
pares. Falta de percepção disso dentro de sua própria área é um problema comum que
prejudica nossos cientistas.
Portanto, uma sugestão: leia um pouco de tudo, mas leia! Não tenha medo de pensar
maluquices, mas não se convença delas apenas por serem maluquices. Estou falando do
contexto da descoberta (veja X-2), um ambiente para surgirem idéias promissoras para
serem testadas.

V-6 É importante conhecermos outras áreas, ou devemos nos especializar cada vez
mais?

Sim, é fundamental conhecer outras áreas. No desenvolvimento do conhecimento, as


analogias entre os processos de campos nitidamente diferentes ajudam muito. Por
exemplo, a mesma estrutura básica da teoria da evolução das espécies (mutação →
diversidade → seleção → evolução biológica) ocorre numa das linhas da teoria do
conhecimento, a epistemologia evolucionária: criatividade → hipóteses (diversidade de
alternativas) → testes → evolução do conhecimento. Os mecanismos de feedback estão
presentes em muitos sistemas biológicos, mecânicos e eletrônicos. Muitos estudiosos do
comportamento animal procuram utilizar teorias econômicas (por ex., otimização) ou
esquemas computacionais para propor mecanismos comportamentais. Sistemas de
contracorrente sangüínea em organismos vivos serviram de insight para sistemas
mecânicos de aquecimento de recintos ou resfriamento de sistemas. No campo do
design, muitos profissionais observam as formas e o funcionamento de sistemas
biológicos para idealizar produtos tecnológicos (por ex., há abridores de lata em forma
de bico de aves, retrovisores de ônibus baseados em animais).
Na busca de novas alternativas, a mente humana não pode se privar dessas analogias.
Assim, embora o conhecimento específico seja importante, ele priva os cientistas de ver
outros ângulos nos problemas que investigam. A necessidade de leitura e conhecimento
em áreas correlatas, ou mesmo completamente diferente da sua especialidade, é real para
o cientista e não um capricho para denominá-lo culto.
Nesse sentido, a atual tendência de conceder estágios precocemente aos alunos de
graduação, engajando-os em projetos de pesquisa bem estruturados já no primeiro ou
segundo ano de seu curso, pode não ser de todo benéfica. Entram cedo na especialidade,
lendo textos específicos e discutindo uma pesquisa pontual. Isso, associado à formação
específica que recebem no ensino formal da graduação, leva-os a ter cada vez menos
tempo para leituras em outras áreas. Esse estreitamento de visão certamente não é bom
para a formação desses profissionais, que posteriormente serão colocados em postos que
exigem decisões globais e de amplo alcance. Mentes bitoladas com poderes de decisão
sobre questões amplas certamente são um desastre para a nossa sociedade.
Especialização precoce é mais complicada do que parece!

193

O cientista precisa ver problemas antigos com novos olhos. Nessa leitura tudo é
válido. Buscar referenciais em outras áreas é muito importante. Na área biológica, é
comum as pessoas se basearem em fenômenos num grupo taxonômico (por ex.,
humanos) para investigarem em outros animais. Analogias

194

entre fenômenos físicos e biológicos, ou psicológicos, são sempre bem-vindas. A


conclusão não se sustentará pela analogia, mas pelos testes efetivos da idéia no estudo.
Mas a analogia permite ao cientista pensar novas possibilidades.

V-7 Como escolher a melhor idéia?

As idéias interessantes resultam geralmente de formas simples, mas extremamente


diferentes de se olhar as mesmas coisas. É por isso que tudo o que nos impede de ver
problemas antigos com olhos diferentes é barreira à criatividade (veja V-5). Porém, o
critério da simplicidade não é inequívoco para se concluir sobre a qualidade de uma
idéia; há um número enorme de soluções simples e completamente equivocadas, bem
como soluções complexas, mas geniais!
Raramente lidamos com idéias que mudam uma grande área dentro da ciência. Em
nosso cotidiano, temos que escolher ou priorizar objetivos de pesquisa nem sempre tão
revolucionários e amplos. Assim, é importante avaliar o impacto que cada idéia poderá
ter na estrutura atual do conhecimento científico. Esse é um dos objetivos da própria
ciência: basear-se em evidências empíricas para construir enunciados gerais que
expliquem os acontecimentos do mundo natural. Outro se refere à maneira como esse
conhecimento é construído: inova-se mais quando se derruba conhecimento estabelecido
do que quando se confirma tal conhecimento. Esses dois objetivos nos norteiam na
escolha da melhor idéia.
Uma idéia pode ser priorizada pela sua maior possibilidade de causar polêmica na
discussão científica. Esse critério de ordem revolucionária baseia-se na premissa de que
a polêmica gera discussão, e dela surgem novas possibilidades. É o rompimento com o
estabelecido que nos impulsiona na aventura de buscar novas soluções. A comunidade
científica busca desafios ao estabelecido, embora os cientistas geralmente sejam avessos
a receber críticas. Cabe ao cientista identificar o potencial de cada idéia (contida nos
objetivos) em trazer informações novas, evitando-se comprovações do óbvio.
Por exemplo, veja a seguinte idéia: traumas na infância afetam o comportamento do
indivíduo na fase adulta. É uma conclusão bastante geral e relativamente bem aceita nos
dias de hoje. Portanto, um estudo no qual se demonstre que determinado padrão de
comportamento adulto está associado à existência de certos traumas na infância não nos
diz algo realmente novo. Apenas confirma uma idéia geral esperada. Lembre-se, a
confirmação de uma idéia já corroborada não a torna mais verdadeira (veja II-8)! É
verdade que houve um acréscimo (sabe-se agora desse efeito também num certo
processo antes não investigado), mas nada de excepcional, apenas dentro do esperado
(veja I-7).
Há muitas pesquisas de pós-graduação exatamente com esse perfil. Fazem descrições
de fenômenos particulares para demonstrar conceitos mais universais já estabelecidos. O
problema não está na lógica desse método, mas no fato de ser usado para reforçar o que
já se espera. Nesse sentido, haveria novidade se o resultado corroborasse o inesperado
(contrariasse o esperado). Mas muitos pesquisadores costumam alegar que, nesse caso, o

195

estudo deu errado, porque não correspondeu ao esperado. Ora, se é assim, por que fazer
um estudo?

196

Frente a diferentes projetos para escolha, tente enxergar em cada um qual é a


novidade que pode trazer. Mas veja “novidade” como algo que mostre um olhar de outro
ângulo ou que descubra um fenômeno ou fato ainda não visto.
É também muito importante você não confundir “qualidade do projeto” com
“complexidade do projeto”. Há uma cultura de achar que no doutorado o projeto deva
ser mais complexo que no mestrado, e este mais complexo que iniciação científica. E o
pior é que as pessoas muitas vezes consideram “complexidade” em termos
metodológicos. Substitua “complexidade” por “grau de inovação (teórica ou aplicada)” e
terá vantagens.
Outro fantasma na escolha de projetos é imaginar que a busca de conhecimentos mais
profundos seja o mesmo que abordar os fenômenos cada vez mais pela ótica molecular.
O que significa isso? Que você vá cada vez mais ao interior dos fenômenos para
compreendê-los melhor. Na área biológica, se determinou que a cor do ambiente afeta a
saúde dos animais, no passo seguinte deverá saber como isso ocorre (o mecanismo –
veja VII-10). Se mostrar que a cor afeta a liberação de certos hormônios, então no
seguimento tentará achar como essa cor afeta os hormônios, posteriormente buscando
entender como isso ocorre no nível molecular etc. Não há nada muito errado com isso,
pois é uma forma de consolidar o conhecimento. O erro é imaginar que esse é o caminho
natural. Podemos muito eficientemente buscar outras perguntas, como tentar saber quais
são os organismos cuja saúde é afetada pela cor ambiente. Podemos então procurar
entender se há um padrão de cores específico para cada conjunto de organismos.
Podemos buscar saber se esse padrão, caso exista, está associado a algum elemento de
sobrevivência dos indivíduos na natureza. O que quero mostrar é que nem sempre
precisamos seguir para o nível mais “molecular” do problema para fazermos uma
ciência de alto nível.
Outro exemplo poderia ser os caminhos derivados após constatarmos que numa certa
sociedade a corrupção humana não está associada ao nível socioeconômico das pessoas.
Derivamos daí dois caminhos: a) entender os mecanismos que garantem essa falta de
associação (por que tanto pobres quanto ricos podem ser corruptos?) ou b) entender
como essa relação ocorre em outras culturas, estudando-a em si, mesmo sem saber suas
razões, para buscar a descrição de um fenômeno social mais geral.
A busca por tecnologias metodológicas complexas também pode dar a falsa
impressão de projetos sofisticados. O exemplo citado na questão V-3 sobre os elefantes
africanos, publicado na PNAS (FI2011 = 9,681), tinha como equipamento necessário um
espelho. As filmagens realizadas nesse estudo foram uma sofisticação, porque os dados
coletados podiam ter sido obtidos por observação direta e registro em caderno de notas.
Lembre-se que um equipamento caro na mão de pessoas com cabeça fraca é prejuízo.
Porém, equipamentos modestos com cérebros brilhantes fazem toda a diferença. Em
outro exemplo, note quão simples tecnicamente são alguns estudos na área de Humanas,
nos quais a ferramenta é um questionário; mas as conclusões podem ser de altíssima
qualidade.
É evidente que a área de atuação condiciona a necessidade técnica em muitos casos.
Mas dentro de cada área há níveis de sofisticação. O que quero mostrar é que a

197

qualidade da pesquisa não é necessariamente função direta da sofisticação técnica numa


mesma especialidade. O cérebro humano ainda não está obsoleto.

198

V-8 Como o espírito empreendedor nos auxilia ter boas idéias?

O cientista deve ser uma pessoa empreendedora. Ele está construindo conhecimento e
essa construção passa por muitos dos problemas envolvidos no empresariado, cuja
necessidade de empreendedorismo não é novidade. Abaixo listo 10 características de um
empreendedor, inspiradas em curso do Sebrae117, mostrando como se aplicam ao
cientista.

a) Espírito criativo e pesquisador: sem idéia nova não se faz ciência, pois esta
objetiva construir conhecimento novo. Ser pesquisador significa, neste contexto,
ser ativo na busca por novas soluções, teóricas ou práticas. A novidade de um
artigo científico é a primeira característica observada por editores de periódicos
internacionais de bom nível. É a partir dessa idéia que decorre o planejamento do
estudo, direcionando a obtenção de evidências (resultados) para a argumentação
em defesa das conclusões.

b) Iniciativa: o empreendedor não espera as coisas acontecerem; ele as promove.


Boas idéias muitos têm... a diferença está naqueles que fazem as idéias se tornar
realidade. Ou seja, criar projetos não é tão difícil, mas realizá-los e consumá-los
com a publicação requer iniciativa. Mais ainda, ele não fica preso no passado,
olhando para trás. Toma decisões e segue em frente.

c) Corre riscos calculados: o empreendedor avalia as possibilidades de insucesso e


toma decisão para reduzir riscos e “controlar” resultados. Isso não significa
manipular dados, mas planejar (criação do objetivo e da metodologia) de tal
forma que os resultados atinjam o objetivo118 do projeto. Assim, invista nos
projetos que parecem mais significativos para a ciência.

d) Exigência de qualidade e eficiência: qualidade é não fazer pela metade, não fazer
de qualquer jeito, não dar um “jeitinho”. Eficiência é fazer bem, com pouco (veja
IV-10). O cientista empreendedor é ousado, não se contenta com qualquer
coisa... visa à excelência. Um cientista que não seja assim estará sempre
produzindo conhecimentos obsoletos, idéias sem novidades.

117
Sebrae = Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas.
118
Todo projeto deve atingir o objetivo. E o objetivo de qualquer projeto científico é basicamente:
descrever algo ou testar alguma hipótese. Portanto, o projeto deve permitir que algo seja descrito (mas não
saberemos inicialmente qual será a descrição) e/ou que a relação entre duas ou mais variáveis (hipótese)
seja testada (se a hipótese será corroborada ou falseada é outra questão). É nesse sentido que todo projeto
deve alcançar seu objetivo e é por isso que se podem direcionar verbas gigantescas apenas a partir de
análise do projeto e da experiência do proponente.

199

e) Paixão pelo que faz: seja qual for sua atividade, faça com paixão. Os
empreendedores são apaixonados pelas atividades que realizam; por isso se
envolvem nelas. E isso os faz fazer melhor. É esse envolvimento que faz com
que seu subconsciente continue atento às problemáticas, mesmo quando realizam
outras atividades, o que lhes aumenta a chance de conseguir novas conexões,
novas idéias.

f) Foco: exatamente por saber onde quer chegar, ele se concentra em seu foco (às
vezes obstinado) e, como conseqüência, tem mais chance de atingir os objetivos.
Assim, consegue distinguir mais facilmente quais as atividades importantes em
sua vida, levando-o a ter mais foco em tudo o que faz.

g) Persistência: nem tudo dá certo na primeira vez. Muitas vezes as idéias


inovadoras não podem ser testadas com os conhecimentos que ela ultrapassa...
faltam os conhecimentos de que ela necessita. Por isso algumas coisas podem dar
errado. O empreendedor insiste na boa idéia... e acerta (o não empreendedor
poderá abandonar rapidamente uma idéia boa).

h) Aprendizado constante: não tem medo de errar e sabe tirar proveito de erros.

i) Imagina-se vencedor: é ousado e busca a excelência. Não entra no processo para


ser o segundo ou o terceiro. Ele quer ser o melhor; quer vencer. Isso o transforma
num profissional importante para a área e para o grupo. Deve saber se contentar
com o que consegue, principalmente porque sabe aprender com os erros (item h)
e dimensionar seus riscos, mas é ambicioso para fazer o melhor. Isso o aprimora
constantemente.

j) Autoconfiança: ele tem convicção de que vencerá, que conseguirá. Entra nas
empreitadas com a confiança de que saberá fazer o necessário e suficiente. Seus
sucessos contribuem para aumentar essa confiança; mas suas derrotas também,
porque ele sabe aprender com os erros (item h) e se imagina vencedor (item i).

k) Visão de vários cenários: por ser amante do conhecimento, consegue perceber


para onde a dança das coisas caminha. Traça projeções e consegue ter várias
soluções para cada problema. Não olha os problemas apenas por um ângulo...
sabe enxergar a mesma coisa por diferentes referenciais.

l) É proativo: age para modificar a realidade, sem reclamar dos problemas e não se
acha vítima da vida. Sabe que seu desempenho futuro depende de sua ação e não
fica parado. Se o presente deve ser mudado, ele o mudará para aquilo que
considera melhor.

200

V-9 Como o debate entre Thomas Kuhn e Karl Popper nos auxilia a ter boas
idéias?

Como cientistas, mas não filósofos, somos usuários da filosofia. Parecemos parasitas,
mas parte da filosofia se presta para que outros usem seus ensinamentos. Assim, usarei
conhecimentos referentes a paradigmas, com as devidas proporções. Entendo que
Thomas Kuhn tenha se referido a um panorama muito geral para os paradigmas, mas sua
estrutura básica é simples e pode nos ajudar a entender melhor nosso dia a dia na prática
da ciência.
Basicamente, Kuhn nos diz que temos idéias gerais que norteiam nosso mundo
interpretativo do universo (veja II-11). Mais ainda, que a substituição de nossas teorias
prediletas está mais ligada a mudanças nessas “idéias gerais” do que a testes das teorias.
Ou seja, essas “idéias”, que são os paradigmas, mudam e, com elas, mudam também as
teorias que aceitávamos e novas teorias passam a ser aceitas.
Esse ambiente psicológico e sociológico é um pano de fundo importante na
construção do conhecimento. Na ciência empírica, esses elementos tendenciosos
persistem por mais que se queira eliminá-los. O julgar humano é permeado por
concepções. No caso, nossas idéias guiam como interpretamos outras idéias e fatos.
Karl Popper, por outro lado, defende que os dados obtidos têm grande participação na
substituição de teorias. Essa é uma das dicotomias principais entre Kuhn e Popper sobre
a forma como as teorias são substituídas na ciência. Um reforça o “clima” de idéias e
conhecimentos, enquanto o outro reforça a base empírica. Seja como for, só vejo as duas
posturas como mutuamente excludentes caso busquemos reduzir o universo da
concorrência entre teorias a uma única explicação. É bem plausível que as duas coisas
ocorram. Os cientistas são alimentados pelos dados, mas também guiados pelas
transformações paradigmáticas da época. O que ofereço abaixo é a incorporação dessas
duas idéias para o cotidiano do cientista.
Basta substituirmos o termo paradigma por teoria ou qualquer outro conhecimento
aceito pelo cientista de forma “paradigmática”; ou seja, de forma a ser concebido como
uma “verdade” que não se questiona no momento. Veja, em sua especialidade, quais são
os conhecimentos que você trata dessa forma. O passo seguinte consiste em ter a
coragem de desafiar esses “conhecimentos estáveis”. Imagine: isto não poderia estar
errado? Permita-se criticar o que parece estável. E se estiver errado, o que deve mudar?
E como reconstruir as explicações sob uma nova ótica?
Mesmo que temporariamente e para exercício de pensamento, quando você assume
que certo conhecimento pode estar errado, buscará outra forma de considerar as coisas.
Outra explicação poderá significar um jeito novo de ver coisas antigas.
Mas lembre-se que você não precisa ser o criador de uma nova idéia. Poderá fazer
ciência revolucionária (nos termos adaptados de Kuhn) apostando numa idéia nova, já
proposta, mas que a comunidade científica não está valorizando devidamente.

201

É evidente que questionar o que está estável pode lhe trazer apenas dores de cabeça.
Não ha certeza do sucesso da nova idéia, enquanto a comunidade investe na idéia já
aceita. Você será a ovelha desgarrada. Mas o simples fato de questionar algo estável não
garante que esteja no caminho certo. Poderá estar exatamente apostando no lado errado.
O que lhe dará a convicção de que deve continuar é a sua intuição (veja V-7 e V-10).
Uma vez que se convença de que a nova idéia é promissora, entra em cenário Karl
Popper. Seja crítico e busque derrubar essa idéia. Mas cuidado, pois poderá usar
conceitos da idéia antiga para testar a nova idéia, o que podem ser condições
mutuamente exclusivas. Ou seja, para a nova proposta talvez você precise de novas
abordagens, novos testes, novas ferramentas. Mas em alguns casos não.
O importante é certificar-se de que está entrando precocemente no novo “paradigma”.
Não está apenas reforçando algo amplamente aceito em sua comunidade. A idéia
original pode não ser sua, mas você poderá ser um promotor dessa idéia. Seja como for,
pensando algo realmente novo, ou apostando no “novo ignorado”, seja pioneiro.

V-10 De quantos dados e informações precisamos para apostar numa idéia?

Muito menos do que uma visão técnica pressupõe. Quando você aposta numa idéia, é
porque conseguiu visualizar um panorama cuja projeção o leva a acreditar que essa idéia
funciona. Para escolher um projeto de pesquisa que o guiará durante certo tempo de suas
atividades, você precisa fazer essa projeção e saber o quão inovador ele pode ser. É
evidente que coisas inovadoras geralmente têm poucas evidências, pois elas estão aí para
serem construídas.
Se a idéia é realmente nova, você sentirá que ela é boa apenas a partir de resquícios
de informações que pareçam conduzir à adequação dessa idéia. Vejamos uma
possibilidade119. Trata-se de estudo feito com lebistes (um peixe bem pequeno e comum
em muitos aquários ornamentais).
Os autores desse estudo testaram se os lebistes machos, que se acasalam
freqüentemente, preferem se acasalar com fêmeas com as quais já copularam
(familiares) ou se preferem aquelas com as quais nunca copularam (não familiares).
Viram a preferência medindo o tempo que os machos despendem cortejando as fêmeas.
Observaram que os machos que vivem em rios largos e grandes não distinguem esses
dois perfis de fêmeas e se acasalam com ambos, indistintamente. Porém, os machos que
vivem em rios estreitos ou em poças temporárias de pequenos volumes diferenciam
essas fêmeas e preferem copular com aquelas que não haviam copulado antes. No artigo,
os autores concluem que essa capacidade do macho de distinguir as fêmeas e a opção
que fazem para cópula é um comportamento que aumenta o fluxo gênico na população.

119
Baseado em Kelley et al (1999).

202

Note que eles observam tempo de cortejamento e concluem sobre fluxo gênico.
Aparentemente, um grande salto que alguns autores resistem em aceitar. Mas notem que
esse estudo está publicado na revista Nature, o que lhe dá certa credibilidade. O que
validaria esse salto, do cortejamento ao fluxo gênico?
Considerando a teoria da seleção natural120, proles com maior variabilidade genética
têm maiores chances de enfrentar um ambiente instável (mesmo que algumas formas
pereçam, haverá outras variantes que podem sobreviver). Se toda a prole for muito
homogênea, uma variação ambiental brusca pode extinguir essa prole. O mesmo vale
para uma população121, formada de várias proles, ou uma espécie, com várias
populações. Assim, há vantagens adaptativas em se ter variabilidade genética. É fácil
perceber que quando o macho acasala com várias fêmeas, a variabilidade genética do
conjunto de sua prole é maior.
Outro ponto importante é que no rio grande a probabilidade de o macho encontrar a
mesma fêmea é baixa. No rio estreito, ou nas poças pequenas, essa chance é grande, isto
é, considerando que certa fêmea já foi escolhida uma vez, terá chance maior de ser
escolhida novamente.
Veja que todo o raciocínio acima não usou muitos dados, mas se baseou em idéias
bem estabelecidas (seleção natural, probabilidade) para apostar numa conseqüência
altamente esperada. Lógico que isso requer que alguém faça as medições necessárias
para certificar que o fluxo gênico aumenta nas populações de lebistes em que os machos
escolhem fêmeas não familiares para se acasalar. Mas note que nossa expectativa de que
isso não ocorra é mínima e, nesse caso, apostamos que será assim. Como os
fundamentos são fortes, um público maior aceita essa argumentação e, por isso, foi
publicado.
Com isso quero mostrar que a coerência explicativa (para concluir algo ou para
apostar numa nova idéia) é o que dá sustentação para o cientista apostar numa idéia com
menos dados. No caso de um projeto novo (e não conclusão de um estudo), a aposta vem
exatamente de se considerar que informações convergem para mostrar que esse projeto é
promissor. Não há fórmulas para encontrar a boa idéia, mas há coisas que atrapalham. A
crença de que precisamos de muitos dados para elaborar uma conclusão certamente é
uma delas. Mas a falta de dados pode levá-lo ao desastre total. Sua intuição falará mais
forte. Ela vem de várias informações que você possui, consciente ou inconscientemente.
Trata-se de uma operação cerebral que sua lógica consciente não identifica... você sente.

120
Grosseiramente, várias formas sofrem uma pressão seletiva, à qual apenas algumas sobrevivem. É
um processo de triagem, em que a pressão seletiva é o agente que limita a sobrevivência de uns. Essa
seleção ocorre naturalmente na vida dos organismos vivos. Exemplos de pressão seletiva: elevação
térmica brusca, déficit de oxigênio num ambiente, chegada de alguns predadores, falta de alimento,
poluição etc.
121
População, neste caso, é o conjunto de indivíduos de mesma espécie e que vivem num ambiente que
lhes propicia reproduzirem-se entre si.

203

V-11 Não há literatura sobre a pesquisa que idealizei... devo abandoná-la?

Caso abandone uma pesquisa com essa justificativa, terá que admitir que qualquer
primeiro estudo nasce por geração espontânea. É evidente que alguém tem que fazer o
primeiro. Portanto, não tenha medo de fazer algo que ninguém fez e com literatura
escassa.
Se não encontra na literatura informações metodológicas para realizar o estudo,
possivelmente terá que criá-las. Se não possui dados para comparar e validar seu estudo,
certamente terá que reforçar suas técnicas e dizer que os resultados e conclusões são os
que você obteve (esse é o primeiro). A comunidade científica se encarregará de fazer
pesquisas similares que reforçarão ou negarão o seu estudo.
Há orientadores que chegam a desaconselhar alunos a investigarem determinado
assunto porque não há literatura. É um conselho equivocado. O que determinará se você
deve ou não fazer essa pesquisa é o quanto ela lhe parece necessária e suas condições de
realizá-la com nível de qualidade satisfatório. Todo fim teve um começo!

V-12 Uma boa idéia garante uma pesquisa bem sucedida?

Quando eu me refiro à qualidade necessária para uma pesquisa adentrar as


publicações internacionais de bom nível, sempre enfatizo quatro pontos: a) novidade das
conclusões, b) metodologia robusta, c) resultados evidentes e d) apresentação impecável.
Defendo que o terceiro requisito (resultados evidentes) é uma conseqüência da
adequação dos dois primeiros: se a idéia é boa (por ex., hipótese correta) e a
metodologia é correta, os resultados só podem ser evidentes (não ficam “batendo na
trave”). Assim, uma boa idéia requer uma metodologia impecável.
Às vezes pode ocorrer de você ter uma idéia interessante, mas não possuir ainda
procedimentos técnicos que permitam testá-la adequadamente. Assim, os resultados
obtidos podem ser até contra a idéia do trabalho. Como saber?
Infelizmente não há uma forma de saber isso. O que ocorre, na maioria dos casos, é
que ou as pessoas abandonam boas idéias baseadas em testes insuficientes; ou se
mantêm obstinadas na idéia e buscam novas alternativas de teste. No segundo caso,
aumenta-se a chance de sucesso, caso a idéia esteja correta; no primeiro, ganha-se tempo
ou perde-se a chance de reconhecer uma boa idéia.

204

V-13 Uma boa idéia garante o financiamento do projeto?

Como comentado acima (V-12), a idéia do projeto tem que se apoiar em metodologia
robusta. Portanto, de nada vale uma idéia interessante com um fraco procedimento de
investigação. Acreditando que tem uma boa idéia no projeto, invista pesadamente na
metodologia, que não significa ser cara ou complexa; significa que seja eficiente e
suficiente para a idéia proposta (veja VII-5).

V-14 Qual o papel da revisão da literatura?

A revisão bibliográfica ou da literatura é a atividade de busca dos trabalhos


publicados sobre determinado tema. Na pesquisa científica, há três funções essenciais
para a revisão da literatura:

1. coletar informações para o cabedal de conhecimentos do cientista, que possam


ajudar na construção de novas idéias, projetos ou conclusões;

2. testar o grau de originalidade da pesquisa proposta, ou seja, verificar se o


pesquisador não está reinventando a roda ou demonstrando o óbvio;

3. construir conhecimento original. Nesse caso, o cientista usa a revisão como


procedimento de coleta de dados; ou seja, utiliza os dados publicados em outros
trabalhos, associando-os para apresentar uma visão nova sobre determinado
assunto. Assim, os artigos de revisão da literatura não são meras compilações ou
resumos dos trabalhos publicados pelos autores. Eles representam contribuição
nova ao conhecimento e, geralmente, dedicam-se a solucionar problemas gerais
dentro de cada área, apresentando conclusões originais122.

V-15. Onde fazer a revisão bibliográfica?

Geralmente é feita consultando-se os índices, que são obras que listam publicações
científicas, incluindo referências completas, resumos e, muitas vezes, o texto completo
ou link para o site onde

122
Um erro presente em nossas agências de fomento ou de publicação é considerar o artigo de revisão
como uma contribuição não original. Isso pressupõe que concebem a revisão como uma compilação de
artigos publicados. Mas não é isso, pois as revisões devem trazer contribuições originais, baseadas em
dados já publicados. No CNPq, por ex., não se financia revistas exclusivas de revisão por considerarem
que não são artigos originais! Sorte que as Annual Reviews são do exterior.

205

a obra está disponível. Atualmente, esses índices (base de dados) estão na Internet e as
facilidades de busca são muitas, podendo incluir buscas por palavras (no título, no
resumo ou no texto todo), por autores, países, tipo de publicação etc. Embora alguns
desses sites sejam de acesso livre, a maioria é restrita aos assinantes, que incluem as
universidades públicas brasileiras.
O indexador mais conhecido internacionalmente é, sem dúvida, o Web of Science123
(WoS), do ISI (Institute for Scientific Information), pertencente à Thomson Reuters. Em
2012 estão catalogadas 11.224 revistas no JCR (Science Edition = 8.281revistas e Social
Sciences Edition = 2.943 revistas). É essa instituição (ISI) que calcula o famoso “fator
de impacto” (veja IV-9) das revistas científicas. O concorrente internacional mais
prestigiado do ISI é a Scopus124, uma iniciativa da Elsevier.
No Brasil, alguns sites permitem acesso a revistas científicas. Um deles é o Portal da
Capes125, o qual possui links para outros sites importantes e lista várias revistas
científicas importantes, incluindo acesso à homepage das revistas e descrições do perfil
de cada uma (incluindo fator de impacto, quando pertencentes ao ISI). Há também o
portal da metodologia SciELO126, que é um portal restrito a revistas da América Latina e
do Caribe, com disponibilidade gratuita de artigos na íntegra e acesso às homepages das
revistas. Inclui também alguns indicadores de acessibilidade aos artigos. Bases para
revisão bibliográfica podem ser acessadas a partir do portal do CNPq127 e da Capes128.

V-16. Como iniciar a revisão bibliográfica?

Com base nos objetivos da pesquisa, selecione palavras que revelem a essência de
seus objetivos. Essas serão suas palavras-chave. Então, cruze-as (agrupe-as) de acordo
com a lógica de sua pesquisa. Esses tipos lógicos de estudo são resumidos abaixo e mais
detalhados em VII-10. Note ainda que poderá fazer essa pesquisa em todo o artigo, ou
especificando algumas de suas partes (título ou resumo). Basicamente, as buscas usam
lógica Booleana simples, com operadores como AND, OR e NOT. Com AND todos os
termos colocados devem estar presentes no artigo para que ele seja selecionado;
portanto, esse operador restringe a busca a artigos que contenham os termos que indicou.
Com OR basta que um dos termos esteja no artigo e ele será selecionado; assim, esse
operador amplia sua busca e é importante quando se tem sinônimos ou termos
equivalentes para o mesmo “objeto” (por ex., criança e infantil; gravidez e gestação). O
operador NOT exclui um termo a partir de um conjunto que contenha outro (por ex.,
diabetes NOT gestantes). Além disso, muitos

123
www.wokinfo.com [em seguida, selecione Product Access e, depois, Web of Knowledge)
124
http://www.scopus.com/scopus/home.url
125
www.periodicos.capes.gov.br
126
www.scielo.br
127
www.cnpq.br
128
www.capes.gov.br

206

sites de busca permitem que se indiquem palavras derivadas de uma raiz por um
símbolo, geralmente o asterisco (*). Esse recurso também amplia a busca, recuperando
termos correlatas. Neste último caso, ficaria: aggres*, que contempla aggression,
aggressive, aggressiveness etc.
A seguir, apresento recomendações sobre como fazer sua revisão bibliográfica,
conforme o tipo de pesquisa (veja VII-10).

Pesquisa descritiva: visa a descrever uma variável. A estratégia básica consiste em


“tirar um retrato” de um pedaço do todo – amostra – e caracterizá-lo a partir da
descrição. Escolha o nome do objeto (fenômeno, organismo, estrutura etc.) a ser
descrito. Ao buscar pelo nome do objeto, certamente encontrará estudos que não
sejam descritivos. Por exemplo, se deseja descrever o que o adolescente brasileiro
pensa do Facebook, ao incluir essas duas palavras (adolescente AND facebook),
poderá obter estudos além dos descritivos. Incluir palavras que denotem
“descrição” (por ex., descrição, caracterização etc.) pode ajudar, mas certamente a
triagem final ainda será grande. Veja também qual a novidade de seu estudo e
associe-a ao objeto a ser descrito (no caso, opinião sobre o Facebook). Se é o fato
de serem brasileiros, ou adolescentes, ou a técnica de descrição, ou combinação
dessas possibilidades, faça isso constar como termo de busca em sua revisão
bibliográfica. É preferível encontrar mais do que menos artigos, fazendo uma
triagem posterior a partir dos títulos e resumos.

Pesquisa de Associação sem Interferência: testa hipótese em que se supõe que duas
ou mais variáveis estão relacionadas (associadas) entre si, mas que uma(s) não
interfere(m) na(s) outra(s). Considere o objetivo genérico: testar se há associação
entre certa etnia e a baixa resistência a bebida alcoólica. Note que não é a etnia que
provoca a baixa resistência ao álcool, mas alguma coisa (perfil genético) que
determina a própria etnia e fatores associados a ela impedem a produção de certas
enzimas que catalisam a metabolização de álcool. Ou seja, uma causa comum leva
a dois efeitos distintos que, por essa razão, se associam entre si (etnia e baixa
resistência ao álcool), mas um não interfere no outro. Para a revisão bibliográfica
não se esqueça da natureza lógica de sua pesquisa. Assim, não basta buscar artigos
sobre alcoolismo; também não é suficiente procurar artigos sobre a etnia que está
avaliando. É necessário cruzar essas duas variáveis entre si.

Pesquisa com interferência (ou causa e efeito129) entre variáveis: difere do caso
anterior porque uma das variáveis (independente) afeta direta ou indiretamente a
outra; ou seja,

129
Interferência pode ser qualquer ação de uma variável sobre outra, modificando-a de alguma forma.
Usa-se o termo “modulação” quando uma variável afeta algo que está em desenvolvimento. Por exemplo,
a temperatura ambiente modula (molda) nosso apetite, mas não o causa (uma causa do aumento do apetite
pode ser a redução de glicose no plasma). Da mesma forma, nossos pensamentos podem “modular” nossa

207

atividade cardíaca, mas os batimentos cardíacos são causados por ondas elétricas que se iniciam no nódulo
sinoatrial (uma região no coração).

208

se alteramos a variável interferente podemos interferir na variável efeito. Pode


haver uma ou um conjunto de variáveis consideradas “causa” e outro das variáveis
“efeito”. Numa pesquisa específica, não tem sentido fazer a busca apenas para um
conjunto dessas variáveis (“fator interferente” OR “efeito”). Se a hipótese assume
que a variável interferente produz certo efeito, então essa ligação (relação;
associação de interferência) tem que ser mantida na pesquisa bibliográfica. Por
exemplo, se investigamos se os níveis dos hormônios testosterona e cortisol
afetam a agressividade em ratos, não tem sentido prático pesquisar na revisão
bibliográfica “testosterona OR/AND cortisol”, tampouco apenas “agressividade”
ou ainda “ratos”. É necessário que se pesquise a essência da hipótese, enfatizando
a relação entre essas variáveis. Assim, pesquisas válidas seriam: “testosterona
AND agressividade”; “cortisol AND agressividade”; “testosterona AND cortisol
AND agressividade”; etc. Todas essas conexões poderiam ser acrescidas de “AND
ratos”.

Além das recomendações acima, tenha clareza do que quer encontrar e conheça as
bases importantes na sua área. Embora WoS e Scopus sejam bases obrigatórias de
consulta, lembre-se de que há bases específicas de sua área. Além disso, conheça os
recursos de busca em cada base (minimamente, saber usar os operadores booleanos e
conhecer os campos de busca, que são importantes, tanto para o levantamento inicial
quanto para seu refinamento, ainda antes de partir para a leitura de títulos e resumos).
Na seleção de termos para busca, especialmente nas bases multidisciplinares, lembrar-se
de associar termos sinônimos a outros específicos do contexto de sua pesquisa ou área
de conhecimento. Por exemplo, o termo desenvolvimento pode estar ligado a contexto
econômico, de sustentabilidade, da criança, do tumor; não se atentar a isso levará à
obtenção de muitos artigos que, de fato, não lhe interessam e apenas poluem a revisão.
Para evitar isso, use vocabulários controlados (padrões em cada área), mas esse recurso
nem sempre está disponível nas bases e/ou é conhecido pelos usuários da informação.
Buscar apoio de bibliotecários pode ser uma ótima solução e fonte de aprendizado. Os
tutoriais de ajuda (Help) das bases de dados devem também ser consultados.

209

V-17 Como selecionar os textos obtidos na revisão bibliográfica?

Pressupondo que seu levantamento tenha sido adequado, caso o resultado tenha sido
um volume grande de textos, o que não é incomum, esse material deve ser triado para a
leitura. Convém estabelecer critérios bem claros de inclusão e exclusão do material
obtido, seja em função do tipo de publicação, tipo de estudo, técnica utilizada etc.
Inicialmente essa seleção deve ser feita de acordo com o assunto de cada texto, obtido
do título e resumo. Observe, dessa prática, a relevância que um título pode ter, pois
determina se o trabalho será ou não selecionado pelo leitor. Para reduzir sua chance de
ler um artigo e constatar, ao final, que o conteúdo não pode ser aproveitado, aconselho
priorizar aqueles publicados em revistas de renome internacional130 (veja III-4).
Selecionado pelo título, agora é importante ler os resumos, ou ao menos os objetivos
(no resumo ou na Introdução – geralmente no final) e as conclusões (geralmente no final
do Resumo), para decidir se o texto deve ser lido ou descartado de sua pesquisa.

Referências

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Volpato GL. 2007. Ciência: da filosofia à publicação. 5a ed. Editora Cultura Acadêmica, Editora
Scripta.
Volpato GL. 2010. Dicas para redação científica. 3a ed. Editora Cultura Acadêmica.

130
Os motivos são simples: muitos querem publicar artigos em revistas de boa qualidade; portanto, há
grande competição nessas revistas, o que diminui a possibilidade de publicação de artigos de má
qualidade. Nas revistas de baixa qualidade, a preocupação em obter artigos suficientes para garantir cada
volume da revista é real e pode levar a uma redução do nível crítico de seleção para aceite de artigos. A
qualidade do corpo de assessores também pode ajudar na qualidade da revista. Além disso, os trabalhos de
boa qualidade são escolhidos pelos cientistas para serem submetidos às melhores revistas.

210

Volpato GL, Barreto RE. 2011. Estatística sem dor!!! Editora Best Writing.

Literatura Complementar

Alencar EMLS. 1993. Criatividade. Editora da Universidade de Brasília.


Alves AC. 2011. Lógica, pensamento formal e argumentação. 5a ed. Editora Quartier Latin.
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Alves R. 2008. Ostra feliz não faz pérola. Editora Planeta.
Balchin J. 2008. Os 100 cientistas que mudaram o mundo. Editora Madras.
Beveridge WIB. 1981. Sementes da descoberta científica. Edusp.
Bohm D. 1998. On creativity. Editora Routledge.
Brockman J, Matson K (eds.). 2002. As coisas são assim: pequeno repertório científico das
coisas que nos cercam. Editora Companhia das Letras.
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Carraher DW. 1999. Senso crítico. Editora Pioneira.
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Einstein A, Infeld L. 2008. A evolução da física. Zahar Editores.
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Giambiagi F, Porto C (org.). 2011. 2022: propostas para um Brasil melhor no ano do
bicentenário. Editora Campus/Elsevier.
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Gleiser M. 2007. Cartas a um jovem cientista. Editora Campus.
Gordon K. 2010. Líderes que mudaram o mundo. Larousse do Brasil.
Haven K. 2008. As 100 maiores descobertas científicas de todos os tempos. 2a ed. Editora
Ediouro. Hempel CG. 1974. Filosofia da ciência natural. Zahar Editores.
Hook EB. 2007. Prematuridade na descoberta científica; sobre resistência e negligência.
Editora Perspectiva.
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211

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Kida T. 2007. Não acredite em tudo o que você pensa; os 6 erros básicos que cometemos quando
pensamos. Editora Campus.
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Editora LTC.
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Popper KR, Notturno MA. 1994. The myth of the frame work. Routledge.
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filosofia e problemas. Editora da Unesp/Cambridge.
Zugman F. 2008. O mito da criatividade. Editora Campus/Elsevier.

212

CAPÍTULO VI

Objetivo

VI-1 Qual o ponto de partida para estabelecer o projeto de pesquisa?

O primeiro e crucial requisito é a curiosidade. O cientista deve estar emocional-mente


envolvido no enigma que o move para a pesquisa, pois somente assim não medirá
esforços para executá-la e será crítico o suficiente para buscar a resposta mais adequada.
Além disso, outros fatores participam da definição do objetivo da pesquisa.
Questões de cunho social são sempre importantes, principalmente quando o
financiamento da pesquisa é feito com dinheiro público. A solução de problemas
práticos imediatos, no entanto, não deve imperar na definição dos objetivos da pesquisa
de uma nação. Os privilégios que a ciência aplicada, ou direcionada, está tendo poderão
trazer prejuízos para o desenvolvimento da própria ciência. Há questões cruciais cujas
respostas não têm aplicação imediata ou que sirvam para toda a sociedade. Frente a essa
pressão da aplicabilidade, os cientistas buscam dar um cunho aplicado, mesmo quando
isso exige um tremendo esforço criativo e imaginativo. Na maioria dos casos, no
entanto, redireciona-se a linha de pesquisa para questões mais aplicadas e imediatas,
visando conseguir financiamentos e sobreviver no sistema. Com isso, alguns temas não
recebem a atenção devida, o que pode provocar grandes defasagens entre o
conhecimento científico e a geração de tecnologia.

213

Um importante aprendizado que tive em meu pós-doutoramento é que não devemos


eliminar projetos a partir de pressupostos sobre as dificuldades metodológicas que virão.
Selecione o objetivo pelo objetivo. Escolhido, agora vem a fase de adequação
metodológica. Tente com todas as suas forças viabilizar esse projeto. Caso não tenha
todos os recursos, poderá solicitar auxílio a instituições de fomento, ou fazer parcerias
(essas são parcerias genuínas e honestas). Caso a questão metodológica necessária seja
impossível de ser obtida, então arquive a proposta e debruce sobre outro projeto. O
diferencial desta conduta é que você não abandonará facilmente uma idéia e lutará para
colocá-la em prática. Quando analisa suas condições metodológicas enquanto elabora
mentalmente o objetivo, aumenta a chance de abortar idéias que, com um pouco mais de
insistência, poderiam ser viáveis.
Uma vez que estabeleça o objetivo da pesquisa, entenda que a execução deve ser
impecável. Isso envolve técnicas para coleta de dados e cuidados na aplicação dessas
técnicas (veja VII-5 e capítulo VIII). Lembre-se de que, para fazer ciência de qualidade,
a metodologia precisa ser robusta. Portanto, não aposte em técnicas obsoletas ou estudos
fracos. Eles nada acrescentam à ciência e, atualmente, nem ao seu currículo. Também na
determinação de linhas de pesquisa temos que pensar de forma semelhante aos
objetivos: interessantes, importantes e viáveis.
Além das questões apontadas acima, devemos lembrar que o objetivo de uma
pesquisa será seu determinante principal de qualidade. Uma vez escolhido o objetivo
errado, todo o desastre subsequente será mera decorrência.

VI-2 Como o objetivo da pesquisa direciona o desenvolvimento do trabalho?

O objetivo de qualquer atividade é o ponto norteador para as dúvidas que surgem no


decorrer de seu desenvolvimento. Se, numa rodoviária, temos dúvida sobre qual empresa
de ônibus escolher, solicitamos ajuda considerando nosso objetivo de chegar a
determinado lugar. Se, mesmo assim, ainda temos que escolher entre algumas empresas,
consideraremos a rapidez, a segurança, o custo e outros parâmetros que venham ao
encontro de nossas intenções: chegar a determinada cidade sem pressa, com prazer, sem
grandes riscos e de forma econômica.
Na ciência é a mesma coisa. A Figura 10 apresenta as principais atividades do
processo científico que são norteadas pelo objetivo da pesquisa.

214

Figura 10. Etapas influenciadas pelo objetivo da pesquisa.

É comum que o objetivo não seja atrelado ao sujeito da investigação. Em algumas


áreas as pessoas escolhem primeiro o sujeito da pesquisa (uma espécie animal ou
vegetal, por ex.) e depois determinam o que podem investigar com ela. Porém, o mais
freqüente é você determinar o que irá pesquisar e, em seguida, escolher que organismo é
o melhor para tal investigação. Há um organismo adequado para cada pergunta que o
cientista faça. O mesmo vale para outras áreas, uma vez que o objeto de investigação
deve ter as características necessárias para se cumprir o objetivo. Porém, em alguns
casos o sujeito é o foco da problemática de onde surgiu a pesquisa (por ex., sujeitos
obesos, os quais definem um tema onde se pode investigar várias coisas).
O objetivo espelha o delineamento da pesquisa. Se uma pesquisa é descritiva,
faremos um recorte de um “pedaço” do todo investigado para descrevê-lo; se testa
hipótese, teremos que ter variação de uma das variáveis para quantificarmos a outra
(testamos associação para inferirmos apenas associação ou relação de interferência).
A análise dos dados também decorre do objetivo. Você poderá ter valores de
variáveis, mas se não souber o que espera dela, não saberá como analisar os dados. Se
sua pesquisa é descritiva, certamente olhará para representações do todo (por ex.,
medidas de tendência central, como média, mediana e/ou moda). Se for pesquisa de
associação, com ou sem interferência entre as variáveis, deverá avaliar se os resultados
de uma variam em função dos resultados da outra.
As conclusões do estudo devem convergir, no mínimo, para o objetivo, podendo
ultrapassá-lo. Caso você queira descrever algo, deverá concluir apresentando o perfil
genérico dessa descrição. Se testar hipótese, deverá concluir sobre a corroboração ou

215

negação da hipótese. A partir disso, conforme se juntam informações da literatura,


podemos fazer outras conclusões, mais gerais.
A Discussão é o tópico em que o autor mostra sua argumentação para defender suas
conclusões (veja X-12). Mostra ao leitor também os referenciais (factuais ou lógicos)
que adotou para chegar às conclusões.
Como visto em V-16, o objetivo nos ajuda a selecionar a literatura. É a lógica
associada às variáveis que permite uma pesquisa bibliográfica direcionada.

216

A redação do trabalho também é afetada pelo objetivo. Se for mais aplicado, os


termos convergem para essa abordagem e a Discussão deve consumar algo útil para tal
aplicação. Se mais teórico, o linguajar pode ser diferente. Assim, o objetivo direciona
também a escolha da revista, influenciando a ênfase e a semântica da pesquisa, de
acordo com o periódico escolhido. Há revistas com abordagens específicas, cada uma
dessas abordagens afetando a forma como se redige o texto.

VI-3 O que precisamos saber sobre variáveis para estruturar o objetivo?

Primeiro, o que são variáveis? Em nosso enfoque, uma variável é toda e qualquer
coisa que possa ser abordada pelo método empírico. Veja exemplos a seguir nesta
questão.
Muitos livros de metodologia poluem sua mente com várias classificações de
variáveis. Serei mais simples e focado. Apresentarei três classificações de variáveis,131
independentes, e que são guiadas por requisitos lógicos que nos ajudam a definir a
pesquisa e o texto científico.

Variáveis operacionais e variáveis teóricas: esta classificação guarda estreita relação


com a noção de ciência empírica (veja II-1). Nela, obtemos dados “concretos” e
elaboramos conceitos a partir deles. As variáveis operacionais são aquelas que
podemos “coletar diretamente”, enquanto as teóricas são as que inferimos
(conceituais) a partir das operacionais. Assim, para cada operacional, ou conjunto
delas, temos as variáveis teóricas correspondentes. É importante que as
operacionais sejam indicadoras das teóricas (olhando-se a operacional, “enxerga-
se” a teórica). Exemplos são mostrados na Tabela 5. Note ainda que pode haver
um verdadeiro “gradiente” de generalização entre diversos níveis de variáveis
teóricas.

Variáveis independentes e variáveis dependentes: este conceito aparece quando


trabalhamos com relações de interferência entre variáveis (umas agem sobre
outras). Nessa relação, quem provoca o efeito é chamada de variável
independente, porque nessa relação particular ela não depende da outra. A variável
dependente é aquela sobre o efeito dessa relação. Assim, se X afeta Y, dizemos
que X é a independente e Y a dependente. Caso a relação seja mais complexa,
devemos decompô-la para relações mais simples (veja exemplos em VI-7). Outro
aspecto é que algumas vezes podemos trabalhar com relações circulares: X afeta Y
e Y afeta X. Neste caso é necessário que o autor defina sobre qual relação (X afeta
Y ou Y afeta X) está se referindo, mesmo que ambas façam parte de seu estudo.
Por exemplo, o envelhecimento (X) afeta as relações sociais (Y) e estas (Y) afetam
o envelhecimento (X).

131
No item VII-20 incluo outra forma (variáveis contínuas ou discretas), mas têm função na estatística
e não necessariamente na lógica da pesquisa ou da redação.

217

Você pode dizer, por exemplo, que neste estudo está interessado em testar se o
envelhecimento (variável independente) afeta as relações sociais (variável
dependente). Poderia, ao contrário, estudar se as relações sociais (variável
independente) afetam o envelhecimento (variável dependente).

Variáveis necessárias e suficientes: como o nome diz, as necessárias são


imprescindíveis para certos acontecimentos. Sem elas algo não acontece. Por
exemplo, sem luz apropriada não há fotossíntese, sem alimentação não há
crescimento, sem combustível o motor não funciona, sem batimento cardíaco não
há animal vivo, entre outras. Em todos esses casos, a primeira variável é sempre
necessária. No caso da variável suficiente, ela sozinha promove ou permite algo.
Por exemplo, um acidente pode ser suficiente para matar uma pessoa, um amigo
pode ser suficiente para torná-lo feliz, uma droga pode ser suficiente para eliminar
a gripe, uma temperatura máxima pode ser suficiente para desnaturar certas
proteínas etc. As variáveis podem apresentar características que combinem esses
dois conceitos: a parada cardíaca é necessária e suficiente para promover a morte
dos animais. Estas divisões de variáveis são importantes para a montagem de
pesquisas, pois de acordo com o que se supõe no objetivo define o teste que
teremos que fazer. Se supomos que certa droga é suficiente para controlar
determinada doença, qualquer que seja o caso ela deve promover esse efeito. Se
julgamos que ela seja necessária, mas não suficiente, qualquer medida deve
contemplar essa droga, porém deve ser associada a outras medidas para que o
resultado seja obtido. Com essas relações lógicas fica fácil testar hipóteses.

A definição das variáveis é importante, tanto para o planejamento da pesquisa quanto


para a estruturação do artigo. As variáveis operacionais geralmente aparecem na
Metodologia e nos Resultados do estudo (representam nossa base de evidências). As
teóricas são usadas no Título, na Introdução (que inclui o objetivo) e na Discussão (que
inclui as conclusões). Ou seja, a ciência visa às variáveis teóricas, mas precisa se basear
nas variáveis operacionais para poder referir-se às teóricas (veja Volpato 2007). A
variável operacional aparecerá como teórica apenas se ela for a grande novidade do
estudo.
Com os conceitos de independência e dependência, sabemos que existe uma
suposição de interferência entre as variáveis. Além disso, as variáveis independentes
devem ser caracterizadas no Material e Métodos, enquanto as dependentes aparecem nos
Resultados. Na redação de frases e objetivos, é também aconselhável que, havendo essa
relação de interferência, apresentemos primeiro a independente e posteriormente a
dependente. Assim, prefira dizer “placas de gordura entupiram as artérias”, ao invés de
inverter a ordem natural dizendo “as artérias foram entupidas por placas de gordura”. As
necessárias e/ou suficientes, por outro lado, podem ser operacionais e/ou teóricas, bem
como independentes ou dependentes.

218

Tabela 5. Exemplos de classificações de variáveis.

As variáveis necessárias e as suficientes estão destacas em negrito, respectivamente em


cada coluna, sendo indicada à frente (à) a variável correspondente.

VI-4 Como começa uma pesquisa científica?

Na prática, muita gente começa a pesquisa pensando no que quer quantificar ou


qualificar. Pensa nas variáveis e em como acessá-las. Criam situações que cruzam
algumas variáveis e quase certamente ninguém fez essa besteira antes... então deve ser
inédito. É possível até que se acerte em algum momento, mas não é a proposta de uma
atividade racional que, pelo seu método, pressupõe aumentar as chances de acerto.
A pesquisa científica é uma atividade específica (usando a metodologia científica)
que visa a responder perguntas, oferecendo solução à problemática existente. Portanto,
não há pesquisa se não há pergunta. Esse é o primeiro passo.

219

Fazemos pesquisa para resolvermos questões. O cientista precisa, primeiramente, ter


perguntas para depois planejar sua pesquisa. A pergunta indica como será a pesquisa.
Uma das falhas na formação de cientistas é não conseguir fazer perguntas
interessantes. Perguntas medíocres levam a pesquisas medíocres. Perguntas interessantes
podem levar a pesquisas interessantes.
Uma forma para elaborarmos perguntas é a que segue. São as 8 questões norteadas
por um fenômeno, fato ou processo. Pense numa variável ou algum fenômeno, que
chamaremos genericamente de X, e, a partir daí, questione:

1) como é X? [descrição de X]
2) que fatores afetam X? [busca por agentes interferentes]
3) como esses fatores afetam X? [busca por mecanismos]
4) que fatores causam X? [causas e não modulações – veja VII-10]
5) o que X afeta? [busca por efeitos]
6) o que X causa? [busca por efeitos]
7) como X se desenvolve no tempo? [buscas pela história]
8) que tecnologias decorrem de X? [busca por aplicação]

Embora essas questões possam ajudar e alegrar as mentes estáticas, certamente as


perguntas fundamentais e cruciais requerem um ato criativo irredutível a qualquer
esqueminha ou regrinha. Saber elaborar questões é realmente importante. Quando a
revista Science fez 100 anos, também apresentou uma lista das 100 questões científicas
de relevância para o futuro. Veja também o artigo de Pretty et al. (2010), que descreve
as 100 questões fundamentais de importância para o futuro da agricultura global e
segurança alimentar. Ou seja, saber fazer perguntas é fundamental para toda a pesquisa.
E a pergunta é anterior ao delineamento da pesquisa e à sua execução.
Evite o erro de muitos que fazem pesquisa indo a campo para coletar dados. Coletam
uma série de coisas para depois ver o que conseguem “espremer” disso. Isso é pura falta
de planejamento e amadorismo. Geralmente essas atitudes são estimuladas uma vez que
o dinheiro de financiamento venha fácil, do setor público, e não se pense para gastar.
Caso você tivesse que pagar cada passo dessa atividade, planejaria ou sairia coletando
dados para ver o que dá? Essa proposta de pesquisa eqüivale a comprar materiais de
construção, jogá-los para cima e esperar que ao caírem se transformem numa bela
mansão. Se não der certo, fazemos tudo novamente até conseguirmos a tal mansão.
Vale ressaltar que para se ter perguntas interessantes temos que ter informações e
sermos acostumados a criticar as coisas que percebemos. Não basta olhar
contemplativamente para os fatos. É necessário olhá-los com mente inquiridora e isso
faz parte da formação de um cientista. Se

220

você começou a pesquisa a partir de um projeto que lhe caiu no colo, prontinho... pense
que já lhe furtaram a chance de vivenciar essa parte fundamental para a formação do
cientista. Tente recuperá-la propondo outras pesquisas ao longo de sua carreira.

VI-5 Toda pesquisa científica necessita de hipótese?

Se toda pesquisa for desenvolvida no sentido de responder a alguma pergunta, então a


resposta é sim. Afinal, qualquer resposta provisória a uma pergunta é uma hipótese (veja
11-10). Quando o cientista tem uma hipótese, o raciocínio básico é o seguinte
(conhecido como Modus Tollens): se a hipótese está correta, então necessariamente deve
acontecer X. Se X não ocorrer, então a hipótese é falsa. Se ocorrer, ela é corroborada
(sustentada) até que se prove o contrário. Esse é o status de qualquer hipótese científica
(veja II-3). As conclusões científicas decorrem, em parte, do teste de hipóteses.
Porém, há casos em que a elaboração de uma hipótese, embora possível, não auxilia.
Veja a seguinte questão: o que pensam cidadãos de países subdesenvolvidos sobre a
globalização?
Dessa questão fica patente que podemos imaginar algumas respostas provisórias
(hipóteses). Podemos imaginar que eles pensam que “é uma questão crucial”, ou que
acham que “traz melhorias para os países pobres”, ou ainda que “aumenta a defasagem
desses países com os países ricos”. Enfim, podemos imaginar várias coisas. Cada uma
delas se afigura como uma hipótese. Mesmo que tenhamos fundamentações que nos
mostrem que uma delas é mais provável que a outra, elas são dispensáveis. Por quê?
Veja qual seria o delineamento dessa pesquisa. Basicamente, o pesquisador deverá
selecionar uma amostra confiável de pessoas de países subdesenvolvidos (não pode ser
apenas de um país e quanto maior for a população do país, maior deve ser sua
contribuição na amostra). A esses indivíduos deverá se feita a pergunta que originou a
pesquisa. Dos resultados obtidos, poderá traçar um perfil das respostas, construindo o
que se pode chamar de padrão da resposta (aquilo que é mais freqüente), incluindo os
desvios (os casos que distanciam muito desse padrão). Com isso se faz certa
caracterização das respostas. Agora sabemos o que esses indivíduos pensam a respeito
da questão inicial.
Examine agora se alguma das supostas hipóteses levantadas no início mudaria esse
esquema geral do estudo (amostragem, caracterização da amostra e conclusão,
extrapolando para a população). Lógico que não. Portanto, a hipótese nesse caso é
totalmente desnecessária.
Veja agora outra pergunta, sobre a mesma problemática. A opinião sobre o papel da
globalização depende do grau de desenvolvimento do país das pessoas? Nesta
problemática você pode averiguar a hipótese de que pessoas de países subdesenvolvidos
têm visão mais pessimista em relação à globalização do que as pessoas de países ricos.
Sua resposta (hipótese) pode ser “sim”, ou “não”. Trazida essa questão para sua raiz
lógica, temos que a hipótese admite

221

que “o grau de desenvolvimento do país afeta em razão direta a opinião favorável da


população sobre a globalização”. Como conseqüência, o delineamento prevê testar
pessoas de países pobres e de países ricos, ou ainda pessoas de países com diferentes
níveis de riqueza e pobreza. Assim, saber montar sua pergunta e sua hipótese ajuda a
clarear sua pesquisa. Mais ainda, quando se tem uma hipótese, o delineamento da
pesquisa decorre dela. Quando não se tem hipótese, o delineamento decorre da pergunta
inicial da pesquisa e a resposta é obtida a partir de uma descrição. No caso da hipótese,
há situações em que a negação da hipótese implica diretamente na aceitação da hipótese
alternativa. Por exemplo, se a hipótese admite que X afeta Y, sua negação implica que X
não afeta Y. Embora isso seja uma resposta à pergunta “X afeta Y?”, podemos continuar
sem saber o que afeta Y, ou quais outras variáveis afetam Y. Então, o teste da hipótese
não garante que tenhamos a resposta à pergunta. No caso da pesquisa descritiva, os
resultados respondem necessariamente à pergunta.
Assim, vemos que há perguntas que não precisam de hipóteses para ser respondidas,
enquanto outras requerem hipótese. A hipótese é, então, uma ferramenta metodológica
que, como toda ferramenta, em alguns casos é útil e em outros não. Portanto, não
considere a qualidade de um projeto pelo fato de ele ter hipótese ou não, mas pela
qualidade da pergunta que se fez, da hipótese (se houver uma), e da estratégia
metodológica.
Outro aspecto a considerar é como trabalhar com as hipóteses. Veja a seguinte
situação: meu carro parou e não anda. A pergunta que pode seguir é saber por que ele
parou. O que está faltando? Qual o defeito? Várias possibilidades podem ser aventadas
na forma de hipóteses, algumas delas mostradas abaixo.

H1: O carro está sem combustível.


H2: O condutor de combustível está entupido.
H3: A bomba de gasolina está quebrada.
H4: A bateria está descarregada.
H5: As velas estão sujas ou quebradas.
H6: O motor emperrou.

Uma vez elaboradas as hipóteses, devemos testá-las. Usamos, então, o princípio da


parcimônia, segundo o qual só devemos testar as hipóteses mais complexas após
demonstrarmos a falsidade das mais simples. Inicialmente, buscamos evidências que nos
permitam discernir as hipóteses mais plausíveis. Esse procedimento evita que testemos
hipóteses altamente improváveis. No exemplo acima, não tem sentido começarmos pela
quinta hipótese quando, na realidade, o carro pode apenas estar sem combustível! Essa
situação ilustra um aspecto importante das pesquisas com hipótese: encurtam caminho!

222

VI-6 Como a lógica da pesquisa auxilia a estruturação do objetivo?

Considere os três tipos lógicos de pesquisa abaixo (veja detalhes dos tipos lógicos em
VII-10).

Pesquisa descritiva, que descreve uma variável.

Pesquisa de associação, que testa a hipótese de que duas ou mais variáveis estão
associadas entre si, mas que não há interferência entre elas. Neste caso, a associação
vem da existência de alguma variável que interfere ao mesmo tempo nas variáveis
que se quer estudar. Note que nesta pesquisa não se pretende saber o que causa essa
associação, mas apenas se duas ou mais variáveis se associam entre si.

Pesquisa de interferência, em que se testa a associação entre as variáveis, mas supondo


que uma age sobre a outra. Neste caso, temos que demonstrar, ou considerar, que se
X reduz Y, então deve haver algum mecanismo pelo qual esse efeito é mediado. Por
exemplo, X eleva W, o qual reduz Z, que é um estimulador de Y e, portanto, Y será
reduzido como preconizado na hipótese. O mecanismo foi composto por uma
combinação de efeitos entre outras variáveis (W e Z). Para se corroborar uma
hipótese de interferência temos que mostrar que “fator interferente” e “fator afetado”
estejam associados entre si (o comportamento de um é proporcional ao
comportamento do outro). Caso isso não exista, necessariamente X não afeta Y e,
portanto, não pode reduzi-lo. Se houver associação, então a forma de diferenciar do
caso anterior (hipótese de associação) é mostrando que existe um mecanismo
coerente com a suposição de interferência.

Voltemos à questão. A lógica de sua pesquisa exige uma de três coisas: a) descrição
de algo; b) teste de associação e c) teste de associação e elaboração de mecanismo
(pressupõe interferência). É essa lógica que deve estar expressa claramente no objetivo
de seu estudo. Sem isso, o objetivo é vago. Veja os dois exemplos abaixo.

Objetivo 1: Caracterizar o perfil de desempenho escolar no ensino médio.

Este objetivo implica que você terá uma amostra composta por meninos e meninas,
mas fará uma pesquisa descritiva. Portanto, os resultados não serão comparados entre
meninos e meninas, mas descritos no total da amostra.

223

Objetivo 2: Avaliar se existe associação entre o gênero do indivíduo e seu desempenho


escolar no ensino médio.

Neste objetivo, supomos que o desempenho escolar esteja associado com o gênero
dos alunos, mas não se supõe que o gênero afete esse desempenho. Neste caso, a relação
de associação (sem interferência) é uma hipótese estruturalmente difícil de ser
construída, pois teríamos que imaginar uma condição que leve a determinar o gênero do
indivíduo e, ao mesmo tempo e independentemente, aja em seu desempenho escolar. Ao
que parece, trata-se de um fenômeno de interferência, como pressupõe o objetivo 3.

Objetivo 3: Avaliar se o gênero da pessoa afeta seu desempenho escolar no ensino


médio.

No caso desta última hipótese, pressupõe-se que o fato de ser menino ou menina faz
diferença no desempenho escolar. Se isso é pensado, então se admite que haja algum(ns)
mecanismo(s) que explique(m) essa ação. Pode-se imaginar que o tratamento dado às
meninas e aos meninos em casa, ou a forma como os educadores vêem esses dois
gêneros, levem a posturas que facilitem ou dificultem o aprendizado. Nesse caso, o
desvendar desses elementos seria a consumação do mecanismo caso houvesse diferença
de desempenho entre esses dois sexos (há associação do maior desempenho a algum dos
gêneros). Caso não haja essa associação, a hipótese de interferência é negada.

VI-7 Como tornar claro o objetivo do estudo?

Tenho sugerido que o cientista deve “enxergar” seu objetivo. O que significa isso?
Ele deve mostrar esquematicamente seu objetivo para não ter dúvidas sobre as
suposições lógicas que faz. Uso de palavreado rebuscado e impreciso é uma das
principais formas de tornar o objetivo obscuro e, portanto, não dar o norteamento
necessário para a pesquisa (veja VI-2). Uma forma de testar essa clareza é construir
esquemas que expressem seu objetivo. Coloque as variáveis em caixas e conecte as
caixas com setas (→ indica que o que vem antes afeta o que vem depois; Û indica que
ambos estão associados entre si, mas sem haver interferência entre eles; ↑ e ↓ indicam
aumento e redução, respectivamente). Assim, veja alguns objetivos abaixo e seus
esquemas.

224

O gênero da pessoa afeta seu desempenho escolar no ensino médio.

O grau de desenvolvimento do país afeta, em razão direta, a opinião favorável da


população sobre a globalização.

O estado emocional afeta a resposta das pessoas a agentes estressores.

O perfil da área de pesquisa do cientista determina a qualidade da revista na qual


publica seus artigos e também o grau de conhecimento sobre inglês.

225

VI-8 Como redigir o objetivo do estudo?

Primeiramente, desmistifique as palavras. Você tem um amplo vocabulário à sua


disposição. Use-o para expressar a lógica de seu estudo. Portanto, não há regrinhas de
palavras, mas de lógica. Expresse com clareza sua lógica (veja VII-10) e não fira os
preceitos da ciência (veja II-1).
Se sua pesquisa é descritiva, deixe claro para o leitor essa sua intenção. Pode dizer
que irá descrever algo, ou que irá caracterizar certa coisa. Dê ao leitor a noção de que
você tirará uma “fotografia” de uma amostra e concluirá que o todo (população) é o
espelho dessa “foto”.
Se a pesquisa é de associação, cuidado com esse termo. Ele sozinho é vago e não
informa ao leitor se você quer apenas associação ou se supõe associação devido à
interferência entre variáveis. Assim, deixe clara essa distinção. Se pensa em
interferência, expresse com palavras (afeta, aumenta, diminui, reduz, inibe, interfere
etc).
Atente que tudo o que você especificar no objetivo deve ser fundamentado na sua
Introdução. Ou seja, não se faz nada “à toa”, apenas por fazer. Tudo deve ter uma razão
válida. Na dúvida, não especifique. Por exemplo, se disser que testará se X reduz Y,
deve ter elementos suficientes para supor isso. Do contrário, opte por dizer que testará se
X afeta Y.
O objetivo diz o que você fará e não o que tentará fazer. Assim, ele tem que ser
atingido. E isso é possível se você redigi-lo corretamente. Se sua pesquisa for descritiva,
seu objetivo é descrever algo e seu planejamento de estudo deve garantir que consiga
essa descrição. Se a pesquisa testa uma hipótese, então seu objetivo será testar essa
hipótese. Pode usar o verbo que melhor lhe satisfizer, desde que não informe algo
diferente de “testar”. Pode ser “avaliar”, “investigar se”, “averiguar se” etc. Mas jamais
poderia ser “confirmar”, “demonstrar”, “provar” pois não há planejamento capaz de
garantir isso antes de se coletar os dados (veja II-3 e II-8). Se houvesse, os dados não
seriam necessários.
Cuidado com o termo “analisar”. Ele indica passo metodológico. Você analisa porque
quer alguma coisa. Responda: por que irá analisar? A resposta mostrará seu real
objetivo. Devido ao seu objetivo, você analisará os dados. Quem analisa, analisa por
alguma razão; essa razão é seu objetivo.
Outro problema freqüente na redação de objetivo é a inclusão de condições
metodológicas quando essas condições não são os diferenciais do estudo. Por exemplo, o
objetivo passa a ser comparar o comportamento altruísta entre adolescentes ricos e
pobres. Claramente sua pesquisa quer saber se o nível econômico dos adolescentes afeta
suas posturas altruístas. O fato de estudar ricos e pobres é apenas uma questão
metodológica. Você poderia desenvolver a mesma pesquisa fazendo associação entre
níveis de riqueza/pobreza e as respostas altruístas (ao invés de trabalhar com duas
classes, ricos e pobres). A opção por duas classes foi metodológica e não conceituai.
Outro exemplo é dizer que estudará a reação a estresse em pessoas doentes e sadias.
Novamente, sua intenção é saber o quanto a doença afeta a reação de estresse das

226

pessoas. As pessoas sadias são sua comparação (controle, referencial). Poderia ainda
pensar que as sadias são o foco; nesse caso, as doentes seriam o controle. Outro exemplo
é quando estudamos o nível educacional da população em países

227

desenvolvidos e subdesenvolvidos. O nível de um dos países é o controle do outro, de


forma que seu objetivo é saber se o nível de desenvolvimento (que inclui vários níveis,
desde subdesenvolvido até desenvolvido) afeta o nível educacional das pessoas. Neste
caso, poderia ainda pensar no inverso: que o nível educacional poderia afetar o nível
econômico da população. Outro exemplo comum é quando comparamos fumantes x não
fumantes, gestantes x não gestantes, idosos x não idosos etc. São questões
metodológicas e não devem constar no objetivo. Seja como for, o importante é que
expresse claramente o que deseja investigar, sem misturar metodologia com objetivo.
Outra fonte de erro é a inclusão de nome de locais do estudo no objetivo. Se você
concebe um estudo pensando naquele local (por ex., numa cidade), sua forma de fazer
ciência está equivocada. Lembre-se que você não faz ciência para um local, mas de
dados locais você constrói ciência. Por exemplo, podemos estudar o papel das
embarcações turísticas no comportamento dos peixes no litoral sul de São Paulo. Ora, o
litoral sul é o detalhe. Com certeza os autores estão nesse local. Se estivessem no litoral
do Rio Grande do Norte, o estudo focaria aquele local. Então, o local é mera
contingência, sendo uma decisão metodológica e que deve constar na Metodologia do
estudo. Há casos em que o local pode ser parte do objetivo. Considere que para testar
certa hipótese sobre ritmos biológicos você precise ir ao polo Norte. Nesse caso, o
estudo deve ser feito lá. Mesmo assim, ainda teria como colocar o local nos Métodos e
apresentar sua hipótese no objetivo. Mas digamos que você deseja estudar as diferenças
culturais entre pessoas da América Latina e da América do Norte. Neste caso, sua
variável (independente) de investigação é o local e, portanto, aparecerá no objetivo.
Você tem razões claras e lógicas para isso. Note, por fim, que essas decisões decorrem
da lógica do seu estudo. Não se trata de perfil de área, mas da lógica específica daquele
objetivo.

VI-9 O que são objetivo geral e objetivo específico?

Estes tipos de objetivos são logicamente válidos. Porém, no universo científico


brasileiro essa diferenciação tem se tornado rotina, incluindo erros rotineiros. Por
exemplo, veja em projetos e dissertações/teses os tais objetivos gerais e objetivos
específicos. Normalmente os objetivos específicos se transformam em rotinas de
conduta técnica, metodológica. Ora, isso não é objetivo de pesquisa.
Primeiramente, note que se é um objetivo, seja geral ou específico, deve atender aos
preceitos do que deve ser um objetivo de pesquisa. Assim, seja geral ou específico, deve
atender aos requisitos lógicos do tipo de pesquisa (descrição, associação ou
interferência). O que muda então?
Minha sugestão, numa análise mais simples do problema, é que você use no objetivo
geral as variáveis teóricas e, nos objetivos específicos, empregue as variáveis
operacionais (veja VI-3). Veja um exemplo.

Objetivo Geral: testar se o nível socioeconômico favorece a aprendizagem dos alunos


na escola.

228

Neste caso trabalhamos com duas variáveis teóricas: nível socioeconômico e


aprendizagem. O primeiro passo para determinar os objetivos específicos é identificar
quais são as variáveis operacionais. Digamos que sejam como mostrado na Tabela 6.

Tabela 6. Operacionalização de variáveis para construção de objetivos operacionais.


Variáveis Teóricas Variáveis Operacionais
Nível socioeconômico Renda per capta da família
Grau de instrução dos pais
N° de eletrodomésticos no lar

Aprendizagem Notas em provas


Respostas corretas na classe
Solução de problemas práticos

De posse das especificações da Tabela 6, fica claro que seus objetivos específicos
devem ter a mesma estrutura do objetivo geral, mas trocando as variáveis teóricas pelas
operacionais. Assim, se sua pesquisa é de interferência, continuará a ser de interferência,
independentemente de ser objetivo geral ou específico. Os exemplos seriam:

o testar se a renda per capta da família favorece a nota em provas do aluno na escola.
o testar se o grau de instrução dos pais favorece a nota em provas do aluno na escola.
o testar se o número de eletrodomésticos no lar favorece a nota em provas do aluno
na escola.

Outra variante que pode ser incluída no objetivo específico é a explicitação do que se
olhará diretamente, ao invés do conceito “favorece”, que também é uma inferência. Uma
solução seria explicitar assim:

o testar se há correlação positiva entre a renda per capta da família e a nota em


provas do aluno na escola.
o testar se há associação positiva entre o grau de instrução dos pais e a nota em
provas do aluno na escola.
o testar se há correlação positiva entre o número de eletrodomésticos no lar e a nota
em provas do aluno na escola.

229

Note que a sugestão acima apenas nos remete à base teórica sobre o fazer ciência
(veja II-1). Estamos indo aos fatos “concretos” (base empírica) para elucidarmos
conceitos. Atingindo nossos objetivos específicos, que são factuais, podemos concluir
sobre o objetivo teórico.
O que não devemos fazer é colocar no objetivo específico passos metodológicos
como se fossem receituários de conduta. Por exemplo, segundo minha sugestão seriam
inadequados os seguintes objetivos:

o elaborar um questionário para avaliação da condição socioeconômica das famílias;


o aplicar prova de várias disciplinas para saber o desempenho escolar do aluno;
o quantificar o número de eletrodomésticos na casa de cada família da amostra.

Todos esses “objetivos” são, na realidade, passos da conduta metodológica. Eles


decorrem dos objetivos, mas não são os objetivos. Lembre-se que os objetivos devem
mostrar a lógica da pesquisa e não indicar rotina de atividades.
Outra forma de considerar os objetivos gerais e os específicos seria utilizarmos o
nível de generalização das hipóteses. Cada hipótese se referiria a um aspecto e o
conjunto delas permitiria o teste de uma idéia mais geral. Aparentemente é como no
caso anterior, mas não é, porque aqui temos várias hipóteses.

Hipótese Geral: criação em boas condições de bem-estar melhora o sistema produtivo


de frangos.

Hipótese específica 1: a manutenção de ciclos noite/dia e maior espaço individual


melhoram o bem-estar dos frangos.
Hipótese específica 2: a população humana prefere alimentar-se de frangos
criados em boas condições de bem-estar, incluindo abate
humanitário.
Hipótese específica 3: condições de bem-estar nos frangos reduz radicais livres.
Hipótese específica 4: excesso de radicais livres reduz a qualidade da carne em
frangos.

Embora outras hipóteses específicas pudessem ser imaginadas, as apresentadas


representam o que quero mostrar. Diferentemente do caso anterior (em que apenas
operacionalizamos as variáveis teóricas), aqui trabalhamos com outras hipóteses mais
específicas que, no conjunto, permitirão ao autor decidir sobre a validade da hipótese
geral.

230

VI-10 Onde o objetivo aparece no texto?

A estrutura de qualquer texto científico depende de quem o coordena. Por exemplo,


as revistas podem diferir quanto à estrutura dos artigos, os vários cursos de pós-
graduação diferem quanto a estruturas de projetos e teses e o mesmo ocorre com as
agências de fomento. Apresentarei o que é mais comum em artigos na ciência
internacional, pois é o que melhor atende ao raciocínio lógico.
O objetivo aparece na Introdução do texto. Nela, a intenção é contextualizar a
pesquisa e justificar o(s) objetivo(s) escolhido(s). Portanto, é aí que o objetivo deve
estar. Pode aparecer no início, no meio ou no final, mas na Introdução. Caso a
recomendação seja incluí-lo em tópico separado, logo após a Introdução, também não é
uma opção ruim, pois ele está na seqüência lógica da argumentação (justifica-se na
Introdução e, em seguida, mostra-se o objetivo). Veja mais detalhes em X-16 e observe
atentamente a estrutura lógica do texto científico considerando os contextos da
descoberta e da justificação (veja X-2).

Referências

Pretty J et al. 2010. The top 100 questions of importance to the future of global agriculture. Int J
Agr Sustam 219-236.
Volpato GL. 2007. Bases teóricas para redação científica. Editora Cultura Acadêmica, Editora
Scripta.

Literatura Complementar

Aber JM, Papavero N. 1991. Teoria intuitiva dos conjuntos. McGraw-Híll.


Alves AC. 2011. Lógica, pensamento formal e argumentação. 5a ed. Editora Quartier Latin.
Barbosa C. 2011. A tríade do tempo. Sextante.
Baronett S. 2009. Lógica, uma introdução voltada para as ciências. Editora Bookman.
Beveridge WIB. 1981. Sementes da descoberta científica. Edusp.
Bickenbach JE, Davies JM. 1997. Good reasons for better arguments; an introduction to the
skills and values of critical thinking. Broadview Press.
Carraher DW. 1999. Senso crítico. Editora Pioneira.

231

Castro AA, Saconato H, Guidugli F, Clark OAC. 2002. Curso de revisão sistemática e
metanálise [Online]. São Paulo: LED-DJS/UNIFESP. Disponível em:
http://www.virtual.epm.br/cursos/metanálise.
Costa C. 2005. Filosofia da mente. Jorge Zahar Editor.
Forthofer RN, Lee ES. 1995. Introduction to biostatistics: a guide to design, analysis, and
discovery. Academic Press.
Hailman JP, Karen BS. 2006. Planning, proposing, and presenting science effectively: a guide
for graduate students and researchers in the behavioral sciences and biology. Cambridge
University Press.
Harvard Business Review. 2002. Empreendedorismo e estratégia. Editora Campus.
Horgan J. 2006. O fim da ciência. Editora Schwarcz Ltda..
Hunter JC. 2004. O monge e o executivo; uma história sobre a essência da liderança. Editora
Sextante.
Hurley PJ. 2008. A concise introduction to logic. 10a ed. Wadsworth, Cengage Learning.
Kida T. 2007. Não acredite em tudo o que você pensa; os 6 erros básicos que cometemos
quando pensamos. Editora Campus.
Magee B. 1973. As idéias de Popper. Editora Cultrix.
Miller S. 1977. Planejamento experimental e estatística. Zahar Editores.
Poincaré H. 1984. A ciência e a hipótese. Editora Universidade de Brasília.
Popper KR. 2000. A lógica da pesquisa científica. Editora Cultrix.
Spencer J. 2002. Quem mexeu no meu queijo? 33a ed. Editora Record.
Sokal RR, Rohlf FJ. 1995. Biometry: the principles and practice of statistics in biological
research. W. H. Freeman and Co.
Volpato GL. 2010. Dicas para redação científica. 3a ed. Editora Cultura Acadêmica.
Volpato GL. 2011. Método lógico para redação científica. Editora Best Writing.

232

CAPÍTULO VII

Planejamento da Pesquisa

VII-l Que ações antecedem o planejamento da pesquisa?

A exigência por publicação em revistas de bom nível internacional intensificou-se no


Brasil no final da década de 90. Essa exigência, no entanto, carecia de estratégias
básicas para que a comunidade científica pudesse atingi-la. Essas estratégias são óbvias:
construção de projetos sólidos e inovadores e treinamento em comunicação científica.
Isso, no entanto, levou quase 20 anos para despontar no país, no final da primeira década
do século XXI – e algumas áreas ainda estão defasadas em relação a isso!
Atualmente os programas de pós-graduação estão dando mais importância e atenção
ao projeto, pois sabem que dele dependerá a qualidade da produção na maioria dos
casos. Dentro dessa ótica, mostro o que costumo chamar de passos para uma publicação
internacional eficiente.

1º Passo: escolha o nível da revista que pretende publicar (veja o nível das revistas
em III-5, ou pode ser mais específico – mas não escolha a revista, apenas o
nível).

2º Passo: examine artigos de revistas desse nível, na área de sua pesquisa. Há uma
restrição importante: evite artigos de autores consagrados ou autores de países
consagrados. Esses

233

autores têm facilitadores que nós, muitas vezes, não temos. Esta observação
retrata o ambiente de preconceito em que somos analisados. Ele existe, mas deve
ser enfrentado com competência. De preferência, examine artigos de brasileiros
(sem coautorias internacionais consagradas) publicados nessas revistas. Com
certeza os artigos desses autores passaram pelo mesmo crivo rígido ao qual seu
manuscrito será submetido.

3º Passo: examine a novidade do objetivo/conclusão desses artigos. Tente entender


porque essas revistas quiseram publicar tais idéias. Se tiver dificuldade,
leia atentamente a Introdução e a Discussão, que tais novidades estarão
explicitadas nesses locais. Lembre-se de que nem sempre o que você
imagina que seja novidade na sua área seja, de fato, novidade na ciência
internacional. Aqui você aprende o estado da arte em sua especialidade.

4º Passo: examine nesses artigos a robustez metodológica. Veja se as técnicas que


pretende usar estão ali, ou já se tornaram obsoletas nesse nível de ciência.
Veja o rigor metodológico, examinando os delineamentos do estudo
(incluem duplo-cegos e controles positivos? Quantas réplicas são
usadas?). Enfim, veja isto com atenção. Não descarte nada apenas porque
você não é capaz de fazer. Lembre-se de que está aqui para aprender.

5º Passo: Agora, e somente agora, escolha o projeto que desenvolverá para atingir o
nível de revista pretendido. Note que esta proposta é puramente
administrativa e educacional. Ela lhe ensina, a partir da prática em sua
especialidade, o que é qualidade científica e, mais ainda, lhe ensina a
planejar a pesquisa pensando aonde deseja chegar. Não se trata de fazer
uma pesquisa e depois sair à busca de revistas para ver em qual
conseguirá publicar. A proposta é outra: veja onde deseja depositar sua
pesquisa, aprenda os requisitos necessários para atingir esse nível e
planeje uma pesquisa condizente.

VII-2 Por que é necessário o planejamento da pesquisa?

O planejamento do estudo permite ao cientista prever as várias etapas e situações da


pesquisa. Assim, fornece a possibilidade de se corrigir antecipadamente situações
possivelmente inadequadas. O planejamento da pesquisa tem a mesma função que o
planejamento de qualquer outra atividade humana. Por exemplo, uma viagem. Embora
várias situações não previstas possam surgir, muitos problemas podem ser eliminados,
ou minimizados, por meio de um planejamento prévio. Além disso, a experiência
adquirida em situações anteriores auxilia muito no planejamento de situações futuras.
Quem nunca viajou ao exterior, planeja sua viagem, mas tem mais surpresas do que
aquele que já possui esse tipo de experiência.

234

A capacidade de prever problemas na atividade a ser iniciada varia muito entre os


cientistas e, certamente, é influenciada pela experiência de cada um na área em questão.
Por exemplo, quem

235

já trabalhou com aprendizagem de camundongos terá maiores chances de prever os


problemas que costumam surgir numa investigação desse tipo.
Mas não é só na previsão de problemas que o planejamento tem importância. A
própria definição do delineamento da pesquisa requer um planejamento anterior. Por
exemplo, se sabemos antecipadamente que estaremos lidando com algum tipo de
variável que apresenta valores muito destoantes entre si, teremos que escolher um
delineamento que considere essa peculiaridade de nossa amostra, incluindo uma
amostragem maior (veja VII-15).
O delineamento permite garantir que o objetivo da pesquisa seja atingido (em termos
de resposta a uma pergunta ou teste a uma hipótese) (veja VII-10). Tanto é assim que a
decisão de financiamento para uma pesquisa é feita considerando-se, principalmente, a
qualidade do cientista, a relevância do objetivo e a adequação da estratégia do estudo.
Digo mais, com a elaboração do planejamento, o cientista pode prever a viabilidade
de publicação do estudo num periódico de alto nível (veja VII-1). Isso ocorre porque
nessa fase temos condição de mostrar que a hipótese (ou a pergunta) contida no objetivo
do trabalho é relevante e será adequadamente testada. Ou seja, se as variáveis que devem
ser controladas estarão sendo controladas, se o delineamento adequado será utilizado, se
as repetições mínimas necessárias serão feitas, se as análises previstas são adequadas, se
o objetivo proposto é relevante, se as técnicas propostas são fidedignas ao que se
pretende testar etc. O restante é resultado e não dá para prever.
Quando no projeto de pesquisa, essas demonstrações são fundamentais para que não
se invista tempo e dinheiro (geralmente público) numa atividade equivocada. É evidente
que a realização da pesquisa pode trazer problemas não previstos. Nesses casos, houve
falha no planejamento ou a situação investigada possuía grau de novidade que não
permitia tal planejamento. Porém, na segunda possibilidade, a incerteza de sucesso pode
até estar presente no planejamento, visto tratar-se de assunto que, por suas
peculiaridades, não permite a previsão detalhada de determinadas situações. Apesar
disso, esses casos são mais exceções do que regra e os estudos-piloto auxiliam bastante
(veja VII-9).
Infelizmente, não faz parte da rotina da maioria dos cientistas a redação de um plano
de pesquisa antes de iniciar a fase de coleta de dados. Geralmente isso é feito apenas
quando se requer auxílio financeiro (exigência da financiadora) ou, algumas vezes, por
exigência da instituição (por ex., pós-graduação).
Às vezes, os planejamentos são tão vagos que não justificam a importância que têm
para a pesquisa. O que ocorre nessas situações é que o experimentador geralmente
estrutura a pesquisa após a coleta de dados (tendo até, eventualmente, que mudar o
objetivo inicial); ou seja, de posse dos dados coletados tenta reestruturar a pergunta
inicial, o objetivo e o delineamento inicialmente propostos. Tais tipos de improvisação
raramente levam ao sucesso e geralmente constroem pesquisas equivocadas ou
cientificamente pobres, cujo destino será a gaveta do cientista, a divulgação em anais de
congresso ou a publicação em periódico de baixo escalão (prejudicando tais revistas e
depondo contra a ciência do seu país).

236

Um último e importante aspecto do planejamento refere-se ao nosso cronograma de


ações. Indica o tempo estimado para cada etapa da pesquisa e, consequentemente, a
duração total da pesquisa. Pesquisas que ultrapassam o tempo previsto falham nessa
parte do planejamento. Ou, o que também é freqüente, o cientista falha em não seguir o
cronograma proposto. Muitas vezes o cronograma é inserido no projeto, mas depois
disso não é mais visto. A pesquisa segue como se aquelas divisões de tempo fossem
etapas vencidas. Ora, é o cronograma que nos mostra se estamos atrasados, adiantados
ou no tempo correto com nosso projeto. Assim, faça um cronograma detalhado e
exeqüível, baseado em curtos intervalos de tempo (meses ou bimestres) e consulte-o
mensalmente para saber se você está no prazo, adiantado ou atrasado. Sem isso, entregue
o sucesso a Deus!

VII-3 Quais as diferenças entre pesquisa quantitativa e pesquisa qualitativa?

Basicamente a diferença está no tipo de dados que coletam e, consequentemente, nos


instrumentos de coleta e análise desses dados. A quantitativa mede numericamente as
variáveis, enquanto a qualitativa trabalha com a qualidade dos itens (por ex., gosta ou
não gosta, bom ou ruim, presença ou ausência, tipos de palavras que expressam
determinada emoção etc).
Nos dois casos, no entanto, o cientista está buscando evidências do mundo natural
(numérica ou qualitativa) com base nas quais diz algo sobre esse mundo. Ou seja, nos
dois casos está fazendo ciência empírica. Portanto, não tem sentido falar em ciência
qualitativa e ciência quantitativa, visto que são apenas duas metodologias da ciência
empírica.
Como as metodologias são diferentes, as formas de análise são diferentes. O poder
das conclusões pode também ser diferente, mas não dá para dizer que uma é mais
robusta que a outra. São formas diferentes de se olhar uma mesma realidade. Assim,
ambas têm vantagens e desvantagens. A melhor alternativa é entender que as abordagens
quali e quanti, como são comumente referidas, são ferramentas importantes para o
cientista. Dependendo da problemática do estudo, uma pode ser preferível à outra e, em
alguns casos, ambas podem se completar para um melhor entendimento da questão.
Um adendo importante é que algumas pessoas buscam a pesquisa quali exatamente
por não gostarem de trabalhar com números. É um erro teórico, mas existe. Se numa
questão o número for importante, ele deve ser usado e processado com o máximo rigor,
o que inclui estatística na maioria dos casos. Mais importante ainda é uma ressalva que
eu e Rodrigo Barreto deixamos em nosso livro Estatística Sem Dor!!! (Volpato e Barreto
2011). Como os fenômenos investigados estão acima de divergências metodológicas, os
cientistas que fazem pesquisa quanti terão que ler artigos de pesquisa quali, sendo o
inverso também verdadeiro (quali lendo quanti). Não dá para se fechar numa
metodologia e buscar entender o universo a partir disso. Assim, o cientista deve dominar
ao menos os elementos básicos dessas duas abordagens metodológicas para não ter que
aceitar conclusões publicadas sem ter elementos para discriminar as válidas das não
válidas. Apenas não entender

237

uma dessas abordagens não é premissa válida para sustentar sua opção irrestrita por uma
delas. Além disso, lembre-se que muitas pesquisas usam abordagens quali e quanti num
mesmo estudo.
Embora alguns possam imaginar que o grau de generalização das conclusões seja
diferente entre essas duas abordagens, isso não é verdade. Em todos os casos estamos
fazendo ciência natural, que pressupõe construir explicações gerais sobre os fenômenos
naturais.

VII-4 Pesquisa de campo ou de laboratório: qual a melhor?

Muitos alunos decidem ser cientistas tendo como definição prévia a pesquisa de
campo ou de laboratório. Chegam a escolher orientadores em função desse tipo de
abordagem. Em casos extremos, chegam a um menosprezo recíproco. Todas essas
atitudes refletem a inadequada formação do cientista; em particular, sua estreita visão do
método científico.
Precisamos, inicialmente, conhecer as vantagens e desvantagens de cada tipo de
estudo (campo e laboratório) para o processo da pesquisa científica.
Os estudos de laboratório têm a vantagem de permitir um controle bastante rígido
das variáveis que afetam o fenômeno em estudo. Assim, garantem a manipulação mais
precisa da variável investigada e, portanto, permitem inferências mais detalhadas. Além
disso, o estudo de aspectos internos dos organismos é geralmente muito mais adequado
no laboratório. Apesar dessas vantagens, as situações em laboratório nunca reproduzirão
exatamente a situação da natureza, por mais cuidadosa que seja a montagem do estudo.
Essa limitação deve ser compreendida, pois negligência a esse fato leva o cientista a
extrapolações muitas vezes infundadas ou precipitadas.
Os estudos de campo ganham força por permitirem estudar um fenômeno natural
numa situação natural. Esses estudos são feitos em situação na qual todas as variáveis
estão presentes. A presença desse todo, que é o aspecto positivo num dado contexto,
limita uma análise mais detalhada sobre a importância relativa de cada fator presente
nessa situação global. Nesse caso, análises de correlação e associação contribuem para
se discriminar o efeito de cada fator (veja VII-10, VII-11 e VII-12). No caso da saúde
pública, por exemplo, há vários métodos que procuram indicar o quanto alguma
característica (por ex., gênero, peso corporal, idade, condições climáticas) pode ter
interferido num certo fenômeno (por ex., propensão a certo tipo de doença ou chance de
ocorrer alguma epidemia). É óbvio que nos estudos de campo também podemos
controlar variáveis, mas geralmente são grandes as limitações.
Do exposto acima, fica claro que a conduta mais adequada contempla ambas as
abordagens, os estudos de campo e os de laboratório. No entanto, quem definirá a maior
adequação do desenvolvimento do estudo no campo ou no laboratório será o objetivo da
pesquisa, e não o preconceito do cientista. Se desejarmos investigar o período do ano em
que ocorre maior crescimento de determinada espécie de organismo, o mais adequado
será adotarmos estudos de campo, onde os indivíduos estarão sob ação de vários fatores
que podem oscilar ao longo do ano. Se, por outro lado,

238

239

desejamos conhecer os fatores responsáveis por essa associação (época do ano e


crescimento), a melhor abordagem poderá será por meio de estudos laboratoriais, onde
isolamos fatores com mais facilidade. Se quiser saber as razões que levam certa
população a consumir determinado produto, é melhor investigar no local do consumo,
onde os sujeitos vivenciam essa situação. Se optar por fazer entrevistas em seu
escritório, certamente o contexto será outro e racionalizações poderão interferir nas
respostas. Porém, temos que admitir que, nesse caso, os dois tipos de estudo se
complementam. Há alguns casos, no entanto, em que cada estudo é suficiente em si. O
que deve ficar claro é que o cientista deve utilizar os estudos de campo e de laboratório
como parte de suas ferramentas disponíveis para essa interessante tarefa de busca do
conhecimento dos fenômenos naturais. Limitar-se às ferramentas é, antes de tudo,
limitar a própria capacidade de enxergar.

VII-5 Método ou técnica?

Na prática da pesquisa, muitas vezes se usa método como sinônimo de técnica.


Método, no entanto, pode ser usado para significar os processos lógicos de aquisição de
conhecimento empregados na ciência. Assim, há basicamente dois métodos: o dedutivo
e o indutivo (veja X-2).
O método dedutivo consiste na elaboração de idéias (teses, hipóteses etc.) com a
posterior coleta de dados para teste dessas conjeturas. No método indutivo preconizamos
o contrário. Estabelecido determinado tema, coletamos dados e, posteriormente,
abstraímos desses dados generalizações possíveis. Ou seja, partimos do geral para o
particular (dedutivo) ou do particular para o geral (indutivo). Por exemplo, se estresse
aumenta a chance de ocorrência de doença, então determinado indivíduo estressado
contrairá mais facilmente uma enfermidade (método dedutivo). Ou, se da amostra
analisada apenas os indivíduos estressados contraíram doença, então o estresse facilita a
instalação dessa doença na população (método indutivo).
Nos dois casos, dedutivo ou indutivo, os meios específicos utilizados para coleta dos
dados são as técnicas. Assim, há técnicas para coleta de sangue, para determinação dos
níveis de açúcar no sangue, para definição das relações filogenéticas entre espécies, para
análise estatística de dados, para conhecermos a opinião das pessoas sobre determinados
temas etc; mas somente dois métodos de pesquisa.
Há filósofos da ciência que se apegam apenas a um desses métodos (dedutivo ou
indutivo). Alguns chegam inclusive a propor que o método indutivo não existe. O
raciocínio é como segue. Tudo que observamos na natureza inevitavelmente passa antes
pela nossa bagagem conceituai. Ou seja, nossas observações estão inexoravelmente
vinculadas às nossas idéias. Assim, nunca vemos as coisas em si, mas deformações
produzidas não apenas pelos nossos órgãos sensoriais, mas também pelas nossas pré-
concepções (veja Parte 1). Um exemplo é apresentado no livro O Pequeno Príncipe
(Saint-Exupery 2006). Esse autor apresenta um desenho que as pessoas reconheciam
como um chapéu. Porém, ele queria representar outra coisa: a silhueta de uma jibóia que
engoliu um elefante. Recordo-me do caso de um emérito professor que projetou

240

diapositivos de um determinado tecido animal e passou a explicar aos alunos o que


aparecia nessa projeção. No entanto, havia na tela de

241

projeção uma mancha que, obviamente, sobressaiu no tecido projetado. Essa mancha foi
interpretada como parte patológica do tecido. Somente no slide seguinte ele percebeu
que se tratava de uma mancha na tela. A genialidade desse professor o fez rir da
situação, felizmente! Mas isso mostra como o fato observado é, em si, insuficiente para
nos dizer do que se trata. Da mesma forma, pessoas treinadas a estudar o comportamento
reprodutivo podem rapidamente interpretar determinadas interações sociais como
tentativas de cópula, enquanto outros podem vê-las como brigas. O que nos chega ao
sentido é apenas o que nosso sistema sensorial consegue captar e da forma como
consegue fazê-lo, nada mais! O universo que pretendemos conhecer é muito mais rico
do que o nosso precário aparato sensorial pode apreender. Essa barreira também impede
que os dados nos indiquem claramente como as coisas são.
Outro aspecto a considerar é que, num sentido mais prático, a ocorrência de alguns
fatos direciona a interpretação do cientista. Por exemplo, ao realizar observações sobre a
reprodução em grupos de peixes, pode repentinamente notar que não apenas um animal
do grupo se acasalou com as fêmeas, mas outros também o fizeram. Essa constatação
pode agora direcionar o pensamento do cientista na interpretação da dinâmica da
reprodução em grupo nessa espécie. Mesmo que se admita que cada fato observado foi
permeado por teorias anteriores, não se destrói a importância que esse fato inesperado
teve no direcionamento teórico do cientista. Nesse caso mais grosseiro, podemos dizer
que a observação auxiliou a teoria, particularmente pelo caráter inusitado do fato
surgido.
Em resumo, dadas as ressalvas apresentadas acima, podemos considerar os métodos
dedutivo e o indutivo como estratégias mais amplas na aquisição do conhecimento,
enquanto que as outras formas que direcionam a coleta de dados específicos seriam as
técnicas.
Essa divisão tem levado alguns cientistas a questionarem se devemos nomear no
artigo a seção no formato Material e Métodos, ou ainda Métodos. Trata-se de uma
discussão inócua, pois o mesmo termo pode ser usado com sentido diferente [veja, por
exemplo, as palavras ursa (animal) e ursa (constelação); dado (peça de jogo) e dado
(verbo dar); burrinho (diminutivo do animal burro) e burrinho (bomba do freio
hidráulico de automóveis)]. Como evitar a confusão? O contexto não deixa dúvida.
Assim, quando lemos a palavra Método num discurso sobre a lógica científica, devemos
pensar nos métodos dedutivo e indutivo. Mas se ele aparece como parte de um texto
científico (principalmente na área empírica), certamente estará englobando também as
técnicas. Não considerar isso é ater-se a um perfeccionismo lingüístico que já não faz
mais sentido.

VII-6 Devemos preferir as técnicas sofisticadas?

As técnicas sofisticadas fascinam! Por serem caras, também fascinam,


particularmente num momento em que se qualificam os cientistas com base no montante
de recursos que conseguem obter das agências financiadoras e de empresas. Mas isso
não é ciência... é apenas capitalização da atividade científica. É evidente que, para

242

algumas áreas, técnicas caras são necessárias, mas isso não é definido pela área, mas
pela pergunta que se quer responder. Nunca será uma definição geral e

243

irrestrita entre áreas. Por isso, nunca deve ser usada para qualificar cientistas, mesmo
dentro de uma área132 (pois técnicas mais simples podem resultar em conclusões
fantásticas).
O importante é estarmos atentos para não investirmos mais na sofisticação
tecnológica da metodologia do que na sofisticação intelectual das conclusões. Um
exemplo é a utilização de uma balança analítica (4 ou mais dígitos decimais) para
avaliação do crescimento anual de peixes. O que nos mostra que esse uso é uma
sofisticação desnecessária é o fato de a variação de peso durante o crescimento anual ser
de uma magnitude grande o suficiente para fazer com que a informação contida a partir
da parte decimal da medida seja insignificante. Em resumo, a adequação da sofisticação
instrumental depende do comportamento do parâmetro que nos propomos a medir. Tal
sofisticação não recai apenas nas técnicas caras. Pode significar um questionário
complexo e extenso (cerca de 120 questões) para saber qual a intenção das pessoas no
momento da compra dos produtos em shopping centers. Muitas vezes a complexidade
metodológica apenas reflete o pensamento difuso do cientista, sua crença na qualidade
baseada em quantidade, ou mera vaidade.
Apesar do exposto acima, há sofisticações técnicas que facilitam a aceitação do
trabalho pela comunidade científica. Isso ocorre por causa dos paradigmas tecnológicos
(veja II-11, item c). São crenças que oscilam ao longo do tempo, como modismos, mas
que são fortes o suficiente para direcionar a prática da pesquisa. Por exemplo, as
técnicas estatísticas, tão comuns hoje em dia, sequer tinham espaço no início do século
XX. Nessa época não se misturava biologia com matemática (veja Volpato 2007).
Atualmente, um paradigma muito forte na maioria das áreas biológicas e exatas é a
aceitação apenas dos resultados quantitativos embasados estatisticamente. Como esses,
há paradigmas em termos de técnicas específicas de dosagens, uso de computadores e
filmagens na análise comportamental, entre outros.
Os paradigmas tecnológicos geralmente forçam a sofisticação técnica da pesquisa e é
necessário um grande empenho para reverter esse quadro. Porém, na história da ciência,
a simplicidade tecnológica muitas vezes revelou soluções geniais. Apesar dessa
dicotomia (simplicidade x sofisticação), cada problema específico investigado (o
objetivo da pesquisa) possui elementos que nos permitem indicar o melhor caminho. É
fundamental que não ocorra uma busca por simplicidade ou por sofisticação a priori;
mas que o objetivo da pesquisa defina os meios. A crítica deve ser objetiva o suficiente
para se evitar preconceitos em relação aos dois lados.

132
Pode haver exceções, como algumas linhas de pesquisa sobre aceleração de partículas, atividades
cerebrais, bioquímica, análises geológicas etc. Mas são exceções.

244

VII-7 Qual deve ser o papel do estatístico na definição do planejamento da


pesquisa?

“To consult the statistician after an experiment is finished is often merely to ask him
to conduct a post-mortem examination. He can perhaps say what the experiment died
of.”
[Ronald Aylmer Fisher]

É muito comum que os cientistas atribuam a tarefa do delineamento ao estatístico. É


notório que eles executem tal tarefa com muita propriedade. Porém, o delineamento é
uma das tarefas fundamentais da atividade científica. E análogo à seguinte situação: se
considerarmos as conclusões como sendo os peixes num lago, o planejamento seria a
estratégia de pesca (horário, local, tipo de rede ou anzol, isca etc). Assim como o bom
pescador não se contenta em simplesmente jogar a rede ou puxar a vara de pesca, o
cientista não deveria se contentar em simplesmente coletar os dados num delineamento
determinado por outros. Na construção da pesquisa, o delineamento é parte integrante,
principalmente considerando-se que numa mesma pesquisa pode haver dois ou mais
delineamentos possíveis. A escolha do delineamento envolve ponderações que
competem ao cientista. É evidente que nos casos em que a pesquisa convirja para
análises estatísticas dos dados (veja IX-3), a opinião do especialista (estatístico) é
importante, principalmente para se adequar os testes estatísticos a serem usados (se
necessários), definir o número mínimo de réplicas e características da amostragem.
Mesmo que o estatístico venha a opinar sobre o delineamento proposto, isso não
desobriga o cientista da elaboração do delineamento. Afinal, a defesa da pesquisa
envolve também a defesa do delineamento adotado (veja VII-13). Não basta elaborar
objetivos ousados, é necessário desenvolvê-los com clareza e elegância.

VII-8 Todo trabalho quantitativo necessita de análise estatística?

Antes de responder a esta pergunta, é necessário conhecermos um pouco da história


do desenvolvimento da matemática como método de análise na ciência. Para essa
descrição utilizarei como pano de fundo a biologia, mas a conclusão é perfeitamente
generalizável a outras áreas da ciência.
O exemplo clássico é sobre Mendel, que utilizou cálculos matemáticos para a
fundamentação e elaboração de suas idéias sobre o que hoje conhecemos como genética
e, por esse motivo, teve seu trabalho incompreendido por seus examinadores. Outros
fatores também influíram, como a própria novidade de sua abordagem, mas a
incompreensão dos fundamentos apresentados por

245

Mendel decorreu grandemente da resistência que os cientistas tinham naquela época pela
utilização da matemática em assuntos de biologia. Mais tarde, gradativamente a
matemática foi sendo mais aceita como ferramenta importante à biologia. Algumas
revistas (por ex., a Biometrika) começaram a ser o reduto daqueles poucos cientistas que
se aventuravam a usar a matemática em estudos biológicos (veja detalhes em Volpato
2007). Provavelmente, o desenvolvimento de vários outros setores contribuiu para que a
biologia fosse absorvendo a contribuição que a estatística podia oferecer.
Atualmente vivemos o oposto da situação experimentada por Mendel. O uso de
demonstrações estatísticas nos trabalhos científicos é quase uma imposição. Anos atrás,
um editor de revista de impacto internacional declarou que negava artigos sem análise
estatística, sem enviá-los aos revisores. Isso representa o outro extremo da atitude, em
cerca de um século! Grande parte disso se deve à aparente objetividade que a estatística
trouxe ao cientista. Porém, essa objetividade é mais crença que realidade (Volpato
2007). Os lucros metodológicos do uso da estatística devem ter sido também grandes, o
que ajudou a reforçar tal uso. A concepção matemática do mundo nas sociedades,
particularmente nas capitalistas, e a grande difusão da linguagem computacional
também devem ter influído na forma de abordagem das pessoas, fazendo com que o uso
da estatística, como meio de se ver o mundo, não fosse só aceito, mas também
endeusado.
Além das limitações de um uso rígido da estatística nos estudos da ciência natural
(veja IX-5), várias situações revelam que nem sempre a estatística é a melhor forma de
se considerar uma questão biológica. É óbvio que auxilia muito quando tentamos
descrever, por exemplo, tendências centrais de amostras ou populações. Mas nem
sempre é isso que procuramos. Há casos particulares em que a estatística não auxilia. O
eclipse previsto pela teoria de Einstein, e mais tarde observado, é um caso único e que
não requer análise estatística; porém, sua importância à ciência é inquestionável.
Devemos lembrar que, no teste de nossas hipóteses, podemos nos confrontar com
situações em que a ocorrência de um caso pode ser definitiva para derrubar a idéia.
Não só os casos particulares, mas muitas vezes a análise visual não deixa margem de
dúvida e ela poderia ser suficiente. Nesses casos, dizer a probabilidade de erro (por
exemplo, 0,00001%) não ajuda muito, mas reflete nossa subserviência à necessidade do
aval estatístico.
Assim como a estatística, o bom senso também é um recurso de análise e não pode
ser desconsiderado. O objetivo final é a construção coerente e adequada de
conhecimento. Se as probabilidades estatísticas garantissem maior estabilidade do
conhecimento, então poderíamos dizer que caminhamos rumo à verdade. Mas não é isso
que ocorre. Não menosprezo toda contribuição trazida pela estatística (enquanto técnica)
à ciência, pois muitas idéias só puderam ser testadas com os recursos estatísticos. O mal
não é a infiltração da estatística, mas sim sua má compreensão, superestimando-a.
Vejamos um exemplo simples. Fazemos 50 observações em cada uma de duas
espécies de camarões de água doce para testar se ocorre canibalismo. No final das
observações, verificamos que em uma das espécies não ocorreu canibalismo e que na
outra ocorreu um único caso. Ou seja, estamos comparando as ocorrências de 0% e 2%,

246

algo aparentemente muito semelhante. Porém, o bom senso nos permite concluir que
nessa segunda espécie existe comportamento canibal, enquanto

247

que esses dados não sustentam tal afirmação para a primeira espécie. E nenhuma
estatística foi usada! É apenas um exemplo, mas resume muitas situações comuns na
prática da pesquisa.
De qualquer forma, apesar das considerações acima, veja que o trabalho científico
empírico deverá ser sustentado por dados claramente aceitos pela comunidade científica.
A melhor forma de mostrar diferenças e igualdades entre esses dados é por meio de
testes estatísticos de hipótese. Com raras exceções, o artigo científico deve ter dados
estatisticamente validados e fortes o suficiente para corroborarem as conclusões, caso se
pretenda publicar em periódico de boa qualidade. Se você tem ferramenta estatística
para tomar decisão sobre números, desprezá-la mostra confiança nos seus “olhos” mais
que na ciência estatística. Parte da “medicina baseada em evidência” vem dessa
constatação: o quanto acreditamos em nossas experiências ou nos fatos científicos!
Assim, dizer que duas médias são diferentes apenas com base na variação matemática de
seus valores (por ex., dizer que uma média é 20% maior que a outra e, portanto, temos
que considerar esse “efeito”) ignora os cálculos de probabilidade que levaram a essas
diferenças, assumindo-a como verdade. Nesse caso o teste estatístico é imperativo. O
mesmo vale para comparações de freqüências e expressões de correlação.

VII-9 O que é e para que serve o estudo piloto?

O estudo piloto é um ensaio prévio, feito com poucas réplicas para o cientista ver as
respostas reais e decidir se serão necessárias adaptações na metodologia. Isso ocorre nas
situações em que não dispomos de muita experiência com as técnicas ou processos
abordados. Nos campos em que dispomos de maior experiência, não necessitamos dos
estudos pilotos, pois temos melhores condições para prever o andamento da pesquisa. Às
vezes, no entanto, esse suposto conhecimento pode trazer resultados desconcertantes.

VII-10 Qual a lógica básica das pesquisas científicas?

Procuro olhar os estudos pela sua lógica. Não me restrinjo a uma área e busco
adequar--me a qualquer investigação nas três grandes áreas do saber: Exatas, Humanas e
Biológicas. Trato da lógica da pesquisa mais do que do formato metodológico.
Por que priorizar a lógica? Porque ela é a raiz universal do pensamento. Ela rege a
metodologia, e não o inverso. Seu entendimento lhe dá a mais fantástica ferramenta para
entender o mundo e agir nele. Com o entendimento da lógica básica das pesquisas, você
entenderá, inclusive, as

248

classificações metodológicas133 que são tão freqüentes em algumas áreas. Mais ainda,
poderá perceber nessas classificações o que faz sentido e o que é puro artefato. Por isso
optei pelo recurso à lógica.
Com essa base, podemos dividir quaisquer estudos de base empírica em três tipos
lógicos (três abordagens lógicas). E o que é mais importante, desses três tipos
conseguimos entender toda a estrutura da pesquisa, bem como estruturar o discurso
dessa pesquisa, seja escrito ou falado. Porém, deve ficar claro que a qualidade e a
importância da pesquisa não decorrem da lógica dela. Qualquer que seja sua lógica, a
pesquisa poderá ser excelente ou não. Assim, esses três tipos lógicos de pesquisa
perambulam pela ciência de altíssimo nível, e também pela de baixo escalão. Vejamos
os três tipos lógicos de pesquisa.

1. Pesquisas Descritivas

Consistem em descrever alguma variável134. Podemos descrever uma estrutura de um


organismo, um tipo de solo, um padrão de movimento de planetas, a opinião de certa
comunidade sobre determinado assunto, a composição atômica de uma molécula etc.
Nessa lógica, descrevemos uma variável que pode ser abarcada pelo método empírico
(qualitativo ou quantitativo). O comum é que descrevamos um pedaço (amostra) do todo
ao qual nos referimos. A partir dessa descrição, inferimos que esse padrão descrito é o
padrão desse todo maior, nossa população. Você pode desenvolver um estudo para
descrever mais de uma variável, mas para cada uma delas sua abordagem (sua lógica)
será essa: retrata a parte e extrapola para o todo.

2. Pesquisas com hipótese135

Quando temos hipótese, temos que considerar de que tipo ela é. Toda hipótese
relaciona duas ou mais variáveis. Como as implicações lógicas na hipótese independem
do número de variáveis, usarei o exemplo mais simples: a relação entre apenas duas
variáveis. Do ponto de vista lógico, temos apenas duas relações entre as variáveis:
associação entre variáveis que não se interferem mutuamente e associação decorrente da
interferência de uma variável sobre a outra.
O termo associação é aqui usado no sentido genérico, significando a correspondência
entre o comportamento de duas ou mais variáveis. Se há associação entre variáveis,
podemos dizer que é possível prever o comportamento de uma em função do
comportamento da outra.

133
Descritivos, analíticos, relato de casos, série de casos, transversal, longitudinal, coorte, condicional,
caso-controle, observacional, de intervenção, entre outros.
134
Lembramos que variável é, neste conceito, qualquer coisa que podemos estudar a partir de
evidência empírica. Veja o conceito de variáveis operacionais em VI-3 e isto ficará mais claro.
135
Veja a definição de hipótese em II-10.

249

A existência de associação entre variáveis sem que uma interfira na outra decorre do
fato de que essas variáveis são determinadas por uma mesma variável. Esses requisitos
lógicos estão esquematizados na Figura 11.

Figura 11. Relações lógicas entre variáveis numa hipótese. A e B estão associados entre
si porque ambos são determinados por um mesmo fator (X). Como X determina A e B,
ele interfere nessas duas variáveis e, mais ainda, X está associado a A e também a B. Ou
seja, interferência implica em associação, mas nem toda associação

Vamos aos exemplos. Existe uma alta associação entre o aumento no consumo de
bebidas alcoólicas (A) e o aumento no número de igrejas (B). Embora a ação de uma
variável sobre a outra possa não existir, elas se correlacionam por existir um terceiro
fator (X) que é a causa, ou agente interferente, dessas duas variáveis, sincronizando-as e,
portanto, determinando a associação. No caso, esse fator é o crescimento populacional
(X): maior a população, maior será o consumo de bebidas alcoólicas e também o número
de igrejas para atender a essa população aumentada.
Da mesma forma, no estudo de Oliveira et al. (2010) os dados são insuficientes para
se diferenciar o tipo de associação (com ou sem interferência entre as variáveis) e tal
situação é claramente expressa por eles na conclusão do estudo. Tenha em mente o
esquema da Figura 11. Esses autores investigaram quase 12 mil pessoas e encontraram
uma associação negativa entre escovação de dentes (relatado pelas pessoas) e problemas
cardiovasculares. Se essa associação é causai (interferência; X e A ou X e B na Fig. 11),
então devemos aconselhar as pessoas a escovarem os dentes mais freqüentemente; se é
apenas uma associação (A e B), essa recomendação não faz sentido, mas a regularidade
na escovação de dentes é uma informação que auxilia na estimativa do risco de
problema cardiovascular do paciente (indica, mas não causa). Veja como os autores
expressaram essa situação no British Medical Journal:

250

“Future experimental studies will be needed to confirm whether the observed


association between oral health behavior and cardiovascular disease is in fact causal
or merely a risk marker.”

Nesta afirmação eles mostram que a associação negativa que encontraram entre
escovação de dentes e doenças cardiovasculares pode ser decorrente de uma relação de
interferência (causal),

251

onde a escovação reduz o risco dessas doenças, ou ser apenas uma associação uma vez
que essas duas variáveis sejam determinadas por uma terceira.
Esses autores completam dizendo “... use of a simple measure of self reported
toothbrushing could be a useful and cost effective marker of future health risk...”. Aqui
usam o conceito de marcador de risco, que com base na associação, permite que
“olhando” uma variável, possamos prever a outra.
A título hipotético, posso imaginar as duas situações lógicas desse estudo. Pode haver
uma relação causal (interferência) uma vez que algumas bactérias presentes na boca das
pessoas são também detectadas no tecido cardíaco, sendo, então, a boca a via de entrada
desses microorganismos; assim, aumentar a higienização da boca pode reduzir os riscos
de doenças cardiovasculares. Mas posso também explicar uma associação sem
interferência entres essas variáveis (escovação dos dentes e doenças cardiovasculares).
Imaginemos que a variável determinante (X na Fig. 11) seja o cuidado com a saúde.
Assim, esse cuidado pode incluir maior higienização da boca (escovação, variável A) e,
ao mesmo tempo, um estilo de vida saudável com prática regular de exercícios físicos e
uma alimentação saudável que, por sua vez, reduzem o risco das doenças
cardiovasculares. Note que neste segundo caso, não adianta indicar um aumento na
escovação dos dentes.
Vamos a um contraexemplo. Uma pesquisa identificou associação positiva entre o
relato dos autores sobre o quanto escrevem bem em inglês (A na Fig. 11) e a qualidade
de suas publicações (B). Basicamente, autores que dizem escrever bem em inglês
publicam em revistas de boa qualidade, enquanto que aqueles que dizem não escrever
bem em inglês publicam em revistas de pior qualidade. Segundo o que temos discutido,
essa associação pode decorrer de um efeito de A sobre B ou do fato de ambas serem
determinadas por outro fator (X). Se A interfere sobre B, então devemos aconselhar
esses autores a melhorar sua escrita em inglês, pois isso melhoraria a qualidade de suas
publicações. Mas há uma precipitação nisso, pois pode se tratar apenas de uma
associação e, nesse caso, alterar A (redação em inglês) não afetaria B (nível da
publicação). Antes que isso seja resolvido, não podemos apostar numa única direção
(veja no caso anterior, da escovação de dentes, como os autores foram prudentes).
Se há essas duas possibilidades, então deve haver um fator X. Qual seria? Uma
sugestão válida, entre outras, é que X seja o perfil da área. Áreas nacionais menos
impactantes internacionalmente (por ex., Saúde Pública, Educação, Agrárias etc.)
permitem, ainda, que o cientista se desenvolva sem ter habilidade de redação em inglês,
ao mesmo tempo em que permitem publicações em revistas regionais de menor
qualidade. Por outro lado, em áreas mais impactantes internacionalmente (por ex.,
Fisiologia, Imunologia, Física, Farmacologia, Bioquímica, Química etc), o indivíduo
não consegue literatura de bom nível em revistas nacionais e deverá participar
ativamente de congressos internacionais, fazer estágios no exterior em países da main
stream, manter correspondência com autores do exterior e outras atividades que, no
conjunto, exigem um nível razoável de compreensão e redação em inglês. Fora desse
padrão, dificilmente o indivíduo conseguirá, sequer, emprego. Assim, esta análise revela
uma alternativa que, antes de ser testada, não permite tomarmos uma decisão sobre o

252

que está determinando a associação relatada. É esse tipo de cautela e análise que
raramente escapa numa revista internacional de alto nível, mas freqüentemente não é
considerada em revistas e meios mais fracos da ciência.

253

Havendo efeito de uma variável sobre outra, podem ocorrer dois casos: a variável
causa é a causa primária (inicial) do fenômeno, ou ela apenas afeta (modula) um
processo que já ocorre.
Vejamos alguns exemplos de causas iniciais. Impulsos nervosos do nódulo
sinoatrial136 causam o surgimento dos batimentos cardíacos no homem. O chute causa o
movimento da bola em direção ao gol. Vírus ou bactéria podem causar uma doença. O
hormônio adrenocorticotrófico causa a liberação de hormônios do córtex da glândula
adrenal. A quebra da turbina causa a queda do avião. O insulto causa a briga. Como são
causas iniciais, caso sejam também variáveis necessárias, a retirada delas anula a outra
variável. Note que mesmo que sejam questões complexas, como o caso do “insulto”, em
que outros fatores estejam interferindo, podemos definir uma ou algumas como as
variáveis que iniciaram o processo.
No caso da modulação, o processo se desenvolve e a variável interferente apenas o
afeta (aumenta, diminui ou abole). Ou seja, a variável dependente ocorre mesmo na
ausência da variável independente em estudo, sendo apenas modificada pela ação dela
(veja VI-7). No caso do batimento cardíaco, o estresse, um susto, ou mesmo a
deficiência de oxigênio ambiental são exemplos de variáveis que modulam a atividade
cardíaca. Ou seja, modulam (aceleram ou diminuem) essa atividade, mas se não
estiverem presentes o coração continuará batendo. Ao contrário, considerando-se o
exemplo do chute a gol, apresentado no item acima, sem o chute a bola não iria ao gol
da forma como foi com o chute.

VII-11 Qual a diferença entre associação e correlação?

As associações podem ser vistas por meio de correlações ou outras comparações entre
os comportamentos das variáveis. Esta distinção não se relaciona ao fato de haver ou
não interferência entre as variáveis. Quando temos variáveis que podemos quantificar, é
fácil o uso de correlações, que podem ser expressas em gráficos e fórmulas de
correlação. Vejamos esse conceito.
Duas variáveis podem se correlacionar positivamente ou diretamente (mesmo sentido
de variação para ambas), ou negativamente ou inversamente (sentidos inversos entre
elas). Essas correlações podem ser lineares (expressas por uma reta) ou não lineares
(como as geométricas, exponenciais, quadráticas etc). Elas podem se referir a apenas
duas variáveis se correlacionando (simples) ou mais de duas (multivariada). Pode-se
também correlacionar um conjunto de variáveis (por ex., variáveis que indicam “poder
aquisitivo”) e outro conjunto de variáveis (por ex., variáveis que indicam “bem-estar”),
neste caso chamada correlação canônica (um tipo de correlação multivariada).

136
Estou considerando uma causa única por questões didáticas. Podemos considerar também o nódulo
atrioventricular, que mantém o batimento cardíaco quando o nódulo sinoatrial falha. Nesse caso, o
importante é sabermos que há um fenômeno (controle do batimento cardíaco, seja por uma ou duas
regiões) que ocorrerá ou não em dependência da causa. Isso é muito diferente da modulação.

254

Quando há correlação entre variáveis, podemos traçar a equação matemática que


descreve tal comportamento (linear ou não, simples ou multivariada). Com essa equação
fazemos a regressão (regredimos um conjunto de pontos que mostram correlação entre si
a uma linha137). Vou me ater à forma mais simples e conhecida de correlação, que é a
regressão linear, que exemplifica os conceitos básicos necessários. A equação
matemática que descreve essa relação é Y = a + bX, sendo Y e X as variáveis em estudo
(respectivamente ordenada e abcissa no eixo cartesiano) e “a” e “b” os valores
numéricos de ponderação específicos a cada caso.

Figura 12. Exemplos de correlação e ausência de correlação em função do


comportamento dos dados dos pares plotados no eixo cartesiano. A = correlação
negativa; B, C e D = ausência de correlação.

Uma forma de se medir a correlação é pelo coeficiente de correlação (r), que varia de
-1 a +1, havendo correlação quanto mais próximo esse valor for de -1 (negativa) ou +1
(positiva); a correlação reduz conforme esses valores se aproximam de zero, que é o

137
Note que se a correlação não existir, não devemos fazer a regressão, mesmo que o programa
computacional permita.

255

valor que indica ausência de correlação. O valor de r elevado ao quadrado (r2) é o


coeficiente de determinação; ele nos diz o quanto (x 100 = %) uma variável dependente
é explicada pelo comportamento da outra

256

(independente). A Figura 12A é um caso típico de correlação negativa (r = - 0,90; r2 =


0,81); em B, C e D, temos ausência de correlação (r 0).
Mas há cuidados para tomarmos quando fazemos estudos de correlação. Um deles é
apresentado na Figura 20 (item IX-9).
Vamos agora a outra forma de considerar a associação entre variáveis, que não seja
por meio de correlações. Podemos identificar associação entre variáveis por meio de
análise de médias em grupos distintos. Imagine que queremos saber se existe associação
entre o tempo que a pessoa assiste TV e problemas lombares. Para tanto, classificamos
as dores lombares em níveis qualitativos (ausência, fraco, moderado e forte) e
quantificamos a outra variável (tempo assistindo à TV). Embora neste caso isso possa
ser feito por meio de um teste de correlação138, construindo-se um gráfico com os pares
de valores (intensidade numérica atribuída aos problemas lombares e tempo assistindo
TV), podemos fazer a análise por grupos dos problemas lombares, como mostrado no
exemplo hipotético da Figura 13.

Figura 13. Associação entre problemas lombares e tempo diário despendido sentado
assistindo TV. Valores médios (± dp) de 50 indivíduos em cada caso139.

138
Caso tivéssemos menos itens de intensidade (por ex., não x sim ou fraco x forte), estudos de
correlação não seriam convenientes, pois com poucos pontos geralmente se determina uma reta ou alguma
outra expressão de curva.
139
Dados e situação fictícios, apenas para exemplificação do conceito.

257

Admitindo que exista diferença entre as médias, vemos uma forte associação positiva
entre o aumento do número de horas em frente à TV e a gravidade dos problemas
lombares. Note

258

que estamos apenas nos referindo à associação. Possivelmente se as pessoas pararem de


assistir TV não necessariamente deixarão de ter esse problema. As dores lombares
parecem decorrer do tempo que ficam sentadas, admitindo que geralmente as pessoas se
sentam com postura inapropriada. Portanto, a motivação para sentar-se e a postura
inadequada são as causas do problema, sendo que isso leva à possibilidade de assistir
por longo tempo à TV (o que seria inviável se fosse em pé) e também aos problemas
lombares. Prova disso é que se desligarmos a TV, possivelmente essas pessoas
arrumarão outro motivo para se sentarem, como ficar à frente ao computador ou lerem
copiosamente. Por isso podemos dizer que testamos associação, mas não interferência
(veja próximo item desta questão). Assim, embora possamos testar associação por meio
de análise de correlação, também testamos essa relação lógica por meio de comparação
de médias ou medianas entre tratamentos. O que se detecta é que os maiores tempos em
frente à TV foram associados às maiores intensidades de problemas lombares.
A idéia de associação pode também ser avaliada qualitativamente (por ex., num
quadro de presença e ausência – Tabela 7). Isso reforça que a lógica da pesquisa
independe de sua metodologia (quantitativa ou qualitativa – veja II-3 e II-4). Por
exemplo, observam-se dois fenômenos concomitantemente, anotando-se suas
ocorrências, como mostrado na Tabela 7. A detecção de palavras de filiação no discurso
estava inversamente associada com a presença de palavras ofensivas. Da mesma forma,
as revoadas (por ex., de insetos) estão claramente associadas à presença (+) de chuvas.

Tabela 7. Exemplos de associação com variáveis qualitativas.



259

No segundo exemplo: + indica presença de revoada dos


insetos e – indica ausência desse comportamento.

260

Podemos ainda investigar qualitativamente a associação entre traços culturais e tipos


de palavras empregadas nas relações sociais; ou associação entre perfil político e grau de
altruísmo; entre outras. Reforço que a lógica da pesquisa permeia as divergências
metodológicas que, infelizmente, alguns ainda querem fazer acreditar que se tratam de
diferentes ciências. Nesse sentido, o que ensino aqui se aplica também às ciências
sociais, à educação, às Humanidades enquanto ciência empírica. Não se aplica ao
discurso filosófico e tampouco à religião. No caso das artes, este discurso lógico se
aplica apenas nos casos em que buscamos realizar estudo empírico dentro dessa área do
conhecimento.

VII-12 Como os tipos lógicos de pesquisa ajudam no delineamento do estudo?

O delineamento da pesquisa é uma conseqüência quase dedutiva da raiz lógica do


objetivo do estudo. Na Tabela 8 mostro o perfil lógico da pesquisa e sua implicação na
definição do planejamento. Com isso, o cientista tem uma ferramenta lógica para
idealizar seu planejamento do estudo. Por falha neste tipo de formação, alguns cientistas
ficam à mercê de protocolos de pesquisa pré-estabelecidos. Mesmo que eles existam em
alguns casos padronizados, você pode chegar a eles por raciocínio. Isso treina o
cientista, além de lhe dar a chance de descobrir um delineamento inovador e mais
interessante. Afinal, qualquer protocolo clássico foi inventado em algum momento e,
como a ciência não pressupõe deter verdades que extrapolam o tempo, protocolos
melhores são sempre esperados... e bem-vindos.

261

Tabela 8. Implicações lógicas dos tipos de pesquisa para o delineamento do estudo.


Pesquisa Requisitos Lógicos Implicações
Amostragem representativa
(número e estrutura)
Caracterizar a parte e
Descritiva Caracterização cuidadosa
extrapolar para o todo.
Inferência a partir dos
traços comuns da descrição
Se há interferência entre
variáveis, necessariamente
há associação entre elas.
A associação pode ser
Associação sem O comportamento de uma
multivariada; ou seja, o
interferência variável é proporcional ao
conjunto das variáveis
da outra variável.
pode ser determinante da
associação, mas uma delas
isoladamente não mostra
associação.
A variação de uma variável Ausência de associação
é proporcional à da outra implica ausência de
variável. Interferência interferência predominante.
pressupõe mecanismo(s) Ausência de mecanismo
pelo(s) qual(is) uma coloca em dúvida a relação
variável afeta a outra. de interferência.
Alterando-se a variável Pesquisas de intervenção
Associação com
interferente, altera-se o ganham força para
interferência 140
efeito. convencer a comunidade
científica da existência de
interferência. Porém, nos
casos em que isso não é
possível, a demonstração é
feita apenas pelos dois
quesitos acima.

140
Nos estudos de interferência podemos ter casos em que o conjunto de variáveis interfere numa outra
variável, de forma que apenas uma variável, embora interferente, não afete (sozinha) a variável efeito.
Neste caso, é o conjunto que determina o efeito e não cada uma das variáveis; portanto, alterando-se o
conjunto altera-se o efeito. Ex.: vários fatores que, no conjunto, levam a uma doença.

262

VII-13 O que é o delineamento de uma pesquisa?

Conhecer o delineamento da pesquisa é fundamental para entendê-la, seja para


construir o texto dessa pesquisa ou para entender um texto que se lê. O delineamento
reflete a proposta intelectual do cientista. É como ele armará uma armadilha para que a
natureza (base empírica) lhe dê a resposta à indagação do cientista.
Embora aparentemente simples, é quando os alunos de graduação e pós-graduação
mais erram em sua enunciação. Vejamos alguns exemplos.
O objetivo da pesquisa é saber se o uso de apresentações Power Point melhora a
qualidade do ensino em matérias teóricas. Do ponto de vista lógico, essa é uma pesquisa
que testa uma hipótese de associação com interferência entre as variáveis (veja VII-10).
A variável independente é a apresentação Power Point e a dependente é o aprendizado
do aluno. Portanto, devemos variar a variável independente e mensurarmos ou
qualificarmos a variável dependente. Como o nível prévio de conhecimento do assunto
pode variar entre os indivíduos e interferir na pesquisa, usaremos uma situação controle
que identificará (e corrigirá) o nível prévio de conhecimento de cada aluno (pré-teste) a
ser testado, contrastando com um teste após a aplicação da aula (pós-teste), com ou sem
Power Point. Basicamente, o delineamento pode seguir o esquema abaixo.

Variável Pré-teste Pós-teste


Independente
Com Power Point Desempenho x Desempenho w
Sem Power Point Desempenho y Desempenho z

O delineamento inclui essa distribuição dos grupos (duas condições da variável


independente e resultados em dois testes (pré e pós-teste), sendo avaliado o desempenho
(notas nas avaliações = x, y, w e z). Assim, comparando-se os desempenhos (x, y, w e z)
entre as quatro possibilidades, poderemos avaliar o papel da ferramenta Power Point no
ensino dessa amostra de indivíduos. Se incluímos nesse esquema o número de alunos
que será testado em cada condição da variável dependente, teremos concluído o
delineamento desse estudo. Note que não lhe disse que prova será aplicada e nem
detalhes do sujeito investigado. Mostrei apenas a estratégia intelectual do estudo. A
partir dessa estratégia, você tem condições de imaginar muitas coisas do estudo
(inclusive análises possíveis para os dados, como comparação de freqüências, de médias
ou mesmo testes de correlação entre pré e pós-testes.
Num segundo estudo, queremos saber se ter certa doença está associada com certas
características da vida gestacional e nascimento das pessoas. Não estamos supondo que
essas características causem a doença, mas que estejam associadas a ponto de serem
elementos diagnósticos preditivos (conhecendo-se essas características podemos prever
a probabilidade que esperamos de esses indivíduos desenvolverem a doença em
questão). O delineamento básico é o seguinte:

263

Características de Vida Com doença Sem doença


A a a’
B b b’
C c c’
D d d’
E e e’
F f f’

Neste caso, as letras minúsculas serão os resultados que você obterá, cuja comparação
entre as condições “com” e “sem” permitirá avaliar quais características (primeira
coluna) possuem esse papel preditivo da doença. Devemos acrescentar o número de
indivíduos que serão investigados e se isso será feito por meio de análise de prontuários
(dados já existentes) ou por entrevista direta aos indivíduos. Esta última distinção tem
sido motivo de muito debate na área de saúde, considerando-se que os dados obtidos
diretamente são mais confiáveis para alicerçar a conclusão nesse tipo de estudo. No
entanto, do ponto de vista lógico, a questão é bem mais simples: desde que você acredite
que os dados são válidos (sejam eles coletados diretamente ou não), eles podem ser
usados.
Note que o esboço acima mostrou o delineamento do estudo, mesmo que detalhes
dele não tenham sido incluídos. Por exemplo, não dissemos quais características serão
investigadas. Lógico que se investigarmos as características erradas, a pesquisa estará
errada. Assim, essas informações são importantes e complementam o esqueleto lógico
mostrado acima. Um exemplo seria o esquematizado a seguir.

Casos da doença na família? a a’


Prematuridade? a a’
Peso ao nascer b b’
Altura ao nascer c c’
Idade em que começou a andar d d’
Pressão alta da mãe na gravidez e e’
Idade da mãe no nascimento da criança f f

Com esse quadro detalhado, o delineamento da pesquisa está completo. Ela pode ser
entendida e, então, podemos discutir os detalhes.
Imagine outro objetivo: testar se o tipo de combustível (álcool, gasolina) interfere na
durabilidade dos motores flex automotivos. Este objetivo pressupõe que o tipo de
combustível predominante atuando num mesmo motor (flex) possa interferir na sua
durabilidade. O teste dessa hipótese poderia ser delineado da seguinte forma:

264

Tipo de Combustível Duração média


(km rodados)
álcool X
gasolina Y

Note que teríamos que testar vários motores flex com cada tipo de combustível.
Mesmo que cada motor possa trabalhar com os dois combustíveis, a pergunta inicial é se
o tipo de combustível usado continuamente no mesmo motor interfere na durabilidade
desse motor. A comparação entre x e y nos possibilitaria testar a hipótese do estudo.
Considere, agora, o delineamento abaixo para a mesma questão geral.

Combustível Duração média (km rodados)


100% Álcool a
100% Gasolina b
25% Álcool + 75% Gasolina c
50% Álcool + 50% Gasolina d
75% Álcool + 25% Gasolina e

Neste outro delineamento, investigamos a mesma questão geral que a do caso


anterior, mas incluímos a questão de que a proporção dos combustíveis deve também ser
considerada. Ou seja, para cada detalhe de alteração no objetivo poderemos ter uma
alteração no delineamento.
Note que esse esboço teórico determina o modo como imaginamos avaliar nossa
hipótese. Para uma hipótese pode haver mais de uma forma de investigação, e cabe ao
cientista escolher a forma mais adequada. Note também que o delineamento escolhido
também poderá determinar a qualidade do texto a ser publicado. Delineamentos
complexos podem tornar o texto mais difícil de ser entendido, sem grandes acréscimos
para a qualidade da conclusão.
Uma pesquisa descritiva também tem delineamento. Ele basicamente envolve a
amostragem adequada da população e a qualificação ou quantificação da variável que
representa o item a ser descrito. Por exemplo, se desejamos conhecer o nível de
alfabetização da população brasileira, teremos que definir operacionalmente o que
entendemos por alfabetização (por ex., que se leia um texto de jornal popular e consiga
entendê-lo) e como será o processo de amostragem. A amostra deve contemplar a
estrutura da população (por ex., percentuais de homens e mulheres, faixas etárias, níveis
socioeconômicos, regiões do país etc). Com isso temos o delineamento do estudo. Ao
realizar o estudo, uma vez de posse dessa amostra, qualifique (alfabetizado ou não) ou
quantifique o grau de alfabetização (notas de 0 a 10) de cada indivíduo, identificando
posteriormente o quadro geral dessas respostas. Esse perfil (quadro geral) será sua
conclusão. Note que você não está interessado, no caso da pesquisa descritiva, em saber
que variáveis levaram a esse perfil (neste caso, seria pesquisa de associação com
interferência e não descritiva).

265

266

VII-14 O que é grupo controle? Quais as principais ferramentas de controle?

O grupo controle é todo aquele que controla alguma coisa. Nos estudos descritivos
(veja VII-10), não há grupo141 controle, pois não há a intenção de qualquer tipo de
comparação, apenas uma caracterização (descrição) da variável. Nos estudos de
associação, não temos efetivamente um controle como é considerado nos termos
clássicos, embora a noção de controle exista. Nos estudos de associação com
interferência há necessariamente a presença de grupos controles; para saber que algo
interferiu, precisamos, no mínimo, saber como era a situação sem essa variável
interferente. Assim, veja o delineamento abaixo, que pretende testar a hipótese de que o
barulho inibe a reprodução de certo organismo.

Grupo experimental: organismos em condições de barulho.

Grupo controle: organismos em condições sem barulho.

Veja como é importante a existência desse controle (sem barulho). Considere,


inicialmente, que todo planejamento deve permitir que se atinja o objetivo142 do estudo.
Se tivéssemos apenas o grupo experimental, não teríamos certeza de que os organismos
não se reproduziram por outro motivo. Quando vemos que apenas no grupo com barulho
não ocorreu a reprodução, inferimos que isso ocorreu devido à presença do barulho,
neste caso assumindo que as outras condições entre esses organismos não variaram.
Porém, e se nenhum dos animais se reproduzir, com ou sem barulho? Qual a
conclusão? Neste caso sabemos que essa ausência de reprodução não foi um efeito do
barulho, porque os animais do grupo controle (sem barulho) também não se
reproduziram. Pode ser, por exemplo, que nas condições em que os animais estão eles
não se reproduzam (por ex., organismos que têm a reprodução suprimida em ambiente
artificial). Neste caso, o grupo controle mostrou que o problema pode ser do ambiente.
Imagine agora que você deseja testar se certa droga tem efeito mutagênico, cuja
importância se justifica porque tal fármaco poderia levar a desenvolvimento de câncer.
O esperado é que indivíduos recebendo essa droga desenvolvam sinais (quantificáveis
ou qualificáveis)143 indicativos

141
Uso o termo grupo no mesmo sentido de tratamento ou condição num delineamento de pesquisa.
142
Note que o objetivo de qualquer pesquisa empírica será ou a descrição de algo, ou o teste de uma
hipótese. Assim, se é descritivo, deverá descrever; se testa hipótese, deverá ser suficiente para testá-la. O
fato de a hipótese ter sido corroborada ou falseada não é relevante para o delineamento. Assim, todo
delineamento deve permitir que se atinja o objetivo da pesquisa.
143
Esses sinais serão as variáveis operacionais (veja VI-3). Podem envolver análise quantitativa ou
qualitativa, mas em ambos os casos representam base empírica a partir da qual o cientista elaborará suas
conclusões.

267

de mutagênese. Para certificar-se de que o efeito foi dessa droga, como no caso anterior,
deverá ter um controle (indivíduos sem droga). Novamente, se os indícios de
mutagênese ocorrerem apenas nos indivíduos que receberam a droga, e não naqueles
sem a droga, terá subsídios do efeito muta-gênico da droga. Mas pode ocorrer de não
haver indícios de mutagênese em nenhum dos grupos (com ou sem droga). Você
concluiria que a droga não tem efeito mutagênico?
Para isso serve a metodologia científica, para tentar reduzir nossas chances de erro de
pensamento. Assim, no caso da suposta droga mutagênica permaneceria uma dúvida
quando nenhum sinal de mutagênese fosse encontrado. Os sinais de fato não existem
porque a droga não tem efeito mutagênico, ou os pesquisadores não conseguiram
detectar adequadamente esses sinais? Para descartar essa última possibilidade, é
necessário provar que se os sinais de mutagênese estivessem presentes os pesquisadores
os detectariam. Assim, é necessário incluir um controle positivo.
O controle positivo é um tipo de controle no qual você induz uma resposta esperada.
No caso, esse grupo receberia uma droga sabidamente indutora de mutagênese, cujos
indícios devem aparecer necessariamente. Quando os dados forem coletados, os
pesquisadores devem relatar mutagênese nesse grupo. Caso não relatem, então a coleta
de dados fica desacreditada e o estudo deve ser melhorado (a técnica de coleta de
indícios de mutagênese deve ser aprimorada). Caso nesse controle positivo a mutagênese
seja detectada, mas não nos outros grupos (controle sem droga e grupo com droga),
então pode-se dizer que a droga não induziu mutagênese.
Como visto acima, temos aqui dois tipos de controle: o controle positivo (que faz
aparecer uma resposta esperada) e o controle negativo (sem a variável experimental e no
qual a resposta esperada não deve ocorrer).
Outra variação importante do controle é o grupo SHAM. É restrita a organismos
vivos, pois controla estresse. Imagine que sua pergunta agora seja se existe participação
de certa estrutura interna do organismo numa certa função. Por exemplo, saber se a
glândula sinus dos crustáceos exerce alguma ação sobre a atividade locomotora desses
animais.
Basicamente, você deverá medir a locomoção (variável dependente) em condições de
variação da variável independente (glândula sinus). Ou seja, no delineamento mais
básico, considerará animais com glândula sinus e animais sem glândula sinus (visto que
não é uma glândula de influência vital e, portanto, pode ser retirada). Poderá também
optar por outro delineamento, em que registrará a locomoção nos mesmos animais, antes
e após a retirada da glândula sinus. Seja como for, o fato é que comparará a atividade
locomotora nas situações com e sem glândula sinus (sendo ou não nos mesmos animais).
Qualquer resultado que você obtenha carregará consigo a dúvida sobre se o efeito (ou
ausência dele) decorreu da glândula sinus ou do estresse provocado (cirurgia) pela
retirada dessa glândula. Conseguir uma situação sem esse estresse é impossível (note
que nos exemplos anteriores, tínhamos uma situação sem a presença evidente de agentes
interferentes). Assim, a solução é incluirmos um grupo onde os animais recebem apenas
o estresse, mas a glândula não é retirada. Esse tipo de intervenção que não se completa
com a alteração da variável experimental (no caso, o

268

glândula sinus) é chamada de controle SHAM. Vamos assumir que a glândula sinus, de
fato, reduza a locomoção. Veja, então, o que poderia ocorrer e como interpretar cada
caso.

Controle (sem cirurgia) = locomoção em nível 5

Experimental (extirpação da glândula sinus) = locomoção em nível 12

SHAM = locomoção em nível 5

É evidente que apenas a cirurgia (SHAM) pode também ter um efeito na locomoção,
aumentado-a (por ex., nível 7) ou reduzindo-a (nível 3). Mas consegue-se distinguir o
efeito proveniente da manipulação (SHAM) e aquele da ausência da glândula sinus
(experimental). Assim, podemos concluir que a glândula sinus reduz a atividade
locomotora nesses animais. Caso a manipulação SHAM seja tão forte (= 12) quanto
algum possível efeito da glândula sinus (= 12), esse efeito da glândula será encoberto e a
conclusão deve ser mais cautelosa: o efeito da glândula não supera aquele da
intervenção e, portanto, estudos com maior controle do efeito do estresse de cirurgia
devem ser realizados. Mas note que o controle SHAM permite ao cientista posicionar-se
conclusivamente sobre seu estudo (mostrar um efeito ou duvidar do resultado).
Outra forma de controle é o uso de placebo. Basicamente, alguma coisa dada ao
organismo, mas cuja essência da variável de teste não está presente. No caso de drogas,
em que é amplamente usado, seria a administração do veículo que conduz a droga (por
ex., pílula de farinha ou açúcar). Assim, podemos ter um grupo com a pílula com a
droga e outro com a pílula sem a droga (esta última seria o placebo). Ele controla efeitos
que o veículo da variável em teste poderia ter sobre o organismo. Controla também a
subjetividade do indivíduo (no caso de humanos) que, ao receber algum medicamento,
pode achar que ficou curado e, de fato, algumas enfermidades de origem psicológica
podem ser eliminadas. No caso da homeopatia, por exemplo, uma das críticas mais
fortes é que carece de estudos com placebo.
Outro local onde o conceito de controle aparece, de forma pouco convencional, é nos
estudos de associação, com ou sem interferência, quando resultados da variável teste são
comparados entre si. Se seu estudo produzir um gráfico de correlação entre variáveis,
note que os dados servem de referenciais entre si. Se o dado da direita estiver acima do
dado da esquerda, somos inclinados a falar sobre um aumento da resposta de uma
variável em função da outra. Os gráficos das Figuras 12A e 13 (veja VII-11) servem
para esta ilustração.
Na Figura 12A, à medida que os pontos da direita se distanciam abaixo dos pontos da
esquerda, podemos pensar numa associação (correlação negativa). Essa associação é
percebida apenas porque temos referenciais. Assim, não deixa de ser um controle,
embora ele apenas sirva de referencial. Sabemos que o fenômeno indica correlação
negativa porque comparamos cada ponto com outros pontos referenciais. A partir disso
concluímos sobre a correlação.

269

Na Figura 13, a situação é similar, mas agora com tratamentos ao invés de pontos
isolados. Os níveis de tempo assistindo TV servem, cada um, de referência aos demais.
Não deixa de ser um controle (maior x menor). Não se costuma chamá-los de controle,
porque não estão diretamente controlando algo, mas do ponto de vista lógico a questão
envolvida é a mesma que nos outros grupos. Um tem o tempo maior e o outro o tempo
menor. Portanto, olhamos um em relação ao outro (seu controle).
Considerando-se a metodologia científica pelo lado da lógica, entro agora em mais
um controle. Aquele que controla a subjetividade do pesquisador. Infelizmente, os
cientistas têm reforçado muito os estudos que confirmam hipóteses (veja II-9 e II-11).
Com isso, ficam felizes quando os dados corroboram suas hipóteses e tristes quando as
negam. Nesse ambiente psicológico, é natural que algumas situações que negam o que o
cientista deseja obter estejam sob a influência psicológica que procura negá-la. E isso
não é nem desonestidade intelectual... trata-se de um fenômeno subjetivo a que todos
estamos sujeitos. Assim, a alternativa é conseguir procedimentos que neutralizem essa
subjetividade.
Uma alternativa são os estudos com duplo cego. Ou seja, o indivíduo que coleta os
dados, não sabe de onde eles proveem. E aqueles que sabem a origem dos dados, não os
coletam. Assim, por esse duplo cego (ambos não vêem) elimina-se a possibilidade de a
pessoa conduzir o resultado segundo sua intenção, mesmo que inconsciente.

VII-15 Devo usar os mesmos indivíduos nos grupos experimentais?

Outro aspecto importante a decidir no planejamento da pesquisa é se utilizamos os


mesmos indivíduos em duas ou mais condições, ou se usamos indivíduos diferentes para
cada grupo. Em alguns casos, as próprias variáveis definem o que devemos fazer. Por
exemplo, se estudamos alguma variável144 que, para ser medida ou qualificada,
precisamos sacrificar o indivíduo, então não temos opção senão usar indivíduos
diferentes em cada grupo.
Porém, na maioria dos casos, não precisamos sacrificar os indivíduos. Por exemplo,
para testarmos se o estresse reduz a taxa de crescimento dos indivíduos, ou se a resposta
dos animais varia ao longo do dia, ou se o uso de certa droga afeta certo tipo de
comportamento. Assim, dada nossa pergunta, podemos ter que decidir se usaremos um
delineamento em que cada indivíduo será amostrado mais de uma vez, ou se cada um
deles pertencerá a uma condição de estudo (tratamento) completamente independente
da(s) outra(s).
Digamos que nossa questão seja saber se determinado medicamento (variável
independente) melhora a reação das pessoas à estimulação externa (variável
dependente). O delineamento

144
Por exemplo, peso de algum órgão interno que envolve o sacrifício do animal ou planta, peso seco
de estrutura vital (por ex., raiz ou carcaça de animais), entre outras.

270

básico consistirá na comparação dos valores de, por exemplo, tempo de reação, em duas
situações: a) sem o medicamento e b) com o medicamento. Neste caso, podemos
igualmente trabalhar com grupos independentes (num tratamento as pessoas tomam o
medicamento e em outro as pessoas não o tomam, ou tomam um placebo), ou com
grupos dependentes (as mesmas pessoas são avaliadas antes e após tomarem o
medicamento). Como escolher?
Na realidade, as duas possibilidades podem ser feitas. O que nos auxilia para
determinar a mais adequada é nosso conhecimento sobre a variável dependente (no caso,
a reação das pessoas a algum estímulo). Se essa reação variar muito entre os indivíduos
num mesmo tratamento (por ex., condição sem o medicamento), poderá camuflar
diferenças significativas em relação ao outro grupo (com medicamento). Nesse caso,
devemos optar por grupos dependentes, ou seja, os mesmos sujeitos avaliados nos dois
momentos (antes e após o medicamento). Vejamos o exemplo da Tabela 9.

Tabela 9. Efeito de medicamento na reação a estímulos externos em seres humanos.


Tempo para reação (ms) à estimulação
Indivíduos
Antes Após
1 63,5 70,9
2 98,4 120,3
3 35,5 50,0
4 78,3 98,2
5 100,1 123,7
6 55,6 80,4
Média 71,9 90,6
d.p. 25,3 28,9
C.V. 35,2 31,9
145
d.p. = desvio padrão; C.V. = coeficiente de variação (%) .

Para análise desses dados, veja VII-20. Assim, se usamos diferentes pessoas em cada
momento (antes e após o medicamento), o teste adequado (t independente) mostra um
valor calculado de t = 1,19 (p = 0,26) e, portanto, devemos concluir que o medicamento
não foi suficiente para alterar o tempo de reação a estímulos externos. Isso ocorre
porque, a despeito da diferença entre as médias (71,9 x 90,6), há uma grande
variabilidade dos dados em torno de cada média (veja os coeficientes de variação).

145
O CV é a relação entre o desvio padrão e a média; ou seja, ele indica quantos por cento o desvio
padrão (dp) significa em relação à média. É obtido como produto de uma regra de três: CV =
(dp.l00)/média.

271

Porém, se esses mesmos resultados fossem provenientes dos mesmos animais para
cada condição (antes e após o medicamento), o teste adequado seria o teste t dependente,
que nos revelaria um valor de t = 6,93 (p = 0,001), que indica que o medicamento
alterou a reação das pessoas (como a média após o medicamento é maior, então dizemos
que o medicamento aumentou o tempo de reação ao estímulo).
Duas avaliações antagônicas: com qual ficar? Houve uma grande variação (veja o
coeficiente de variação) dos dados na primeira condição (sem medicamento), o que pode
ter camuflado a detecção da diferença entre os dois grupos. Assim, se usarmos o
procedimento adequado para casos com grande variação dos dados numa mesma
condição (amostras dependentes), o tempo de reação de cada pessoa após o
medicamento poderá ser corrigido pelo seu próprio tempo antes do medicamento, nesse
caso usando teste que considera amostras dependentes entre si. Isso permite que melhor
evidenciemos o efeito da variável independente (medicamento) sobre o parâmetro em
estudo (reação à estimulação externa). O teste t dependente, assim como outros testes146
para condição de dependência (amostras repetidas) entre os dados, considera a variação
dentro de cada par de dados (após - antes em cada indivíduo). Dos dados apresentados
neste exemplo, fica claro que todas as pessoas aumentaram o tempo de reação à
estimulação, o que é relevante também do ponto de vista biológico. Fica ainda evidente
que a opção por usar os mesmos indivíduos ou não pode determinar a direção da
conclusão do estudo.
Porém, a situação pode ser mais complexa. Alguns autores colocam restrição à
decisão acima. A argumentação é a de que o uso de delineamentos com os mesmos
indivíduos sob diferentes condições da variável independente “força” a possibilidade
para encontrarmos diferenças significativas estatisticamente. Vejamos essa situação.
Imagine que você quer saber se a reação dos indivíduos varia em função do horário
do dia. Para isso, observará essa reação nos mesmos indivíduos em dois horários, às
9:00 h e às 16:00 h de um mesmo dia. Esse delineamento com dependência auxilia a
detectar pequenas variações, uma vez que cada dado é corrigido no mesmo indivíduo. E
é exatamente por isso que se suspeita que esse delineamento force a detecção de
diferenças. Se, por outro lado, você investigar indivíduos diferentes, uns pela manhã e
outros à tarde, e encontrar respostas diferentes, a “crença” de que o efeito do horário
existe aumenta (afinal, foi obtida em diferentes indivíduos representantes de uma mesma
população). Nesse caso, se os dados variam muito, sua alternativa será aumentar o
número de réplicas para reduzir o coeficiente de variação dentro de uma mesma variável
independente.

146
Por exemplo, ANOVA para medidas repetidas.

272

VII-16 É possível controlar todas as variáveis em uma pesquisa científica?

Num delineamento ideal a respeito do efeito de uma variável sobre outra, todas as
condições deveriam ser controladas e apenas uma variar entre os grupos experimentais.
Como isso é impossível, o que fazemos é distribuir as variáveis que não conseguimos
controlar entre os grupos que vamos comparar. Essa distribuição deve ser ao acaso, para
se evitar que os resultados obtidos sejam produtos de um viés decorrente dessa
distribuição. Vejamos um exemplo.
Ao testarmos o efeito do peso corporal de camundongos sobre a agressividade desses
animais, podemos querer testar que os animais grandes sejam os mais agressivos. Essa
pesquisa pode ser desenvolvida considerando-se dois grupos: a) camundongos pequenos
e b) camundongos grandes. Porém, se os camundongos grandes forem também os
adultos e os pequenos os imaturos, fica impossível discernir se algum possível efeito
decorreu do peso ou da maturidade. Assim, uma possibilidade seria trabalhar com
camundongos maduros e de diferentes tamanhos (adultos maiores e adultos menores).
Nesse mesmo exemplo, podemos supor que haja tendência inata (genética) sobre a
agressividade. Esta, porém, se existe, não é fácil de ser determinada para se constituir os
grupos de estudo. Nesse caso, devemos distribuir ao acaso os animais imaturos entre as
duas condições (usando um grande número de réplicas; veja VII-15 e IX-5). Esse
procedimento pressupõe que, caso haja efeito da variável genética, esse efeito será
distribuído casualmente entre os grupos. Ou seja, os fatores genéticos que determinam
maior agressividade e os que determinam menor agressividade estariam, cada um, em
diferentes indivíduos e esses indivíduos seriam distribuídos aleatoriamente em cada
grupo de estudo, distribuindo essa possível fonte de erro “igualmente” entre os
tratamentos (tamanho menor e tamanho maior). Assim, se a condição genética for um
fator preponderante sobre a agressividade, ela estará igualmente presente entre os grupos
e, portanto, os resultados tenderão a mostrar mesma taxa de agressão em função do
tamanho. Se, por outro lado, o tamanho tiver alguma influência importante, esta poderá
aparecer entre os grupos; ou seja, se houver diferença de agressividade entre os grupos,
esta não poderá ser atribuída à condição genética (pois foi aleatorizada), mas à diferença
de peso entre os animais.
Um terceiro caso ocorre quando a variável indesejada pode ser identificada após a
fase de coleta de dados. Digamos que o grau de maturidade sexual, expresso em termos
de desenvolvimento gonadal ou produção de hormônio sexual, seja uma das possíveis
variáveis interferentes na agressividade dos animais. Nesse caso, mesmo distribuindo os
indivíduos ao acaso entre os grupos, podemos reforçar nossa conclusão avaliando essa
condição (grau de maturidade) a posteriori. Para isso, basta examinarmos os resultados
de agressão em função dos valores obtidos sobre a “maturidade” (nível hormonal ou
desenvolvimento das gônadas). Se, de fato, essa maturidade influenciar a agressividade,
detectaremos uma associação das respostas de agressão com as condições de
maturidade. Nesse caso, permanece a dúvida sobre a variável importante na
determinação da agressividade: tamanho e/ou grau de maturidade. Mesmo assim,

273

saberemos que a maturidade deve ter algum papel. Porém, se não houve associação
significativa entre essas variáveis, podemos concluir que o grau de maturidade não

274

foi preponderante nos resultados e, então, retornar à análise considerando o peso dos
indivíduos. Análises estatísticas podem nos dizer o peso de cada uma dessas variáveis
(peso e grau de maturidade) na agressividade.
Por causa das variáveis indesejadas, e devido às dificuldades em controlá-las, é que
realizamos grupos controles, nos quais distribuímos essas variáveis e, assim, garantimos
a variação de apenas uma delas (a variável desejada para teste) (veja VII-14).
Se desejar saber se algum fator interferente contaminou seus resultados, também pode
usar este mesmo princípio. Digamos que em seu estudo você precisou retirar sangue de
alguns animais. O resultado obtido seria afetado pelo procedimento de retirada de
sangue? Embora para isso a maioria das pessoas procure padronizar esse procedimento
de retirada de sangue, na prática isso pode ser impossível (pequenas variações podem
ocorrer entre cada indivíduo amostrado). Assim, metodologicamente, o ideal seria que
registrássemos detalhes do procedimento realizado em cada indivíduo (por ex., tempo
para retirada do sangue, volume de sangue retirado, número de tentativas para obter o
sangue etc. – seriam variáveis “indesejáveis”, pois representam erro técnico). Ao final
do estudo, teste seus resultados em relação a essas variáveis. Poderia fazer, por exemplo,
testes de correlação entre as respostas e as variáveis indesejáveis – se houver correlação
significativa, seus resultados podem ser explicados pelas variáveis indesejáveis e,
portanto, não poderá atribuí-los à variável em teste. Se, por outro lado, não houver
correlação entre elas, assume-se que elas não explicam as diferenças obtidas e, nesse
caso, poderá voltar a atenção às suas variáveis experimentais em teste.
Do exemplo acima, você pode extrapolar a situação para cada caso em que haja
variáveis potenciais interferentes. Basta registrá-las e buscar, a posteriori, saber se elas
sozinhas explicariam as respostas obtidas. Como é uma questão lógica, assim como
tantas outras abordadas neste livro, vale para qualquer área do conhecimento.

VII-17 O que é amostra?

Quando fazemos ciência empírica, buscamos entender elementos do mundo natural,


que podem ser pessoas, uma espécie de planta ou animal não humano, um tipo de solo,
um fenômeno físico, uma relação social, um processo cognitivo etc. Seja o que for,
queremos entender um “todo” que é muito grande. Como geralmente não temos
condições de estudar cada elemento desse todo (por ex., cada ser humano para explicar
os seres humanos), então estudamos alguns deles, em uma “amostra”.
Essa amostra é composta do que chamamos de réplicas – são unidades (no ex., cada
ser humano) que se imagina serem similares e que representam o “todo” que se quer
estudar. Vejamos um exemplo. Você quer saber se a música melhora a produção de leite
em gado Nelore. Para isso, você pode ter basicamente dois tratamentos: a) gado ouvindo
música; b) gado sem ouvir música. Todas as outras condições devem ser iguais entre
esses dois tratamentos (por ex., local onde os

275

animais ficam, número de animais por local, idade e tamanho dos animais,
procedimentos de manipulação dos animais etc.). Porém, não basta estudar uma vaca em
cada um dos tratamentos. Por quê? Porque mesmo as vacas sendo “iguais”, cada vaca
tem sua individualidade e pode haver diferenças entre elas147. Para saber se uma possível
diferença de resposta de produção do leite decorreu do tratamento (presença ou ausência
de música) ou de outras condições do indivíduo, você precisa ter mais indivíduos em
cada tratamento. Se houver um efeito do tratamento (música), então você verá que o
conjunto de respostas dos indivíduos de um tratamento, mesmo com variações entre
eles, será diferente do conjunto de respostas dos indivíduos do outro tratamento, também
incluindo aí as variações individuais. Esse conjunto de indivíduos num tratamento é a
amostra desse tratamento. Ela representa a população de vacas Nelore. Assim, o que
ocorrer com essa amostra (se devidamente representativa das vacas Nelore) será
entendido como válido para todas as vacas Nelore, até que se prove o contrário.
Se seu estudo é descritivo, terá apenas uma amostra que representa o “todo”
(população) que você deseja conhecer. Se for uma pesquisa que testa hipótese de
associação entre variáveis, muito freqüentemente terá uma amostra, na qual avaliará
duas ou mais variáveis buscando identificar associações entre elas. Se for pesquisa com
teste de hipótese de associação com interferência entre variáveis, poderá ter duas ou
mais amostras (uma para cada tratamento), avaliando a variável de estudo em cada uma
delas. Mas neste último caso poderá também ter apenas uma única amostra, na qual a
variável dependente será examinada numa situação antes e numa situação após a
interferência de alguma outra variável. Em todas essas pesquisas, as amostras serão
compostas por certo número de indivíduos. A determinação correta desse número
(tamanho da amostra ou número de réplicas) é fundamental e é a questão do item
seguinte.

VII-18 Como determinar o tamanho da amostra e o número de réplicas/


repetições?

Esta é uma das dúvidas mais comuns entre os pesquisadores. Inicialmente, vou lhes
mostrar alguns fatores que influenciam a amostragem. Ao final desta questão, forneço
uma regra prática para estabelecer o tamanho amostrai em seu estudo; uma regra que
considera conjuntamente todos os fatores envolvidos nesse processo.

147
A variação de respostas de casos dentro de uma mesma condição de estudo (por ex., tratamento)
não decorre apenas de variações dos indivíduos, mas podem decorrer também de variações nas condições
impostas a esses indivíduos (por ex., algumas características físicas do local onde estão podem não ser
exatamente iguais às do outro tratamento). Portanto, as variações são resultantes da interação entre
variações nas condições do tratamento e as variações individuais.

276

a. Maior representatividade da população

Uma população é composta de elementos (suas partes). A população de diabéticos


brasileiros é composta por todos os brasileiros diabéticos. Se estudamos o
comportamento de certo tipo e marca de amortecedor de carro, a população é o conjunto
desses amortecedores. Se o interesse é a aprendizagem por inputs visuais, então toda e
qualquer aprendizagem particular que decorra de estímulos visuais comporá essa
população. Se investigamos o comportamento de ajuste social de ex-presidiários
brasileiros, cada ex-presidiário de nosso país faz parte dessa população.
No entanto, note que cada uma das populações exemplificadas acima possui uma
estrutura interna. Por exemplo, os diabéticos brasileiros são compostos por pessoas com
uma distribuição de gênero (% de homens e % de mulheres), de idade (% em cada faixa
de idade), de grau de instrução, de gravidade da doença etc. Os amortecedores presentes
hoje podem ser derivados de diferentes fabricantes (variações percentuais entre eles
quando vemos o conjunto dos amortecedores que estão no mercado). No caso da
aprendizagem, poderá haver uma diferença entre gênero das pessoas (% homens e %
mulheres), ou de idade, ou ainda de classe social etc. Na população dos ex-presidiários,
eles se diferenciam também em relação ao tipo e número de delitos cometidos, gênero,
idade, grau de instrução, nível econômico etc.
Se a população tem certa estrutura (como visto no parágrafo anterior), uma amostra
que pretenda representar essa população deve conter a mesma estrutura dessa população.
Assim, se a população é composta de 45% de homens e 55% de mulheres, a amostra
deve ter esses mesmos percentuais para cada sexo. No entanto, o que fazer quando não
conhecemos todos os detalhes da estrutura da população? A alternativa que resta é
selecionar indivíduos de forma aleatória, assumindo que, com isso, aqueles perfis mais
freqüentes da população aparecerão também de forma mais freqüente na amostra; e os
menos freqüentes serão também menos freqüentes na amostra. Esse é o princípio geral
que rege a amostragem. Devido a isso, a amostragem se baseia em algumas regras e o
procedimento deve ser muito cauteloso. Uma amostra que não representa a população
invalida todo o estudo. Na busca por uma amostragem adequada, mostro a seguir dois
cuidados importantes.

al. estudar vários filhotes de um mesmo casal pode levar a conclusões condicionadas
às características genéticas desses pais, o que pode não representar
adequadamente o perfil genético da população. A conclusão pode representar
apenas os filhos daqueles pais e não os filhos de indivíduos daquela população.

a2. a seletividade na captura ou de aquisição de informação pode levar a vieses


amostrais como, por exemplo, a seleção dos animais mais lentos (que puderam
ser facilmente capturados), das plantas mais baixas (que o pesquisador conseguiu
amostrar), das pessoas mais desinibidas (que se prontificaram a ser entrevistadas)
etc, que representam, em última análise, uma faceta particular da população. Um

277

exemplo comum é quando iniciamos um estudo com 30 animais e, devido à


mortalidade, conseguimos coletar os dados em apenas 10

278

deles. É fundamental que, nesse caso, registremos na publicação o ocorrido, pois


nossos 10 animais estudados derivaram de uma seleção prévia (aqueles que
sobreviveram às condições impostas).

Na amostragem, a crença mais comum é que 50 réplicas são preferíveis a 10, visto
que 50 exemplares representam mais a população para a qual se aplica a inferência. De
fato, esse raciocínio tem acolhida, mas apenas quando o tamanho da população for finito
e relativamente pequeno. Numa população com 500 indivíduos, 50 e 10 representam,
respectivamente, 10% e 2%. Mas, em geral, as populações são numericamente muito
maiores, o que torna esses percentuais desprezíveis. Veja que uma população geralmente
é composta de indivíduos passados, presentes e futuros. Assim, amostra com 10 ou 500
réplicas, em relação a uma população muito numerosa (alguns milhões de indivíduos),
têm probabilidades de representatividade próximas a zero. Essa representatividade
numérica não é, então, a melhor justificativa para aumentarmos o tamanho da amostra.

b. Maior confiança nos testes estatísticos

Outra questão é que as pesquisas com maior número de réplicas são mais confiáveis
porque as probabilidades de erro obtidas no teste estatístico também ficam mais
confiáveis. Isso é parcialmente válido. Vejamos um lado da questão. Dois estudos
conduzidos, respectivamente, com 5 e 50 réplicas, sendo que cada um demonstra algum
efeito ao nível de p < 0,05, têm a mesma probabilidade de erro na conclusão! Isso ocorre
porque os valores críticos para a estatística calculada (t, F, c2 etc.) aumentam à medida
que o número de réplicas (grau de liberdade) diminui. Por exemplo, num teste t de
Student para grupos independentes, admitindo-se o nível crítico a 5%, o valor crítico da
estatística é 2,048 para 15 réplicas (grau de liberdade = 28), ao passo que esse valor sobe
para 2,776 se usarmos 3 réplicas (grau de liberdade = 4), e para 4,303 se usarmos 2
réplicas. Assim, se as conclusões com diferentes números de réplicas indicam efeito ao
nível de 5%, então a probabilidade desse tipo de erro é a mesma, independentemente do
número de réplicas.
Não podemos nos esquecer, no entanto, que, aumentando o rigor para aceitarmos a
diferença significativa, aumentamos nossa chance de aceitarmos erroneamente a
igualdade. Ou seja, quanto mais somos rígidos para aceitar que A ≠ B, menos rígidos
somos em aceitar que A = B, e vice-versa. Esses erros são inevitáveis. Vejamos um
exemplo jurídico. Ao emitir uma sentença, o juiz está inevitavelmente sujeito a um dos
seguintes erros: condenar um inocente (erro tipo I ou a) ou absolver um culpado (erro
tipo II ou b). E quanto mais se procura reduzir um tipo de erro, mais aumenta o outro,
pois são inversamente proporcionais.
Na prática cotidiana, o cientista atenta muito para um tipo de erro, procurando reduzir
a aceitação de uma diferença equivocada. Assim, dá pouca importância ao outro erro.
Fruto dessa problemática, muitas revistas tornam mais difícil a publicação de artigos em
que haja negação da hipótese de trabalho (aquela que supõe diferença entre os grupos).
Há assessores que chamam isso de

279

280

resultados negativos, pois corroboraram a hipótese da nulidade (H0 = hipótese


estatística, que diz que não há efeito). O cientista gosta de efeitos significativos,
mostrados pela corroboração da hipótese de trabalho (experimental – H1) por meio da
negação da hipótese da nulidade. Esse problema é tão sério que recentemente têm
surgido revistas especializadas em publicar os artigos que negam H1. Um exemplo
pioneiro é a revista JASNH, Journal of Articles in Support of the Null Hypothesis,
lançada em 2002. Veja o que relatam os editores na homepage dessa revista.

“Welcome to the Journal of Articles in Support of the Null Hypothesis. In the past
other journals and reviewers have exhibited a bias against articles that did not reject the
null hypothesis. We seek to change that by offering an outlet for experiments that do not
reach the traditional significance levels (p < .05). Thus, reducing the file drawer
problem, and reducing the bias in psychological literature. Without such a resource
researchers could be wasting their time examining empirical questions that have
already been examined. We collect these articles and provide them to the scientific
community free of cost.”148

Num dos artigos dessa revista, Chris Aberson (2002) apresenta formas alternativas de
análise de dados, argumentando que para negar uma hipótese (rejeitamos H0) devemos
mostrar os dados de forma estatisticamente mais detalhada do que quando a aceitamos.
De fato, é mais fácil mostrar um evento que ocorre do que algo que não ocorre. Veja
como é muito mais difícil mostrar que uma pessoa não está na cidade do que apresentar
evidências de que ela está. Se alguém a vir, ela está na cidade. Mas se um conjunto de
pessoas não a vir, não significa que ela não esteja na cidade.
Recentemente, surgiu o Journal of Errology149, que pretende dar espaço ao cientista
para divulgação daquilo que não deu certo (hipótese errada, metodologia equivocada,
pressupostos enganosos etc). Ou seja, mais um tentativa para valorizar o erro, esse
equívoco que é natural na vida de qualquer cientista. Portanto, a revista visa a aproveitar
o que pode haver de bom nas experiências mal sucedidas.

c. Exigência do teste estatístico

Há situações em que o teste estatístico a ser empregado determina o menor valor de


réplicas ou dados que devemos utilizar. Por exemplo, se desejamos testar correlação
matemática entre duas variáveis, é aconselhável usarmos no mínimo cinco pares de
dados, pois por 4 ou menos pontos podemos estabelecer vários tipos de curva.

148
http://www.jasnh.com/
149
Revista de Errologia – http://bioflukes.com/All/bioflukes

281

Além da correlação, há testes de comparação de médias que necessitam de um


número mínimo por causa do cálculo do grau de liberdade (GL). É o caso, por exemplo,
da análise de perfil, que compara um ou mais grupos em dois ou mais momentos
sucessivos (há dependência entre os dados desses momentos). O número de réplicas
deve ser ao menos uma unidade maior que o número de momentos para que o cálculo do
GL não seja igual a zero ou negativo. Por exemplo, se estamos avaliando o peso dos
organismos aos 15,30,45 e 60 dias de vida (4 momentos consecutivos), usando medidas
repetidas nos mesmos indivíduos, o menor número de réplicas para cada dia de pesagem
deve ser 5 (uma unidade a mais que os momentos a serem comparados). Essas são
exigências técnicas que devem ser obedecidas. No entanto, o número de réplicas
determinado por tais exigências está geralmente muito aquém daquele arbitrariamente
sonhado pelo cientista.

d. Redução da variância

Para uma dada variável, os indivíduos de uma população não mostram os mesmos
valores. Considerando isso, é natural que uma população apresente uma variabilidade
(variância) entre os dados. Essa variância é natural, pois é uma das características
intrínsecas da população. Ela existe, queiramos ou não. Porém, à medida que
trabalhamos com amostras da população, essa variação dificilmente é igual à da
população. De fato, essa variação resulta de variáveis interferentes que não conseguimos
controlar (veja VII-14). Por exemplo, se analisarmos a freqüência cardíaca de homens
com idade de 50 anos completos, em repouso, estando no quinto dia de férias do
trabalho, casados, pertencentes ao mesmo perfil profissional etc, certamente
encontraremos uma variação nos resultados entre os indivíduos. Isso significa que há
outras variáveis que levaram a essas diferenças, mas que não puderam ser controladas.
Se tudo fosse rígida e hermeticamente controlado, todos os indivíduos deveriam
apresentar a mesma freqüência cardíaca. Numa população, cada indivíduo está numa
condição única (social, psicológica, fisiológica etc), o que torna a variabilidade uma
característica da população. Se examinarmos todos os indivíduos da população, então
saberemos exatamente qual é essa variabilidade. A Figura 14 ilustra essa representação e
mostra como a variabilidade se altera conforme aumentamos o tamanho de nossa
amostra (N° de réplicas).

282

Figura 14. Comportamento hipotético da variância de uma população em função do


aumento do tamanho da amostra.

Baixa variação dos dados numa mesma condição é importante para testarmos as
diferenças entre duas ou mais condições experimentais. Quando duas amostras são
consideradas estatisticamente iguais entre si, olhamos imediatamente para as variações
em torno das médias, principalmente em estudos com grupos independentes: se forem
baixas, confiamos na decisão estatística; se forem altas, duvidamos dessa decisão.
Assim, o caminho adequado é melhorar os dados. Para isso, temos que aumentar o
número de réplicas até que a variabilidade atinja valores compatíveis com o que se tem
obtido na literatura150. Podemos também aumentar a precisão151 na coleta de dados.

e. Dificuldades metodológicas

Embora possa haver motivos para aumentar o número de réplicas (amostra) numa
pesquisa, as dificuldades metodológicas para fazê-lo são uma barreira natural e real. Há
estudos nos quais cada dado coletado é caríssimo, ou mesmo envolve o tratamento de
vários indivíduos até se conseguir a resposta

150
Caso seu estudo seja o primeiro, então poderá concluir com o que tem. Mesmo assim, seria
interessante olhar a flutuação da variabilidade dos dados em torno da média conforme aumenta o número
de réplicas – procure parar quando houver certa estabilização dessa variabilidade em função do aumento
do número de réplicas.
151
A precisão indica baixa variação dos resultados quando obtidos numa mesma situação.

283

284

desejada (por ex., alguns tipos de cirurgia cuja sobrevivência pós-cirúrgica é baixa). Em
casos com dificuldades dessa ordem, devemos fazer uma relação custo-benefício entre a
redução da variação obtida pelo aumento do número de réplicas e o custo (financeiro,
operacional ou de bem-estar) decorrente desse aumento. Além disso, a natureza do
objetivo influi no tamanho amostral. Alguns casos únicos são suficientes para dizer que
algo existe (por ex., descoberta de algum fóssil pode ser determinante para provar que
indivíduos daquele grupo existiam em determinada época do período geológico). Assim,
é comum encontrarmos trabalhos científicos com amostra com milhares de
indivíduos152, outros com apenas três ou quatro réplicas por condição153 (por ex., estudos
com organismos ou situações restritas), ou mesmo estudos com um único caso (por ex.,
animais de zoológico154, descrições de caso na área médica155 e fatos físicos cujo
exemplo clássico é o papel da observação de um eclipse na predição da teoria de
Einstein).

f. Valorização da vida

Outro aspecto relevante sobre a questão do número de réplicas numa pesquisa que
envolve organismos vivos é a valorização da vida. Há comitês de ética que estabelecem
códigos de ética para a experimentação animal (incluindo os seres humanos156), ou
mesmo zelam pelo seu cumprimento, de forma a se evitar ao máximo o sofrimento ou a
matança desnecessária. Nesse particular, se um trabalho pode ser feito com cinco
réplicas, não deve ser feito com 10! Muitas revistas científicas internacionais usam o
cumprimento a tais códigos como pré-requisito indispensável para a aceitação dos
artigos submetidos à publicação. Considerando que as justificativas objetivas que temos
para estabelecer o número de réplicas numa pesquisa indicam sempre o número mínimo,
a valorização da vida dos organismos pode evitar desperdícios e sofrimentos
desnecessários.
De forma semelhante ao descrito em VII-1, siga os seguintes passos157:

152
Oliveira et al. (2010), com 11.869 indivíduos considerados para análise (vários foram excluídos
para melhor homogeneização da amostra).
153
Em Plotnik et al. (2006), apenas 3 elefantes foram estudados, dos quais apenas 1 apresentou a
resposta esperada.
154
Maia & Volpato (2012) estudaram apenas duas onças, uma mãe e uma filha; uma não é réplica da
outra.
155
Tavacoli et al. (2009). Com base num único caso, os autores afirmam que o vírus do carrapato pode
ser a causa de encefalite fatal em veados. Ray et al. (2012) acrescentaram um único caso descrito uma
revisão da literatura.
156
Embora na prática muitas áreas se refiram a animal sem incluir os seres humanos, até que se prove
o contrário o ser humano é um animal. Ele é apenas mais uma espécie entre tantas outras, mas não é, por
exemplo, um vegetal.
157
Baseado em Volpato (2008).

285

1 – examine artigos atuais em sua área de atuação, e que lidem com as varáveis de
sua pesquisa; esses artigos devem estar publicados em revistas compatíveis com
o nível onde você pretende publicar seu estudo;

286

2 – na escolha desses artigos, evite aqueles de autores consagrados e de autores de


países consagrados. Esses autores geralmente publicam coisas que nós não
conseguiríamos (trata-se de um preconceito, mas que deve ser entendido e
enfrentado). De preferência, olhe artigos que sofreram os mesmos preconceitos
de análise que seu artigo terá chance de sofrer (por ex., examine artigos de
brasileiros que publicaram no periódico em que você deseja publicar);

3 – veja nesses artigos qual o tamanho das amostras. Esses valores lhe darão um
referencial adequado.

Note que esses artigos publicados resumem os problemas reais subjacentes à escolha
do tamanho amostrai, como segue:

... atendem às exigências estatísticas, pois estão publicados.


... são viáveis tecnicamente, pois alguém os conseguiu.
... respeitam os costumes da área, pois foram examinados na área.
... atendem aos costumes do nível da revista, pois estão nela.

VII-19 Quando escolher o teste estatístico?

O perfil do teste estatístico deve ser escolhido na fase de planejamento do estudo.


Nessa fase, devemos ter noção precisa de como analisar os resultados, o que inclui a
análise estatística. O delineamento escolhido condiciona os testes estatísticos aplicáveis.
É evidente que, após a coleta de dados, algumas novidades podem surgir e adequações
podem ser feitas. No entanto, não se admite iniciar a coleta de dados sem se ter a noção
de como pretende analisá-los. Há estudos que são perdidos por falta desse cuidado. Há
cientistas que ainda insistem em estabelecer um objetivo geral de pesquisa e, a partir daí,
coletar os dados. Ao final, avalia o que obteve e analisa como pode. No entanto, muitas
vezes ocorre que, depois de coletados os dados, percebe-se que não há como analisados
estatisticamente, ou ao menos parte deles.
Como frisado acima, a definição exata do teste estatístico será possível apenas
quando estiver com os dados. Por exemplo, para determinar o teste estatístico deverá
conhecer o perfil de seus dados, como sua distribuição normal ou não, o perfil das
variâncias entre as amostras e a existência de outliers ou não.
O que se deve definir, em termos estatísticos, antes do início da coleta de dados, é se
haverá ao menos alguma forma viável de análise dos dados. Por exemplo, deverá propor
um teste de correlação, ou mesmo uma análise de variância; mesmo sabendo que esses
testes podem variar se os dados tiverem distribuição normal ou não (veja VII-20).

287

VII-20 Como escolher o teste estatístico?

Este tópico é de suma importância e recomendo a leitura do livro “Estatística sem


dor!!!” (Volpato e Barreto 2011), cujo objetivo é mostrar, de forma simples, como
escolher um teste estatístico e como interpretar os resultados dos principais testes
disponíveis.
Na escolha da análise estatística dos dados, devemos considerar o tipo de relação
entre as variáveis e o delineamento empregado (veja VII-10 e VII-13). Embora essa fase
não dispense o auxílio de um estatístico, o cientista deve dominá-la, inclusive para
conseguir expressar-se adequadamente ao estatístico. A seguir, apresento sete questões a
serem consideradas na escolha do teste estatístico ou mesmo para iniciar a conversa com
o estatístico. A resposta a algumas delas requer que os dados já tenham sido coletados,
enquanto outras não necessitam da presença dos dados e são úteis já no planejamento.

1. A análise que pretendemos empregar envolve apenas descrição, ou avaliação de


associação (correlações, regressões ou comparação entre tratamentos – médias,
medianas, freqüências ou proporções)? As medianas são usadas nas comparações
entre variáveis com distribuição não normal e as médias, mais comumente entre
aquelas de distribuição normal.

2. As variáveis quantificadas são discretas (ex., freqüências como 1, 2, 3,...) ou


contínuas (ex., peso: l,23g; l,34g; l,00g; ...)? As variáveis contínuas geralmente
levam a testes paramétricos e as discretas, aos não-paramétricos. Por outro lado,
podemos transformar matematicamente variáveis discretas em contínuas. Por
exemplo, a extração de raiz quadrada de cada valor (ou de cada valor acrescido
de 0,5 quando existe ao menos um valor zero no conjunto dos dados), o cálculo
do logaritmo ou arco seno de cada dado etc. Essas transformações podem
normalizar a distribuição dos dados das variáveis discretas e, quando isso ocorre,
podemos aplicar testes paramétricos.

3. No caso de correlações, mais de duas variáveis serão correlacionadas ao mesmo


tempo? Se forem mais de duas, faremos correlação multivariada. Nela, se for
uma variável (por ex., peso ao nascimento) versus um conjunto de variáveis (por
ex., resistência imunológica, idade para engatinhar, idade para andar, freqüência
de doenças acometidas etc), será análise de correlação multivariada simples. Se
for um conjunto de variáveis versus outro conjunto, testaremos correlação
canônica. Por exemplo, fatores A (meses no nascimento, peso e altura ao nascer)
versus fatores B (resistência imunológica, idade para engatinhar, idade para
andar, freqüência de doenças). Caso sejam correlações entre duas variáveis
apenas, usaremos correlação simples, linear ou não.

288

4. Há relação de dependência dos dados entre os grupos a serem comparados? O


caso clássico de dependência é quando coletamos dados de um mesmo indivíduo
ao longo do tempo. Por exemplo, evolução do peso a partir do início e a cada 30
dias, durante um ano. É evidente que o peso de uma dessas medidas pode
influenciar o peso da medida seguinte. Outro exemplo pode ser a condição prévia
de conhecimento e o desempenho num teste de aprendizagem (indivíduos que
conhecem mais determinado assunto podem se sair melhor no teste... assim,
devemos ponderar esse “ponto de partida”). Observe que a dependência não
ocorre somente nos casos em que os dados de duas ou mais condições são
coletados num mesmo indivíduo. Pode haver dependência entre grupos
compostos de diferentes organismos. Por exemplo, numa situação de restrição
alimentar, a quantificação da ingestão alimentar individual em um grupo de
animais pode envolver dependência, pois o que um animal come determina o que
resta para os outros comerem e, assim, interfere no que os demais poderão comer
(ou comerão).

5. As médias, freqüências ou proporções serão comparadas entre duas ou mais


amostras? Imagine a comparação do peso entre homens e mulheres (duas
amostras a serem comparadas) ou entre homens de 4 faixas etárias (4 amostras
sendo comparadas).

6. Há dados muito discrepantes (outliers) numa mesma amostra? [critério: fora do


limite média ± (2 x desvio padrão); veja IX-8].

7. Qual é o coeficiente de variação dos dados em cada grupo? Grandes variâncias


podem impedir a utilização de determinados testes estatísticos e geralmente
indicam que a distribuição dos dados é não normal. Além disso, quando as
variâncias são muito discrepantes entre as amostras a serem comparadas, alguns
testes ficam proibitivos e algumas correções podem ser necessárias.

De posse dessas informações, o cientista pode consultar o estatístico. Porém, há


questões simples que devem ser resolvidas diretamente pelo cientista. Resumidamente,
um esquema útil é apresentado nas Figuras 15 e 16. Lembre-se de que os testes
paramétricos comparam as médias das amostras, enquanto que os testes não-
paramétricos comparam as medianas das amostras (não esqueça de ressaltar isso na
apresentação dos resultados). É evidente que existem outros testes (veja Volpato e
Barreto 2011), mas as figuras indicadas solucionam os problemas mais usuais ou mesmo
remete o leitor de forma mais direcionada para os livros de estatística.

289

Figura 15. Chave dicotômica para escolha de teste estatístico considerando distribuição
dos valores e estrutura do delineamento do estudo.

Figura 16. Testes de correlação em função da distribuição da amostra.



290

VII-21 Qual é a estrutura de um projeto de pesquisa?

Na sua essência, o projeto deve mostrar claramente o que será estudado, incluindo as
razões que justificam esse objetivo, e como será realizado o estudo. A primeira parte fica
na Introdução e a segunda no Planejamento da Pesquisa. No conjunto, as seguintes
informações devem ser especificadas no projeto de pesquisa:

Introdução

a. O problema a ser investigado.


b. Justificativas que validam o objetivo do estudo.
c. O objetivo do estudo (se houver hipótese, expressar as variáveis com clareza e, se
possível, expressar as predições158 de cada hipótese).

Planejamento da Pesquisa

a. Procedência/tipo do sujeito (organismo ou não) em estudo.

b. Delineamento. Ele deve indicar as características fundamentais de cada


tratamento, a dinâmica temporal do estudo (imposição de variáveis
independentes e coleta dos resultados das variáveis dependentes) e a unidade
(indivíduo, grupo de descendentes, grupo de indivíduos etc.) e o número mínimo
de réplicas previsto (veja VII-18).

c. Possíveis variáveis interferentes que serão controladas.

d. Técnicas de quantificação das variáveis do estudo.

e. Formas de análise dos dados, geralmente incluindo os testes estatísticos


previstos, indicando também as comparações fundamentais para se atingir o
objetivo do estudo.

Com essa estrutura, qualquer assessoria científica poderá julgar a pertinência do


projeto: basicamente, a validade do objetivo e a adequação metodológica (falha num
desses itens resulta

158
As predições de uma hipótese são os fatos que se espera ocorrer (detectar) caso a hipótese seja
correta. Se nossa hipótese preconiza que o aumento da densidade populacional exacerba a agressividade
intraespecífica em determinada espécie, então uma predição seria que os animais mantidos na maior
densidade populacional exibirão maior número de confrontos entre si, comparados aos que estão nas
menores densidades.

291

em negação da proposta). Note que todo objetivo de pesquisa deve ser atingido. O que
ocorre é que as pessoas se enganam quando escrevem o objetivo da pesquisa.
Considerando os três tipos lógicos de pesquisa (veja VII-10), seu objetivo será
basicamente descrever algo ou testar associação entre duas ou mais variáveis. No
primeiro caso, o projeto deve garantir que se consiga descrever o que se pretende. No
segundo caso, o projeto deve mostrar que será possível testar essa hipótese de associação
(ou testando-se correlações ou comparando-se médias, medianas, freqüências ou
proporções). Portanto, nessa fase já é possível prever a qualidade da publicação a ser
conseguida, a qual decorre da validade do objetivo e da robustez metodológica. Por essa
razão que uma agência pode direcionar quantias significativas de dinheiro a um projeto
que ainda não possui os dados coletados.
Partindo da estrutura lógica mínima necessária descrita acima, a estrutura formal mais
geral de um projeto pode incluir159:

o Capa:
o al. Título
o a2. Autor(es)
o a3. Instituição(ões) de afiliação do(s) autor(es)
o a4. Local de realização da pesquisa (se diferente do item anterior)
o a5. Tipo de solicitação (bolsa de Mestrado, Auxílio, Edital etc.)
o a6. Mês e ano

o Resumo do projeto (não mais que uma página)

o Introdução concisa [pode ou não conter o(s) objetivo(s) da pesquisa]

o Objetivo(s) [indicando claramente o(s) objetivo(s) teórico(s) e o(s)


operacional(is) – veja VI-3]. Se houver hipótese, apresentá-la claramente e
indicar as principais predições.

o Planejamento da pesquisa

o Resultados esperados – este item pode ser interpretado de duas formas: a)


predições da hipótese (se ela estiver certa, que resultados a serem encontrados
são previstos) ou b) conseqüências do projeto em termos de formação de pessoas,
publicações esperadas, recomendações ao público etc. Consulte a agência de
fomento para saber o que solicitam.

o Exequibilidade do projeto (justificando que o projeto é viável, principalmente no


aspecto operacional)

159
A estrutura de um projeto de pesquisa é geralmente definida pela instituição à qual se dirige (por
ex., CNPq, Capes, Fapesp etc). Em alguns casos, no entanto, não há um modelo pré-estabelecido e cabe ao
cientista organizar seu projeto.

292

293

o Lista de materiais (se for o caso)

o Cronograma das atividades – construa-o de forma detalhada, considerando que


ele é feito também para você. Embora a maioria das pessoas só olhe o
cronograma no momento de elaborá-lo, ele é seu referencial para saber se está
cumprindo o que planejou. Durante a pesquisa, consulte-o ao menos uma vez por
mês.

Atenção: programe tempo para a redação do manuscrito e nunca se esqueça de


incluir essa atividade no cronograma e no orçamento, se pretende publicar em revista
paga. Esquecimento desse detalhe leva a maioria dos cientistas a não publicar seus
estudos. Outra dica importante: redija os relatórios na forma mais próxima à do
manuscrito. Além desse texto, anexe dados que certamente não aparecerão no artigo,
mas que comprovem as atividades desenvolvidas. Lembre-se que um artigo é bem
mais enxuto que um relatório. Com isso, terá avançado na redação do artigo e deixará
os assessores contentes ao verem todos os seus dados, desde os úteis até os inúteis160,
convencendo-os de que você trabalhou bastante.

o Referências

o Data e assinatura do(s) autor(es)

o Dependendo do tema, pode ser necessário incluir atestado da comissão de ética,


aprovando o protocolo do estudo.

Referências

Aberson C. 2002. Interpreting null results: improving presentation and conclusions with
confidence intervals. JASNH 1(3): 36-42.
Oliveira C de, Watt R, Hamer M. 2010. Toothbrushing, inflammation, and risk of cardiovascular
disease: results from Scottish Health Survey. British Medicai Journal 340: c2451.
Ray S, Kundu S, Goswami M, Maitra S. 2012. Tropical pulmonary eosinophilia misdiagnosed as
military tuberculosis: a case report and literature review. Parasitology International 61(2):
381-4.

160
Apesar disso, defendo que mesmo o relatório deveria ser na forma de artigo, sem necessidade de
mostrar todos os dados. Além de agilizar a publicação dos dados, esta proposta é coerente com os
objetivos da ciência. De nada vale o quanto você trabalhou, mas sim a qualidade de suas conclusões.
Portanto, várias tabelas com dados que não levam a muita coisa só atestam seu esforço; mas são as
conclusões primorosas e interessantes que mostram que você trabalhou corretamente. Se hoje os cientistas
analisam as conclusões com base nos resultados dos artigos, porque nos relatórios deveríamos incluir
muito mais dados? Seriam os relatórios melhores que os artigos científicos publicados?

294

Saint-Exupéry A de. 2006. O pequeno príncipe. Agir Editora Ltda..


Tavakoli N et al. 2009. Fatal case of deer tick virus encephalitis. New England Journal of
Medicine 360(20): 2099-2107.
Volpato GL. 2007. Bases Teóricas para Redação Científica. Cultura Acadêmica, Editora
Scripta.
Volpato GL, Barreto RE. 2011. Estatística Sem Dor!!! Editora Best Writing.

Literatura Complementar

Aber JM, Papavero N. 1991. Teoria intuitiva dos conjuntos. Editora McGraw-Hill.
Alves AC. 2011. Lógica, pensamento formal e argumentação. 5a ed. Editora Quartier Latin.
Aranha MLA, Martins MHP. 2003. Filosofando: introdução à filosofia. Editora Moderna.
Barbosa C. 2011. A tríade do tempo. Sextante.
Baronett S. 2009. Lógica, uma introdução voltada para as ciências. Editora Bookman.
Beveridge WIB. 1981. Sementes da descoberta científica. Edusp.
Bickenbach JE, Davies JM. 1997. Good reasons for better arguments; an introduction to the
skills and values of critical thinking. Broadview Press.
Carraher DW. 1999. Senso crítico. Editora Pioneira.
Castro AA, Saconato H, Guidugli F, Clark OAC. 2002. Curso de revisão sistemática e
metanálise [Online]. São Paulo: LED-DIS/UNIFESP. Disponível em:
http://www.virtual.epm.br/cursos/metanálise.
Feyerabend PK. 1993. Against method. 3a ed. Editora Verso.
Figueiredo NMA (Org.). 2004. Método e metodologia na pesquisa científica. Editora Difusão.
Forthofer RN, Lee ES. 1995. Introduction to biostatistics: a guide to design, analysis, and
discovery. Academic Press.
Hailman JP, Karen BS. 2006. Planning, proposing, and presenting science effectively: a guide
for graduate students and researchers in the behavioral sciences and biology. Cambridge
University Press.
Harvard Business Review. 2002. Empreendedorismo e estratégia. Editora Campus.
Hurley PJ. 2008. A concise introduction to logic. 10a ed. Editora Cengage Learning.
Kaplan A. 1972. A conduta na pesquisa. Edusp.

295

Köche JC. 2002. Fundamentos de metodologia científica; teoria da ciência e iniciação à


pesquisa. 20a ed. Editora Vozes.
Lehner PN. 1998. Handbook of ethological methods. Cambridge University Press. Magee B.
1973. As idéias de Popper. Editora Cultrix.
Magnusson WE, Mourão G. 2003. Estatística sem matemática. Editora Planta. Marconi MA,
Lakatos EM. 1988. Técnicas de pesquisa. Editora Atlas S.A.
Miller S. 1977. Planejamento experimental e estatística. Zahar Editores.
Mlodinow L. 2008. O andar do bêbado. Jorge Zahar Editor.
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Oliveira DPR. 2009. Fundamentos de administração. Editora Atlas.
Pereira JCR. 2010. Bioestatística em outras palavras. Edusp.
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Salsburg D. 2009. Uma senhora toma chá: como a estatística revolucionou a ciência no século
XX. Jorge Zahar Editor.
Sidman M. 1976. Táticas da pesquisa científica. Editora Brasiliense.
Sokal RR, Rohlf FJ. 1995. Biometry: the principles and practice of statistics in biological
research. Editora W. H. Freeman and Co.
Victora CG, Knauth DR, Hassen MNA. 2000. Pesquisa qualitativa em saúde: uma introdução
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Vieira S, Wada R. 2004. O que é estatística. Coleção Primeiros Passos. 3a ed., 2a reimpressão.
Editora Brasiliense.
Weatherall M. 1970. Método científico. Edusp e Editora Polígono.
Zar JH. 1999. Biostatistical analysis. Prentice Hall.

296

CAPÍTULO VIII

Coleta de Dados

VIII-1 A coleta de dados é a principal parte da pesquisa?

A pesquisa científica é uma atividade cujas partes estão de tal forma entrelaçadas
entre si que não se pode dizer qual delas é a mais importante. Falha em uma delas pode
significar o fim de todo o estudo. É importante conhecermos o papel e a importância de
cada parte para entendermos claramente porque não é adequada a busca da parte
principal.

1. A elaboração de uma pergunta

Uma pergunta equivocada pode levar a uma resposta equivocada. Da mesma forma,
uma pergunta irrelevante leva a uma conclusão irrelevante. Não se esqueça de que ao
elaborarmos uma pergunta restringimos os objetivos. Por isso, o interesse sobre a
pergunta inicial é fundamental para que seu artigo seja aceito em periódico de boa
qualidade científica internacional.

297

2. A elaboração do objetivo

O objetivo da pesquisa é uma especificidade dentro do problema geral que gerou o


estudo. Ele deve ser relevante e bem elaborado, pois, se for falho, de nada adianta a
qualidade das outras partes. Uma das questões com que os editores se defrontam é sobre
a relevância do tema ou da pergunta do artigo. Ou seja, não basta fazer corretamente a
pesquisa, ela precisa ser relevante e de interesse inequívoco. E não basta que apenas o
cientista a ache relevante; deve considerar isso perante o estado da arte de sua
especialidade no cenário internacional.

3. O planejamento da pesquisa

Um planejamento equivocado impede que o objetivo da pesquisa seja cumprido. É


como tomar uma condução para o destino errado. (Veja VII-2).

4. A coleta de dados

Na ciência empírica, há necessidade de que as nossas idéias sejam confrontadas, de


alguma forma, com fatos da natureza (veja Parte 1, II-1 e II-3). Assim, se os dados
coletados não forem confiáveis, toda a avaliação sobre as conclusões elaboradas fica
comprometida.

5. Análise e interpretação dos dados

A análise dos dados é tão importante quando a qualidade com que foram obtidos. Se
empregar uma estatística errada, o restante já será fantasia. Da mesma forma, se
interpretar erroneamente os resultados (incluindo os efeitos que detectou na análise
estatística ou qualitativa), não será aceito. Lembre-se de que os resultados de um estudo
podem ser interpretados de mais de uma forma. Entre as evidências (resultados do
estudo) e a conclusão, há a cabecinha do cientista, a qual é contaminada com teorias,
pressupostos, preconceitos etc. Um trabalho científico é o discurso do cientista, com
base nas evidências (metodologia, resultados e informações da literatura) de que dispõe,
indicando como as interpreta.

298

6. A publicação do trabalho

Um trabalho científico não publicado é como uma aula não ministrada, ou uma musa
não conquistada... vira platônico! É necessário mostrar para a comunidade científica
suas idéias, por meio da publicação. Publicar em revista pouco reconhecida ou pouco
disseminada também não ajuda, pois o trabalho não será visto ou considerado. Imagine
que a qualidade da publicação deve ser proporcional ao que você considera da qualidade
da pesquisa que fez. Se você publica mal, é porque considera que fez algo muito ruim.
Ela é seu espelho. Pense assim e procurará crescer a cada novo projeto.
Numa análise geral dos seis itens apontados, fica claro que não se pode falar qual
etapa é a mais importante, porque cada uma delas é essencial. É o mesmo que dizer qual
é o órgão mais importante: o coração, o cérebro, os pulmões ou o fígado? A retirada de
qualquer um deles leva à morte!

VIII-2 Toda pesquisa científica envolve coleta de dados?

Se considerarmos a natureza empírica da ciência moderna (veja II-1), os enunciados


teóricos devem ser confrontados com dados do mundo físico. Nesse sentido, toda
pesquisa científica envolve coleta de dados. Porém, nem todos os dados precisam ser
coletados diretamente na natureza, pois podem ser obtidos indiretamente em bancos de
dados (por ex., censo IBGE), documentos (por ex., prontuários médicos) ou na literatura
publicada. Nesse último caso, enquadram-se os trabalhos de revisão da literatura que, ao
contrário do que iniciantes imaginam, são estudos originais e não apenas sinopses dos
estudos presentes na literatura.
Os artigos de revisão da literatura são pesquisas com objetivos bem definidos, que
usam dados já publicados, porém arranjados de uma forma diferente, para responderem
questões inéditas. Portanto, as conclusões são inéditas. Veja que erro nessa percepção
tem levado algumas de nossas agências de fomento a não financiar revistas científicas
que publicam especificamente artigos de revisão. Por exemplo, buscando na literatura
internacional, não financiariam Annu Rev Immunol (FI2011 = 52,761), Annu Rev Biochem
(FI2011 = 34,317), Annu Rev Astron Astr (FI2011 = 26,452) e mais algumas dezenas de
revistas internacionais especializadas em publicações de revisões. Um exemplo ainda
mais incisivo da participação dos dados “indiretos” (da literatura) na construção de
conclusões sólidas são os artigos que usam meta-análise para decidirem sobre impasses
que não conseguem ser resolvidos num único estudo com resultados originais.
Mesmo nas ciências humanas há muita pesquisa empírica. Coletam-se dados na
psicologia, na educação, na sociologia etc. Não importa se seus dados foram coletados
com a metodologia quantitativa ou qualitativa (veja II-4 e II-6). Em ambos os casos há
base de dados, requisito da ciência empírica. Há nessas áreas, no entanto, pesquisas que
usam também a abordagem filosófica racionalista (avaliações sem preocupação com as
evidências empíricas – veja II-1), sem a preocupação com a base empírica. Nesse caso,
pela definição aqui empregada (ciência empírica – veja II-1), são discursos filosóficos e

299

não ciência.

300

VIII-3 Como garantir que os dados coletados estejam corretos?

Como as conclusões de um trabalho científico se baseiam principalmente nos dados


coletados, a resposta a este item é de extrema importância. Porém, infelizmente é
impossível garantir que os dados coletados estejam corretos. O conceito de “dados
corretos” é referido como exatidão e lembra o conceito de verdade (veja II-8). Assim,
exclusivamente nesse sentido não é uma preocupação da ciência, que emprega mais o
conceito de verdade relativa (conclusões provisórias).
Há, porém, dois outros conceitos que são importantes para julgarmos a adequação de
nossos dados, a fim de usá-los na elaboração das conclusões. Um deles é o conceito de
fidedignidade: significa que os dados coletados correspondem ao que imaginamos que
correspondam. Por exemplo, se um aparelho se destina a medir pH, é necessário que
indique os valores da concentração de H+ e não outros íons. Da mesma forma, se
determinado teste se destina a medir fome, é fundamental que o indicador escolhido
(variável operacional – veja VI-3) reflita adequadamente o conceito fome.
O outro conceito é o de precisão: uma medida é bem precisa se, em medidas
repetidas nas mesmas condições, a variação dos dados for muito pequena. Ou seja, uma
balança que, ao pesar cinco vezes o mesmo peso, indique resultados muito próximos (ou
idênticos) é bastante precisa. O mesmo vale para questionários e outras formas de dados.
Assim, se conseguirmos demonstrar que nossas medidas são fidedignas e precisas,
podemos dizer que nossos dados são adequados para sustentar as conclusões do
trabalho. Embora não possamos determinar a exatidão dos dados coletados, uma forma
auxiliar para mostrar sua adequação é compará-los aos resultados obtidos em outros
estudos. Portanto, ao determinamos os valores de colesterol no sangue de uma
determinada amostra de indivíduos, podemos usar dados dessa variável descritos em
indivíduos em condições similares para fundamentarmos a adequação de nossas medidas
(por ex., mostrando que as médias são similares e que a variabilidade em torno da média
é também parecida com o que outros autores têm relatado). Apesar disso, esse
procedimento funciona apenas nos casos em que ocorre corroboração da validade dos
resultados. Caso você não tenha esse referencial da literatura, então seu dado será o
primeiro, e a história posterior, com dados que surgirão de outros autores, identificará a
adequação em cada caso.
Além desses cuidados, os vários tipos de controle que podemos incluir em alguns
estudos servem exatamente para garantir referenciais para validarmos nossos resultados.
Veja comentários sobre esses controles em VII-14.

301

VIII-4 Como preservar os dados coletados?

Ainda hoje há cientistas que preferem anotar seus dados em cadernos de laboratório.
Mas a maioria já migrou para registros eletrônicos. Seja qual for o caso, evitar ou
minimizar a chance de perdê-los é fundamental.
No caso do papel, manter cópias (fotocópias) em outro local (imagine que seu
laboratório pode pegar fogo) é uma medida interessante. Não descartamos que as
páginas sejam escaneadas esporadicamente e mantidas em arquivos eletrônicos, em
outra sala ou mesmo nas “nuvens”.
A preservação é necessária. A criatividade de como fazê-la é sua. Pense em todas as
possibilidades e invista em boa preservação de dados de uma forma diretamente
proporcional ao quanto representam para você e à dificuldade em reconstruí-los.

Referência

Volpato GL, Fernandes MO. 1994. Social control of growth in fish. Brazilian Journal of
Medical and Biological Research 27: 797-810.

Literatura Complementar

Beveridge WIB. 1981. Sementes da descoberta científica. Edusp. Carraher DW. 1999. Senso
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http://www.virtual.epm.br/cursos/metanálise.
Figueiredo NMA (org.). 2004. Método e metodologia na pesquisa científica. Editora Difusão.
Forthofer RN, Lee ES. 1995. Introduction to biostatistics: a guide to design, analysis, and
discovery. Academic Press.
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Lathrop RG. 1969. Introduction to psychological research: logic, design, analysis. Editora
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303

CAPÍTULO IX

Análise e Interpretação de Resultados

IX-1 Os dados são objetivos ou podemos interpretá-los?

Há aqui duas questões importantes. Uma considera o quanto confiamos nos dados
obtidos. A outra é sobre a interpretação que fazemos de dados confiáveis.
Há vários dados que podem ser obtidos pela leitura em aparelhos, o que diminui
muito a possibilidade de distorção por parte do cientista. São assim, por exemplo,
medidas cujos aparelhos mostram os valores em mostradores digitais. Quando os valores
digitais mostrados oscilam, ou são mostrados por ponteiros, a leitura dos resultados
depende cada vez mais do controle do experimentador, aumentando a chance de
distorção dos dados. Esse é um viés real e os procedimentos experimentais são
idealizados na tentativa de superar esse problema.
Num procedimento duplo cego, quem coleta os resultados não sabe a que tratamento
cada dado pertence. Assim, a probabilidade de erro se torna aleatória e fica difícil
atribuir a esse erro as possíveis diferenças entre os tratamentos. Por outro lado, a pessoa
que sabe a que tratamento pertence cada amostra não fará leitura dos dados. Ou seja,
cada um é “cego” para uma coisa. Há também o triplo cego, onde um indivíduo monta o
experimento, outro conhece os códigos que pareiam os dados com as condições em teste
e um terceiro indivíduo analisa dos dados.

304

Outra alternativa, que não exclui a anterior, é a utilização de mais observadores, o


que pode fornecer indícios para se testar a adequação de cada dado coletado. Nesse caso,
no entanto, treinamentos prévios entre os observadores são necessários. Deve-se fazer
esses treinamentos e certificar-se de que haja concordância alta entre eles (> 95%).
Mesmo com esse erro (<5%), se as diferenças detectadas entre os grupos de estudo
forem muito pequenas, fica a dúvida de quanto a diferença entre os observadores
contribuiu para essa diferença.
Além da distorção dos dados, há o problema da valorização inconsciente de alguns
dados em detrimento de outros. Assim, uma alternativa interessante, embora não
explicitamente apresentada para este tipo de problema, pode ser extraída da proposta de
Karl Popper (2000)161 sobre os testes de hipótese (veja Modus Tollens em II-3). Segundo
Popper, a única alternativa logicamente válida ao cientista é buscar falsear suas
hipóteses. Essa proposta tem uma conseqüência interessante. O problema da distorção
dos dados vem do fato de “vermos o que queremos ver”. Da mesma forma, desprezamos
o que não estamos interessados em ver. Disso decorre que, na fundamentação da nossa
hipótese, buscamos encontrar dados que a corroboram e, portanto, podemos ignorar
dados que a falseariam. Porém, como Popper afirma, os dados que corroboram a
hipótese nos dizem apenas que a hipótese talvez esteja correta, o que não mudaria o
status da hipótese. Porém, quando um único caso falseador da hipótese aparecer (e
apenas um é geralmente necessário), não seria desconsiderado pelo cientista! Esse
elemento psicológico da proposta de Sir Karl Popper não é muito ressaltado, mas é
importantíssimo para o cientista.
Para que a interpretação dos dados seja adequada, o cientista deve confiar nos
resultados obtidos, entender que deve buscar falsear suas hipóteses (e aceitá-las quando
não conseguir derrubá-las), ser audacioso e ter visão global. A audácia vem do fato de
não ter medo de pensar coisas diferentes das tradicionais. A visão global significa que
consiga ver um mesmo conjunto de dados por vários ângulos. Como nos ensina Thomas
Kuhn, a interpretação que fazemos dos dados está condicionada aos nossos paradigmas;
eu diria, aos nossos conceitos sobre os temas investigados.
A questão da interpretação é fundamental na ciência. Veja que os clássicos estudos de
Lamarck e de Darwin, sobre a evolução dos organismos vivos, partem de uma mesma
situação e chegam a interpretações muito diferentes. A maior dificuldade em fazer isso é
conseguir se livrar das formas tradicionais e enxergar um fato antigo com outros olhares.
Veja o seguinte exercício: qual o próximo número na seqüência “2, 3, 6, 7, 8, 9...”?
Se você tentar fazer contas e mais contas, não encontrará a resposta. Mas se olhar
para a redação dos números, notará que os que estão ali ordenados são escritos com
apenas 4 letras. Assim, basta encontrar qual é o próximo número que é maior que 9 e
cujo nome tem quatro letras. O que mostro aqui é que nossa primeira tendência é
examinar números fazendo contas. Saber olhar as informações por vários ângulos
pressupõe não se fixar na primeira versão que nos vem à mente e imaginar que deve
haver outra forma de olhar aquilo. Quando crianças, algumas pessoas

161
Originalmente publicado em 1935.

305

306

costumavam olhar nuvens e identificar formas (geralmente animais). Mas as nuvens


eram apenas “manchas” cuja imaginação do observador lhes dava sentido. É essa a
busca do cientista. Olhar para dados e interpretá-los. Quando a interpretação é
consistente, acreditamos que encontramos a “regra geral” que governa aqueles dados e, a
partir daí, temos uma ferramenta para controlar esse sistema. Por isso os dados precisam
ser confiáveis, mas a interpretação que fazemos deles também deve ser confiável
(quando vários cientistas aceitam sua interpretação, ela se torna conhecimento científico
– veja II-7).

IX-2 O que são conclusões? Como se diferenciam dos resultados?

Todos separam resultados de conclusão. Todos concordam que são coisas diferentes.
Todos respondem a esta questão. Porém, os equívocos são enormes.
Segundo a crença indutivista, a conclusão está num nível teórico e o resultado no
nível factual. Mas isso é ilusório! (veja II-9)
O cálculo da média numa amostra já é uma abstração! Nossa amostra não é a média;
e essa média não é o conjunto de dados. Trata-se apenas de uma inferência em relação à
amostra. Há pressupostos teóricos corroborando a forma como calculamos a média. Há
também outras formas de estabelecermos a tendência central da amostra, como pela
mediana ou pela moda. Ou seja, a média, ou outras medidas de tendência central, não
são fatos objetivos indicadores dessa tendência. São abstrações.
Da mesma forma, ao estabelecermos a equação matemática que descreve a relação
entre duas variáveis, estamos generalizando a partir dos dados coletados. A curva
descrita por essa equação estabelece um enorme número de pontos correlacionados, os
quais não foram de fato observados, mas são supostos a partir dos dados observados.
É óbvio que as generalizações podem ser aumentadas e se tornam cada vez mais
distantes do dado coletado. Mesmo esses dados não estão isentos de teoria, seja teoria
observacional ou tecnológica (veja II-9). Por exemplo, um medidor de pH requer de seu
usuário a crença de que os números indicados no mostrador sejam, de fato, logaritmos
da concentração do íon hidrogênio. Esse usuário transporta tal problema para a crença na
atividade científica que aprovou tal aparelho. Mesmo essa atividade científica, no
entanto, acredita nas leis da eletricidade, da química, cuja natureza teórica é
extremamente ampla. Em resumo, a teoria parece mais presente na vida do cientista do
que ele geralmente imagina!
Mesmo que os fatos concretos estejam impregnados por teoria, há uma distinção
quantitativa nessa impregnação entre os fatos que trabalhamos: uns parecem mais
próximos do concreto e outros mais distantes. E esse é um bom critério para
distinguirmos resultado de conclusão. Novamente uma decisão relativa. E isso é
auxiliado pelo objetivo do trabalho. Vejamos dois exemplos.
Digamos que, ao investigar a relação entre peso do corpo (X) e ingestão de alimentos
(Y) numa dada espécie, obtivemos o que se apresenta na Figura 17. Isso é resultado ou
conclusão?

307

Figura 17. Correlação e regressão linear entre peso corporal (X) e ingestão de alimentos
(Y). Os pontos representam os valores obtidos no estudo e a reta a abstração que reduz
os pontos a essa reta, indicando um processo contínuo na relação entre X e Y.

Todos hão de convir que esse tipo de gráfico é comumente apresentado nos
resultados de um trabalho científico. Mas vou lhes mostrar que pode não ser bem assim.
Se o objetivo é saber se existe correlação entre essas duas variáveis (X e Y), ou qual tipo
de correlação existe, a reta de regressão desses pontos é, sem dúvida, a conclusão a que
chegamos. Podemos chamar os pontos (coordenadas) de resultado e a reta (Y= A + BX)
de conclusão. Mas nunca o contrário. Jamais os resultados podem estar num nível de
abstração acima daquele da conclusão.
Continuando, digamos agora que o objetivo da pesquisa tenha sido estudar o efeito do
sexo na relação X-Y mostrada na Figura 17. Podemos ilustrar essa situação com o
gráfico da Figura 18.

Figura 18. Regressão linear entre peso corporal (X) e ingestão de alimentos (Y),
indicando diferença em função do sexo dos animais.

308

Vemos na Figura 18 que a relação X-Y diferiu em função do sexo (a inclinação da


reta de regressão é diferente entre os sexos), ou seja, a ingestão alimentar (Y) foi
correlacionada com o peso corporal (X) diferentemente em machos e fêmeas. Estabeleço
abaixo um escalonamento entre as conclusões razoáveis a partir desses resultados.

C4. o sexo afeta a relação entre o peso e a taxa de ingestão de alimentos.


C3. As maiores diferenças de ingestão ocorrem entre os animais de maior tamanho;
ou seja, quanto maiores esses animais, mais difere a taxa de ingestão entre os
sexos.
C2. nos machos, a variação em peso implica maiores variações de ingestão de
alimentos do que nas fêmeas.
C1. Nos machos Peso = a + b.Ingestão e nas fêmeas Peso = a + c.Ingestão.

Fica claro que C4 é mais geral que C3, esta mais geral que C2 e C2 mais geral que
C1.0 que é resultado e o que é conclusão nesse exemplo? As afirmações C4, C3 e C2
são claramente teóricas e gerais. Nesse caso, Cl pode ser assumida como conclusão ou
resultado (a preferência é do cientista!). A apresentação dos pontos presentes na reta
pode ser facilmente assumida como resultado. As equações da reta (Cl) são
generalizações como visto anteriormente, mas podem ser consideradas conclusões na
Figura 17, enquanto que na Figura 18 poderiam ser apresentadas como resultados, de
forma a dar mais ênfase nas conclusões mais gerais. Excesso de conclusões produz um
texto mais difícil de ser tornado claro, onde o leitor tem maior chance de se confundir
sobre quais são as principais conclusões, particularmente quando o autor não é muito
experiente.
Mais um exemplo para eliminar dúvidas... ou intransigências intelectuais. O valor de
1,67 m ± 0,15 m representa uma média e seu respectivo desvio padrão. Isso é resultado
ou conclusão? Todos aceitam que seja resultado. Mas nem aqui a questão é simples.
Pode ser conclusão. Imaginem um estudo que objetiva exclusivamente saber qual é a
estatura média do brasileiro. Qual seria a conclusão desse estudo? É óbvio que a
conclusão seria um valor de tendência central (sempre seguido de uma ou mais
representações da variabilidade).
De tudo isso, fica patente que a conclusão está num nível teórico acima do resultado,
mas que num escalonamento entre vários níveis o cientista pode escolher o ponto de
corte. Ilustra também que o referencial para distinguirmos resultado de conclusão é o
objetivo da pesquisa.
Veja o exemplo abaixo, relativo a alunos do ensino fundamental (5a a 8a séries) em
escola pública brasileira, extraído de Tagliacollo et al. (2010).

1) Alunos que se sentam nas primeiras fileiras obtêm melhores notas.


2) Esses alunos das primeiras fileiras faltam menos.
3) Aqueles que se sentam nas últimas fileiras têm as piores notas.

309

4) Esses alunos das últimas fileiras faltam mais.


5) Os alunos das primeiras fileiras vão às aulas porque gostam da matéria ou têm
afeição pelo professor.
6) Os alunos das últimas fileiras vão às aulas para se encontrarem com os colegas.

Dessas informações, podemos dizer:

7) O desempenho escolar está associado à posição dos alunos na classe.


8) A posição do aluno na classe não interfere no desempenho escolar.
9) A motivação do aluno determina tanto o local onde se senta na classe quanto seu
desempenho escolar, razão pela qual o desempenho está associado à posição do
aluno na classe (veja VII-10).
10) Para melhorar o desempenho escolar dos alunos, devemos motivá-los para o
ensino, ao invés de deslocá-los para as primeiras fileiras.

Veja que as 10 informações apresentadas cresceram em generalidade, de 1 até 10,


sendo que a 10 se converte, inclusive, numa sugestão de conduta a partir da conclusão 9.
Nessa gradação de generalizações, o autor deve definir quais adotará como conclusão.
Por exemplo, considerar de 1 até 6 como resultados (embora com generalizações) e de 7
até 10 como conclusões. Note que isso não deve contrariar pressupostos básicos do
processo de fazer ciência. Assim, o cientista deve priorizar as generalizações que sejam
“sólidas” e se refiram aos maiores números de casos (alcance empírico da conclusão).
Portanto, se seu estudo tiver 15 conclusões, é bem provável que muitas delas sejam
especificações desnecessárias. Mire nas mais gerais, pois isso atende a preceitos
científicos e dá elegância ao seu estudo.

IX-3 Quando a estatística ajuda?

A estatística é uma ferramenta que nos permite avaliar resultados expressos


numericamente. Se conceitualmente bem aplicada, é uma ferramenta importantíssima
para as decisões do cientista. Vamos a uma analogia.
Imagine que você está do lado de fora de uma sala e deseja saber se no interior da
sala existe um cachorro. Como não consegue entrar na sala, procurará examinar seu
interior por algumas frestas que lhe permitem visão, mesmo estando do lado externo.
Enquanto olhar pelas frestas e não enxergar algum cachorro, sua conclusão será de que
possivelmente não exista

310

cachorro dentro da sala. Porém, se por uma das frestas você visualizar um cachorro, não
hesitará em dizer que esse animal está no interior da sala.
A estatística pode ser comparada a esse exemplo. Ela é uma fresta (ferramenta) que
lhe permite olhar para o interior das amostras e populações que examina. Quando
encontrar algum efeito, dirá que ele existe e que pode ser detectado a partir de tal fresta
(ou seja, que é visível a partir dos dados coletados de determinada maneira e analisados
com determinado teste e pressuposto estatístico). Por outras frestas você não o
perceberá.
Na escolha dos testes estatísticos e nos referenciais do poder do teste de hipótese,
muitos cientistas buscam trabalhar com testes potentes para evitar erros. Triste ilusão.
Na estatística, quanto mais se “aperta” de um lado, mais se “afrouxa” de outro162. Ou
seja, se seu teste é muito rígido, diminui a chance de encontrar um efeito que não exista,
mas aumenta a chance de dizer que um efeito existente não existe. Se usar um teste
menos rígido, aumenta a chance de encontrar efeitos que não existam. Seja como for, a
crença no teste rígido não resolve.
Nesse sentido, você deve considerar a estatística como uma ferramenta que, se usada
adequadamente, pode ser muito útil. Ela nos ajuda ao dizer a probabilidade de erro que
temos ao aceitarmos algum efeito (associação ou interferência), ou mesmo para
caracterizar um conjunto de dados (pesquisa descritiva) (veja VII-10).
Antes do advento da estatística, a ciência era praticada e construía um conjunto de
conhecimento válido. Portanto, a estatística não é condição necessária para a ciência.
Sem ela, os cientistas se baseavam em resultados evidentes, cuja existência não colocava
dúvida sobre os fenômenos evidenciados (veja o conceito de conhecimento científico,
em II-7). O que a estatística fez nesse quadro?
Com a ferramenta estatística, diferenças nem tão evidentes puderam ser consideradas
como base forte para sustentar conclusões. Ou seja, fenômenos anteriormente não
detectados, passam agora a ser creditados pela ferramenta estatística. Assim, muito mais
efeitos passam a ser descritos após a inclusão da estatística na ciência. Como referido no
início desta questão, crença obstinada na força estatística e no viés do teste rígido pode
agir ao contrário; isto é, impedir que detectemos certos fenômenos que só seriam
visíveis com testes mais “brandos”.
Como vimos, a estatística é uma ferramenta. Se devidamente usada, contribui; se
usada erroneamente, atrapalha.

162
Faça um paralelo com instrumentos de óptica. Um telescópio (teste rígido) lhe permite ver
fenômenos que não são observados com uma lupa simples; mas a lupa também identifica fenômenos que
não vemos com os telescópios.

311

IX-4 Quando transformações em percentuais podem prejudicar a análise?

Alguns pesquisadores, particularmente de algumas áreas, costumam analisar dados


numéricos a partir de suas experiências visuais. Olham para os dados e os consideram
iguais ou diferentes. Não preciso me aprofundar muito na análise para dizer o quanto o
desejo desses cientistas deve influenciar suas conclusões. Lembre-se de que a ciência se
diferenciou da filosofia por entender que a decisão sobre as idéias deveria recair sobre os
dados que são coletados no mundo natural. Mas quando deixamos o aspecto visual
tomar a decisão, aumentamos muito nossa chance de erro nos casos em que os valores
não sejam nitidamente (universalmente) diferentes.
Um exemplo a que me refiro acima é o uso de percentuais. Imagine que você estudou
uma amostra de 100 brasileiros e encontrou que 55% deles é otimista em relação ao
futuro de nosso país, 30% é pessimista e 15% não sabe o que pensar a respeito. Ao invés
de examinar estatisticamente esses dados, o pesquisador se contenta com os percentuais
e se baseia nas diferenças numéricas. Diz que uma minoria não sabe o que espera do
país, mas que a maioria é otimista. A questão é: esses dados permitem essa conclusão:
55% é diferente de 30%? E 15% é menor que 30%?
Não devemos confundir análise visual com análise estatística. Se fossem 90% e 10%,
tenho certeza que a comunidade científica aceitaria sem maiores questionamentos
(atualmente, ainda exigiriam análise estatística, mas isso é mais subserviência à
estatística do que ciência). Recorrer a percentuais não diz muita coisa.
Numa análise estatística dessas proporções, veríamos que 55% > 30%, mas que 30%
= 15% e 15% < 55%. Agora temos um referencial melhor. Nesse caso, para falarmos
que a maioria é otimista, temos que comparar otimistas (55%) com o restante (30% +
15%), o que não daria diferença significativa. Portanto, podemos apenas dizer que dos
que têm uma opinião formada, a maioria é otimista (55% > 30%), mas que os
pessimistas não diferem daqueles que não têm opinião formada.
Se você usou números e eles permitem análise estatística, use-a, particularmente nos
dias de hoje. Não recorra a análises visuais, mesmo que os números sejam
transformados em percentuais. Note que revistas de bom nível não aceitarão conclusões
sem o devido suporte.
Um erro pior é aquele que se inicia com a estatística e, posteriormente, ela é
eliminada ao prazer das vontades do pesquisador. Isto ocorre quando analisamos várias
freqüências de um estudo e encontramos que existe diferença entre elas (por ex., pelo
teste do qui-quadrado, mas sem saber qual difere de qual). A partir daí, olhamos para as
freqüências e dizemos quais diferem de quais, mas sem a menor base estatística. Ou
seja, faltou um teste complementar.
Quando comparamos apenas duas freqüências ou médias/medianas, a existência de
diferença já nos diz que uma é diferente da outra. Mas quando temos 3 ou mais
comparações, o primeiro teste pode nos dizer apenas que existe(m) diferença(s), mas não
indica qual(is). Nesse caso é necessário fazer um teste complementar que irá analisá-las
duas a duas. Ou seja, não adianta usar um referencial (estatístico) na primeira
abordagem e depois abandoná-lo. Estatística: ou usa, ou não usa... aconselho a usar.

312

IX-5 Por que se usa nível crítico geralmente a 5% ou 1%?

Trata-se mais de um costume. Apesar disso, a manutenção desse costume tem


algumas razões que devem ser entendidas.
O valor de 5% como maior probabilidade de erro aceitável foi bastante usado no
início do desenvolvimento dos conceitos estatísticos de teste de hipótese na ciência.
Como decorrência, esse valor foi sendo incorporado na prática desses testes. Por que não
6%, ou quem sabe 3,8%?
Apesar do exposto acima, devemos considerar que muitos estudos nas três grandes
áreas utilizam esses valores (5% ou 1%). De fato, essa prática científica revelou que esse
nível é adequado às peculiaridades dessas áreas. Em algumas áreas da Física, geralmente
esse nível é baixado para 1%, 0,1% ou 0,01%. Mesmo na Biologia, áreas morfométricas,
por exemplo, também costumam reduzir o nível crítico do erro. Na realidade, a variação
dos dados obtidos numa mesma condição dificulta detectar diferença entre médias ou
medianas; ou seja, quanto mais as variações em torno da média/mediana se sobrepõem
entre valores de duas amostras, mais elas têm chance de serem consideradas amostras de
uma mesma população (portanto, que não diferem entre si). Numa mesma condição, a
variação entre os dados advém de variações na técnica de coleta dos dados e/ou de
fatores naturais que atuam e que não conseguimos controlar. Dessa forma, quanto mais
variam os dados numa mesma condição, mais difícil é obter diferenças com baixo nível
de erro. Por isso, na Física os erros são menores, na área biológica de morfometria são
menores do que quando se estuda comportamento, e na área sociológica é maior ainda,
podendo se falar em níveis de 10%. Em resumo, quanto maior for a chance de variáveis
desconhecidas atuarem na variável investigada (e produzirem altas variâncias), maior
será a necessidade de aumentar o nível de erro para se detectar algum efeito.
Nos comentários que apresento devemos considerar os dois tipos de erro aos quais
estamos sujeitos nos testes de hipóteses (veja II-8). Porém, o cientista geralmente se
esforça mais para reduzir o erro do tipo I (α – dizer que algo existe quando não existe),
muitas vezes ignorando que, ao fazer isso, está aumentando o erro do tipo II (β – dizer
que algo não existe, quando existe).
Mesmo considerando a relatividade expressa acima, também erramos quando
estabelecemos um valor crítico a priori. Esse valor crítico, que numa pesquisa é
definido, em última análise, pelo valor crítico do erro que podemos assumir, delimitará
se os valores investigados são iguais ou diferentes entre si. Será um delimitador de
águas! Imaginemos três casos de comparações entre médias:

a. Há diferença ao nível de 5,5%.


b. Há diferença ao nível de 4,5%.
c. Há diferença ao nível de 0,5%.

313

Esses casos ressaltam o fato de que se o nível crítico for 5%, assumiremos um efeito
na variável independente apenas nos casos b e c. Ou seja, o caso b parecerá mais
próximo de c do que de a.
Uma prática interessante que se intensificou na década de 90, sendo agora muito mais
comum, é a eliminação do valor crítico e adoção do valor mínimo que indica algum
efeito. Cabe ao cientista, com sua experiência (subjetiva!), aceitar ou não esse nível de
erro ou considerar os valores como iguais entre si. Porém, esse palpite do
experimentador pode ser mais bem embasado em alguns casos. Podemos realizar numa
pesquisa uma série de estudos nos quais testamos o efeito de algumas variáveis sobre um
determinado fenômeno. Por exemplo, podemos testar o efeito de várias espécies de
plantas daninhas sobre o desenvolvimento de uma determinada planta de interesse
comercial. No exemplo a seguir, o resultado do diâmetro do caule de eucalipto aos 21
dias após o início do experimento foi comparado em situações de cultivo com plantas
daninhas e sem essas plantas. Cada comparação forneceu um valor de p, que são
apresentados na Tabela 10 (adaptado de Souza 1994).

Tabela 10. Valores estatísticos de p nas reduções do crescimento de eucalipto em


presença de cada planta daninha comparada à situação controle.

Espécie Daninha Valor de p


Ageratum conizoides 0,0002
Digitaria horizontalis 0,0012
Brachiaria decumbens 0,0111
Euphorbia heterophylla 0,0174
Raphanus raphanistrum 0,0328
Commelina nudiflora 0,0855
Rhynchelytrum repens 0,1429
Ipomoea acuminata 0,1945
Cássia occidentalis 0,2599
Panicum maximum 0,3396
Brachiaria plantaginea 0,4855
Bidens pilosa 0,6632

Desses dados, podemos perceber que, se estabelecermos um nível crítico a 5%,


apenas 5 espécies afetaram o desenvolvimento do eucalipto. Porém, é visível que as
demais espécies de plantas daninhas não tiveram um efeito homogêneo a ponto de
colocarmos todas sob o mesmo rótulo das que não afetam. Mais que isso, podemos
claramente identificar grupos nos quais as probabilidades de erro são mais próximas
entre si, e outros com probabilidades muito maiores.
Nessa distribuição, fica evidente a adequação de não assumirmos um valor crítico de
erro. O valor obtido para a espécie Commelina nudiflora pode ser agora considerado por
outro ângulo e não apenas como superior a 0,05 (não significante!). No entanto, essa
nova postura só pode ser assumida se não estabelecemos valores críticos a priori. O

314

conjunto de resultados influiu no estabelecimento do que é igual e o que é diferente.


Essa visão substitui o problema do nível crítico a priori por uma solução menos
objetiva, porém mais condizente com a realidade. Novamente vemos que o sonho de
uma ciência objetiva fica para trás.

315

Nos casos em que lidamos com poucas comparações (por ex., apenas duas médias),
obtemos apenas um valor crítico e o nosso referencial podem ser estudos similares
desenvolvidos ou o bom senso, considerando-se a magnitude das variáveis interferentes
que não podem ser controladas nesse tipo de pesquisa. Não havendo nada claramente
estabelecido, use o costumeiro 5% ou 1%.
Seja como for, o aval último das decisões do autor será dado pela comunidade
científica. Na medida em que as diferenças que o autor considerou relevantes forem
aceitas pela comunidade, por meio de citações, é porque sua decisão foi adequada. Na
verdade, haverá sempre uma comunidade para fazer julgamentos anônimos, muito mais
relevantes que aqueles dos assessores das revistas, porém talvez menos impeditivos.

IX-6 O que fazer com os dados que mostram apenas tendência à significância?

A resposta apresentada em IX-5 mostra claramente que esse problema desaparece


quando eliminamos o estabelecimento a priori de um nível crítico de erro. Se, por outro
lado, adotamos a priori um nível crítico de erro, o problema das tendências é real. São
aqueles casos em que o nível de erro é ligeiramente acima do crítico assumido. Se o
nível crítico é, de fato, crítico, não deve ser ultrapassado. Nesse caso, fica contraditório
utilizarmos a noção de tendência à significância.
Erro comum, no entanto, ocorre quando abusamos da tendência e a usamos em casos
isolados. Isso, infelizmente, ocorre muito em áreas mais aplicadas da ciência, visto que o
possível efeito prático tende a forçar o pesquisador a aceitar efeitos não existentes. Um
exemplo é a constatação de uma diferença média entre duas condições experimentais,
como uma diferença em ganho de peso em situações com complemento vitamínico e
sem esse complemento. Os resultados poderiam ter sido de 5,32g ± l,45g (com
complemento vitamínico) e 3,20g + 2,30g (sem esse complemento). Mesmo com a
análise estatística (teste t independente) mostrando que não há diferença (p = 0,23), o
autor constrói o seguinte argumento:

Embora não haja diferença estatisticamente significativa, há uma diferença média de


quase 40% de ganho de peso no grupo com complemento vitamínico, o que é muito
significativo em termos de produção. Assim, recomendamos o uso desse
complemento vitamínico.

O erro desse argumento é evidente! A ausência de diferença estatística significa que


essa diferença (40%) é obra do acaso; se repetirmos as condições do estudo, ela pode
não ocorrer, ou ocorrer no sentido inverso (maior ganho de peso para os animais sem
complemento vitamínico). Isso é mais sério ainda porque é relativamente comum
cientistas recomendarem condutas aos usuários antes que seus dados tenham sido
validados pela comunidade científica (ao menos com a publicação em periódico

316

de boa qualidade). Com isso, muitas recomendações são equivocadas e os insucessos


decorrentes disso ficam no esquecimento do cientista, mas provavelmente não do
usuário que foi lesado. Este desvio reforça a necessidade de publicarmos nossos estudos
em periódicos científicos de nível internacional antes de distribuirmos nossas
recomendações para a comunidade não científica. Erro como o apresentado acima não
passa em revista de boa qualidade, mas polui páginas de muitas revistas de baixo
escalão.
Quando encontramos tendência à significância (os olhos vêem uma coisa e a
estatística outra), a melhor solução, no entanto, é aumentar o número de réplicas
(tamanho da amostra). Isso eqüivale a “perguntar à base empírica”. Com esse aumento,
uma de duas coisas acontecerá: a) ou a tendência do efeito se confirma e a nova análise
revela diferença significativa; b) ou a tendência desaparece e a igualdade (ou ausência de
correlação) se confirma.

IX-7 O que fazer quando os dados coletados não sustentam a hipótese?

As hipóteses não são formuladas para serem confirmadas, pois esta é uma tarefa
impossível quando são enunciados de natureza geral (veja II-8 e II-9). O objetivo do
cientista é descrever uma situação (sem expectativas prévias, sem hipótese) ou testar
hipótese e concluir sobre sua corroboração ou refutação. Dizer que algo não ocorre de
determinada maneira (como na negação da hipótese experimental) é também muito
importante. De fato, a elaboração da hipótese requer uma argumentação mostrando sua
plausibilidade, ou seja, de que é razoavelmente uma boa explicação para a pergunta que
procuramos responder. Porém, a hipótese precisa ser testada. A argumentação de sua
plausibilidade só indica que vamos testá-la prioritariamente a outras hipóteses possíveis
e ainda não testadas. Assim, a demonstração de sua inadequação evitará que outros
enveredem pelo mesmo caminho; a impossibilidade de derrubá-la fará com que a
usemos como explicação científica até que se prove o contrário. O importante num
estudo científico é que a hipótese seja adequadamente testada.
Em resumo, não se avalia a qualidade de um trabalho científico em termos de se a
hipótese foi confirmada ou não; mas sim pela validade da hipótese proposta e pela
qualidade do teste ao qual foi submetida.
Porém, o cientista não deve se contentar em saber que uma hipótese negada também
tem seu valor. Deve saber qual orientação deve dar à sua pesquisa a partir daí. Vejamos
um exemplo na Física dos gases e, posteriormente, um exemplo aplicado à Biologia163.

H1: A água ferve a 100 °C.

163
Exemplos extraídos de Volpato (2007).

317

A generalização H1 se refere a todas as águas, em quaisquer lugares e condições.


Porém, testes experimentais negarão essa idéia quando forem feitos fora do nível do
mar. Temos agora uma possibilidade que geralmente agrada ao pesquisador:

A água ferve a 100 °C ao nível do mar.


(a hipótese é mantida)

No prosseguimento dos testes, podemos encontrar que água com soluto não ferve a
100 °C no nível do mar. Se adotarmos a postura apresentada acima, alteraremos a
hipótese para:

A água pura ferve a 100 °C ao nível do mar.


(a hipótese é mantida)

Outros testes podem mostrar que esse último enunciado só é válido se os testes forem
feitos em recipientes abertos. Novamente, podemos manter nossa conclusão, alterando-a
para:

A água pura ferve a 100 °C, em recipientes abertos, ao nível do mar.


(a hipótese é mantida)

As atitudes exemplificadas acima conduzem o pesquisador a relatar uma situação


cada vez mais particular. Continuando assim, logo diríamos que:

A água testada no dia tal, em seu laboratório, sob certas condições muito especiais,
ferveu a 100 °C.

Essa atitude contraria o esperado para quem almeja atingir o objetivo da ciência, que
é exatamente o oposto: elaborar conclusões cada vez mais gerais (veja II-l). Ao manter
as generalizações pelas condutas acima, o pesquisador está restringindo o alcance
empírico delas, ou seja, cada vez mais passam a descrever um menor universo empírico
(fala-se cada vez mais de “algumas águas”,

318

quando a proposta inicial se referia ao universo “água”). O objetivo na ciência é


encontrar conclusões que expliquem grande conjunto de dados, e não o contrário.
Considerando o objetivo da ciência, o cientista atuaria de forma diferente. Ele tem
que reconhecer que as hipóteses específicas foram negadas pelos dados obtidos. Diante
disso, a diferença é que o cientista não acha que essas restrições que reduzem o alcance
da hipótese sejam sua meta final. Ele entende que houve restrição e se esforçará para
encontrar uma generalização maior, que explique os casos em que a água ferveu a 100°C
e também os casos em que isso não ocorreu. Nesse caso ele amplia nossa compreensão
sobre o fenômeno. Hipoteticamente, isso eqüivaleria a encontrar uma equação que
descreva a temperatura de fervura da água em função das condições de pressão (altitude
em função do nível do mar e recipientes abertos ou fechados) e da concentração de
soluto na água. Essa equação teria o formato genérico a seguir:

Temperatura de fervura = x. [pressão] . y. [soluto]

As relações indicadas acima podem ser direta ou inversamente proporcionais. A


equação exata seria obtida a partir de dados coletados em várias situações de altitude,
pressão e concentração de solutos, indicando exatamente qual é a fórmula que explica a
temperatura de fervura. Agora sim, com essa fórmula houve incremento no
conhecimento. Veja que ela lhe permite saber qual será a temperatura de fervura em
qualquer situação, desde que você conheça as condições de pressão e concentração do
soluto. Essa equação mais geral é o objetivo do cientista, e não se contentar com
restrições à idéia geral. Conhecendo regras gerais, resolve-se problemas específicos; mas
conhecendo-se problemas específicos não se resolve outros casos específicos. Ou seja,
se estudamos indivíduos de uma cidade, poderemos resolver seus problemas. Porém, se
entendemos as regras subjacentes a seus problemas, podemos resolvê-los e também aos
de indivíduos de outras cidades em situações onde a regra seja válida.
Popper propõe que, ao derrubarmos uma hipótese, devemos procurar encontrar uma
generalização mais ampla que explique os sucessos (em nosso exemplo, as fervuras a
100°C, no nível do mar, em recipientes abertos e água pura) e os insucessos da hipótese
testada (não fervura a 100 °C para água com soluto, água fora do nível do mar, água em
recipientes fechados etc). Ou seja, não propomos nada de novo, apenas que sigamos o
que significa fazer ciência.
Na Biologia, citarei um exemplo que originou uma pesquisa que desenvolvi (Volpato
e Fernandes 1994). Esse caso é particularmente ilustrativo da proposta de Popper na
prática cotidiana do cientista.
Nos estudos sobre biologia de peixes, uma generalização bastante aceita é: a alta
densidade populacional reduz o crescimento em peixes. Uma análise cuidadosa, no
entanto, revela que essa generalização não é totalmente válida. O que se observa é que a
maioria dos animais em alta densidade populacional têm o ganho de peso reduzido, às
vezes até suprimido ou apresentam perda de peso. Porém, alguns indivíduos podem
crescer a taxas similares às dos mantidos em baixa densidade

319

populacional (condição controle). Esse fato mostra que a generalização inicial não se
aplica a todos os indivíduos na condição de alta densidade populacional. Ou seja, que
essa generalização não é irrestritamente válida.
É muito comum, nesses casos, os cientistas se contentarem em concluir que a alta
densidade populacional reduz o crescimento médio dos peixes. Ao fazerem assim, no
entanto, estão restringindo o alcance empírico da generalização inicial e, agora, se
referem apenas ao crescimento médio e não ao crescimento individual. Nesse trabalho,
nos propusemos a encontrar uma generalização mais ampla que explicasse porque
alguns peixes não têm seu crescimento reduzido, enquanto a maioria cresce menos em
decorrência da alta densidade populacional. Isso foi conseguido a partir de uma análise
da literatura publicada (revisão da literatura), de onde concluímos que o agrupamento
afeta de forma diferente o crescimento dos peixes quando os indivíduos são
hierarquicamente dominantes ou submissos no grupo: dominantes crescem como se
estivessem no isolamento; submissos crescem menos ou perdem peso, pois sofrem
estresse pelos ataques que recebem dos dominantes. Assim, o crescimento é modulado
pelo nível e tipo de estresse desses animais, o que explica porque o agrupamento reduz o
crescimento médio (a maioria dos animais apanha de uma minoria que são os
dominantes) e também porque alguns crescem a taxas altas (os dominantes, que não
sofrem de forma muito intensa com a interação social). Com isso, explicamos todos os
crescimentos observados.
Na Introdução desse estudo (Volpato e Fernandes 1994), a argumentação parte da
noção exposta por Popper, o que exemplifica como a filosofia da ciência pode ser usada
para situações cotidianas dos cientistas e não apenas para as grandes teorias.

IX-8 O que fazer quando os dados são muito discrepantes daqueles obtidos na
mesma condição de estudo?

Inicialmente devemos lembrar que a forma mais comum de análise de dados procura
visualizar um conjunto (população) a partir de análise de um subconjunto (amostra).
Portanto, a primeira tarefa é conseguir visualizar essa amostra. E é nessa tarefa que os
dados discrepantes atrapalham. Por serem muito diferentes, criam uma ilusão quando
tentamos sintetizar essa amostra, por exemplo, quando calculamos a média. Como
resolver isso (aquele dado discrepante que atrapalha a vida do cientista)?
Imagine que numa determinada espécie animal esteja sendo testada a associação entre
coloração do corpo e ganho de peso164. Os valores de ganho de peso referentes a
determinado período de crescimento são mostrados na Tabela 11. Como a distribuição
desses dados passa pelo teste de normalidade (por ex., teste de Kolmogorov-Smirnov,
com KS = 0,15 e 0,24,

164
Assume-se que haja apenas associação, sem interferência de uma variável sobre a outra; algum
fator deve interferir independentemente na cor do corpo de no ganho de peso (por ex., estresse).

320

respectivamente para colorações clara e escura) e suas variâncias são homocedásticas (F


= 2,53)165, então as compararemos por análise paramétrica; no caso, teste t independente
(veja Fig. 15, item VII-20).

Tabela 11. Ganho de peso (g) associado à coloração corporal no peixe tilápia-do-nilo.
Animal Coloração do corpo
Clara Escura
1 18,6 18,2
2 24,2 11,5
3 18,7 14,3
4 26,5 21,6
5 22,5 17,6
6 16,8 31,2
7 21,2 14,0
8 15,5 16,4
9 23,3 16,6
10 23,8 12,5
Média 21,1 17,4
d.p. 3,6 5,7
Dados individuais de 20 animais mantidos em isolamento social, sendo 10 animais em
cada condição de cor do corpo.

A análise estatística desses dados revela que se assumirmos que as médias são
diferentes, temos que aceitá-la com p = 0,0966 (~9,7% de erro em indicar esse efeito).
Pelo critério mais usual (veja IX-5), diríamos que não há diferença entre elas; ou seja,
que o ganho de peso não está associado à coloração do corpo desses animais. No
entanto, observamos que na condição de coloração escura do corpo, a réplica n° 6 (=
31,2) parece muito discrepante dos demais dados. Como conseqüência, esse dado impõe
maior variabilidade a essa amostra, o que reduz a chance de se encontrar diferença entre
as amostras (cor clara x cor escura). Seria válido excluirmos esse dado discrepante? Ou
devemos aceitar a ausência de associação entre ganho de peso e cor do corpo?
Uma primeira análise deve examinar se esse valor (31,2) não decorre de erro
técnico166. Eliminada essa possibilidade, temos que considerá-lo um dado natural. Cabe
agora decidirmos se esse dado natural é um dado discrepante (outlier). Outliers são
valores da amostra que estão muito longe da média. Um critério para identificá-los é

165
Regra prática: eleve ao quadrado o desvio padrão das duas amostras e divida o maior valor pelo
menor. A razão resultante é o valor F. Na regra prática, se for acima de 4,0, as variâncias são
heterocedásticas e o teste precisa contemplar isso, ou recomenda-se estatística não paramétrica.
166
Note como é importante, durante a coleta de dados, registrarmos o que ocorre com o estudo, pois
essas anotações podem nos dar referenciais para excluirmos dados devido à maior possibilidade de
decorrerem de erros técnicos. Quando não temos esse registro, ou eles não indicam erro técnico, temos
que aceitar que todos os dados são naturais.

321

avaliando se estão fora dos limites estabelecidos pela média ± 2 vezes167 o desvio
padrão, conforme Tukey (1977). A discrepância do outlier é, em última instância,
inversamente proporcional à probabilidade de o dado ocorrer na população.

167
Na realidade, o valor é 1,96, mas na prática usa-se 2.

322

No caso da Tabela 11, para a coloração escura temos: 17,4 ± 2 x 5,7, que dá os
limites de 6,0 e 28,8. Então, a réplica n° 6 dos peixes de coloração escura é um outlier, o
que nos possibilita retirá-la da análise estatística. Na amostra dos animais com corpo
claro os limites são 14,0 e 28,3, que indica ausência de outliers.
Retirado o outlier, a nova média calculada é 15,9 ± 3,1168, que pode ser assumida
como diferente da média da outra condição (clara) com erro de 0,0035 (-0,35% de erro
em aceitar o efeito). Adotando esse procedimento, o valor do outlier deve
necessariamente ser apresentado nos Resultados (veja Fig. 19).
A exclusão do outlier possibilitou maior confiança ao cientista para aceitar a
diferença entre as médias comparadas. Ou seja, impediu que aceitasse erroneamente a
igualdade entre as médias e, portanto, a ausência de associação entre coloração do corpo
e ganho de peso. É necessário, no entanto, que conheçamos porque tal procedimento é
correto.
Ao representarmos uma amostra pela sua média e desvio padrão, devemos estar
atentos para que essa representação reflita o perfil da amostra. No caso da amostra da
condição coloração escura, a representação pela média obtida das 10 réplicas
(incluindo-se o outlier) é mais ilusória que a representação que considera o conceito de
outlier. Se aplicarmos a estratégia do outlier, dizemos que há um conjunto de dados
próximos (baixo desvio padrão: 3,1; coeficiente de variação = 19,8%) ao valor 15,9
(média) e um dado discrepante (31,2). Sem a exclusão do outlier, no entanto, o alto
desvio padrão (5,7; coeficiente de variação = 32,7) implica grande variedade dos dados
ao redor da média; ou seja, a imprecisão é maior.
Graficamente, essa idéia pode ser representada como na Figura 19. Fica claro que a
representação que inclui o outlier na elaboração da média (B) corresponde menos à
realidade da amostra do que quando excluímos esse valor e apresentamos a nova média
e o valor do outlier (C). Por isso o valor de outlier deve ser incluído no trabalho, mas
retirado da análise.

168
Neste caso, não surge um novo outlier.

323

Figura 19. Papel da exclusão do outlier na representação da amostra. Em A temos a


distribuição dos valores individuais de uma amostra hipotética, na qual o ponto em
posição superior é um outlier. Em B vemos a média e o desvio padrão desses valores.
Em C está a média e o desvio padrão excluindo-se o valor de outlier, mas apresentando-
o como um ponto. Note que a realidade do conjunto da amostra é mais bem representada
pela opção C.

IX-9 Que cuidados tomar para se concluir sobre correlação entre variáveis?

Vamos nos ater às correlações lineares, que são mais claramente vistas pelo cientista,
mas o conceito geral se aplica também às correlações multivariadas. Os valores obtidos
em cada par de dados são plotados em gráficos, como exemplificado na Figura 20.
Numa primeira análise, avaliamos se existe correlação entre esses pontos. Uma vez
que exista, podemos traçar a equação que representa esse fenômeno (por ex., equação da
reta – veja Fig. 17 e 18 em IX-2). Nesse caso, estamos fazendo a regressão. Ou seja, se
há correlação169 entre

169
A aceitação da existência de correlação geralmente é feita a partir do valor de r (coeficiente de
correlação), ao qual se aplica um teste estatístico. No entanto, é importante olhar o coeficiente de
determinação (R2, obtido elevando-se r ao quadrado), que indica o quanto (R2 x 100 = %) essa reta/curva
explica os pontos.

324

os pontos, então podemos estabelecer a curva de regressão (significa regredir os pontos a


uma reta ou curva).
Para que nossa análise de correlação (e conseqüente regressão) tenha sentido, é
aconselhável que o número de pares de dados (pontos) plotados no gráfico seja maior ou
igual a cinco. A justificativa é simples. Por dois pontos quaisquer podemos sempre
definir uma reta, ou ainda qualquer outro tipo de regressão matemática (até mesmo um
círculo pode ser imaginado). Três pontos não auxiliam muito a definir entre os tipos de
associação. Mesmo quatro pontos não delimitam a equação; é possível, por exemplo,
determinarmos uma sigmoide ou uma reta. A partir de cinco pontos as decisões entre as
diversas regressões passam a ficar mais claras. Isso não é estatística, mas bom senso.
Assim, é sempre importante fazer uma análise gráfica (visual) antes de aceitar as
correlações estatisticamente evidenciadas. Vejamos os dois gráficos na Figura 20.

Figura 20. Critério para aceitação de correlações lineares entre variáveis.

No caso A, o ponto discrepante forçou a linearidade que, se avaliada estatisticamente,


nos daria um coeficiente de correlação significativo. No caso B, a correlação é real e
reforçada pela análise visual. Um aspecto importantíssimo a se considerar é o intervalo
em que as variáveis foram obtidas. Esse intervalo deve ser representado em sua extensão
para evitar discrepância como a apresentada no caso A. Os valores deveriam também ter
sido amostrados no intervalo entre o ponto discrepante e os outros pontos, o que evitaria
a distorção.
Os casos ilustrados na Figura 20 mostram quão cuidadosos devemos ser antes de
aplicarmos os testes de correlação. É comum as pessoas fazerem tais testes sem a

325

construção dos gráficos. Com isso, elaboram tabela com os valores de r e seus
respectivos valores de significância (P), a partir dos quais elaboram suas conclusões. É
bom lembrarmos que, uma vez introduzidos os dados nos programas computacionais de
estatística, alguma coisa sai como resultado. A participação do cientista é imprescindível
para decidir o que deve e o que não deve usar.
Um último ponto a considerar é a decisão sobre se a correlação indica interferência
entre as variáveis ou apenas associação. Veja em VII-10 as considerações sobre isso.

326

IX-10 Por que relacionar os resultados e conclusões com os de outros autores?

Há basicamente dois motivos para se relacionar os dados do seu estudo com aqueles
desenvolvidos por outros cientistas. O primeiro refere-se à importância de mostrar que
nossos dados estão adequados. Essa demonstração é necessária, pois são esses dados que
dão suporte às conclusões. Por meio de comparações mostramos que nossos resultados
estão dentro de valores esperados pelo conhecimento já consagrado pela publicação e
relativo a outras espécies ou condições de estudo. Por exemplo, se desejamos testar o
efeito da idade na acuidade visual das pessoas, uma informação importante é mostrar
que as medidas de acuidade visual que fizemos estão adequadas às que têm sido
relatadas por outros autores (por exemplo, comparando-se valores obtidos em condições
similares).
O segundo motivo é o desejo de ver onde e como nossas conclusões se “encaixam”
no conhecimento existente. Então, não apenas comparamos, para conformar ou
contrapor, mas somamos nossos dados aos da literatura para elaborarmos conclusões
mais gerais. Dessa comparação poderá, inclusive, emergir idéias novas que, apenas com
os resultados que coletamos, jamais seriam obtidas. Esquematicamente, representamos
como na Figura 21.

Figura 21. Estrutura lógica de um discurso científico.

O grau de generalização entre as conclusões pode ser avaliado pela abrangência


empírica (tamanho do universo físico que a generalização abrange). Assim, no esquema
da Figura 21 podemos dizer que a conclusão 3 é mais abrangente que a conclusão 1, pois
a conclusão 3 refere-se aos resultados 1,2 e 3 e aqueles da literatura 1, enquanto que a
conclusão 1 engloba apenas os resultados 1 e 2.

327

A conclusão 4, por sua vez, é a mais ampla de todas, pois engloba todos os resultados
apresentados e os produzidos e obtidos na sua revisão da literatura.
Basicamente, quando você analisa seus dados e obtém conclusões, deverá fazer duas
coisas:

1. Colocar essas conclusões na rede de conhecimento científico existente,


mostrando como se relacionam com as idéias conhecidas e aceitas. Algumas
idéias aceitas geralmente serão usadas para sustentar suas conclusões. Não se
trata de falar mesmices, mas de mostrar que sua conclusão é coerente com
alguma idéia mais geral, ou que reforça ou complementa algo já aceito. Por
exemplo, poderá mostrar que certa característica presente nos primatas ocorre
também em outros organismos. Um exemplo é o estudo de Plotnik et al. (2006),
que mostrou que a concepção de um “eu”, que exige reconhecer que você é
diferente do outro, já bem estabelecida em primatas e alguns golfinhos, ocorre
também em elefantes africanos. Ou seja, eles se reconhecem ao olharem para um
espelho. No caso de peixes, por exemplo, eles não se reconhecem no espelho e as
espécies territoriais brigam com a própria imagem refletida no espelho.

2. Mostrar o que mudou na rede do conhecimento a partir de sua conclusão.


Alguma coisa deve mudar, pois do contrário seu estudo não tem interesse. Essa
mudança pode ser desde um fenômeno novo até a corroboração de algo que ainda
não está consolidado.

E são esses dois pontos que devem ser evidenciados na Discussão de um texto
científico. Sem eles, seu estudo não tem interesse para a comunidade científica. Devem
também ser incluídos na Cover Letter ao submeter o manuscrito para publicação.

IX-11 Até que ponto é possível avançar nas generalizações durante a elaboração
das conclusões?

Quanto mais ampla a generalização, mais distante geralmente estamos do mundo


físico. A crença indutivista de que os dados confirmam a generalização, ou que esta
brota dos dados, é fonte da indagação desta questão (veja II-8, II-9 e X-8). Para entender
esta resposta, faça uma revisão sobre o conceito de resultado e conclusão (veja IX-2).
O objetivo do cientista é elaborar leis gerais, e cada vez mais gerais (veja II-1).
Apesar disso, está preso às raízes de uma ciência empírica que não o deixa voar muito
alto. A solução será um equilíbrio entre essas duas partes: nem tanto aos dados e nem
tanto às idéias. Os referenciais para esse equilíbrio são de cunho psicológico e social!

328

Temos que distinguir uma hipótese não testada de uma conclusão (veja 11-10 e IX-2).
A primeira ainda não foi colocada a teste. A segunda deriva de uma hipótese já testada,
que foi corroborada ou não pelos resultados empíricos. É claramente um status diferente.
Embora não signifique mais ou menos verdade (veja II-8), a conclusão nos é
psicologicamente mais aceitável como resposta a uma pergunta.
Entre as conclusões, podemos identificar graus de generalidade (Fig. 21, item IX-10).
É comum que a diferença decorra do alcance empírico da generalização. Por exemplo,
concluir sobre mamíferos é mais restrito que concluir sobre vertebrados (que incluem
mamíferos e outros animais) e mais geral que concluir sobre bovinos (que é um tipo de
mamífero).
Seja como for, devemos discriminar as generalizações mais amplas das mais
específicas. Este é o primeiro passo para buscarmos compreender o alcance dessas
generalizações; ou seja, quando elas se distanciam dos dados empíricos e passam a ser
chamadas de especulações, possibilidades etc. Como disse, o critério não é lógico, é
psicológico! O bom senso não deixará dúvidas.
No caso das publicações, quanto mais desconhecidos somos, mais os revisores
forçam para que nossas conclusões fiquem restritas aos dados coletados, reduzindo o
alcance de nosso estudo. À medida que nos tornamos mais conhecidos, a comunidade de
revisores e editores científicos das revistas internacionais passa a confiar mais em nossos
palpites e podemos ter nossas generalizações mais amplas aceitas. Veja, por exemplo,
que podemos falar mais quando somos convidados a escrever um artigo de revisão do
que quando submetemos espontaneamente tais artigos para uma revista.
A prática de publicação em periódicos de boa qualidade internacional é um dos meios
eficazes, porém doloroso, para aprendermos os limites de nossa generalização. Na sua
área específica, com as problemáticas e condições de seus estudos, terá pessoas
gabaritadas dizendo-lhe até onde ir. Receberá críticas por se limitar aos dados e também
será criticado por se distanciar muito deles. A medida certa será aprendida na sua
especificidade de área. Esse é o melhor caminho. Mesmo assim, deixo algumas dicas.
Seu estudo deve ter alguma conclusão sólida, embasada claramente em seus
resultados. Isso sustenta o seu texto. A partir daí, algumas conclusões podem ser
adicionadas se fortemente embasadas em literatura do bom nível ou se logicamente
deduzidas (esperadas) das demonstrações de seus dados. Por exemplo, seus resultados
mostram algum efeito (A interfere com B). Como conseqüência, a pergunta que fica é o
mecanismo pelo qual A interfere em B. Se esse mecanismo não é claro, limite-se a dizer
que sua determinação deve ser assunto de estudos futuros (não são necessariamente seus
estudos170, mas espera-se que a comunidade científica se envergue nessa tarefa).

170
Alguns pesquisadores menos gabaritados buscam com essas afirmações garantir prioridade nas
pesquisas futuras. Buscam, ingenuamente, delimitar território para que outros não investiguem o que estão
pesquisando. Primeiro, isso não pode ser garantido... quem concluir e publicar primeiro passa a ser o dono
a conclusão. Segundo, foge do espírito científico, que espera que a comunidade científica consiga o mais
rapidamente possível encontrar as soluções para problemas importantes. Sua contribuição pode ser o
ponto de partida para isso, que será resolvido por outro cientista.

329

Sempre que você começar a discutir muita coisa na base do “é possível que...” ou
“quem sabe se...” pode ter certeza que será negado. Se for alguma possibilidade, fale
pouco, uma ou duas frases apenas. Veja se aquilo que você discute vem dos seus dados
ou de suas curiosidades; neste último caso, exclua do texto.

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332

CAPÍTULO X

Redação Científica171

X-l Há diferenças na redação entre TCC, Dissertação, Tese e Artigo Científico?

As diferenças que encontramos entre esses textos não são diferenças reais... são
apenas expressão de equívocos teóricos de quem os constrói, e que, muitas vezes,
orientam suas construções. A alegação de que nesses textos o aluno deve exercitar seu
raciocínio, podendo escrever bastante para mostrar tudo o que aprendeu, é
completamente anacrônica. Nos dias de hoje ela apenas tira o aluno do foco e lhe incute
conceitos errados sobre a construção de um texto científico. Quando termina seu
trabalho, muito provavelmente repetirá esses equívocos no artigo que deverá escrever e,
certamente, será negado em revista de boa qualidade, ou conseguirá publicar apenas em
revistas desqualificadas. Nos dois casos temos prejuízo para esse profissional.

Embora antigamente se considerasse que uma dissertação poderia ser uma exposição
teórica e crítica sobre os dados publicados por outros cientistas (como uma revisão
crítica), na prática esses textos se transformaram em sínteses acríticas sobre o que existe
na literatura, uma

171
Por alguma razão, todos os que publicam alguma coisa se sentem no direito de dar palpites sobre o
tema Redação Científica. Frente a isso, preparei um antídoto... escrevi o Pérolas da Redação Científica
(Volpato 2010b), para desmascarar as atrocidades que a cada dia afastam nossos jovens cientistas de um
desempenho competente. Imunize-se!

333

construção desnecessária para a ciência de alto nível. Com o advento de uma pós-
graduação mais formalizada, essas dissertações foram se transformando em estudos
empíricos, restringindo-se apenas pela duração. Como o tempo para sua conclusão é
mais curto que o de um doutoramento, começou a ser diferenciado do doutorado pela
extensão do texto e pelo volume de resultados. Num ambiente de ciência fraca, tais
conceitos proliferaram muito rapidamente.
Eu diria que atualmente esse equívoco da extensão (tamanho do estudo) ainda é
muito usado para distinguir dissertação de mestrado de uma tese de doutoramento. Mas
não acho que essa discussão seja relevante na atualidade, visto que a qualidade da
publicação científica está se tornando prioridade, mesmo nas áreas em que a publicação
de livros era o principal critério.
Seja como for, uma coisa parece certa: sendo um texto científico, deverá apresentar
um problema e sua solução, usando para isso a base empírica (advinda de dados
originais ou não). No caso da tese, fica estranho não defender alguma tese. Afinal, na
conclusão da pós-graduação o aluno defende uma tese de doutoramento, embora muitos
apenas defendam um texto científico no qual nem sabem identificar a tese que
defendem.
Atualmente, está se tornando cada vez mais comum que as dissertações e teses, bem
como os trabalhos de conclusão de curso, sejam apresentados em formato de artigos
(manuscritos submetidos ou artigos publicados). Isso é coerente com as mudanças na
pós-graduação. Já em 1991, encabeçando a reestruturação de um programa de pós-
graduação de minha universidade, incentivamos oficialmente que as teses pudessem ser
apresentadas no formato de artigos científicos. Em 1996, quando uma de minhas alunas
de mestrado defendeu sua dissertação em formato de artigo, incluí um prólogo dizendo
que o texto era curto porque acreditávamos que a aluna deveria aprender o estilo
científico produzindo textos sintéticos e com conclusões de boa qualidade. Nesse
prólogo, acrescentei que a aluna conhecia muito mais do que o texto espelhava e que
caberia à banca examinadora argui-la para constatar seu cabedal de conhecimento. A
aluna foi aprovada com conceito máximo e sua tese publicada em periódico de
reconhecido padrão internacional (veja Giaquinto e Volpato 1997).

X-2 Qual é a lógica de um texto científico?

A lógica do texto científico é muito simples. Vamos por partes.


Inicialmente, considere que temos dois contextos do pensamento. O primeiro é o
contexto da descoberta, em que nossos pensamentos são guiados para descobrir boas
idéias (veja capítulo V). Nesse contexto identificamos um tema e uma pergunta que nos
conduz ao nosso objetivo (esta é a idéia central que desenvolveremos no estudo).
A partir daí, temos o segundo contexto de pensamento - o da justificação. É nele que
validamos nossa conclusão. Se temos uma pesquisa descritiva, nesse contexto
argumentaremos para dizer porque

334

nossa descrição deve ser aceita. Se temos uma hipótese, a argumentação visa mostrar a
adequação ou não do teste dessa hipótese.
Basicamente, temos elementos (informações) que nos levam a estabelecer um
objetivo. A partir dele, criamos uma condição que nos leva a coletar dados (base
empírica que confrontará nossa idéia), a partir dos quais elaboramos conclusões. Ou
seja, pensamos, buscamos evidências e concluímos. Muito simples e perfeitamente
ajustado à proposta empírica de construção do conhecimento (veja Parte 1 e II-l).
O contexto da descoberta é representado na Introdução do estudo. O contexto da
justificação é composto do Material e Métodos, Resultados, Discussão e Conclusão.
Com esses dois contextos em mente, vejamos agora a lógica interna de cada um
deles. Tenho defendido que devemos tratá-los como um argumento lógico.
Um argumento lógico, dedutivo ou indutivo, é composto de duas partes: as premissas
e a conclusão. Ele tem duas exigências172: não pode haver premissas desnecessárias nem
faltar premissas necessárias. Ou seja, ele é justo, exato, sintético. Vejamos o seguinte
exemplo.

Premissa 1: Apenas as plantas têm raiz.


Premissa 2: Este organismo tem raiz.

Portanto,
Conclusão: Este organismo é uma planta.

O que é fantástico nisso é que a partir das premissas as pessoas chegam à mesma
conclusão. Ou seja, basta lê-las para que todas concluam a mesma coisa. Se você
constrói um texto com essa estrutura, seus leitores chegarão às suas conclusões porque
são lógicas! Mas isso deve ser feito de forma sintética. Veja abaixo.

Premissa 1: Todos os homens são mortais.


Premissa 2: Sócrates é homem.
Premissa 3: Sócrates gosta de alface.

Portanto,
Conclusão: Sócrates é homem.

172
No argumento, temos duas questões; a relação lógica válida entre as premissas e a verdade de
conteúdo das premissas. Premissas com conteúdos falsos podem levar a conclusão verdadeira (por ex.,
todos os gatos voam; os pássaros são gatos; portanto, os pássaros voam). No argumento científico, temos
que examinar as duas coisas, a validade das premissas (conteúdo) e a conexão lógica entre elas, para
sustentar a conclusão.

335

A inclusão de uma premissa desnecessária não faz parte do discurso. Note que ao
tratar seu texto como um argumento lógico, tudo o que não participa como uma
premissa deve ser excluído do texto.
Assim, o contexto da descoberta apresenta-se como um argumento lógico. As
informações da Introdução são as premissas que levam ao objetivo de sua pesquisa, que
é a conclusão desse argumento. Assim, considerando tais e tais premissas,
necessariamente temos que propor tal objetivo. Nem mais nem menos. Use isto como
referencial. Quando tiver dúvidas sobre a inclusão de alguma informação na Introdução,
pergunte-se: é uma premissa necessária? Se sim, fica; se não, deve ser excluída.
No contexto da justificação, o argumento básico é o seguinte.

Métodos: considerando-se que os métodos são estes e são válidos;


Resultados: considerando-se que os resultados são estes e são válidos;
Literatura: considerando-se estas informações da literatura;
Conclusões: necessariamente temos que aceitar estas conclusões.

Não há premissa sobrando nem faltando. Como no caso da Introdução, essa estrutura
lhe permite construir um argumento enxuto, sintético, mas completo. Essa é a regra na
ciência internacional.

X-3 Qual é a estrutura básica de um texto científico?

Sem fugir da estrutura lógica acima (X-2), o texto científico apresenta o formato mais
tradicional (veja detalhes em Volpato 2011):

Introdução
Métodos
Resultados
Discussão

336

Essa estrutura básica pode ter variações, mas que não podem contrariar a lógica
básica descrita na questão anterior (X-2). Essas variações visam, geralmente, dar maior
visibilidade do conteúdo do artigo ao leitor. Veja os exemplos abaixo173.

Introdução
Resultados
Discussão
Métodos

Introdução
Delineamento
Resultados
Discussão
Métodos

Introdução
Métodos
Resultados e Discussão

As estruturas acima não ferem a lógica científica. Embora possa parecer estranho que
o item Métodos seja apresentado ao final em duas dessas opções, quando isso é feito a
noção básica do delineamento (veja VII-13) deve ser garantida ao leitor antes dos
Resultados, pois do contrário ele não entenderá o estudo. Essa noção pode ser dada na
Introdução, após o objetivo, ou no início dos Resultados. Note que as principais
mudanças referem-se aos Métodos. Esse item não é lido pela maioria dos leitores de
áreas correlatas, que delegam a adequação metodológica à análise feita pelos pares da
assessoria científica da revista (esses leitores acreditam na qualidade da revista). Apenas
os especialistas lerão com muita atenção o Material e Métodos. Essa percepção é
também evidente nas revistas que disponibilizam um texto resumido (por ex., Science e
Nature) e os materiais mais complexos e extensos (que visam satisfazer os especialistas
da área) ficam disponíveis em links (material suplementar). O texto é apresentado para
dois públicos: os especialistas e os leitores de áreas correlatas174.

173
Há casos em que temos Introdução, Desenvolvimento e Conclusões. É muito comum na filosofia,
para a qual a base empírica não é um requisito. Mas algumas áreas qualitativas usam também essa
estrutura; porém, necessariamente se baseiam em resultados (qualitativos). Nesse caso, o
Desenvolvimento inclui a apresentação dos resultados e a Discussão. O nome desenvolvimento talvez seja
uma herança da filosofia, já que a pesquisa qualitativa tem grande influência da área de humanidades e
esta da filosofia.
174
Note que o conceito de ciência e pesquisa multidisciplinar sustenta essas opções. Qualquer pesquisa
publicada poderá ser necessária a cientistas de outras áreas, de forma que os textos devem ser inteligíveis
também para leitores que não conhecem detalhes de sua área, mesmo sendo cientistas. Esta percepção, já
comum nos periódicos de alto nível, tem profundas implicações para a redação científica.

337

Quanto mais se conhece a estrutura lógica do discurso científico, mais se consegue


inovar na sua redação, sem cometer deslizes lógicos. E a inovação se mostra necessária,
particularmente neste momento da era da comunicação. Àqueles que insistem em repetir
conceitos antigos num novo contexto restará apenas a aposentadoria, na melhor das
hipóteses.

X-4 Como saber se um conjunto de dados é suficiente para constituir um artigo?

Esta é uma pergunta freqüente e que, na dúvida, leva os autores a prolongadas coletas
de dados. O primeiro aspecto importante é saber se o material que temos é suficiente
para constituir um artigo completo (full paper), ou um artigo curto (short ou brief
communication), ou se ainda necessitamos de mais dados. É uma questão crucial! É a
qualidade de nossas conclusões que garante ou não a aceitação do manuscrito, pois os
aspectos formais podem ser facilmente corrigidos. Não há uma regra rígida que defina se
o volume de dados é ou não suficiente para o tipo de publicação que almejamos. Porém,
vou sugerir critérios para norteá-lo nessa questão.
Primeiramente, o autor deve ter clareza de qual é o objetivo da pesquisa (veja VI-7).
Com ele em mente, fica fácil determinar o delineamento da pesquisa (veja VII-13). A
partir dos dados coletados, não deve haver dúvidas se o objetivo foi atingido. Ou seja, se
o objetivo era descrever algo, ele deve ter sido descrito de forma confiável; se era testar
uma hipótese, ela deve ser sido testada convenientemente.
Às vezes, o planejamento não foi elaborado ou conduzido de forma adequada e, ao
final, o cientista tem uma série de dados e não sabe se os divide ou não em vários
artigos. Alguns buscam coletar o máximo de dados possível e depois ver o que consegue
extrair deles175. Mesmo nesses casos, a referência última continua sendo o objetivo da
pesquisa. Os dados de um artigo completo devem ser suficientes para responder
adequadamente, no mínimo, à indagação do objetivo da pesquisa. Se há um discurso
coerente (objetivo, metodologia, resultados e conclusão – veja X-2), e esse corpo é
relevante do ponto de vista científico, então há um artigo completo. O artigo soluciona
ao menos um problema.
Observe o esquema apresentado na questão IX-10 (Fig. 21). Os dados desse trabalho
hipotético são usados para construção de conclusões específicas, das quais se elaboram
conclusões mais gerais. Como pode ser visto (Fig. 21, item IX-10), foi possível chegar a
uma única conclusão mais geral, a conclusão 4, que engloba todos os resultados do
trabalho e dados da literatura. Essa conclusão foi possível graças a um dado da literatura
(literatura 2) e da conclusão 3. Ou seja, a conclusão 3 poderia ter sido o objetivo da
pesquisa, pois ela depende necessariamente de resultados desse estudo. Por exemplo,
sem o resultado 3, a conclusão 3 não ocorreria. O trabalho poderia ter sido concluído ao

175
Esta metodologia é ineficiente e inconseqüente, pois geralmente coletam-se muito mais dados do
que o necessário. No exterior é também chamada de Fishing Expediction.

338

nível da conclusão 3. Mas ele avança e extrai uma conclusão 4. Assim, sugiro que o
artigo deva ter, com ou sem conclusões intermediárias, ao menos uma conclusão que
englobe todos os dados coletados. Com isso, você terá atingido o objetivo da pesquisa,
mas poderá ultrapassá-lo. Caso fosse impossível a elaboração da conclusão 3, teríamos
apenas as conclusões 1 e 2. Assim, ficaria difícil apresentá-las como partes num único
artigo. O que as ligaria? Pareceria uma colcha de retalhos176. É preferível, nesse caso,
deixar cada conclusão num artigo. Porém, é mais elegante que todos os dados de um
artigo, mais as informações da literatura, constituam, em última análise, uma única
conclusão, mais abrangente. Com isso, o trabalho ganha coerência interna e mais
conteúdo científico.
Vale ressaltar aqui as atitudes que visam dividir ao máximo os artigos, de forma a
ampliar o número de publicações. Essa conduta, conhecida como produção em salame
(onde se fatia um todo coerente) é muitas vezes motivada (mas não justificada) por
gerenciamentos científicos que prezam pelo número de publicações, e é adotada por
mentes carreiristas e equivocadas. Ela ignora que as contribuições relevantes não
dependem do número de páginas e tampouco do número de artigos. A história da ciência
mostra isso. As grandes conclusões, num sentido revolucionário de conhecimento (veja
V-9), geralmente não dependem de volumes! É óbvio que não significa pouco trabalho
do cientista, pois geralmente decorrem de anos de reflexão e estudo numa dada área. A
busca por maior número de publicações pode levar os indivíduos a pesquisar questões de
solução simples, com resultados rápidos e seguros, e condicioná-los a publicar em
revistas regionais (veja III-5), garantindo assim uma linha a mais no currículo, mas
geralmente quase nada para a ciência. Veja o caminho que toma a avaliação da atividade
científica (IV-10) e poderá julgar se é mesmo esse o caminho para se melhorar o
currículo.

X-5 Qual a rotina para a redação de um texto científico?

Nesta questão lhes apresentarei um direcionamento geral para redigir um texto


científico. No entanto, alerto que há questões prioritárias, anteriores a esses passos.
Lembre-se que quem tem conceitos fortes em ciência consegue desenvolver uma
pesquisa forte e, por conseguinte, pode construir um texto forte. Do contrário, é
enganação. Além disso, lembre-se de planejar a pesquisa prevendo em que nível de
revista pretende publicá-la, o que lhe dará referenciais para escolher um projeto
adequado (veja VII-1). Agora passamos à rotina.

Passo 1 – Analise todos os dados, discuta, faça gráficos e tabelas, cheque


conhecimentos publicados, examine tudo... e elabore o seu discurso.

176
Ou como melhor me foi sugerido... Frankenstein, com junção estranha das partes, visto que uma
colcha de retalhos ainda poder ser bonita!

339

Passo 2 – Apresente oralmente seu trabalho, várias vezes antes de iniciar a redação
(sugestão, 2 vezes ao dia, 15 min cada vez, durante 5 dias). Para isso, siga
o outline (passo 5), podendo modificá-lo conforme encontre pontos
falhos. Ao se expressar oralmente, perceberá falhas de raciocínio e pontos
que carecem de melhor fundamentação. Além disso, conectará as
informações e você ficará, cada vez mais, impregnado com a idéia exata
do seu próprio estudo.

Passo 3 – Agora escolha a revista para publicação e examine artigos dessa revista
para ter uma noção do ambiente onde pretende entrar (geralmente isso já
é conhecido para os que estão há algum tempo na área).

Passo 4 – Junte toda informação que considera necessária para a redação. Pode
juntar todas elas numa única pasta de arquivos em seu computador.
Prepare-se para escrever o texto em regime de imersão (uma manhã e
uma tarde de um mesmo dia são suficientes para um artigo177).

Passo 5 – Tenha em mente o outline do artigo a escrever. Uma sugestão é que cada
tópico do outline corresponda a um parágrafo do item a ser redigido
(Introdução, M&M, Resultados e Discussão). Ele equivale à planta de
uma casa... é melhor corrigir a planta do que reformar a casa.

Passo 6 – Redija as partes do texto (não espere a musa inspiradora, pois ela não está
sendo avaliada e pode se atrasar – sente-se e escreva!). Escreva com suas
próprias palavras, transcrevendo sua apresentação oral que, nesta fase, já
deve estar bem clara. Para isso, siga rigidamente a seqüência lógica
mostrada na questão X-6.

Passo 7 – Com o texto escrito, agora retorne à literatura pertinente que você já leu
em algum momento enquanto conduzia seu estudo. Não precisa reler
tudo, apenas passe por ela buscando informações que preencham as
lacunas que persistem em seu texto. Ache as informações que melhor
fundamentam o que você escreveu. É esse vai e vem que fortalece e
sustenta a fundamentação de seu texto. Isso ocorre porque agora você tem
a estrutura de seu discurso e, quando lê qualquer literatura, as
informações fazem sentido em relação ao seu texto e têm endereço certo.

177
Se precisar de mais, não desanime... é normal. O objetivo último é chegar no limite de 1 dia,
geralmente necessitando de mais alguns dias para revisões. Para a tese, o referencial é: deixe uma semana
para apresentação oral (passo 2), uma semana para redação e três semanas para revisões... pronto, acabou.

340

Passo 8 – Cheque agora todo o conteúdo do texto. Por conteúdo me refiro a


questões de sua especialidade e da lógica argumentativa. Veja se usou a
literatura adequadamente, ou seja, se cada autor, de fato, mostrou o que
você apresenta. Veja se os dados que você diz ter observado, de fato,
foram observados. Enfim, coisas do conteúdo específico do trabalho...
nada de forma.

Passo 9 – Cheque agora os aspectos de estilo (veja X-27). Analise cada parágrafo e
veja a forma mais elegante e sintética de apresentá-lo.

Passo 10 – Descanse do texto. Quanto mais você olha para ele, menos problemas
consegue ver. Quanto tempo? Alguns dias, se possível. Digamos uma
semana. Depois disso poderá retornar ao texto como se ele não fosse
seu... e aí conseguirá ver coisas que antes não conseguia perceber. Se não
tiver esse tempo, deixe o tempo que puder, mesmo que seja apenas meia
hora. O importante é não ficar pensando no texto enquanto se afasta dele.

Passo 11 – Retorne ao texto e corrija tudo o que puder, conteúdo e estilo.

Passo 12 – Somente agora, que já esgotou suas possibilidades, peça críticas aos
colegas. Dois cuidados a tomar: escolha colegas inteligentes e combine
prazo para eles avaliarem seu texto (o que é combinado não é caro e pode
ser cobrado).

Passo 13 – Avalie as críticas de seus colegas e faça os ajustes que julgar pertinentes.
Lembre-se de que você é o autor do texto e, portanto, detém a decisão
final.

Passo 14 – Coloque nas normas da revista. Sim, isso mesmo... é agora que você
olhará para as normas. Vou lhe provar isso no passo 15. Note que neste
passo você tem um texto que considera publicável e o ajustará para
qualquer revista que precisar. Tendo um bom conteúdo, o resto são
detalhes.

Passo 15 – Submeta imediatamente. Não perca tempo. Fez estes 14 passos anteriores
para lhe dar convicção de que o texto está bom e pode ser submetido...
portanto, submeta! Note que ao submetê-lo, está retornando ao passo 12.
Quem o criticará agora serão os revisores e editores da revista. Quando
eles apresentarem essas críticas, volte para o passo 13 e reavalie tudo. Se
julgar que não será possível publicar nessa revista, muito possivelmente
poderá submeter a outra revista, o que exigirá que volte para o passo 14.
Essa rotina se repetirá até que aconteça uma de duas coisas: ou publica,
ou desiste.

341

342

X-6 Por onde inicio e em que seqüência redigir um artigo científico?

Há um artigo muito interessante que responde adequadamente a esta pergunta. Trata-


se do artigo de Magnusson (1996), que sintetizou (menos que meia pagina!) uma
seqüência de redação. Apresento abaixo a fundamentação do texto e acrescento minha
contribuição: sugiro começar a redigir apenas após apresentação oral do estudo, ou seja,
que você tenha condições de redigir o Resumo do artigo antes de iniciá-lo (veja X-5)!

1 ° Esteja apto a redigir o Resumo

Reveja o passo 3 da questão X-5. Você até pode redigir o Resumo no final, mas já
nesta fase deve ter o artigo na “cabeça”.

2° Redija as conclusões

Mesmo que não seja um tópico de seu artigo, escreva as conclusões num papel e
deixe-o próximo de você para consultá-las quando alguma dúvida lhe ocorrer. Cada
conclusão deve ser expressa numa única frase, sem se preocupar com a estrutura do
argumento da justificação nesse momento. Por exemplo: “Considerando-se as
diferenças significativas entre os grupos, os animais na coloração mais clara
apresentam maior taxa de ingestão de alimento” deve ser substituído por “A
coloração mais clara aumenta a taxa de ingestão de alimentos”.

3º Selecione os resultados

Selecione o conjunto dos resultados necessários para as conclusões que redigiu no


item anterior. Não importa que na pesquisa você tenha obtido mais resultados; se não
foram usados para embasar suas conclusões, exclua-os. Veja o esquema apresentado
em LX-10, Figura 21, para melhor entender a relação dos resultados com as
conclusões. Lembre-se que na ciência empírica as conclusões devem ser embasadas
em fatos, parte significativa dos quais serão seus resultados.

4º Escolha a forma de apresentação dos resultados

A escolha da forma de apresentação deve privilegiar os aspectos fundamentais dos


resultados que embasam as conclusões. Por isso é impossível escrever o item
resultados antes de estabelecer o discurso a ser desenvolvido. Note que, de acordo
com seu discurso, alguns resultados merecem mais ênfase que outros.

343

Inicialmente, considere que há 4 formas para apresentação dos resultados, das quais 3
são mais comuns. São elas: figuras, tabelas, texto e vídeos/sons. Escolha apenas uma
dessas formas para cada resultado, sendo que figuras, tabelas e vídeos/sons devem ser
também citados no texto. A escolha de como apresentar cada resultado não é aleatória,
não depende da área e nem do tipo de variável... depende do discurso que você
estruturou. Apresento a seguir, 4 critérios para ajudá-lo a decidir sobre a forma de
apresentação dos seus resultados. Evito fazer uma chave dicotômica para não lhe privar
da criatividade, que pode tornar seu texto uma obra prima. Avalie cada critério e use-os
como preferir em cada caso. Não há regras, mas lógica e arte.

Critério 1 – Use a lógica do discurso (veja VII-10). Se os dados são numéricos e sua
pesquisa é descritiva, a melhor forma é apresentá-los como tabela, pois
neste caso os valores “reais” são relevantes. Ao se descrever
numericamente algo, os valores são importantes. Se for pesquisa
descritiva, mas com expressão de dados em fotos, então serão expressos
em figura que contenha as fotos. Se for pesquisa qualitativa, os trechos
essenciais poderão ser transcritos no próprio texto, ou evidenciados numa
tabela178. Por outro lado, se você testar hipótese, estará avaliando
associação. Ela pode ser avaliada tanto por testes de correlação quanto
por comparação de médias/medianas entre tratamentos. Nos dois casos
avaliamos associação: a relação entre valores de X e Y, num gráfico
cartesiano, por exemplo, e a associação de certas intensidades de resposta
com certos tratamentos. Para se perceber relações, a melhor forma é por
meio de figuras. Os números exatos não interessam, mas a relação entre
eles. Ao se repetir os estudos, valores diferentes podem ocorrer, mas
espera--se que as mesmas relações sejam mantidas. Se certo tratamento
resultou em resposta mais alta, mesmo com outros valores esse tratamento
deve ser, ainda, o de resposta mais alta.

Critério 2 – Veja a ênfase do discurso. Embora você já tenha restringido a inclusão


apenas dos dados relevantes para o seu discurso, note que alguns desses
resultados podem ser mais importantes que outros. Essa importância deve
ficar registrada também pela forma de apresentação. Figura enaltece mais
que Tabela e esta mais que texto. Use isso para diferenciar os resultados
pela sua importância na argumentação. A Discussão deve refletir essas
escolhas.

Critério 3 – Atente para o foco. Pense na conclusão que se baseia no resultado e


escolha a forma mais clara de apresentá-lo. Mesmo que já tenha decidido
por um formato (por exemplo, figura), qual evidencia mais a conclusão
que esses
178
Não costumo separar tabela de quadro, porque na ciência internacional consta geralmente tables.
Lembre-se que uma tabela pode incluir textos e as laterais podem, ou não, ser fechadas com traço.

344

dados sustentam? Quais os aspectos relevantes desse resultado que serão


usados em sua argumentação? Note que um conjunto de dados permite
construir diferentes gráficos (o gráfico constitui um tipo de figura). Se
você enfatiza, em seu discurso, o papel do sexo das pessoas na resposta
examinada, faça um gráfico que enfatize isso. Se, por outro lado, a ênfase
maior recair na idade, então esta deverá ser priorizada, deixando-se o sexo
das pessoas num segundo plano.

Critério 4 – Veja a clareza da apresentação. Embora os critérios acima possam lhe


conduzir para uma escolha, a estrutura de seu estudo pode não permitir
uma apresentação clara dos resultados. Por exemplo, embora uma figura
(gráfico) possa ser preferível, se ela ficar visualmente poluída, é melhor
usar uma tabela. Isso pode acontecer quando você tem uma série de
variáveis investigadas e o conjunto delas num gráfico mais confunde do
que esclarece... nesse caso, opte por uma tabela.

Com o advento de versões online das revistas, o uso de cores não tem custo
diferencial e muitos começam a abusar dessa possibilidade. Lembre-se que figuras
coloridas são bonitas, mas podem representar problemas. Primeiro, em revistas
impressas significam um custo alto, geralmente para os autores. Segundo, lembre-se que
há leitores daltônicos; se usá-las, acompanhe-as de outros indicativos. Em alguns casos,
é inevitável recorrer a cores, como no caso de fotos de lâminas de histologia ou algum
preparado laboratorial, ou mesmo quando se investigam cores de estruturas.

5º Redija o item Material e Métodos

Limite-se a descrever os procedimentos necessários para se conseguir os resultados


apresentados. Não importa se você fez mais que isso. Há apenas uma ressalva:
quando o procedimento adotado interfere no objeto de estudo, mesmo que tenha
produzido resultados não utilizáveis, então esse procedimento deve ser descrito, pois
ocultá-lo pode excluir do trabalho uma fonte de interferência importante. Lembre-se
que a temática é não aborrecer o leitor com dados desnecessários, nem enganá-lo,
omitindo informação importante.

6º Escreva a Discussão

Agora é o momento de escrever a Discussão de seu estudo. Para redigi-la, usará suas
evidências, que são seus resultados, sua metodologia e informações da literatura.
Apenas nesta fase suas conclusões estão claramente enunciadas e fundamentadas.
Lembrando que os dados da literatura estão disponíveis a todo momento, é evidente
que poderia também redigir a Introdução do trabalho. Mas há uma razão lógica para
que escreva agora a

345

Discussão e não a Introdução. Você se lembra de que o texto científico é composto de


dois argumentos, um no contexto da descoberta e o outro no contexto da justificação
(veja X-2). Agora você está descrevendo o contexto da justificação (Resultados,
Métodos e Discussão). Como ele é um argumento, com premissas e conclusão, não o
interrompa para desenvolver outro argumento (Introdução). Embora a Introdução,
sendo um argumento lógico em si, possa ser redigida a qualquer momento, ela tem a
função de apresentar aos leitores o que foi feito no contexto da justificação. Portanto,
é melhor que este já esteja redigido para você melhor apresentá-lo.

7º Escreva a Introdução

Inclua apenas o necessário para o leitor entender o problema que originou a pesquisa
e a fundamentação que justifica seu objetivo. Não inclua históricos e verborreias de
sua “Revisão da Literatura”. Se gostou muito de um texto de revisão, guarde com
você e leia-o todo dia ao acordar. Pode até recitá-lo aos colegas, mas desapegue-se
dele na redação de seu artigo.

8º Escreva o Resumo

Caso não o tenha escrito no início da construção do texto, o que é compreensível,


redija-o agora e com elegância. Mostre a novidade de seu estudo, procurando
convidar o leitor para ler seu texto. Pense como leitor: o resumo determina, em
grande parte, se leremos o artigo ou se o deixaremos para lá.

9º Escreva o Título

Agora que já tem o texto pronto, inclusive seu resumo, pode dar nome a ele. Dirija-se
principalmente para a conclusão do estudo, pois se espera que ela seja a grande
novidade. Assim, enalteça essa novidade, pois será ela que atrairá a atenção dos
leitores para seu texto. Novamente, pense como leitor: num levantamento
bibliográfico, selecionamos artigos de interesse a partir da leitura do título.

10° Escreva os demais itens

Agora complete com palavras-chave, running-head, endereços, autores,


agradecimentos etc.

346

X-7 Quantas páginas deve ter cada parte do texto científico?

Em plena segunda década do século XXI ainda há pessoas que defendam que há uma
relação métrica entre as partes do texto! A métrica é conseqüência da lógica do texto.
Portanto, ao desenvolver a lógica, esqueça a métrica.
Eu costumo dizer que cada parte do texto tem uma medida extremamente exata: nem
mais nem menos que o necessário e suficiente para sustentar as razões dessa parte.
Atenção:

ser prolixo é fácil, o difícil é ser sintético! Linguagem científica não é sinônimo de
linguagem rebuscada, mas confusão mental deve ser sinônimo de texto rebuscado!

É comum os indivíduos avaliarem a qualidade dos trabalhos pelo volume. Quantos já


não ouviram é uma dissertação enorme, nível de doutorado. Vale ressaltar que há vários
trabalhos que mudaram os rumos da área de pesquisa e que foram publicados em uma ou
duas páginas de revistas de excelente nível científico. Do ponto de vista lógico também
fica difícil associar tamanho e qualidade. Uma idéia interessante pode perfeitamente ser
testada de forma simples. Foi assim, por exemplo, com a determinação da estrutura de
dupla hélice do DNA. A possibilidade de confusão associando volume com qualidade é
antiga e permeia várias áreas e instâncias. Ela é presente em análises que consideram o
número de itens no currículo, a duração das aulas, as horas de trabalho, ou mesmo a
quantidade de páginas de um texto. Esse pressuposto não tem qualquer base na filosofia
da ciência. Mas muitos examinadores aqui no Brasil ainda associam quantidade com
qualidade. Isso impõe um prejuízo à nossa sociedade científica, mas esperaremos até que
essas mentes se aposentem e abandonem os locais de influência. O pior são as mentes
jovens que se aventuram nessa direção. Acho que vale a pena ler novamente o item IV-
10 sobre avaliação da publicação científica.
Como argumentar quando dizem que nossa tese ou dissertação está pouco extensa
(em termos de número de páginas)? A melhor forma é indagarmos se faltam elementos
essenciais, como: fundamentação e descrição do objetivo, detalhes imprescindíveis do
material e métodos, resultados e argumentações necessárias para o suporte das
conclusões etc. Se isso não falta... então o tamanho está adequado! Tudo o mais seria
desperdício. Se sentirem vontade de ler mais, então ofereça algum arquivo de podcast
para o membro da banca, no qual você conte várias histórias sobre seu trabalho de pós-
graduação!

X-8 Qual o tempo verbal e a pessoa de locução no texto científico?

Os tempos verbais são logicamente deduzidos do contexto em cada caso. Tente


entender isso a partir dos tópicos do artigo.

347

Introdução e Discussão

Como este texto é uma argumentação, ou para validar o objetivo (Introdução) ou as


conclusões (Discussão), o tempo verbal varia em função do interesse na frase. Vale
assinalar que ao se referir a uma informação da literatura, pode considerá-la no presente,
uma vez que seja um achado do passado mas que ainda é válido. Assim, podemos ter:
“Considerando que X aumenta Y (Barbosa 2010) e que Y reduziu W (Fig. 1), é possível
que X seja um redutor de W”. Veja que na primeira informação, usei o presente porque
tratou-se de uma informação já publicada, mas cujo conhecimento é considerado válido
até o presente. No seguimento, usei “reduziu” porque me referi ao resultado de meu
estudo (onde cito a figura que mostra esse resultado). Na segunda parte da frase uso uma
condicional porque essa informação não foi testada e decorre das informações
apresentadas anteriormente.

Material e Métodos

Como descreve o que foi feito, é redigido no passado. Só use presente se estiver se
referindo a alguma técnica, ou conhecimento, presente na literatura. Se estiver se
referindo a algum evento passado, use tempo verbal no passado. No caso de redação de
projeto, obviamente cabe o tempo futuro, pois ainda será feito.

Resultados

Foram obtidos no passado e devem ser referidos no passado.

Conclusões

Há duas abordagens possíveis. Se você usou uma amostra para concluir a respeito de
uma população, então use o presente. Você encontrou uma resposta no passado e, por
causa disso, concluiu que o fenômeno permaneça no presente. Se você pretende falar
sobre algum evento passado, sem generalizar sobre ele no passado, presente e futuro,
então conclua no passado. Por exemplo, se fez um estudo retrospectivo para concluir
sobre a possível causa de uma epidemia, então conclua que as possíveis causas dessa
epidemia foram... Você não quer generalizar para epidemias dessa natureza, mas falar de
um evento passado.

348

Pessoa de locução no texto

Use a primeira pessoa (plural se com mais de um autor; singular se apenas um autor)
do que o impessoal. Note que os resultados não determinam as conclusões, mas nós
interpretamos os resultados. Essa interpretação é pessoal. Se a comunidade científica
aceitá-la, se torna conhecimento científico (vide II-7).
Ao usar o impessoal, principalmente na conclusão, estará sendo prepotente por dizer
que a partir dos resultados conclui-se x e y. Ora, se os dados são insuficientes para
determinar as conclusões, ao dizer que isso independe do sujeito (forma impessoal),
estará afirmando que qualquer um que olhar esses resultados concluirá o mesmo que
você. Isso é prepotência e incoerência epistemológica e lógica!
Em alguns casos, poderá usar algum elemento do estudo como sujeito da oração. Por
exemplo, no Material e Métodos, poderá dizer que “Os animais foram distribuídos
aleatoriamente entre os 3 tratamentos”. É impessoal, mas é diferente de dizer que
“Distribuiu-se os animais aleatoriamente entre os três tratamentos”, que reforça mais a
impessoalidade. Ao dizer “Os animais foram distribuídos...”, não importa muito quem
os distribuiu, mas foram possivelmente os executores do trabalho. Ao dizer “Distribuiu-
se...” fica implícito que os agentes (autores) desapareceram. Por outro lado, nesse local
não precisa dizer que “Nós distribuímos os animais...”.

X-9 Onde aparecem as conclusões?

As conclusões aparecem na Discussão. Não é comum a enumeração das conclusões


num tópico à parte. Porém, há revistas que exigem um item chamado Conclusão ou
Conclusões. Além disso, em teses e dissertações é comum a inclusão desse tópico,
embora desnecessário.
Mesmo que haja algum lugar específico no texto para as conclusões, elas
necessariamente apareceram na Discussão. A Discussão é o local onde você valida seu
estudo. É a essência do contexto da justificação (veja X-2). Não dá para discutir sem
apresentar as conclusões. Dizer que na Discussão você irá discutir seus dados não tem o
menor sentido. Você não discute seus dados. Você usa seus dados, sua estrutura de
pesquisa (Métodos) e as informações da literatura para apresentar um argumento
conclusivo, que culmina nas conclusões.
Se na revista for solicitado o item “conclusões”, esteja certo que elas já apareceram
na Discussão e você deve apenas repeti-las no tópico Conclusões (com outras palavras,
por questão de elegância, mas sem justificar ou discutir).

349

X-10 Como escrever o texto do item Resultados?

Obedecendo à seqüência de redação apresentada em X-6, você elaborou figuras e


tabelas e agora escreverá o texto de Resultados. Aqueles que não foram expressos como
figuras ou tabelas devem ser descritos nesse texto. Mas não é apenas isso. Nesse texto
você também fará alusão ao conteúdo dessas figuras e tabelas. Observe que o leitor, ao
ler o texto dos Resultados, encontra também suas figuras e tabelas.
Ao se referir a figuras e tabelas no texto dos Resultados, ressalte os elementos que
usará na sua Discussão para sustentar as conclusões. Ao fazer isso, alguns cuidados são
necessários.
Evite escrever uma frase, ou parte dela, apenas para dizer quais são as variáveis que
estão na figura ou na tabela – isso já está nelas. O conceito é outro. Você deve mostrar
ao leitor qual foi seu raciocínio. Assim, ao remeter o leitor a uma figura ou tabela, diga a
ele o que você viu de mais importante nesses resultados. Então, não diga:

Os valores dos parâmetros de sangue em função da idade dos pacientes estão expressos
na Figura 1.

Expressando dessa forma, você não informou muita coisa. Veja como os dados da
Figura 1 o auxiliam em sua Discussão e expresse exatamente isso. Caso você queira
concluir que a idade não afetou os valores hematológicos, então seria melhor expressar:

A idade não afetou os parâmetros hematológicos (Fig. 1).

Note que essa frase diz que os parâmetros hematológicos em função da idade estão na
Figura 1 e, com base nela, você constatou a ausência de efeito da idade nesse parâmetro.
A informação é mais completa e sintética179.
Outro tipo de erro é quando o autor repete no texto valores expressos numa tabela ou
figura. Outra variante desse erro é mostrar os mesmos dados em figura e tabela. Cada
resultado deve ser apresentado uma única vez no item Resultados. Portanto, escolha a
melhor forma e, no texto, apenas enfatize aquilo que usará em seu discurso na
Discussão. Veja os critérios para decisão sobre a forma de apresentação dos resultados
em X-6 (item 4). O leitor deve saber sua ênfase a partir dos resultados, podendo aceitá-la
ou não.

179
Quando destacamos várias informações de uma figura mais complexa em um parágrafo mais longo,
pela falta de pontualidade da informação, podemos iniciar o parágrafo apenas indicando a figura (Os
dados de xy estão na Fig. 1) e, no contexto, deixamos claro que tudo o que foi dito nesse parágrafo está
nessa figura.

350

O que pode ser feito é enfatizar alguns valores de uma tabela no texto. Com isso você
auxilia o leitor a decidir o que, do conteúdo de uma tabela, é mais importante. Nesse
caso, você pode até recorrer a aproximações. Por exemplo, se na tabela aparecem
valores percentuais de 59,7 e 15,8, você pode se referir a eles no texto como “cerca de
60% e 16%” (ou ainda 60% e 15%, para arredondar na escala de 5). A ênfase dependerá
do que se quer mostrar. Mas o importante é notar que você faça algo que seja razoável e
aceito por qualquer leitor.

X-11 Como estruturar o Material e Métodos?

Nesta parte, o procedimento usado na coleta de dados deve ser descrito para permitir
que o estudo seja replicável. Essa é uma condição essencial na ciência e da qual deriva a
importância deste tópico. Resultados e, consequentemente, conclusões que só foram
obtidos por determinados pesquisadores não são reconhecidos cientificamente. Apesar
disso, a possibilidade de se repetir uma pesquisa, a partir das descrições contidas num
artigo, está freqüentemente aquém do desejado. Isso decorre de omissões, geralmente
acidentais. A descrição inadequada também dificulta que o trabalho seja submetido a
uma análise crítica.
Embora não haja regras rígidas de composição, uma sugestão didática de seqüência
adequada procura conduzir o leitor da informação mais geral até a mais específica. Do
contrário, ele teria dificuldade de entender cada informação.

1 - Sujeito ou Objeto do Estudo

Caracterize-o com o grau de detalhamento que sua área exige. Se é um


organismo vivo, não se esqueça de dizer a procedência nos casos pertinentes, as
condições de manutenção e suas características particulares (tamanho, peso, idade,
sexo etc). Se um elemento físico do ambiente (por ex., uma rocha ou tipo de
sedimento), caracterize-o e inclua o local de coleta, se pertinente.
Tudo o que for relativo a laboratório, não precisa indicar o local180. Por outro
lado, se é algo no campo, então inclua a localização exata (muitas vezes sendo
necessária a inclusão das coordenadas geográficas).
Se você considerou alguns critérios de inclusão, ou de exclusão, para os sujeitos
de seu estudo, indique aqui. Essas informações permitem ao leitor saber exatamente

180
Não coloque o nome do laboratório. Isso é desnecessário, deselegante e atesta contra sua
capacidade intelectual na ciência. Se precisar agradecer a quem lhe emprestou o laboratório, faça isso no
item Agradecimentos. O nome do laboratório em nada contribui para sustentar suas conclusões. Portanto,
é uma premissa desnecessária (veja X-2).

351

quem você estudou. Se a pesquisa for com seres humanos, inclua aqui as indicações
de que esses indivíduos foram esclarecidos sobre a pesquisa e consentiram participar
dela voluntariamente.

2 - Delineamento da Pesquisa

Apresente o delineamento da pesquisa. Veja em VII-13 o que é um delineamento


e expresse-o de forma sintética. Não inclua detalhes da metodologia. Veja as
informações necessárias para cada tipo lógico de pesquisa (veja Tabela 8 em VII-12).
Se possível, faça um esquema para que o leitor o compreenda rapidamente. Sem essa
informação não é possível entender o estudo.

Delineamento de Pesquisa Descritiva - Você seleciona uma amostra e a


descreve. Portanto, deve informar como selecionou essa amostra, seu tamanho e que
variáveis irá descrever (como fará a descrição é parte do próximo tópico -
Procedimentos específicos).

Delineamento de Pesquisa de Associação - Geralmente usa uma única amostra,


na qual você obtém os dados de duas ou mais variáveis (aquelas que você testa a
associação). Assim, a forma básica é como no caso da Pesquisa Descritiva. Se
necessário, diga que elemento permitiu você agrupar os dados, formando pares, trios,
quádruplas etc. para a análise das associações. Por exemplo, se está testando se há
associação entre circunferência abdominal (cintura) e os níveis plasmáticos de
colesterol, o ponto que permitirá fazer os pares será o mesmo indivíduo. Ou seja,
cada valor de cintura será agrupado com o valor de colesterol do mesmo indivíduo
(não dá para medir cintura de um e colesterol de outro). Mas você pode trabalhar com
grupos sociais e aí o ponto de conexão poderá, por exemplo, ser o grupo a que
pertencem. Você pode querer saber se o comportamento do aluno em classe está
associado com a profissão dos pais. Assim, deve parear o comportamento de cada
aluno com a profissão de seu próprio pai. O elemento de ligação foi o parentesco e
não o indivíduo.

Delineamento de Pesquisa de Associação com Interferência - Neste caso, você


tem variáveis independentes e variáveis dependentes (veja VI-3). A estratégia básica
é que você tenha variações da variável independente e obtenha delas as respectivas
medidas das variáveis dependentes. Se houver correspondência (associação), o passo
seguinte é verificar se há dependência da resposta (variável dependente) em relação
ao fator interferente (variável independente). Note que a variável independente pode
ter sido manipulada pelo cientista (por ex., administração de alguma droga ou
oferecimento de algum tipo de literatura para ser lido) ou variar espontaneamente na
natureza (por ex., macho e fêmea, peso dos

352

indivíduos, nível de precipitação etc.). A resposta a essas condições da variável


independente é apenas registrada (qualitativamente ou quantitativamente) e constitui
a variável dependente181. O delineamento básico envolve informar quais são essas
variáveis, como serão distribuídas no tempo (por ex., você pode administrar uma
droga uma única vez, ou diariamente, ou semanalmente) e como será a dinâmica de
coleta de dados da variável dependente (uma única vez, a cada 10 dias etc). Informe
também o que considera uma réplica (unidade de réplica – veja VII-18) e o número
delas para cada tratamento.

3 - Procedimentos Específicos

Descreva agora os procedimentos específicos (por ex., tamanho do local onde


estão os animais, técnicas de coleta de dados, equipamentos etc), pois agora o leitor já
terá informações suficientes para entender em que contexto estão esses detalhes. Seja
informativo, mas não inclua excessos. Atente que o leitor deverá entender a ponto de
poder repetir seu estudo.

4 - Análise dos Dados

Inclua como analisou os dados. Se transformou os dados para analisá-los, mostre


o que fez. Se testou normalidade e homocedasticidade, diga e apresente os resultados
desses testes. Indique também o(s) teste(s) que usou para analisar os dados para a
conclusão do trabalho; não é necessário dizer o programa estatístico usado, mas o
nome do teste empregado. Inclua o referencial estatístico que usou (por ex., valor de
P crítico – veja IX-5).
Note que muito destas informações podem aparecer apenas no item Resultados,
sendo este item dispensável. Porém, ainda é comum que seja mantido nas versões
mais ortodoxas (e freqüentes).
Erro comum é o autor incluir aqui a forma estatística do delineamento (por ex.,
experimento exponencial 2 x 3 ou experimento inteiramente casualizado etc). Ora,
isso é delineamento e deve constar junto ao delineamento, no segundo bloco destes
itens.

181
Note que nem tudo o que você registra é resultado. Se você medir valores de sua variável
independente (por ex., temperatura média mensal), ela não se transforma em resultado. Se você medir
valores para caracterizar seu sujeito de estudo (por ex., idade, sexo, altura, peso, nacionalidade etc), esses
dados não são resultados, mas caracterização do Sujeito e devem logicamente aparecer no Material e
Métodos.

353

X-12 Qual a função do item Discussão?

Na Discussão você irá mostrar aos leitores o como das evidências que apresentou
(Métodos, Resultados e literatura) chegou às conclusões do trabalho. Assim, como o
nome diz, é um ambiente de discussão. Você discute com um leitor hipotético.
Apresenta a estrutura lógica de seu discurso para validar as conclusões que você aceitou
antes de iniciar a redação do artigo (veja X-5).
Não se prenda a regrinhas ou rotinas, mesmo que induzidas por revistas de alto nível.
Quando essas rotinas são apresentadas, elas não indicam regras rígidas. Elas citam itens
que podem ser incluídos, mas é a lógica do seu texto que lhe dará referenciais para saber
o que deve e o que não deve incluir, bem como em qual seqüência apresentar.
Se você sabe conversar, saberá apresentar a Discussão. Se você seguiu a
recomendação de apresentar oralmente o outline e a essência da Discussão (veja X-5),
então não terá muita dificuldade para redigir a Discussão. Mas, se ficar ouvindo
conversa fiada daqueles que dizem que você tem que comparar todos os seus dados com
a literatura, então só um milagre o colocará no caminho da ciência internacional.

X-13 Como devo estruturar a Discussão?

Na Discussão, o autor necessita validar seus dados e suas conclusões, fazendo com
que o leitor aceite suas conclusões. Note que não é uma Discussão Fofoca182. A
estruturação do conhecimento, do nível mais restrito às conclusões mais gerais, serve de
base para a orientação da discussão.
Na estrutura macro da Discussão, uma forma interessante é iniciar com a(s)
conclusão(ões) principal(is) do estudo, sem justificá-la(s), mas incisivamente mostrando
que foi a isso que se chegou no estudo. Depois disso, o texto segue com as justificativas
indicadas abaixo para, finalmente, terminar com um parágrafo conclusivo.
Cito abaixo o início de uma Discussão (Cohen et al. 2010). Você se sentiria motivado
em ler esse estudo?

The study has several limitations. The number of participants was too few for
generalisations to the wider population, and the sample may not be representative of
the residents of all long-term core facilities. Larger samples are needed to conduct
more sophisticated analysis.

182
Desde a década de 90 tenho chamado de Discussão Fofoca aquela que se limita a comparar dados
com a literatura. Por exemplo, você encontrou um valor de 7,8 e começa a compará-lo com fulano, que
obteve 7,2, beltrano, que reporta 8,3, e sicrano, com valor de 7,5. Ora, isso é fofoca. O que se quer a partir
daí? Uma comparação desse tipo só é razoável para validar seus dados e deve ser usada como ponto de
partida e não como fim em si mesma.

354

Veja uma Discussão que inicia com o que foi feito, mas não com onde se chegou
(Held et al. 2012).

In the present analysis, we evaluated the association between categories of


occupation – and leisure – time-related PA as well as the duration of activity with CV
risk factors and to the risk of developing an MI. In addition, household ownership of
markers of sedentary lifestyle, such as car and a TV and their relation to the risk of
MI, was evaluated.

Veja agora duas Discussões que iniciam com parágrafo que inclui as principais
conclusões.

Exemplo 1
Instruction has an effect on achievement outcomes (5), but the quality of the
instruction observed in classrooms is highly variable (20). The present results showed
that teacher quality is an environmental moderator of the unique genetic variance
associated with reading achievement, demonstrating the direct influence of teacher
quality on reading outcomes in children.
[Taylor et al. 2010]

Exemplo 2
This analysis shows that the prominence of the journal where an article is published,
measured by its impact factor, is positively correlated to the number of citations that the
article will gather over time. Because identical articles published in different journals
were compared, the characteristics of the articles themselves (be it quality of writing,
scientific originality, or repute of the authors) could not have explained the observed
differences. Hence, these results reflect pure journal-related bias in citation counts.
[Perneger 2010]

Qual dos três perfis de Discussão você se sentiria mais motivado a ler, obviamente
sem incluir o seu interesse pelo assunto?
Outro aspecto importante na Discussão é a validação dos seus resultados. Para isso,
pode ser necessário validar primeiramente sua metodologia ou técnica usada. Uma
forma comum é mostrar que você usou técnicas que vem sendo usadas por outros
autores (publicadas em revistas de boa qualidade internacional). Se a técnica já é
consagrada, então pule esta etapa. Se quiser validar seu delineamento, argumente com o
leitor mostrando porque os tratamentos controle foram necessários, por exemplo. Para
completar a fundamentação dos resultados obtidos, mostre que os valores

355

(geralmente as médias) que obteve nos tratamentos controle, ou em tratamentos com


respostas tipicamente esperadas (por ex., elevar níveis de cortisol no estresse, ou buscar
por alimento nas condições em jejum etc), correspondem aos esperados de acordo com a
literatura atual.
Nos dois casos apresentados no parágrafo acima, o autor compara suas informações
com as da literatura. Mas isso não é Discussão Fofoca, pois o autor estará fazendo a
comparação e mostrando ao leitor que, então, deve aceitar os procedimentos e os
resultados apresentados. Isso é muito diferente dos meros resumos de metodologia e
resultados que muitos autores costumam colocar na Discussão para finalmente dizer ao
leitor que seus dados são iguais ou diferentes desses.
Uma dica183 interessante é perguntar-se ao final de cada frase: e daí? Por exemplo:
“Silva (2006) mostrou que a produção de laranjas é maior quando as flores são
polinizadas por Apis mellifera [e daí?]. Se essa pergunta não for respondida na(s)
frase(s) seguinte(s), então o fluxo lógico de seu texto está prejudicado.
Quando necessário, poderá discutir alguma limitação de seu estudo. Mas lembre-se
que isso não significa inviabilizar seu estudo. Se há limitação, expresse-a e enfrente-a.
Lembre-se que deve restar algo de útil do seu estudo.

X-14 Até que ponto posso fazer sugestões e recomendações?

Uma vez que tenha elaborado as conclusões, é possível que, em alguns casos, você
possa se aventurar a fazer algumas sugestões ou recomendações. Isso é mais freqüente
em áreas mais aplicadas. Não se furte de fazer tais recomendações, mas esteja certo que
elas decorram necessariamente de conclusões sólidas. Veja, por exemplo, num estudo
que desenvolvi (Volpato et al. 2009) numa represa hidrelétrica: investigamos o
comportamento de peixes numa “escada”184 colocada para esses animais subirem até a
parte de cima do rio (ultrapassando a represa) para continuar sua migração para a
reprodução, mais próximo à cabeceira do rio. Vimos que a arquitetura dessa “escada”
seleciona previamente os indivíduos que tentam ultrapassá-la. Assim, tendo concluído
que há essa seleção artificial e que isso decorre da altura dos degraus da escada, então
recomendamos que essas escadas tenham degraus mais baixos, o que permitiria a
passagem de mais peixes. Como o objetivo dessas escadas é solucionar o impedimento
que as barreiras das hidroelétricas impõem aos peixes migra-dores, a existência de
seleção artificial é um paradoxo. Mesmo sem testarmos se essa seleção afeta o perfil da
população reprodutora na região acima da barreira, a sugestão é razoável e pôde ser
incluída.

183
Dica fornecida nos cursos da Scripta Editora (www.oficinascripta.com.br).
184
Trata-se de um conjunto de “piscinas”, agrupadas como degraus de uma escada, onde os peixes são
atraídos a nadarem em sentido contrário à correnteza (um comportamento inato na época reprodutiva de
migração), o que os leva a saltarem, podendo atingir o degrau de cima.

356

X-15 Devo incluir propostas para estudos futuros?

Cuidado com os estudos futuros. É comum as pessoas sugerirem estudos que


merecem ser feitos a partir do ponto em que chegaram com o estudo da publicação. Mas
isso não é regra. Só indique alguma possibilidade se ela for, de fato, a grande direção a
seguir. Por exemplo, após demonstrar que algum fator químico modula certa
comunicação entre certos indivíduos, cabe o seguimento lógico de se tentar descobrir
que substância é essa, onde é produzida e como age. Mas se tentar propor estudos como
avaliação do efeito da temperatura nessa resposta, ou efeitos da fase lunar etc... fica a
questão: por que esses efeitos e não outros? Nesse caso, essas últimas sugestões são
desnecessárias.

X-16 Como redigir a Introdução?

A Introdução deve conter:

o descrição do problema a ser investigado;


o fundamentação do objetivo;
o objetivo da pesquisa, [veja abaixo exceção]

A seqüência dessas informações fica a critério do autor. Lembre-se que os itens


Introdução e Discussão são argumeniativos e, portanto, não devem seguir fórmulas
rígidas de estruturação. Cabe ao autor conduzir a “conversa” com o leitor, levando-o a
aceitar sua argumentação. Na Introdução pode-se iniciar com o objetivo e depois
fundamentá-lo, ou iniciar na seqüência exposta acima, que é a mais comum.
De uma forma mais ousada, podemos apresentar a conclusão do estado, ao invés do
objetivo. Isso pode ser feito no início da Introdução, ou mesmo no final. A base teórica
para isso é que se considera que o leitor não lerá seu trabalho para saber o que ele
mostra... mas o lerá porque sabe que tem uma conclusão interessante e interessa-se por
saber como e porque os autores chegaram a ela. Ou seja, quer conhecer os detalhes para
saber se aceita ou não essa conclusão. Veja um exemplo abaixo com as duas primeiras
frases da Introdução.

It is not yet clear whether humans are able to learn while they are sleeping [1,2].
Here we show that full-term human newborns can be taught to discriminate between
similar vowel sounds when they are fast asleep.
[Cheour et al. 2002]

357

Uma dica interessante para saber se sua Introdução está boa é pedir que algum
cientista (inteligente) da área leia sua Introdução, mas tendo retirado dela o objetivo, ou
seja, a conclusão do argumento lógico. Se, após ler seu texto, esse cientista conseguir
dizer exatamente qual é o objetivo de seu estudo, a argumentação da Introdução está
ótima. Se ele errar, não adianta explicar... reescreva!
Erro comum na construção de Introdução é quando o autor descreve vários estudos
sobre as variáveis investigadas, às vezes até inclui detalhes sobre o organismo ou região
investigada e, em seguida, apresenta o objetivo do estudo. Ora, qualquer estudo está
centrado em um de três aspectos: descrição, associação ou relação de interferência entre
variáveis. Se esses aspectos não foram devidamente justificados na Introdução, a
essência do estudo não foi fundamentada! Assim, você apresenta a essência lógica de
seu objetivo, indicando a novidade de seu estudo, como resumido a seguir.

Pesquisa Descritiva

Por que pretende fazer ou fez185 essa descrição? É necessário dizer porque é
importante descrever essa variável e mostrar que ela ainda não foi descrita.
Caso já tenha sido descrita, sua novidade poderá ser a técnica de descrição. Ou seja, a
variável já foi descrita, mas você a descreveu com técnica que apresenta certas
vantagens.
Pode ser, ainda, que já tenha sido descrita, e com a técnica mais moderna existente,
mas a novidade está no contexto. Pode ter sido descrita em europeus, mas não em
brasileiros. Mostre porque conhecer em brasileiros é um acréscimo importante e poderá
justificar essa descrição. Às vezes foi investigado em mamíferos, mas nunca em peixes,
ou em rochas vulcânicas, mas não nas não vulcânicas, em adolescentes, mas não em
crianças etc.

Pesquisa de associação

Neste caso, embora as variáveis possam ser a novidade, o âmago do objetivo é a


associação. Você supõe que a detecção da associação é muito importante, pois
conhecendo o comportamento de uma delas poderemos prever o comportamento da
outra (veja VII-10). Se não justificar porque espera que haja essa associação, sua
Introdução não está suficientemente fundamentada. Mais ainda, se avançou sobre o

185
No projeto, você ainda não fez a pesquisa e, portanto, dirá o que pretende fazer. No artigo você já
executou a pesquisa e mostrará o que fez.

358

tipo de associação (positiva, negativa, linear, curvilínea etc), tem que justificar porque
espera esse tipo.

Pesquisa de Associação com Interferência

Neste caso, você deve deixar claro porque espera que haja esse efeito. E se deu algum
sentido para o efeito (aumenta, diminui, abole, acelera etc.), então é obrigatório justificar
porque espera que a ação seja nesse sentido.

X-17 Como nossas agências atrapalham a redação científica186?

Em qualquer revista de boa qualidade aprendemos que a Introdução é o lugar onde


contextualizamos nossa pesquisa, justificamos nosso objetivo e apresentamos o que
fizemos (objetivo ou conclusão). Mas, no Brasil, tem se tornado freqüente que algumas
agências de fomento orientem os usuários a redigirem Introdução e depois Justificativa.
Mais ainda, às vezes pedem para incluir Revisão da Literatura. Tais exigências
constituem um prejuízo educacional em termos de ensino da redação científica. Incutem
nos alunos e pesquisadores uma estrutura logicamente equivocada. O mesmo vale para a
Revisão da Literatura. Ora, ela é feita para dar subsídio ao cientista para elaborar suas
propostas. Os trabalhos relevantes dessa revisão aparecerão naturalmente no projeto,
seja na Introdução ou no Material e Métodos.
Outro costume equivocado é achar que se está curto está ruim ou pouco profundo
(veja X-l). Assim, em meus cursos tenho recomendado aos alunos fazerem o texto
sintético, com uma lógica impecável e, posteriormente, incluírem adornos e enfeites
literários para satisfazer o gosto verborreico daqueles que analisarão sua proposta em
agências ou revistas que valorizam esse estilo.
Outro equívoco também disseminado por algumas instituições de fomento à pesquisa
é que todo trabalho tenha hipótese. Já vimos em VI-6 que a hipótese é uma ferramenta
útil em alguns casos, mas totalmente desnecessária quando o objetivo é puramente
descritivo. Forçado pelas agências, o autor arruma hipóteses descabidas para atender à
exigência formal da instituição. Pesquisa descritiva é também importante, desde que a
descrição que se deseja fazer seja necessária e relevante. Há trabalhos descritivos que
estão entre os altamente citados no mundo; ademais, um bom trabalho descritivo inspira
muitas questões e, por conseguinte, hipóteses.

186
O teor desta resposta é também válido para a construção de TCC, dissertação, tese ou artigo
científico.

359

X-18 O que não devemos citar em nosso trabalho?

As citações num texto científico ocorrem à medida que precisamos de algum


conhecimento que já está publicado. Ao expressarmos187 esse conhecimento no texto,
precisamos dizer de onde ele veio. Isso é importante porque remete o leitor à fonte
original da informação, dando-lhe a possibilidade de checá-la. Ou seja, a literatura
funciona geralmente como base empírica que não foi coletada no estudo em que ocorre a
citação, mas que será usada nesse estudo. Nesse contexto, seguem os alertas abaixo
sobre o que não devemos citar.
Inclua apenas literatura de bom nível e de fácil acesso pelos leitores, não sendo
adequadas citações de resumos, resumos expandidos, teses, relatórios técnicos,
conteúdos da Internet, comunicação pessoal etc. Há revistas que pedem explicitamente
para que essas referências “caseiras” não sejam incluídas. Mesmo livros ou artigos em
português devem ser evitados, pois esse idioma é uma barreira para leitores de vários
países: ou seja, se as referências são evidências utilizadas no seu texto, colocadas em
idioma restrito é “escondê-las deliberadamente”. Se, de tudo, não tiver alternativa,
coloque-as, mas saiba que isso enfraquece sua argumentação.

X-19 Quais os principais erros nas citações?188

Nas áreas de Ecologia (Todd et al. 2007) e de Biologia Marinha (Todd et al. 2010)
25% das citações em artigos são inapropriadas. Conhecer esses erros é instrutivo.

Sem suporte (6,0%): a informação não dá suporte, ou até contradiz, o que se quer
sustentar.

Ambigüidade (10,6%): a informação citada admitia duas interpretações, inclusive em


sentidos opostos, mas apenas uma foi usada na citação.

187
Você deve escrever, com suas palavras, a informação que encontrou na literatura, indicando qual
foi essa literatura. Não precisa, nem é comum, transcrever o texto citado. A transcrição literal, quando
ocorrer, deve estar entre aspas e com a inclusão da página de onde foi retirada, além da referência à obra
(por ex., Smith, 2012, p. 323). Essa transcrição literal deve ter um motivo especial e estar bem encaixada
no seu texto, pois do contrário você deveria ter apresentado apenas a idéia do autor, com suas palavras.
188
As questões aqui tratadas referem-se às citações que ocorrem dentro do texto. Os cuidados com a
forma de referir cada trabalho no item Referências, ou mesmo o formato dentro do texto (autor, ano; autor
ano; numeração etc), também mostram o zelo dos autores, mas são direcionados pelas normas da revista.
Trata-se apenas de segui-las. O problema é que nem todos seguem essas normas, o que nos permite
duvidar se os autores foram, da mesma forma, não cuidadosos com os dados da pesquisa. Uma boa ajuda
vem de softwares que acertam esses detalhes segundo a norma de várias revistas (por ex., o EndNote).

360

Citação vazia (7,6%)189: o autor citado não é a fonte da informação, mas apenas o
texto onde consta a informação, que é de outro autor. É comum no caso de citação de
revisões. Cita-se o autor da revisão, quando se quer citar alguma informação
específica de outro autor, citado na revisão. Se citar o autor da revisão, cite a
contribuição nova da revisão e não informações que ele utilizou na revisão que você
leu (veja adiante – citação indireta).

Além desses, há alguns alertas que devem ficar claros190 e são mostrados abaixo.

1. Como incluir a referência numa frase?

Das três formas abaixo, qual é a preferível? Por quê?

Silva (2012) mostrou que a agressão depende de níveis hormonais.


Segundo Silva (2011), a agressão depende de níveis hormonais.
A agressão depende de níveis hormonais (Silva 2011).

Embora todas informem claramente que foi Silva (2011) o autor da idéia de que a
agressão depende de níveis hormonais, a última frase deve ser escolhida. Ela é mais
sintética e não perde qualquer elemento de conteúdo e informação. Note que a inclusão
do nome do autor dentro da frase, como nos dois primeiros casos, nada acrescenta de
substancial. Que uma ou outra frase tenha esse formato menos econômico, pode ser
aceitável, mas não deve ser rotina no texto.

2. Como incluir a referência num parágrafo?

Outro erro ocorre com a inserção da citação em relação a um parágrafo. Onde deve
ficar o autor, na primeira ou na última frase? Veja estes dois parágrafos.

Silva (2011) mostrou que a agressão depende de níveis hormonais. Esse efeito
depende da época do ano. No verão, a ação hormonal na agressão é muito mais
intensa.

A agressão depende de níveis hormonais. Esse efeito depende da época do ano. No


verão, a ação hormonal na agressão é muito mais intensa (Silva 2011).

189
Também chamada de lazy author syndrome (Gavras 2002).
190
As revistas não mostram essas noções, mas você deve conhecê-las. Os exemplos usados a seguir
são fictícios.

361

Veja que nesses dois casos, em momento algum há indicativo claro de que as três
informações são de Silva (2011). O que sabemos, com certeza, é que no primeiro
parágrafo a primeira frase é de Silva (2011); no segundo parágrafo a certeza é apenas
que a última frase é desse autor.
Uma forma de solucionar esse impasse é redigir de tal forma que não fique dúvida
que as três informações são de Silva (2011). Veja abaixo.

A agressão depende de níveis hormonais (Silva 2011). No entanto, esse autor observa
que esse efeito depende da época do ano, sendo mais intenso no verão.

No parágrafo acima não resta dúvida de que as três informações vieram de Silva
(2011). Lembre-se que faz parte do estilo científico construir frases sem dupla
interpretação.

3. Informação indireta

Outro equívoco vem da citação indireta. A informação é de um autor (Silva 2011),


mas você não leu esse artigo; encontrou a informação num segundo artigo (Souza 2012).
Citar Souza (2012) está errado porque a informação não é dele. Se citar Silva (2011),
também erra porque você não consultou esse trabalho. A alternativa é expressar o que,
de fato, ocorreu. Cite a fonte primária indicando que a encontrou em outro artigo.
Assim, poderia ficar:

Aggression depends on hormonal levels (Silva 2011, in Souza 2012).

4. Quantas referências incluir numa informação?

Ocorre quando temos muitos autores sustentando uma mesma informação. Qual
escolher?

O estresse das pessoas é potencializado em períodos de lua cheia (Welch 1950,


MacFarley 1962, Smith 1967, Nielsen 1970, Wirz 1975, Silva 1982, Korneyeva 1989,
Koebele 1996, Barlow 2007, Menna-Barreto 2008, Witerman et al. 2012).

O excesso de citações não deixa seu texto mais forte; ao contrário, o enfraquece.
Atualmente as revistas limitam o número máximo de referências num artigo (mas não o
mínimo). Excesso deve ser sempre excluído. Cite apenas o necessário e de boa
qualidade, pois é o suporte da informação. No texto acima você poderia citar apenas a
mais recente (Witerman et al. 2012). Então, ficaria:

O estresse das pessoas é potencializado em períodos de lua cheia (Witerman et al.


2012).

362

Caso a revista de publicação do trabalho de Witerman et al. (2012) seja bem inferior
que aquela onde Menna-Barreto (2008) apresenta seus dados, prefira esta segunda. Ou
seja, perder alguns anos da referência se justifica quando a revista é de boa qualidade.
Só inclua a citação mais antiga se ela for a primeira referência da informação e esse
histórico for relevante. Mas nesse caso, inclua também uma citação mais recente para
deixar claro que essa informação, embora publicada há muito tempo, continua válida.
Ficaria:

O estresse das pessoas é potencializado em períodos de lua cheia (Welch 1950,


Witerman et al.2012).

5. Se não é seu, é de alguém... cite!

A máxima acima está errada. Corrija-a assim: se não é seu, nem de todos, é de
alguém... cite! Veja um exemplo em que a citação é desnecessária:

A falta de alimento é um problema mundial (Smith 2002).

6. Várias informações e várias citações

Caso você apresente várias informações numa frase, se incluir ao final uma série de
citações, isso significa apenas que cada uma delas indicou todas as informações da frase.

O estresse afeta processos como agressão, aprendizagem, crescimento, resistência


imunológica, reprodução e ingestão de alimentos (Smith 2000, Nielsen 2003, Silva
2006, Korneyeva 2008, Menna-Barreto 2010, Witerman 2011).

Caso as informações (os processos) sejam cada uma de um autor, então deverá deixar
isso claro.

O estresse afeta processos como agressividade (Korneyeva 2008), aprendizagem


(Menna-Barreto 2010), crescimento (Witerman 2011), resistência imunológica
(Smith 2000), reprodução (Silva 2006) e ingestão de alimentos (Nielsen 2003).

Se um autor se referir a mais de um processo, ele pode ser incluído duas vezes, uma
na frente de cada processo que representa.

363

X-20 Quais os tipos lógicos de Resumo?

Não sei o motivo de as pessoas ainda não terem percebido esta diferenciação lógica
entre os resumos. Há basicamente duas situações claramente distintas.
Há resumos atrás dos quais não há nada, exceto um enorme vazio. O leitor chega a
eles e não há nada depois disso. São os resumos publicados em anais de congresso.
Houve atrás deles um painel (pôster) ou uma apresentação oral que, encerrado o evento,
não existe mais.
Há resumos que, depois deles, há um texto completo sobre o assunto. São os resumos
de TCC, dissertações, teses, artigos e livros.
É evidente que não precisamos ser muito espertos para perceber que as estruturas
desses dois tipos de Resumo não são iguais. No primeiro caso, em que há um vazio após
o resumo, ele deve ser mais completo, pois é um fim em si mesmo. Deve ser
autossustentável. Aqui cabe perfeitamente o Resumo Estruturado, ou algo equivalente.
Este tipo de resumo é uma miniatura do trabalho principal. Ele basicamente resume cada
parte do trabalho (Introdução, Métodos, Resultados e Discussão). No formato
estruturado, ele apresenta essas informações divididas em tópicos. Um formato seria191:

Contextualização (Background): indica porque o estudo foi feito.


Objetivo: mostra o objetivo do estudo.
Metodologia: apresenta ao menos o delineamento do estudo.
Resultados: inclui apenas os principais resultados.
Conclusões: lista as principais conclusões.

No segundo caso é bem diferente. Há um texto completo após o Resumo, de forma


que sua função é outra: deve ser sucinto e informar apenas o essencial para garantir que
o leitor queira ler o texto principal. Neste caso costumo chamar de Resumo Criativo
(veja X-21).

X-21 Como fazer um Resumo Criativo?

O Resumo Criativo é o que está se tornando mais comum. Ele apenas remete o leitor
para dentro do texto principal. Mas fazer isso não é fácil. Suas regras também não são
simples. É preciso

191
Veja também mais detalhes em XI-2

364

que o autor seja também criativo. E para ser criativo em ciência, temos que conhecer
muito bem a estrutura lógica de nosso discurso, pois do contrário poderemos mexer no
que não devemos.
As regras para o Resumo Criativo são:

o limite-se ao essencial;
o qualquer parte do trabalho pode ser inserida;
o a seqüência para apresentar as informações é livre;
o deve ser curto e comunicar rapidamente a informação.

Ele deve comunicar brevemente a parte mais interessante do estudo. Com isso, vai
direto ao âmago da questão. Considere-o como uma expansão do Título. O leitor
descobre seu artigo pelo Título e, ao passar pelo Resumo, não pode se aborrecer.
Portanto, atraia-o para dentro do texto. Para isso, deverá saber exatamente qual é o
diferencial de seu texto, qual a sua grande novidade.
Os itens incluídos no Resumo Criativo são de livre escolha. Cabe a você escolher o
que colocar. Não precisa apresentar o objetivo, mas pode apresentá-lo; não há
necessidade de incluir metodologia, mas pode incluí-la; não precisa colocar resultados;
mas pode incluir os principais. Você decide. A informação mais freqüentemente
presente é a conclusão, pois é a novidade de seu estudo (portanto, por que escondê-la?).
Como apresentar essas informações? Use a seqüência que achar melhor. Pode
começar com a metodologia, ou com a conclusão, ou ainda com resultados ou com o
objetivo. Enfim, você é livre.
Por fim, deve ser curto. Quão curto? Não há regras, mas sugiro não mais que 100
palavras. Algumas revistas exigem Resumo de 3 linhas. Enfim, um curto texto para o
qual o leitor olhe e não desista de ler.
Em síntese, faça um texto curto, que mostre o que há de novidade no seu estudo e
seja convidativo para o leitor. Lembre-se de escrevê-lo para um leitor que não seja de
sua especialidade, usando palavras simples.
Muitas vezes esse Resumo Criativo pode ser também o primeiro parágrafo da
Introdução de seu artigo (logo de início já diz ao leitor o que fez e aonde chegou). Esse é
o caminho que a redação científica está trilhando na era da comunicação.

365

X-22 Qual a função do Título do trabalho?

O Título deve atrair a atenção do leitor. Lembre-se que o leitor faz uma busca de
artigos geralmente por palavras-chave. A partir daí, ele seleciona aqueles que lhe
interessam. É para essa seleção que o Título é fundamental; se seu artigo é preterido
nessa fase, ele deixa de existir para esse leitor.
Na elaboração do Título não há regras, embora alguns costumes ajudem e outros
atrapalhem. A frente falaremos de norteadores para a construção de um Título de bom
nível, mas a função exata do Título não deve ser esquecida para lhe guiar nessa tarefa
artística. Você não pode contrariar costumes, tampouco a lógica científica.

X-23 Como elaborar um bom Título?

Lembre-se da função do título (veja X-22) e procure ser criativo, sem contrariar
preceitos lógicos da ciência. A seguir indico três características que um título deve ter.
Em seguida, mostro alguns equívocos comuns na construção de títulos. Note que a
ciência visa conceitos; assim, priorize as variáveis teóricas (veja VI-3), exceto se a
operacional for sua grande novidade. Mais ainda, a ciência busca generalizações, e cada
vez mais abrangentes. Dê esse perfil ao seu estudo e o concentre no título.

Características de um Título192

1 – Curto

Quão curto deve ser o título? Nem mais nem menos que o necessário. Corte toda
palavra em excesso. Limite-se ao essencial. Cada informação incluída no título deve ser
estritamente necessária. Alguns costumes nos levam a fazer títulos longos; por exemplo:

o inclusão do nome do local do estudo. Raramente isso é necessário,


principalmente se você está buscando focar um discurso geral para publicação
em periódico internacional;

192
Vale para TCC, dissertação, tese e artigo. O grau de generalidade pode variar de acordo com o
conteúdo e extensão do trabalho.

366

o inclusão de variáveis operacionais, quando as conclusões voltam-se para as


variáveis teóricas;

o inclusão de nome científico da espécie biológica estudada ou nome de grupos


taxonômicos mais amplos (Classe, Ordem e Família). Geralmente estudamos
fenômenos, para os quais usamos algum organismo. Se este não é o caso, poderá
ser adequada a inclusão da espécie (mas isto é mais exceção do que regra –
cuidado);

o prolixidade na redação. Por exemplo, usar por meio de ao invés de por; provoca
aumento ao invés de aumenta, Estudo sobre, quando é evidente que é um estudo
etc;

o redação na ordem inversa. Sempre que escrever uma afirmação na ordem direta
(Sujeito, verbo, complemento), ela ficará mais curta; além disso, não coloca o
efeito antes da causa! Assim, ao invés de “Saúde afetada pelo estado
emocional”, prefira “Estado emocional afeta a saúde”.

o repetição da metodologia, ao invés da lógica do tema. Por exemplo, “Estado de


ânimo de pacientes em função da presença ou ausência de expectativa de
melhora”. O melhor seria dizer o que ocorreu, que poderia ser “Expectativa de
melhora eleva estado de ânimo de enfermos”. Se na Introdução devemos
justificar o objetivo, poderá ser impossível justificar o delineamento (por ex.,
ausência x presença de expectativa de melhora, ao invés de ausência x níveis de
expectativa de melhora).

2 – Fiel ao conteúdo do trabalho

Ele não pode ser enganoso. Imagine que sua pesquisa mostrou que a vitamina C
reduz a proliferação de células cancerígenas. A partir daí, um Título “Vitamina C cura
câncer” é muito enganoso. Ou dizer que um antitérmico cura a doença que provocou a
febre. Ou, ainda, generalizar mais que o possível, como “Multipartidarismo político
dificulta debates profundos”, o que pode ser uma condição específica de alguns países e
culturas. Outro exemplo: “Ensino universitário público garante melhor qualidade de
ensino”, o que também pode ser válido num país, mas não em outros, ou mesmo
depender do momento histórico.

3 – Compreensível

Se o leitor não entender o título, o trabalho não será lido. Lembre-se que o
especialista sempre entenderá. Considere que os não especialistas podem representar
maior número de leitores. Lembre-se também das pesquisas multidisciplinares, nas quais
pessoas de várias formações poderão necessitar de seu estudo. Use palavras simples, que

367

mais pessoas entendam. Se você não consegue traduzir em palavras simples os conceitos
complexos que estudou, tenha certeza que o problema está em você e não na ciência.
Imagine como você

368

explicaria sua pesquisa para um leigo ou mesmo para um aluno do ensino fundamental
ou médio. Isso o ajudará a pensar de forma simples.
Evite acrônimos no título, bem como outros termos de definição muito específica. Por
exemplo:

The effect of exercise on earnings: evidence from the NLSY

A definição de NLSY só aparece no final do segundo parágrafo do item Literature


Review, que está situado após a Introdução. Antes disso, apenas pessoas familiarizadas
com esse termo poderiam se interessar pelo estudo. Trata-se de uma concepção em fase
de extinção, pois dirige o trabalho para os especialistas da área. É como uma chave de
identificação: se entender, você é um dos “nossos”. A propósito, o termo significa
National Longitudinal Surveys of Youth.

X-24 Como escolher as Palavras Chave (Key-words)?

Devem representar aspectos centrais do trabalho, como o assunto central, as variáveis


investigadas, o organismo utilizado etc. Atualmente, as revisões bibliográficas fazem
buscas em todo o texto, o que ajuda, mas também atrapalha. Se você está pesquisando
sobre certa espécie animal, poderá localizar algum artigo que cita, num detalhe da
Discussão, a espécie de seu interesse, mas num estudo completamente alheio ao seu
interesse. Portanto, a opção de buscas em locais mais direcionados do artigo não deve
ser negligenciada. Mais ainda, lembre-se de que há termos específicos para as buscas, o
que ajuda a localizar mais trabalhos. As palavras-chave não são um aglomerado de
palavras ou termos que o cientista “tira da cartola”. Geralmente elas focam nas
variáveis, nos fenômenos ou nos sujeitos da investigação.
Na redação de seu texto, uma dica importante (Volpato 2006) é incluir alguma
palavra que não exista no texto, mas que está ligada ao tema da pesquisa; pode ser um
sinônimo com outra raiz (por ex., criança/infantil) ou um hiperônimo (por ex., nitrato de
sódio/aditivos alimentares). Com isso aumenta-se a chance de seu trabalho ser visto por
mais leitores. E lembre-se disso quando fizer seu levantamento bibliográfico. Como as
palavras-chave não requerem uma lógica discursiva, a palavra simplesmente entra nessa
lista.

369

X-25 Como escrever o Título curto (Running head)?

É um resumo do Título. Geralmente nas normas da revista está determinado o número


máximo de caracteres ou palavras permitido. No texto, aparece geralmente na margem
superior ou inferior das páginas de seu artigo. Centre-se na lógica de sua pesquisa,
geralmente voltada para a conclusão do seu estudo. Guie-se pelo título já escrito.

X-26 A quem devo agradecer?

Os agradecimentos são importantes, pois atestam o trabalho ou a gentileza de


pessoas. Apesar disso, devem ser breves e sem excesso de adjetivos. Por exemplo, não
escreva que agradece sinceramente, pois se espera que todo agradecimento seja sincero.
Dizer que é muito agradecido também não auxilia.
Uma prática comum, porém insatisfatória, é o agradecimento a instituições que
financiaram direta ou indiretamente a pesquisa (auxílios, bolsas etc). Algumas
instituições pedem explicitamente isso. Há um equívoco aqui.
A relação entre a financiadora e o cientista é uma relação profissional e não de
favores. O autor apresentou um projeto que foi comprado pela financiadora. A
financiadora considerou que aquele projeto valia a quantia de dinheiro a ser despendida.
Referir-se a tal auxílio, no entanto, é indispensável e está previsto nos termos de
concessão dos auxílios. Se a revista não indicar lugar específico para essa menção, ela
pode ser feita, por exemplo, em nota de rodapé na primeira página. A inclusão no item
agradecimentos é equivocada. O mesmo é válido para as instituições onde foi
desenvolvido o estudo. Não há favores e sim contrapartida das instituições de afiliação
dos pesquisadores contemplados com financiamento, responsabilidade social e/ou
investimentos.
Se pagou pelo trabalho, não precisa agradecer. Agradece-se a todos que lhe ajudaram
ultrapassando a responsabilidade profissional. Se seu técnico é contratado para certa
função, e a executou, por que agradecer? Se ele fez isso com algum diferencial que
ultrapasse a rotina esperada profissionalmente, então cabe agradecimento. Veja uma
analogia. Você vai ao banco e desconta um cheque no caixa. A pessoa que lhe atende
está sendo paga exatamente para lhe fazer isso. Não fez mais que a obrigação. Se, por
outro lado, ela lhe trata de forma excepcionalmente educada e cordial, dando-lhe
informações adicionais que não precisaria dar, então ela fez um adicional que merece
agradecimento. O mesmo vale para a pesquisa científica. Sei que tal colocação fica
antipática num país como o nosso, onde a falsa modéstia é regra. Em resumo, o
agradecimento deve se referir a colaborações que auxiliaram na construção do
argumento de seu trabalhado, desde que dignas de referência.

370

X-27 Como escrever bem?

Devido ao nosso sistema de ensino, os problemas de redação estão entre as principais


falhas do cientista brasileiro. Não serão corrigidos facilmente. Apesar disso, comento
abaixo alguns dos equívocos mais comuns que, se sanados, melhorariam muito a
qualidade dos textos. São aspectos, na maioria, restritos à linguagem científica, com seus
vieses, e que não se adequariam, por exemplo, à poesia, ao conto etc. Mas a maioria
deles se aplica também ao idioma inglês.
Embora já eu tenha detalhado a lógica dos principais equívocos e das boas
construções na redação quando mostrei como os erros de redação científica decorrem de
erros de pensamento (Volpato 2007), abaixo apresento um resumo dessa situação.

Colocação de vírgulas

A vírgula dá uma pausa na leitura. Ela não pode pausar uma idéia não completa.
Portanto, não devemos incluir vírgula entre sujeito e verbo.

Errado: A casa verde da rua central de minha cidade natal, é antiga.


Correto: A casa verde da rua central de minha cidade natal é antiga.

Errado: A baixa disponibilidade de alimento para as classes sociais de baixa renda,


acarreta enfraquecimento geral desses indivíduos.
Correto: A baixa disponibilidade de alimento para as classes sociais de baixa renda
acarreta enfraquecimento geral desses indivíduos.

A vírgula pode ser usada para destacar informações adicionais que são incluídas no
meio da frase. Embora esse uso seja gramaticalmente correto (um aposto entre sujeito e
verbo), ele pode tornar a frase longa e de difícil entendimento. Esse tipo de problema é
muito comum na área de Humanas, em que os autores fazem frases muito longas
decorrentes desse viés. Quanto mais informações você coloca entre o sujeito e o verbo,
mais difícil fica para o leitor entender a frase.

Com aposto: O Corinthians, time paulista de futebol, ganhou novamente.


Sem aposto: O Corinthians ganhou novamente.

371

Veja como o excesso de informação entre o sujeito e o verbo torna a frase mais difícil
de ser entendida. No trecho abaixo (Harnad 2004; p. 237), o primeiro grifo é o sujeito e
o segundo é o verbo.

... this variant, taking a cuefrom some ofthe developments and goings-on on both
the Internet and Network TV chat-shows, plans to publicly post submitted papers
unreferred on the Web...

Um último caso a ser considerado são aquelas vírgulas que separam um trecho que
estabelece as circunstâncias (modo, tempo, local etc.) na qual a idéia principal ocorre.
Veja os dois exemplos abaixo:

Durante o verão, a reprodução é mais intensa em várias espécies de organismos.


(A afirmação após a vírgula depende da condição especificada antes dela).

Segundo Malcolm, a redação científica deve ser treinada desde cedo. (A vírgula
separa a afirmação e o autor. Essa afirmação depende do autor citado).

Há pessoas que costumam fazer cópias sem observarem atentamente toda a estrutura
da frase. É comum pesquisadores verem estruturas como a do último exemplo acima e, a
partir daí, generalizarem que sempre haverá vírgula após autor e ano. Aí, quando o autor
e o ano passam a ser o sujeito da oração, erram! Por exemplo, Malcolm (1969) diz que a
redação científica deve ser treinada desde cedo. Nesse caso, a citação do autor é o
sujeito da oração e, portanto, não pode haver vírgula entre ele e o verbo (diz). Isso é
válido para a língua portuguesa e também para a inglesa.

Prolixidade

O estilo científico exige brevidade. Ninguém tem tempo sobrando. Como está escrito,
não precisa repetir. Na oratória, por outro lado, repetição pode ser fundamental para que
o ouvinte não perca o fio da meada.
Por que fazermos o leitor ler 4.000 palavras, se poderia receber a mesma mensagem
lendo 3.000? É uma questão de respeito ao leitor.
Lembro-me do caso de um professor que, ao ser criticado pelos assessores de um
periódico internacional por wordy expressions (prolixidade), resolveu direcionar suas
pesquisas para as revistas nacionais, alegando que não aceitava descrever
superficialmente os processos que investigava. Ora, prolixidade não significa descrição
minuciosa. Significa uso excessivo de palavras para dizer a mesma

372

coisa que se diria com menos palavras. Uma descrição pode ser minuciosa, com
economia de palavras, sem ferir o entendimento das idéias. Um texto pode ter 10.000
palavras e não ser prolixo. Outro pode conter 100 palavras e ser muito prolixo se poderia
ser escrito com 30!

Conjunções

As conjunções são palavras ou expressões que, como o nome sugere, ligam idéias
(numa mesma frase, entre frases ou entre parágrafos). Há cerca de 30 tipos, cada um
indicando uma forma específica de ligação (veja conjunção em dicionários da língua
portuguesa). É necessário atentar para o tipo de ligação que desejamos e, então, escolher
a conjunção adequada. Abaixo apresento algumas das conjunções mais comuns e seus
respectivos significados.
Imagine duas idéias, A e B, apresentadas na seqüência A * B e separadas por
conjunção. (A e B podem estar contidas em uma frase, ou cada uma pode ser uma frase
ou um parágrafo).

Adversativa (mas, porém, contudo, todavia): B é uma ressalva de A. Todos os


alunos são bons, mas você é melhor.

Alternativa (ou, ora, já, quer): A ou B (se A ocorre, B não ocorrerá). Ou vai, ou
racha. A política educacional ou é bem intencionada, ou não. Iremos coletar os animais,
quer chova, quer faça sol.

Causal (porque, pois, porquanto, já que, visto que): A causa B. Ele voltou cedo, pois
a cerveja acabou logo.

Comparativa (menos... que, mais... do que, tão... quanto, qual, como): B é


comparado a A. Os peixes maiores se alimentam mais do que os menores.

Concessiva (embora, conquanto, ainda que, posto que, mesmo que): B é contrário à
ação de A, mas não consegue impedir que tal ação ocorra. Irá chover, embora eu não
deseje.

Conclusiva (logo, pois, portanto, por conseguinte): B é conclusão lógica (dedutiva


ou indutiva) de A. Marcelo é muito confuso; portanto, não consegue fazer um trabalho
sintético.

Condicional (se, caso, contanto que, salvo se, dado que): B é uma condição para que
ocorra A. Haverá justiça, se o egoísmo não prevalecer.

Conformativa (segundo, como): A ocorre dadas as condições expressas em B (ou


vice-versa). O mundo não passará do ano 2000 d.C, como acreditam alguns religiosos.

373

374

Consecutiva (que, de forma que, de sorte que, tal que): B indica uma conseqüência
de A. Era tão metódico que não percebeu o óbvio!

Final (para que, porque, a fim de que): B mostra a finalidade de A. A luminosidade


foi mantida constante para que não interferisse nos resultados.

Proporcional (à medida que, à proporção que, ao passo que, quanto mais): B indica
um fato realizado simultaneamente (ou associado) a A. O ânimo daquele povo foi
diminuindo à medida que as promessas não se concretizavam.

Divisão de parágrafos

A criação de um parágrafo não depende do tamanho ou do grau de cansaço do


escritor. Ele é um conjunto coeso de frases que encerram uma idéia definida. Quando
isso é concluído, muda-se de parágrafo. Veja o seguinte exemplo.

“A Terra é um planeta extremamente complexo. Complexo e sensível. Mas só é


sensível frente ao nosso bem-estar. A preocupação ecológica com o globo reflete uma
preocupação com a sobrevivência da própria espécie humana. Ou extinguiríamos nossa
espécie para manter o planeta? Essa questão deve ficar bem clara, pois nosso egoísmo
último é a manutenção de nossa espécie. E não significa necessariamente que esses
desejos sejam guiados geneticamente. Ao contrário, podem muito bem ser nutridos
socialmente. Daí a dizer que a vontade de viver encerra uma predisposição genética é
forçar demais a interpretação.”
Observe que esse parágrafo encerra duas idéias: a) que a preocupação ecológica é
centrada na sobrevivência da própria espécie e b) que essa preocupação pode ter bases
puramente culturais. Assim, é perfeitamente razoável uma divisão de parágrafo no início
da frase Essa questão...

Na literatura científica você raramente vai encontrar um parágrafo de uma única


frase. Textos científicos publicados em revistas de péssima qualidade geralmente
apresentam um conjunto de frases, cada uma constituindo um parágrafo e referindo-se a
um autor, do tipo figurado abaixo.

Gomes (1967) mostrou que existe grande dependência entre o estado emocional e a
aprendizagem.
Ilky (1971) defende que os processos cognitivos estão imbricados aos emocionais.
Guerreiro (1974) estudou as relações entre capacidade de aprendizagem e estresse,
concluindo que apenas em certos níveis o estresse auxilia a aprendizagem.

375

Pelos parágrafos acima, fica claro que são frases estanques, mesmo que conexas. Elas
mostram total despreparo do autor e, com certeza, sua falta de participação na ciência
internacional. Devemos juntá-las para fundamentar algo que o autor pretende
demonstrar. Muitas pessoas imaginam que juntando várias frases desse tipo estão
fazendo com competência uma revisão da literatura. Ilusão! Para juntá-las, use a técnica
do “e daí?”, apresentada em X-13.

Esse ou Este?

Esse ou este? Isso ou isto? Desse ou deste? Nesse ou neste? Aprendemos uma regra
muito simples na escola: quando estiver perto, usa-se st (isto, este...); quando estiver
longe, usa-se ss (isso, esse...). Mas isso é apenas parte da história.
O ss é também usado para designar algo no passado, dito anteriormente. Quando se
usa o st, o objeto a que nos referimos deve vir à frente ou ser parte integrante da ação.
Por exemplo:

O meu cão saiu correndo e quase foi atropelado. Esse cão é mesmo levado!

Usei esse cão, pois me refiro ao cão dito anteriormente. Veja a frase seguinte.

Escrever é gostoso, e este livro me mostrou isso.

Usei este livro, pois falo do livro que você está lendo neste instante; usei isso, pois
falo de algo dito anteriormente, ser gostoso. Quando o texto de projeto ou artigo se
referir ao que está escrevendo no momento, use st (o objetivo deste estudo foi...). Se usar
st em outra condição, especifique à frente sobre o que se refere. Veja no exemplo fictício
abaixo como o uso errado de este e esse pode mudar radicalmente o sentido do texto.
Gonçalves (2012) sugere que eventos cognitivos possam afetar as atividades
reprodutivas dos animais. Assim, este/esse estudo avalia a participação de elementos
cognitivos na determinação do comportamento reprodutivo em peixes.
Se usar este no início da segunda frase, estará se referindo ao seu artigo. Ou seja,
baseado na informação de Gonçalves (2012), a frase seguinte propõe o que será feito no
seu estudo. Se, por outro lado, usar esse, certamente a frase estará incluindo mais
informações sobre o trabalho de Gonçalves.

Exatidão terminológica

Devemos estar atentos para o significado exato das palavras. Para isso, nada melhor
que consultarmos dicionários. Veja alguns exemplos.

376

Deve: implica obrigatoriedade (equivale ao must no inglês).


Pode: não há obrigatoriedade, mas sim a permissão (ou a faculdade) para ocorrência
de algo (equivale ao may ou ao might em inglês); também indica possibilidade – pode
chover (não precisa dizer “ou não”).
Demonstra: significa que a validade (ou não validade) de alguma coisa será
confirmada. Quando presente no objetivo de um trabalho científico, pode dar uma
conotação errada sobre o poder da ciência (veja II-8).
Necessário (fundamental): que é imprescindível, que não pode faltar.
Importante: não precisa ser necessário, mas é bom (por algum referencial) que esteja
presente.
Imprescindível: que não pode faltar, de jeito algum. É necessário.
Exato/preciso/fidedigno: veja VIII-3.
Mais/mas: o primeiro é +, o segundo é porém.
Todo dia: hoje, amanhã, depois etc. São todos os dias (no plural).
Todo o dia: o dia inteiro, do início ao final de um único dia.
Ser/estar: você não é chato, mas está chato!
A minoria (alguns): menos que 50%.
A maioria (vários): mais que alguns, podendo significar mais que 50% (e o verbo é
conjugado no singular – a maioria das pessoas acredita).
Causa: envolve relação de interferência entre as partes e não apenas associação (veja
VII-10).
Modulação: implica que algo interfere num processo ou evento que está se
desenrolando. Sempre que puder, dê o sentido da modulação; ao invés de “altera,
muda, interfere”, use “aumenta, diminui, inibe, bloqueia”.

Observe que ao usar uma palavra de forma bem precisa e exata, você torna seu texto
mais conciso. Veja este exemplo:

“Uma vez que usamos técnicas que medem exatamente o que se propõem a medir.”
pode ser substituído por “Uma vez que usamos técnicas fidedignas...”

Forma ativa e direta de expressão

Faz parte do estilo científico a forma ativa de expressão:



377

AGENTE → EFEITO

Os predadores mataram a presa.


Este estudo testou o efeito de A sobre B.
A droga inibe o desenvolvimento dos fungos.

Porém, é comum encontrarmos escritos científicos na forma passiva:

EFEITO → AGENTE

A presa foi morta pelos predadores.


O efeito de A sobre B foi testado neste estudo.
O desenvolvimento dos fungos é inibido pela droga.

Frente a expressões freqüentes como was studied, was used, is shown etc, há
inclusive quem diga que a forma passiva (voz passiva) compõe o estilo de redação em
inglês, ou mesmo o estilo científico. Grande equívoco! Em primeiro lugar, algo mais
freqüente não é necessariamente melhor ou correto. Em segundo, nas revistas de alto
nível e que extrapolam uma única especialidade (por ex., Science e Nature etc), a regra
mais freqüente é a redação na voz ativa (ordem direta).
Redações na forma passiva invertem o sentido natural dos fatos na medida em que
colocam o efeito antes da causa. Por exemplo, você tropeça e cai, ou primeiro cai para
depois tropeçar? Essa inversão dificulta a compreensão do texto. Evidentemente, uma ou
outra frase na forma passiva não prejudica o leitor, mas o excesso atrapalha.
Uma última dica: há pessoas que sugerem ler o texto em voz alta, pois assim ficam
perceptíveis certos equívocos. Acho que vale a pena tentar.

X-28 Devo recorrer a empresas que corrigem tese/artigos científicos?

A proliferação de empresas que se destinam a corrigir textos científicos tem


aumentado no mundo (Ghost Writers). No Brasil essa prática é mais recente, tendo sido
iniciada em 2000 na forma empresarial.
Há dois aspectos que devem ser considerados. Uma empresa pode lhe prestar um
serviço visando unicamente o lucro financeiro. Ela pode fazer um belo trabalho, mas
manterá você como refém. Nos próximos trabalhos você buscará novamente essa
empresa. Outra situação é quando o serviço tem sentido acadêmico, em que, sem negar o
aspecto lucrativo, visa formar cientistas.

378

De minha experiência, tenho percebido que nossos pesquisadores buscam mais


terceirizar a atividade de redação do que aprender com essas correções. Aqui não se
pode dizer que o problema é da empresa, mas da postura do pesquisador. Enquanto uma
atividade de aprendizagem, acho perfeitamente natural recorrer a essas empresas.
Quando vira delegação de competência, acho complicado. Caso similar acontece com as
questões relativas à estatística193.
Hoje vejo empresas ganhando dinheiro de estudantes de graduação, prometendo-lhes
auxiliar no TCC. Em terra de cego, qualquer caolho míope é rei. Se quisermos colaborar
com o Brasil, não será dessa forma. Muitas dessas empresas passam conhecimentos
equivocados, que se somam aos vários cultivados pela Pós-graduação, como espero ter
mostrado ao longo deste livro.
Se recorrer a uma empresa para corrigir seu texto, certifique-se de que aprenderá
muito com isso. Não pague para ter o texto pronto, mas pague pelo aprendizado. E note
que muitas se dizem “diferentes”, que ensinarão o aluno. Estive observando algumas
dessas e notei, pelos comentários dos alunos agradecidos, que sequer conseguem redigir
uma frase sem errar. Esse é o produto final? Aprenderam a redigir? É assustador!
As empresas mais sérias devem ser competentes e desafiadoras para ensinar como
preparar um artigo para a ciência internacional. Embora muitas digam isso, pois virou a
palavra de ordem, poucas conseguem. Fique atento e valorize seu dinheiro e tempo.
Mais ainda, se a busca por empresas pode ser um passo de aprendizagem, sua busca não
pode ultrapassar três artigos. Se não aprender com isso, então ou a empresa é
incompetente ou você precisa reavaliar algumas outras coisas.
O que me assusta hoje é que até mesmo as melhores universidades brasileiras
trouxeram empresas para ensinar a redação científica a seus doutorandos e orientadores.
Isso me assusta porque conheço muitas universidades brasileiras, incluindo as mais
famosas, e sei que todas elas têm, em seu corpo de docentes, pessoas competentíssimas
para disseminar e ensinar redação científica aos seus colegas. Dessa forma, considero
que tais gastos, que não são pequenos, podem caracterizar uso inadequado do dinheiro
público. Acredito que temos que buscar fora o que não temos dentro.
A criação de Writing Centers nas universidades é uma estratégia muito importante. E
tenho certeza que a maioria delas possui contingente próprio para isso. Precisamos
estimular nossos professores, particularmente aqueles com excelente perfil de
publicação, a doarem-se um pouco mais para treinar colegas, pois certamente
ganharíamos muito com isso, desde a universidade até o país. Esse me parece ser o
caminho, por meio da educação194.

193
Por esta razão publicamos o Estatística sem dor!!! (Volpato e Barreto 2011), uma tentativa de
libertar o pesquisador, dando-lhe a chance de buscar assessoria estatística apenas nos casos mais
complexos.
194
Infelizmente, embora não totalmente generalizável, a maioria das empresas de Ghost Writers não
visa libertação do cliente, mas sua dependência constante do sistema comercial.

379

Completo este pensamento dizendo que, ao longo deste livro, e outros de minha
autoria, procuro mostrar que o problema da redação científica não é de redação...
começa com a ciência. Ciência fraca leva a pesquisa fraca, a qual só pode ser convertida
em publicação fraca. Se quisermos melhorar a ciência de nosso país, não há outra
fórmula. Os cursos de redação científica precisam começar a ensinar ciência, depois
pesquisa e, finalmente, estruturação lógica do texto e a redação propriamente dita.
Dizer que estão ensinando redação em inglês é engodo. Os erros são muitos nesta
área e continuo me assustando com a resposta da sociedade científica a esse quadro.
Pessoas diferenciadas facilmente se convencem de que ensinando inglês nossas
publicações melhorariam. Isso não existe e há um erro lógico na base dessa proposta
(explicitada em Volpato 2010). Assusta mais ainda quando um editor do exterior fala
que por trás de um texto com inglês precário não pode haver ciência sólida! Isso não tem
base lógica! Na época da “guerra fria” entre Rússia e o mundo capitalista, a Rússia
colocou foguete na lua... e os estudos não eram escritos em inglês.
Há outro engodo nessa história: achar que alguém vai aprender redação científica em
inglês num curso de 2 ou 3 dias. Você pode morar 5 anos nos Estados Unidos e não
saberá escrever elegantemente em inglês. Afinal, há quanto tempo moramos no Brasil...
e como é nossa redação em português?
A cultura brasileira ainda adora as fórmulas mágicas (a estadosunidense também).
Que bom seria se elas existissem na redação científica. Mas não existem. Temos que
formar pessoas competentes, com discursos lógicos perfeitos e estratégias de
comunicação igualmente perfeitas. O autor do artigo deve ser autor da forma de
expressão, ao menos nos requisitos lógicos de sua argumentação e fundamentação.
Delegar isso é inconcebível. O que pode ser delegado é a forma redacional, mantendo-se
o conteúdo e a seqüência de idéias. O cientista que abre mão disso abre mão de sua
capacidade de raciocínio e comunicação sobre suas descobertas e idéias.

X-29 Como definir as autorias de um trabalho científico?

Preâmbulo

Se você acredita que a pressão por publicação leva à autoria fraudulenta, repense.
Isso não tem sentido lógico. O que leva à autoria fraudulenta é a corrupção moral e ética
do indivíduo, nada mais. Conheço pessoas que preferem ser “improdutivas” a ser autores
fraudulentos. Não é uma questão técnica, é moral.
Os critérios técnicos de definição de autoria serão esclarecidos aqui. O problema
maior é que muitos buscam critérios que validam suas práticas. Minha proposta, como
tudo o que tenho proposto na redação científica, se baseia no Método Lógico (Volpato
2011a,b), que desenvolvi ao

380

longo de 26 anos. Ela não inventa critérios, mas evidencia aqueles que brotam da lógica
subjacente ao processo de fazer ciência. Assim, a seguir mostrarei a conexão entre os
critérios rechaçados, bem como o critério proposto, e a lógica da ciência.

O Critério de autoria

Condições necessárias para autoria em texto científico

Participar da história da pesquisa, elaborando sua concepção e/ou conclusões.


Concordar com as conclusões do estudo, incluindo o veículo de publicação.
Ser apto a defender a essência do texto perante a comunidade científica.

Essa é uma síntese das principais propostas, fundamentalmente coerentes com a


proposta de John Maddox, um cientista que permaneceu 22 anos como editor da Nature
(falecido em abril de 2009). Vale a pena ler seu texto publicado em Maddox (1994).

Segundo Maddox, um autor should at least be able to give a brief talk at a public
meeting on the substance of what has been reported in writing. He or she would be
forgiven if some of the questions raised in the discussion required the presence ofa
colleague specialized in one or other of the specialized techniques involved, but not for
failing to describe the antecedents of the work or to give a coherent account of the result
and its importance.

Dr. Larry Dill, um cientista canadense de grande eficiência científica, propõe que o
trabalho seja dividido em três partes: a concepção da pesquisa (objetivos e
delineamento), a coleta de dados e a construção de conclusões. Segundo ele, o autor
deve participar, ao menos, de duas dessas etapas.

O que não basta para ser autor

Coletar dados

A ciência empírica constrói enunciados teóricos gerais, baseados em evidências


empíricas. Esses enunciados envolvem a interpretação que o autor faz a partir da base
empírica. Assim, essa base não determina a conclusão, mas a conclusão é construída a
partir da forma como o cientista olha

381

os dados, contrapondo e se alicerçando nas teorias que conhece. Como o coletor de


dados pode ser dono das conclusões? Como um autor pode não ser dono das conclusões?

Ser dono do boteco

Chefe de laboratório, chefe de departamento, diretor de instituição etc, seriam todos


eles automaticamente coautores do que se produz nesses respectivos universos? E se
houver um assassinato nessas dependências, ele também será culpado? E se algum
equipamento for comprado indevidamente, ele é o culpado direto? E quando algumas
fraudes são detectadas e postas a público... a corda não arrebenta sempre no lado mais
fraco (o aluno deve ter se enganado etc.)? O trabalho é um corpo empírico-teórico bem
definido, que não permite dúvidas sobre os construtores e responsáveis por esse corpo.

Pertencer ao grupo

Cuidado... isso é formação de quadrilha. Eu diria, passa de Grupo de Pesquisa para


Bando de Pesquisa. Disponibilizam-se autorias como se trocassem figurinhas. Você
pode pertencer ao grupo, mas deve ser dono das idéias que publica, deve construir o
documento que assina. Do contrário, é apenas safadeza e mais safadeza.

Emprestar material ou equipamento

Se você empresta um revólver a um amigo, imaginando que ele mostrará a um


colecionador que o visita, mas esse amigo assassina a esposa, você é cúmplice? Há
cientistas que fizeram currículo, e carreira, simplesmente porque dominavam uma
técnica, ou um aparelho, de que muitos precisavam. A partir daí, cada um que usava esse
material/aparelho o colocava como coautor.

Realizar análise estatística

A análise estatística é uma ferramenta importante e que auxilia em muito a


elaboração de conclusões. Como muitos cientistas não a dominam, acreditam que ela
sozinha pode sustentar autoria. Em alguns casos sim, mas na maioria não. Veja que a
estatística lhe diz apenas duas coisas: descreve um conjunto de dados e mostra
associação entre variáveis. As conclusões científicas iniciam-se aí, mas não param aí. A
participação do estatístico como autor é obviamente possível, mas a natureza das
conclusões deixa clara essa possibilidade, ou impossibilidade. Sempre fui ajudado por
estatísticos, mas nunca chegaram ao ponto de serem meus coautores... e convivemos
muito bem!

382

Corrigir o texto

Se a construção é sua, a conclusão é sua, mas eu a entendo, posso até corrigir o


texto... mas não sou dono das idéias que estão lá dentro. Na ciência não estamos
defendendo formas de expressão, mas conclusões.
Embora esses aspectos não garantam autoria, geralmente requerem agradecimento.
Usem o Acknowledgements.

X-30 Como definir a seqüência de autores em um trabalho científico?

A coautoria em trabalhos científicos é bastante comum e o número de coautores varia


em função da área (Packer e Meneghini 2006) e, mais diretamente, da estrutura do
estudo. Há trabalhos que não necessitam de mais de um autor, enquanto outros
envolvem centenas (Maddox 1994).
A seqüência dos autores ainda carece de uma padronização. Há alguns formatos mais
comuns, mas longe de serem universais.

a) O mentor intelectual é o primeiro autor e os demais seguem em função de


participação decrescente.
b) O primeiro autor é o que carrega o piano, ou seja, que faz a parte prática e
operacional mais pesada do estudo; o mentor intelectual fica em último lugar. Os demais
se distribuem pelo meio.
c) O primeiro autor é o que carrega o piano, ou seja, que faz a parte prática e
operacional mais pesada do estudo; o mentor intelectual fica como autor de
correspondência, em algum lugar após o primeiro autor.

Uma distinção possível de se incluir no artigo é quando dois ou mais autores querem
frisar que suas participações na autoria tiveram o mesmo peso. Isso pode ser feito por
meio de uma nota, que pode vir tanto no item Agradecimentos (Acknowledgements)
(veja Gontijo et al. 2003) quanto na primeira página (veja Barreto et al. 2007).
Apesar da falta de padronização universal, uma coisa é certa: estabeleça o quadro de
autores e os critérios antes de iniciar o trabalho. Isso evitará muitos problemas.

383

X-31 Quais os riscos em se pontuar currículos por meio da seqüência dos autores?

Como visto até aqui, os critérios de autoria já são complicados e as fraudes não
parecem poucas. Em relação à seqüência dos autores, a situação é ainda mais dramática
e controversa. Nesse universo, querer usar seqüência de autoria para definir
participações mais ou menos importantes num estudo incorre no erro da ignorância e da
prepotência; a ignorância sobre a situação das definições dessas posições e a arrogância
por julgar que “seu” critério é universal.
Há setores de órgãos de fomento que pontuam apenas os artigos nos quais o cientista
em análise é primeiro ou segundo autor. De onde tiram isso? O que se percebe é que
alguém cria o conceito e, possivelmente numa posição de Semi-Deus, acredita que essa
regra é universal a ponto de usá-la como critério de distribuição de dinheiro e status
junto à agência.
A menos que tenhamos algum critério universal, qualquer tentativa de pontuar
diferentemente o primeiro autor, ou o último, ou ainda o autor de correspondência
incorrerá no erro da ignorância e prepotência. Isso vale para análises de currículo em
quaisquer ambientes, desde agência de fomentos até bancas de concurso.

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387

CAPÍTULO XI

Divulgação em Congressos

XI-1 É importante participar de congressos científicos? Como escolhê-los?

O congresso científico é onde seus pares se reúnem. Geralmente são anuais, mas
alguns são bienais. Portanto, é evidente que sua participação é importante. Mas note que
eu escrevi “participação”.
Num congresso você conhece profissionais importantes de sua área, assiste a
palestras e minicursos interessantes e tem chance de discutir seus trabalhos e idéias com
públicos variados. É possível que não consiga se reunir com algumas dessas pessoas a
menos que esteja no congresso. Essa é a vantagem de ir a um congresso. Com o tempo,
começa a ser conhecido na área e, por ser conhecido, poderá ser lembrado. Desde que
mantenha um trabalho honesto e de boa qualidade, o desdobramento só pode ser uma
infiltração competente em sua sociedade científica. É por isso que as agências financiam
sua viagem!
Apesar dessa nobre função, é ainda freqüente que muitas pessoas busquem os
congressos como meio de passeio e encontros com amigos. Não há mal que passeiem e
se divirtam; o problema é quando isso passa a ser a essência da participação. Note
também que geralmente os congressos são localizados em cidades turísticas e bonitas,
sendo um atrativo. Cada participante paga a inscrição, o que dá sustentação ao
congresso, de forma que quanto mais inscritos, melhor. Essa não é a única razão,

388

pois o objetivo é, de fato, congregar pessoas, mas como organizar um congresso


envolve custo alto, essa questão não passa despercebida.
Minha sugestão é que você não fique “pulando” de um congresso a outro. Escolha
um que seja muito relevante para sua área de pesquisa e centre-se nele. Isso valoriza os
esforços e brevemente você estará conhecendo a maioria das pessoas. Mas a escolha
tem que ser bem feita. Às vezes o tema do congresso é muito apropriado, mas é
geralmente desorganizado e você se sente perdendo tempo. Desista, busque outro.
Quando encontrar um que lhe satisfaça, centre-se nele.
Uma boa rotina é você se dispor a ir a um congresso nacional a cada ano e um
congresso internacional a cada dois anos. Se for a um congresso internacional por ano,
melhor. No congresso, tente tirar o máximo proveito, como esboçado no segundo
parágrafo desta resposta. Esse proveito inclui seus passeios e conhecimento de lugares e
pessoas diferentes. Sempre que possível, aproveite a participação em congresso para
visitar algum laboratório nas proximidades, ou mesmo fazer uma rápida turnê por
algumas universidades. Atrele a isso seu passeio, e não o contrário.

XI-2 Como fazer um resumo estruturado?

Como explicado em X-20, em Anais de congresso compensa fazer um resumo nos


moldes estruturado. Mesmo que o formato exigido no evento seja o narrativo, seu
resumo deve incluir todas as partes do seu trabalho. Ou seja, não faça aqui um Resumo
Criativo (veja X-21).
Este resumo deve informar exatamente o conteúdo do trabalho. Deve conter a
justificativa para a realização da pesquisa, seu objetivo, o delineamento (sem incluir
detalhes de procedimento), os principais resultados e as conclusões. Lembre-se de
enaltecer a grande novidade de seu estudo!
Quando redigi-lo, não se preocupe com a extensão. Apenas escreva seu Resumo.
Quase certamente estará maior que o máximo permitido pelas regras do congresso.
Então agora comece a tirar os excessos. Conhecendo perfeitamente a lógica de um texto
científico (veja X-2), essa tarefa será fácil. Retire primeiro as palavras em excesso e, se
necessário reduzir ainda mais, retire posteriormente informações menos necessárias.

XI-3 Como preparar um pôster195 para congresso?

A apresentação de trabalhos na forma de pôsteres/painéis invadiu de forma crescente


os congressos científicos, particularmente a partir da década de 90. Acredito que isto se
deva a dois aspectos: 1) permite maior tempo disponível para discussão do trabalho e 2)
garante possibilidade de

195
Também chamado de Painel.

389

apresentação simultânea de vários trabalhos, encurtando o tempo total dessa atividade e


permitindo participação de mais autores.
Porém, fazer um bom pôster é uma arte. Em geral eles são muito poluídos, não
atraentes. Quando você vê uma sala imensa com centenas de pôsteres, às vezes até
desanima. Em geral eles têm um apelo visual péssimo. Vamos repensar essa construção.
Em meio a tantos apelos visuais, algo que destaque é necessário. Mas deve ser um
destaque convidativo. Você deve achar um jeito.
O Título deve ser curto e com palavras simples, pois por ali circulam pessoas de
várias especialidades. Imagine a velocidade com que devemos circular pelos pôsteres,
para que consigamos ler todos os títulos enquanto nos locomovemos.
O pôster deve ser limpo, com o mínimo de palavras. A idéia é a de que o pôster seja
como uma lousa que lhe ajudará a conversar com o colega interessado. Resultados
evidentes ajudam se colocados de forma bem destacada. Evite textos. Nada de
Introdução, muito menos Discussão. Sempre que possível, faça esquema, inclua fotos,
gráficos... tudo o que possa ser entendido facilmente numa olhada. Não precisa poluir
colocando os testes estatísticos, pois você mesmo poderá dar essa informação ao
interessado. Referências, nem pensar... é atestado de ignorância.

Informações que devem constar e formatos sugeridos

Título

Curto e em linguagem simples para pessoas de áreas correlatas. Letras grandes para
serem lidas de longa distância.

Autores

Siga as normas do congresso.

Instituições e e-mail

Siga as normas do congresso.

Apoio financeiro

Não se esqueça e, no caso do Brasil, pegue seu certificado.



390

Problema (ou questão) inicial

Se necessário, mostre a pergunta ou a problemática que originou a pesquisa. Não


redija um parágrafo. Em vez disso, faça algum esquema que sintetize essa informação.

Objetivo

Se possível, esquematize-o. Se for escrito, que seja com o mínimo de palavras (por
ex., não precisa escrever o clássico “o objetivo deste estudo foi”).

Delineamento

Faça um esquema que permita ao público entender o que você fez. Não precisa
incluir detalhes técnicos, apenas o delineamento (veja VII-13). Pense na lógica de sua
pesquisa e centre-se para passar essa informação.

Resultados

Somente o mínimo necessário. Leve outros detalhes com você, em pranchas, no i-


pad, no i-phone ou mesmo num laptop. Lembre-se que ao incluir figuras ou tabelas, elas
não são completas como aquelas de um artigo. Coloque apenas um título (curto) e o
mínimo de informações. Afinal, você está ali ao lado para explicações. Se os resultados
forem expressos no texto, limite-se ao mínimo possível de palavras. Se cabível, inclua
resultados escritos em formato de tabela. Se houver vídeos, poderá improvisar uma
ferramenta eletrônica para apresentá-lo nos casos de necessidade.

Conclusões

Como viu, não precisa escrever Discussão. Afinal, o que você foi fazer lá... levar o
pôster? Não, sua função ali é discutir com seu público. Portanto, inclua apenas as
conclusões. Liste-as de forma destacada.

391

XI-4 Quais cuidados tomar ao fazer uma comunicação científica oral?

Dentre os vários cuidados que devemos ter na comunicação científica oral, ressalto:

Sonoridade e ritmo

Fale pausadamente, conversando com a platéia. Dê tempo para que ela reflita sobre o
que você disse, como num diálogo. Varie a voz para dar ênfase a certos pontos do
discurso e não deixá-lo monótono. Fale com a certeza de que todos o ouvem com
clareza. Fale frases completas, sem “comer” o final das palavras e da frase. Fale com
convicção. Mas não seja monótono, jamais!
Se tiver um microfone, lembre-se que seu controle do público fica mais fácil. A
qualquer momento sua voz se impõe. Mas cheque se o microfone não está aberto
quando realizar comentários em paralelo. Cuide também para que a altura de sua voz
não oscile demais e nem que sons de sopro sejam freqüentes ao longo das frases. Com o
tempo tratará o microfone como um velho amigo.

Olhar indiscreto

Olhe para cada um do público. Como fazer isso? É simples, se a sala tiver
profundidade maior que a largura e se você não estiver colado à primeira fila, olhe para
cerca de 50 cm acima das cabeças das pessoas sentadas na última fila. Não fixe o olhar
num ponto, mas corra o olhar no eixo horizontal dessa medida. Se a sala é muito
comprida, não se esqueça de olhar os indivíduos do meio e da frente, sempre
percorrendo na linha horizontal. Isso dá a sensação de que você olha cada um,
individualmente. Jamais se concentre numa única pessoa, por mais bonita e atenciosa
que seja!

Manutenção da atenção

É comum os ouvintes se dispersarem ao longo de uma comunicação oral. Quando


tentam retornar ao assunto, já perderam o fio da meada. Uma forma de minimizar tal
tendência é voltar regularmente à temática principal, situando a posição presente em
relação à trajetória da exposição. Isso torna a exposição um pouco repetitiva, mas é
essencial, pois na comunicação oral o ouvinte não possui um texto que pode ser
folheado e revisto no momento em que precisar. As alterações no ritmo também
auxiliam a manutenção da atenção. Quando distúrbios externos acontecem e desviam a
atenção da platéia, não adianta revoltar-se contra a fonte perturbadora ou ignorá-la. É
mais aconselhável assumir que ela existe, que será passageira, incorporá-la ao discurso
e, com isso, redirecionar a atenção do público para a sua comunicação. Quando a falta
de atenção decorre de cansaço da platéia, cujo processo é antecipado por salas
desconfortáveis, uma alternativa interessante é anunciar o final da exposição; por
exemplo, dizer: para finalizar, vamos examinar apenas mais um aspecto e depois
poderemos fazer um intervalo.

392

Uso adequado de recursos audiovisuais

Recursos não são a oitava maravilha do mundo e, portanto, só devem ser usados
quando verdadeiramente representarem a melhor opção para comunicação de
determinado assunto. Infelizmente, muitas pessoas acham que os recursos, pelo impacto
tecnológico que representam, são, sem dúvida, a melhor forma de apresentação. Há
situações em que, de fato, são muito úteis; mas há momentos em que uma lousa ou
mesmo uma simples apresentação oral contemplam mais adequadamente a
comunicação. Quando recorrer a imagens, mesmo que desenhadas na lousa, elas
geralmente devem ser simples, sem muitos detalhes que possam desviar a atenção do
ouvinte.

O fator tempo

Como sua apresentação é o produto que você fornece a seus clientes (espectadores),
então deverá zelar pela sua qualidade em todos os aspectos. Assim, é uma questão de
respeito ao outro (e não antipatia) iniciarmos e encerrarmos nossas apresentações no
horário previamente combinado. Afinal, ninguém tem tempo sobrando para ficar numa
sala esperando pelo atraso de outros. Os horários são estabelecidos para que as pessoas
planejem adequadamente suas atividades. Uma atividade que não segue o planejado
pode interferir em outra. Isso é muito comum em congressos, nos quais as pessoas
iniciam as apresentações com vários minutos de atraso, expõem em tempo maior que o
previamente estabelecido e, com isso, impedem que sua platéia veja outras
apresentações, ou prejudicam o período destinado à discussão com a platéia, ou mesmo
invadem um período em que as pessoas se confraternizam com os colegas. De qualquer
forma, é uma intromissão indesejada na intimidade do espectador. Não temos esse
direito! O pior é que geralmente as exposições extensas são produto da falta de
objetividade do apresentador, visto que teve oportunidade para adequar o conteúdo da
apresentação ao tempo que lhe foi destinado. Além disso, na maioria dos casos, o que
nos fica das apresentações longas é que foi uma palestra de alguém que começou a falar
e não sabia mais quando parar.
Mesmo que o tempo previamente estabelecido não seja ultrapassado, é importante
que não seja muito longo. Apresentações que duram mais de 45 min freqüentemente
causam cansaço na platéia. Observe, por exemplo, a quantidade de recursos usados em
filmes para prender a atenção dos espectadores por cerca de 80 a 120 min. Mas note que
o cientista não tem todos esses recursos cinematográficos!
Embora existam exceções às críticas apresentadas acima, elas não podem ser o ponto
norteador, particularmente daqueles que se iniciam na atividade de comunicação
científica. Lembre-se que muitas vezes somos conhecidos pelas nossas esporádicas
apresentações, e não pelo trabalho cotidiano de pesquisa que realizamos: basta uma
apresentação equivocada para destruirmos anos de estudo e dedicação.

393

Eu, nós ou ninguém?

Em qual pessoa de conjugação devemos nos comunicar oralmente? A primeira


pessoa do singular traz vantagens da impressão de honestidade, visto que o indivíduo
assume sua posição central do discurso. Porém, também gera pedantismo, dependendo
do assunto e forma de expressão. A primeira pessoa do plural coloca o público como
parte integrante do discurso, uma espécie de cumplicidade. Mas também pode ser visto
como falsa modéstia, na medida em que o expositor diz nós para algo que sabidamente é
apenas dele; ou intromissão, pois coloca “palavras” na boca do público. O uso do tempo
impessoal é mais frio e distante do público. Embora bastante comum na linguagem
escrita, não devemos nos esquecer que as pessoas são, em primeira instância, humanas.
Durante uma argumentação, no entanto, uma das técnicas de persuasão implica o uso
da primeira pessoa do plural. Vejamos. Ao receber da platéia um ponto de vista do qual
o expositor discorda, mas cuja refutação não é tão simples, especialmente quando se
trata de uma situação de auditório, ele pode iniciar a argumentação concordando com a
idéia do ouvinte, mesmo sem concordar com ela. Falando na primeira pessoa do plural,
ele e a platéia se tornam cúmplices da mesma idéia, a qual pode receber alguns suportes
adicionais. Com isso, ficam todos do mesmo lado! De repente, como que de súbito, o
expositor apresenta um contra-argumento que conduz a platéia a recebê-lo com
surpresa. Gradativamente, o expositor vai explorando esse novo argumento, se
convencendo (e a platéia também) da validade desse contra-argumento. Com o uso
dessa técnica, o expositor não se opõe diretamente à idéia; ao contrário, alia-se a ela e
dessa aliança reconduz o pensamento para o ponto ao qual deseja chegar. É como usar a
técnica do judô (que canaliza o movimento do adversário para lhe dar o golpe) contra a
técnica do Box (bate de frente com o opositor).

A linguagem corporal

Tanto o apresentador dançarino quanto o estátua destoam e, portanto, dispersam a


atenção da platéia. Uma movimentação adequada é fundamental, pois o orador está
sendo visto. Da mesma forma como a voz, a gesticulação deve ser enfatizada e reduzida
nos momentos apropriados, de forma a auxiliar o processo de comunicação.
Outro aspecto a ser evitado é que o computador ou projetor seja usado como o
ancoradouro seguro para a insegurança do orador. Converse com tranqüilidade com a
platéia, gesticulando apenas para completar idéias e enfatizar ações. No ambiente, evite
luzes completamente apagadas na sala, pois prejudicam seu contato visual com o
público. Fale e olhe para as pessoas (eu disse, as pessoas, e não apenas uma).

394

O medo de errar

O que fazer quando cometemos equívocos? O que fazer quando percebemos um erro
no momento da exposição? Situações como essas não são freqüentes, mas podem
ocorrer. O fundamental é ter segurança suficiente para admitir os erros para a platéia,
caso contrário pode passar uma idéia de segurança e certeza que não condiz com o
discurso científico (veja II-l). Algumas vezes, particularmente com platéias muito
jovens, tais atitudes podem gerar desconfiança sobre a capacidade do orador. Mas essa é
uma lição que deve ser ensinada a todos, embora nem todos possam aprendê-la na
mesma ocasião.

A profundidade da apresentação

Em nosso país, há uma confusão entre “profundidade” e “clareza”. Se sua


apresentação é clara, vão dizer que foi superficial (afinal, até o ouvinte medíocre a
entendeu). Se é complicada, cheia de gráficos e tabelas, darão a impressão de que foi
profunda... e que o apresentador é, por conseguinte, bem preparado e um grande
especialista. Esse conceito não sobrevive num discurso internacional. Mas, para o nosso
mundinho, esteja atento a ele. Quando proferir palestra ou aula, deixe sempre um
pouquinho de complexidade para impressionar os amantes da confusão (eles podem ser
velhos irredutíveis, ou jovens prepotentes). Mas nunca deixe que essa complexidade
atrapalhe a clareza de sua exposição. Afinal, seu objetivo é passar, de forma simples e
clara, conceitos profundos. Tenho definido isso como Profundidade Simples196, ou seja,
explica-se de forma simples algo complexo. O educador que não consegue fazer isso
geralmente está escondendo sua incompreensão do assunto por meio de palavras e
exposições complexas.

XI-5 Como preparar uma apresentação PowerPoint mais eficiente?

O recurso visual do datashow, particularmente associado ao PowerPoint, tem


enriquecido muito as apresentações, além de ser um sistema que permite correções até
instantes antes da exposição. Os norteamentos gerais dados sobre a preparação de
pôsteres (XI-3) cabem perfeitamente aqui. Acrescento algumas coisas.
O uso exagerado de efeitos especiais mais atrapalha do que ajuda na atenção do
público. O uso de sinais sonoros deve ser evitado, exceto em casos muito especiais para
um momento em que se espera que a platéia esteja começando a ficar cansada.

196
Exposto na primeira orelha do livro de Volpato e Barreto (2011).

395

Inclusão de vídeos, desde que curtos (poucos minutos) e de boa qualidade, podem
ajudar e tiram a monotonia de um único orador. De todos os recursos, o uso de slides no
PowerPoint é o mais usado e de fácil aplicação. Vejamos uma forma de melhorar esse
tipo de apresentação.
Um dos medos de todo apresentador, particularmente no início da carreira, é que o
assunto a ser comunicado termine antes do tempo máximo da apresentação. Você tem 1
h hora para falar e com 30 min acabou tudo o que preparou! Embora eu não veja
grandes problemas que isso aconteça, passa a ser mais uma fonte de complicação para a
preparação da apresentação. Devido a esse medo, é muito comum que se preparem as
apresentações com excesso de conteúdo. Ou seja, prepara-se uma palestra de 90 min
que será ministrada em 45 ou 60 min.
Quando essa palestra é preparada com uma seqüência simples de slides no
PowerPoint, a necessidade de avançar rapidamente alguns slides destrói totalmente a
apresentação. O apresentador passa rapidamente por slides devido à falta de tempo. Ou
seja, está tornando público seu atestado de falha no preparo e apresentação da palestra.
Para evitar isso, um recurso interessante é não tornar sua exposição uma seqüência fixa
de slides. Para isso, o uso de hiperlinks é fundamental.
Usando o PowerPoint, quando você coloca no slide algum texto, figura ou forma,
poderá ligá-lo a algum outro arquivo (via hiperlink). Ou seja, ao escrever uma palavra
qualquer (por ex., Ciência), ela aparece dentro de uma caixa (invisível). Selecionando
essa caixa, pressione agora o mouse com o botão da direita. Com isso, abre uma janela
com algumas opções, sendo uma delas “hiperlink...”. Ao clicar no hiperlink, abre-se
outra janela com opções para você escolher arquivos, endereços da Internet ou um slide
de sua própria apresentação. Essa escolha significa que, quando seu slide estiver em
“modo apresentação”, ao clicar na palavra “Ciência” o programa abre o link que você
escolheu (arquivo, endereço da Internet ou slide de sua apresentação) e o executa.
Quando essa execução terminar (por ex., um filme ou um arquivo com série de 5 slides),
o programa retorna normalmente ao seu slide principal, onde estava a palavra que você
clicou (Ciência) e você continua sua apresentação.
Vamos examinar como isso ajuda. Digamos que queremos falar os seguintes tópicos,
nessa seqüência:

o O que é Ciência?
o Diferença entre Ciência Natural e Ciência Formal
o O que é a base empírica na Ciência Natural?
o Como essa estrutura afeta o texto científico?

Digamos que para cada um desses tópicos você preparou 5 slides para auxiliar na sua
exposição. Então, você pode montar essa apresentação num único arquivo, com a
seguinte estrutura.

396

o O que é Ciência?

o Slide 1
o Slide 2
o Slide 3

o Diferença entre Ciência Natural e Ciência Formal

o Slide 1
o Slide 2
o Slide 3
o Etc...

Com essa seqüência de slides, poderá facilmente incorrer no erro apontado no início,
pois para chegar no slide 3 do último tópico terá que percorrer todos os slides
intermediários até lá. Vamos usar o sistema de hiperlinks.
Faça um arquivo para cada grupo de 3 slides; um para “o que é Ciência”, outro para
“Diferença entre Ciência Natural e Ciência Formal” e assim por diante. Chamarei esses
arquivos de “arquivos de apoio” (cada um inclui seus respectivos três slides). Agora
faça um arquivo que conste apenas seus tópicos principais, assim:

o O que é Ciência?
o Diferença entre Ciência Natural e Ciência Formal
o O que é a base empírica na Ciência Natural?
o Como essa estrutura afeta o texto científico?

Chamarei esse arquivo dos tópicos principais de “arquivo mestre”. Nesse arquivo
mestre, faça no primeiro texto (O que é Ciência) o hiperlink ligando-o ao arquivo de
apoio (3 slides) correspondente. Faça isso com os outros três textos. O que ocorre
agora?

Quando você colocar seu arquivo mestre em “modo apresentação”, ao passar o


cursor sobre qualquer um dos seus 4 itens, aparecerá um símbolo (por ex., uma
mãozinha) que indica que ali há um hiperlink. Ao clicar nele, abrirá seu primeiro
arquivo de apoio. Quando os três slides do arquivo de apoio forem apresentados, a
apresentação retorna ao seu arquivo mestre, onde estão os 4 tópicos. Então você pode
agora clicar no segundo (Diferença entre Ciência Natural e Ciência Formal), o que o
conduzirá ao arquivo de apoio desse tópico, e assim sucessivamente.

397

Qual a vantagem deste sistema? É simples, você pode entrar nos arquivos de apoio,
ou não. Com isso, poderá falar sobre os temas do arquivo mestre com mais (entrando no
arquivo de apoio) ou menos tempo. Além disso, se teclar Esc na apresentação do slide 2
do arquivo de apoio, retornará imediatamente à apresentação do arquivo mestre. A
platéia não saberá se você pulou um arquivo de apoio ou slides dele. Esse sistema pode
ser complexado, criando arquivos de apoio em itens e subitens à sua vontade. Basta
apenas criatividade.
Uma derivação desse sistema pode ser usada para pular slides no arquivo mestre.
Você pode colocar um desenho num canto do arquivo mestre, como se fosse apenas um
enfeite, mas que está com hiperlink para conduzi-lo a dois slides à frente. Assim,
dependendo da necessidade, poderá pular slides sem que a platéia perceba. Ou seja,
você controla o quanto falará em cada apresentação e terá sempre como terminar na
hora certa.
Outra variante dessa estratégia é a construção do slide mestre com itens, de forma
que cada slide possua mais de um item. Por exemplo:

Arquivo Mestre

Slide 1

Abordagens sobre o mundo natural O que é Ciência?


Ciência Natural x Ciência Formal

Slide 2

Importância da base empírica


A questão da objetividade

Slide 3

Ciência e Tecnologia
Revistas Científicas
Revistas de Divulgação Científica
Academia x Público não Científico

Faça agora, em cada um desses três slides, uma “animação personalizada” em cada
um desses tópicos, de forma que eles apareçam na tela quando você clicar o mouse.
Com isso, ao abrir o slide 1, o tópico “Abordagens sobre o mundo natural” pode
aparecer de imediato, ou aparecer apenas

398

quando você clicar (essa opção não faz diferença no momento). Você pode falar sobre
ele, recorrendo ou não ao hiperlink desse tópico (como visto anteriormente). Agora você
pode decidir por dois caminhos: ir para tópico seguinte desse slide (O que é Ciência) ou
ir para o próximo slide (e os ouvintes não saberão que havia os outros dois tópicos do
slide 1). Para fazer esse salto para o próximo slide, sem completar os tópicos do slide
que está sendo apresentado, faça um hiperlink. Por exemplo, o hiperlink poderá estar
num desenho dentro do slide mestre (por ex., um no slide 1, outro no slide 2 etc.) ou
mesmo como um sinal invisível.
Para criar o sinal invisível, você pode simplesmente colocar um desenho (retângulo)
sem bordas e sem preenchimento de fundo. Faça nesse desenho o hiperlink para onde
deseja ser conduzido. No modo apresentação, esse retângulo não aparece, mas você
sabe que ele existe em certa região padronizada de seu slide mestre. Quando passar o
cursor por ela, a indicação de hiperlink aparece. Você pode usá-lo ou não. Ele pode
conduzi-lo a um slide mais à frente no arquivo mestre, ou mesmo a algum arquivo de
apoio. Com isso, sua apresentação fica com recursos que lhe permite falar, por exemplo,
por 2 h, ou em apenas 30 min. E toda essa variação de tempo sem que a platéia perceba
que você pulou algo.
Imagine o efeito disso numa aula de concurso público. Acaba o problema de faltar
assunto, ou mesmo de terminar antes do prazo. Você tem o perfeito controle de sua
apresentação. E a preparação das aulas fica muito mais simples. Veja esta estratégia.
Você prepara apenas os slides de apoio. Faça vários arquivos, cada um mais
específico possível. Ou seja, ao invés de fazer um arquivo que aborde um tema mais
complexo, faça um arquivo para cada conceito relevante. Com esse conjunto de
arquivos de apoio para preparar determinada aula ou palestra, sua tarefa será apenas a
de construir o arquivo mestre e fazer os hiperlinks aos arquivos de apoio
correspondentes.
Além do exposto acima, você pode criar muitas estratégias para apresentações. Note
que cada recurso de informática, mesmo que seja simples, deve ser explorado ao
máximo, aumentando sua eficiência. Outra vantagem de trabalhar com os arquivos de
apoio e hiperlinks é que, ao perceber falha num arquivo de apoio, ao corrigi-la, estará
corrigida para qualquer arquivo mestre (apresentação) que a utilize.
Mas, atenção, este sistema de hiperlink exige precauções. Note que você deve
controlar a apresentação, pois você sabe onde estão os links e sabe quando deve usá-los,
ou não. Assim, você deve ficar próximo ao computador, ou usar um mouse sem fio
(para este uso, treine bastante antes). Outro cuidado é que você leve todos os seus
arquivos num laptop, ou mesmo num pendrive. Se copiar todos os seus arquivos num
computador da sala de apresentação, certifique-se que os links não foram perdidos.
Certifique-se, também, de que seus arquivos foram devidamente excluídos dessa
máquina ao final, porque roubo de apresentações ainda é muito comum. E só quem foi
roubado sabe o peso que isso tem.
Cabem agora três comentários sobre a construção de cada slide. A escolha das letras,
o número de palavras em cada slide e o contraste entre fundo e letras.

399

Não use letras pequenas e de baixa definição. Sugestão: não use letras rebuscadas
(Chiller), nem com linhas finas e grossas (Andalus), pois na apresentação ficam difíceis
de serem lidas (nem todo projetar tem a definição que você gostaria). Prefira letras bem
definidas (Arial). Não use tamanho menor que 28 (depende da fonte, mas com fonte
Arial, o tamanho 28 lhe dá uma referência).
Nunca coloque excesso de palavras. Escolhendo a letra recomendada acima, já estará
impedido de escrever muito. No slide você coloca palavras de apoio ao ouvinte, mas
você conversará com ele. Nunca use o slide para colocar textos que você não tenha
memorizado. Se não sabe, não fale. Lembre-se de que toda apresentação com suporte de
informática deve se sustentar também sem esse apoio. Imagine que o projetor quebrou,
ou que há falta de energia. Caso essas panes não possam ser resolvidas, você terá que
apresentar sua aula ou palestra sem os recursos. Portanto, deve saber e ter memorizado
todo o conteúdo. Use o slide apenas como suporte. É evidente que alguns efeitos
tornariam sua palestra mais elucidativa e agradável, por isso é importante também ser
um excelente orador, conquistando a platéia com seu discurso.
Outro cuidado importante na apresentação PowerPoint é evitar que as luzes da
projeção atrapalhem. Uma forma interessante é usar fundo claro e letras escuras em
apresentações em ambientes relativamente claros; fundo escuro e letras claras em locais
bastante escuros para projeção. O fundo claro num ambiente escuro é muito agressivo
aos olhos da platéia, que ficará cansada mais rapidamente.

XI-6 Que cuidados tomar ao convidar um palestrante?

Convidar um palestrante não é tarefa fácil. Primeiro envolve a escolha da pessoa


certa. Depois o manejo da situação. Vamos ver alguns aspectos a serem pensados e
cuidados nessa tarefa. Afinal, trazer palestrantes tem sempre a chance de acréscimos
importantes para o público receptor. E pode estar certo que há também muito acréscimo
de conhecimento ao convidado.

Erro do Combinado Não é Caro – Zele para deixar todas as condições bem claras no
momento do convite. Fique sempre à disposição para prestar esclarecimentos. De
preferência, combine por e-mail.

Erro do Convite Possível – Se convidou, é porque essa pessoa era sua melhor opção.
Caso tenha sido sua 2a, 3a ou 4a opção, guarde isso com você. Afinal, dadas as suas
possibilidades reais, sua 4a opção se transformou obrigatoriamente em Ia opção.

Erro da Fama e Atenção – Se convidou mais de uma pessoa para um mesmo evento
(por ex., mesa redonda ou grupo de minicursos ou palestras), não privilegie alguns
em detrimento de outros. Todos eles são importantes para seu evento, mesmo que
alguns convidados sejam mais famosos.

400

Uma forma de se transgredir a esta regra é disponibilizar salas melhores para os mais
famosos e salas mais modestas, com equipamentos mais precários, aos da casa ou
menos famosos. É comum cometer o erro da Fama e Atenção quando, num evento,
embora haja várias palestras, ou minicursos, apenas alguns são destacados na página
principal do evento. Isso não significa destacar uma conferência de abertura, pois ela
já é um destaque e será proferida por alguém de destaque. O erro é destacar dentre
atividades que, em princípio, teriam o mesmo peso.

Erro do Custo Desviado – Trata-se de pedir que o convidado pague por suas
despesas. Ora, se ele é convidado, ele deve ser importante para o evento (sem ele, o
evento não ocorreria, ou não teria o mesmo brilho). Exigir que o convidado pague
suas despesas é absurdo. Apesar disso, essa é a regra em muitos eventos
internacionais197. O mérito é receber o convite e, portanto, as pessoas se esforçarão
por aceitar o convite. Pessoas mais experientes, geralmente, já têm dinheiro de
projetos para esse fim. Mas isso só é válido no caso de congressos muito famosos e
regulares. No Brasil essa ainda não é a regra e o organizador deve possuir os meios
para financiar a vinda dos convidados. Ao arcar com esse ônus, você deve fazer
pagamentos que valorizem o convidado. Temos a visão típica de subdesenvolvido,
pois na administração do dinheiro público somos geralmente tratados como bandidos
até que se prove o contrário. Isso dificulta o uso do dinheiro e, algumas vezes, nos
coloca em situações constrangedoras frente aos convidados. Mais ainda, note que a
sofisticação da recepção (nível de hotel, de alimentação, transporte etc.) varia muito
em função das áreas. Enquanto em algumas você pode pagar um lanche na cantina,
ou mesmo na rodoviária, em outras espera-se, no mínimo, um hotel 5 estrelas e
demais atividades condizentes. Assim, se convidar alguém que seja fora de sua área,
veja bem o padrão da área do convidado. Independentemente de área, conforme o
nível do palestrante, ele poderá estar habituado a certo nível de condições. Use o
nível mais alto de um convidado para balizar o tratamento com todos os convidados
desse evento198. A situação é simples: se vai fazer um evento, faça direito. Se não for
possível, então não faça.

Erro da Agenda Equivocada – O convidado chega após o horário de sua


apresentação. Parece hilário, mas acontece. Em minha experiência pessoal, já fui a
evento ministrar palestra tendo recebido passagem aérea para o dia seguinte ao de
minha palestra!

197
Não me refiro aos vários eventos internacionais, muitos deles chineses, que apareceram mais
recentemente. Você, um mero desconhecido, recebe convite para proferir uma palestra num evento
internacional. Pela sua posição, isso o enaltece e sobe à cabeça! Mas o convite lhe diz que, por ser
convidado, não terá que pagar a inscrição no evento, mas que as outras despesas (passagens, hospedagem
e alimentação) ficam por sua conta. Ora, aí é fácil fazer evento. Não caia nesse conto. Apesar disso, sei
que muitos acabam indo e, ao final, incluem no currículo a palestra internacional que ministraram... mas
não incluem a que custo! Você pode nos enganar, mas ao colocar a cabeça no travesseiro, saberá que é
uma grande farsa.
198
Por acaso você já viveu a situação de que alguns (às vezes os que vem do exterior) ficam no hotel 5
estrelas e os brasileiros, ou os menos famosos, ficam nos hoteizinhos ao redor?

401

Erro de Estacionamento – Se seu convidado vem de carro próprio, providencie a ele


todas as facilidades de estacionamento, particularmente nos grandes centros, onde
isso pode significar uma perda considerável de tempo.

Erro de Endereço – esteja certo de que o convidado possui o endereço suficiente


para chegar até o local do evento, o que inclui a sala de apresentação e o horário
exato. Não esqueça de deixar um contato telefônico para qualquer emergência.

Erro de Horário – Estabeleça com clareza qual será a duração da apresentação,


indicando se isso inclui período de debate ou não. No momento do evento, zele para
que o horário seja respeitado rigorosamente. Nunca permita que o atraso no início
prejudique o tempo destinado ao palestrante. Ele preparou sua fala para determinado
tempo e, por esses atrasos, poderá ter que resumir.

Erro de Equipamento – certifique-se de que o local do evento contém todos os


equipamentos requisitados pelo convidado. Note que possuir microfone é
fundamental, principalmente para exposições com mais de 50 pessoas, em ambientes
de acústica ruim e quando a apresentação exceder 45 min. A tela de projeção deve
ser ampla, pois você não sabe qual será o tamanho das letras usadas pelo palestrante
em seus slides. Se os equipamentos lhe parecem obsoletos, informe isso ao
palestrante o mais cedo possível, bem antes do evento.

Erro de Bem-estar – esmere-se para que o local do evento seja agradável a todos,
inclusive ao expositor. Disponibilize água ao palestrante (que não seja gelada para
não prejudicar a fala). Cuide para que ele tenha um coffee break (algumas vezes, na
tentativa de atender, nesse horário, alguns dos ouvintes, acaba sem tempo hábil para
esse suporte). Uma forma interessante é dar ao convidado um coffee break
individualizado, mas sem tolher sua chance de alguma interação com os ouvintes.
Afinal, poderá ser uma das poucas oportunidades que esse público terá para alguma
conversa com esse convidado.

Erro de Informação – Ao apresentar o convidado, faça um breve resumo de suas


atividades principais, de forma que isso justifique e enalteça sua presença no evento.
Cuidado para não errar nessas informações. Muitos dizem errado o nome da
instituição, outros erram ao falar algum nome em outro idioma (por ex., nome de
uma instituição). Por isso, prepare antes. Se precisar fazer a apresentação em inglês e
não dominar o suficiente desse idioma, peça a alguém que fale em inglês para fazer
isso. Não fique gaguejando com um inglês sofrível. Cuidado também para que a
apresentação não seja mais longa que a fala do convidado. Se estiver apresentando
vários convidados, não transpareça maior emoção com um convidado em relação a
outros... todos foram convidados e devem ser tratados igualmente.

Erro de Amparo – Nunca deixe o ministrante sozinho, podendo lhe parecer que ele
está meio “perdido”. Acompanhe-o, ou providencie alguém para fazer isso. Mas
tenha a sensibilidade para perceber quando isso está muito invasivo.

402

XI-7 Que cuidados tomar ao ser convidado para ministrar cursos/palestras?

Ser convidado para um evento é, sem dúvida, motivo de alegria e satisfação. Você
foi escolhido entre vários. Seu trabalho está sendo respeitado e considerado. Assim,
trate muito bem tanto quem lhe convidou quanto o público ali presente. Lembre-se de
que quem lhe convidou teve um trabalho imenso para tornar sua vinda possível (convide
alguém e verá como o que parece simples se torna complicado, particularmente em
nosso país). Posso alertá-lo quanto a alguns pontos importantes nessa relação.

a) Antes de aceitar, veja se você é a pessoa indicada para a apresentação. Se não


for, indique alguém.

b) Agradeça, no início e final da apresentação, mas sem excessos. Lembre-se que


sem o convite você não poderia estar transmitindo suas idéias àquela platéia.

c) Em sua agenda, reserve também o tempo que despenderá se transportando de sua


origem ao local do evento. Cuidado: se envolver voo, reserve tempo real,
prevendo engarrafamentos, um pneu furado, e ainda suficiente para chegar cerca
de 1 h antes do voo (nacional; 2 h antes do internacional). Nunca pense que
imprevistos não acontecem com você (super-homem é apenas um personagem
de ficção!). Se possível, faça o check-in pela Internet para poupar tempo (e leve
a confirmação com você; no i-phone, no i-pad ou impresso).

d) Não seja prepotente, você já foi destacado ao ser convidado. Mas não precisa
usar falsa modéstia. Seja natural, como você é. Elegância não faz mal a
ninguém.

e) Limite-se ao tempo que lhe foi destinado.

f) Leve sempre novidades. Os ouvintes não querem ouvir mesmices. Se não tem
novidades, não deveria ter aceitado o convite.

g) Vista-se adequadamente em respeito aos ouvintes. Na dúvida, eleve o padrão.



403

Literatura Complementar

Alves AC. 2011. Lógica, pensamento formal e argumentação. 5a ed. Editora Quartier Latin.
Aber JM, Papavero N. 1991. Teoria intuitiva dos conjuntos. Editora McGraw-Hill.
Aranha MLA, Martins MHP. 2003. Filosofando: introdução à filosofia. Editora Moderna.
Barbosa RLL (org.). 2004. Trajetórias e perspectivas da formação de educadores. Editora
Unesp.
Baronett S. 2009. Lógica, uma introdução voltada para as ciências. Editora Bookman.
Bickenbach JE, Davies JM. 1997. Good reasons for better arguments; an introduction to the
skills and values of critical thinking. Broadview Press.
Budden AE, Tregenza T, Aarssen LW, Koricheva J, Leimu R, Lortie CJ. 2008. Double-blind
review favours increased representation of female authors. TRENDS in Ecology and
Evolution 23(l):4-6.
Carraher DW. 1999. Senso crítico. Editora Pioneira.
Coracini MJ. 1991. Um fazer persuasivo: o discurso persuasivo da ciência. Pontes Editores,
Editora da PUC.
Costa C. 2005. Filosofia da mente. Jorge Zahar Editor.
Covey SR. 2005. Os 7 hábitos das pessoas altamente eficazes. Editora Best Seller.
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Epstein I. 2002. Divulgação científica; 96 verbetes. Editora Pontes.
Genett DM. 2008. O poder de delegar. 6ª ed. Editora BestSeller.
Giambiagi F, Porto C (org.). 2011. 2022: propostas para um Brasil melhor no ano do
bicentenário. Editora Campus/Elsevier.
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Gontijo S. 2004. O livro de ouro da comunicação. Editora Ediouro.
Gopen GD, Swan JA. 1990. The science of scientific writing. American Scientist 78: 570-8.
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Editora Perspectiva.
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Khun TS. 1962. The structure of scientific revolutions. The University of Chigaco Press.

404

Kida T. 2007. Não acredite em tudo o que você pensa; os 6 erros básicos que cometemos
quando pensamos. Editora Campus.
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Llosa MV. 2006. Cartas a um jovem escritor: toda vida merece um livro. Editora Elsevier.
O Estado de São Paulo. 1997. Manual de redação e estilo. Org. e ed. por Martins E. O Estado
de São Paulo.
Oliva A. 2003. Filosofia da ciência. Jorge Zahar Editor.
Polito R. 1988. Gestos e postura para falar melhor. Editora Saraiva.
Prigogine I. 1996. O fim das certezas. Editora Unesp.
Rodrigues E. 2008. Histórias impublicáveis sobre trabalhos acadêmicos e seus autores. Editora
Planta.
Russell B. 1975. Meu desenvolvimento filosófico. Zahar Editores.
Russell B. 1979. O impacto da ciência na sociedade. Zahar Editores.
Russell B. 2003. O elogio ao ócio. Editora Unesp.
Schnitman DF (org.). 1996. Novos paradigmas, cultura e subjetividade. Editora Artes Médicas.
Sokal A, Bricmont J. 1999. Imposturas intelectuais: o abuso da ciência pelos filósofos pós-
modernos. Editora Record.
Spencer J. 2002. Quem mexeu no meu queijo? 33ª ed. Editora Record.
Stengers 1.1990. Quem tem medo da ciência? Ciência e poderes. Edições Siciliano.
Volpato GL. 2010. Dicas para redação científica. 3ª ed. Editora Cultura Acadêmica.
Volpato GL. 2011. Método lógico para redação científica. Editora Best Writing.
Watts DJ. 2011. Tudo é óbvio: desde que você saiba a resposta. Editora Paz e Terra.

405

CAPÍTULO XII

A Formação de Cientistas

XX-1 Por que formar cientistas?

Um povo não se desenvolve sem conhecimento. É evidente que o conhecimento


técnico não basta. É preciso muito mais. É preciso conhecimento que permita relações
humanas, éticas e morais. Mas também são precisos conhecimentos técnicos para
resolução de problemas imediatos e a médio prazo. Parte desse conhecimento se reflete
nas tecnologias disponíveis nessa sociedade.
Nesse quadro geral, a formação de cientistas tem um papel importante. O papel da
ciência, esboçado em II-1,II-12, II-13 e II-14, e o conceito sobre o que é um cientista
(veja I-1 e XII-2) indicam essa relevância. Apesar disso, a formação técnica do cientista,
enfatizada e prati¬cada nos programas de pós-graduação, não tem cumprido esse papel.
Ela é importante e tem seu nicho, mas não forma um cientista dentro de uma visão mais
ampla de profissional.
A dependência de conhecimento entre países tem reflexos drásticos. Enquanto
muitos se preocupam com a estabilidade econômica do país, a independência intelectual
garante autonomia, inclusive para alcançar e manter a estabilidade econômica. Por isso
o investimento na formação de cientistas. Óbvio que junto a essa formação deve vir um
investimento para dar condições de esses cientistas atuarem e competirem
internacionalmente. Esse investimento vai além de questões econômicas, incluindo
também desburocratização de caminhos para agilizar as pesquisas.

406

O Brasil não é um país de ciência. Mesmo que nos anos mais recentes a ciência tenha
ganhado mais espaço, isso é ainda muito incipiente e, aparentemente, guiado mais pela
aparência do que pela essência. Precisamos acreditar na ciência como meio
transformador da nação, do homem e do mundo. Fazer esse investimento é o mesmo
que investir na educação básica do povo como elemento de transformação. Como não
investimos solidamente na educação básica, também não investimos pesadamente em
ciência.
Aqui vale uma ressalva. Investir em ciência e em educação não é criar escolas e abrir
vagas. É levar os sistemas educacionais à excelência (numa comparação internacional) e
torná-los acessíveis. Do contrário, uma disponibilização do ensino de forma acelerada,
sem planejamento, contribuirá, ano a ano, para o naufrágio desse próprio sistema199.
No passado, as classes economicamente mais privilegiadas transferiram seus filhos
da escola pública (ensino fundamental e médio200 de excelente nível) para a privada.
Isso catalisou uma catástrofe ainda maior para o ensino público pré-universitário,
chegando aos níveis de hoje.
No setor universitário, vemos que a migração também existe, mas não para nosso
setor privado, que está, com raras exceções, bem aquém do setor público. Transferem-se
para boas universidades do exterior. Em 2009, cerca de 24 mil brasileiros estavam
estudando em universidades no exterior, a maioria em universidades; em 2010 houve
aumento de 15% nesse número201. Seja como for, o Brasil não é um país de ciência e
tampouco de educação. Sem elas, a independência e autonomia do país não
sobreviverão. Portanto, esse é o desafio. Formar cientistas é um pedaço desse quadro
mais geral. Não pode haver desenvolvimento sério, sustentável e independente sem um
povo mais educado e cientistas competentes.
A ciência gerada resolve problemas, presentes ou futuros. Ela é uma ferramenta
fundamental para nossa espécie. A evolução do método científico mostra que esse
pensamento minimiza as chances de erro. Com isso, temos um sistema que nos dá maior
conhecimento do mundo natural. Isso se reflete no nosso controle sobre esse mundo.
Conhecimento parcial, ou equivocado, coloca em risco nossa própria espécie.
Teoricamente, um corpo de conhecimentos sólidos deveria dar diretrizes para os
governos. Veja que antigamente vários reis se apoiaram no saber de seu grupo de apoio.
Hoje isso

199
Veja um exemplo em nosso país. Embora todos sejamos solidários à idéia de ensino superior de
ótima qualidade a todos os brasileiros, se isso não é feito de forma programada, ninguém terá ensino
qualificado. Não basta abrir as portas da universidade e receber pessoas... é imperativo que se zele para
que a qualidade do ensino não seja deteriorada pelo crescente número de alunos (o que envolve investir
em professores, pessoal de suporte e estrutura das universidades).
200
Antigamente, curso primário (1ª à 4ª séries), ginásio (5ª à 8ª séries) e colegial (3 anos equivalentes
ao ensino médio atual).
201
Revista Veja. http://veja.abril.com.br/noticia/educacao/o-caminho-rumo-as-melhores-
universidades-do-planeta

407

está meio estranho, pois os apoios são constituídos pelo sistema de barganha econômica
entre grupos restritos. Não ter conhecimento já é ruim; tê-lo e não usá-lo é a mais pura
ignorância202.
Em conclusão, formar cientistas é dar base e referencial para decisões da nação. É
gerar conhecimento, tanto no nível técnico quanto para a compreensão mais profunda
das dúvidas humanas.

XII-2 Quais os requisitos para ser um cientista?

Um Perfil Básico

Considerando o que um cientista deve fazer, fica fácil perceber que deverá ter boas
habilidades nas seguintes características:

a) criatividade – deve saber fazer perguntas; saber questionar o que está estável;
não se conformar com o que vê; pensar alternativas fora dos padrões
convencionais.

b) raciocínio crítico – deve saber criticar as informações que recebe; duvidar de


que o estabelecido esteja correto, indicando falhas racionalmente; ter uma
excelente argumentação lógica.

c) dedicação ao estudo – não se assustar se tiver que estudar por 15 h em alguns


dias; sentir prazer em aprender;

d) autodidatismo – tem que ter motor de arranque, não pode achar que o
conhecimento vem da boca dos outros; deve ir atrás do conhecimento, pesquisar,
ler, aprender, conhecer, estudar.

e) força de vontade – fundamental, pois a atividade, embora apaixonante, pode ser


trabalhosa e demorada.

f) empreendedorismo – veja, ao final desta questão, o Perfil Empresarial.

202
Uma visita às discussões sobre o novo código florestal brasileiro pode nos dar alguns insights sobre
este tema.

408

O Perfil dos Grandes Mestres

Segundo Beveridge (1981), há cinco traços da personalidade que são característicos


dos cientistas excepcionalmente produtivos, pioneiros, que abrem novos caminhos.
Mesmo com a defa-sagem de tempo, esses perfis continuam atuais. Resumo esses traços
a seguir.

a) Curiosidade intelectual: são pessoas extremamente curiosas que não se


contentam em entender parte dos fenômenos. Indagam sobre tudo
freqüentemente, sentem prazer na aventura de descobrir coisas novas e se
preocupam com as razões subjacentes que fazem as coisas serem como são.

b) Entusiasmo: gostam realmente do trabalho que realizam. Há paixão no que


fazem! O entusiasmo é contagiante. Sua emoção varia muito em função dos
resultados do trabalho que realizam; é cheia de altos e baixos.

c) Independência intelectual: confiam muito no seu próprio julgamento e, portanto,


não são muito influenciáveis por outras pessoas. A novidade exige contestação,
rebeldia, posturas ousadas. A crença na sua idéia é muito forte. A autoestima é
fundamental aqui e, certamente, faz parte da formação do indivíduo.

d) Dedicação: dedicam-se bastante ao trabalho árduo, pouco tempo restando à


família e recreações. Alguns chegam a trabalhar cerca de 17 h por dia! A
dedicação pressupõe acreditar em metas a médio e longo prazo. Isso também é
um aprendizado ao longo da vida.

e) Ambição: desejam fama e querem crédito às suas reivindicações. Valorizam


bastante a publicação de suas descobertas e o reconhecimento dessa prioridade.
Supervalorizam suas idéias e realizações. Vontade de crescer e não se contentar
com pouco faz parte do ensino. O quanto essa ambição é adequadamente
administrada pelo indivíduo é fruto de toda sua interação com sucessos e
frustrações, o que se aprende desde cedo.

Os traços acima descritos não garantem bom desempenho científico. Ou seja, tê-los é
condição necessária, mas não suficiente. O perfil apresentado mostra envolvimento
intelectual com o problema investigado e substrato rico para a busca de respostas
ousadas.
Apesar de tudo isso, algumas dessas características podem também levar o cientista
ao desastre total. A independência intelectual pode se transformar em obstinação pela
própria idéia. A ambição pode colocar a busca pelo conhecimento em segundo plano.
Esses pontos têm que ser analisados com cautela.
Uma novidade científica, vista num esquema conceituai inadequado, pode ser
considerada equivocada. Às vezes é necessário alterar nosso esquema conceituai para
compreendermos a genialidade de uma idéia. Mendel e Darwin não foram aceitos pela
comunidade científica senão muitos anos depois de divulgarem suas idéias. Ou seja, não
lhes faltou desmotivação externa, mas

409

foi a independência intelectual que lhes garantiu insistir. Por outro lado, essa
persistência pode ser intransigente e manter um equívoco do cientista. Isso mostra
claramente que a independência intelectual, por si só, é insuficiente para um cientista e
só é eficaz quando existe, de fato, uma boa idéia (veja V-7). Mas como saber?
A ambição é importante, pois o cientista luta pelo reconhecimento de suas idéias.
Afinal, na comunidade científica os dados não falam por si! As estratégias de marketing
auxiliam mais do que a ingênua crença na objetividade científica pode crer (veja
Timpane 1995). Em contrapartida, essa ambição pode levar o cientista a cometer
fraudes, conscientemente ou não, a fim de manter suas idéias. Pode também
menosprezar importantes dados falseadores de sua idéia e, assim, retardar maiores
progressos científicos (veja LX-1).
A dedicação extrema, se conduzida para a ultraespecialização, pode mais cegar do
que clarear as idéias do cientista. Além disso, pode acarretar desestabilização da vida
particular do indivíduo, o que pode trazer desajustes psicológicos e sociais que o
destruirão.

O Perfil Empresarial

Em continuidade à busca do entendimento sobre o perfil de um cientista de bom


nível, vamos considerar a trajetória de um cientista como a de um empresário. Quando
coloco desta forma, algumas pessoas não entendem o que há de comum entre esses dois
perfis e, algumas vezes, acham estranha a analogia. Mostrarei que é mais que uma
analogia, pois a similaridade dos dois sistemas (ciência e empresa) não é estabelecida
apenas por analogias, mas por serem, de fato, partes de um único sistema mais geral da
atividade humana.
O cientista tem um empreendimento, que envolve construir conhecimento novo e
formar cientistas. O restante são meios para isso. Como qualquer empreendimento, fazer
ciência exige planejamento e estratégia. Nesse sentido, cientista e empresário fazem
parte de um mesmo processo. Note que a ciência e o meio empresarial requerem
habilidades comuns, pois visam produtos epistemologicamente similares. Ambos visam
a construir novidades, sejam conceituais ou produtos práticos. Assim, ambos requerem
criatividade e crítica convivendo de forma integrada.
Uma confirmação de que ciência e empresa fazem parte de um sistema único e maior
é obtida quando vemos que características de pessoas empreendedoras, tão importantes
para o meio empresarial, são igualmente fundamentais para o cientista. Veja abaixo
algumas características de um empreendedor203.

203
As características foram obtidas do Sebrae... as interpretações e exposições são do autor deste livro.

410

1 – Consegue transformar as idéias em realidade. Veja que boas idéias são comuns
a muitas pessoas, mas apenas as empreendedoras as transformam em atos
concretos. Na ciência, não basta ter uma boa idéia; o cientista precisa testá-la
empiricamente, publicar o que fez e conseguir aceitação pela comunidade
científica; se possível, dar passos para uma transformação social decorrente
dessa idéia, embora nem todas as idéias convirjam para isso em curto ou médio
espaço de tempo.
2 – Tem paixão pelo que faz. E isto faz toda a diferença. Quem gosta do que faz, faz
bem. Veja a frase de Confúcio: “Escolha um trabalho que você ame e não terá
de trabalhar um único dia em sua vida”. Quem ama se envolve... quem se
envolve vai mais fundo nas questões de um tema, dedica maior esforço ao
assunto e sente prazer quando descobre novidades sobre ele. Se considerarmos
que nessa fase de paixão por determinado problema ficamos com nosso
inconsciente voltado para ele, mesmo quando conscientemente nos desligamos
do problema, as informações que recebemos ao executarmos outras atividades
acabam por alimentar esse sistema inconsciente, podendo gerar insights
fantásticos. Um insight sobre uma questão profissional surge enquanto
relaxamos assistindo a um filme ou uma peça de teatro, possivelmente por
estarmos envolvidos no problema, embora não conscientes dele durante o
relaxamento.
3 – Tem foco. Sabe onde deve ir e não fica perdido diante de alternativas. Um
empreendedor escolhe uma entre várias alternativas e não fica pensando naquilo
que ficou para trás.
4 – Sabe perfeitamente o que quer e o que faz. E se esforça sempre para aumentar
esse conhecimento. Tem clareza do que é e do que quer ser. Quanto mais esses
norteadores lhe são claros, mais pode decidir sobre o que fazer e o quanto se
dedicar a cada coisa.
5 – É persistente. Pela sua obstinação pelos seus objetivos e desejos, persiste no seu
caminho. Não desiste por qualquer obstáculo. Sabe que a vitória depende
também dessa persistência.
6 – Não tem fracassos. O empreendedor usa os fracassos como forma de
aprendizagem para enfrentar novos desafios, aprende com eles; assim, mesmo
quando fracassa está crescendo.
7 – É muito autoconfiante. Acredita na sua própria capacidade porque tem obstinação
pelo desafio e não tem medo de errar (item 6). Acredita que vencerá. Como é
pessoa bem informada, disposta a lutar, sem medo de errar, acaba tendo
autoconfiança.
8 – Imagina-se vencedor. Por ter clareza sobre o que quer, não ter medo de errar e
ser autoconfiante... acredita que vencerá. Essa crença o impulsiona para frente.
Faz bom uso da imaginação e imagina-se sempre um vencedor.
9 – Tem sempre visão de vários cenários à frente. Como confia que consegue fazer
as coisas e superar obstáculos, rapidamente muda de alternativas quando algo dá
errado. Ele sabe que para todo problema existe uma solução e ele a encontrará.
Se não tiver essa confiança, no primeiro tropeço começa se achar incapaz.

411

10 – Não se acha vitima da vida. Problemas todos têm. A diferença está naqueles que
fazem algo para modificar a realidade. Não esperam que as coisas caiam do
céu... vai buscadas. E proativo. Ficar explicando os erros não os corrige... é
apenas uma tentativa de se proteger para não ter que aceitar que o erro foi seu,
de sua responsabilidade.

XII-3 Todos podem ser cientistas?

Aceito que todos os seres humanos podem vir a ser excelentes cientistas. Porém, a
trajetória de vida de cada cidadão lhe impõe uma estrutura própria de ser, que
certamente aumenta ou diminui ao longo de sua vida a possibilidade de se tornar um
cientista204. São detalhes aparentemente mínimos, mas que marcam profundamente a
formação do indivíduo. E essa trajetória não é linear. Indivíduos criados em ambientes
autoritários não necessariamente se tornam adultos autoritários. O tipo de escola que
freqüentaram, suas experiências com o mundo físico, suas influências religiosas, suas
possibilidades ou não de trabalhar enquanto adolescentes, os tipos de presente que
ganharam, os estímulos que receberam por apresentarem atitudes inovadoras etc. são
fatores que, em conjunto, influem na formação da postara conceituai das pessoas. Não
há como prever o que serão, mas certamente, na época de cursarem universidade, essas
qualidades já estão bem marcadas. Assim, mesmo que todos possam ser cientistas, a
partir de certo momento nem todos terão as mesmas facilidades de se tornarem bons
cientistas. O mesmo ocorre com qualquer profissão que exija perfis claros e específicos.
Por exemplo, vale para um jogador de futebol, um tenista, um pianista, um cantor, um
artista plástico etc.
No caso do cientista, como a questão é mais intelectual do que prática, ela se torna
mais delicada. Não se trata dos cientistas serem mais inteligentes ou não... eles apenas
dominam recursos lógicos e epistemológicos com maior propriedade. Inteligência é
outra coisa, que pode ser vista na habilidade para resolver problemas, incluindo aqueles
subjacentes na inteligência emocional (o como coadunar questões práticas com anseios
emocionais).
Na questão XII-2 apresentei os traços de personalidade comuns aos eminentes
cientistas, o que é coerente com esta noção de que o dia a dia de formação do indivíduo
pode construir um perfil psicológico mais compatível ou não com os requisitos para a
atividade científica. Embora todos possam potencialmente ser cientistas, depois de viver
parte significativa da vida o perfil das pessoas pode apresentar certas limitações para a
carreira científica. Mas esta abordagem implica também que é importante estudar e
buscar ser um cientista. Não o será por decreto e, menos ainda, por influência dos
deuses.

204
Isto vale para qualquer habilidade, não apenas a ciência. Embora possam aludir que as tendências
genéticas são importantes para algumas habilidades profissionais, prefiro evitar o fatalismo genético. No
caso do cientista, são tantas as confluências de habilidades, e tão complexas cada uma, que a influência
social certamente é predominante. Veja que o mesmo acontece nas Artes. Fala-se em dons. Mas sabemos
que a estimulação na infância e adolescência tem papel relevante nisso. Por que o mesmo não ocorreria na
ciência? Veja as qualidades relevantes para o cientista (XII-2) e examine se elas não dependem da
formação social do indivíduo!

412

XII-4 É imprescindível ao cientista estudar filosofia da ciência?

Há muitos pesquisadores que não conhecem adequadamente as bases filosóficas da


ciência. Isso faz com que nas questões mais gerais tenham dificuldade para responder às
indagações, ou mesmo para tomar algumas decisões mais ousadas. Por exemplo: meus
dados garantem a verdade de minhas conclusões? Devo concluir no tempo presente ou
no passado? Até que ponto posso generalizar além de meus resultados? Posso amparar
minha Discussão em conclusões da literatura, ou isso enfraquece meu trabalho?
Trabalhei com dados de uma região; posso extrapolar?
Uns anos atrás, relatei a algumas classes de alunos de pós-graduação, de instituição
de bom nível em nosso país, uma pesquisa científica. Os autores da pesquisa tinham
feito algumas observações de comportamento de peixes em laboratório (tempo que
gastavam cortejando as fêmeas), mas ao final concluíam sobre questões mais gerais,
como o fluxo gênico na população natural. Como apresentei a eles como sendo um
estudo em análise para publicação, perguntei se na opinião deles eu deveria aceitar tal
texto. Foram praticamente unânimes em dizer que não! Perguntei por que e disseram
que o artigo não havia medido fluxo gênico ou algo mais próximo disso. Então, lhes
informei que tratava de um artigo já publicado, na revista Nature (veja Kelley et al.
1999). Começamos a refletir sobre a resposta dos alunos e procurei mostrar-lhes que
possivelmente estavam com norteadores errados sobre o processo de construção do
conhecimento. O medo de generalizar é demasiado reforçado no dia a dia da ciência
mais técnica. Isso atrasa nossa possibilidade de fazer ciência arrojada e
epistemologicamente competente. Ou seja, ficamos presos demais aos resultados, ao
local da pesquisa, ao sujeito de estudo... e não fazemos ciência.
Em 2004, Ernst Mayr205 completou 100 anos! Um de seus livros mais famosos foi
“Populações, espécies e evolução” (Mayr 1977). Numa das entrevistas comemorativas
de seu centenário, Mayr falou que se lhe perguntassem como ele se definia
profissionalmente no início da carreira, diria que era um ornitólogo (que estuda aves).
Se fizessem a mesma pergunta em meados de sua carreira, diria ser um evolucionista.
Mas, quando lhe perguntam agora, simplesmente diz que é um filósofo da Biologia.
Devemos atentar que quando uma pessoa está em idade avançada como estava Mayr,
esperam-se duas coisas: ou é um sábio, ou está gagá. Nesse mesmo ano, Mayr publicou
um artigo no periódico Science, a convite dos editores. Com certeza, ele não estava
gagá! Essa sua constatação apenas reforça a idéia da importância das questões
filosóficas na ciência. Isso não é restrito à Biologia, mas presente na essência da
atividade científica de qualquer área.
Não é sem razão que este livro se inicia com um retrospecto, ainda que resumido, da
evolução do conhecimento filosófico até a abordagem científica. E nas respostas a
várias

205
Nascido em Kempten, na Alemanha, em 05/07/1904. Morreu em 03/02/2005, em Bedford, nos
Estados Unidos da América.

413

questões neste livro, reporto-me a aspectos ligados à abordagem teórica e filosófica de


capítulos precedentes.
O domínio das bases filosóficas da ciência oferece vantagens adicionais à atividade
científica, dando ao indivíduo ferramentas epistemológicas para avançar e recuar
durante a construção do conhecimento. Ciência é conhecimento. Enquanto alguns a
confundem com fatos, ciência apenas se baseia neles para nos contar a música imaterial
de conceitos que governam esses fatos.
A filosofia da ciência nos oferece reflexões sobre o processo de abordagem da
ciência, além de estudar sua história, o que nos embasa para certas ações. Sem isso,
ficamos parados em dogmas ultrapassados, em medos e conflitos superados há séculos.
Esse é o papel fundamental da filosofia da ciência na formação de um cientista. E a
ciência de alto nível explora esses conceitos para avançar o máximo que as reflexões
filosóficas nos permitem.

XII-5 Quando se inicia a formação de um cientista?

O aprendizado da ciência é um processo lento que se inicia com o desenvolvimento


do indivíduo desde sua infância. A formação de mentes criativas, questionadoras,
interessadas etc. é um processo que tem mais relação com atividades cotidianas do que
com o aprendizado formal na escola, embora este evidentemente interfira.
Na pré-escola, há atitudes que certamente coíbem a criatividade espontânea das
crianças. Por exemplo, os excessivos não às expressões espontâneas das crianças,
procurando enquadrá-las nos conceitos dos adultos sobre certo e errado, prejudicam a
formação criativa. Na escola pré-universitária, o processo continua e se agrava. Apesar
disso, o entusiasmo de alguns professores pode ser contagiante, de forma a incentivar no
aluno o gosto pelo saber, condição necessária para se tornar um cientista. Lembro-me,
até hoje, de uma aula de Ciências (5ª ou 6ª série) na qual meu professor nos apresentou
uma caixa de sapato lacrada e com alguns objetos em seu interior. Permitiu que cada
aluno mexesse na caixa, sem abri-la, para dizer o que havia lá dentro. Um dos alunos
disse que havia um garfo e esse professor imediatamente o corrigiu alertando que ele
poderia dizer que havia metal, mas que não tinha evidências para afirmar que era um
garfo. Estava nos ensinando a concluir a partir de evidências empíricas, o próprio
processo de indução. Mas isso foi na época em que a escola pública tinha um excelente
padrão206.

206
O maior crime que se fez à sociedade brasileira foi o desmantelamento do ensino público pré-
universitário. Enquanto ricos e pobres estudavam nas mesmas escolas e classes, a qualidade era zelada.
Quando os mais abastados financeiramente buscaram seu refúgio, a escola pública foi destruída,
esquecida, menosprezada... e com ela os alunos menos privilegiados na sociedade. Esse crime não foi
acidental e é, em minha opinião, o maior crime que se cometeu em nossa sociedade.

414

Na universidade resta muito pouco para fazer. O indivíduo está quase pronto
(felizmente há um quase). Seu gosto e capacidade intelectual para a ciência estão
praticamente definidos. Apesar disso, na fase de adolescência, o indivíduo está num
momento muito propício para aceitar idéias novas contrapostas ao conhecimento mais
ortodoxo. Isso pode ser aproveitado, mas o trabalho não é fácil. Por outro lado, questões
técnicas podem ser ensinadas aos montes... mas a cabeça de um cientista não se forma
pelo ensino das técnicas!

XII-6 A pós-graduação tem formado cientistas?

Sem dúvida, o sistema brasileiro de pós-graduação é muito bem estruturado e trouxe


vários avanços para nossa ciência. A incorporação pela Capes de conceitos
internacionais de qualidade científica, na primeira década deste século, vem
desmantelando, gradativamente, uma ciência precária e baseada em número de artigos.
Veja em Volpato (2011) um relato mais detalhado desse processo.
Apesar disso, a formação dada na pós-graduação tem se convertido mais numa
formação técnica de pesquisa do que na formação intelectual de um cientista. A maioria
dos orientadores de pós-graduação também carece de uma formação científica sólida.
Isso se faz sentir nos equívocos cometidos por mestrandos e doutorandos. Ministro
anualmente de 6 a 8 dezenas de cursos a grupos de programas de pós-graduação em
várias universidades públicas brasileiras. Nesses convites é comum eu ouvir que meu
curso será bom porque os alunos estão precisando aprender a redigir um bom texto
científico internacional. Mas eu não concebo que um grupo de docentes, altamente
qualificado, não consiga ensinar a redação científica a seus alunos. O que ocorre, e não
é qualquer demérito ou vergonha, é que os orientadores também não sabem e, portanto,
não conseguem ensinar. Essa é uma realidade que temos que reconhecer, enfrentar e
mudar. Veja o interessante trabalho de Burlamaque-Neto et al. (2012), em que os
autores evidenciam a dificuldade de alunos de graduação e pós-graduação (áreas de
Biologia, Farmácia, Biomedicina e Medicina Humana) para adentrar questões teóricas.
Acabam sendo mais práticos, operacionais, do que teóricos.
De norte a sul, leste a oeste, das melhores universidades às mais modestas, a falha na
redação científica é evidente e reflete erros conceituais sobre o fazer e pensar ciência. A
pós-graduação tem servido para fazer teses, mas nem sempre ciência. Não fosse isso,
por que haveria tanta dificuldade para atingirmos revistas de bom nível que, a cada
triênio, a Capes exige? As teses continuam saindo... mas as publicações de bom nível
são ainda exceções.
O drama das publicações reflete exatamente essa distância entre o que produzimos
nas teses e o que é necessário para uma publicação internacional de bom nível (nos
moldes Capes, Al e A2). Para mim, essa é a prova de que nossa ciência está equivocada.
Mas até aqui falei apenas da construção de teses, da pesquisa. Formar um cientista é
bem mais que isso. Esse cientista deverá fazer a diferença na nossa sociedade científica
do futuro. Como

415

mentes técnicas poderão orquestrar um processo tão difícil quanto uma sociedade de
pensadores, crítica e ousada? O desastre parece eminente.
Quando em bancas de defesa de tese, muitas vezes pergunto ao futuro doutor o que
significa ser um Doutor (um PhD). E nenhum consegue responder. Limitam-se, no
máximo, a dizer das habilidades técnicas e do conhecimento profundo de uma
especialidade. Isso sugere que questões mais gerais não estão sendo priorizadas com a
devida ênfase na pós-graduação.

XII-7 Você é doutor... quer virar cientista?

No passado, procurei propor um novo modelo de pós-graduação. Lógico que não


seria aceito, pois sequer a maioria dos orientadores tem o perfil desejado. Sem
abandonar os conceitos e princípios desse modelo, agora busco uma alternativa.
Reconhecendo que a pós-graduação tem dado uma formação técnica (conhecimento
específico e técnico num assunto) que também é necessária ao cientista, minha proposta
é criar um novo sistema, paralelo à pós-graduação, que permita aos que assim o
desejarem, tornarem-se um cientista no sentido mais amplo do termo. Portanto, trata-se
de uma proposta complementar, que aproveita os benefícios da pós-graduação e avança
naquilo que ainda falta.
Não se trata de um curso nos moldes tradicionais, mas um Ambiente Formador207.
Alguns requisitos são fundamentais nesta proposta:

1 – O aluno tem sede pelo saber; deseja profundamente se tornar um cientista.


2 – O Ambiente Formador deve fornecer informações imprescindíveis e direções a
seguir, bem como clima de ciência.
3 – O Ambiente Formador completa seu norteamento dando diagnósticos aos alunos
e obtendo feedbacks sobre a evolução de cada um.

Com isso, temos os elementos necessários: vontade de aprender, direcionamento no


aprendizado, ambiente compatível e avaliação rígida e norteadora. Nada mais é
necessário. Não se pretende criar um sistema que ensine a quem não quer aprender (isso
seria muito invasivo!).

207
Este programa de Ambiente Formador está previsto para iniciar as atividades em breve. Visitem
www.gilsonvolpato.com.br para informações.

416

Pressupostos Teóricos da Proposta

1 – Incentivo ao autodidatismo – ninguém lhe ensinará conteúdos, mas lhe daremos


referenciais norteadores para você aprender tais conteúdos.
2 – Liberdade para aprender – cada um estuda como acha melhor. Pode aprender
assistindo a uma exposição oral, ou lendo num livro, ou mexendo na Internet, ou
ainda conversando com outras pessoas. O meio não é relevante e é pessoal.
Estamos preocupados com que haja o aprendizado.
3 – Norteamento - esta é a principal função do Ambiente Formador; dizer ao aluno o
que ele deve saber de cada tema, entendendo como isso contribuirá para sua
formação científica.
4 – Implantação das Habilidades Essenciais – são categorias do saber consideradas
necessárias a qualquer cientista. Elas complementam aquelas que a pós-
graduação já fornece (especialidade e técnicas), ampliando a formação do aluno
para que ele se considere um cientista. Como são essenciais, todas as habilidades
são necessárias. Cada um deverá aprimorar--se naquelas em que não esteja bem
qualificado. As habilidades preconizadas estão em dois blocos (Habilidades
Gerais e Habilidades Específicas), indo desde história da arte até Registro de
Patentes.

Referências

Beveridge WIB. 1981. Sementes da descoberta científica. Edusp.


Burlamaque-Neto AC, Santo GR, Lisboa LM, Goldim JR, Machado CLB, Marte U, Giugliani
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health research laboratory. Brazilian Journal of Medical and Biological Research 45(2): 93–
96.
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661-662.
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Timpane J. 1995. Howto convince a reluctant scientist. Scientific American Jan: 84.
Volpato GL. Para entendermos um pouco o drama brasileiro de publicação.pdf disponível em
www.gilsonvolpato.com.br (item Publicação Científica, seção Artigos). Postado em
02/10/2011.

417

Literatura Complementar

Alves R. 2000. Filosofia da ciência: introdução ao jogo e suas regras. Editora Brasiliense.
Alves R. 2002. A alegria de ensinar. 13a ed. Editora Papirus.
Alves R. 2005. A escola que sempre sonhei sem imaginar que pudesse existir. 11a ed. Editora
Papirus.
Alves R. 2007. Estórias de quem gosta de ensinar. Editora Papirus.
Alves R. 2008. Ostra feliz não faz pérola. Editora Planeta.
Alves R. 2012. Pimentas: para provocar um incêndio não é preciso fogo. Editora Planeta.
Aranha MLA, Martins MHP. 2003. Filosofando: introdução à filosofia. Editora Moderna.
Balchin J. 2008. Os 100 cientistas que mudaram o mundo. Editora Madras.
Barbosa C. 2011. A tríade do tempo. Sextante.
Barbosa RLL (org.). 2004. Trajetórias e perspectivas da formação de educadores. Editora
Unesp.
Beto F, Gleiser M, Falcão W. 2011. Conversas sobre a fé e a ciência. Nova Fronteira.
Beveridge WIB. 1981. Sementes da descoberta científica. Edusp.
Blackburn S. 2008. Oxford dictionary of philosophy. 2a ed. Oxford University Press.
Brockman J, Matson K (eds.). 2002. As coisas são assim: pequeno repertório científico das
coisas que nos cercam. Companhia das Letras.
Bronowski J. 1979. Ciência e valores humanos. Edusp.
Buarque C. 2000. A aventura da universidade. Editora Unesp.
Carraher DW. 1999. Senso crítico. Editora Pioneira.
Cerbasi G, Barbosa C. 2009. Mais tempo, mais dinheiro: estratégias para uma vida mais
tranqüila. Thomas Nelson Brasil.
Chiavenato 1.2001. Teoria geral da administração. Vol. I. Editora Campus/Elsevier.
Chiavenato I. 2002. Teoria geral da administração. Vol. II. Editora Campus/Elsevier.
Covey SR. 2005. Os 7 hábitos das pessoas altamente eficazes. Editora Best Seller.
Cury A. 2003. Pais brilhantes, professores fascinantes. Editora Sextante.
Dukas H, Hoffmann B (org.). 1979. Albert Einstein, o lado humano. Editora Universidade de
Brasília.
Einstein A, Infeld L. 2008. A evolução da física. Zahar Editores.

418

Feyerabend PK. 1996. Matando o tempo: uma autobiografia. Editora Unesp.


Freire P. 1996. Pedagogia da autonomia. Editora Paz e Terra. Freire P. 2001. Pedagogia dos
sonhos possíveis. Editora Unesp.
Freitag B. 1987. Política educacional e indústria cultura. Coleção polêmicas do nosso tempo,
n° 26. Cortez Editora & Editora Autores Associados.
Genett DM. 2008. O poder de delegar. 6a ed. Editora BestSeller.
Giambiagi F, Porto C (org.). 2011. 2022: propostas para um Brasil melhor no ano do
bicentenário. Editora Campus/Elsevier.
Gladwell M. 2008. Fora de série: outliers. Editora Sextante.
Gleiser M. 2007. Cartas a um jovem cientista. Editora Campus.
Gordon K. 2010. Líderes que mudaram o mundo. Larousse do Brasil.
Harvard Business Review. 2002. Empreendedorismo e estratégia. Editora Campus.
Haven K. 2008. As 100 maiores descobertas científicas de todos os tempos. 2a ed. Editora
Ediouro.
Horgan J. 2006. O fim da ciência. Editora Schwarcz Ltda..
Hunter JC. 2004. O monge e o executivo; uma história sobre a essência da liderança. Editora
Sextante.
Kelley T, Littman J. 2007. As 10 faces da inovação. Editora Campus.
Keough DR. 2010.10 mandamentos para fracassar nos negócios. Editora Sextante.
Kida T. 2007. Não acredite em tudo o que você pensa; os 6 erros básicos que cometemos
quando pensamos. Editora Campus.
Llosa MV. 2006. Cartas a um jovem escritor: toda vida merece um livro. Editora Elsevier.
Lopes JL. 1978. Ciência e libertação. Editora Paz e Terra.
Lopes JL. 2001. Unificando as forças da natureza. Editora Unesp.
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Luckesi C, Cosma EBJ, Baptista N. 2005. Fazer universidade: uma proposta metodológica.
Cortez Editora.
Mancini M. 2007. Como administrar seu tempo. Editora Sextante.
Marx K. 1980. Conseqüências sociais do avanço tecnológico. Coleção Ciências Sociais, série
Materialismo Histórico, Vol. 1. Editora Edições Populares.

419

Mariano S, Mayer VF. 2011. Empreendedorismo; fundamentos e técnicas para criatividade.


Editora LTC.
Meirieu P. 2006. Carta a um jovem professor. Editora Artmed. Ménard J-D. 2008. Como
administrar seu tempo. Editora Vozes. Morei RGM. 1979. Ciência e estado. Editora TA
Queiroz. Oliva A. 2003. Filosofia da ciência. Jorge Zahar Editor. Oliveira DPR. 2009.
Fundamentos de administração. Editora Atlas. Oliveira J, Garcez L. 2002. Explicando a
Arte. Ediouro.
Oliveira S. 2010. Geração Y: o nascimento de uma nova versão de líderes. Integrare Editora.
Omnès R. 1996. Filosofia da ciência contemporânea. Editora Unesp.
Penteado W. 2007. Cartas a um jovem indeciso: que profissão escolher? Editora Campus.
Russell B. 2003. O elogio ao ócio. Editora Unesp.
Saint-Exupéry A. 2006. O pequeno príncipe. Agir Editora Ltda..
Schnitman DF (org.). 1996. Novos paradigmas, cultura e subjetividade. Editora Artes Médicas.
Schwartzman S. 1981. Ciência, universidade e ideologia: a política do conhecimento. Zahar
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Semler R. 2006. Você está louco: uma vida administrada de outra forma. Editora Rocco.
Sertek P. 2007. Empreendedorismo. 4a ed. Ipbex.
Sokal A, Bricmont J. 1999. Imposturas intelectuais: o abuso da ciência pelos filósofos pós-
modernos. Editora Record.
Stengers 1.1990. Quem tem medo da ciência? Ciência epoderes. Edições Siciliano.
Spencer J. 2002. Quem mexeu no meu queijo? 33a ed. Editora Record.
Volpato GL. 2007. Bases teóricas para redação científica. Editora Cultura Acadêmica, Editora
Scripta.
Volpato GL. 2009. Administração da vida científica. Editora Cultura Acadêmica.
Volpato GL. 2010. Pérolas da redação científica. Editora Cultura Acadêmica.
Woodford S. 1983. A arre de ver a arte. Zahar Editores.

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